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Catherine Doyle - Vingança

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Quando  se  trata  de  vingança,  o  amor  é  uma  perigosa  complicação.Para   Sophie,   aquele   seria   só   mais   um   verão   lento   e   abafado   em   Cedar   Hill,  fazendo   um   bico   como   garçonete   no   restaurante   da   família   e   passando   o  tempo  com  sua  melhor  amiga,  Millie.  Mas  isso  foi  só  até  uma  família  se  mudar  para  o  casarão  abandonado  no  Dim  da  rua  —  cinco  irmãos  italianos,  um  mais  gato  que  o  outro.Sem   conseguir   resistir   aos   olhos   cor   de   caramelo   de  Nicoli,   Sophie   acaba   se  apaixonando   —   e   propositalmente   ignorando   os   sinais   de   perigo   que  envolvem   os  misteriosos   irmãos.   Por   que   as  mãos   de   Nic   estão   sempre   tão  machucadas?   Por   que   ele   sempre   carrega   consigo   um   canivete   com   o   seu  monograma?   E   por   que   seu   irmão  mais   velho,   o   arrogante   e   irritante   Luca,  quer  proibir  os  dois  de  Dicarem  juntos?Quando   os   segredos   sombrios   dos   rapazes   começam   a   vir   à   tona,   Sophie  precisa  enfrentar  dolorosas  verdades  em  relação  à  própria  família.  De  repente,  ela  se  vê  no  meio  de  uma  vendetta  entre  duas  dinastias  rivais:  a  família  em  que  nasceu  e  a  pela  qual  se  apaixonou.Sophie  vai  precisar  escolher  entre  lealdade  e  paixão,  e,  quando  o  Dizer,  sangue  vai  rolar  e  corações  serão  partidos.  Quando  se  trata  de  amor,  a  desonra  pode  ser  uma  questão  de  vida  ou  morte.

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PARTEI

“De todasas formasde cautela, a cautelanoamor talvez sejaamaisfatalparaafelicidadeverdadeira.”

BertrandRussell,Aconquistadafelicidade

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CAPÍTULOUM

OPOTEDEMEL

Não reparei logo de cara, mas havia algo entre o caixa e a pilha decomandas. Talvez estivesse ali havia horas ou mais, apenas esperando,enquanto eu passava mais um dia de verão morrendo de tédio nalanchoneteGracewell.Estávamossónósduasfechandoorestaurante.Eu,plantadaaoladodo

caixa, tamborilava as unhas no balcão, enquanto Millie, minha melhoramigaeparceiradebandejas,deslizavapelalanchonetecantandoparaumcabo de vassoura como se fosse ummicrofone. Todomundo já tinha idoembora,emeutioJack—ogerentenadaextraordinário—tinhaficadoemcasaderessaca.Asmesas estavam enfileiradas, rodeadas por cadeiras de encosto reto

cordevinhoealgumasplantasartificiais.Aportajátinhasidotrancada,asluzesestavambaixaseascabinespertodajanela,limpas.EumeesforçavaparanãoouvirMilliedestruindoumamúsicadaAdele

quandoreparei:umpotedemel.Euopegueieoanalisei.—Achoqueestoumelhorando—gritouMillieenquantoassassinavaa

músicadooutroladodalanchonete.Oúnicoacertodelafoiolevesotaquebritânico, mas apenas porque ela realmente era britânica. — Já consigoalcançaraqueleagudo!—Umamelhoraetanto,Mil—menti,semlevantarosolhos.Opoteerapequenoecilíndrico.Quandoeuobalanceideumladoparao

outro, o mel salpicado de cristais dourados se movimentou

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preguiçosamente.Umpedaçodetecidodesgastadocobriaatampadopote,e no lugar do rótulo, amarrada emum laço elaborado, havia uma fita develudopreta.Artesanal? Estranho. Não conhecia ninguém que fizesse o própriomel

emCedarHill,eeuconheciaquasetodomundodacidade.CedarHilléessetipodelugar—umapequenacomunidadenosarredoresdeChicago,ondetodomundoconhecedavidadooutro;ondeninguémperdoanemesquece.Eusabiabemdisso.Depoisdoqueaconteceucomomeupai,vireiafilhadadesonra,eadesonra temopoderdegrudarnapessoacomoumagrandeplacadeneonnatesta.Millieatingiuaúltimanotadamúsicacomumvigorderacharosouvidos

eentãopulouparatrásdobalcãoeguardouavassoura.—Estápronta?—De onde veio isso?— Equilibrei o pote demel na palma damão e

estendiobraço.Eladeudeombros.—Nãosei.Estavaaquiquandocomeceioturno.Euobservei,atravésdoprismadourado,seurostosedistorcer.—Éestranho,nãoacha?Millie ajustou sua expressão para a clássica “eu realmente não dou a

mínimaparaoquevocêestáfalando”.—Omel?Nãoachei.—Éartesanal—falei.—É,percebi.—Elafranziuassobrancelhaseestendeuamãoparatocar

novidro.—Olaçoémeioestranho.Talvezumclientetenhadeixadocomogorjeta.—Quetipodeclientedeixaumpotedemelcomogorjeta?Millieficouboquiaberta,orostoseiluminando.— Você... — Ela inspirou de forma dramática. — Por acaso... — Ela

suspirou.—Atendeu...Inclineiocorpo,emexpectativa.—...umursinhoamarelo...Nãoacreditoquecaínessa.—...chamadoPooh?Arisadadelamefezrir,comosempre.Aquelesom—parecendoumpato

sendoestrangulado—foioquemechamouatençãoquandoelasemudouparaCedarHill cincoanosatrás.Naescola,agentepercebeuquesempreríamos das mesmas coisas. Foram coisas bobas — caretas, risadasimprópriasquandoalguémtropeçavaecaía,oprazerdelongasconversas

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semsentidoediscussõesridículassobresituaçõeshipotéticas—quenosaproximaram. Naquela época eu não sabia que seria a única amizade asobreviveraoqueaconteceuàminhafamíliaumanoemeioatrás,masnãofaziamaisdiferença,porqueMillieeraamelhoramigaqueeupoderiater,eaúnicadequeeurealmenteprecisava.Rimosotempointeiroenquantofechávamosalanchonete,atéestarmos

do lado de fora, no clima agradável da noite. Localizada na esquina daFostercomaOak,alanchoneteficavaemumprédiobaixoemodestocomparedes de tijolos desgastadas. Era perfeitamente simétrico, o formatoquadrado evidenciado pelas grandes janelas que dominavam a fachada epelo estacionamento modesto que cercava o restaurante. Na marquiseficava o letreiro tosco com a palavra “Gracewell”, semi-iluminado pelospostes da rua ao redor. Do outro lado, o prédio da antiga biblioteca semisturava ao céu escuro, parcialmente encoberto por uma fileira deárvores bem podadas que passava pela sede do correio e seguia calçadaabaixo.Eu ainda segurava o pote de mel cuidadosamente embalado quando

passamos pelo estacionamento vazio. Não era como se alguém fosse seimportar,disseamimmesma—meutioJackestavaemcasaesperandoaressaca passar, então não havia ninguém com autoridade oficial parareclamarapossedomel.Fiz apenas o que qualquer funcionário cansado e mal pago faria na

mesma situação — tomei para mim um brinde que não teria qualquerutilidadepráticaesaídalanchonetemesentindovitoriosa.—Sabe,euestavapensando.—Milliediminuiuopassoparameesperar.—Cuidadocomisso—provoquei-a.—Talvezeudevesseficarcomomel.—Achadonãoéroubado—cantarolei.— Sophie, Sophie, Sophie. — Ela passou o braço em volta dos meus

ombrosemepuxouemdireçãoaela.Éramosquasedamesmaaltura,masMillie era voluptuosa, enquanto eu era magrela, feito um menino, ebochechuda igual aomeu pai, embora pelo lado positivo também tivesseherdado suas covinhas. Millie esmagou a bochecha na minha, como sequisesseme lembrar disso. Senti seu sorriso.—Minhamelhor amiga nomundo inteiro. Quão chata seria aminha vida sem você? As estrelas nãobrilhariamcomtantaforça,aluanãoserianadaalémdeumasombradesimesma.Asfloresmurchariame...— De jeito nenhum! — Me desvencilhei do seu abraço. — Não vai

conseguiromelmeelogiando.Souimuneaoseucharme.

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Milliecoçouosolhosesoltouumgemidodecortaraalma.—Vocêjátemalanchoneteinteira.Nãopossoficarcomomel?Emboraelaestivessecerta,herdaralanchonetequandofizesse18anos

estava longedeseramaiorambiçãodaminhavida.Essashaviamsidoasinstruções do meu pai antes de partir, e não havia dúvida de que meuglorioso e mal-humorado tio Jack, com sua forte aura autoritária, iriaobedecer. De qualquer forma, não importava.Millie e eu sabíamos que alanchonetenãoeranadaempolganteesimapenasumadordecabeçasemfimàespreitanaminhavida.Masopotedemelcomolaçopreto?Eraalgobonito—umasurpresaparaquebraramonotoniadodia.Millieparouatrásdemim.—Sophie,quemfalaéasuaconsciência—sussurrouporcimadomeu

ombro.—Seiquefazumasemanadesdequenosfalamospelaúltimavez,masestánahoradefazeracoisacerta.Millieétãolegalebonita.Nãoquerdaromelparaela?Penseemcomoelaficariafeliz.—Eunãosabiaqueaminhaconsciênciatinhaumsotaquebritânico.—É,bem,nãopensemuitonisso.Sópasseomelparaela.Pareinasaídadoestacionamento,ondecadaumaprosseguiriasozinha

pelanoite.Antesdearendadosmeuspaisserreduzidapelametade,Millieeeu caminhávamosnamesmadireção,paraaavenidaShrewsbury,ondetínhamos empregados e jardineiros, piscinas gigantes e lustres de cristalpendurados em halls de verdade. Agoraminha caminhada para casa erabemmaislongadoqueantes.—Millienemgostademel—retruquei.—Eelanãorespeitaasabelhas.

Euavipisarnumaabelhatrêsvezesnasemanapassadaparagarantirqueestavamorta.— Não é culpa minha que esse país esteja sendo tomado por insetos

desagradáveis.—Oquevocêqueria?Estamosemplenoverão!—Éumamaldição.—Evocêestavausandoumperfumefloral.—Elaestavasendoinconveniente.—Entãovocêsimplesmenteamatou?Millieestendeuamãodramaticamente.—Apenasmedêomalditomel,Gracewell.Euprecisodeleparanegociar

ofimdomeucastigo.Levanteiassobrancelhas.Havíamosacabadodecompletarumturnode

oitohorasjuntaseelanãohaviamencionadonadadisso.—Castigo?

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—Umacompletainjustiça.Umcompletomal-entendido.—Podecontinuar...— Alex me chamou de sorriso metálico. — Millie fez uma pausa

dramática.—Dápraacreditarnisso?Bem,elarealmenteusavaaparelho.Eeleestava tecnicamentenosseus

dentes.Masnãofaleiisso.Fizumacaraderevoltaefingiconcordarqueseuirmão“nãomuitomaduro,porémgostoso”eraumtiranogrosseiro.—Eleétãoidiota—afirmei.— Ele é literalmente o pior ser humano do planeta. Enfim, uma coisa

levou à outra e o iPhone dele caiu da janela... Bem, meio que caiu dasminhasmãos...queestavamcoincidentementepraforadajaneladoquartodelenahora...Elesurtoucompletamentecomigo.—Irmãos...—Bem,vocêtemsortedenãoprecisardividirsuacasacomnenhumrei

da babaquice— vociferou ela.—Que cara de 19 anosgrita com a irmãmaisnova?Querdizer,ondeestáahonradessapessoa?EleéumavergonhaparaafamíliaParker.Ecomoeupodiasaberqueotelefoneiaquebrar?—Queestranho.—Aindacomomelnamão,eumeapoieiemumposte

próximoeobserveiminhasombrasecurvardentrodapoçade luz.—Eupoderia jurar que os iPhones mais recentes vinham com ummicroparaquedas.Milliecomeçouagolpearoar,comoseoproblemapairasseàsuavolta.—Seeuderessesimpáticopotedemelparaminhamãeusaremuma

dassuasreceitas,elavaiolharparamimcomoafilhacarinhosaedocequesoueacabarácomessecastigoinjusto,quefoiimpostoamiminjustamenteporcausadoporcoignorantedomeuirmão.Eumeajeitei.—Issonuncavaifuncionar.Vouficarcomomel.— Tanto faz — disse ela, jogando o cabelo castanho liso para trás

dramaticamente.—Deveestarenvenenadomesmo.Elabotoualínguaparaforaesaiupisandoduroemdireçãoàescuridão,

deixando-mesozinhacomminharecompensaconquistadacomtanta luta.Botei o pote na bolsa, observando os cachos da fita preta sumirem ládentro.Atravesseiaruaeparei,tentandodecidirparaqueladoseguir.Depoisde

seis turnosseguidos,assolasdosmeuspés latejavame, comoMillieeeuhavíamosenroladoportantotempo,jáestavamaistardequeonormal.Ocaminhomais longo para casa era geralmente aminha opção favorita—erabem-iluminadoebem-frequentado—masoatalhoerabemmaiscurto,

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sempassarpelocentrodacidade,subindoaladeiraedandoavoltaportrásdamansãoassombradanofinaldaavenidaLockwood.

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CAPÍTULODOIS

OGAROTODEOLHOSASSOMBROSOS

Aluaestavacheiaealta,masanoitepareciamaisescuradoqueonormal.Depois de 15 minutos com apenas o som dos meus passos comocompanhia,ostorreõesdavelhamansãoPriestlyseerguiamemdireçãoaocéuàminhafrente,vigiandoascasasvizinhascomotorresdeobservação.Pormaisbonitaquefosse,amansãosempremelembravadeumacasa

de bonecas em ruínas. As paredes de madeira caiada se inclinavam emângulos estranhos, enquanto alguns cantos sobressaíam, afiados comofacas, atravessando a imensa quantidade de hera. Um muro de pedrascobertodefolhascontornavaoterreno;eraaúnicacasadeCedarHillqueproporcionava o luxo de tamanha privacidade, mas sua aura gótica eramaiseficazemrepelirinvasoresdoqueosmurosdamansão.As pessoas que conheciam a casa falavamdela com iguaismedidas de

apreensãoefascinação,ecomfrequênciacriavamsuasprópriashistóriasarespeitodolugar.Quandoeutinhaseteanos,minhamãemecontousobreumalindaprincesaquepassavaosdiasnoaltodostorreõesdaantigacasa,fugidadeumcasamentoarranjadocomumpríncipeamarguradoechato.Quandofizdezanos,ascriançasdavizinhançahaviamdecididoqueacasaera o lar amaldiçoado de uma bruxa velha e ardilosa. Ela enchia oscômodoscomgatosesapos,caldeirõesevassourase,nomeiodanoite,saíavoandopelocéuàprocuradecriançasdesobedientesquejádeveriamestar

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na cama. Quando conheci Millie, ela me falou dos vampiros queobservavamportrásdasvidraçasrachadas,espiandocomolhosvermelhosebrilhantes.Maistarde,aos14,euestavaterminandoumtrabalhodehistóriasobre

CedarHillemedepareicomaverdadeiraeapavorantehistóriadamansão.Não havia bruxas, princesas ou vampiros — apenas a história de umajovem chamada Violet Priestly, uma enfermeira do fronte na SegundaGuerra Mundial que havia retornado como uma versão totalmentediferentedesimesma.Aslembrançastraumáticasaassombravam,atéqueas alucinações se tornaram fortes demais para ignorá-las. Pouco tempodepoisdeenvenenaromaridoeo filho,elaseenforcounohalldaantigamansão.Éclaroqueninguémquiscompraracasadepoisdisso.Nada seria capaz de afastar a escuridão que rondava a vizinhança dos

Priestly.Mesmonosdiasmaisquentesdeverão,quandoascalçadasardiamcommiragens,haviaumafrieza inquestionávelpartindodamansão.Eelapermaneceu assim por décadas, como um lembrete de outro espaço etempo,vaziaetotalmenteirrecuperável.Querdizer,atéaquelanoite.Aomeaproximardamansão,esfregandomeusbraçosparaesquentara

pele subitamente gelada e questionando minha decisão de seguir poraquele caminho, me assustei ao perceber que a casa havia mudadocompletamentedesdeaúltimavezqueeupasseiporali.Alguémfinalmentetomoucoragem—deverdade.AabandonadamansãoPriestlyfoiarrastadaparaoséculoXXI,eestavavivanovamente.Pareideandar.Os portões de ferro coloniais enferrujados tinham sido arrancados e

apoiadosnascercas-vivasquejánãoseestendiampelomurodojardim.Ossalgueiros-chorões estavam podados com uma perfeição quase artificial,revelandoasjanelasdosegundoandar,cujaexistênciaeununcapercebi.Asherasforamretiradasdasparedes,exibindoplacasdemadeirarobustaseuma porta vermelha recém-pintada, iluminada por um lampião de cadalado.E,aoalcanceda luzdos lampiões,erapossívelverdoisSUVspretosestacionadosladoaladononovochãodecascalho.Meu telefone vibrou no bolso — uma mensagem de texto de Millie

avisandoquehaviachegadobememcasa,eumlembretenão intencionalde que omesmo não era verdade paramim. Relutante, tentei retomar acaminhada, mas algo dentro de mim me impediu. A mansão Priestly, ocoraçãocongeladodeCedarHill,batianovamenteedane-seoatraso—eu

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precisavasabermaissobreisso.Foi então que senti algo. Levantei o olhar para as árvores e vi uma

sombrabruxuleanteemumadasjanelasdecima.Eraumgaroto.Nãotinhacerteza da sua idade, mas mesmo de longe os olhos brilhavam. Eramgrandesdemaispara seu rostodelicadoe enquantomeobservavampeloquepareceuumaeternidade,elessearregalaram.Ogarotoseinclinouparafrente e apoiouaspalmasdasmãosna janela, comose fosse empurrarovidroparafora.Eleestavaacenando?Oumemandandoembora?Levantei a mão para cumprimentá-lo, mas ela parou no meio do

caminho,suadaeinstável.Eentão,comamesmarapidezqueapareceu,ogaroto desconhecido sumiu pela escuridão atrás dele, até que a casa,reformada,ficousilenciosamaisumavez.Confusa,desvieioolhardajanelavaziaparaaentradadecarrosàminha

frente enquanto a escuridão adiante tomava forma. Um leve farfalharsoproupeloareaperteiosolhosatéenxergaroutrafiguraatrásdeumdoscarros.Eleestavaagachado,procurandoalgonoveículo.Tenteilutarcontraodesejodeinvestigar,mas,comasmãostremendo,a

curiosidade tomou conta de mim e me impulsionou em direção à casa.Segui da calçada para dentro, tentando espiar pelas frestas dos portõesabertos, e o farfalhar parou. A porta do carro se fechou e ouvi o somdecascalho sendo pisado na escuridão. A pessoa se ergueu, a cabeçaaparecendo de trás do carro, e se moveu acompanhado do cascalhobarulhento até parar no caminho entre a casa e o portão, onde me viuobservando-o.Mesmoàluzdoslampiões,eleeraapenasumcontorno:umasombraalta

de ombros largos emovimentos decididos. Ele parou e abaixou o braço,descendoumabolsadelonaaochãoatéestaraseuspés,comumalentidãocalculada.Deuumpassoparao ladoeempurrouabolsacomabotaparatrásdocarromaispróximoeparalongedosmeusolhoscuriosos.Maseujátinhavisto,sejaláoquefosseaquilo,enósdoissabíamosdisso.Eleinclinouacabeçaparaoladoechegoumaisperto,umpassodecidido

edepoisoutro,encurtandoadistânciaentrenós.Acadapassomeucoraçãobatia mais forte. Minha curiosidade se evaporou e foi substituída pelarealidade:eu fuipega invadindopropriedadealheiaeagoraaquela figurasombriavinhaatrásdemim.Dei meia-volta e cambaleei pela rua deserta. Quando o silêncio foi

interrompido pelo som de passos pesados, comecei a correr,completamente despreparada para o gato que surgiu no meu caminhosoltando ummiado estridente. Escorreguei tentando parar e balancei os

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braços procurando equilíbrio, mas o homem desconhecido atropelou asminhascostas,mecalandoantesqueeusoltasseumgritoaotiraroardosmeus pulmões ememandar voando pelos ares. Larguei a bolsa e caí nacalçadacomumbaquesurdo,ralandoasmãoseosjoelhosnoasfalto.Fuitomadaporumatontura,meujantarserevirandonoestômago.Antes que eu pudesse entender o que havia acontecido, ou imaginar

como seria morta, fui erguida da minha bolha de dor e posta de pénovamentenamesmaposiçãodesegundosatrás,comosealguémtivesseapertadoobotãorewind.Sóquedaquelavezhaviaalgodiferente.Eusentiamãosfortesaoredor

daminhacintura.Elasmemantinhamdepéenquantoeumeoscilavaparafrenteeparatrás,tentandoencontrarequilíbrio.—Stai tranquillo, sei al sicuro.— As palavras soaram tão estranhas e

inesperadasquepenseitê-lasimaginado.Olheiparabaixoenoteiasmãosdeleemvoltademim.Derepentemevi,

comosedoalto,relaxadanosbraçosdeumestranhoemumaruadesertanomeiodanoite,emfrenteàcasamaisfamosadeCedarHill.O mesmo estranho que tinha acabado de me flagrar invadindo sua

propriedadeedepoismejogadonochão.Eu havia assistido a muitos filmes românticos para apreciar uma boa

cenadetirarofôlego—mastambémhaviavistomuitoCSI.Numimpulso,empurrei asmãosdesconhecidas para longedemime saltei para frente.Agachei e peguei minha bolsa do chão, vendo de relance a fivela grossaprateada da bota de couro dele antes de me levantar correndo e jogarapressada a bolsa no ombro. Ergui os olhos para o cara, desejando teralgumtipodearmanaminhabolsasóporgarantia.Maseleficouparado,orostoumconjuntodesombrasnaescuridão.Elenão feznovamençãodemeatacar,enãomedemoreialiparaquetivesseoutrachance.—Nãomesiga.—Minhavozsooumaisfortedoqueeumesentia.Deiavoltaecomeceiacorrer.Aindaoescuteichamando,maseujáestavalonge.Nãomevirei,mas tinha certezadeque sentia os olhos sombrios—os

olhosdele—nasminhascostasenquantocorria.Umsomdistantederisosmeseguiupelaescuridão.Chegueiemcasaemtemporecorde.Depoisdedeixaropotedemelno

parapeitodajaneladacozinhaemearrastarparaoandardecima,limpeimeusjoelhosardidosemedeitei.Apósoquepareceramhorasencarandootetodeolhos arregalados, escutando asbatidas aceleradasnomeupeito,caínumsono inquieto.Sonhoscomgarotosemjanelasse transformavam

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empesadeloscomcorposnassombrasepotesdemelcomfitaspretas.

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CAPÍTULOTRÊS

AMERCADORADEFOFOCA

Nãoexistemuitacoisacapazdemeirritar.Noentanto,afontedetãorarairritaçãohaviaseinfiltradonaminhacasaeestragadoamanhãensolaradapraticamenteantesqueelacomeçasse.—Nãoéumbompresságio,Celine.Eutenhoumsextosentidoparaessas

coisas...A voz de Rita Bailey, mais estridente que uma sirene de polícia, não

encontravaqualquerdesafioparainvadirmeuquarto,apesardeestarumandarabaixo.Olheicomraivaparaoteto.Eunãoqueriaouvirsobreocasode Lana Green, a psoríase alarmante de Jenny Orin ou o escândalo dospiolhos das crianças Tyler. Mas o volume da voz daquela senhora medeixou sem alternativa. Eu teria que sofrer de qualquer forma e,considerandoabagunçadeprimentedomeuquarto,aliadaaomeudesejodetomarcafédamanhãemalgummomento,decidiencará-lade frenteeacabarlogocomapartemaisdesagradáveldodia.Saídacama,engatinhandoentreaspilhasdecalçasjeansecamisetasdo

avessoparapescarumsutiãparcialmenteescondido.Fiqueidepéerodeeiocômodosemtocaremnada—porqueàsvezesgostodebrincardisso—,retireiumpardeshortsjeansdochãoeosvestiantesdedecidirusarumaregatabrancaemeusAllStarfavoritos.Depoisdepassarumhidratanteeprender o cabelo em uma trança bagunçada, desci na ponta dos pés,tentando criar forças para o que estava prestes a enfrentar, sem café eexausta.

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RitaBailey,umasenhorarobustadecabelogrisalhocurtoefeiçãotensaeenrugada,estavadebruçadanamesadacozinha,bebendoseucaféusandoumterninhorosapavoroso.Aoladodela,minhamãeaturavasuapresençadeformaeducada,comumsorrisocontidoebalançandoacabeçaquandonecessário.Elahaviaatéabertoumespaçonamesa,queficavatomadaporprojetosdecosturaeamostrasdetecido.Agora,limitadosaapenasalgunscentímetros, seus materiais de trabalho se equilibravam precariamentepertodaparede,correndooriscodedesmoronaraqualquermomento.Quandomorávamosemumacasaespaçosadequatroquartosnaavenida

Shrewsbury,minhamãe tinhadoisquartos inteirosdedicadosà explosãodemateriaisnecessáriospara criar seusvestidos,masaqui seusprojetospareciam caminhar de cômodo em cômodo, nos seguindo pela casaapertadaemtodosostonseestampaspossíveis.Metrosderendamarfimecreme esticados nos braços das cadeiras lutavam por espaço debaixo demanequinscomvestidosdeverãoetrajesdefestasofisticados.Desdequenosmudamos para cá, um ano emeio atrás, passei pormuitas situaçõestraumatizantesaoacordargritandocomavisãodeummoldedenoivapelametadependuradonocantodomeuquarto,ouumvestidojeansquejamaisdeveriaservisto.Nãoeracomoseminhamãenãotivesseumsistema,ésóqueninguém

além dela conseguia entendê-lo. Ela provavelmente era a costureira devestidosmaisdesorganizadamenteorganizadadeChicago,eachoqueelagostavaque fosseassim.Asra.Bailey,queencaravadeolhosapertadosapilha cambaleante de tecidos do outro lado da mesa, certamente nãoconcordava.Deslizeiparaacozinha,chamandoaatençãodelaantesquesuacarranca

ficassetãointensaqueabrisseumarachaduranorosto.—Bomdia,sra.Bailey.Nãofoitãoruimassim.Elareajustouseuolharparamim.—Bomdia,Persephone.Eumecontorci.Faziaumtempodesdequehaviaouvidomeunomena

sua completa feiura e, para variar, nada haviamudado—ele continuavaterrível.Masamaneiracomoaquelavelhaopronunciavasemprepareciapiorá-lo,prolongandoossonsdassílabascomosefalassecomumacriançadecincoanos—Perrr-se-fo-neeee.—PrefiroSophie—retruqueicomotomdeirritaçãoqueacompanhava

oassunto.—MasPersephoneétãomelhor.

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—Bem, ninguémme chama assim.— Não era meu nome e ela sabiadisso. Era apenas o símbolo da obsessão passageira da minha mãe pormitologia grega, que infelizmente coincidiu com a época do meunascimento.Aindabemquemeupaidesistiudacomplicaçãojánoprimeiroanodeidade.Nãodemoroumuitoparaqueelechegassea“Sophie”comoumaalternativaaceitável.Suspeitoquefosseonomequeelesempretinhadesejado,e issometornoueternamentegrataaelepordoismotivos:um,eu não precisaria passar a vida inteira com um “nome relíquia pesadeloparasoletrar”,edois,elenãotermeapelidadode“Persy”.Quandominhamãeadmitiuaderrota,virei“Sophie”.Simples,práticoepronunciável.—Comovocêsabeomeunome,aliás?—acrescentei tardiamente.Em

todasasvezesqueasra.Baileymechamoupelonomeerradodepropósito,nuncameocorreuperguntarcomoelasabiadeumdosmeussegredosmaisbem-guardados. Mas, também, ela foi a primeira pessoa a descobrir alocalização da nossa casa nova quando nosmudamos, apesar de termostentadocomafincoesconderessainformaçãodela,edofatodequeficavaaquase uma hora a pé da avenida Shrewsbury. Vai ver ela era mesmovidente.—Euviemumacartacertavez.—Onde?— Não consigo lembrar. — Ela parecia ofendida com a pergunta. —

Talveztenhacaídodasuacaixadecorreio.—Hummmm.—Enxerida,reclameimentalmente.Aomeulado,minhamãeestavacontornandoabordadasuacanecacom

odedo.—Sophie—interrompeuela,gentilmente—,porquenãomudamosde

assunto?—Porquê?Continuatentandoseesquivardaculpadetermebatizado

comonomemaisvergonhosoehorrendoqueimaginou?—Emboraminhavozestivessecalma,aquiloeraumabrincadeirasóemparte.Nãoqueissoimportasse paraminhamãe; ela achava a indignação em relação aomeunomeinexplicavelmentedivertida.Achoquefazsentido.Paraelaaquiloerasóumapiadamesmo,queagorameseguiapormeiodepessoascomoasra.Bailey ou o tio Jack, que o usava contramim comouma armaquando seirritavacommeuscochilosnalanchonete.— Acho o nome Sophie igualmente adorável. Combina com você. —

Minha mãe tentou apaziguar, escondendo um risinho na caneca até queficassemàmostra apenas suas sobrancelhas arqueadasedelicadas. Sentiumapitadadeinvejapelasimetriadelas.Tudonelaeradelicadoerefinado

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comoumafada.Pormeiodamágicadagenética,elametransmitiuapenasseu cabelo louro e o rosto com formato de coração.Mas, pelamágica daimitação, eu herdei também sua tendência à bagunça extrema e suainabilidade para cozinhar. Eu estava guardando o julgamento sobre deonde veio minha altura limitada, porque ainda esperava crescer setemilagrososcentímetrosatémeuaniversáriode17anos,queseaproximavarapidamente.Aopronunciar“Sophie”,asra.Baileysoltouumlongoedescontentesom

de rejeição. Parecia que ela estava se engasgando — e, por um brevesegundodecrisemoral,partedemimtorceuparaquefosseverdade.Atravesseiacozinhaatéobalcãoparaencherminhacanecaeviopote

demelnoparapeitodajanela.Raiosdesolmecumprimentaramatravésdovidro. Seria uma pena não prová-lo, decidi. Peguei uma colher e tirei atampadopote,deixandodeladoopedaçodepanoqueocobriaetomandocuidadoparanãoestragarolaçodeveludopreto.Atrás de mim, a sra. Bailey praticava seu hobby favorito— a arte da

lamentação.— Persephone é tão mais elegante. Ela talvez não goste agora, mas

semprepodetentarpassaragostar.—Obrigada,mas achoque vou ficar comSophiemesmo e continuar a

viver nomundomoderno.— Eumeti a colher no pote, correndo-a peloconteúdo.—Vocêparecetãocansadahoje,Sophie—informouasra.Baileyparaa

partede trásdaminhacabeça,pronunciandomeunomecomdificuldade,comosefossemuitodifícil.Ignorandoaprovocação,assimcomoaopçãocivilizadadepassaromel

nocerealouemumatorrada,enfieiacolhertransbordandodiretonaboca.— Ela vai ficar feliz e contente assim que tomar sua dose matinal de

cafeína — explicou minha mãe por trás de mim. O tom da voz dela,geralmentecalma,davaaentenderqueapaciênciaestavachegandoaofim.Mesmodepoisdabagunçacriadapelomeupai,minhamãehaviamantidoseu nível inacreditável de bondade. Isso significava que ela ainda eraeducadademaisparadispensarasexagenáriasolitáriae irritante,mesmoquando o papo parecia ser nada além de reprovações e comentáriosmaldosos.—Temcerteza,Celine?Elaparecetãoexausta.Éasombradaaparência

que uma garota de 16 anos deveria ter. Ela deveria estar no sol, ficandobronzeada.Elaeratãobonitinha.Sério? Eu teria respondido à altura, mas o mel mantinha minha boca

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fechada.Minha mãe soltou um pequeno suspiro — sua especialidade. Era

ambíguo o suficiente para significar qualquer coisa para qualquer um—“Estou cansada/feliz/decepcionada”—,maseu tinhaa impressãodequenessecasoeraumaformadeconcluiroassuntodeformadelicada.Lutandocontraminhavontadedepegarocaféesaircorrendo,deimeia-

volta eme sentei àmesada cozinha, arrastando aspernasda cadeiranochão com o máximo de barulho possível e comemorando a expressãoincomodadadasra.Bailey.Ok,mocinha.Vamoslá.— Espero não ter interrompido nada importante. — As palavras

adoçadas pelo mel mascaravam o sarcasmo na minha voz. Tomei oprimeirogloriosogoledecaféesentiovapormeaquecerpordentro.—Bem,naverdade,interrompeu.Quellesurprise.Eusemprepareciainterromperosboletinsinformativos

doplantãodasra.Bailey.—Estava contando à suamãe que uma nova família semudou para a

mansãoPriestly,naavenidaLockwood.Fiquei completamentechocadacommeu interesse inesperadoporalgo

queasra.Baileytinhaadizer.Masderepentealiestavaeu,coladaàmaiorfofoqueira de Cedar Hill como se ela estivesse prestes a anunciar ovencedor domeu reality show favorito. Uma enxurrada de perguntas seformounomeucérebro.Deondeelesvieram?SãoparentesdosPriestly?Porquevocêestáusandoesseternorosahorroroso?— Bem, aposto que será bom ter rostos novos na vizinhança —

interrompeuminhamãeantesqueeupudessecomeçar.Avelhinhabalançoua cabeçacomoseestivesse sofrendoumderrame.

Ela se inclinounamesaeolhoudiretamenteparanósduas,umade cadavez,comosepedisseatençãoexclusiva,algoquesabiajáter.Asra.Baileybaixouavoz.— Você sabe que eu tenho o dom da clarividência, Celine. Vejo coisas

desdecriança...Preciseienfiaracaranocaféparaesconderoriso.— Eu estava passando pela velha casa dos Priestly algumas semanas

atrásetiveasensaçãomaisestranha.Quandoviaobraeoscaminhõesdemudança,tudocomeçouafazersentido.Acasaestácheianovamenteeeusimplesmenteseiqueissonãoébom.—Talvez não devêssemos nos precipitar— sugeriuminhamãe. Dava

para perceber que estava começando a perder a atenção. Ela puxouuma

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linhasoltadacalçacapri,franzindoatesta.Também pensei em dizer para a sra. Bailey relaxar, mas ela já havia

desviadooolharparanossoquintalcomosevislumbrasseumadimensãooculta. Porém, na verdade, estava apenas encarando as plantas noparapeito.Elaapertouosolhosesuspirou,provavelmentereparandoqueestavammortas.—Nadadebomvirádapresençadecincojovenscausandoproblemasna

vizinhança,porqueéexatamenteissoqueacontecerá,Celine.Podeanotar.Ela balançou a cabeça novamente, mas cada fio branco arrumado de

formameticulosapermaneceuimóvel,comoseestivessemcongeladosali.—Espere, vocêquerdizercinco caras?—Eu já tinha visto dois deles.

Bem, umdeles,mais oumenos.O segundohaviamederrubado. Fiz umacareta aome lembrar.Mesmodepoisdeumanoite analisandoo assunto,aindanãotinhacertezadoquepensarsobreoacontecido.Asra.Baileyestavaescandalizadacommeuinteresse,éclaro.Suaboca

abriae fechavacomosetentasseacharaspalavrasexatasparaexplicarotamanhodadecepçãoqueeuera.—Cincojovensencrenqueiros—concluiuelaenfim,agarrando-seaseu

peitoparaefeitodramático.—Euosvi fazendoamudançaepossodizer,nãoparecemrespeitáveis.Não foi isso que você disse sobre meu pai?, quis perguntar, mas me

controlei.Adiscussãonãovaliaapena.Nuncavalia.E,alémdomais,eujátinhatodaa informaçãonecessária:haviaumanovafamíliadegarotosnavizinhança.Millieiaterumchiliquedefelicidadequandoeucontasseparaela.Distraída,levanteiparalevarminhacanecapelametadeatéapia.—Achomuitolegalqueagentetenhanovosvizinhos.—Oquehádelegalnisso?—Asra.Baileylançouaperguntaparamim

comoumaadaga.Eumevirei.—Oquenãotemdelegal?NinguémnuncavemaCedarHillporvontade

própria. Este lugar é tão entediante. Parece que a qualquer momentovamostodosvirarfósseis.Quemsabealgunsdenósjátenhamvirado...Mecontroleinovamente.—Nãoprecisasertãodramática—respondeuela.Pisqueicomforçaparaevitarumrevirarinvoluntáriodeolhos.—Tenhocertezadequeesses rapazes sãoperfeitamenteaceitáveis—

ponderouminhamãe, quemexia no kit de costura. Eu podia ver que elaestavamais interessada em achar uma agulha para consertar a linha da

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calçaquehaviasesoltado.A sra.Bailey aindamantinhaumaexpressão carrancudano rosto e ele

começavaatremercomoesforço.—Não,Celine,temalgoerradonessahistória.Aquelacasaestávaziahá

tempodemais.Etodosnóssabemosomotivo.— Fantasmas— sussurrei dramaticamente. Eu queria acrescentar um

“uuuuuu”,masacheiqueseriaexagero.A sra. Bailey se levantou abruptamente, segurando o xale para

demonstrarumadesajeitadaindignação.Quandofalounovamente,suavozeraumsussurro.— Pode fazer quantas piadas quiser, Persephone, mas é melhor ter

cuidado.Olhei para minha mãe e fiquei surpresa ao perceber que ela havia

voltadonovamenteaatençãoparanossaconversa.—Famaatraifama—murmuravaasra.Baileysemolharparanenhuma

denós.—Econsiderandooqueseupaifez,émelhorficaratenta...— Acho que já basta, Rita. — Minha mãe se levantou da cadeira,

encarando a velha com um olhar sombrio. — Sophie sabe cuidar de simesma.Elaéinteligente.—É—reforcei,sentindo-meaummilhãodequilômetrosdali.Pensava

emcomoeuhaviamemetidoemperigonanoiteanterior.Adornomeujoelhotrouxeamemóriadevolta.

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CAPÍTULOQUATRO

ACARTA

Aspalavrasdasra.Baileydespertaramalgoquenoúltimoanosetornoucomumparamim:culpapaterna.De volta à agradável privacidade do meu quarto, sentei de pernas

cruzadas na cama sempre bagunçada. Com o envelope mais recente daprisãoemumadasmãos,retireicomcuidadoacartaemergulheidevoltana vida domeu pai, que era, pelomenosmomentaneamente, limitada àscartasqueelemeenviavamaisoumenosacadaduassemanas.

QueridaSophie,

Desculpenãoterescritorecentemente.Gostodeesperarparateralgoadizer,mesmoquenãosejatão interessantequantoavidaemCedarHill.Detestariaquevocêpensassequemetorneiaindamaisentediantedoqueantesdepartir.Naverdade,estoutentandotiraromelhorquepossodaminhaexperiênciaaqui.Querodaravocêalgodequepossaterorgulhodenovo.

Achoqueficará felizemsaberqueliArdil22emapenasdoisdias,ouseja, estou ficandomaisrápido na leitura. Terei o conhecimento de um

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professorde literaturaquandosair,equemsabeaté possoescreverumlivro.

Espero que seu verão esteja indo bem. Tentenão ligar muito senão puderpegar sol—você vai rir porúltimo quando todos os seusamigos ficarem com rugas prematuras e você ainda tiver a pele de umaadolescente.

Comoestão as coisas na lanchonete? Espero que seu tio Jack estejacuidandobemdevocê.Seiqueeleestáseesforçandobastante,entãopeguelevecomele.Sevocêpedir,tenhocerteza,elevailhedarumafolgaparavocêfazeralgocomaMillie—vivaumaaventura!Sobreseutio,estavapensandoquepoderiasugeriralgumascoisaspara

ele ler também. Seria uma boa maneira de relaxar. Talvez algo comimagenscoloridaseletrasbemgrandes?Estoubrincando.Nãodigaaelequefaleiisso!Eumepreocupocomele,oquepodeparecerirônicodadasas circunstâncias, mas conto com você para ficar de olho nele e napressãoarterialdele.Nãosomosmaisjovenzinhos,infelizmente.Ecomoestásuamãe?Elaselembroudeconsertaralava-louçaou

você precisou botar em ação o plano Pia Cheia? Espero que ela tenhaparadode trabalhardemais,mas seique issoé improvável. Diga a ela,por favor, que estou pensando nela, se ela perguntar, e espero que

pergunte.Nãotenhonotíciasdelafazumtempo,masseiqueelaaindaestáprocessandotudo.Édifícilparaela, assimcomo imaginoquesejaparavocê.

Faz tanto tempo quenão a vejo. Eu ficaria muito feliz se você mevisitassequandotiverumtempolivre.Quetaldepoisdoseuaniversário,quandoascoisasvoltaremaficarmaiscalmas?Jacknãoteráproblema

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em lhedar carona, se vocêpedir.Eu sintomuito a faltado seu sarcasmo

adolescente,emboravocênãoacreditemuitonisso.Issoé tudo por enquanto. Estou ansioso por suapróxima carta e,

comosempre,estoupensandoemvocêecontandoosdias.Beijos,Papai

Boteiacartadevoltanoenvelopeeaapoieinamesadecabeceira.Tentei

afastaramelancoliadaminhamente.Mesmodepoisdetantascartasdeleeuaindamesentiatristequandoas lia,mastambémsabiaquenãoterascartasseriamilvezespior.Com peso no coração, apoiei um caderno nos joelhos e comecei a

escrever uma resposta, censurando as partes negativas da minha vida eacentuando as partes positivas enquanto escrevia. Mesmo que o mundoestivessedesabandoàminhavolta,eunãocontariaaomeupai,porqueele,mais do quequalquer um, precisavade boas notícias de todas as formaspossíveis.Enãoimportavaoquantomeencontravairritadaenervosa,eudariaaeleonecessárioparasobreviver.

Oi,pai!Escrevoestacartacomocadernoequilibradoem

joelhosraladosecomamãodolorida.Seestiverseperguntandooquehouve,explico:ontem,voltandodotrabalho,caídecaranochão.

Umasombraassustadoracorreuatrásdemimemejogounochão.Mas

tudobem:nãodeixeiqueelamematasse(denada),etenhocertezadequenãoeraa intençãodocara.Eleprovavelmentecorreuatrásdemimcomoumloucoapenasparameperguntarporqueeuestavabisbilhotandoacasadelesozinha,nomeiodanoite.Adolescentes,né?

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Felizmente, sobrevivi para contar a história,emboranãopossadizerquemeuorgulhoestejatãobem.Aindaassim,achoqueéumaboamaneiradecomeçarestacartaeapostoquefezvocêsorrir.

Esperoquealgodebomtenhasaídodesse incidente,porquecorripara

casacommedoemesentindoparanoica.

Fico feliz de saber que você está lendo bastante.Acho que escrever um livro é uma ótima ideia.Dizemqueémuitoterapêutico.

Nãoseiquemdiz issooumesmoseéverdade.Erealmenteesperoque

quando você fala em livro, que não seja um autobiográfico, porque nãogostonemumpoucodaideiadereviverahistóriadoseujulgamentoporassassinato numa versão de bolso, pormais que isso seja bom para suasaúdemental.Etambémnãomeencantaaideiadeveramamãepassarporoutroataquedeansiedadetãocedo.

Não tive muita chance de fazer grandes coisasnessas férias além de trabalhar, e estou meacostumandocomarotina.

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Eumeconformeicomoatualestadomonótonodaminhavida.

OtioJackestáótimo.Eleaindaestáseesforçandoparaseadaptaràsuafunção,emborasejaumpoucomaismal-humoradodoquevocê.Seráqueécoisadameia-idade? ;) Ele vai e volta da cidade toda hora.Millieeeudesenvolvemosumateoria:eleconheceuumamulherporlá.Querdizer,quetipodenegócioexigiriaessaquantidadedevisitas?Oquevocêacha:nossoJack,oCasanova?

Humm... É só uma ideia. Se for esse o caso, então não precisamos nos

preocuparcomasaúdedele,contantoqueocoraçãovábem.Embora,conhecendoo tio Jack,émaisprováveleleestarenvolvidoem

algumcasosórdidodoqueemumromanceépico.Atéagoranadachegoupertodepreencherovazioquevocêdeixounavidadele.

Obrigadapordizerquevourirporúltimoquandotodosmeusamigosestiveremquenemuvas-passasnofuturodepoisdepegaremtantosol.

Ficohonradapelainsinuaçãodequeeuaindatenhomaisdeumamigo,

esperoquevocêrealmentepenseassim.Sesoubessequantaspessoasmederamascostas,achoqueficariaarrasado.

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E,parafalaraverdade,ficofelizdeestarlongedosol, porque sei que o tempo na lanchonete vaimeajudaraalcançaromeuobjetivofinal:comprarumcarro.Nãoseioquevoufazerparacomemorarmeuaniversáriode17anos,masprovavelmentevai seralgosimples.

OspaisdaMillievãoviajar,entãoelaeAlexvãodarumafestagigante,

comtodososamigosdeledafaculdade.Sevocêestivesseaqui,comcertezanãoaprovaria.Masvocênãoestá.

Acho que a mamãe quer me dar um vestido depresentedeaniversário.Vejoobrilhodosolhosdeladiminuírem um pouco toda vez que ela me vê demoletom.Elatalvezmorrapordentroseeunãousarumvestidoembreve.Namanhãdosábadopassado,eu a flagrei tirando minhas medidas enquanto eudormia.

Seeuenxergarqualquersinaldebabadosoubrilhos,abrigavaiserfeia.

Elaestátrabalhandomaisdoquenunca,eparecegostardisso.

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A maioria dos amigos dela também desapareceu depois de tudo quehouve, e os que não sumiram também não aparecemmuito. Acho que amamãeperdeuseucírculosocial.

Seiqueoanopassado foimuitodifícilpara todosnós,masagoraelaparecemaisfeliz,etenhocertezadequesentetantoasuafaltaquantoeu.

Àsvezesparecequeelaodeiavocêetudooquevocêfezagentepassar.

Àsvezeseutambémmesintoassim.

Asra.Baileyvoltouaapareceraquiaosdomingos.Decidi hoje mais cedo que ela deve ser a pessoamaisirritantequejáexistiunesteplaneta.Vocêachaque ela pode ser descendente de Lúcifer? Só umaideia.

Irritanteépouco.Vocênãotemideiadasbesteirasqueelaandadizendo

sobrevocê.EaMilliesódevetermecontadometade.

Elaesteveaquihojedemanhã,falandosobreumafamíliaquesemudouparaaantigamansãoPriestly.Acho que devem ser parentes distantes. Estranho,não? Achei que aquele lugar fosse ficar vazio para

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sempre.

Eagoraestácheiadegarotos,garotos,garotos!

Vou te visitar daqui a duas semanas, depois domeu aniversário, quando tiver uma folga nalanchonete.Malpossoesperar.

Detestoaideiadevervocêtãoabatidoetriste.Ficosemprecomvontade

decairemprantos.

Porenquantoésó.Estoucommuitasaudade.

Àsvezestantaqueatédói.

Estousemprepensandoemvocê.

Queriapoderdesligaressepensamento,comoumbotão.

Eestoucontandoosdias.

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Contandoosanos.

Muitosbeijoseabraços,Sophie

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CAPÍTULOCINCO

OSIRMÃOSPRIESTLY

Euestavadepé,de caranobalcão, torcendoparao tempoacelerar.Atémesmonoshoráriosdepico,alanchonetenuncaficavalotadadeclientes,masnaquelediahaviaumaestranhacalma.Comapenasumahoraparaeupoderirembora,osminutossearrastavam.Parapiorar,oar-condicionadotinhaquebrado,aumidadeestavadeixandoomeucabelotodoarrepiado,eo fornecedor não tinha aparecido pelo terceiro dia seguido, o quesignificavaquesobravampoucosingredientesparaospratos.Millie apareceu atrás de mim, apertando meu ombro. Ela era, afinal,

metademulher,metadecuriosidade.—Então,seessesparentesaleatóriosdafamíliaPriestlyacabaramdese

mudar,ocaradasombraprovavelmenteeraumdoscincocaras?—É—respondiemmeioaumbocejo.—Provavelmente.Elariucomosefosseacoisamaisengraçadaquejátinhaouvido.—Queconstrangedor.Levanteiacabeça.—Antesconstrangidadoquemorta.Elasorriu.—Ah,peraí,Soph,ondeestáseusensodeaventura?Fingiconsideraraperguntadela.—Achoqueenterradodebaixodomeuinstintobásicodesobrevivência.—Vocêpodiaterficadocomumasombra!—Orostodelabrilhava.—Outersidobrutalmenteassassinada—refutei.

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—Argh,vocêémuitoestraga-prazeres.—Quetalassim—falei.—Dapróximavezqueeumeencontraremuma

situaçãoperigosacomumestranho,prometoquevoutentarbeijá-lo.— Ah! Não faça promessas que não vai cumprir. Não quero criar

esperanças.O sino acima da porta soou e três garotas entraram na lanchonete.

Reconheci duas delas do colégio. Erin Reyes e Jane Leder eram sóperversidadeepernasdemodelo,epoderiamganhardinheirojulgandoaspessoas se isso fosse uma profissão. Eu estava surpresa de vê-las naGracewell — era o oposto dos lugares de que elas pareciam gostar.Pensando bem, a lanchonete tinha a atração favorita delas — eu. Faziaquaseumanoemeiodesdeaprisãodomeupai,maseucontinuavasendooassuntofavoritodeErin.Ela me viu e deu um risinho. Eu tentei não me mexer enquanto ela

sussurravademaneiraensaiadaparaaterceiragarota,quejámeanalisavacomatençãoabsoluta.— É ela. Ela realmente trabalha aqui, no lugar onde tudo aconteceu.

Acredita?Asoutrasduassoltaramrisinhosesentimeurostoficarvermelho.—Aff—disseMillie,quetinhatantapaciênciaparaaquelecircoquanto

eu.—Euatendoamesa.Eseelasnãotiveremcuidado,levareioscardápiosacompanhadosdosmeussapatosenfiadosno...—Elasecalouedeuavoltanobalcãoparaatendê-las.Agradeci com um sorriso. A lanchonete Gracewell alimentava

basicamenteos trabalhadoreseas famílias locaishaviaanos.Mas,devezem quando, algumas víboras enxeridas do colégio faziam uma visita aoinfamerestaurantedeMichaelGracewell,eMilliesempreseofereciaparaatendê-losparamim.Com a mente dispersa, comecei a puxar uma linha solta do avental,

formandoumlaçoassimétrico.—Pretendetrabalharemalgummomentohoje,Sophie?Ursula, a subgerente, havia aparecido de dentro da cozinha. Ela tinha

basicamenteamesmaidadedasra.Bailey,maserainfinitamentemaislegal,porquepintavaocabeloderoxoesabia terconversasquenãoacabavamcom a minha vontade de viver. Ela gesticulou na direção de Millie, queentregavaoscardápiosparaastrêsgarotas.— Ah, peraí. Não tem mais ninguém aqui e não posso servir mesas-

fantasmas—protestei.ArisadadeUrsulaeraroucaeentregavaseuantigohábitodefumar.

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— Só estou dizendo que você parece distraída hoje. — Ela subiu osóculosparaoaltodonarizatéseacomodarem,duplicandootamanhodosseusolhos.—Oudevodizer,maisdistraídadoqueonormal.—Éporqueelaestádistraída,Ursula.—Millieestavadevolta,limpando

oavental.Elaiasairumahoraantesdemime,porumsegundo,sentiumalevepontadadeinveja.—AgentedeviacontarparaaUrsula.—Deviamesmo—repetiuUrsula,virando-separaseapoiarnaparede

aomeu lado. Éramos exatamente damesma altura, então elame olhavadiretonosolhossemesforço.—Maseunãotenhonadaparacontar—jurei.—Mentira!—Millie deslizou para frente do balcão com o casaco nas

mãos.Elaovestiu,comumsorrisotãolargoquequasedavaparavercadadetalhedoaparelho.Elafechouozípereocrachácomseunome,MILLIE,AMAGNÍFICA (não sei como ela convenceu o tio Jack a aceitar isso),desapareceu.Depois se inclinoupara frente, fazendoaspontasdo cabelotocaremobalcão,ebaixouavoz.Ursulacorrespondeudepronto,chegandomaispertoefocandoosolhosemMillie.—Bem,vocêprovavelmentenãovaiacreditarnisso—começouMillie,

apontando para mim com o polegar. — Mas a Sophie está com umaquedinha por uma sombra. Uma verdadeira paixonite. Nossa Sophie é ataradadasombra.Ursulafranziuatestaaopontodeassobrancelhasquasesetocarem.—Oquê?—Elaestábrincando—expliquei,lançandoumolharmortalparaMillie.—Serámesmo,Sophie?Será?—Eladeuumsorrisinhoirônico,deuma

maneira que apenas Millie sabia fazer.— Ursula, vou precisar que vocêtomecontadaquelamesarepletadecriaturasincríveis porqueestou indoembora—disse ela, gesticulando para o canto em direção a Erin e suasamigas,antesdecruzarorestauranteegritar:—Vejovocêsamanhã!AssimqueMilliesaiu,Ursuladirecionouseuolharpenetranteparamim.—Então,oqueéessenegóciodesombra?—Nãoénada,juro.TemumafamílianovamorandonamansãoPriestly,

eachoquedeidecaracomumdelesoutrodia.Massaícorrendo,eagoraMillieachaqueéacoisamais tragicômicaqueela jáouviu.—Pegueiumpanoecomeceialimparobalcão,quejáestavabrilhando.Ursulasemicerrouosolhoscomosetentassedescobrirseexistiaalgoa

maisnahistória,masantesqueelapudessepensaremalgoosininhoacimadaportasoou.Embaladas por nosso silêncio abrupto, duas pessoas entraram pela

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porta.Tenteinãoficarboquiaberta.Édifícil ignorarumgarotoalto,morenoe

bonito,masdoiséquaseimpossível.Osdoispararamaoentrar,osombroslargossetocandoparadosali,lado

a lado. Eles começaram a mapear a lanchonete com os olhos, como seprocurassemporalgoquepudesseestardebaixodasmesasoupenduradonosventiladores.Semquerer,Ursulaeeudemosumpassoàfrenteaomesmotempo.Elestinhamumjeitoestilosonatural—ascalçaspretasretaseramfeitas

sob medida, a barra na altura perfeita acima das botas de couro, quedeviamtercustadomaisdoquetodasasminhasroupas,eascamisetasdemarcaeramcomplementadasapenasporumasimplescorrentedepratanopescoço.Analisei o garotodadireita, sentindo algodentrodemim se agitar. Eu

conhecia sua silhueta, sua altura. Baixei os olhos e reconheci a fivelaprateadadasbotas.Ursula e eu não éramos as únicas ridiculamente abaladas: de relance

notei que as três garotas no canto haviam parado de conversar e agoraestavambemmaisagitadasdoqueumminutoatrás.Eunãoasculpava.OsgarotospareciamsaídosdeumfilmedeHollywood.Semolharparanós,elesdeslizaram—sim,deslizaram—atéumacabine

pertodajanelaesentaram,concentradosnaprópriaconversasussurrada.—Podeficarcomessamesa,querida?—suspirouUrsula.—Achoque

não consigo ficarpertodeles. Édeprimentedemais.—Ela seguiuparaooutroladodalanchoneteparaatenderasgarotasnocanto.Meu encontro noturno havia parecido apenas um pesadelo,mas agora

que o Garoto Sombra estava ali, percebi que precisaria enfrentar arealidade—eleeraMonteOlimpo,eueraLanchoneteGracewell,eeunãofaziaideiadeporqueeletinhamederrubado.Comsorte,eutinhagrandeschancesdenãoserreconhecidaporele.Embora a aparência elegante e as semelhanças óbvias tivessem me

levado a crer que eles fossem irmãos, foi o fato de eu tê-los escutadofalando italianoquandomeaproximeidamesaqueconfirmoua teoria—era omesmo tom cadenciado com o qual o Garoto Sombra havia faladocomigo.—Olá,meunomeéSophieevouatendê-loshoje—falei rapidamente,

entregandoumcardápioacada.OGarotoSombrainterrompeuaconversaesevirou.Deperto,eramais

novodoqueeuesperava—aindamaisvelhoqueeu,talvez—,tinhacabelo

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castanho ondulado abaixo das orelhas e olhos redondos escuros compontinhos dourados. Fiquei abalada, não por sua beleza, mas pelafamiliaridade. Não conseguia afastar a sensação de já ter visto seu rostoantes—muito tempo atrás— e, embora ele fosse inquestionavelmentebonito, tiveo impulsodesagradáveldedesviaroolhar.Tenteipiscarparavoltaraonormal.Eletinhaapenasmedesconcertado.Seeuotivessevistoantes,nãoteriaesquecido.—Sophie—disseelecalmamente,encontrandomeuolhar.—Achoque

nosconhecemosnaoutranoite.Fiqueidequeixocaído.Mantiveasmãosàfrentedocorpoenquantoseus

olhosbuscavamosmeuscomumaintensidadetotalmentedesconhecida.Oirmãodele,queparecia terumdesinteressecompletonanossaconversa,liaocardápioemsilêncio.OGarotoSombrasorriu.—Euestavaapenastentandoajudarvocêalevantar,sabia?—Ah—disseeu,demonstrandooqueesperavaserumaexpressãode

indiferença.—Querdizer,deondevocêmesmotinhamecolocado?Quantagentileza.Seeleficouofendido,nãodemonstrou.— Você parou de correr tão de repente que não tive tempo de

desacelerar...Eeutenteimedesculpar,mas,seme lembrobem,vocêsaiucorrendo.Sorriconstrangida.—Talvezeutenhaexagerado...—Deixa isso pra lá—pediu ele, levantando asmãos em rendição.—

Vocêsempreficaassim,tãonadefensiva?—Depende...Vocêésempretão...agressivo?—Nonloso—disseelecalmamente,edooutroladodamesa,seuirmão,

concentrado no cardápio, soltou uma risadinha baixa. Eu estavaimpressionada com a facilidade com que ele transitava entre as duaslínguaseligeiramentecuriosaarespeitodoqueelesestavamachandotãodivertido.— Essa é uma pergunta capciosa— continuou rapidamente o Garoto

Sombra,comosesentisseminhairritação.Elefranziuatestaeseinclinoupor cima da mesa. — Sinto muito por toda essa história, Sophie. Eu sóqueriaperguntarumacoisa.Masaívocêparoudecorrertãoderepentee...— Ele parou no meio da frase, fazendo o melhor possível para parecerenvergonhado.—Apareceuumgatoeeunãoqueriaatropelá-lo.

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—Ah,entendi.—Mas aí vocêdecidiume atropelar, entãonão tenho certeza se valeu

pena.—Eujádisse—disseeleemtomconspiratório.—Euqueriafazeruma

perguntaavocê.— Você sempre faz perguntas de forma tão agressiva? Acho que não

seriauminterrogadormuitoeficiente.— Talvez você tenha razão— concordou ele com um leve sorriso.—

Mas,dequalquerforma,souimpacientedemaisparaessetipodetrabalho.Mirei os pontinhos dourados dos olhos escuros dele, tentando não

perderalinhaderaciocínio.Haviaalgumacoisanaquelesolhos.—Então,qualeraapergunta?— Bem — disse ele. — Na hora eu quis saber por que você estava

espionandonossacasa.Masdepoisfiqueimeperguntandoporquedecidiuiremboraquandovivocê.Elenãoestavamaissorrindo;meanalisava,eentendioquequeriadizer

—elesabiaqueeuhaviafugidoequeeuestavacommedodele.Masagora,olhandoparaele,nãolembravaporquê.—Estavafugindodemim?Balancei a cabeça exageradamente, fazendo minhas bochechas

tremerem.—Não,dejeitonenhum.— Ah, é mesmo? — insistiu ele, dessa vez com um sorriso largo. O

movimento rearrumava seu rosto de uma forma linda, levantando assobrancelhasesuavizandoalinhadoqueixo.—Prefirodefinircomoummancarcasual.Elechegoupara tráse, aospoucos,pudeprestaratençãonomundoao

redordenovo.—Eudefiniriacomoumacorridadesesperada.—Étudosemântica.—Peçodesculpassemachuqueivocê—disseele.—MeunomeéNic,

aliás,eesseémeuirmão,Luca.Embora estivesse parada entre os irmãos, eu mal havia reparado em

Luca,quejánãoestavamais lendoocardápioeagorarepousavaasmãosentrelaçadasemcimadele.Abriumsorrisoparaogaroto.—Bem-vindoàGracewell.— Morri de tédio com essa conversa — respondeu Luca. A voz dele

estava impaciente e rouca, como se Luca estivesse com a gargantainflamada.—Masébomsaberqueplanejaserminimamenteprofissional

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estanoite,Sophie.Fiqueibranca.Quecaragrosso.EleapontouodedoindicadorprimeiroparaNic,depoisparamim,como

senossaconversativesseavercomeletambém.—Estáprontoparaseconcentrar,Nicoli?Nicoli.Onomelhecaíabem.Eralindo.Nic se ajeitou no banco para ficarmais perto demim e assim ficamos

ladoalado,defrenteparaoirmãodele.—Relaxa,Luca.Lucalevantouasobrancelha.—Meuirmão,l’ipocrita.NiclançouamãonadireçãodeLuca.—Staizitto!—Vocêtrabalhaaquihámuitotempo,Sophie?—Lucajogouaconversa

outravezparamim.Elepassouamãopelocabelo,empurrandoasmechaspretasrebeldesdorostoparatrásdasorelhas.Fiqueihipnotizadaporseusolhos azuis, agoraquepodia realmente vê-los. Eram intensos e pareciambrilhardeformaanormalnorostobronzeado.Seráqueeraeleogarotonajanela?Não, ele eramuito bruto, implacável.Não era ele. Eu tinha quasecerteza.—Então?—insistiuele.—Luca—resmungouNic.—Seráquepodeparardefazerisso...—Deixequeelaresponda.— Não, não trabalho aqui há muito tempo — respondi rapidamente,

esperando que isso acalmasse a tensão surgida entre eles. Talvez elestivessemdiscutidologoantesdeeuaparecernamesa.OuquemsabeLucanão saísse muito e essa fosse a ideia dele de socialização. — É só umempregobobodeverão.Eumesenti culpadapormentir sobreopapelda lanchonetenaminha

vidaenomeu futuro,masderepentenãoconseguia lidarcoma ideiadeelespensaremqueeueratãocomum;queminhavidaestavafadadaaserpassadaemumlugarquenãoeraredecoradohaviapelomenosvinteanos,um lugar que pertencia a um homem preso, um lugar onde nadaempolganteaconteciaaninguém.Niclevantouosbraçosdamesaeoscruzou.Elemanteveoolharfixoem

Luca,comoseoinstigasseafazeralgo.Lucapareciainabaladopeloolharfatal.—Vocêgostadaqui?Deideombros.

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—Maisoumenos,acho.—Eosseuscolegas?Vocêgostadeles?— Smettila! — sibilou Nic, mudando mais uma vez de idioma sem

qualqueresforço.—Fazdiferençaseeugostodeles?—Medigavocê—retrucouLuca.—Sim,elessãolegais,amaioriadeles—respondinomesmotom.—Por

quê?Estáfazendoumapesquisaparaapolícia,poracaso?Pela primeira vez na nossa conversa instável, Luca sorriu para mim,

revelandodentesafiadosemaçãsdorostopronunciadas.—Sophie—murmurouNic.—Nãofiqueaborrecidacomomeuirmão.

Comopodever,elenãotemomenortratosocial.Asuavidadenavozdelemeacalmou,emepermitiadmirá-lo,mesmoque

porumsegundo,antesdedeixá-losasóscomoscardápios.—Olheparaaquelasduasbelezuras!—festejouUrsulaquandovolteiao

balcão.—EntãoessesrapazessãoosnovosPriestly?Assenticomdiscrição.Dooutroladodalanchonete,NiceLucaestavam

entretidos em mais uma conversa. De volta ao lindo mundo particulardeles. Ursula e eu estávamos no planeta ao lado, assediando-os sem amenorvergonha.—Asuapaquera-sombraéodecabelopreto?—provocouela.—Não,ooutro.De repente, Nic virou a cabeça de leve, como se pudesse nos ouvir.

Prendiarespiração—semsaberporquê—eaperteiobraçodeUrsula,mas ela nem reparou, ocupada demais tentando não babar. De novo, elemergulhounaconversa,comosetivesseprecisadodeummomentolongeda intensidade daquela discussão, assim como Luca. As bocas seacelerarameseusgestosficarammaisexpressivos.— É tão difícil desviar o olhar — provocou Ursula, alheia à raiva

elevando-sedaconversadeles.—Evejaaquelesolhos.Deondeelessão?—Doparaíso?—chutei, enósduas rimos.Eleseramtãoexóticos, tão

diferentesdequalquerpessoajávistaemCedarHill.—Anjoscomem?Foi então que me lembrei de que havia esquecido completamente de

anotarospedidos.Contorneiobalcãoecorridevolta.—Oquevãoquerer?—Pegueiobloquinhonobolsodoaventaleoabri,

rasgandoapartedebaixodafolha.Luca pareceu assustado com a interrupção, como se tivesse esquecido

ondeestavam.Eleabriuocardápionovamente,passouosolhosporcinco

Page 39: Catherine Doyle - Vingança

segundoseoafastoucomumacarafeia.—Umcafé.Puro.Forte.ElegesticulouparaNic.—Vouquererosanduíchedefilé,malpassado,comfritas.Eumcopode

leite—disseNic finalmente,antesde fecharocardápioedesviaroolharparamim.—Porfavor.— Algo mais? — Mantive o contato visual, sentindo meus lábios se

contorceremparaformarumsorrisotímido.—Cazzo,ésóisso!—sibilouLucaparamim.Aessaaltura,eujáestavaacostumadaalidarcomclientesdifíceis,masa

atitude de Luca era algo inédito, e eu estava perdendo a paciência maisrápidodoquedecostume.—Desculpe,masvocêestásesentindoofendidopelaminhapresençano

meulocaldetrabalho?Porquenãoprecisaficaraquisenãoquiser.Elemelançouumolharpresunçosoeeuoencarei.—Sónãocuspanomeucafé.Respireifundoeosdeixeiasósnovamente.DepoisquepasseiopedidoparaKenny,nacozinha,mejunteiaUrsula,

queestavalimpandoamesadeErinesuatrupe.Nosocupamoslimpandoas outrasmesas e varrendo o chão enquanto osminutos se arrastavam.Quando servi o sanduíchedeNic,meusolhosnotaramo começodeumatatuagemnascostasdele,acimadagoladacamiseta.Passeiosdezminutosseguintesatrásdobalcãoimaginandoquedeviaserapontadeumagrandecruzornamentada.Cinco minutos antes da hora de fecharmos a lanchonete, quando eu

estava encerrando as contas do dia, o telefone de Luca tocou e ele selevantou,saindorapidamente.Nic se aproximou com timidez do balcão, como se caminhasse em

direçãoaofogocruzado.Amesmasensaçãodefamiliaridadecomeçouaseacenderdentrodemim,maseuaafastei.Controle-se.— Desculpe pelomeu irmão.— Ele agitou o braço em direção a algo

atrásdesi.—Eledevetercaídodecabeçaquandoerabebê...milharesdevezes.—Achoquenuncaconhecialguémtãodiferente—observei.Foiaúnica

coisanãonegativaemquepenseiparadizersobreLuca.Nic entortou a cabeça, como se houvesse um zumbido no seu ouvido.

Talvezfosseissoqueelepensavasobreoirmão.—Achoquejáestouacostumado.Nãodeixequeeleatiredosério.—Podedeixar.

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—Vocênãooachouassustador?Balanceiacabeça.DesúbitoolhardeNicganhouintensidade,enomesmoinstantepercebi

comomeucoraçãobatiaforte.—Quebom—murmurouele.—Maselecomcertezaéestranho—acrescenteicomoconclusão.—E

incrivelmentegrosseiro.— Deveríamos trazê-lo aqui mais vezes pra que você o mantenha na

linha.—Nicretiroudacarteiraumcartãodecréditopretoquereluziaumnívelderiquezaqueeuconheciaapenasemsonhoeoentregouparamim.Derepente,cadapedaçodomeucorpoestavatenso,emepergunteiseeleteria percebido. Ele devia estar acostumado a causar esse tipo de reaçãonasgarotas.—Então,quandovocêssemudaram?—perguntei,tentandomemanter

concentrada.— Semana passada.— Então eu não podia conhecê-lo de outro lugar.

Minhamente estavame enganando. Nic apontou para a velha casa atrásdelecomumarcasual,dandoaentenderqueaquelaerasomenteumadasmuitasmansõesfrequentadaspelafamília.Nãoqueissomesurpreendesse;haviaalgonele,aaparênciadeumgarotoricoquepodiapagarporviagensàEuropaeresortsdeskiemAspen.ElepareciaserdeumalinhagemqueseestendiamuitoalémdeumlugarmedíocrecomoCedarHill.—Masvocêjádevesaberdisso,seestavaespionandoanossacasa.Sentimeurostoesquentar.—Eunãoestavaespionandoasuacasa!Osorrisodeleficoumaislargo.—Certamentepareciaqueestava.EmpurreiamáquinadecartãodecréditonadireçãodeNiceespereiele

digitarasenha.Meuolharpousounosnósdosdedosdamãodireitadele,queestavamcobertosdeferimentosecortesprofundos.—Oqueaconteceucomasuamão?—perguntei, sobressaltadacomo

horror na minha voz. Era uma imagem difícil de digerir e não entendiacomoelenãoestavasecontorcendodedor.Nicafastouamãodamáquinaeaencarousurpreso.— Ah — disse ele lentamente, girando o pulso e observando o

machucado.Obarulhodaimpressãodorecibopreencheuosilêncio.—Vocêestábem?—Estou.

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Fiquei com a impressão de tê-lo chateado. Destaquei o recibo e oentreguei.Dessavezeleusouaoutramãoparapegá-lo.—Eunãoquisserintrometida...—Não,claroquenão.—Nicpigarreou.—Eusótinhaesquecido,sóisso.

Fiqueitrancadodoladodeforaoutrodiae,paraentrar,preciseisocarumajanelacomumtapumedemadeiranapartedetrásdacasa.Asmaravilhasdeumamudançaetal...—Parecedoloroso—eudisse, fazendoumexcelentepapelemdizero

óbvio.Nicbalançouacabeçadeleve.—Játivemachucadospiores.Eunãoidentificavaseeleestavabrincandoounão,eantesquepudesse

pensaremalgumaresposta,elejáestavasevirandoparairembora.—Achomelhoreuir,Sophie.—Tchau—falei.—Quemsabeeuvejovocêdepois?—sugeriueleolhandoparatrás.—Desdequevocênãotentemematardenovo.— Vou me esforçar, mas você é mais do quem bem-vinda a espionar

minhacasa.—Elepiscou,avozlevemaisumavez.—Eunãoestavaespionando!—Buonanotte,Sophie.

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CAPÍTULOSEIS

OHOMEMAFOGADO

ChegueiemcasaeencontreiumaMercedesprateadaestacionadanarua.Analiseiocarro,que,apenascomsuapresença,faziapareceraindapioroestado lamentáveldoFordacabadodaminhamãe.AMercedespodia serchique,mas estava vazia e nãome era familiar.Omais estranho era queàquelahoraminhamãegeralmente já estavadormindo, enão recebendovisitantes ricos. Eupodia ser a filha dadesonra,mas ela era a esposadadesonra, e isso significava que seu calendário social agora era bemmaislivre do que costumava ser. Agora, em vez de amigos, minha mãe tinhaprojetos.Comecei a ficar em pânico com a ideia de ela estarmesmo recebendo

uma visita — o tipo de visita que ia tentar substituir meu pai. Talvezestivesse cansada de esperar. Talvez não quisesse enfrentar os próximosquatroanossozinha,rebatendoperguntasdevizinhosfofoqueirosefalsosamigos,epassartodososdiasdosnamoradoschorandopelanoiteemquemeupaifoilevadoparalongedela.Talvezessefosseocarrodohomemquetentariaconsertartudo.Eume recompus.Haviaapenasumaescolhaa fazer, enãoera ficardo

ladodeforaempânico.Não.Euiaentrarporaquelaportacomtodomeusarcasmo e mau humor adolescente e usá-los para assustar o talpretendentemisterioso.Entreipelaportadafrenteeafecheicomcuidado.Vibraçõesesquisitas

emanavamdacozinha—umavozmasculina!Caminheinapontadospés

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pelocorredorepareilogoatrásdaportadacozinha,entreaberta.—Nãoseiporquevocêestátãonervoso.Vaideixá-laapavorada—dizia

minhamãe.—Algumahoravocêvaiouvirmeusconselhos,Celine?FiqueimaissurpresaemouviravoztensadomeutioJackdoqueteria

ficadoaoouviravozdeumcompletoestranho.Segundoohistórico,minhamãe e meu tio nunca se deram bem. Na cabeça dela, o tio Jack estavasempre atrapalhando. E, mesmo quando estava atrapalhando comingressos para shows ou pizzas, ainda era um incômodo. Ele era a únicapessoanomundoqueminhamãese recusavaa tolerar.Estavaabaixodasra.Baileynaescalade“eunãoquerovocênaminhacasa”,e issonãoerapoucacoisa.Quandoerammaisnovos,meupaiemeutiotinhamapenasumaooutro

—oresultadodepaisausentesealcoólatras.Comoeraomaisnovoe serecusava a ter uma vida estável, Jack dependiamuito domeu pai. Ele omantinha por várias noites no bar da cidade ou se intrometia emmomentos da vida do meu pai que minha mãe gostaria de ter mantidoapenasentrenós três.Resumindo, Jackestavasemprepresente,eera,naopiniãodaminhamãe,umamáinfluência.Maseuconheciaooutroladodomeutio—otioquetinhamelevadoaté

ChicagoparaverWickednoOrientalTheatresóporquemeouviudizerumavez que eu gostava de musicais; o tio que ouvia às escondidas minhasconversas com Millie no trabalho para poder dar o que julgava serconselhos sábios sobre nossos problemas com meninos; o tio quebagunçavameucabeloquandoeuestavatentandoreclamardealgosério,que me dava o iPhone mais recente por impulso, “porque sim”, e queinsistiaemmelevardecarroàescolaquandonevavaparaeunãoprecisarpassarfrionocaminhoatéopontodeônibus.Euviaumhomemquefaziaoseumelhorpara ser responsável emeprotegerdepoisdaprisãodomeupai, e emboranem sempre ele tenha conseguidomeproteger das piadascruéisedosconvitesnegadosparafestas,pelomenostentava.Chegueimaispertodaporta.— Não quero que envolva Sophie nas suas teorias da conspiração—

rosnouminhamãe.—Vocênãoaprendeunada?—Eutenhodireitodecuidardela,Celine.EuprometiaoMickey.— Acho que já fez o suficiente — retrucou ela com uma voz

perigosamentecalma,usadaapenasnospioresmomentos.Meencolhiemsolidariedadeaomeutio.—Quandovaideixaressamerdapralá?—vociferouJack.

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—Quandovocêassumirasuapartenela!Espieipelaporta.Minhamãeestavadepédeumladodacozinhavestida

comum roupão e pantufas.O cabelo louro curto estavadespenteado e orosto,tomadoderepulsa.Elahaviacruzadoosbraçoseestavaapoiadanabancada, o quadril inclinado em uma atitude desafiadora. Mesmo sendopequena, ninguém queria ser inimigo de Celine Gracewell. Eu, mais quequalqueroutrapessoa,podiaafirmarissocomcerteza.— Estou apenas tentando manter a Sophie segura — disse meu tio,

encolhendoosombros,resignado.—Porquenãomedeixafazerisso?—Porquenãoconfioemvocê.Nãodepoisdetudo.Com um suspiro frustrado, ele deu um passo para trás e balançou a

cabeça.—Vocênuncaconfiouemmim.—Ah,calaaboca,Jack.Aosentirquejátinhaouvidoosuficienteparaficardesconfortávelpelo

restodoano,empurreiaportacomforça.—Oqueestáacontecendoaqui?OrostodotioJackseinundoudealívio,ecorou.—Aíestávocê!—É.—Aponteiparamimmesmaparadarumefeitodramático.—Aqui

estoueu.Porqueessagritariatoda?— Nada, nada. — Ele passou a mão pelo cabelo grisalho cortado à

máquina, interrompendo o movimento para coçar a nuca. — Só estouestressado.Jacksempreestavaestressadocomalgumacoisa.—Oqueestáfazendoaqui?— Sendo dramático — provocou minha mãe antes que ele pudesse

responder.Ui.—Aquele na entrada é o seu carronovo?—perguntei, parando entre

minhamãeemeutioparatentarmudaroclima.—Seestáganhandotantodinheiro assim com a lanchonete, provavelmente deveria me dar umaumento.Elenãoachouapiadaengraçada.—Pegueiemprestadodeumamigo.Nãoestoudirigindomeucarronos

últimosdias.—Estava se sentindo chamativodemais essesdias?—brinquei, numa

tentativademelhoraroclimadenovo.Nãohavianadamaisdesconfortáveldoqueconstrangimento.E,alémdo

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mais,otioJackdirigiaumconversívelvermelhoantigo—símbolomáximodacrisedemeia-idade.Erajustoqueeutirasseumacomacaradele.Elesuspirou.—Algodotipo.Minhamãepassoupormimparaencherumcopodeágua.—Sófalalogooquequerdizerparapodermosvoltaraotrabalho.—Oqueestá fazendoaqui a essahora?—pergunteinovamente.—E

por que não tem aparecido na lanchonete? O fornecedor ainda nãoapareceu.Meutiomoveuospéscomoumacriançaperdida,incertodeondeficar.—Eusei—disseele,comavozgrossadecansaço.—Luismorreusexta

ànoite.—Ah—falei,sentindoumsúbitogolpedeculpa.Ofornecedortinhaum

nome: Luis, sim, é verdade. E agora Luis, que mal tinha chegado aosquarentaanos,estavamorto.—Oqueaconteceucomele?—Eleseafogou.—Seafogou—repeti.—Ànoite.Onde?— Na banheira de casa— respondeu ele simplesmente, como se não

houvessenadabizarroarespeitodoqueacaboudedizer.—Minhanossa—soltouminhamãe,cobrindoaboca.Eu,noentanto,estavaboquiaberta.Tudopareciatãoincoerente.—Foi suicídio?—Naúltima vez que assinei uma entrega, Luis estava

tagarelandosobrecomootempoandavaótimo.—Luistinhamuitosmotivosparaviver—respondeuJackfriamente.—

Elenãofariaisso.—Oqueaquiloqueriadizer?Umfriorepentinoarrepioumeus braços.Meu tio continuou, inabalado pela insinuação,me deixandoemsilênciocommeusquestionamentos:—EricCaineeuvamosvisitarosfamiliares dele amanhã. Querome certificar de que tenham tudo de queprecisamenquantolidamcomessasituação.Aesposaestáinconsolável.Eu estava começando a me sentir uma completa idiota. Luis e eu nos

encontramos pelo menos vinte vezes e eu mal sabia seu nome; meu tiosabia sua história, conhecia a família e agora ia fazer de tudo para secertificardequeelesficariambem.— É muito legal da sua parte — falei, esperando que minha mãe

concordasse.Ela comcertezadaria créditosao tio Jackpor isso,masnãoestavaprestandoatençãoemmim.—Pobrezinha—disseelacalmamente,semacrescentarmaisnada.—Éacoisacertaafazer—disseJackparamim.— Você está bem? — Meu tio não era muito bom em demonstrar

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sentimentos,masdavapraverqueestavaabalado.—Sim—respondeuele, tentandoamenizarminhapreocupação.—Eu

sóqueriaviraquifalarcomvocêantesdeviajar.—Vocêpodia terme ligado.—Eunãoqueriasergrosseira,mashavia

algo em visitas inesperadas queme deixavam nervosa.— Estou semprecommeutelefone.—Perdimeucelular.Precisocomprarumnovo.MinhamãecontornouamesaesesentouomaislongepossíveldeJack.

Elacomeçouatamborilarosdedosnamesa—umadicanadasutildasuairritação— enquanto observava de perto a nossa conversa. Se eu tinhapensadoqueamortedeLuis iriasuavizarseuóbviodesdémpormeutio,estavaerrada.Jackignorouairritaçãodela,esenticomosefosseaúnicaaliqueainda

sedavacontadetodooconstrangimentodasituação.—Então...Oquequermedizer?—perguntei.Ele puxou uma cadeira e se sentou, apoiando os cotovelos nos joelhos

comumacaraderrotada.—DepoisdevisitarafamíliadoLuisamanhã,vouficaremChicago.Não

vouvoltarparaCedarHillporumtempo.Masqueroconversarcomvocêsobreumacoisaantesdepartir.Eleolhouparamimcomseussincerosolhosazul-acinzentados—iguais

aosmeuseaosdomeupai.Comumapontadasúbita,melembreidecomoos irmãoseramparecidos.Antesdisso tudo,davaquaseparapensarqueeleseramgêmeos,masnãomais.Avidanaprisãofoicruelcomomeupai,enquantoorostodomeutiopermaneceubasicamentesemnenhumaruga,ocabelointactoeapelecomumlevebronzeadodesol.—Sobreoquevocêquerfalar?—Apoieiascostasnobalcãoeoagarrei

commais forçadoquetinhapensadoemfazer,pressentindoalgoerrado.Era por isso que eles estavam brigando. Minha mãe continuava atamborilarnamesa.—Uma famílianova semudouparaobairro eprecisoquevocê tenha

cuidadocomela.Sentiopânicoseespalharpelomeucorpo.—Comoassim?—Sabedoqueestoufalando?—questionouelecomcuidado.Assentidevagar,tentandoentenderdeondeessaconversatinhasurgido

eporqueestavamedeixandoempânicodenovo.—OquehádeerradocomosPriestly?Olheiparaminhamãeembuscadealgumapista.

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—Teatro—murmurouela, fazendoumgestodesdenhosocomamão.Aindaassim,permaneceuondeestava,acompanhandoaconversa.—Persephone.—Rangiosdentespor instinto.Euodiavaquando Jack

me chamava pelo meu nome completo — Não vou entrar nesse méritoagora—disseele.Quandomeutiofalavasério, ficavaigualaomeupai,emedavaarrepios.Porumsegundo,quisfecharosolhosefingirqueelenãoestavaali,quetudoestavacomodeveriaser;quenãotínhamosacabadodecomentar que alguém haviamorrido afogado na sua própria banheira, eque não estávamos prestes a determinar um alerta de perigo contra ogarotomaisbonitodacidade.—Apenasfaçaoqueeupeço.Eunãoconseguiaevitaradesconfiança.Mesmocomamãomachucada,

haviaalgodetranquilizantenapresençadeNic.—Quandovocêvolta?—Aindanãosei.Misterioso como sempre. Desejei queMillie, a Interrogadora, estivesse

ali.Elaarrancavarespostasatémesmodeummudo.Eaindasedivertiria.—Entãoésóissoquevaimedizer?—Étudoquetenhoparacontar.—Jackdesviouoolharparaajanelaem

direçãoàescuridãodoquintal.—Entendeu?Eu estava prestes a responder que na verdade não estava entendendo

nadaquandoacoisamaisestranhaaconteceu.Jacksaltoucomosetivesselevadoumchoque.Acadeiracaiuparatráseelesaiucorrendo.—Oquefoi?—Acadeiradaminhamãearranhouochão.Jacksedebruçounapiadacozinhaeesticouamão.Acheiqueelefosse

socarajanela,masemvezdissoagarrouopotedemelqueaindaestavanoparapeito. Quando ele olhou para mim novamente, seus olhos estavamvermelhosesaltados.—Deondeveioisso?— O-o-omel?— gaguejei. Eu nunca tinha visto alguém tão assustado

comalgotãoinofensivo.—Euachei.Eleapertouolaçopretoentreosdedos,esfregando-o.—Onde?Deideombros.— Alguém deixou na lanchonete. Encontrei quando estava fechando a

loja.A cor desapareceu do rosto dele, transformando suas bochechas

normalmenterosadasemumtomdebrancoqueodeixavadacordepapel.— Se encontrar outro, quero que deixe onde estiver e me ligue

imediatamente.

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—Jack,ésómel—afirmei.Porquetodosandavamagindodeformatãoestranhaultimamente?Eu

já tinha provado o mel e sobrevivido, então não era como se estivesseenvenenado.—Apenasmeobedeça—repetiuelecalmamente.—Certo?—Penseiquevocêtivessefaladoqueestavasemcelular—lembrei.—Vouavisarquandocomprarumnovo.— Jack? — Com tudo de estranho que estava acontecendo, eu havia

esquecidoqueminhamãecontinuavaali.—Achoqueestánahoradevocêir embora. Está agindo de forma estranha e está me deixandodesconfortável.ASophieprovavelmentequerdormir.Abri a boca para protestar — eu não estava cansada —, mas me

controlei.Elatinharazão.—Certo.— Jackolhouparao chão,balançandoa cabeça.—Desculpe,

Sophie.Tiveumdiamuitolongo.— Não tem problema. — Dei um sorriso reconfortante. Entre

administrar a lanchonete e cuidar dos investimentos em Chicago, Jacksempretrabalhoudemais,masnosúltimosdiaseleandavairreconhecível;estavaexaustoeagitadoe,agora,comamortedeLuis,seucomportamentoestavaaindamaisestranho.—Boanoite,Sophie.—Boanoite—respondi.Comomelaindanasmãos, Jackcaminhouapassos lentosparaaporta

dosfundos.Meiosegundodepois,ocensordemovimentoseacendeu,iluminandoa

sombra domeu tio enquanto ele ficava de costas para nós, encarando ochãoquebradodoquintaleagramamalcuidada.—Oqueeleestá...O fimdapergunta foiabafadoporumestrondodemachucaroouvido.

Encosteimeunariznajanela,masJackjáhaviadesaparecidodevista.Olheiparaochão,ondealuzrefletiacentenasdecacosdevidroeodouradodomel.—Essehomem!—guinchouminhamãe,vindosejuntaramimnajanela.

—Éexatamenteporissoquenãooqueroporperto.Ocomportamentodoseu tio é completamente irracional. Ele anda bebendo de novo e, se nãoparar,vaiacabar fazendoalgodequevaisearrepender...—Elaparoudefalareapertoumeubraço.—Vocêestábem?—Estou—menti,apoiandoamãonajanelaparaquenãotremessemais.—Queriaqueseupaiestivesseaquiparamantê-lonalinha.

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—Achoque,seopapaiestivesseaqui,otioJacknãoprecisariadisso—faleicomcalma.Minhamãesoltouumsuspiro.—Vouterqueesperaratédemanhãparalimparaquelabagunça.—Podedeixarqueeuajudo.Ficamos na janela assistindo ao mel se espalhar pelas rachaduras no

concretocomosefossesanguedouradoescuro.

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CAPÍTULOSETE

OSFALCÕESRUBROS

Millietinhaumaroupaparacadaocasião.Porisso,quandoelaapareceunasquadrasdeesportenaorlado rio, no sábado,não fiquei surpresadeencontrá-la com um microshort jeans e a camiseta de basquete maisapertadaquejávi.Elaabriucaminhoentreosadolescentes,desfilandonaminhadireçãoemumaexplosãodepretoevermelho.—NãosabiaquevocêerafãdoBulls.— Ah, não?— Ela deu um sorrisinho e se acomodou aomeu lado no

primeirobancodaarquibancada.— Oumelhor— falei, enquanto ela prendia o cabelo em um rabo de

cavalo.—Eunemsabiaquevocêgostavadebasquete.—Achoqueémaisjustodizerquesoufãdegarotos.—Elaterminoua

últimavoltanoelástico.—AcamisaédoAlex.Encolheunamáquina.—Elasorriusemamenorvergonha.Olhei para as roupas que eu usava: uma legging da minha mãe, uma

regata cinza e um par de Asics velho com listras verdes berrantes. Meucabeloestavapresonoaltodacabeça,caídoentremeusombrosnumrabodecavaloreto.Eujásentiaosolqueimarosfiosnovos,ralosdemaisparaficarempresoscomoresto.Milliepassouosolhosporminharoupa,torcendoonariz.—Vocêestá...—começouela,hesitante.—Básica?—concluí.Eunãotinhalámuitaaptidãoparaesportes,masestavafelizdeteralgo

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paramedistrairdocomportamentorecentedomeutio.Faziadiasdesdeapartida dele depois do surto com o pote de mel, e ainda não tinha meligado.Ursulafoiencarregadadalanchonetenaausênciadele.FoielaquemmaisseabaloucomamortedeLuiseestavadecididaanuncamaistomarbanhodebanheira,paranãoseafogar.Millieeeureagimoscomumpoucomenos de drama, mas ainda assim estávamos felizes por nos livrar dossermõesmórbidosdela,nemquefossesóporumdia.NósnuncajogávamosnotorneiodebasquetedeverãodeCedarHill.Não

que fosse exatamente um “torneio”. Era mais um evento relacionado abasqueteorganizado todomêsde julhopelaAssociaçãodeMoradoresdeCedarHill.Comopartedasemprecrescenteagendadecompromissos,queincluía a manutenção de parques, vigilância da vizinhança e noites decinemaaoarlivre,aAMCHsempretentavacriarnovasmaneirasdemanteros adolescentes longe das ruas e das más companhias de uma forma“positivae socialmenteaceitável”duranteoverão.O torneiodebasqueteeraumdospoucoseventosquedavacertoe,aolongodosanos,setornouuma tradição de que todos zombavam, mas que ninguém perdia. Erarealmenteumadasúnicascoisasqueunia todosos jovensdavizinhança;pelorestodoverãoéramoscomobolasdefenosuburbanasepreguiçosas,zanzandopelacidadeemduplasetrios.ParaMillieeeu,oeventosemprehaviasidoumespetáculoqueagente

aproveitava das arquibancadas tomando sorvete e olhando para garotosbonitos. Mas, pelo bem de uma “retomada social”, como Millie chamou,decidimos que naquele ano iríamos participar. Fiquei em dúvida; seninguém queria ser visto com a filha de um assassino, quem gostaria dejogarbasquetecomela?AindabemqueAlex,oirmãodaMillie,convidouagente para fazer parte do time dele. Suspeitei de que aquela fosse umaforma de tornar o evento mais desafiador para ele — a essa altura, ostroféusdosúltimostrêsanosjádeviamestarempoeiradosnaprateleiradoquarto.—Talvezagenteganheessenegócio,sabe.—Millieestavareclinadano

bancoapoiadanoscotovelos,avaliandooambiente.Como sempre, havia muitos espectadores se apertando nas

arquibancadas e espalhados pelo gramado que cercava as quadras. ErinReyes e o resto da sua gangue já haviam se estabelecido em um localprivilegiado,noaltodaarquibancada.Emvezde jogaremnotorneio,elasficariam praticando a arte de jogar charme tomando picolés. Elas jáestavam fazendo um trabalho tão bomque chegava a ser constrangedor.Logo atrás das quadras, o rio corria preguiçoso, refletindo o céu azul, e

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fileiras de arvorezinhas à margem se curvavam sobre a água como seestivessemprocurandoalgonofundodorio.— Lembro da última vez que joguei basquete — disse Millie com

nostalgia.Elaencaravaocéueeupodiaverqueosoljácomeçavaapintarsardasnoseurostopálido.—Euestava tentandopassarabolaproAlex,maselenãopegoueelaacabouquebrandoajaneladacozinha.—Bonstempos—lembreisaudosa.—Evocê?—Elabaixouacabeça.—Achoquenunca?PequenasrugasseformaramnatestadeMillie.—Tenhocertezadequevaijogarbem.—Ébomquejoguemesmo—interrompeualguém.Alex caminhava na nossa direção com um sorriso de propaganda de

pastadedente,acompanhadodedoisamigos.Oprimeiro,reconhecicomoRobbieStenson,umaversãobaixinhaebemmenosatraentedeumbonecoKen, que já vinha de fábrica com cabelo castanho jogado no rosto esobrancelhas exageradamente modeladas. Ele não andava: trotava peloslugares,comoumaespéciedetrollcheiodeestilo.Ooutrogarotoeuviumavez ou duas na casa da Millie jogando videogame, mas ele nunca falavamuito. Ele tinha um cabelo louro-arruivado, braços e pernasdesengonçadoseumatestaquebrilhavamaisdoqueosol.Milliesaltoudobanco.—Jáestavanahoradeaparecerem.Temosumtorneioparavencer.—Soph,conheceStennyeFoxy,né?—Alexapontouparatrás.Ah,garotoseseusapelidosidiotas.—Aham,oi—cumprimentei.RobbieStensonrespondeucomumacenodecabeçasutilquediziaque

ele era legal demais para esse tipo de apresentação— tão sutil quemalnotei—, e “Foxy” jogou um colete amarelo paramim. Eume atrapalhei,deixei o colete cair e precisei abaixar para pegá-lo. Eles obviamente nãoestavamnadafelizesporeufazerpartedotime.Millie pegou o colete por um reflexo, mas o largou no chão como se

estivesseemchamas.—Dejeitonenhum.Nãovouvestirisso.Estáfedendoasuor.—Você está falando sério?—A voz deAlex já demonstrava sinais de

cansaçoparaassuntosfraternais.Milliefranziuoslábiosemsinaldenojo.—Euliteralmenteprefiromorrer.Segurei meu sorriso. O sotaque britânico dos dois transformava as

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conversasmaisbanaisemobras-primasdoteatro.Robbie,Foxyeeubotamosnossoscoletessemprotestos;omeuiaatéos

joelhos e cobria metade dos braços, encobrindo tudo menos meus tênisluminosos. Eventualmente, e depois de uma pressão não muito sutil daminhaparte,Millieseresignouevestiuocoletedela.—Vocêéumatirana—murmurouela.—Pelomenossuaspernasaindaestãobonitas—tenteianimá-la.Mas

nãodavaparaignoraraverdade.Estávamosafogadasemfosforescência.— Vamos jogar primeiro na quadra um — disse Alex, batendo e

esfregandoasmãos.—OnomedonossotimeéCestasCertas.Millieeeufizemoscaretas.—Esseéopiornomedomundo—falamosemcoro.—Porquenãopensamemalgomelhor,então?—desafiouAlex.—Ah,ah,ah—Milliecomeçouapularsemparar.—QuetaloSegredo

daVitória?AlexbaixouorostoeFoxysoltouumgrunhido.—Issonemfazsentido—interrompeuRobbie.—QuetalFaróisHumanos?—sugeri,gesticulandoparanossoscoletes

luminososhorrorosos.—Ok.—Alex jogouasmãosparaoaltoemrendiçãoeRobbieeFoxy

assentiramrelutantemente.—Vamosmudaronome.Milliecurvouasmãosemvoltadabocaesoltouumavozquebradiça:—ÉumpequenopassoparaSophieeumsaltogigantescoparaosenso

dehumordeAlex.Robbiesaiucorrendoparamodificarnossonome,deixandoFoxyeAlex,

que jáestava levandoasituaçãoummilhãodevezesmaisasériodoquenós.— Fiz um reconhecimento de território — começou Alex,

compartilhandoa informaçãocomosefosseumfuzileironaval.—Muitosdosoutros jogadoresesteanosãomaisnovosdoquenós,oquenosdáavantagem...Millie me deu um soco no braço e minha atenção se desviou de seu

irmão.—Oquê?— Agora você vai morrer, literalmente. — Os olhos dela estavam

arregalados, e eu me virei para seguir seu olhar. — São eles, certo? OsirmãosPriestly?Elanãoestavatotalmenteerradasobreminhamorte.Meucoraçãocom

certezaparoupor alguns instantes.Cruzandoaquadraoposta, os irmãos

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Priestly vinhamnanossadireção; eramquatrodessa vez, e oparentescoeraevidenteporsuapelebronzeadaecabeloescuro.—Nuncapenseiquepudesseacharumabermudadebasqueteatraente

emumcara.—Foitudooqueconseguidizer.—Estavapensandonisso—disseMillie.Oqueelesestãofazendoaqui?,pensei.Amaioriadopúblicoparticipava

emnomedatradição—eraumamaneiraagradávelobastantedepassarotempo,aúnicaopçãoemumdiaensolaradoparaummontedejovensquenão tinhamnadapara fazer.Masesses garotosnãoeramcomoasoutraspessoas de Cedar Hill. Eu imaginava que fossem superiores demais parafrequentaremumtorneiomunicipaltoscodebasquete.LucacaminhavaaoladodeNiccomorostosério,eaoladodecadaum

estava um novo irmão. Eles provavelmente venceriam uma corrida derevezamento,sequisessem.Pelo jeitocomoos irmãospareciamprestaratençãoemLucaenquanto

elefalava,deduziqueeraomaisvelho,emboraosoutrosdoisqueeuaindanão conhecia, extremamente parecidos, não pudessem ser muito maisnovos—18ou19anos, talvez.Erammaisbaixose fortes,mas tinhamomesmoqueixoretangulareos traçosbem-definidosdorosto.DeduziqueNic era o mais novo dos quatro, embora a diferença não fosse muitogrande.—Benditabeleza!—Milliepraticamentesalivava.—Quatrogaranhões

italianostiradosdiretamentedosmeussonhos.QualdeleséoNic?Meusolhosaindanãohaviamsedesviadodele.—Odecabeloescuro.—Rá,rá,muitoengraçado.—Osegundodadireitaparaaesquerda.—Uau.EoLuca?—Osegundodaesquerdaparaadireita.Millieassobiouparasimesma.—Olá,olhosazuis.AlexcutucouoombrodeMillie.—Jáacabou?Estamostentandofalarsobreanossaestratégia.—Calaaboca—protestouela,dispensando-o.—Estamosocupadas.—

Ela apertou os olhos, apurando a situação.— Ok, quem é o da extremadireita?Odecabelolambidoparatrás?Aquiloéumacicatriz?—Nãosei.Talvezdevêssemoschamá-lodeBrilhantina.Quantomais eles se aproximavam, mais claro ficava que chamavam a

atençãode todasasgarotasdo lugar, e elespareciamestar cientesdisso.

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Queria saber onde estava o quinto irmão— o garoto de olhos claros dajanelaquehavialevantadoamãosemumsorriso—masessepensamentodesapareceuquandoosolhosdeNicencontraramosmeusequaseexplodideansiedade.—Oi—articulouelecomoslábios,sempronunciar.Sorridevolta,resistindoàvontadedesegurarmeuestômagoidiota,que

nãoparavadedarcambalhotas.—Minhanossa,elesabeseduzir.—Milliepulavadeumpéparaooutro.

—Elesestãovindoparacá.Ficacalma.Fomoslevadasemdireçãoaosirmãos,comoseporímãs,deixandoAlexe

seuscomparsasparatrásenquantofalavamsobreestratégiasentediantes,determinados, como todos os garotos na quadra, a ignorar os recém-chegados.Oavisodadopelomeutio,tãoimportanteecrucialnaquelahora,desapareceupeloar. Seessesgarotoseramrealmente sinaldeproblema,comoJackpensava,euderepenteestavadispostaamearriscar.—Ei—chamei.—Nãosabiaqueiriamjogarhoje.Nic parou a um metro de distância e os outros irmãos fecharam um

círculoemvoltadenós.—Foiumacoisadeúltimahora.Agoraestoufelizdetervindo.Milliemebeliscou.Erasuaversãosilenciosadeumgritinhodealegria.—Coletebonito,Sophie—disseLuca,logodecara.—Malconsigovê-la.—Luca.—DesvieiminhaatençãodeNicapenaspelotemponecessário

paradispensarumolhardedesprezoaoirmãodele.—Éumprazer,comosempre.O irmãoao ladodele riu.Ele tinhaumcabelo ridículo:apartedecima

estavapresanumrabodecavalopretocurto,easlateraisdacabeçaeramraspadas, deixando à mostra uma pequena argola dourada na orelhaesquerda.Apesardocortehorroroso,eleerabonito,masquandoriaseusolhos se arregalavam de forma anormal e a boca aberta revelava doisdentes da frente lascados, que lhe davam um aspecto ligeiramenteassustador.ElemelembravadaquelahienaloucadeOreileão.—IgnoreoLuca.Issoéapenasumatentativamalsucedidadehumor.—

interrompeu Nic, lançando um olhar reprovador para o irmão em meunome.—Emeujeitodeapontarqueelaépequena—acrescentouLuca.—Obrigada,Sherlock.Euseiquesoupequena.—Sóestavamecertificando.— Você por acaso tem algum filtro entre o cérebro e a boca? —

perguntei.

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—Tentonãousá-lodemais—respondeuele,despreocupado.—Dápraperceber.—Nãoprecisachorar,Lumicolor.—Calaaboca,Luca.—Nicpassouseucoletevermelhopelacabeçaeo

ajeitou.—Achoqueocoleteficaótimoemvocê,Sophie.—Cazzo,vaicomeçardenovo—reclamouLuca.Elerevirouosolhose

depois se curvou para Rabo de Cavalo, acrescentando em um sussurrocalculado:—Foiassimqueeleficounalanchonete.Foitãoirritante.—Sabe,Luca,vocêtemumtalentoparasussurrarascoisasnovolume

certoparaofenderaspessoas.— Obrigado, Sophie. — Ele subiu o tom da voz, deixando sua falsa

sinceridadequasecrível.—Agradeçopelaobservação.—Eudeverialhedarumamedalha.—Nemsedêaotrabalho—disseele,rindoironicamente.—Depoisde

hoje,tereiumtroféu.Abriumsorrisinho.—Seioquevocêpodefazercomessetroféu...ArisadadeMillieabafouo finaldaminharesposta.Elameabraçoude

lado,beliscando-mepelocolete.Gritinhos,gritinhos,gritinhos.— Então, qual é o nome do time de vocês? — cortou Nic, tentando

resgatarorumodaconversa.Infleiopeitoeafasteiosfiossoltos—agoraquasebrancos—dorosto.—FaróisHumanos.Lucabufou.— E o de vocês? — perguntou Millie, mas sua pergunta não era

direcionada aNic; ela olhava para Brilhantina,mordiscando levemente olábioinferior.Estudei o rosto dele— Millie tinha razão, ele tinha uma cicatriz. Era

claramente um ferimento antigo, que cortava a sobrancelha esquerda ebrilhavacontraapelebronzeada.Instintivamente,olheiderelanceparaamão machucada de Nic, e senti uma inquietação borbulhar no meuestômago.Masaafastei.— Falcões Rubros — respondeu Brilhantina para Millie, caindo

diretamentenaarmadilhadela.—Intenso—disseMillie,comumaexpressãodeflerte.—EraissoouOsFaz-Fantasmas—acrescentouLuca.Ohumordeleera

tãocaradepauqueàsvezeseunãosabiaseeleeraengraçadooudoido.—Chega.—NicdeuumsocofortenobraçodeLuca,masoirmãonemse

mexeu. Se eu tivesse recebido aquele soco, estaria no chão chamando a

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mamãe.— Calmati! Acho melhor eu interromper isso. — Brilhantina se

intrometeu, alternandoas línguas comamesma facilidadedeNic eLuca.Eradifícildizerqualsotaqueeraoreal.Brilhatinaseaproximouparanoscumprimentar,segurandoamãodeMilliepormaistempoqueaminhae,notei, acariciando-a com o polegar. Talvez Millie finalmente tivesseencontrado sua alma gêmea. — Meu nome é Dominico. Mas podem mechamardeDom.Milliesoltouarisadinhamaisassustadoraquejáouvi.—EusouMillie.EssaéaSophie.Bem-vindosàvizinhança.Bem-vindosàvizinhança?Euprecisavajogarissonacaradelamaistarde.

Quem sabe ela podia dar uma passada na casa deles com uma cesta demuffins?— Obrigado. Você também trabalha na lanchonete, Millie? — Dom

esticou a pronúncia do nome dela como se estivesse falando de umadelicadaflor.SeucharmeeraquasetãopoderosoquantoodeNic,masseusolhos eram escuros e suas expressões mais intensas. Observei a cicatrizenquanto ele se afastava demim para ter uma conversamais particularcomMillie.SentioolhardeNicemmimnovamente.—Boasortehoje—disseelecomsinceridade.—Obrigada, para você também.—Havia outras coisas que eu queria

dizeraele,mascomRabodeCavaloeLucanosolhandoeumalconseguiapronunciarumapalavrasemficarcomvergonha.—Nãoprecisamosdesorte—interrompeuLuca,provocandooutrosoco

raivosodeNic.— Luca — choramingou Rabo de Cavalo. O tom da voz dele era

estranhamenteagudo,nãomuitodiferentedavozdeMargeSimpson,eporumterrívelsegundopenseiquefosserirnacaradele.Elefranziuocenhoesuas sobrancelhas se fundiram formando uma lagarta peluda acima dosolhoscordecafé.—Podemosirnosinscrever?— É, vamos, Gino. Nem deveríamos estar conversando com nossos

oponentes. — Luca deu uma cotovelada em Nic antes de ir embora. —Andiamo,garanhão.—Émelhoreuirmepreparar—disseNicemtomdedesculpas.—Não

queroentrarnalistanegradonossoqueridoditador.—Digoomesmo—falei,mas ficamosali.—Dequalquer forma,onde

estáorestodoseutime?Vocêsnãotêmumquintojogador?Ele balançou a cabeça mais casualmente do que eu esperava. Estava

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torcendo para que elemencionasse o quinto irmão, que aomenos dessealgumadicadomotivoparasuaausênciaoualgumaindicaçãodequeeledefato existia e eu não havia imaginado um garoto assustador na janelanaquelaprimeiranoite.—Somosumquarteto.—Entãoestãoemdesvantagem—observei.—Éumaatitudearriscada.Nicfezcomqueospontinhosdouradosdentrodosolhosbrilhassem.Eu

não tinha certeza se era algum superpoder ou o efeito do sol, mas eraincrivelmente eficiente. E um pouco desconcertante, embora eu nãosoubesseomotivo.— Você é mais do que bem-vinda para ser nosso quinto elemento—

disse ele num sussuro conspirador.— Prometomanter o Luca longe devocê.Mordi o lábio para impedir quemeu sorriso ficasse assustadoramente

largo.—AchoqueaMillienuncameperdoariaseeuabandonasseobarco.—Ah,entendi.—Elefingiuumolhardefilhoteabandonado.—Vocêé

nobredemaisparaisso.—E,certamente,vocêéhonradodemaisparameroubardela.—Não,nãosou.Sentiumcalorsubirpelomeurosto.— Bem, terei que ser honrada por nós dois, então. Além do mais —

acrescentei, tentando justificar a recusa paramimmesma—, nosso jogocomeçaemumminutoejáperdiareuniãodeestratégia.Nãoqueroirritaraindamaisomeutime.—Ondeelesestão?Apontei atrásdemimparaAlexeo restantedos coletesamarelos,que

estavamnomeiodeumasessãointensadepolichinelos.OsorrisodeNicdesapareceu.—Aquelecaralouro?— Aquele é o irmão da Millie e dois amigos dele. Acho que ela os

subornouparadeixaremagentejogarnotime.NicestudouAlexeosoutrosgarotosenquantoelesfaziamalongamentos

elaborados.—Tenhocertezadequeosubornonãofoinecessário.—Soph.—Millieestavadevoltaemepuxavapelobraço.—Temosque

ir.Nossojogovaicomeçar.Dom havia se afastado dela e tive outra chance de olhar a cicatriz.

Embora ele não pudesse ser muito mais velho do que nós, algo nele o

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envelheciaelhedavaaimpressãodeserdiferentedoqueaparentava.Nãoidentifiquei o que era. Ele me viu olhando na sua direção e deu umsorrisinho,comumaexpressãolupinanorosto.Desvieioolhar,envergonhada.—Vejovocêsnaquadra!—Milliemelevoucomela,rebolandobemmais

doqueonormal.QuandoaceneiparaNic,elecontinuavaencarandoAlex.Elenãoacenou

devolta.

GanhamosnossoprimeirojogoatempodeverosFalcõesRubrosjogaremcontraosBarradosnaBolanaquadraemfrente.Erafascinanteassistiraosirmãos Priestly; até mesmo Alex, que não havia mostrado qualquerinteressenelesquandochegaram,estavagrudadonojogo.NiceDomeramosmaisobviamenteatléticos,movimentando-sepelaquadracomopontosvermelhos. Eles faziam a maior parte das cestas, recorrendoocasionalmente aGino, que parecia sermais hábil em assustar os outrosjogadoresdoquedefatojogarcontraeles.Talvezfosseorabodecavalo.Luca deslizava pelas laterais, e quando omomento oportuno aparecia,

ele surgiadas sombras comoumavíborae roubavaaboladoadversárioantesmesmodeelepodernotar suapresença.Mas isso era tudoqueelefazia:interceptar.Nãoovifazersequerumacesta.Elenemsuou.Nosso jogocontraosDeixeoHasselhoffemPazcomeçouantesdo jogo

dos Priestly terminar, embora estivesse claro que, assim como nós, elesavançariam para a próxima rodada. Vencemos com uma vantagemconfortável de 62 a 39. Alex fez quase tudo sozinho, seguido por Foxy eRobbie.Millieficouclaramenteemúltimolugar,maseladeixoubemclaroquenãoseimportava.Estavaaliapenasparafazerumaapariçãosocialeseacontecessedeabolatocarseusdedosporacidenteelanãoseimportaria.Assistimos aos irmãos Priestly vencerem o segundo jogo com mais

facilidade do que nós. No nosso terceiro jogo enfrentamos os EsquilosElétricos. Notei a crescente presença de Nic nas laterais e decidi meesforçarativamente.Milliepareceuterfabricadoumplanosimilar,porquepelaprimeiraveznãoestavafugindodabolaedandogritinhos.Realmentecorriaemdireçãoàbola.No fim do terceiro quarto, os irmãos já estavam em outra quadra,

ganhandoojogocomonós,oquesignificavaquenossostimesiriamparaafinal.

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CAPÍTULOOITO

OCANIVETE

—Droga—disseMillie.Apartemaiscurtadasuafranjahaviaenroladoe ela ficava ajeitandoo cabelo emdesespero enquantonos arrastávamospelaquadra.—NãoquerojogarcontraDom.Elevaivercomoeusouruimenãovaiquereriràfestaláemcasasemanaquevem.—Vocêjáconvidouocaraparaafesta?Milliepiscoulentamenteparamim.—VocênãoconvidouNic?—Hum...—MeuDeus,Sophie.—Elaapertouosolhosemassageouastêmporas

comasmãos.—Àsvezeseumeperguntooquesepassanessasuacabeça.—Eunemtinhapensadonisso—admiti.—Eunemtinhapensadonisso—imitouela,natentativamaisfracassada

domundodeimitarmeusotaque.—Nãosoudosul—expliquei.— É no dia do seu aniversário — rebateu ela, ignorando minha

alfinetada.—Vocêtemqueconvidá-lo.— Eu vou convidar.— Tentei não ficar nervosa com a perspectiva de

chamarNic para uma festa que aconteceria nomeu aniversário,mas emqueapenasumascincopessoasfalariamcomigo.—Enquantoisso,vamostorcerparaDomnãoperdercompletamenteo

respeitopormimduranteojogo.—Nãotemproblema—acalmei-a,refazendomeurabodecavalo.—Ele

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jáviucomovocêéruim.Elamelançouumolharfulminante.—Comosenãobastasseeletermevistosuar!Deveestarfazendomais

dequarentagraushoje.Alex, Robbie e Foxy se juntaram a nós e começaram a se alongar

novamente.Elesagiamcomtantaseriedadequeeraquasecômico.—Sómaisumjogo,pessoal.Estamospróximosdavitória—disseAlex.—Nãoestamospertodavitóriamesmo—cochichouMillie.Aceneicomacabeçaemabsolutaconcordância.—Estamosferrados.Alexvoltouaatençãoparanós,orostotomadodepreocupação.Nósduas

éramosumcasoperdido,enãopodiaestarmaisclaroqueelesabiadisso.—Certo,osFalcõesRubros têmumhomemamenos,oquequerdizer

queFoxy,Stennyeeupodemosmarcaros trêsmelhores.MillieeSophie,vocêsmarcamocaraalto.—EunãoqueromarcaroLuca!—esperneei.—PossomarcaroDom?—perguntouMillie,esperançosa.Alexpassouasmãosnocabelo,emechassuadascaíramdevoltaaoredor

dosolhos.—Não.SeLucaconseguirsemovimentar,vaiacabarcomnossojogo.PorcimadoombrodeAlexeuviaosirmãosPriestlyseposicionandona

quadra.Concentrado,Nicquicavaaboladeumamãoparaaoutra.Aoseulado, Luca sorria como ummaníaco. Eu me perguntei se ele teria outraexpressãofacialalémde“babacacompleto”.—TerrachamandoSophie.—Hã?Alex estavame encarando, seus olhos azuis tão grandes quanto os de

Millie.Àsvezeseraassustadorcomoelestinhamexpressõesparecidas.—Vocêouviuoqueeudisse?Balanceiacabeçadeformaabobalhada.—Vocêestavafalando?Elesoltouumsuspiroprofundoebotouasmãosnosmeusombros,me

olhando nos olhos. Normalmente, eu ficaria boba se o irmão gato maisvelho deMillie chegasse tão perto demim,masminha obsessão porNicestavamedistraindo.— Preciso que mantenha Millie concentrada. Eu cuido do resto. Os

FalcõesRubrosvãosedarmal.—Precisaparardechamá-losassim.Dessejeitonãoconsigolevarvocêa

sério.

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Ele apertoumeus ombros commais força, como se pudesse aumentarminhadeterminação.Observeiumagotadesuorescorrerdalateraldoseurostoparaopescoço.—Sophie,vocêpodeseconcentrar,porfavor?—Ei,cara,achoqueelaentendeu.Alextirouasmãosdemimemeafastei,foiquandoviNicparadobemao

ladodele.NicestavaolhandoparaAlexdomesmojeitodeantes,umolharquedizia“nãoconfioemvocêetalvezqueiramatá-lo”,maserabemmaisdepertodessavezemuitohostil.—Estátãopreocupadoemperderqueprecisaescutarnossaconversa?

—retrucouAlex.Niclevantouumasobrancelha.— Está tão obcecado pelo jogo que você precisa assustá-la? Deixe a

garotaempaz.AlexavançouemNic;eleseramquasedamesmaaltura,masNiclevava

vantagem.—Gostodeganhareelatambém.— Aposto que Sophie também gosta de se divertir. Conhece essa

palavra?—Niccerrouoqueixo.—Deixeelaempaz.—Quemévocê,afinal?—irritou-seAlex.—Nãoconheceagente,então

porquenãoparadecuidardanossavidaevaicuidardasua?Nicnãosemoveu.Estavamquaseencostadosumnooutro,eeupodiaver

pelamaneiracomoAlexdesviavaoolharparaRobbieeFoxyqueeleestavapedindoreforço.NãoeraaprimeiravezquereparavanaposturadefensivadeNic, e entendi que sua desconfiança em relação a Alex era porminhacausa. Pela maneira como Nic olhava para Alex, parecia que ele estavatentandocavarumburaconatestadeAlex.—Meninos,relaxem!—Meenfieinoespaçoentreosdois,separando-os

comasmãos.Alexseafastou,masNicnãorecuoutãofacilmente.Euquasepodiasentiratestosteronasaindodosporosdele.—Vamoscomeçaressejogodeumavez,tá?—Tá.—OsdentesdeAlexestavamcerrados.—Tá.—Nicdeumeia-voltaesinalizouparaosirmãos.Elessereuniram

nalateraldaquadra.Millieseaproximoudemimebaixouotomdevoz.—AchoqueDomvaimechamarparasair.AlexeNicestavamseposicionandoparaoiníciodojogo.—Comovocêsabe?Umgritofoidadoatrásdenós;abolaentrouemjogoeNicconseguiua

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posse.—Eledeumuitoemcimademim.Epenseiqueeufossesemvergonha!

Dáparaverqueelenãoqueresperaratéodiadafestaparasaircomigo.Nicfezaprimeiracestaantesdeeutertempopararesponder.O jogo estava indo tão rápido que eumal acompanhava. Eu quase não

tocavanabolaeMilliesóquicavaabolaumavezantesqueLucaaparecessee a roubasse. Sempre que Nic passava por mim, eu sentia como se eledesacelerasse de propósito para que eu pudesse senti-lo encostando emmim, e esquecia que deveria estar marcando Luca. Na metade do jogo,estávamosperdendoporseispontos.No começo do terceiro quarto, Robbie passou a bola para mim— eu

estavaparadapertodacesta,semnenhumamarcação.Puleiparamarcar,masabola foi tiradadasminhasmãosantesqueeupudessearremessar.Ela saiu rolando depois queGino se atirou emmim. Eu teria voado paraforadaquadraseNicnãotivesseaparecidodonadaemeseguradopelascostas.Caíemcimadelecomumbaque.—Cuidado—disseele,ofegante,próximodomeupescoço.—Nic!—gritouLuca.—Atenção!Olheiparacimaa tempodeverumborrão laranjavoandodiretamente

paraminhacara.MinhacabeçacaiuparatrásbemnopeitodeNiceelemesegurouenquantoeudesmoronavaemcimadele.—Tuseipazzo!—berrouNicsobreminhacabeça.Lágrimas começaram a escorrer porminhas bochechas,misturadas ao

sanguequejorravadomeunariz.Umapequenamultidãosejuntouàminhavolta.—Desculpe.—EraavozdeLuca,maseunãoconseguiafocalizaroolhar

nele.—Maseugritei“atenção”.—Porquevocêpassouabolaparamimquandoorostodelaestavana

frente?—vociferouNicsobremim.—Porquevocêaestavaapalpandonomeiodojogodebasquete?—Vaffanculo!Eu não precisava entender italiano para adivinhar o que aquilo queria

dizer.Milliearrancouocoletequevestiaemepassou.Aperteimeunarizcoma

mão livrepara controlar o sangramento, tentandonão sentir o cheirodeanosdesuormasculinoentranhadonotecido.—Seráque todosvocês poderiamdarumespaçopara ela?—ordenou

Millie.Nic retirou as mãos da minha cintura e se juntou aos outros, que me

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encaravamcomvariadosníveis depreocupação—comexceçãodeGino,queacompanhavaosmovimentosdeumaborboletaeriasozinho.—Achaqueconseguecontinuarjogando,Sophie?—perguntouAlex.Nicseenfureceu.—Estáfalandosério,cara?Essafoiaúnicacoisaquepensoupradizer?—Qualéamerdadoseuproblema?—reagiuAlex.Antes que Nic pudesse replicar, Millie estava batendo os pés no chão

comoacriançadedoisanosmaisirritadadomundo.—Qualéadrogadoproblemadevocêsdois?Garotosimbeciscomessa

competitiçãoimbecil.Fiquemquietos,todosvocês!Sophieeeunãovamoscontinuarparticipandodejeitonenhumdessejogoinfantilcomumbandode neandertais esquentadinhos para que possam ganhar um troféuvagabundoidiota.Não temosmaisnenhum interesse emparticipardessapalhaçada.—Eu...—começouLuca.—Não!—Millielevantouodedoindicadoreapontoudiretamentepara

oolhodele como se estivesseprestes a furá-lo.—Nãoqueroouvirmaisumapalavradasuaboca.Setiveralgoadizer,podeescreveremumcartãoeenviá-loàcasadeSophiecomasfloresmaisbonitasqueodinheiropudercomprar.Epodedizercomosesentemuitoportersidoumidiotacompletoequasetermatadoela.Sophiepodiatermorrido.Entendeisso?Morrido!Etudoquevocêfezatéagorafoidaressesorrisinhoarrogante.Eunãoachonada disso nem um pouco engraçado, e fique sabendo que eu entendomuito de humor. Então por que não tira esse sorriso da sua cararidiculamente perfeita e aprende um pouco de humanidade, seu masterpríncipedababaquice.Eu não compreendia ao certo como as pessoas não estavam rindo do

nível ridículo de dramaticidade deMillie. Se eu estivesse com um poucomenosdedor,estariarolandonochão.—Mil...—tentouAlex.— Não, Alex! — gritou ela. — Também não quero ouvir as suas

desculpas.Dequelugarmesmovocêveio?Édifícilacreditarqueviemosdomesmo útero. Se não é homem suficiente para viver sem um troféu dementira enchendo seu ego, entãonão éhomemsuficientepara falar comSophie ou comigo. E o mesmo vale para todos vocês, idiotas. — Ela meseguroupelobraçoecomeçouameafastardetodomundo.—Nósvamosparaaarquibancada,ondetemsorvete.Efimdeconversa!Eupodiaverochoquenosolhosdeles;claramentehaviamsubestimado

Millie.Nicquasefaziaburacoscomosolhosnacabeçadoirmão.Seolhares

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matassem,Lucajáteriapartidodessemundo.—Vamosvoltaraojogo?—ouviAlexdizerenquantosaíamosdaquadra.—Possoficardeforaparaigualarojogo.—Meucoraçãodeuumsalto

comasugestãodeNic.— De jeito nenhum. Vamos terminar como está. Ainda sim, vamos

vencer.Alex,seuburro.

Depoisdojogo,Nicveiomevernalateraldaquadraenquantoeuapertavaum picolé fechado no nariz. Millie tinha ido procurar Dom para tentarsalvaraquelapaixonitenascentedoseusurtonaquadra.Alexhaviapartidoduranteumacessoderaiva,eLucadeviaestarpasseandoporaícomseutroféugigantedebaixodobraço.—Parabénspelavitória.—Valeu.—Nic se jogou aomeu ladona gramae levantouos joelhos,

passando os braços em volta deles. — Mas não acho que um troféu deplásticodesessentacentímetrosváfazermuitadiferençanaminhavida.—Vocêprovavelmenteteriaperdidoseeutivessecontinuadonojogo—

provoquei. Afastei o picolé e mexi o nariz para recuperar algumasensibilidade,aliviadaporparecernãoestarquebrado.— Novo em folha— disse Nic. Ele se aproximou para examinar meu

nariz mais de perto e pude reparar nas sardas no nariz dele. — Estáperfeito.—Qualéadevocêscomessanecessidadeincessantedemeatacar?—

perguntei.—Estãoatrásdemimoualgodotipo?Podiampelomenossermaissutis.—Deveseralgumacoisaemvocê.—Nicmelançouumsorrisomaroto.

—Geralmentesomosmuitodiscretos.—Quatrogarotosdiscretos.Sãopalavrasquenãocombinammuitobem

naminhacabeça.— Bem, na verdade não são apenas qua...— Nic interrompeu a frase

quandoalgoatrásdemimchamousuaatenção.Olheiporsobreoombro.No final da margem do rio, depois da última quadra, vislumbrei com

dificuldade uma figura de rabo de cavalo empurrando alguém de cabelolourocurtoatrásdeumasárvores.AlexeGino.Eradifícilveroqueestavaacontecendo,maspareciaqueestavambrigando.Nic levantou emum salto. Tentei acompanhar,mas ele eramuitomais

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rápidodoqueeu.Emsegundosele chegouao rio,desviouporentreasárvoreseafastou

Alex de seu irmão.Quando os alcancei, Gino estava deitado como corpodobrado,imóvel,apoiandoacabeçanasmãos.Aliperto,NicseguravaAlexnochãoeosdoistrocavaminsultos.Alex rolou o corpo de lado e chutou Nic, fazendo com que ele caísse

sentado.—Issonãotemnadaavercomvocê!—gritouAlexenquantoosdoisse

levantavam.—Você acabou de nocautearmeu irmão!— gritou Nic, partindo para

cimadeAlexeoagarrandopelos joelhos.Eleoatiroucontraumaárvorepequena,quesecurvoucomopesodosdois.—Parem!—Tentei afastarNicdeAlex,maselenãoqueria largar.Me

afasteibematempodeevitarqueAlexmeatingissequandoselançouparaafrente,cabeceandoNiceojogandodiretonalama.—Alex!—berrei.—Vocêenlouqueceu?—Oirmãodelequecomeçou!—EleseposicionousobreNic.—Vocês

sãoumafamíliadeladrõesimundos!Voltemparaolugardeondevieram!Niccuspiusanguenochão.—Nãofaledaminhafamília—ameaçouele.Nicselevantoucommuito

esforço,resistindoaosesforçosdeAlexdejogá-lodevoltanochão.Eleserecuperouelançouumsoco.Alexdesviou,fazendocomqueacertasseoar.Quando Alex o empurrou novamente, Nic nem se mexeu. Em vez disso,esticouosbraçosepuxouAlexparaummata-leão,jogando-omaisumaveznochão.EnquantoAlexxingavaetentavaselevantar,Nicenfiouamãonobolso

de trás da bermuda e tirou algo. Com um movimento, o objeto sedesdobrou.NicsegurouaquilocommaisforçaesecurvouporcimadeAlexatéqueosdoisquaseestivessemcomonariznochão.Eunãoconseguiaveroqueeleestava fazendo,maspercebiumbrilhonamãodeNicenquantoelemexiaoobjetoemmeioàbrigadosdois,egriteiquandopercebioqueera.—Nicoli,smettila!DeiumsaltoaoouviravozdeLuca.Eleapareceuatrásdemim,correndo

emdireçãoaoirmão,eagarrouNicpelopescoço,afastando-odeAlex.A cor sumiu do rosto de Nic ao ouvir o que o irmão sussurrava

intensamentenoseuouvido.Estudeiaspalmasdassuasmãos—ocanivetequeeleestavasegurandohaviasumido.Ali perto, Gino começava lentamente a voltar a si. Ele se levantou,

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massageandoanuca.Antesqueelepropriamenteanalisasseacena,quasemederrubouaocambalearemdireçãoàmargemdorioeaosseusirmãos.Alex também havia se levantado e tremia de raiva. Ele se lançou em

direçãoaGino.—Nempensenisso—disseLuca.—Apenasváembora.— Dois contra um não é justo — disse Alex, contornando os irmãos,

sendoquedoisdelesestavamcompletamenteforadeórbita.NicaindanãotinhaditoumapalavradepoisdetersidoafastadodeAlexporLuca,eGinoainda tinha dificuldades de se manter de pé. Eu podia ver que Alex osmedia, analisando seus ferimentos. — Da próxima vez, lute por vocêmesmo,Gino.Entreinomeiodosdois.—Alex,vaipracasa.—falei.—Nãoprecisapiorarasituação.Eleapertouosolhos,observandoNiceLuca,calculandosuasopções.E

então,comrelutância,elecedeu.—Certo.Vocêvem?—perguntouele.OlheiderelanceparaNic.Nãosemreceberumaexplicação.—Emumminuto.—Elesnãosãopessoaslegais,Soph—disseele,comavozconfusa.—

Porqueestádoladodeles?—Eujávou,emumminuto—repeti,tentandoignorarosentimentode

traiçãonorostodele.—Comoquiser.Estou indoembora.—Alexcomeçouaseafastar,mas

antesgritouumaúltimaobservaçãoaoseafastar:—Vocêdeusorte!Eunãotinhacertezadecomqualirmãoeleestavafalando.—Não—disseLuca.—Vocêdeusorte.Assim que Alex sumiu de vista, voltei minha atenção para os irmãos

Priestly.Nictinhadificuldadesemrespirareolhavaparaagramaànossavoltacomumaexpressãoindecifrável.Atrásdele,ocabelodeGinoestavatortoatrásdasorelhas,comoumcogumelodelado.Elemantinhaamesmaexpressãomalucaqueeu tinhavistonaquadra: agitadae sem foco. Lucameolhavacalmamente.—Estamos indoembora—declarou,comoseestivessesaindodeuma

festa,nãodeumabriga.—Quemerdafoiessa?—perguntei,ignorandosuainsolência.—Elemechamoudeladrão—disseGinolentamente,comoseestivesse

apenascomeçandoarecordar.Eleestavaclaramentecomumaconcussão,maseunãoconseguiadizeroquehaviadeerradocomNic,quepermaneciaestranhamentecalado,comosolhosparabaixo.—Eledissequeroubeino

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jogo.—Edaí?—perguntei.—Entãoeutivequecalarabocadele!—Elelevantouavozepercebisua

línguapresapelaprimeiravez.Deviaserodentelascado.Lucarevirouosolhos.—Relaxa,Gino.—Brigarnãoéamaneiracertadefazeralguémcalaraboca—falei,me

segurandoantesquedeixasseumseuidiota!escapar.PuxeiNicpelobraçoeosolteidasmãosdeLuca.Eleparoudeprestaratençãonagramaeolhoupara cima, o âmbar dos olhos reacendendo. Pelo menos pareceu notarminhapresença.—Sintomuitoquetenhavistoisso,Sophie—disseelecalmamente.—

Euestavatentandodefendermeuirmãoeascoisassaíramdecontrole.—Nãobrinca.—Estamos indoembora—repetiuLuca,sinalizandoparaNicsegui-lo.

—Vamos.OsolhosescurosdeNicestudavamoambienteenquantoeleseafastava.—Espere!—falei,seguindo-o.Elesevirou.— Acabei de ver você atacar Alex com um canivete. Não pode

simplesmenteirembora!Mesmo ao pronunciar as palavras, eu mal acreditava que aquilo era

verdade.Eratãoassustador.MasNicbalançouacabeça.—Não,nãousei.—Euvi—retruquei.—Vocêtirouumcanivetedobolso.— Você não sabe do que está falando — disse Luca sem se dar ao

trabalhodesevirarparamim.—Vamos,Nicoli.Nicfranziuatesta,preocupado.—Achoquevocêdeveterimaginadoisso,Sophie.—Eunãoimaginei—protestei.Nic não estava me escutando. Ele me lançou um olhar, aquele que os

adultos usam quando querem ser condescendentes — o olhar da sra.Bailey.—Vocêaindaestáconfusaporcausadoqueaconteceumaiscedo.Acho

queprecisadescansar.Eumeafasteidele.—Seimuitobemoqueeuvi.Agora eu estava com raiva. Uma hora ele estava sendo carinhoso e

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atencioso, e na outra estava apontando canivetes para o irmãodaminhamelhor amiga e tentando me convencer de que eu era louca quando oquestioneisobreoassunto.—Vamosconversarsobreissodepois,tá?—disseNic.Elemedeuumleveacenodecabeçaantesdesevirar.Fiqueiobservando

osgarotosseafastaremenquantomeperguntavaseestavaenlouquecendoouseeleeraomentirosomaisconvincentequeeujátinhavisto.EuestavaprestesavoltarparaasquadraseencontrarMilliequandoalgo

na margem chamou minha atenção. Segui o reflexo e, em um segundo,estava revirando a grama e segurando o canivete que eu tinha visto Nictirardobolso—entãoera issoqueeleestavaprocurando.Eeupensandoque a expressão cabisbaixa era sinal de remorso! Senti uma mistura detriunfo e náusea quando virei o canivete na palma da mão. Tinha 15centímetrosdecomprimentoeerabemafiado.Dobreiocanivete,fechandoalâmina.Ocaboerapesado,douradoe,nocentro,pertodabase,haviaumainsígnia desenhada. Seu contorno era preto e no lado de dentro estavaentalhada uma águia com arabescos ornamentados em vermelho-escuro.Asasassemiabertastocavamocontornodobrasão.Abaixodosímbolo,haviaumainscrição:Nicoli,12demaioQuasedeixeiocanivetecair.Essenãoeraumcanivetequalquer;eraum

canivetecaro,personalizado,comonomeeoaniversáriogravados,deduzi.Era importante; tinha um significado. E eu não fazia ideia do que aquiloqueriadizer.Virei o cabo para observar o pássaro dentro da insígnia. Eu sabia

identificarumaáguiae,aoolharpelasegundavez,percebiquenãoeraisso.Umgavião,talvez?Entãometoquei.Opássarodobrasãoeraumfalcão.Umfalcãorubro.Eutambémnãosabiaoqueissoqueriadizer,masagoratinhacerteza,bemláno fundo,dequeaquilosignificavaalgoparaos irmãose,certamente,significavamuitoparaNic.Entender tudo aquilomedeixoumeio empânico, porque eu sabia que

nãopodiacontrolarminhareação.Mesmoquemeutioestivessecertosobrea famíliaPriestly, eu aindanão conseguia controlar amaneira comomeucoraçãosaltavatodavezqueeupensavanosolhosescurosdeNic—haviaalgonele, algo que eunão conseguia ignorar. Eu estava começando a tersentimentos por alguém que andava por aí commachucados suspeitos eque carregava uma armapara qualquer lugar, uma armaque claramenteestavapreparadoparausar.Umaarmapelaqualeleiaprocurar,masnãoiaencontrar. Eu sabia que não podia confiar em mim mesma, e isso

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significavaqueteriaquefazero impossívelparamemanter longedeNic,aocontráriodoquequeriameucoração.

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CAPÍTULONOVE

AINVASÃO

MinhatentativadeficarlongedeNicPriestlyeseusirmãosduroupouco.Quando cheguei em casa domeu turno da noite, alguns dias depois, o

climahaviafechado,trazendoumadaspiorestempestadesdeverãodequemelembrava.Corriparaaportadecasanamesmahoraqueumtrovãorugiuportrás

das nuvens, levantando os pelos da minha nuca e trazendo uma novanuvem de chuva. Após a centésima busca minuciosa na bolsa, aceitei aderrota. Eu tinha esquecido as chaves e, como minha mãe estava emChicagoparaumaprovadevestidodeumacliente,euficariatrancadadoladodeforasabe-seláporquantotempo.Meutelefoneestavasembateria,entãoeunãotinhacomosaberquandoelavoltaria,enãoestavadispostaanadarenquantoesperavaporela.Levanteie, tentandonãoprestaratençãoemcomoachuvacolavameu

jeansaocorpo,corridevoltaparaarua,desviandodaspoçasnocaminho.Se eu corresse em uma velocidade um pouco abaixo à da luz, usando ocaminho mais curto, eu chegaria na lanchonete, a nove quadras dedistância, bem a tempo de encontrar Ursula e a nova garçonete, Alison,fechandoorestaurante.Setudodessecerto,euentraria,pegariaaschavesesairiaatempodenadardevoltaparacasa.Enquanto eu corria, o céu relampejava e rugia, me deixando cada vez

mais aflita. Não chovia assim desde a noite em quemeu pai foi preso, erelembrei, comumdesagradável embrulhonoestômago,de comoaquela

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tempestade foi aterrorizante. Desde então, fico apavorada com o som detrovões—elesetornouumsinalsinistro, indesejado.Eagora,nãomuitotempo após nosso fornecedor ter sido encontrado afogado na própriabanheira,aliestavaeu,completamentesozinhaepresanomeiodeumadasmaiorestempestadesdahistóriadeCedarHill.Quandoenfimentreinoestacionamento,meuspésnadavamdentrodos

sapatosalagadosemeunarizestavatododormente.Noladodedentrodalanchonete,as luzesestavamapagadas.Orestauranteinteiropareciaumacaixadeconcretoencolhidasobocéuescuro.Eutinhachegadotardedemais.Atravessei o estacionamento correndo, na esperança de me abrigar

debaixo da marquise na entrada da lanchonete. Pretendia esperar atempestadediminuiredepoisiriaatéacasadaMillie.Seeuconseguisseficarcomosolhosabertoseseachuvanãoestivesse

chicoteandomeucabeloparatodasasdireções,euteriavistoapessoaemfrenteàportaantesdedardecaracomela.—Ei!Prestaatenção!Cambaleeipara trás,deixandometadedocorpopara foradamarquise,

mas não sem antes perceber que a figura estranha estava encostada naporta e comasmãosnovidro, comose espiasseo ladodedentro.Ele seviroueabaixouocapuz.—Nic?—Sophie?— O que você está fazendo aqui?— perguntamos os dois ao mesmo

tempo.—Esqueciminhaschavesefiqueitrancadaparaforadecasa.Nicassentiu,pensativo.Espereiporumaresposta.Depoisdeumalonga

pausa,elerespondeucalmamente.—Euqueriavervocê.Outroraioiluminouocéuepudeverorostodele.Suaexpressãoestava

sériaeestranhamentevulnerável.Eraesquisitopensarquehaviaesseladonele;euoimaginavasempreperfeitoemuitoconfiante.Eperigoso,lembreiamimmesmacomumsusto.Concentre-se,Sophie.Instintivamente,deiumpassoparatrásefiqueiimóvelsobodilúvio.—Vocênãodeveriaestaraqui—falei,satisfeitacomafirmezadaminha

voz.—Nãoachoumaboaideiaagenteseencontrar.—Comoassim?—perguntouele,comavozderepentecautelosa.— Eu sei que você mentiu.— A memória do dia do torneio voltou e

estendi o braço para abrir minha bolsa. Peguei o canivete dentro dela:

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estavafechado,masaindaassimmeusdedostremeramaotocaremocabodemetal gelado. Eunão achavaque ele o arrancaria daminhamão,maspartedemimnãoestava convencidadisso; comoeupoderia ter certeza?Dei um passo para trás e segurei o canivete com mais força, tentandoignorarachuvaqueencharcavaminhasroupas.Nicseaproximou.Viseusolhossedesviaremparaminhamão,masele

nãosemexeupararecuperarocanivete.Comcuidado,euo levanteiparaqueficasseentrenósdois.—Reconheceisso?Elemeobservavacomuma imobilidadecalculada.Minhamãotremiae

não havia nenhum som além da sua respiração irregular e os trovõesdistantes.—Eentão?—perguntei.O silênciopermaneceu.A respiraçãodeNic voltou aonormal,mas sua

expressão continuava inalterada, determinada. Quando ele enfim merespondeu,pareciaestarusandotodaasuaenergia.Eleapertouoslábioseempurrouaspalavrasparafora,pronunciando-aslentamente,comosesualínguaotraísse.—Émeu.— Achei na grama depois que você foi embora. — Era um detalhe

desnecessário; ele provavelmente tinha voltado ao local para procurar ocanivete depois de eu ter ido embora. Mas me senti na obrigação delembrá-lo de que estava certa e ele errado por tentar me convencer docontrário.Elesabiaqueeusabiaqueocaniveteeradelee,quantomenoselefalava,maiseuficavadesconfiada.Baixeiminhamãoedeiumpassoàfrenteatéficarpertodele,abaixoda

cobertura,paraqueabarreiraentrenóssedesfizesse.Osombrosdeleseenrijeceram.—Porquevocêcarregaumcaniveteporaí?Eletentouganhartempopassandoamãonocabeloepuxandoasmechas

paratrásdasorelhas.Quandotirouasmãosdacabeça,deuumsuspiroderesignação.—Ocanivetefoiumpresentedomeutio—começouele,devagar,como

seestivesselendoumroteiro.—Eleéumpouco...excêntrico.Virei o canivete emminhamão, passando o polegar na insígnia com o

falcãoenainscriçãoembaixo.—Nomínimo—falei.—Naminha família,quando fazemos16anos,meu tiodáumcanivete

personalizado com o nome e a data de nascimento — continuou ele,

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parecendomais confiante.—Éalgoqueera feitopelopaidele,meuavô,entãoelefazcomagente.Éapenasumatradiçãofamiliar.—Mepareceumpoucoperigoso.—Nãotenteiencobrirojulgamentono

meutomdevoz.Nicdeudeombroseadmitiucalmamente.—É,achoquedáparadizerissosobreFelice.—Fe-li-tche—repeti, lutandoparapronunciarotche.Combinavacom

uma pessoa que gostava de presentear os outros com canivetes. — Euganheibrincosquandofiz16anos.Nenhumaarma,infelizmente.Nic passou o polegar pelo lábio inferior e me vi concentrada no jeito

comoeleomordiscava.Ignoreiopensamentoemeafasteideledenovo.Concentre-se.—Eu vi você pegar o canivete durante a briga com Alex. Você ia...—

Minhavozvacilou.—Oquevocêiafazercomisso?—Nada.—respondeuelecomtamanhaconvicçãoquequaseacreditei.

— Eu jamais usaria o canivete contra ninguém, muito menos contra oirmãodasuaamiga.Maspenseique,seeleovisse,seafastariaedeixariameuirmãoempaz.ElejátinhanocauteadoGino,mascontinuavaquerendobrigar. Ele é tão competitivo e estava tão irritado por termos ganhado.Estavaconvencidodequetínhamostrapaceado.Eusóqueriamelivrardeleantesquemeusoutrosirmãosaparecessem.—Entãovocêiaameaçá-locomumcanivete?—perguntei,incrédula.—Não,nãodessejeito.Eusó...eunãosei.Estavatentandoapartar...—

Eleinterrompeuafrase.PreciseilutarcontraavontadedeseguraroqueixodeNiceencará-loaté

que me dissesse a verdade. Aquilo era a verdade ou uma mentiraelaborada?—Eporquevocêcarregaisso?—Édifícildeexplicar—respondeuelecomaexpressãorepentinamente

envergonhada. — Acho que carrego o canivete comigo para me sentirprotegido,eparadefendermeusirmãosseforpreciso.Desdequemeupaimorreu tem sido difícil para nós. Ficamos diferentes. Eu fiquei diferente.Não conheço esse lugar nemas pessoas daqui, e estou tão acostumado alevarocanivetecomigoquedeixá-lonobolsoéquasenatural.Nãomesintoseguro sem ele. — Ele engoliu em seco, escondendo o sentimento queestavafazendosuavozfalhar.—Seiqueéumamaneiraestranhadelidarcomalgodessetipo,mastemmeajudado.Derepente,ocanivetepareciapesadonaminhamão.

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—Eunãosabia.Nicdeudeombros.Outro clarão iluminouo rostodele epudeverque

estava tomado pela lembrança. Ele deixou o corpo cair contra a porta,derrotado.Fossequalfosseojogodaverdadequejogamos,euganhei,emesentiaenjoadaporcausadisso.—Ascoisassãocomosão—murmurouele.Precisei desviar o olhar. Eu havia passado por aqueles mesmos

momentosde lutoe tristeza,haviamemartirizado,ea trocodequê?Porumpaiquemereciaestarondeestavaequeemalgummomentovoltariapara mim. Eu sabia que havia coisas a respeito de Nic que talvez otornasseminadequadoparamim,mashaviapartesdasuavidaqueelenãopodiamudareissonãofaziadeleumamápessoa.—Sintomuito.—Não,euquesintomuito.—Eleseendireitouabruptamente,comose

alguémacimadeleopuxasseporcordas,eavulnerabilidadedesapareceuda sua postura. — Fui um idiota de puxar o canivete, mas eu nãomachucaria Alex, prometo. Eu jamais faria isso. Por favor, diga isso paraMillie.—Não falei sobre o canivete com aMillie— falei emeu estômago se

reviroudeculpa.Eraumarevelaçãoetanto.—Ah—disseelecalmamente.—Alexnãoviuocaniveteeeunãoqueriapiorartudo.Alémdomais,ele

me mandou uma mensagem de texto depois pedindo desculpas pelasituação ter ficado tão complicada, então achei melhor lidar com o queaconteceu como um incidente isolado que saiu de controle. Quem sabevocês dois possam deixar isso para trás. — As palavras saíramrapidamente,emboladasumanaoutra.Derepentemeurostopareciaestarpegando fogo. Eu não havia contado tudo paraMillie. Eu era uma amigaruim?Ouapenasuma idiota?PorqueapesardesaberqueeunãodeveriagostardeNic,eugostava,eemboraestivessetentandoevitá-lo,euesperavavê-lo;paraqueeletivesseachancedeseexplicar.—Obrigado—disseelecomsinceridade.—Desculpaseassusteivocêe

se eumenti.Achei que seriamais fácil,masdepoispercebi quenão foi acoisacertaafazer.Quisviraquiparafalarcomvocê.—Entãoéporissoqueestáaqui?—perguntei,curiosasobreohorário

davisita.Nicsorriu,revelandoumafileiradedentesbrancosnoescuro.—Vocêmepegou.Enfieiocanivetedevoltanabolsaefuiespiarpelovidro,comoeletinha

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feito.Nãoporquepenseiquealguémpudesseestarládentro,masporque,derepente,estavamesentindoenvergonhadaenãosabiaoquefazer.—Vocêconsegueentrar?—perguntouele.Meu cabelomolhado balançava como pedaços de corda amarrados em

voltadaminhacabeça.—Todomundojáfoiembora.—Talvezeupossafazeralgumacoisa.—Podemeteletransportarparadentro?Eleinspirouoarirregularmenteeperguntoudeformatímida:—Querqueeutente?—Oteletransporte?—Não.—Elepigarreou.—Possotentarabriraporta,sequiser.—Oquê?Como?—Vocêmedápermissãoparatentar?Levanteiasmãosemfalsarendição.—Porfavor.—Vocêseimportadechegarumpoucoparatrás?—Vaimesmofazerisso?Elesemanteveimpassível.—Sim.Eu teria concordado com basicamente qualquer pedido dele naquele

momento, porque ali, sob a chuva, ele estava incrível. O cabelo castanhoonduladomolhadoeafastadodorostorevelavaoefeitocompletodassuasmaçãsdorostobem-delineadas.Deiumpassoparatrás.Nic ficou de costas paramim e retirou do bolso algo que parecia uma

canetatinteiro.—Oqueéisso?—Outropresentequevocênãoaprovaria—disseelecomsinceridade

antesdemoveroobjetoparapertodaporta,tirando-odaminhavisão.Pormaisoumenosumminuto,tudoqueeuviaerammovimentossutis

debraçoenquantoelemexianaporta—primeironafechadurasuperior,que cedeu com um leve clique, e depois a inferior, mais complexa, quedemoroumaistempo.Finalmente,elegirouamaçanetaeaportaseabriuànossafrente,chacoalhandoosinoacimadela.Fiqueidequeixocaído.—Vocêacaboudearrombaralanchonete.— Você me deu permissão. — Ele enfiou o que quer que estivesse

usando de volta no bolso e deu um passo para trás sinalizando que euentrassenafrentedele.—Vocêprimeiro.

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Euoencareiecorriparadesligaroalarmeantesquedisparasse.—Issoéumhábitoseu?—Não.—Elemeseguiadeperto.—Meus irmãoseeuprocurávamos

porobjetosquenosajudassemainvadirosquartosunsdosoutrosquandoéramosmais novos. Nunca fizemos nadamais grave do que uma guerraentre quartos. Foi uma sorte conseguir abrir a porta com uma chave defendavelha.Asfechadurasnãosãotãoresistentesquantodeveriam.Girei um interruptor para que uma fileira de lâmpadas embutidas se

acendesse,iluminandoocaminhoatéooutroladodalanchonete.—Evocêcarregaissoporque...—Euestavatentandoentrarnovelhoceleironacasadomeutiohojeà

noiteparausarcomodepósito.Nicme seguia com a atenção dispersa por toda a lanchonete, como se

fosseolugarmaisfascinantedomundo.—Minhamãecomprouummontedeantiguidadesparaacasanova,mas

elanãoquerqueagenteboteascoisasnolugaratéelavoltardeviagem,nasemanaquevem.Elaquerterminardepintaracasaantes.Entãoestamostentandoacharondeguardartudo.Entreiatrásdobalcãoecomeceiaprocurarminhaschaves.—Então suamãe estádeixandoqueos filhos cuidemdos seusmóveis

carosenquantoelaestáfora?Nic entrou atrásdobalcão aomeu lado, seubraço encostandonomeu

enquantoprocurávamospelaschavesladoalado.—Basicamente.—Não sei se estou completamente convencida dessa história,mas faz

maissentidodoqueminhasoutrasteorias.—Queteorias?Boteiodedonoqueixo,fingindorefletir.—Quetalsevocêforumfamosoladrãodejoias?Nicinclinouacabeçaparaoladoesorriu.Atensãodesapareceudosseus

ombros.—Issoatéqueémaneiro.—Ouquetalsevocêroubarvelhinhasenquantoestãodormindo?—Nadamaneiro.Pareideprocuraraschavesporummomentoeolheiparaele—osolhos

castanhos pontilhados, o contorno do lábio superior, a maneira como ocabeloformavaumcachoabaixodasorelhas.Haviaalgonebulosonele,algoobscuroeincerto.Issoacendiaemmimumaespéciedeinquietudequenãosentiahaviamuito tempo.Eume lembreidoavisodomeutioe,nãopela

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primeiravez,sentiopesosobremim.—Oproblemaéque...—faleicomavozembargada—nãoseioquevocê

é.Nicfixouseuolharnomeu.—Talvezissosejapartedagraça.Envergonhadademaispararesponder,volteiaprocuraraschaveseNic

caiunagargalhada.Tenhocertezadequeelenãoquisparecersedutor,masosomproduzidodasuarisadamisturadoànossaproximidadeestavamecausandoesseefeito.—Entãosuamãeviajouparaforadopaísedeixouosfilhossozinhosna

casa nova? — perguntei, tentando me distrair. — Ela parece confiarbastanteemvocês.—Elanãoconfia—disseNic,rindodenovo.—Ésóqueoamordelapor

móveisvenezianosémaiordoqueadesconfiançanoscincofilhos.Cinco filhos! Então eu não havia imaginado o Garoto Priestly Número

Cincoe,definitivamente,nãohaviavistonenhumfantasmanaquelanoite.— A gente tenta respeitar os pedidos dela durante as viagens —

acrescentouNic.—Embora, às vezes, fique tudoumabagunça e, claro, agentetambémbrigue,comotodososirmãos.—Eunãotenhoirmãos,entãoachoquenãoseimuitosobreessacoisade

rivalidade.Nicassentiu,pensativo.—Éumapena.Meusirmãossãomeusmelhoresamigos.—AtéoLuca?—Nãoresisti.Nicdeuumsorrisocompreensivo.—AtéoLuca.—Issoé...umasurpresa.—Elenãoétãoruim.Eumecontrolei.—Não há nadamais importante que os laços familiares— completou

ele.—Quandomeuavôestavavivo,elesemprediziaLafamigliaprimaditutto.Estáescritonoseumausoléu.Podrederico?Mecontroleinovamente.—Oqueissoquerdizer?—Famíliaantesdetudo.—Legal—falei,meiosemjeito.—Quandoopaidaminhamãemorreu,

escrevemosnalápidedele“Todoarrumadoesemnenhumlugarprair”.AexpressãoconfusadeNiceraprevisivelmenteadorável.—Eleeraateu—acrescenteitentandoexplicar.

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—Ah.—Aconfusãosetransformouemumsorrisoirônico.—Umateuengraçado.—Elemorreudamesmaformaqueviveu;fazendopiadasqueirritavam

minhaavó.Eu me agachei e comecei a mexer nos armários atrás do balcão —

encontreiaventaisdobrados,suéteresencardidoseumacalçadeginástica.Provavelmenteminha.Niccontinuouarevirarospapéisnobalcão.—Ogerentenãovaiseincomodardevocêestaraqui?—Minhaschavesnãoestãoaí—falei,abrindooutroarmáriosuperiore

tateando o lado de dentro. Não havia nada além de bolas de poeira ecanetasquebradas.—Deveestarnumdaquelescompartimentos.LevanteiosolhosparaNic.Elehaviapegadoumcardápioeoexaminava.—Elenãovaiseincomodar?—perguntouelemaisumavez.—Não.—Procureiemoutrocompartimentoesentiapontadosmeus

dedos tocarem algo pontudo e de metal. — Vou trancar tudo quando agentesair.Elenãovainemsaberqueestivemosaqui.Eu podia ouvir as folhas de papel sendo reviradas por Nic com uma

pausaocasionalantesdeguardá-lasnovamente.—Cadêele,aliás?Gireimeuombroparaalcançarmelhordentrodocantoapertado.—Quem?—Seugerente.—Umamigo delemorreu, então ele foi visitar a família.Não sei onde

estáagora.—Pareiquandoaexpressãodereprovaçãodomeutiomeveioà mente, vermelha e inchada. Uma pontada me fez perceber que sentiasaudadesdele.Torciparaquemeligasselogo.Fechei a mão em volta das chaves, sentindo-me vitoriosa ao tocar as

pontasmetálicas.Nichaviaparadodemexernospapéis.—Então,elesimplesmentenãovoltou?Euaspuxeiparafora—umachavedelatãodaportadalanchonete,uma

prateadadafechaduramenor,achaveroxadecasaeumchaveirobrilhanteno formatodaTorreEiffel, presentedeMillie.Deiumsalto ebalancei aschavesemtriunfoàminhafrente.—Achei!—Guardei-asnabolsa.OsorrisodeNicpendiamaisparaumlado,pressionandosuabochecha

direita. Estávamos a trinta centímetrosumdooutro, nãomais distraídospelabusca, e semnadaparaolharanãoserparanósmesmos.Sozinhae

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ensopadana lanchonete, fiquei aindamais cienteda suapresença e cadarespiraçãominhapareciamaisaltadoqueonormal.— Quer uma carona até em casa? — perguntou ele. — Ainda está

chovendomuito.Enãoqueroquevocêsederretaevireumapoça.—Estáinsinuandoquesouumabruxa?Nicfingiuumaexpressãohorrorizada.—Demaneiranenhuma.Souumcavalheiro.—Anãoserquandoestáderrubandogarotasdoladodeforadecasae

invadindolanchonetesnomeiodanoite—ressaltei.Penseiemacrescentarumcomentáriosobreocanivete,masmesegureiaopensaremseupaieemtudoqueeletinhaacabadodemecontar.Eleconcordou,cerimonioso.—Sim.Tirandoessascoisas.Hesitei.—Euadorariaumacaronaparacasa.Eu o segui de volta até o outro lado da lanchonete, concentrada nas

mechasmaisacastanhadasdoseucabeloescuro.Enquanto Nic se dirigia à porta com as mãos nos bolsos, ele voltou a

inspecionarorestaurante.—Estelugarétãoretrô.—Vocêaprendeagostar.— Comominha mãe— sugeriu ele com uma leve risada.— Aliás, às

vezesachoqueaindaestouaprendendo.— Sinto o mesmo por algumas pessoas.— Sorri pensando em Jack e

ignorando deliberadamente seu aviso. Ele pode ser difícil e imprevisível,masquandoentrana vidade alguém, entrade verdade, comoumapintaquefazpartedenós.—Apostoqueninguémpensaissodevocê,Sophie.Ah,apenasumasmilpessoasemCedarHill.—Vocêficariasurpreso.—Ficaria?—Nicsevirouparamim,demorando-sesobovãodaporta.—Temosqueir—murmurei,tentandomanterofoconascoisasqueo

faziamserumapessoaquestionávelenãonamaneiracomoelemedeixavasemarsódeolharparamim.SeNicficoudecepcionado,nãodemonstrounada.Emvezdisso,abriuo

zíperdocasaco.—Toma—disseele,estendendoocasacoparamim.—Vamosterque

correratéocarro.—Elemanteveobraçoesticado,vestindoapenasumacamiseta preta e jeans escuros. Nic tensionou o maxilar e senti que me

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desafiavaarecusarogesto.—Porfavor.—Bem,jáquevocêinsiste.Peguei o casaco e o enfiei nos ombros. Era pelomenosquatro vezes o

meu tamanho. Quando fechei o zíper e balancei as mangas para que seajeitassem sobre minhas mãos, a seriedade no rosto de Nic se esvaiu.Resistiaoimpulsoderodopiarparaqueocapuzondulassecomoumacapa.Nãosejaestranha.Niclançavaumsorrisomaliciosoparamim.—Quê?—Boteiminhasagorainvisíveismãosnacintura.—Nuncaviu

umratoafogadovestindoummoletomdecapuzgigante?—Nãoigualavocê.—Eleriu.—Bom,vocêprecisasairmais.—Éclaro.Desliguei as luzes, ativei o alarme e tranquei a porta, seguindo-o em

direçãoàchuvatorrencial.Fazia sentidoeunão tervistoaSUVdeNicmais cedo—elaestavado

outro lado do estacionamento, fora do alcance atémesmo da iluminaçãodos postes da rua. Corremos até o carro, cambaleando contra a força dovento que jogava o que pareciam ser baldes de água em nossos rostos.Quando chegamos, me atirei para dentro do carro, brigando com atempestade para fechar a porta. Eume joguei no bancomacio de couro,abraçando meu corpo enquanto Nic ligava o motor. Sem a proteção docasaco,eleestavabatendoosdentes.Passei o caminho ensinandoNic a chegar naminha casa e passando a

mãonocabeloparaquenão ficassearrepiadoporcontadaumidade.MalestavacomeçandoaterumaconversamaisrelaxadacomNiceamesentirumpoucomaisaquecida,quandoeleestacionouemfrenteàminhacasa.—Obrigadapelacarona.—Tenteinãoparecermuitodecepcionadapelo

fimdonossotempojuntos.Abriaportadocarroeelaseescancaroucomaforçadovento.—Sophie.—Nicseinclinounaminhadireçãoemeseguroupelaperna,

mantendo a parte inferior domeu corpono calor dedentrodo carro.—Espere.Meu coração deu um salto e me preocupei que fosse possível ouvir o

volumecomquebatiarepentinamente.Tenteinãorespirarmuitodepressaouencararsuasmãosemmeujoelho.Olheiparaeleeviquefixavaoolharnosmeusbraços,naminhacintura,nomeu—noseucasaco.—Ah.—Sacudiocabelonumatoderepreensão.—Oseucasaco.Comeceiaabrirozíper.

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—Não,nãoé isso—respondeuelecompressa,mantendoasmãosnomeujoelho.—Podedevolveroutrahora.Apoieiasmãosnomeucoloe,comarespiraçãoengasgadanagarganta,

esperei. Dava para ver que ele se preparava para falar outra coisa. Meucérebro começou a imaginar mil possibilidades diferentes e, de repente,meucoraçãoestavasaltandoparaforadopeitocomosetentasseescapar.Elerespiroufundo,comumaexpressãoincerta.—Ocanivete...—disseelecalmamente.—Podemedevolver?Fiquei arrasada, e algo dentro demim— algo que pareciamuito com

esperança—morreu.Mexinaminhabolsaetireiocanivete,largando-odeumasóveznamãoestendidadeNic.—Claro.Esqueci.Ele fechou a mão e uma centelha de alívio passou por seu rosto,

relaxando-o.—Obrigado.— Acho que é melhor assim. Imagine eu andando por aí com um

canivete. Com certeza não é amelhor ideia. Eu provavelmente cairia emcima dele ou algo do tipo. — As palavras jorravam para fora de formainvoluntária,emumtomalto, tentandodisfarçaromeuconstrangimento.—Euprovavelmenteacabariamematandooualgoassim,e,comcerteza,existem maneiras menos vergonhosas de morrer. — Dá para ser maisconstrangedor?Eumecontraí, encabuladaeentão saído carroantesquepudessepiorarasituação.—Obrigadaportudomaisumavez.—Sophie?—Nicseesticoupelobancodocarona,sério.—Pode fazer

umacoisapramim?—Oquê?—Nãofiquepensandoemmaneirasdemorrer.—Podedeixar.Elerecuoucomumsorrisocontroladoefecheiaporta.Fiquei parada na chuva olhando o carro desaparecer no fim da rua. E

então pensei no garoto com amãomachucada e canivete que acabou dearrombara lanchonetedomeupai,emepergunteiporqueeuestavatãotristeemvê-lopartir.

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CAPÍTULODEZ

OARTISTA

HaviaapenasumacoisaaserfeitacomocasacodeNic.— É perfeito! — comemorou Millie quando liguei para ela na manhã

seguinteparacontartudo.—Vocêpodeusarissocomodesculpaparairàcasadeleeconvidartodomundoparaafestanosábado!Por causa da briga com Alex, Millie não era a maior fã de Nic, mas

também não era do tipo que guardava rancor. Como “garotos são assimmesmo”, ela decidiu que viamuito potencial nele e que Nic com certezatinha que ser convidado para a sua festa. Eu podia imaginarmuito bemcomoAlex reagiriaaoverNic,masMillieestavadecidida.Alexnãopodiavetarosconvidadosdela.Aindamaisquandohaviatãopoucos.Alémdisso,elaseinteressavamuitopelaminhapatéticavidaromântica.

Como Nic era novo em Cedar Hill, e obviamente desconhecia o passadorecente domeupai,Millie o via comouma rara oportunidadede alguémlivredejulgamentosparaeumeapaixonar.Seeleerabomounãoparamimnãoeraaquestão.Issoapenasadeixavamaiscuriosaarespeitodeleedasua família, especialmente agora que Dom tinha convidado ela para sairdepoisdotorneiodebasquete.— Vou encontrar Dom às seis horas, então me liga mais tarde se

descobriralgoimportante—guinchouelaaotelefone.—Enãoseesqueçade tirar fotos, se conseguir entrar na casa. Vocême deve essa. Sou novademaisparamorrerdecuriosidade.DecidinãodizeraMilliequenãotirariafotosclandestinasdacasadeNic

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semoconhecimentodele.Imaginareuoconvidandoparaumafestajáeraassustadorosuficiente.Eseelerecusasse?Eseaceitasseedescobrissenafestaquesouumapáriadasociedade?—SósevocêdescobriralgosobreacicatrizdoDom—retruquei.—Essaéfácil.Boasortehoje.Vocênãovaisearrepender!—comentou

elaalegrementeantesdedesligar.Quando finalmente cheguei àmansão Priestly, eu estava uma pilha de

nervos.Restauradaaoesplendororiginal,acasapareciasaídadeumcontode fadas. Sob o sol forte, as janelas brilhavam comodiamantes e, semasheras que encobriam as paredes, todo o exterior era de um imaculadobrancoreluzente.Comoexatamenteeuiafazeraquilo?Oi,obrigadapormeemprestarseu

casaco.Aliás,porquenãovaiàfestadaMillienosábado?Porcoincidênciaémeuaniversário,masamaioriadaspessoasvaimeignorarporquemeupaiéumassassino,oquetecnicamentemetransformaemfilhadoDiabo.Então,eaí,vocêvai?Sutil.EseNicnãoestivesseemcasaeLucaatendesseaporta?Oi,digaparaoseuirmãodarumpulinhonacasadaMillienosábado,mas,porfavor,vocênão.Vocêépéssimo.SeGinoatendesse,eupoderiadistraí-locom um objeto brilhante e torcer para que Nic aparecesse em algummomento.Comocasacopenduradonomeubraçoemeuspensamentoscalculando

tudoquepoderiadarerrado,toqueiacampainha.Quandonãoescuteioecodoladodedentro,useiaaldravaparabateràporta.Esperei.Batidenovo.E agora? Eu não havia pensado em nenhuma ideia brilhante caso não

houvesse ninguém em casa. Será que deveria deixar o casaco na porta eesqueceressahistóriatoda?Queanticlímax.Distraída,fuicaminhandopelalateraldamansão,ondeaentradadecarrosdavaemumcaminhoestreitoquecontornavaacasa.Quandochegueiaos fundos,parei, surpresa.Nãoseioqueeuesperava

encontrar ali—umaquadrade tênis ouquemsabeumapiscina—,mascertamentenãoeraaquilo.Atulhadoemalcuidado,ojardimmostravaumadiferença gritante em relação à fachada. Pelas laterais, arbustosemaranhados estavam pontilhados de rosasmurchas. A grama batia nosmeus joelhos e era de um verde-acinzentado ressequido. No fundo dojardim destruído estavam os destroços de uma fonte com adornos depássaros entalhadosemgrandesblocosdepedra;no centrodogramado,umagrandemesademadeiraseequilibravanastrêspernasrestantes.Atrásdemim,portasduplascomvitraisdavamparao jardim.Estavam

entreabertas.

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Empurrei as portas de leve com as pontas dos dedos, empurrando asfolhas,eespieiointeriordeumacozinha.Asparedeseosarmáriostinhamumtomdebrancoimpessoaleochãodemadeiraclaraparecianovo.Umfogãoàlenhadeferroiadochãoaotetocheiodeluminárias.—Quemé?—Umavozmusicalsurgiudointerior,interrompendominha

bisbilhoticecomumsusto.Hesitei.Seeunãoconheciaavoz,avoztambémnãomeconhecia,então

dequeserviriadizermeunome?—ÉaSophie—disseeu,umsegundodepois.Nenhumaresposta.—Sóqueriadevolverumcasaco.Abri um pouco mais as portas. Uma parte maior da cozinha surgiu à

minhafrente.Nasparedesbrancasestavampenduradasdiversaspinturasaóleo emolduradas. Identifiquei uma delas como a obra de Da Vinci, Avirgemamamentandoomenino—eraapinturafavoritadaminhaavó—,emboranãoreconhecesseasoutras,tambémreligiosas.Eununcaviraumacasacomaquelaquantidadedearte—eraquasecomoumagaleria,ouumaigreja, e me vi intimidada por todo o esplendor. Pensei em pegar meutelefone e tirar uma foto escondida paramostrar àMillie,masmeu ladoracionalmeimpediu.Comcautela,entreinacasa.Nomeioda cozinhahaviauma ilha com tampodemármore, edo lado

opostoumamesadevidro cobertade folhasdepapel e lápisespalhados.Umgarotoestavasentadoàmesadesenhando.—Olá— falei novamente, embora fosse óbvio que ele tinha notado a

minhapresença.Ele levantou a cabeça e seus olhos azuis penetrantes de imediato

encontraramosmeus.Analisei-osefranziocenhoenquantomeuestômagorevirava.—Luca?Ele não respondeu. Apenas pousou o lápis e permaneceu sentado em

umacontemplaçãosilenciosa,oscotovelosnamesaeoqueixorepousadologoatrásdosdedosentrelaçados,comoseestivesserezando.Fiqueisemar.—Ah!NãoeraLuca.Eraogarotodajanela.Exatamentecomonaquelaprimeira

noite, seus olhos cresceram, mas dessa vez pelo reconhecimento. Emcontrastecomapelecordeoliva,osolhosdeleeramabsurdamenteazuis.Eram como os de Luca,mas algo parecia diferente— erammais ternos,

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talvez.— Estou reconhecendo você — comentou com sua voz agradável e

melódica.Fuiemdireçãoaele,emcompletasurpresa.Eletinhaosolhosazuisde

Luca, assim como a pele dourada e o cabelo preto. Porém, enquanto ocabelodeLucaerabagunçado,commechascaindonosolhos,odogarotoeracurtoearrumado,penteadoparatrás,revelandooqueixopontudoeasmaçãs do rosto marcadas. Ele também era mais magro e um poucoencurvado. Eu não conseguia dizer se era mais velho do que eu— nãoaparentavaser,masasemelhançacomLucamefezpensarquetalvezfosse.—Vocêestavaolhandoparaminhacasasemanapassada.—Eleabaixou

asmãoseasrepousounamesa,masseusolhospermaneciamcautelosos.Parei quando cheguei à mesa, rondando incerta. Naquele momento

entendiporqueelenãosemoveunaminhadireçãoeporquenãojogounotorneiodebasquetenasemanaanterior.Eleestavaumacadeiraderodas.—Sim,eraeu—respondi.Tenteinãoencará-lo,maselesepareciatanto

comLucaeaomesmotempotãodiferentequeeradifícilacreditar.—Eusóestavacuriosa.— Acho que você caiu de forma bem espetacular logo depois —

acrescentouele,masnãodeformadura.—Issoédiscutível.Naverdade,seuirmãotrombouemmim.Elesorriue,derepente,pareceumuitojovemebrincalhão.—Esperoqueeletenhapedidodesculpas.—Elepediu...nofimdascontas.—Chegueiumpoucomaispertoatéque

minhasmãostocassemamesa.—Vocêseparecetantocomele.—Eramosolhos, tão sobrenaturais. Era surreal paramim que pudessem existir emdois rostos diferentes.—Querdizer, como Luca.Não tive a intençãodeficarencarando,masérealmenteincrível.— Bem — disse ele —, podemos até ser gêmeos, mas não somos a

mesmapessoa.Fiqueiapenasparcialmentechocadacomaquelarevelação.Emboraeles

tivessem semelhanças impressionantes, todos os irmãos Priestlycompartilhavam os mesmos traços, e aquele garoto tinha uma aura deinocênciaqueLucanãotinha.Elepareciadoceeimuneaoquetransformouseuirmãoemumidiota.—Primeiro,elenão temmetadedaminhahabilidadenumacadeirade

rodas.—Eledeuum tapana rodaabaixoda suamãodireita e abriuumsorrisoirônico.—E,segundo,soumaisinteligente.—Nãoduvido.—Elepareceusatisfeitoporeuconcordar.—Meunome

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éSophie.Maseujádisseisso.—Olá,Sophie.—Osorrisodeleeraumavisãoetanto.EpensarqueLuca

tinhaopotencialdeteramesmabelezaeosmesmostrejeitos,masescolhianãousá-los.—MeunomeéValentino.Ele se virou para frente e pegou o lápis de novo, girando-o entre o

indicadoreopolegar.Minhaatençãoseguiuomovimentoefiqueisemarquandopercebiasfolhasdepapelabaixo.Tenteianalisartodasdeumavez.—Queincríveis.Valentinoespalhouosdesenhoscomumacasualidadesemlógica.Eram

maravilhososeele comcerteza sabiadisso.Emais, ele tinha queadmitirseu talento e concordar comigo. Eu achava meu pai bom por saberdesenharoMickeyMouse,masaquelesdesenhoseramoutrahistória.Passei os olhos pelos desenhos e parei quando encontrei um perfil de

Nic. Desenhado a lápis, sombras cuidadosas contornavam a sobrancelhafranzidaeeramreforçadasabaixodasmaçãsdorosto.Os lábiosestavamentreabertos, o cabelo em cachos abaixo da orelha e o olhar fixo,concentradoemalgoforadafigura.—Vocêfaztudoparecertãoreal.OlheiderelanceparaValentino.Elemordiaolábio,pensativo.— Tento encontrar as características que nem sempre se mostram à

primeira vista — explicou ele. — As características que definem quemsomosecomonossentimosdeverdade.Tentoolharsobasuperfície.A voz dele começou a fervilhar de entusiasmo e asmãos criaram vida

própria.— A vida é tão complexa que mal conseguimos ser a pessoa que

deveríamos.Emvezdisso,usamosmáscarasecriamosbarreirasparalidarcomomedoea rejeição,oarrependimento,a ideiadequealguémtalveznão nos ame como somos em nossa essência, que alguém talvez nãoentenda nossas motivações. Quero estudar a verdade da vida, não asuperfície.Hábelezaemtodaparte;mesmonaescuridãoháluz,eéaformamaisrara.Vicomooentusiasmoiluminavaorostodele.— Não conheço ninguém que fale coisas assim — admiti. — É...

encorajador.—Éaverdade—disseelecomsimplicidade.—Possoverosoutros?Ele repousouo lápis edeslizou a cadeirapara trás.Apoiei o casacona

cadeiraaoladoemeinclineisobreamesa,apoiando-mesobreasmãos.Havia um desenho de Gino e Dom jogando videogame; eles estavam

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sentadosnochãocomaspernascruzadas,parecendocrianças.Segurandoos controles, eles riam um do outro, os ombros se tocando e as cabeçasinclinadasparatráscomosolhosvoltadosparaoteto.Osrostosdosdoiseram a expressão da diversão.Dombagunçava o rabo de cavalo deGinocomumadasmãos.—Éummomentoperfeito—suspirei.—Felicidade—disseValentinocalmamente,osolhosfixosnaimagem.VolteimeuolharparaoperfildeNic.Oqueixoestavafirme,aexpressão

concentrada.—EssaaíéDeterminação—acrescentouValentino.Ao ladododesenhodeNichaviaum retratodeumamulherdepé em

uma cozinha. Asmãos dela estavam apoiadas na lateral da pia enquantoolhavapelajanelaàfrente.Amulhereraeleganteepareciadespreocupada,usando um roupão longo que se arrastava até os pés. Raios de soliluminavam o rosto e uma mecha de cabelo preto caía pelas costas. Assobrancelhaseramacentuadas.—Ésuamãe?Eleassentiu.—Elaébonita—falei.—Elaestavairritada—disseValentinodesprovidodeemoção.Estendiobraçoepuxeiodesenhoseguinte.Luca.Eleestavasentadonos

degraus de uma entrada, usando um terno preto. Os joelhos estavamdobrados, servindo de apoio para os cotovelos, e os ombros curvadosfaziam com que ele parecessemenor, como Valentino. Ele olhava para ochão,observandoonada,epuxavamechasdocabelocomforça.Engoliemseco.Eradifícilolharparaaquelaimagem.ObserveiValentino

erepareiqueeletambémhaviadesviadoosolhos.—Dor?—pergunteicomcalma.—Luto—respondeuele.—Deveserdifícilolharporbaixodamáscara—falei,sentindoopeitode

repenteapertado.Valentinolevantouoqueixo.—Étãodifícilquantousaruma.Afastei as mãos e endireitei o corpo enquanto um sentimento

desagradável tomava conta de mim. Eu não queria mais olhar para osretratos. Era desconfortável olhar para os momentos mais obscuros daalmadealguémsemqueapessoasoubesse.—Vocêachaqueusamáscaras?—Estouusandoumaagoramesmo.—Valentinosorriugentilmente.—

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Nósdoisestamos.—Éumpensamentotriste.—Sim.Masàsvezesmeperguntoqualseriaaalternativa.Imaginesenão

tivéssemossegredos,nadaaesconderdaverdade.Esetudofosseditonahoraqueconhecêssemosunsaosoutros?A ideia ficou na minha mente. Olá, meu nome é Sophie. Meu tio é um

maluco paranoico, meu pai está preso por assassinato e minha mãe seescondenotrabalhoparanãoterquepensarnoseucoraçãopartido.Tenhoquasecertezadequeprefirodesenhosanimadosàvidarealetenhoapenasuma amiga de verdade. Tenho pavor de tempestades e uma profundadesconfiança de gatos. Sou obcecada pela fofura dos bichos-preguiça e àsvezeschorovendocomerciais.—Seriaterrível—concordei.Valentino abriu um sorrisinho como se tivesse acabado de ouvirmeus

pensamentos.—Caosabsoluto.Assenti,convencida.Emalgumlugardentrodemimeuestavatentando

lutarcontraavontadedecairemprantos.Comosesentissemeuconflito,Valentinomeconcedeuummomentodeprivacidade.Eledesviouoolharecomeçou a arrumar os papéis em uma pilha deixando apenas o desenhoinacabado exposto. Era um homem de mais ou menos quarenta anos,vestindoumimpecávelternoescuro,quemeencaravadiretodopapel.Porum segundo pensei conhecer o tal homem, que talvez o tivesse visto emalgum lugar,masa sensaçãopassoueeumedei contadequeerao filhodele que eu conhecia. Ele era tão parecido com Nic que senti como setivesselevadoumsoconoestômago.Tinhaosmesmosolhosescuroscompontosmaisclaros,omesmonarizretoeosmesmoslábioscheios.Ocabeloeragrisalhoemalgumasparteseasentradasrevelavamumatestamarcadaporrugasdeexpressão.Orostoerasombrio.—Seriedade?—arrisquei.—Não—respondeuValentinosemlevantarosolhos.—Essedesenhoé

a Morte. — Assisti enquanto ele sombreava os cantos do desenho. —Desenho meu pai todos os dias para nunca me esquecer dele. Mas nãoexistemaisnadaqueeupossadescobrirsobreeleagora.Eleestácomosanjosenãoprecisamaisdeumamáscara.Tudoqueeleerasefoi.— Sintomuito— falei com gentileza. Foi realmente a única coisa que

pudepensaremdizere,aindaassim,nãoparecianemumpoucosuficiente.Valentinodeudeombros,conformado.—Não podemos impedir a inevitabilidade damorte. Ela chega de um

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jeitooudeoutroe,nofinal,noslevaparaomesmolugar.Sentirmuitopelamorteécomosentirmuitopelosolbrilharouachuvacair.Ascoisassãooquesão.Eu queria dizer a ele que tinha sorte de ser pragmático,mas não tive

chance. A porta se abriu atrás de mim. Primeiro, senti o perfume: eralevementedoce.—Valentino?—disseumavozmasculina,firmeegentil.Vireieviumhomemmagrodemeia-idademeencarandocomsurpresa.

Ele tinha a pele bronzeada e o cabelo mais prateado que já vi. Assobrancelhaseramtãoclarasqueeumalconseguiavê-las,maspelaformacomomarcavamatesta,davaparaperceberqueestavamerguidas.—Minhanossa—disseelecomumlevesotaque.—Olá.Eleveionaminhadireçãocomoumcabodevassourabem-vestido,coma

cabeçainclinadaparaolado.Eunãoentendiamuitoderoupasmasculinas,massabiareconhecerumternocaroquandoviaum.Eradeumtecidoriscadegize,porbaixo,eleusavaumacamisacinzabrilhanteeumlençodesedanopescoço.Seeleestavamorrendodecalor,nãodemonstrava.Eleestendeuamãoeeuocumprimentei;oapertoerageladoefirme.O

aromaadocicadoestavamaisforteagoraqueestávamostãopróximos;eraquase sufocante. Havia algo familiar no cheiro, mas eu não conseguiaidentificá-lo.—Evocêé?—perguntouele,comumlevesorriso.—MeunomeéSophieedeiumapassadaapenaspara...— É um prazer enorme — interrompeu ele, silenciando-me

educadamenteelargandominhamãodemaneiraautomática.Tentei não encarar as manchas vermelhas no rosto dele: não eram

exatamenteespinhas,maispareciampicadasdeagulha—difíceisdeverdelonge,mas impossívelde ignorardeperto.Pareciaqueele tinhacaídodecaraemumjardimderosas.— Por favor, desculpe minha intromissão. Espero não estar

interrompendoalgo.MeunomeéFelice.—disseele,pronunciandoo“tche”comumfortesotaqueitaliano.—TiodeValentino.Ocaradocanivete.Tenteinãodemonstrarmeudesprezo.—Nãoestáinterrompendonada—respondeuValentinoatrásdemim,

comumtoquedeindignaçãonavoz.Felicedeuavoltanamesacompassos largosegraciosos,deixandoum

rastrodoperfumeforte.—Nãosabiaquevocêstinhamtempoparafazeramigosnavizinhança.—Nãoéocaso,nemdelonge—respondeuValentino,deformaácida.—

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Sophieveioapenasdevolveralgo.Levanteio casacodeNic comouma formadealiviaraestranha tensão

quehaviasurgido.Feliceolhouparaocasacocomumaexpressãoraivosa.—IssoédoLuca?—Duvido—respondeuValentino.Felicebalançouacabeça.—Claroquenão—murmurouele.—Elesabesuasprioridades.Eu não tinha certeza se ele estava atacando amim ou aos outros três

irmãos.— É de Dom? — perguntou Felice com uma careta, como se fosse o

mistériomaisimportantedomundo.—Não.Eleestánumencontrocomaquelagarotadalanchonete.—Ah,sim,claro.Abriaboca,surpresa.EntãoelesjásabiamdaMillie?Anotíciamaltinha

24horas!Elesdeviamcompartilhartudo.Noentanto,nãofaziamamenorideiadequemeuera.—ÉdoNic—interrompi,completamenteinsultada.—Esbarreicomele

na lanchoneteontemànoite e elemeemprestouo casacoporqueestavachovendo.Felice enrijeceu e trocou um olhar de preocupaçãomaldisfarçado com

Valentino.—Nicolinãomencionouisso—comentou,recompondo-sedeimediato.Arespostameatingiucomoumsoco.Comoeles jápodiamsabersobre

Millieenãosaberabsolutamentenadasobremim?Nic,eraóbvio,nãomeconsideravaimportanteosuficienteparamencionarminhaexistência,nemporalto.Opensamentomefezsentirumaidiotaporestarali.—Bem,aquiestá.—Jogueiocasacodevoltanacadeira.Euobviamente

játinhadadoimportânciasuficienteparaele.—Queriaapenasdevolvê-lo,mascomeçamosafalarsobreosdesenhosdoValentinoemedistraí.—Ah.—Feliceapertouosombrosdosobrinhoeolhouderelanceparaa

pilhadepapéis.—Primorosos,não?—Sim—falei,desejandonuncateridoatélá.—Sabe—começouFeliceparaninguémemparticular—,andeilendoas

coisas mais incríveis sobre sensibilidade artística e sua conexão comgrandes tragédias.— Ele se afastou de Valentino e começou a rodear amesa.—Vocêsabiaquemuitosartistasecompositoressãoconhecidosporteremcriadoseusmelhorestrabalhosapósgrandestragédiaspessoais?Ele não esperou uma resposta e continuou a caminhar pela cozinha,

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gesticulandoenquantofalava.— Veja o exemplo de Carlo Gesualdo, um famoso príncipe italiano e

gênio da música. Ele assassinou a mulher e o amante na própria cama,mutilouoscorposedepoisospenduroudecabeçaparabaixodo ladodeforadopalácioparaquetodospudessemver.EentãocompôsalgumasdasmúsicasmaispoderosasepesadasdoséculoXVI.Valentinosemexeunacadeira.Feliceparoudegesticulareseconcentrounaminhareação.—Oqueachadisso?Tenteinãopensaremcomomeuplanotinhadadoerrado.—Meparecequeatragédiadessecompositorfoicriadaporelemesmo

— arrisquei, desejando silenciosamente desaparecer em um buraco nochãoeatravessarocentrodaTerraatéchegaremcasa.—Então,nãotenhocertezasevocêdeveriaconsiderarahistóriacomoalgoqueaconteceu.—Gostadedebater,possover.—AexpressãodeFelicesealegrou.—

Mas certamente pode concordar que ele foi pressionado pelas ações damulher a calcular uma retribuição precisa. A punição era esperada pelasociedade, mas ter que cometer o assassinato talvez tenha sido a suatragédiapessoal.—Mas certamente ele não precisavamatá-la.— SeMillie pudesseme

ver, debatendo as complexidades de um assassinato no século XVI. Tudoisso,mais o papo das lápides, emmenos de 24 horas. O calendário diziajulho,masestavacomeçandoaparecerHalloween.— Bem, a esposa dele foi infiel e, naquela época, infidelidademerecia

umapuniçãoalta.—Tãoaltaquantoassassinato?—Acreditoquesim.CruzeiosbraçosofendidaportodasasmulheresdoséculoXVI.—Nãoconcordoqueatraiçãodelajustifiqueumapuniçãoassim.—Ah!—Felicelevantouodedoindicadorcomoseacabassederesolver

umenigma.—Masaosaberqueapuniçãocriadaporelefoioqueolevouaseulegadomusical,talvez,emnomedealgomaior,sejajustificada.Nofimdas contas, acho que fez domundoum lugarmelhor. E isso com certezadeveservircomojustificativa.—É...—comeceideformadesajeitada.Euestavaficandoconfusaesem

dúvidashaviaultrapassadomeusconhecimentos.—Sóachoessahistóriatodaumabizarricecompleta.—Sim—reforçouValentino,pigarreando.—Ébizarra.Assimcomoessa

conversa.

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Felicedispensouocomentáriocomumacenodamão,prestandoatençãonapinturaaóleoatrásdenós.—Masmeupontoéqueamúsicaficougloriosa.Vocêdeveconsiderara

possibilidadede haver uma relação inversa, ou seja, um ato repreensívellevar a uma conexão mais profunda com a energia criativa e, emconsequência,alindascomposições.—Hitlereraumartistaantesdecometertodasaquelasatrocidades.—

Essaeraaúnicacoisaqueeuhaviaabsorvidodaauladehistória;ejáqueestávamosbatendoumpaposobreassassinato,porquenão incluirHitlerna conversa? O dia já estava um horror mesmo.— Então não acho querealmente possa afirmar que o assassinato leva alguém a ser um artistamelhorouvice-versa.Eu queria acrescentar algo como Então não saia por aí matando sua

esposa,masacheimelhornão.Felicebateupalmas.—Mas não é fascinante? Que duas partes da psique possam coexistir

dessamaneira?— Pode haver luz na escuridão— disse eu, repetindo as palavras de

Valentino.Valentinoassentiucomgentileza,maseupodiasentirseuincômodo.As

mãosdele apertavama cadeira com tanta forçaque aspontasdosdedosestavambrancas.Ah, parentes esquisitos. Era adorável que Nic e eu tivéssemos tios

ligeiramentemalucos.Quemsabeumdiapoderíamosapresentá-los.— Certamente! — respondeu Felice, após uma pausa, ao meu lema

emprestado.—E,àsvezes,umcaminhodeescuridãopodelevaràluz.Passei o peso do corpo para o meu outro pé, desconfortável. Ele me

confundiudenovo,maseucomeçavaaentenderporqueeleachavaumaboaideiacomprarcanivetesparaossobrinhos.—Achoqueéumalongadiscussão.OtelefonedeFelicetocou,preenchendooambientecomumaópera.Ele

fechou os olhos e curtiu amúsica antes de finalmente tirar o celular dobolsoeatendê-lo.—Ciao,Calvino!—Elecobriuaparte inferiordotelefone.—Medeem

licençaumminuto—sussurrouantesdesairdacozinha.Fiqueiolhandoenquantoeleseafastava—Bem,eleébem...intenso.Quandomevirei,aexpressãodeValentinoeraindecifrável.— Sophie— falou com uma voz cansada.—Obrigado por devolver o

casacodoNic,masprecisosersincerocomvocê.Elenãogostariadevê-la

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aqui.Pareciaqueeutinhalevadoumtapa.—Oi?—Nãoqueromagoarvocê—continuouelenomesmotomapaziguador.

—Masestamosnomeiodeumassuntofamiliarmuitoíntimo.Eleestava falandosobreopai?Amortedeledeviasermaisrecentedo

queeutinhaimaginado.—Estouindoembora—engoliemseco.Valentinosorriu,pesaroso.—Porfavor,nãoleveparaoladopessoal.—Tudobem—menti,virandoascostasparaeleemeapressandopela

cozinha. Meus olhos avistaram umamoldura preta à esquerda da porta.Estava pendurada no centro da parede e era impossível ignorá-la. Noquadro havia amesma insígnia do canivete deNic; fundo preto com umfalcãorubronocentro.Abaixodobrasão, lia-seemvermelho:La famigliaprimaditutto.Famíliaantesdetudo.EraafrasedoavôdeNic,lembrei.—Ésóqueotiming...—continuouValentinodelonge.Senti meu corpo todo formigar e não tinha certeza do motivo. De

repente,tudopareciatãointenso.Fecheiaportadacozinhaatrásdemim,sentindoosanguedeixarorosto.Eumaltinhachegadoaofinaldoquarteirãoquandoalguémmeagarrou

pela camiseta. Cambaleei para trás e bati em alguém pequeno erechonchudocomumlevebaque.Gireiocorpo,tentandomedesfazerdaquelapegadasuspeita.—Sra.Bailey?—Opavoremminhavozmerevelouumanovanotaque,

atéentão,eunãosabiasercapazdeatingir.—Oqueestáfazendo?Avelhafezumacaretacomosetivesseacabadodechuparumlimão.—Possoperguntaramesmacoisaavocê,PersephoneGracewell.Oque

vocêpensaqueestáfazendo?—Estouindoparacasa.Meuturnonalanchonetecomeçaemumahora.

—Fecheiasmãoscomforçaparanãoatacá-la. Issoeraaúltimacoisadequeeuprecisavadepoisdeumdiacomoaquele.—EmeunomeéSophie!—Euvivocêentrarnaquelacasa—revidouela.—Faleiparavocêficar

longe dessa família. Ficou tanto tempo lá dentro que quase chamei apolícia!—Estáfalandosério?Elaenrijeceuocorpo.—Nãotemlidoosjornais?—Doqueestáfalando?

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—Estoufalandodediversosdesaparecimentoseduasmortesestranhasnasúltimasduassemanas;todoserammembrosdessacomunidadeevocênemreparou.Abraosolhos,Persephone!— Estão abertos! — Ou pelo menos eu pensava que estavam.

Obviamente,euprecisariafazerbomusodoGoogle.A sra.Bailey continuava tagarelandocomodedoapontadoparaminha

cara.—Aspessoassimplesmentenãoseafogamnaprópriabanheira,sabia.E

tambémnãocaemdetelhadossemquerer!— O que está querendo dizer?— perguntei, cruzando os braços para

afastarofriosúbito.Asra.Baileybaixouotomdevoz.— Estou querendo dizer que há algo de errado naquela casa e você

deveriaficarbemlongedelá.Não fiz questão de esconder minha irritação. Mais um dia, mais um

boato.—Nãopodesairporaídizendoessetipodecoisa,sra.Bailey!—Háumaescuridão—sibilouela,resoluta.Recomeceiacaminhar,apressandoopasso.Assimelaprecisariacorrer

parameacompanhar.—Édor!Elesestãodelutopelopai.Asra.Baileynãoparecianemumpoucosurpresacomaminharesposta.

Pelocontrário,elademonstroudesdém.Fiqueiboquiaberta.—Vocêachaengraçado?—Aquelehomemmereceestarondeestá.Pareibruscamente.Elamealcançou,quasesemfôlego.—Oquedisse?— Escute com atenção, Persephone.— Elame puxou pelo braço para

quepudessecochichar.—Aquelehomemmereceestardebaixodaterra.Eseaquelesgarotosforemminimamenteparecidoscomele,entãomerecemomesmodestino.Eu a encarei por um bom tempo,meus punhos cerrados pendendo ao

lado do corpo, respirando fundo. Eu estava tentando acreditar nela,mascomominhasemoçõeshaviampassadoodiaemumamontanha-russa,eusóqueriaestrangulá-la.Eraesseo tipodecoisaqueela falavasobremimpelasminhascostas?Aopiniãodelasobremeupaisemprefoibemóbvia.—Comopodedizeralgoassim?—questionei.Asra.Baileyolhouporcimadoombro,atordoada.

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— Persephone — sussurrou ela entre lábios tremidos. — Tem ummotivoparaaquelehomemtersidochamadodeCeifador.Ceifador.Umenjootomoucontademimesentiaspernasficaremfracas.—Oqueissoquerdizer?—gaguejei.—Oqueachaquequerdizer?—perguntouela.—Andeipesquisandoe

descobriqueopaideleseraumhomemmuitoruim.Duvidoqueosgarotossejammuitomelhores.Vocêprecisaconfiaremmimquandodigoquedeveficarlongedeles.Nãopossodizernadaalémdisso.Mas que droga isso queria dizer? Essa velha tinha um limite diário de

besteiras que podia espalhar? Eu a observei, receosa. O que ela poderiaganhar dizendo isso?Mas, então, o que ela ganhava dizendo tudo o quedizianormalmente?Elaerafamosaporfazerdramaeporespalharboatosinventados, e eumeperguntavaquantaspessoas elanão teria alertado ameurespeito.Nicnãoeraumapessoaruim,eutinhacerteza.E,aliás,nemseus irmãos.Eles jogavambasqueteevideogames. Implicavamumcomooutroedavamemcimadegarotas.Nãoerajustojulgá-lospelareputaçãodo pai. Eu entendia bem do assunto e não ia cometer omesmo erro detodos os meus antigos amigos. Ainda mais quando o pai de Nic já nãoestavamaisentrenós.Volteiaandar.Asra.Baileyapressouopasso.—Eusóquerooseubem.—Tábom.—Vireiacurvaapertandoopasso,naesperançadechegar

maisrápidoemcasa.—Agradeçoapreocupação.—Dequalquerforma,oqueestavafazendonaquelacasa?Pormaisqueeunãoquisesse alimentar seuvício, acheiquea verdade

talvezadeixassequieta.—Estavadevolvendoumcasacoquepegueiemprestado.—Vocêestácomumcheiroestranho.—Valeu.Elacomeçouamefarejar.Pareinovamente.—Oqueestáfazendo?— Cada um dos meus seis sentidos é altamente desenvolvido. Estou

tentandodescobrirquecheiroéesse.LembreideFeliceeocheiroenjoativodele.— É doce? — perguntei, levantando a mão que eu havia usado para

cumprimentá-lo e cheirando-a.Meusdedosainda tinhamum levearoma,masnãoera tão fortequantoasra.Baileyafirmava.Talvezeu tivesseme

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acostumado.— Sim— disse ela, pegando minha mão e a cheirando. Seu rosto se

apertou,concentrado.—Éumperfumenovo?—Nãoestouusandoperfume.— Ah — exclamou ela após um segundo. O tom na voz era de uma

presunçãocompleta.—Euseioqueé!Cruzei os braços na altura do peito fingindo impaciência, mas um nó

geladojáhaviaseformadonabocadomeuestômago.—Oquê?A sra. Bailey arqueou a sobrancelha de forma incriminadora,

prolongandoaresposta.—Mel.

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CAPÍTULOONZE

ONOME

O resto do dia passou como um borrãomonótono. Tio Jack finalmenteligouparaalanchoneteparasaberdemim.Elemedeuonúmeronovo,masantes que eu pudesse falar com ele sobre qualquer coisa, a conversaacabou.Passeiorestodoturnotentandoentendercomexatidãooqueeleestavafazendoeporqueaindanãotinhavoltadoparacasa.TambémfiqueipensandonomeleseocheiroestranhodeFeliceestavaligadoaovidroqueencontreiaoladodocaixa.Ursula andava trabalhando em turnos de 12 horas para preencher o

vazio de competência deixado pelo meu tio e por Alison e Paul — quepassavammaistemposepegandonacozinhadoqueatendendoasmesas.Millie, no entanto, havia tirado o dia de folga e o aproveitava comestilo.Ligueiparaelaquandoacabeimeuturno.—EntãooValentinoexpulsouvocê,basicamente?—perguntouelaapós

umsuspirodramático.—Basicamente,sim—respondi,aindaconstrangida.—Onegóciotodo

foitãoestranho.VocêsentiualgoestranhonoseuencontrocomDom?— Não! — Digeri a empolgação na voz dela e senti uma pontada de

invejaindesejadadecomoosacontecimentoscorreramdiferentesentreelaeDom.—Apenasconversamosefizemosumpiquenique—tagarelouela,alegre.—Dápraacreditar?Parei ao chegar no final do estacionamento, sem saber que caminho

seguir.

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—Sério?Issoparecetão...—Falso?Eusei.Pareceumacenadeumfilme.—Eacicatriz?—perguntei,atravessandoaruaparatomarocaminho

maiscurtoeamaldiçoandoamansãoPriestly.—Acidentedebarco—disseMillie,bocejando.—Sério?—perguntei,ouvindooceticismonaminhavoz.Dom não parecia ser o tipo de cara que andava de barco. Mas seus

irmãostambémnãopareciamserdotipoquejogavambasqueteeeuestavaenganadaquantoaisso.—É,éumahistóriasemgraça.Algumacoisacomumanzol—respondeu

Millie,desinteressada.—Enfim,compramoswrapsemilkshakese fomoscomer no Rayfield Park. Conversamos durante horas. Ele parecia muitointeressadoemmim,oquedeveserumbomsinal.—Comcerteza.Comecei a subir a pequena ladeira no trajeto para casa e minha

respiração foi ficandomais difícil pelo esforço conforme tentava dizer àMillieoqueestavameincomodando.Faleisobreopaidelestalvezserumassassino famoso. Embora eu não confiasse na sra. Bailey e nenhumapesquisa no Google com os termos “assassino Chicago Priestly” e suasvariantestivesseconfirmadoqualquerfatorelevantesobreafamíliadeNic,euaindaassimqueriainformarMillie.—Vocêachaquedeveríamosficarlongedeles,pelomenosatédescobrir

oqueestáacontecendo?—arrisquei.Milliesoltouumgemidodedesaprovação.— Soph, a sra. Bailey é, tipo, uma revista de fofoca ambulante. Ela se

alimentadeboatos ridículos. Lembra aquela vezque ela faloupraminhamãequeeuestavagrávida?Elaélouca.NãotemnadadeerradocomDomoucomafamíliadele,acredite.—Eusóachoquetemalgumacoisameioestranhaali.—Entãovamosdescobriroqueé!—encorajouela.—Encarecomoum

mistério.Ummistériosexy.— E se for algo que a gente não deveria descobrir? — perguntei,

pensandodenovonocheirodemeleemDomemumacidentedebarco.Eusimplesmentenãoconseguiaimaginá-lodesapatodockside.—EuvicomovocêolhaparaoNic,Soph—disseMillie.—Medizque

elenãovaleainvestigação.Talvez ela estivesse certa; mesmo com o mau pressentimento, era

inegávelminhaatraçãoporNic.EMilliesabiadisso.Alémdomais,eunãoqueriaacabarcomaempolgaçãodelaporcausadeumboato.

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—Então,sobreoquevocêsfalaram?—Mudeideassunto.—ElemecontouquemoravabemnocentrodeChicagocomafamíliae

que acha o interior um tédio. Ele tem19 anos, o que é sexy e indecente,embora ele estrague um pouco sua perfeição com aquele gel no cabelo.Querdizer,olookGreasesófuncionanoHalloween.Nãoqueissotenhameimpedido de ficar babando enquanto ele falava. Tive de pedir pra elerepetirváriascoisas,oquefoiumpoucoconstrangedor.Mas,enfim,depoisa conversa virou sobremim,mas eu soumesmo um tópico fascinante.Efalamossobrevocêtambém.Sentimeurostoficarvermelho.—Porquê?Virei em uma rua estreita onde mansões de muros altos e cerejeiras

ladeavamasubidaaomeulado.Nametadedocaminho,aruaeracortadapelaavenidaLockwood.—Pormaisqueeuamefalarsobrevocê, foiDomquemmencionouseu

nomesemquerer.— Ah, é? — Eu não sabia nada sobre Dom, a não ser que ele era

obviamentemenosesquisitodoqueGino,equeestavanapontaopostadeLucanaescalaBabacaCompleto.—Oqueelefaloudemim?— Ele estava perguntando sobre a lanchonete e tal. Falei que

provavelmente em breve seu tio vai passar o negócio para você e queéramosmelhoresamigas,eentãovocêvaiobviamentemedarumaumentoenorme.—Obviamente—concordei,sarcástica.—EaímeempolgueiumpoucoedesandeiafalarsobrecomoJackestá

fazendoumpéssimotrabalhocomogerente.—Millie!VireinaavenidaLockwood.—Ah,Sophie—criticouela.—Issoéumfato.Eleandasupersumido.

Quer dizer, a pessoa não pode desaparecer assim quando quer. Primeiroque é uma grosseria, segundo que é esquisito. É exatamente o tipo decomportamentoquealimentaasfofocasidiotasdasra.Bailey.—Verdade.—Elatinharazãoeeunãoiaaborrecê-laporcausadisso.—Enfim, tenho certezade queDomvai repassar a informaçãode que

vocêembreveestarámontadanagranaparaoNiceissosóvaideixarvocêaindamaisatraente!Retraí o corpo ao pensar namentira que eu tinha contado para Nic e

Luca na primeira vez que os vira na lanchonete. Com sorte, Nic não sesentiria traídoporminhadesonestidade.Alémdomais, tecnicamenteera

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sóumempregodeverão.Porenquanto.Aomeaproximardacasa,sentimeuestômagorevirar.—Acho difícil que sejam interesseiros. Devia ter visto a casa deles—

falei,olhandoparaacasa.— Quem sabe um dia eu veja. — Eu podia ver Millie mexendo as

sobrancelhasdeformasugestivadooutroladodotelefone.—Émelhoreudesligar.Estouexaustadaminhaaventura.—Espera!Vocêssebeijaram?—Seagentetivessesebeijadovocênãoachaqueesseteriasidooinício

daconversa?—Quepena.—Maselebeijouaminhamãoquandomedeixouemcasa.Serve?Foitão

romântico.—Claroqueserve!—conforteiMillieenquantopassavacorrendopela

casadeNic.—Certo,agorapodedesligar—faleiquandojáestavadooutroladoeamansãoiaficandoparatrás.Vireiàesquerdaeocaminhocomeçouadescernovamente.—Masmandamensagemquandochegaremcasa.—Tchau!—Sophie!—Umavozchamouassimqueguardeiotelefonenabolsa.Eumevirei,sentindoumfamiliarembrulhonoestômago.Euoreconheci

nahora,correndoemminhadireçãocomocapuzlevantado.Reagicomumacalmacalculada,tentandoimpedirquemeudesagradável

entusiasmomefizessecorrerdebraçosabertosemdireçãoaele.—Nic?Elediminuiuopassoeabaixouocapuz.Umsorrisoiluminouseurosto.—Oi.—Oquevocêestáfazendo?—perguntei.— Você não parecemuito feliz emme ver— observou ele. Pequenas

rugassurgiramentresuassobrancelhaseeleparoudesorrir.—Talvezeutenhasubestimadosuareaçãoaomevercorrendoatrásdevocêcomoummaníaco...—Porquê?Querdizer,funcionoutãobemdaúltimavez—provoquei.Sua expressão era de remorso, mas ele não conseguia esconder o

sorrisinho.—Eudeviateraprendidoalição,nãoé?Nãoquisassustá-la.—Tudobem—garanti.—Ésóquevocêapareceudonada.Umaexpressãodealíviocobriuorostodele.— Eu estava indo vê-la na lanchonete e aí vi você passar em frente à

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minhacasaeresolviaproveitaraoportunidade.—Pelomenosdessavezvocênãomederrubou.—Agarreimeupeitoem

sinaldealívio.—Eutalveztivessequeenchervocêdeporrada.—Queapavorante—disseeleaindasorrindo.—Ei!—Batidebrincadeiranobraçodele,revelandoafamiliaridadeque

haviaentrenós.—Fiquesabendoquepossosermuitointimidante.—Tenhocertezadequeseuspunhosminúsculossãomuitopoderosos.Bati nele de novo, mas dessa vez ele segurouminhamão nomeio do

caminho.—Ouvidizerquevocêpassounaminhacasahoje.—Suaexpressãoficou

sériaeosolhos,frios.—Nuncaváàminhacasa.Afasteiamãodadeleemevireiparacontinuarcaminhando.—Nãosepreocupe,nãovoumais.—Sophie!—Elecorreuatrásdemim.—Meexpresseimal,desculpe.—Eu estava apenas devolvendo seu casaco— respondi,mantendo os

olhosparaafrenteenquantocaminhava.—Estavasendoeducada.Agorajásei que foi a decisão errada e, antes que comece, não se preocupe, seuirmão Valentino já deixou bem claro que não sou bem-vinda, então nemprecisaperderseutempo.—Medeixeexplicar.—Eleacelerou,depoissevirouecomeçouaandar

decostasparapoderolharparamimecaminharaomesmotempo.Assopreiumamechadecabelodosolhoseoencarei,furiosa.—Nãoquisdizerqueasuapresençanãoébem-vinda.Gostomuitode

vervocê...Sóficotenso,sóisso.—Comigo?—Não,nãocomvocê—disseele,puxandoocabeloparatrás.—Coma

minhafamília.Algunsdelessãomuitoestranhos.Então ele estava envergonhado. Bem, esse não era o piormotivo para

nãomequerernacasadele.—ConhecioFelice—falei.—Seédelequeestáfalando.Niccontraiu-se.—Eusei.Eleémuitointenso.Decidinãofalarnadaarespeito.—Elecriaabelhas?—perguntei,mudandodeassunto.Euhaviapassado

o dia pensando no cheiro de mel; às vezes podia jurar que ainda podiasenti-lo.Não era como se fosse um crime fazer o própriomel,mas tinhaalgumacoisanareaçãodomeutioaomisteriosopotedemelquenãomesaíadacabeça.Nicparoudeandar.

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—Comovocêsabedisso?—Aquelasmarcas no rosto dele—disse eu, parando também.—São

picadasdeabelha,nãosão?Nic hesitou por um instante, como se ponderasse a resposta, e então

apenasdisse:—Sim.— E ele tem cheiro de mel. — Fiz uma pausa, ponderando se minha

próxima frase seria ofensiva,mas decidi dizê-lamesmo assim.—Parecequeeletomabanhonomel…Nicriu.—Éumapossibilidade.Elegostadecomerofavodemelpuro,ecultivae

extraiporcontaprópria.É...oqueelegostadefazer.—Suaexpressãosetornousombria,maselesorriunovamenteantesqueeupudessedecifraromotivo.—Masnãotemnenhumacolmeianasuacasa?—Aindabem!—respondeuelecomumligeirotomdealívio.—Felice

moraemLakeForest.MasenquantominhamãeestánaEuropaelesesenteobrigadoavirconferirseaindaestamosvivos.—Elefazoprópriomel?—confirmei,tentandonãomudardeassunto.

Volteialembrardopotecomolaçopretoquetinhaaparecidoumasemanadepoisqueelessemudaramparaacidade.Dessavez,Nicdemoroupararesponder.—Sim.—Eledáomelparaoutraspessoas?—Porquê?—Aexpressãodorostodelemudouenãoentendiamaneira

como me olhava. Era como se suspeitasse de mim. Será que eu estavafazendo perguntas demais sobre a família dele?Ou será que omel tinhaviradoumassuntouniversalmentecomplicadoparatodos?Eucomcertezanãotinhasidoavisada.Dei de ombros, observando Nic tão cuidadosamente quanto ele me

observava.—Apareceuumpotedemelna lanchonetehápouco tempo.Tinhaum

laçopreto.—Certo...—Estávamosquerendosaberdeondeveioeparaquemera.—Quemachou?—Eu.Nicfranziuocenho.—Oquevocêfezcomopote?

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—Leveiparacasaeprovei.Erabom...Aídeixeicairsemquerereopotequebrou — acrescentei. Não tinha a menor chance de eu contar o queaconteceu de verdade. Era estranho demais até paramim, e eu conheciaJackdesdesempre.Umtioesquisitojáeraosuficienteparaaconversa.OrostodeNicficouaindamaisconfusoeelebalançouacabeça.—Comojádisse,Felicenãomoraporaqui.—Entãoelenãofariaalgoassim?—Duvidomuito—disse ele, virandoa atençãopara as estrelas sobre

nós.—Dequalquermaneira,eunãomepreocupariamuitocomisso.—Maseumepreocupo—falei,lutandocontraodesejodesocarobraço

deNicparaqueelemeolhassenovamente.Comoseentendessemeudesejo,elevoltouoolharparamim.—Estápreocupadacomomel?—perguntouele,abrindoumsorriso.Sentimeu rosto corar. Falandodessa forma, pareciamesmoumpouco

idiota.—Sónãogostodemesentirexcluídadenenhumassunto.—Experimenteseromaisnovodecincoirmãos.Continuamos a caminhar. Nossas mãos quase se tocavam enquanto

balançavamladoa lado,ebelascasasemruasarborizadasdavamlugaracasasmenoresemquadrassimétricas.— Então, não se importa de ser escoltada para casa novamente? —

perguntouele,seguindominhaindicaçãoaoatravessarmosumcruzamentodeserto.— Não. — Fiquei tímida ao olhar para Nic sob o luar. Havia algo na

maneira que seus olhos brilhavam ou em como o cabelo enrolava naspontasquedeixavaminhabocaseca.— Queria me certificar de que você não ficou chateada com o que

aconteceu mais cedo. Sei que Valentino foi grosseiro, mas eleprovavelmenteestavatentandoprotegervocêdamaluquicedoFelice.Dispenseia justificativa fazendoumgesto comamão, embora sentisse

alíviocomaexplicaçãodele.—Vousobreviver.—Quebom.—PorfalaremValentino—comecei,tomadapelacuriosidade—,posso

perguntaroqueaconteceucomele?—Vocêquerdizerporqueeleestánacadeiraderodas?—É, isso— respondi, encarandomeus sapatos.— Se não se importa

comapergunta.Nicnãopareceuofendidoesolteioar,aliviada.

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—PossodeduzirqueentendeuqueeleeLucasãogêmeos—começouele.Fizquesimcomacabeça.—Então,quandominhamãeestavagrávidados dois, a posição de Luca na barriga fez pressão na parte inferior docorpodeValentino.Elenãosemexiadireito.Suaspernasficaramenroladasem pedaços da placenta e quando Valentino nasceu ele tinha o que échamado de “malformação congênita”. A perna direita estavacompletamenteesmagadaeviradaparaoquadril.Osmédicosfizeramumacirurgiaquandoeleeracriança,masapernanuncasedesenvolveudireitodepois disso. Valentino andadistâncias curtas comumabengala,mas eleprefereusaracadeira.—ElesentealgumamágoadeLucaporcausadisso?—perguntei.Nicdeudeombros.—AchoqueelejáficafelizdeLucanãotê-locomidodentrodabarriga.

—Nicriudaminhaexpressãodechoque.—Éelequediz isso,nãoeu—esclareceu.—NãoachoqueeletenhamágoadeLuca.Valentinosemprefoiomaisinteligentedetodosnós.Éomaiscriativoeentendemuitobemaspessoas;bemmaisqueLuca.Elessãotãopróximosqueàsvezessintoquesãoamesmapessoa.Concordamem tudoe, se vocêdecidirdiscutir comum, vai discutir com os dois, e eles atropelam você antes que consigapensardireito.—Nicfezumabrevepausa,caindoemumalembrançaqueofezsorrir.Observeicomatenção,tentandodescobriroquesepassavanacabeçadele.—AchoqueLuca sentemais culpapelasoportunidadesqueteve,masValentinonãoéumavítima.Elesmorreriamumpelooutro.—Uau—disseeu,sentindoafamiliarsensaçãodesolidãopelosirmãos

queeujamaisteria.—Deveserlegalteressetipodeligação.—Acreditoquetodomundopodeteressetipodeligaçãocomalguém—

disseNiccalmamente.—Nãoéesseoobjetivodavida?—Esperoquevocêestejacerto.—Meconcentreinasminhasunhaspara

nãomorrerdevergonhacomoolhardele.Nicparoudeandarepareitambém.—Estou—falou,resoluto.Olheimaisumavezparaele,timidamente,eantesquemeunervosismo

tomassecontademimemefizesseenlouquecerporcompleto,soltei:—Então,aMillievaidaruma festanosábadoequase todomundo foi

convidado,aípenseiquetalvezquisesseir,senãotivernadaparafazer.Niclevantouassobrancelhas—eunãosabiadizerseerapelavelocidade

doconviteoupelosignificado.—Imaginoqueoirmãocharmosodelavaiestarlá?Puxeioarentreosdentes.

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—Sim,mas você com certeza será bem-vindo, se é com isso que estápreocupado.Eles têmuma regra.Nãopodemvetar os convidadosumdooutro.Nicsoltouumarisadabaixaedemorada.—Salvopelopoderdevetosproibidos.—Exato—falei,maisrelaxada.—Comopoderiaresistir?—Nãoachoquepoderia.Estoudeduzindoquevocêtambémestarálá.—Claro.Naverdade,tambémémeuaniversário.—Ah—disseele,sorrindo.—Buoncompleanno.Vouadorar.Fizumadancinhadavitórianaminhacabeçaenquantomecertificavade

manterumaexpressãoneutra.—Legal.— Estava mesmo querendo saber o que você faz para se divertir —

continuouele.—Estavapensandonissomaiscedo.—Entãonãoparadepensaremmim,é?—provoquei.—Nemquando

jogabasquetecomseusirmãosourelaxanasuamansãogiganteenquantoestoumorrendodetédionalanchonete?—Claroquenão.—Quebom.—Evocêtambémédifícildeesquecer—acrescentou,quasecomouma

conclusão.—Achoqueamaioriadaspessoasdiscordaria—respondi.—Nãosouamaioriadaspessoas.—Issosemdúvidaéverdade—concordei.—Então,mefaledevocê,Sophie.Querosabermaissobrevocê.—Porquê?—Ninguémnuncaqueriasabersobremim.Especialmente

nenhuma pessoa com aquela pele bronzeada. — Sou muito entediante,prometo.Ele riubemdeperto,e senti sua respiraçãonaminhaorelhaenquanto

eleseinclinavanaminhadireção.—Quemsabedeveriadeixaroutrapessoaquenãovocêmesmadecidir

isso.Emvezderesponder,chuteiumapedrinhasoltaeaobserveiquicarna

rua.—Bem,vamoscomeçarcomoquesabemos—disseele, esfregandoo

queixo.—Vocêéumpoucodefensiva...—Ei!—Oqueéadorável—completoulogo.—Eoquemais?Vocênãogosta

de tempestades. É nervosinha e fica vermelha quando alguém olha

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fixamenteparavocê...Fizumacareta.Eletinhanotado.—Oquesótornaolharparavocêmaisdivertido—brincouNic.—Não

quejánãofossedivertidoolharparavocê.Sentimeurostocorardenovoeamaldiçoeiqueaquiloacontecessebem

naquelahora.—Vocêmoracomseuspais?—perguntoueledelicadamente,quasede

formanatural.—Morosócomaminhamãe—respondi.—Meupainãomoracoma

gente faz tempo, então a gente tenta não queimar a casa ou nãomorrerenvenenadacomcomidaestragada.Eume senti culpadapor omitir a parte sobremeupai estar naprisão,

masnãoquiscorrerorisco.—Vocêssedãobem?—Sim,quandonósduasestamosemcasa.Masachoquenãonosvemos

tantoquantoeugostaria.De repente, me senti vulnerável demais, contando meus pensamentos

maisprofundosaumgarotobonitoqueprovavelmentenãose importavacomaminharelaçãocomaminhamãe.Nicmeobservou,contemplativo.—Deve serdifícil.Masquemsabeadistâncianãoaproximavocêsnos

momentosimportantes?—Talvez.—Deumahoraparaoutramevi tomadapelaemoção.Qual

eraadosgarotosPriestly?Nomesmodia,demanhã,quasetinhachoradocomValentino!Eagora...—Então,estevaiserseuúltimoanonocolégio?Salvapelogongo.Nossospassosseguiramnomesmoritmo.—Aham,apartirdesetembro.Tenhomaisumanoletivotorturantepela

frente.—Suspireidramaticamente,felizportermosmudadodeassunto.—Evocê?—Acabeidemeformar—respondeuelecomcertoorgulho.—Eoquevaifazerdavidaagora?—Adieiafaculdadeporumsemestre;vouficartrabalhandocommeus

irmãos,basicamente.—EmCedarHill?—Não—respondeuele.—Nãoexatamente.Nãootempotodo.—Vocêgosta?—Doquefaçooudeondemoro?—DeCedarHill.—Sentiumasúbitavergonhadaminhaligaçãocoma

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cidade.Emespecialnaparteondeestávamosagora.HaviaumadiferençagritanteemrelaçãoaoluxoaoqualNicestavaacostumado.Elesorriuparamimcomosepudessesentirminhavergonha.—Nãogosteimuitonocomeço,masagoragosto.—Oquevocêfaz?Quetipodetrabalho?Eledeudeombros,masmanteveaposturadefensiva.— Nesse momento? Não muita coisa... — falou, sendo vago e

interrompendoafrasenomeio.—Achaquevaisentirsaudadedocolégio?Nicbalançouacabeça.— É só por um semestre. E gosto de me manter ocupado; quero me

sentirútil,sentirqueestoucontribuindominimamenteparaomundo.Achoquejamaistereiqueusartrigonometrianavida.—Né?—concordeienfaticamente.—OuShakespeare.Blerg.Nicreagiucomoseeutivesse lhedadoumtapa.Paroueseguroumeus

braços, puxando-meparaperto atéque eu estivesse sob seuolhar.Acheiqueelefossecomeçaramesacudir.— Você realmente acabou de zoar o homem que escreveu Romeu e

Julieta?Franziocenho.Eununcatinhapensadodireitonoassunto;sósabiaque

nãogostavadeestudare,paramim,Shakespeareerasinônimodeescola,umlugarondeeunãomesentiabem-vinda.—Achoquenãosouumagrandefãdetragédias.— E de amor?— Ele perguntou com tanta intensidade que quaseme

esqueciderespirar.Lentamente, Nic passou as mãos pelos meus braços, subindo pelos

ombrosatéqueospolegarestocassemabasedomeupescoço.Sentiapeleficararrepiadadeansiedade.—Amoréoutracoisa—falei.—Amoréfraqueza.—Eleobservouseusdedosenquantoosmoviapara

cimanopescoçocomumtoquequaseimperceptível.—Afraquezaéoquenosfazhumanos—falei,comavozrouca.—Eserhumanosnostornafalhos.—Eleestavatãoperto.—Vocêéfalho,Nic?Eleolhavaparaosmeuslábios.—Claroquesou.—Achodifícil.— Não deveria achar— sussurrou. Ele ajeitou uma mecha de cabelo

atrásdaminhaorelha,mantendoopolegarsobmeuqueixo.

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Fiquei na ponta dos pés e elemepuxoupara perto até nossos narizesquase se tocarem. A respiração dele estava irregular. Então, Nic segurouminhacinturacomforçaeencostouoslábiosnosmeus.Eu não podia mais resistir. Estava entregue e de repente nada mais

importava a não ser Nic e o jeito como nossos lábios se tocavam,segurando-me como se nunca mais fosse me largar. Tudo à nossa voltaficouemsegundoplanoe,porumsegundo,senticomoseomundointeiroprendessearespiração.Então,obarulhoensurdecedordeummotoracaboucomosilêncio.Um

carro passou acelerado pela rua, nos trazendo de volta à realidade eacabandocomobeijo.Enquantoocarropretocantavapneuaopararnaruaaonossolado,senti

minhasentranhassecontorceremdedecepção.Nic,desvencilhadodemim,correuemdireçãoaovidroescurodocarroebateunajanela.—Gino?Dom?—gritouele.—Cosavuoi?Comumacasualidadeelegante,ovidroseabriueomotoristaseinclinou

paraobancodocarona.—Luca?—Nicpareciachocado.Ele,comtodaasuafriezaesplendorosa,vociferou:—Entre,Nicoli.—Oqueestáacontecendo?Lucaesticouobraçodeformabruscaeabriuaportadocaronaparaque

batessenoirmão.—Entrenocarroagora.Nicvirouparamim,pedindodesculpas.—Eleémeioexageradoàsvezes...—Semela—interrompeuLuca.— Ficou louco? Ou apenas resolveu ser babaca por um dia? Não vou

largaraSophienomeiodarua!Lucaesfregouamãonatestaesoltouumsuspiroalto.—Nãoseiquedrogavocêachaqueestáfazendo,irmãozinho,masnãoé

engraçado.—Sobreoquevocêestáfalando?—VocêfaloucomDomhoje?—Não.—Vieniqui.Nicseinclinouparadentrodajanelaaberta.Luca baixou a voz e falou rápido apenas uma frase. Embora eles

estivessem falando em italiano, permaneci ali de braços cruzados,

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escutando. E, embora eu tenha ouvido apenas um monte de sílabasincompreensíveis,entendiumapalavra.Eapalavraera“Gracewell”.Nosegundoquemeusobrenomesaiudabocado irmão,Nic seviroue

me olhou com um pavor muito maldisfarçado. Os lábios macios queestiveramencostadosaosmeusalgunsmomentosantesestavamtensose,derepente,Nicmeolhavacomosenãosoubessequemeuera.—Oqueestáacontecendo?—Qualéoseunome?—perguntouele,tenso.—Vocêsabeomeunome—respondi,assustadaderepentepornãoo

reconhecer.—ÉSophie.—Sophiedequê?—Nic...—Sophiedequê?—repetiuele,avozassustadoramentefria.—G-Gracewell—gaguejei,comoslábiostremendo.Elepareciaprestesadesmaiar.—Cazzo!—Quediferençafazqualéomeunome?—Ouviodesesperoemminha

voz,maseunãoligava.Elebalançouacabeça.—Masnãofazsentido.—Comoassim?—Precisoir.—Aspalavraspareciamforçadas,maseleaspronuncioude

formadeterminada.—Qualoproblema?—insisti.—OqueLucadissesobremim?AtrásdeNic,Lucaencaravaaruaimpaciente,masasmãosseguravamo

volanteemumapertodeaço.—Entrenocarro,Nic.Chega.Nic se demorou, olhandoparamim como se eu tivesse acabadode lhe

darumtapanacara.—Luca...—implorouele,comosetivesselevadoumarasteiraecaídode

caranochão.Luca não virou a cabeça e, quando falou novamente, sua voz estava

endurecidaderaiva.—Sai.De.Perto.Dela.Agora.AgarreiobraçodeNic.Eunãosabiaaondeeleestavaindo,massabiaque

nãoqueriaquefossesemmim.—Agora!—Lucaarreganhouosdentescomoumlobo.Houveummomentode vazio, quandomeu coraçãopareceu entrar em

colapsoeentãoNicseafastoudemimesubiunobancodocarona,batendo

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aporta.SalteiparafrenteemependureinajanelaabertabemnahoraqueLuca

giravaachave.FoientãoqueviqueablusadeLucaestavacheiadesangue.— O que aconteceu? — falei, assustada, com o coração apertado. Se

aquelesanguefossedeLuca,eleestarianohospital.Masnãoestava.Estavasentadonaminhafrente,raivosoeileso.Diversosdesaparecimentoseduasmortes estranhas nas últimas duas semanas, zuniram as palavras da sra.Baileynaminhamente.—Deondeveiotodoessesangue?LucanãorespondeueNicfalouemseulugar:—Afaste-sedocarro,Sophie.—Issotemavercomomeupai?Luca e Nic trocaram olhares intensos e de repente me senti de novo

comoumapária.—Querosaberoqueeledisse!—griteicomNic.—Fala!FoiLucaquemfinalmenterespondeu.Girandoacabeça lentamente,ele

meencarouatéqueseusgélidosolhosazuisdominassemminhavisão.—Gracewell—sussurrouele—,saidepertodomeucarroouvocêvai

searrepender.Nic soltou um palavrão em voz baixa, mas continuou sem olhar para

mim.Luca,noentanto,manteveoolharhostilatéqueeudesistisseetirasseasmãosdocarro,cambaleandoparatrás.OmotorrugiuduasvezeseosirmãosPriestlyacelerarampelanoitesem

sequermaisumolharnaminhadireção.Fuideixadasozinha,nomeiodarua deserta, enquanto um monte de perguntas explodia dentro do meucérebro.

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PARTEII

“Éapenasnoamorenamortequepermanecemossinceros.”FRIEDRICHDÜRRENMATT,Crepúsculodeumanoitedeoutono

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CAPÍTULODOZE

AABELHA

Euestavaparadanaesquina,abraçadaaNicecomosbraçosenvolvendoseu pescoço. Vimos o asfalto se partir sob nossos pés. O som de águacorrendo rugia nos meus ouvidos enquanto um abismo partia o chão,dandoespaçoparaaschamasquesubiam,lambendoocéu.Derepente,Nichaviasumidoeeucaía.Gritei,masminhavozficoupresanagarganta.Oarera substituídoporareia, eomundo ficoupreto, comosealguém tivessedesligadouminterruptordentrodaminhacabeça.E então não havia mais nada além do meu coração, batendo forte no

peito,eocheirodecreamcheese.Guiadaporumzumbidodistante,caídevoltanarealidade.—Sophie...Osolatravessavaminhaspálpebras.—TerrachamandoSophie...Semicerreiosolhoseespereiotetoentraremfoco.—Adivinhaquediaéhoje?Tossipara tirarogostoarenosodaminhagargantaepisquei, tentando

afastaralembrançadosonho—eraasegundanoiteseguidaqueeutinhaaquelesonho.Senteinacamaapoiadanoscotovelos.—Bomdia,aniversariante!Minha mãe estava empoleirada na beira da minha cama. Seus olhos

estavamquasefechadosporumsorrisoquebotavaodoGatodaAlicenochinelo. Fiquei feliz de vê-la sorrir daquele jeito, mesmo que fosse por

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causadomeudia.Eusentiafaltadamaneiracomoosolhosdelabrilhavamquandosorria.No colo dela havia um cupcake de red velvet com uma cobertura

extravagantedecreamcheese.—Bomdia—faleicomavozrouca.—Felizaniversário,querida.Elapescouumisqueirodedentrodocasacoeacendeuavela.—Façaumpedido!—exclamou,enfiandoocupcaketãopertodomeu

rostoqueviasfumacinhassubiremdachama.Penseinopedidoenquantoachamadançavanafrentedosmeusolhos,

meprovocando.Clareza,decidi,finalmente.Eusóqueroclareza.Assopreiavela,decidida,apagandoachamacomumgolpedear.Minhamãesacouumafacaprateadadooutrobolso.Elapartiuocupcake

bemnomeioeasmetadescaíramcomopesodacobertura.Entãopegouumametadeemeentregou.—Delícia!—faleidepoisdemorderumpedaço.—Obrigada.Comaoutrametadeapoiadanocolo,minhamãevirouparatrásepegou

umpresenteembrulhadoemumpapelroxoextravagante.—Fizumnegóciopravocê.Sorri, limpando o resto de cobertura dos dedos no edredom. Eu já

suspeitavadequefosseovestidoqueelavinhafazendosecretamente.Comcuidado,puxeiaspontasdafitaedesdobreiopapeldeformaqueovestidoescorregasseparaacamaperfeitamentedobrado.Euoestiquei.Erabem-estruturado, mas delicado, feito de uma seda de um dourado claro,adornadocomlantejoulascintilandoàluzdosol.Levanteiovestido,passeiosdedospelasalçasfinasesentiacinturamarcada.—Éincrível!—Ecombinacomseucabelo!—Minhamãesorriu.—Penseiquevocê

podiausarnafestadaMilliemaistarde.—Ótimaideia!SentiumapontadadeculpaporesconderaausênciadospaisdaMillieda

minhamãe.Mas,aindaassim,oqueosolhosnãoveem,ocoraçãonãosente,certo?Elabateupalmasumavez.— Almoço mais tarde? — perguntou, pulando da cama. — Quero

presentearminhafilhade17anoscomumalmoçonoEatery.—Sério?—Deiteidevoltanacamaeestiqueio corpoemum longoe

preguiçosobocejo,olhandoparaoteto.—Pareceótimo.—Ecaro.Minhamãelevouovestidocomelapeloquarto,desviandodosmoletons

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velhosedascalçasjeansjogadaspelocaminho.Elaopendurounoarmárioe,comumúltimoolhardecepcionado—ehipócrita—paraochão,saiudoquarto, me deixando sozinha com meus pensamentos, concentradosnaquele sonho estranho. Como um golpe de eletricidade, o beijo de Nictomou conta de mim de novo e senti meu estômago se contorcer emdesconfortocomalembrançadapartidarepentinadele.Torciaparaeunãoestar condenada a reviver o abandono também em forma de pesadelo.Ainda tinha um monte de perguntas na cabeça e nenhuma forma deconseguirasrespostasdequetantoprecisava.Aperteiabarriga,quelutavacontraocupcake,esolteiumgemido.Talvezumafestafosseexatamenteoqueeuprecisavapararelaxar.

OrabodecavalopretosurgiadacabeçadeGinocomoumaminipalmeirasombria. Ao lado dele, as luzes se refletiam no cabelo lambido de gel deDom.Oqueelesestavamfazendoali?—Oquefoi,querida?Nãogostoudaquiche?Voltei a atençãoparaminhamãe,queestava sentadadooutro ladoda

mesa.—Estáboa.Sóestouumpoucoagitada.— Não falou nada desde que chegamos. Achei que ia gostar daqui. É

metidoabestademais?Aoverapreocupaçãonorostodela,fuiconsumidaporumanovaondade

culpa.Balanceiacabeçacommaisênfase.— Está falando sério? Este restaurante é ótimo. — Apontei para a

decoração clean do Eatery: o chão de granito preto era decorado comfloraiselaborados;asmesascobertascomtoalhasbrancascaras;ecolunasromanas subiam até o teto por todo o restaurante. As paredes eramdecoradascomfotografiasempretoebrancodaChicagodoiníciodoséculoXXepontilhadascomlustresdevidro.—Éumaboamudançadearesparaquemfrequentaalanchonete.Minhamãesorriuetomouumgoledevinho.—Porfalaremlanchonete,euqueriafalarcomvocêsobreisso...Deixeiminha atenção retornar para Dom e Gino— oumelhor, para a

partedetrásdassuascabeças—emepergunteiqualeraaprobabilidadedeestarmosnomesmorestaurante.Estávamosaquilômetrosdedistânciade Cedar Hill, bem no centro de Chicago, e como era um dos melhoresrestaurantesdacidade,serviamaiscomoumaespéciedelugarmilionárioparacelebrações.Osdeusesdocarmadeviamestarcurtindooespetáculo.

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PelomenosNiceLucanãoestavamacompanhandoosirmãos.Tenteimelembrar de como Nic havia sido terrível naquela noite, mas era difícilesquecer todos os outros detalhes sobre ele, os mais doces, gentis eengraçados. Seus sorrisos, seubeijo... comoelehaviamedeixadosozinhanomeiodanoitesemolharparatrás.Estremeci.—Sophie?—Oquê?MordioutropedaçodaquicheLorraineenquantomeperguntavaporque

havia decidido comer aquilo. Mas também, não tinha entendido o que amaiorpartedocardápiodiziaenãoestavaconvencidadequegostariade“batatasfritascominfusãodetrufas”maisdoquedebatatasfritasnormais.—Querofalarcomvocêsobrealanchonete.—Podefalar.Atrásdaminhamãe,Ginosecontorciacomalgoditopelohomemcareca

sentado à frentedele.Domestava àdireitado irmãoehaviaumhomemmagroealtoàesquerdadele,viradodeperfilparamim.EraFelice—euapostaria meu jantar nisso. Embora estivessem do lado oposto dorestaurante, colados uns aos outros em uma cabine escondida, um levecheirodemelcirculavapeloar.Talvezeuestivesseenlouquecendo.Desvieiosolhos.Minhamãecontinuavaafalar,gesticulandoanimadamente.—...criouexpectativasinjustasemcimadevocê.Precisasairmaisevero

mundo,nãoacha?Um zunido chamou minha atenção. Uma abelha tinha entrado no

restauranteecirculavapelamesaaonossolado.—Sairdeonde?—perguntei,meforçandoaprestaratençãonovamente

ao que minha mãe dizia e me recriminando por ser tão dispersa. Noentanto,euaindaviaumpequenoborrãopretoeamarelopelocantodosolhos.—Dalanchonete.Enfieiogarfonaquiche.—Oquetemalanchonete?Ohomemquenão reconheci se levantoudamesadosPriestly. Ele era

alto e careca e tinha uma testa ampla e um grosso bigode preto quedominavaseurosto.Eleresmungouaopassarporumagarçoneteeentãodesapareceupelaportadobanheiro.—Achoquedeveriapedirdemissão.Afetademaissuaenergiaevocêmal

temtempolivre.Agora que eu tinha ouvido a frase inteira, estava surpresa com a

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sugestão.Repouseiogarfoeengoliumpedaçointeirodequichedeumasóvez. — Mas a lanchonete é do papai. Achei que o plano era que euadministrasseolugaratéelevoltar.—Nãoseiporqueeuestavaresistindoà ideiadela, herdar a lanchonetequando fizesse18anosnunca tinhameanimado.Eusempresoubequenãoeraminhavocação.Aabelhapassouzunindopelomeurosto,desviandoporpoucodonariz.

Minhamãelargouogarfoesoltouumgritinho.— Desculpe — explicou ela, envergonhada, recompondo-se. — Eu

semprelevoumbaitasusto.—Achoasabelhasatébonitinhas—falei,tentandoacalmá-la.Dooutroladodorestaurante,aabelhaziguezagueavaemdireçãoàmesa

dosPriestly.Deveestarretornandoparaseumestre,pensei,fitandodenovoapartedetrásdacabeçaprateadadeFelice.—Oqueestáacontecendocomvocê?Está tãodispersa.—Minhamãe

agarroumeupulsoechamouminhaatenção.— Desculpe. — Balancei a cabeça em uma tentativa inútil de me

concentrarepuxeiamãodevolta.—Oqueestavafalando?— Por que não deixa seu tio administrar a lanchonete depois que se

formar ano que vem, até seu pai voltar? Assim vai poder se concentrartotalmenteementrarnafaculdadeeestudaremChicago,emvezdeficarnointerior.Temummundointeiroláfora,sabia.Enfieimaisumagarfadacheiadequichenaboca.— Ainda estou economizando para comprar um carro. Preciso do

dinheiro—faleicomabocacheia,tentandofalarporcimadela.Voltei a desviar o olhar. O homem careca de bigode tinha voltado do

banheiroesejuntavaoutravezaogrupodosPriestly,sentando-secomumgrunhidoaudível.—Possolhedarumpoucodedinheirotodasemanaparaocarro.Você

nemiasentirfaltadasgorjetasdalanchonete—insistiuminhamãe.—Nãoquerocolocaressepesoemcimadevocê—faleicomabocameio

cheia.—Seiquenãotemosdinheiropraisso.Minhamãeempurrouumpedaçodequeijodecabrapeloprato.—Sophie,eurealmenteprefiroquevocêpeçademissão.—OtioJackfaloualgumacoisapravocê?Temconversadocomele?—

Euestavacomeçandoaficarinquietanovamente.Minhamãeestavaagindodeformaestranha,assimcomotodomundonaminhavida.— Não, mas talvez devêssemos manter vocês dois afastados. Ele tem

parecidomaisdestrambelhadodoqueonormal.—Achoqueeleficariamuitomalseeuoabandonasseagora.Aindamais

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depoisqueoamigodelemorreu.Eladeudeombrosaopescarumapequenafatiadecebolaroxadoprato

emorder.—Jacknemestámaisporperto.Eelenãopodetertudooquequer.RetorneiosolhosparaamesadosPriestly.DomeGinodiscutiamcomo

homemcarecadebigode.Felice—sim,eraelecomcerteza,davaparavê-loagora—estavasentado, imóvel,comasmãosfechadasemcimadamesa.Ele observava em silêncio a abelha, que agora voava perto demais deles.Com a discussão, as vozes aumentaram e se espalharam por todo orestaurante.—Oque está acontecendo?—Minhamãe se viroupara tentar ver de

ondevinhaacomoção,queacaboutãorápidoquantohaviacomeçado.—Mãe?Elaolhouparamim,ansiosa.—TemalgumacoisaquenãomecontousobremeupaieotioJack?Ou

sobrevocêeotioJack?Tenhoaimpressãodequenãocontaramahistóriatoda.Elaseapoiounoscotoveloseentrelaçouosdedossoboqueixo.—Comoassim?—Bem,eunãosei.Porissoperguntei...Oestrondodeumtapafezcomquepulássemosdascadeiras.—Calvino!—Foiumgritotãoaltoquepareciademulher.Masvierana

verdade de Felice, que tinha se levantado com asmãos no rosto. Agora,todosnorestauranteolhavamparaamesadeles.Ohomemcareca,Calvino,recostou-seplacidamentenacabine,tirandoamãodamesasempressaealimpandocomumguardanapo.Eletinhamatadoaabelha.ArespiraçãodeFelicesealterou.Eledissealgobemaltoemitaliano,mas

Calvinonempiscou.TentoupedirqueFelicesesentassecomgestos,masquantomaiscalmoeleparecia,maisFeliceficavaensandecido.Elecomeçouaberrar insultosenquantoapontavaparaoqueeudeduzia sera carcaçaesmagadadaabelha.Fiqueiboquiaberta.Eununcatinhavistoalguémtãocalmosurtartãode

repente.Felicebotouamãonapartededentrodopaletó,fazendocomqueGinoe

Dom se agarrassem aos seus assentos. Calvino levantou de um pulo eergueu os braços como em rendição. Ele sussurrou rápido algumaspalavras.Felice tirou a mão do paletó e fechou o punho ao lado do corpo. Ele

passouaoutramãopelocabeloatépararapertandoanuca.

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Comcalma,esemtirarosolhosdeFelice,Calvinosesentou.Felicepermaneceudepé.Levantouoqueixo,parecendoaindamaisalto,

e,comumúltimopalavrãodirecionadoaCalvino—masouvidoportodosemumraiodeumquilômetro—,saiuàspressasdorestaurantecomoumesqueletoraivosoeelegante.— Que homem estranho — sussurrou minha mãe, sua voz mais um

sussurroentretodososoutrosnorestaurante.— Família estranha — murmurei, assistindo a Gino e Dom se

reacomodaremàmesae retomaremaconversa.Quemsabenaquelecasoespecífico euera sortuda por ter sido excluída. Era óbvio que os Priestlytinhammuitocomoquelidareeujáhaviaatingidominhacotadedramapela vida inteira. Provavelmente seria melhor assim. Mesmo que nãoparecesse.Volteioolharparaminhamãeeaencontreimordendoolábioinferior.— Sophie, temmuita coisa que você não sabe sobre seu pai e Jack—

começouela,retomandoaconversacomoseaquelainterrupçãodramáticanunca tivesse acontecido. — Às vezes penso que Jack merecia estar nacadeiamaisdoqueseupai.Eraaprimeiravezqueeuouviaminhamãeapontarculpadosnasituação

daquela noite — ou sequer falar voluntariamente a respeito. Era umdaqueles momentos silenciosos mas definidores que estavam sempre àespreita na dinâmica da nossa relação, mas que raras vezes eramabordadosporqualquerumadenós.—MasJacknemestavalá.—Euseidisso—admitiuela.—Masseutiosemprefezamizadecomas

pessoaserradas,otipodepessoaqueseimportamaiscomdinheirodoquecomafamília,equealimentaasparanoiasdele.QuandoseupaisemudouparaCedarHill,elequeriacomeçarumavidanovacomagente,umavidamelhorqueadelequandoeracriança.Eleerarespeitávelebem-sucedido,masentãoJackcomeçouanosrondar.Elenãotinhafamíliaeconsideravaanossaadeletambém.Eleeseupaicresceramsozinhos,doisgarotoscontraomundo,etenhoaimpressãodequeseupaisentiacomosedevesseaJackumpedaçodasnossasvidasparaqueelenão ficassesozinhoporaí.MasJackcomeçouabotaressasideiasnacabeçadoseupai.Asmesmasideiasquevejoeletentandobotarnasuacabeça;ideiasquefazemvocêtermedoe ficaransiosa.Chegouaopontode Jackcomeçaraquestionara tudoeatodos que frequentavam a lanchonete e com isso logo seu pai tambémcomeçou a ficar paranoico.Quantomais pensono assunto,mais acreditoque,seJacknãotivesseinfluenciadoseupai,elenãoteriaseprecipitadoem

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achar que o homem que entrou na lanchonete naquela noite era umassaltanteperigoso.—E não teria atirado nele— completei friamente.—Não sei se você

podeculparJackporisso.—Eledeuaarmaaseupai.—Paraprotegeroirmão—retruquei.—Elessemprecuidaramumdo

outro.Elaespetouogarfoemumpedaçodetomate.— Você está certa — respondeu ela rápido, balançando a cabeça. —

Deixapra lá.Eunãodevia ter tocadonesseassuntonoseuaniversário.Odiadehojedeveseconcentrarnascoisasboasdasuavida.De repente, o clima entre nós ficou desconfortável e tenso. Tomei um

gole de Coca diet e deixei as vistas vagarem para os Priestly, que agoraestavamatipicamentesilenciosos.GinoapoiavaacabeçanasmãoseDomestavaapoiadonoencosto,encarandoo tetodemaneira inexpressiva.Euentendiacomoelessesentiam.

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CAPÍTULOTREZE

AFESTA

Examinei meu reflexo no espelho do quarto, certificando-me de que ohidratantedaminhamãe tinha semisturadopor completo àminhapele.Passeiumpoucodobronzeadornatestaeblushnasbochechas.Remexinabolsademaquiagemdaminhamãe,saqueiumdelineadorpretoeopasseinas pálpebras antes de aplicar um rímel pegajoso nos cílios. Então meafastei e apreciei meu reflexo, maravilhada com o que as modernidadescosméticaspodemfazerporalguémquequasenuncavêosol.Minha mãe entrou no quarto e vi um presente nas mãos dela — um

retângulograndeembrulhadoemumpapeldasprincesasdaDisney.—ÉdaMillie?Elacolocouopresentenacama.—Eladeixouaquiquandovocêestavanobanho.Abra.Estoumortade

curiosidade.Nãoprecisavapedirduasvezes.Rasgueiopapeleencontreiumacaixa

desapatocinza.NapartedecimahaviaapalavraCARVELAescritaemumafontepretadesenhada.—Como aMillie pagoupor isso?—perguntouminhamãe, dando voz

aosmeuspensamentos.Balanceia cabeça, incrédula.Comoeupodia terumamelhoramiga tão

maravilhosa?Levanteiatampacomcuidado,retireiopapeleencontreiumpardescarpinsdecouroenvernizadocordecreme.Osalto,quedeviaterpelomenosuns12centímetros,erarevestidoporumlevebrilhodourado,

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eobicodosapatoseabriaemumaaberturapeep-toeperfeita.—Achoqueestouapaixonada—gemi.Minhamãesuspirou.—Nuncafiqueitãodecepcionadaporterpésmenoresqueosseus.Encaixeimeupéesquerdonosapatoecambaleeiparaafrente.—Comovoufazerparanãocairdecaranochãocomessessapatos?Minhamãesorriuaomeentregarooutropé.—Ninguémdefatoandadesaltoalto.Aspessoasapenassobrevivem.Depoisde15minutos testandoos sapatos, coloqueio vestido.Girando

em frente ao espelho, retirei o grampo do cabelo fazendo com que elecaísse em ondas nas minhas costas. Eu mal me reconhecia, mas tinha asensaçãodequeapessoanoespelhoiasedivertirbastante.

Quando encostamos o carro em frente à casa de Millie, já ouvíamos amúsica ecoando pelas paredes. Muitos carros ocupavam a rua até aentrada.Desciparaomeio-fio.— Tem certeza de que os pais da Millie concordaram com isso? —

perguntouminhamãe.Euaobserveiestudaroscarros,desconfiada.—Aham.—Virei de lado para que ela não pudesse vermeu rosto de

mentirosacaradepau.—Ok...—cedeuela.—Divirta-se!Observeiocarroseafastaratéquevirasseumpequenopontoazul.Quandome virei, Millie estava parada na porta com um vestido preto

curtoapertado.—Millie!—gritei,indoatéelaemcâmeralentaporcontadossaltos.—

Muitoobrigadapelossapatos!— Puta merda— gritou ela de volta, os lábios pintados de vermelho

abertosdesurpresa.Encolhiosombrosecobriovestidocomosbraços.—Estáexagerado?Émelhoreutrocarderoupa?Elasubiuedesceuodedoapontandoparaovestido.—Essevestidorealmentemostratodasassuasmelhoresqualidades!—

Milliefezumatentativafrustradadeassoviarcomosdedosedepoismexeuassobrancelhasdeformasugestiva.—Tarada—provoquei,alcançando-a.—Que foi?—Ela levantouasmãossugerindo inocência.—Quisdizer

querealmenteressaltaoazuldosseusolhos...Tãovívidos...—Comquemestáfalando?—AlexapareceunaportaatrásdeMillie.O

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cabelolouroestavaperfeitamentearrepiadoeelevestiajeansescuroscomumacamisetajustaazul.Eleria,segurandoumcopovermelho.Quandomeviuparadanovãodaportaficouboquiabertoefezamesmaexpressãodairmãaolado,fazendoosdoisquasepareceremgêmeos.—SophieGracewell—balbuciouele.—Eusei—murmurouMillie.—Eusei.

Millieeeudançamoscomoloucas,jogandoasmãosparaoaltoegirandoocabelo, nós duas cuidadosamente tentando se equilibrar nos saltosimensos. À nossa volta, casais circulavam como ímãs, colados uns aosoutros ou fugindo para darem um amasso em outro cômodo. Eu malconhecia aspessoas—amaioria eramamigosde faculdadedeAlex e asque me conheciam através de Millie me ignoravam, como sempre. Nãoimportava. Todos riam e se divertiam, e era contagiante — eu estavarelaxadaemuitoanimada.OmaisimportanteeraqueeuseriaeternamentegrataaMillieportertransformadoaimpressionantesaladacasadelaemumabolhadeenergia,resultandoemumaniversáriodivertido:tudodequeeuprecisava.Asaladeestarhaviasidodespidadosporta-retratos,bibelôsebonecas

assustadoras de porcelana que geralmente ficavam expostas nascristaleiras nos cantos do cômodo—uma obsessão damãe deMillie. Asluzesestavamtãobaixasqueostraçosdequalquerpessoaamaisdedoispassos ficavam embaçados e irreconhecíveis, e os sofás de couro e aspoltronas de tecido haviam sido empurrados para as paredes. Acima dalareira, umaTVde cinquentapolegadas reverberava amúsicapelos alto-falantes.—CadêoDom?—perguntei,ignorandoadorzinhachatanospés.—Elenãovem.—AexpressãodeMilliemurchou,maselaexplicoucomo

senãoimportasse.—Nãotenhonotíciasdesdeonossoencontro.Elenemrespondeuaminhamensagemdetexto.—Sintomuito,Mil!—berreiporcausadamúsica.—Quedroga!—Tudobem—respondeuela,altiva,masdavaparaverquenãoestava

bem.ElahaviaficadoobcecadaporDomdesdeoencontro,eelenãotersedadoaotrabalhodeligarnãoerasóestranho,mastambémincrivelmentegrosseiro.—Esperoquenãosejaporminhacausa.—Percebi,derepente,sentindo

a cor se esvair domeu rosto bronzeado e cheio de blush.— Talvez Nictenhaditoalgoparaele.

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Milliefezumacaraazeda.—Se forporsuacausa,entãoDomé tãocovardequantoo irmão,eos

doisdeveriamserignoradosporjulgaroacidentedoseupai.Nãoiaquererficarcomalguémassimdequalquerforma!—O azar é todo dele.—Ofereci como resposta, sentindo a raiva dela

acenderaminha.—Eleéumidiota.— Os dois são! Espero que fiquem bastante entediados penteando

aqueles cabelos idiotas e pagando caro demais por suas roupas italianasbabacasenquantoenvelhecemnaquelamansãobizarra!—Millieatirouacabeçaparatrásecomeçouamexerosquadris,botandoumpontofinalnaconversasobreDomeseusirmãos.Seguindo adeixa, fechei os olhos epermitimeu corpo sentir amúsica.

Mas,dentrodaminhabolhapessoal,nãodeixavade imaginarasmãosdeNic em volta da minha cintura; com ele pedindo desculpas pelocomportamento estranho e dando uma explicação plausível para suaindiferença repentina.Masquandoabri os olhos e gireimaisumavez, viumasériederostosquenãoreconhecia,coradoseofegantes.Depois de um tempo, meus pés começaram a pulsar de dor. Parei de

dançar e atravessei a porta dupla que levava à cozinha comuma grandemesademármore.Ládentro,umgrupodegarotosestavadebruçadonumbarrildechope,virandoumcopoatrásdooutro.Namesa,duasmorenasmagrelas deminissaias participavam de um jogo de pingue-pongue comcervejapontuadoporgritinhos.Eu me espremi para passar ao lado de uma garota ruiva que fazia

tatuagemdehenanascostasdeumaamigaefuiatéageladeira,nomesmomomento em que Alex esmagou seu copo no balcão e pulou para trás,levantandoosbraçosemcomemoração.—Otários!—gritouele.—Nãopodemvencerocampeão!Deiumsorriso.Alexesteve tão tensono torneiodebasquete;era legal

vê-lo mais relaxado — mesmo que ainda estivesse sendo incrivelmentecompetitivo.Quandoelemeviu,baixouasmãoseencolheuosombros,tímido.—Cerveja?—ofereceuele,apontandoparaobarrilatrásdesi.—Temos

outrascoisasmaispesadastambém.Afasteimeucabelodesgrenhadodatesta,sentindoasgotasdesuorsob

osdedos.—Quemsabemaistarde—falei.Jáestavadifícildemaismemanterde

pécomossaltos.Acheiqueseriamelhorpraticarumpoucomaisantesdeacrescentarálcoolàjogada.

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—Temcertezadequenãoqueruma?—Alexmeofereceuosorrisocomoqualeusonhavanaescola.Masagoraalgumacoisahaviamudado.—Sim,tenhocerteza.—Abriageladeira,pegueiumaCocadieteaabri

enquantoosgarotosatrásdemimriam.Eumepergunteiseestavamrindodemim,mas era covardedemais para confrontá-los. Sentindomeu rostoruborizar,me afastei e contorci o corpo ao passar pela garota ruiva, queagoradesenhavaumgolfinhonoquadril.Umaboladepingue-ponguevooupor cima da minha cabeça e quicou na mesa de mármore no meio dacozinha.Volteiilesaàsala,meaperteiparapassarporumcasalquesepegavana

portaefuidançandoaoredordealguémquesemexiacomoumalombrigaaté chegar ao sofá mais próximo. Quando o alcancei, encontrei MillieconversandocomPauleAlisondalanchonete.—...eentãopensei,queseja,voumedivertirsemele...Oi,aniversariante,

venhasesentarcomagente.—Eladeuumtapinhanoespaçoaoseulado.—Oi.—MeespremientreMillieeobraçodosofá, sentindoumalívio

imediatonassolasdospés.—Quandovocêschegaram?—SeguioolhardeMillie para o colo de Alison e vi que ela e Paul estavam demãos dadas.Agoraeraclaramenteoficial.—Nesteinstante.AUrsulaliberouagentemaiscedo.— Feliz aniversário, Sophie— acrescentou Paul, animadamente.— A

festaestáótima.—Valeu.—Deideombros.—Nãoéminha.Nãoconheçoamaioriadas

pessoas.—Ah,claroqueé—interferiuMillie,dandoumacenocomasmãos.—E

se os amigos doAlex não conheciam você antes de hoje, certamente vãoconhecer, graças a esse vestido. — Ela virou sua bebida e suspirousatisfeita.—Comcerteza—concordouPaul, fazendocomqueAlisoncravasseas

unhasnapernadele.—Ai!—gritou.—Foimal,estavasóconcordando.— Acho que está na hora do refil.—Millie levantou e saiu dançando

entre a multidão com mais atitude do que Beyoncé. Eu invejava acapacidade dela de andar tão tranquilamente nos saltos sem sentir anecessidadeimediatadedeitarnochãoearrancarospés.Saíembuscadeumbanheiro.Osomdealguémvomitandonolavabodo

térreomotivouminhaviagemaosegundoandar,e,mesmodepoisdebatertrêsvezes,abriaportadobanheiroedeidecaracomumcasalseminu.Foiummomentotraumáticoparatodosnós.Fecheiaportaàspressaseseguimaisadiantepelocorredor,parandona

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porta do quarto dos pais de Millie e batendo na porta com os nós dosdedos. Quando ninguém respondeu, entrei devagar, rezando para nãoencontrarmaisumacenamedonha.Masoquartoestavavazio.Aportaestreitaaoladodaparededearmáriosdiziaqueminhamemória

estavacerta:oquartoeramesmoumasuíte.Mas,quandomeaproximei,amaçanetagiroupeloladodedentroeaportaseabriu.Puleiparatrásecaínacama.Meuprimeiroimpulsofoilevantarasmãosecobrirosolhos.—Desculpe,nãosabiaquetinhaalguémaqui.Minhaexplicaçãofoirespondidacomumarisadaalta.—Relaxe,Sophie.Derrubeicervejaemmimetodososoutrosbanheiros

estavamocupados.Descobri os olhos e encontrei Robbie Stenson apoiado no batente da

porta,segurandoumcopovermelhoemcadamão.—Querumabebida?Estásobrando.—Não,valeu.—EstavafelizemsaberqueRobbienãomeculpavapelo

fiasconotorneiodebasquete.—Nãoachoqueeudeveriabeber... Jáestádifícilandarnessesaltosóbria.Nãoqueroarriscarminhavidacaminhandobêbada.Eletirouocabelodatestaedeuumsorrisinho.—Ésó sucodecranberryeágua tônica,masdáumacertaonda.Acho

queéoaçúcaroualgoassim.—Maneiro.—Pegueiocopodasuamãoestendida, sentindoumcalor

súbito.—Estoumorrendodesede.— Imagino.—Ele sentou na cama comumbaque e arqueou uma das

suassobrancelhasperfeitasparamim.—Vocêestava fazendounspassosdedançaanimaismaiscedo.Porquenãousoutodoessetalentonaquadra?Poderíamostertidoalgumachance.Sorriaindacomabocadentrodocopo.—Nãotenhocertezaseeuconseguiriadriblarefazeradançadorobôao

mesmotempo.Robbieriucomumronco.— Poderia ter intimidado nossos oponentes. — Ele me encarou sem

piscarenquantoeutomavaumgoledabebida.—Vocêestámuitobonita,aliás.—Valeu.—Derepente,tiveasensaçãodequeaquelaconversapodiater

umsignificadodiferenteparanósdois.Qualeraadessevestido?— É melhor eu voltar lá pra baixo — falei, repousando o copo na

mesinhadecabeceira.—Acheiquevocêprecisavausarobanheiro.

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—Nãoprecisomais.Achoquesóestavacommuitocalor.—Levanteiecaminheimeiodesengonçadaatéaporta,comospésdoendodenovo.—Quemsabeagentesefalamaistarde—gritoueleatrásdemim.— É, quem sabe — concordei, agarrando o corrimão e descendo as

escadascomcuidado.Devoltaàcozinha,encontreiMillieseengraçandoparaumgarotocom

um cavanhaque duvidoso. Ela estava apoiada no ombro dele e ria comoumagarotinha.AstentativasdeesquecerDomcomcertezaiambem.—Sophie.—Elaabriuumsorrisolargoeselevantouquandomeviu.—

VenhaconheceroMarcus.Eleémaravilhoso.—Elaseaproximouebaixoua voz.—Tãomais divertido do que aquele tédio doDom.Não sei o queestavapensando.Éóbvioquenãosomoscompatíveis,eleerasériodemais.Derepente,minhavisãocomeçouagiraremesentiestranha.—Consegueficardepé?—Vocêandoubebendo,Soph?Os olhos dela ficaram grandes demais para seu rosto e a boca estava

abertaemumânguloestranho.Negueicomacabeçaemesentitonta.—Temcerteza?—Elaficoutãopertoqueeupodiaverassardasnoseu

rosto.Elassemoveramcomoumquebra-cabeçaedepoissumiram.—Cl-claro.—Caíparatrás,nadireçãodaparede.—Masnãoestoume

sentindomuitobem.—Umalarmedisparoudentrodaminhacabeça,masosomfoificandocadavezmaisbaixo.—Temcertezadequenãotomouumshotdenada?Amúsicareverberavanaminhacabeça.—Não,e-eusó...—Pareieaperteiorosto.—Esquecioqueiadizer.— Acho que alguém precisa levar você para casa. — Eu não estava

entendendo muita coisa, mas dava para ver que a diversão haviadesaparecidodavozdeMillie,eocaradocavanhaquetinhaidoembora.—Estoucomdordecabeça.Po-podepegaralgumremédioparamim?—

Fiz uma careta ao ouvir como as palavras tinham saído emboladas.Pareciamtãoclarasnaminhacabeça.—Oqueestáacontecendo,Sophie?—Alextinhaaparecidoderepentee

estavaparadoàminhafrente,mesegurando.Foientãoquepercebiqueseelemesoltasse,eucairiadecaranochão.Largueimeucorpoemeunarizbateunopeitodele.—Achoqueelabebeudemais—comentou,mepondodepédenovo.— Não bebi — falei, embaralhando as palavras enquanto tudo ficava

preto. E, quando reparei, estava deitada num cômodo silencioso da casa,encarandoumlustredecristalnoteto.Meuestômagoestavaembrulhado.

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—Queroirpracasa.—Droga—murmurouMilliedealgumlugardistante.—Celinevaime

matarseelachegarassim.—EulevoaSophieparacasa—sugeriualguém.—Temcerteza,Robbie?—Aham,euseiocaminho.Elanãopodeirsozinha.Nãodessejeito.—Nãosei.—OrostodeAlexdançouàminhafrente,seusolhosgirando

comorodascoloridas.—Talvezsejamelhorchamaramãedela.—Alex,eulevoela.Eunãobebi.Vocênãoquerestragarafesta,nãoé?Solteiumgemidoemeagarreiaosofá.—Não quero ir com ele.— E então sussurrei para uma almofada.—

ChamemoNic.AalmofadanãorespondeueNicnuncaapareceu.—Ok,Sophie,vamos.—Alexenganchouobraçonomeuemelevantou

dosofáatéqueeuficassedepéapoiadanele.OmundogirouàminhavoltaeosrostosdeMillie,AlexeRobbiesemisturavamemumestranhomosaicohumano.—Espere—disseMillie.—Elanãovaiconseguirandaratéemcasacom

isso.Derepente,haviaapenasdoisrostosnaminhafrenteeeunãolembrava

quem era quem. Achava que Alex tinha cabelo louro, mas o outro caraestava comosolhos azuisdele.Balancei a cabeçapara frente epara trástentandoacabarcomaconfusão.—Quantoelabebeu?—Apostoqueelasecouaquelatequila,cara.E entãome vi na porta, calçando um par de botas Ugg que não eram

minhas.Deixeiorostocaireochãocomeçouapulsar.— Robbie, diga para ela me ligar quando chegar em casa, certo? Não

esqueça.E,assim,galopamospelaentradadacasaeviramosacurvaemumarua

deserta que se destacava adiante como um rio preto. De repente, sentiminhacabeçaincharcomoumbalão.—Voucair.Puleiasrachadurasnoasfalto.Robbiepassouobraçoporminhacinturaemeguiouemlinhareta.—Relaxe.Vocêestáumpoucozoada,sóisso.Aoouvirapalavra“zoada”,sentialgoemmeuouvido.Inclineiacabeçae

medeiumtapanacara.—Sai!Sai!Sai!

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E então me vi passando por uma fileira de casinhas retangulares quepareciamtersidomarteladasnochão.—Elasparecemtãotristes—geminoombrodeRobbie.Pisquei e, quando abri novamente os olhos, estava deslizando pela

calçadaeapertandoosolhos incomodadospelo luarofuscante.AmansãoPriestlysurgiunocéuàminhafrente,comoumcastelo.— Tem uma princesa ali. — Senti a necessidade de resgatá-la

imediatamente. E então esqueci sobre o que estava pensando. — Estouexausta— percebi, enquanto omundo àminha volta ficava silencioso ecalmo.Paramosdeandar.—Eu sei.—Robbieme apoiou em uma parede. Eu estava vagamente

cientedaspedrasdesiguaisespetandoasminhascostas.—Nãodurmoháunscemanos—lembrei.Minhacabeçacambaleouaté

tombarparabaixo.Elemelevantoucomoumabonecadepanoeapertouminhacintura.—Estousegurandovocê.—Eujátôemcasa?—perguntei,cansada.Estavadifícilmeconcentrar

em qualquer coisa, e eu tinha a impressão de que poderia vomitar aqualquerminuto.— Aham, relaxe, Sophie. Está tudo bem. — Senti um dedo sob meu

queixo, ajeitando minha cabeça. Revirei os olhos quando senti umarespiração quente fazer cócegas em meu rosto. Lutei contra minhaspálpebrasfracas,tentandomantê-lasabertas.Quandoconseguiabri-las,vidoisolhoscinzadefalcãomeencarandoaumcentímetrodedistância.E,nomomentoemqueperdicompletamenteocontroledomeucorpo,sentiasmãosdelesubindopelomeuvestido.

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CAPÍTULOCATORZE

OCAVALEIRODASSOMBRAS

Emalgumlugardentrodemim,opânicoaumentava.—Pare—eumeouvidizer,aflita.OsolhosdeRobbie,norostoinchado,seestreitaram.—Relaxe.—Nãoquero.—Tenteibalançaracabeça,massóconseguimexê-lasem

controle.Eledeuumrisinho.—Entãoporqueapareceunafestausandoisso?—Elepuxouotecidodo

vestido. Tentei falar de novo,mas não consegui reunir forças suficientesparapronunciaraspalavras.Odedoásperodelecorreumeuslábiosesolteiumgrunhido,sentindoasalivaseacumularnagarganta.Eleseaproximou.Cuspeseacumulavanocantodasuabocaquandoelefalou:—Paredesefazerdedifícil.Asmãosdeledescerampelalateraldomeuquadrileseacomodaramna

minhapernaexposta.Derepente,eueraincapazdemeconcentraremnadaalémdisso.Elepassouosdedospelaminhacoxaesegrudouemmim,meapertandoentreseucorpomagroeaparedegelada.Robbiepassouamãopelomeucabelo,agarrando-oepuxandominhacabeçaparatrás.Lutei para lembrar se estavamuito longe de casa,mas tudo virou um

borrão.Meupânicoaumentou,fazendominhacabeçalatejar.Tenteimexer

Page 131: Catherine Doyle - Vingança

os braços,mas eles nãome obedeceram, presos sob o peso do corpo deRobbieenquantoeleposicionavaaoutramãonabarradomeuvestido.Meus olhos tremularam e se reviraram quando ele encostou os lábios

salgadosnaminhaboca.PorummomentopenseiemNic:comoelehaviaencostado seus lábios nos meus com todo o cuidado, como se tentasseaproveitar cadamomento; comoo frionabarrigahavia tomado contademimenquantosuasmãosseguravamgentilmenteminhacintura.Masessasnãoeramasmãosdele,ouosseuslábios.Ásperosesecos,elesapertavamminha boca, mantendo-a aberta com uma língua que mais parecia umacobra, até que caí sobreRobbie, ficando aindamais tomadapela bocarraqueinspecionavaminhagoelatãoincessantementequecomeçavaadoer.E,então,osomdeummotorinterrompeuopavorososilêncioeumcarro

paroucantandopneualiporperto.Robbiecongelou,nossoslábiosaindasetocando, e botou as mãos de volta na minha cintura. Em meu estadoconfuso, imaginei que deveríamos parecer dois bonecos de madeira,encostadosumcontraooutronomeiodanoite.Não sei quanto tempo fiquei encostada em Robbie Stenson como uma

estátua,mas fiquei feliz com o ar fresco que senti quando afastaram seucorpodomeu.Elesoltouumgritoestranguladoaoserarrastadoparatrás,diminuindoapressãoedeixandomeupeitoseexpandirnovamente.Alguémestavagritando.Meucorposerecostounaparedeedeslizeiatéo

chãosemsentirminhaspernas.Aolonge,ouviosomdecascalho,seguidopor um grito gutural. Houve um estalo ressonante e um berroensurdecedor que mais parecia um gato morrendo. Sapatos foramarrastados pelo chão. Soluços altos deram lugar a súplicas desesperadas.Tenteientender,masaspalavrasseembaralhavam,incompreensíveis.Meucorpoescorregouatéochão,acabeçapousadanoconcreto.—Váemboraantesqueeuacabecomvocê.Eleestáfalandocomigo?Maisbarulho.Porqueestátãoescuro?Osomdepassosficavacadavezmaisdistante.Aindaestouviva?Outralevadepassos,maisfirmesesilenciososqueosanteriores,vinham

naminhadireção.—Sophie?Estámeouvindo?Algoseguroumeusombros.Meucorpofoisacudidodeleve,maseunão

tinhaforçasparaabrirosolhos.Euestavamortaparaomundo.Mortaparatudo,excetoparaavoz.

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— Sophie? Por favor. — Mais uma sacudida leve. Senti um dedopressionarmeupescoço,bemondemeupulsosaltava.Houveumsuspirolongoealiviado.—Vamos,Sophie.Acorde.Luteiparareunir forças,masestavadestruída,comoumbalãomurcho.

Tudo ficou silencioso e tentei me lembrar de onde eu estava e do queestavaacontecendo.Euhaviasaídodafesta?Caídonochão?—Podetentarabrirosolhos?Porquenão reconhecia a voz?Era tão familiar e aomesmo tempo tão

estranha.Umbraçodeslizouemvoltadosmeusombroseooutropassouporbaixodosjoelhos,melevantandodochãogelado.Minhacabeçabateuemalgoduroeouviabatidaconstantedeumcoração.Deslizei atéum local quente, quepercebi serum carroquando, apóso

estrondodaportabatendo,surgiuosomreconfortantedomotor.Logoeuestavame balançando em um bancomacio. Osminutos se passaram emumaimensidãoescuraatéeuficarconscientedenovo,emummardevozesdistantes,luzespiscandoebipesapitando.Umdedopercorreualateraldomeurosto.Umavozdistante interrompeuomomento emque eu estavaprestes a

entenderondeestava,eaconclusãomefugiuantesquecompreendesse.—Localizeiamãedela.Nãoquerficaratéelachegar?—Nãoposso.Passos se distanciaram até que eu só ouvia o som da minha própria

respiração agitada no peito. Segura na ausência completa de tudo, meentreguei ao vazio, onde memórias semiesquecidas eram misturadas apesadelos aterrorizantes, e eu não sabiamais o que era real e o que eraimaginação.

Acordei olhando para um teto completamente diferente do que estavaacostumada. Era alto e de azulejos, com luzes fluorescentes quemachucavammeusolhos.Ocheirodedesinfetantetomavacontadoar.Ascortinas, abertas em uma janela distante, eram desconhecidas e de umverde sem graça. E, apesar do calor queme aquecia, senti algo gelado eduroespetandominhamãoesquerda.Acamaeracercadaporbarrasdemetaleasparedeseramdeumbranco

ofuscante.Fecheiosdedossobreumcurativoepercebi,comumapontadademedo,quehaviauma injeção intravenosaenfiadanascostasdaminhamão.—Sra.Gracewell,elaestáacordada.

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Minhacamabalançou.Vireiacabeçaemeencolhiaosentirumapontadadedornanuca.Aprimeiracoisaquevifoiorostopálidodaminhamãe.AoseuladoestavaMillie,exausta,comummoletomgiganteeobatomdanoiteanterior, queagoraera apenasumborrãovermelho.Elapuxoua cadeiraparafrente.—Comovocêestásesentindo?Eumeesforceimuitoparanãosurtar.Movicadaumdosmeusmembros

e fiquei aliviada de confirmar que não estavam quebrados. Conferi meucorpointeiroembuscadecurativosenãoencontreinenhum.Entãopasseiasmãospelocabeloemaranhadoeconfirmeiquenãohavianenhumpontonacabeçatambém.—Oque aconteceu?— falei coma voz rouca.—Essa é a pior dor de

cabeçaqueeujátive.— Tudo bem, querida. — Minha mãe afagou minha mão para me

tranquilizar.—Énormal.Millieolhouparamim,parecendoprestesachorar.Amaquiagemestava

marcada de lágrimas e as pálpebras manchadas de rímel. Ela apoiou acabeçanasmãosepuxouseucabelocastanhobagunçado.—Eusintotanto,Soph.Minhamãeapertouminhamãoatédoer.—Parecequevocêfoidrogadanafesta.Demorei muitos segundos para que as palavras se conectassem à

confusãodomeucérebro.Eentãosentiumapertonabocadoestômago.—Drogada?—Nãofazíamosideia—fungouMillie.—Vocêestavanormaledonada

nãoconseguianemficardepé.Nãolembravaondeestavaeficourepetindoquequeriairparacasa.Tenteimelembrar,masasmemóriasnãoapareceram.—Entãometrouxeramparacáemefizeramumalavagemestomacal?Milliefechouorostoedesviouoolharparaacoberta.—Agenteachouquevocêsóestavabêbada.Alguémdissequevocêtinha

tomadotequilaoualgoassim.AíoRobbieStensonlevouvocêparacasa.A expressão no rosto da minha mãe se transformou em um show de

decepção.—Agora,Millie saiba quedeveria ter ligadoparamim— falou ela.—

Bebendoounão,deveriamtermeligadoparaeusabersevocêestavabem.—Desculpa, sra. Gracewell! Se eu tivesse suspeitado por um segundo

quealguém tinhadadoalgumacoisapara ela, eunão teria simplesmentemandado ela para casa... — Millie começou a soluçar em um choro que

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balançavatodoocorpo.MinhamãeconfortouMilliecomtapinhasamigáveisnascostas.—Eusei—disse,tentandoacalmá-la.— O que aconteceu?— Senti que estavame esforçando para lembrar

algopróximo,masquantomaistentava,maiseuesquecia.—Robbie disse quenãohavia bebido e que sabia o caminhopara sua

casa.—Millieestavaenrolando,omitindoalgo;eraóbvio.Minhamãeinterrompeu:— Recebi uma ligação dizendo que um rapaz trouxe você para a

emergência do hospital. Quando cheguei, eles fizeram alguns testes eencontraramvestígiosdeRohypnolnoseusangue.Apalavrabateucomoumatoneladadetijolos.—Ro-Rohypnol?—gaguejei.—Mederamum“Boanoite,Cinderela”?—

Imediatamenteleveiasmãosatéminhacalcinha.— Não, não se preocupe — interrompeu Millie, com pressa. — Ele

chegouatempo.—Robbie?MinhamãetrocouumolharcomMillie.—Não,nãofoiRobbie.Aenfermeiradissequefoiumrapazmorenoede

cabelo escuro que trouxe você para cá. Ela disse que ele não quis dar onome.Meucoraçãoestavatãodisparadoquemalconseguiapensar.ComoNic

podia fazer parte disso? E por que estava sendo tão cauteloso com seuenvolvimento?—Nãoestouentendendo...—Eledisseàenfermeiraqueencontrouvocêcomumgarotoqueparecia

estar tentando se aproveitar da situação. Enfrentou o rapaz, que fugiu.Então,quandoelepercebeuquevocêestavamuitomal,tetrouxeparacá.Sentiumapontadanaincisãodosoronaminhamão.—OndeNicestáagora?— Ele foi embora antes de a gente chegar. — Dessa vez, Millie

respondeu.—Mas a enfermeira disse que ele ficou por quase uma horaenquantotentavamlocalizarasuamãe.Elequeriasecertificardequevocêestavabem.Minhamãeserecostounacadeira,parecendomaisrelaxada.— Millie e eu tentamos entrar em contato com os Priestly, mas não

encontramoso telefonedeles. Seriaumaboaconversar comessemeninoquandovocêsairdaqui.— E para onde o Robbie foi depois que Nic apareceu? Era ele quem

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estavatentandoseaproveitardemim?Milliedeudeombros,assobrancelhasfranzidasdeconfusão.—AchoqueNicpensouqueeleestavatentandobeijarvocê.Eusempre

penseiqueRobbietalvezgostassedevocê,masnãoachoqueelefariaissocomvocêtãoapagada.Querdizer,vocêvomitouduasvezesantesdesairládecasa.Quehorror—eunãomelembravadisso.—Alex passou amanhã toda tentando falar comRobbie, para saber o

que aconteceu — continuou Millie. — Quem sabe o Nic simplesmentesurtouquandoviuvocêsdoisjuntos.MeucérebrorecuperouamemóriadeNicsendociumentocomAlexno

torneio de basquete, mas eu ainda estava exausta e confusa. Não melembravadeencontrar comRobbieStensonnanoiteanterior, emboraeutivesseumavagalembrançadevê-lonafestanomeiodamultidão.—Então,quemfoi?—perguntei,enfurecida.—QuembotouRohypnol

naminhabebida?— Não sabemos, Soph. Até onde sabemos, você foi a única vítima.—

Millie mal me olhava nos olhos.— Alex disse que talvez tenha sido umprimodeumdos amigosdele. Ele se envolveu emumahistóriaparecidaunsanosatrás.Nemfoiconvidadoparaafestaeagoranãoolocalizávamos.—Millieparoudefalar.Esfregouosolhos,espalhandoasombranosolhosaté parecer um panda. — É tudo minha culpa, Soph. Desculpe por terdeixadoafestasairdecontrole.—Estátudobem—falei,torcendoparaqueaquiloaplacassesuaculpa.

—Podiatersidopior,certo?Nãomemachuquei.—Sim,aindabem—disseminhamãe.Fecheiosolhoscomforçaemeconcentrei.Estavadançando.Estavana

cozinha.EstavacomMillie.Edepois,nada.—Estoutentandomelembrar.Minhamãeapertoumeuombro.—Querida,omédicodissequeéprovávelquenãorecupereamemória

de ontem à noite. Você pode ter uns flashbacks, mas dificilmente vai selembrardetudooqueaconteceu.Masestamosdeterminadosadescobrir.Apolíciavaiquererconversarcomvocê,agoraqueestáacordada,etambémvamosfalarcomessetaldeRobbieassimqueeleaparecer,prometo.—Vamosdarumjeito—reforçouMillie.Olhei para a agulha na minha mão e fiquei um pouco mais ciente do

líquidogeladoqueentravanomeucorpo,gotaagota.—Quandopossoiremboradaqui?Odeiohospitais.

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Como se programado, uma enfermeira rechonchuda de cabelo curto elouroentrounoquarto.—Comovocêestásesentindo?—perguntouela.Eutinhaumavagalembrançadejáterouvidosuavoz.—Confusaecomdordecabeça—deduzi.Sem olhar para cima, ela emendou um discurso que parecia

perfeitamenteensaiado:—ORohypnolestádeixandoseucorpoeapiorpartedoefeitojápassou.

Vai sentir uma leve dor de cabeça e talvez um pouco de enjoo pelospróximosdoisdias,masdepoisdissodevevoltaraonormal.Omédicodissequeestaráliberadaquandosesentirforteosuficiente.—Estouforteosuficiente.Aenfermeiracontraiuoscantosdoslábiosfazendoumacareta.—Deagoraemdiante,aconselhoquemantenhasuasbebidasporpertoo

tempo todo e cubra os copos quando estiver perto de pessoas que nãoconhecemuitobem.Abriabocaparaprotestar,masmecontrolei.Euestavacomraiva,mas

nãodela.Estava comraivade tudo:dapessoaquehaviamedrogado,dogarotoquehaviatentadomebeijarquantoeuestavatãomaledeNic,portermelargadoalitãoconfusa.Primeiroelevaiemboracomoirmão,medeixandoemumaruadeserta,

depois aparece do nada e me salva, mas me deixa sem saber o queaconteceu. Mesmo ausente, ele aindamexia comminha cabeça e, de umjeitooudeoutro,issoprecisavaacabar.

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CAPÍTULOQUINZE

OAVISO

Estava sentada com os cotovelos namesa, olhando para o telefone. Elevibrava no tampo demadeira, fazendo com que as ervilhas rolassem noprato.OnúmerodatelameavisavaqueeraJack.—Elenãovaipararde ligar.—Minhamãe falou comaboca cheiade

costeladeporcodefumada.—Lido com isso amanhã.—Eu queria falar commeu tio,mas estava

tardeeeumal conseguiamanterosolhosabertos, anão serpara comer.Engoliamontanhadepurêdebatatanaminhabocaereclamei:—Porquevocêtevequecontartãorápidoparaele?—Não contei. Falei com a Ursula porque não quero que vá trabalhar

amanhã, e ela contou quando ele ligou para a lanchonete.— Ela deu deombroseenfiouumagarfadadeervilhasnaboca.Meu telefone começoua vibrardenovo,piorandoadorde cabeçaque

aindalatejavanaminhanuca.Pegueiotelefoneepasseiodedopelatela.—Oi,Jack.—Estoudoladodefora.Abraaporta.—Oquê?—Abraaportadosfundos.Ele desligou. Fui andando até a janela da cozinha. Ele parecia uma

sombra parado perto dos arbustos, cuidadosamente fora do alcance dossensoresdemovimento,eeumalconseguiavê-lo.Deondeeleviera?—Eleestáaquidenovo?—Avozdaminhamãefervilhavadedesprezo.

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Elaselevantou.—Oqueeleestáfazendo?Destranquei a porta e ele correu para dentro, fechando e trancando a

porta.—Sophie—soltoueleofegante,asbochechasinchadaserosadas.—Deondevocêveio?Ele dispensou minha pergunta com um gesto e me esmagou em um

abraço tão fortequepenseique ia ficar semar.Nãoabraçava Jackdesdequandoeueracriança.Estavaacostumadaaoutrostiposdedemonstraçãodeafeto—presentescaros,umafolgasemavisooutelefonemasaleatórios.Masalgonaqueleabraçomefezsentirmelhordoquetodasaquelascoisas—mefezsentirsegura.—Estoutãofelizquevocêestábem—suspirouelenomeupescoço.Elemelargouecambaleeiparatrás,apertandoopeitocomamão.Estava

começandoasentirumapertonagarganta.Engoliemseco,esperandoquepassasse,mas omodo como Jackme olhava, com os olhos tão parecidoscomosdomeupai,tãocheiosdepreocupaçãoealívio,quasemefezchorar.—Seeutivessedeixadoqualquercoisaacontecercomvocê,Mickeyteria

fugidodacadeiasóparamematar—disseeletentando,emvão,melhoraroclima.—Oqueestáfazendoaqui?—faleideumavez,emumatentativademe

distrairdonónagarganta.Atrásdemim,minhamãesondavaa situação.Quasedavaparaveradesconfiançavazarpelosporos.Jack coçoua cabeça raspada.Ele estavaestranhamentedesgrenhado, o

ternodesempresubstituídoporumacalçajeanslargaeummoletompreto.Elenãopareciatermetadedoegooudariquezadesempre.—Passeiodiainteiroligando,Persephone.Fizumacareta.Eledeviaestarirritado.—Euestavanohospital.—Fiqueisabendo.Quasemorridepreocupação.—Nósdois—disseminhamãe.Elafoiatéapiaecomeçouaencheruma

chaleira.—Comoestásesentindo?—Porondevocêestava?—perguntei,aomesmotempo.Jackesfregouosolhos.—Portodooestado—respondeuele,cansado.—Fazendooquê?—Coisasdetrabalho.Ele estava sendo conciso; nunca falava comigo sobre seus outros

negócios.Eusabiaquetinhaalgoavercominvestimentosetaxasdejuros,

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e é por isso que nunca me dei ao trabalho de querer saber mais. Eumorreriadetédio.—Estádevolta?EmCedarHill?—Fiqueisurpresaemvercomominha

esperança soava infantil, e me senti envergonhada. Obviamente eu nãotinhanotadocomosentia faltadele. Jackeraaúnicareferênciamasculinanaminhavidae,semele,eumesentiamaisincompletadoquedeveria.Elebalançouacabeçasoturnamente.—Aindanão.Nãototalmente.Minhamãe se ocupavano fogão. Ela entregouuma caneca com cháde

hortelãaJack,queaceitoucomumasobrancelhalevantada.—Obrigado,Celine.—Antesquepergunte,nãotemálcoolnabebida.Meencolhi.Tudoestavaindotãobematéentão.Eletomouumgolesem

tirarosolhosdela,controlandoarespostaporminhacausa.—Nãopodiateresperadoumahoramaisrazoávelparafazerumavisita,

Jack?— A voz deminhamãe transbordava reprovação.— Precisa fazertudonomeiodanoite?Elaaignoroudessavez,repousandoacanecanamesa.—Oqueaconteceuontemànoitefoigrave—faloueleparamim.—E

bemnoseuaniversário!—Eusei—falei,mordendooslábiosparaquenãotremessem.—Jádescobriramquembatizousuabebida?—Não—respondi,cansadaderespondersempreamesmapergunta.A

políciajáhaviameentrevistadonohospital,enãotinhamsidomuitoúteis.Não é como se houvesse alguma pista, e eu estava convencida de quejamais me lembraria completamente daquela noite. Sabia também queRobbie Stenson me evitaria para sempre, assim que reaparecesse. Elefinalmente havia respondido à mensagem de texto de Alex dizendo queestavaviajandopor“motivosfamiliares”,equenãotinhasedadocontadequeeuestavatãomalassim.Elerealmentepensouqueeugostavadeleequeriabeijá-lo,epediudesculpaspormeu“namorado”terficadoirritadoeinterrompido o momento. Se estivesse se sentindo culpado de verdade,teriamandadoumamensagemparamim,masnemsedeuaotrabalho.Eaúnica outra pessoa que sabia das partes deletadas daminha noite era omeu“namoradoirritado”,Nic,quejátinhaganhadoumOscarnaartedemeevitar.— Foi alguém da festa que fez isso? — Tio Jack continuava em seu

interrogatóriosemsentido.Deiaeleamesmarespostaquedeiàpolícia.

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—Achoquesim,mastinhatantagenteláquepodetersidoqualquerum.Jackassentiu,atenciosamente.—Tinhaalguém láquevocênão conhecia?Alguémdanova famíliada

avenidaLockwood?—Não—respondi,comcerteza.—Aliás,senãofosseporaquelafamília,

eupoderiaestarbempior.—Oquê?—rosnoueleeasuavidadedesuavozdesapareceu.—Foiumdelesquemmeencontrounocaminhoparacasaeme levou

paraohospital.—DeixeideforaapartesobreRobbieStenson;nãoqueriaquemeutiomeimaginassebeijandoumgaroto.Alémdomais,eumesmamalpensavanoassuntosemquererarrancarminhaprópriapele.Jackapertouoslábios,travandooqueixo.—Comosabequenãofoielequemdrogouvocê?Nãomedeiaotrabalhodeesconderairritaçãonaminhavoz.Eunãoia

deixar Jackmanchar a boa ação de Nic por causa dos seus preconceitoscontraafamíliaPriestley.—Elenãomedrogou.Elenemestavanafesta!—Nãosei,não—resmungouJack.Eleolhouparaminhamãe,masseu

olharestavaperdidoaolonge,claramentedesacocheiodavisita.Elatinhafeitoseumelhor:resistiraporquatrominutos.Solteiumsuspiro,quesetransformouemumbocejo.— Mesmo se ele tivesse me drogado através de alguma intervenção

mágica, por que ele me levaria ao hospital e pediria que ligassem paraminhamãe?—Tenhocertezadequeeleteriamaneiras...—Porfavor—forcei.—Podeparar.Estásendoparanoico.— É tão cansativo— acrescentou minha mãe com uma voz seca. Ela

cruzouosbraçoseseaproximoudemim.Cobriaboca,escondendomaisumbocejo.—Ok—cedeuJack.—Estousópreocupado,Sophie.Entende?Queroter

certezadequevocênãoéumalvo.Eu estava cansada, mas não o suficiente para ignorar a estranheza

daquelafrase.—Porqueeuseriaoalvodealguém?Minhamãeestavairritada.Suatolerânciaparaosdelíriosparanoicosde

Jack se esgotara haviamuito tempo. Afinal, tinha sido aquele hábito quemeterameupainaconfusãoqueolevouparaaprisão.—Doqueestáfalando?—Nãosei—respondeuele,maisparasimesmodoqueparanós.Passou

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amãopelorostoatéocabelo.Euestudeisuaaparência:osolhosestavamvermelhos, a barba por fazer, a pele manchada. Até os lábios estavampálidos.—Sophieestábem,Jack—disseminhamãe,engolindoorestodafrase.

Era evidente que ele estava perturbado com o que acontecera comigo, enão tinha por que brigar com ele. — Acho que você precisa descansar.Todosnósprecisamos.—Tudobem—cedeuele.—Vouembora.Ele então sorriu paramim; era um sorriso doce e cheio de esperança,

comumpequenosinaldemistério.—Quandovocêvolta?—Euestava,novamente,parecendoumacriança,

masnãomecontinha.Euqueriameutioporperto.Eleeraaversãomaisimprevisível e descontrolada do meu pai, que era calmo e comedido, enaquelemomentoeleestavafazendoomelhorquepodiaparaserasduascoisasparamim.Talveznãoestivesseindomuitobem,masaindatínhamosumaligação,eleeeu.E,emboraminhamãenãofosseadmitir,semmeupaiporperto,nossafamíliaprecisavadetodooapoio.Elebagunçoumeucabelo.—Embreve—respondeu,ríspido.—Euligo.Eleparoucomamãonaporta.—Elembre-sedoqueeudisse.Fiquenasua.—Podedeixar—menti,comfacilidadedessavez.AparanoiadeJackme

deixara ainda mais determinada a descobrir exatamente o que estavaacontecendoàminha volta. E eu suspeitavaque as respostas estavamnacasadosPriestly.

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CAPÍTULODEZESSEIS

OMAL-ENTENDIDO

Dois dias depois, com a recuperação quase completa, eu estava prontaparainiciarminhainvestigação.NãofiqueisurpresaporNicnãotertentadofalarcomigodepoisquesaí

dohospital,porquenadaqueNicfaziaoudeixavadefazermesurpreendiamais.Caminheiatéacasadelenoiníciodatarde.Pareiemfrenteaosportões

deferroe inspecioneiamansãocomumacrescentesensaçãoruim.Haviaapenasumcarroestacionadonaentradaeumpânicosúbitomeocorreuaopensar na possibilidade de esbarrar com qualquer um dos outrosintegrantesdafamília.Afinal,eucontinuavasendoumaGracewell—sejaláoqueissosignificavaparaeles—enãohavianadaquepudessefazer.Criei coragem e passei pelos portões abertos, pisando nos cascalhos

barulhentos pelo caminho. Quando cheguei à porta vermelha, bati naaldravaerecuei,esperandoansiosa.Depoisdoquepareceuumaeternidade,trêstrincosmetálicosgirarame

aportaseabriu,revelandoumasilhueta,ocultapelasombradohallatrásdele.Maseuconheciaaquelecontornotãobemquantoaquelavoz.—Sophie?—Nicestavaparadosobovãodaporta,perfeitocomjeans

desbotadoeumacamisetabranca.Eleestavadescalço.—Oi—chutei,percebendosuatensão.—Querofalarcomvocê.Comasmãosapoiadasnosdoisladosdaporta,eleseinclinouparaforae

estudouojardimatrásdemim.

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—Sophie—repetiu,masdessavezmaisgentil.—Oqueestá fazendoaqui?Pelomodo como os olhos dele buscavam osmeus, eu sabia que ainda

existiaalgoentrenós.Oarànossavoltapulsava,edecidiirdiretoaopontoantesqueaquilomeconsumisse.—Nãoprecisasefazerdedesentendidosobreaoutranoite.Sua expressão mudou, os olhos se arregalaram. Ele se aproximou

devagar e então parou, incerto, como se lutasse contra a vontade de seaproximardemim.—Doqueestáfalando?—Aenfermeiramecontousobrevocê.Seiquepediuparaelanãofalar

nada,maselafalou,entãonãoprecisamentir.Ele parou de hesitar. Foi naminha direção, descalço sobre o cascalho.

Baixou a voz até um sussurro e segurou meus braços, me puxandogentilmenteatéele.Visuasmãosnaminhapeleeaperteioslábios,confusa.—Sophie.—Ele fixouoolharnomeu.—Não tenhoamenor ideiado

queestáfalando.—Comoassim?Vocênãomelevouparaohospitalnooutrodia?Quando mencionei a palavra “hospital”, a confusão em seu rosto se

transformouemangústia.—Porquevocêfoiparaohospital?—Elemeolhoudecimaabaixo.—

Alguémmachucouvocê?— Não foi mesmo você quem me salvou? — perguntei, subitamente

envergonhada.—Salveivocê?—repetiuele,horrorizado.—Masaenfermeiradisseparaaminhamãe...—Sophie.—Elemoveuasmãosparaminhacinturaeendureceuavoz.

—Porfavor,medigaoqueaconteceu.Porumsegundo,pudevernaminhafrenteoNicqueeutinhaconhecido

noinício.Estavabemali,aoalcance,quandooutrafiguraapareceunaportaatrásdele.— Nicoli? — Foi tudo que Luca precisou dizer para que seu irmão

pulasseparalongedemimcomoseeuestivesseemchamas.—Oquefoi?—exigisaber.—Oqueestáacontecendo?—Nãoposso.—Eleseafastou,quasepedindoperdão.—Nãoposso.—Nãoestouentendendo.—DesvieioolharparaLuca,queseencostou

nobatentedebraçoscruzados.Eleignorouminhapresença.— É melhor entrar, Nicoli. Valentino está procurando por você. — A

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últimapartepareceuumaameaçavelada,maseunão sabiamuitobemomotivo.Nichesitou,comospunhoscerrados.— Luca, não vou embora até ter certeza de que ela está bem.— Ele

estava irritado e isso me deixou segura, mas não o suficiente. — Algoaconteceucomela.Estevenohospitaleprecisosaberomotivo.—Eusei—disseLuca,avançandolentamenteemdireçãoaoirmãopara

queficassemcaraacara.Lucaeramaisalto,masNiceramaisforte.Eumepergunteiqualdosdois

ganharianumabriga.EentãomepergunteicomoLucasabiadohospital.—Como?—Niceeuperguntamosaomesmotempo.—Fuieuquealevei.—Vocêoquê?—questionei.—Estábrincando,Luca?Porquediabosnãomecontouissoantes?Porumsegundo,penseiqueNicfosseatacaroirmão;acabarcomele,e

fazerumfavoratodosnós.Masnão.Apenasficouali,espumandoderaiva.Fiqueiobservandoseupeitosubiredescer.Luca agarrou o pescoço de Nic, trazendo-o perto o suficiente para

sussurrar algo no ouvido e, quando ele se afastou, parte da raiva haviasumido.—Émelhordarum jeitonisso—disseNicagitadoantesdeentrarde

novo.— Porque não pode esperar que eu não faça nada...—A frase foiinterrompidanomeiodaameaça.— Humm, tchau, Nic! — gritei de forma sarcástica enquanto ele se

afastava,mecensurandopordeixaracovardiadelememagoarmaisumavez.—Quefamíliabizarra—sussurrei,altoosuficienteparaLucameouvir.Assobrancelhasestavamencobertaspelocabelopretobagunçado.—Veioaquiparaisso?Paramexingarfeitoumacriança?Cruzeiosbraços.—AcheiqueestavaaquiparafalarcomNic.Eleapertouoslábios.—Sintotedecepcionar.—Nãosentenada.—Éverdade,nãosinto.Luteicontraavontadedebaterospés.—Então,asuamissãoadomicílioeraapenasparaagradeceraoNicoli,e

sóaele?Ou,eu,apessoaquedefatoajudouvocê,nãomereçonenhumtipodegratidão?

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Engoliumatoneladadepalavrões.—Issonãopodeestaracontecendo.—Bem,masestá.—Derepente,Lucamepuxoupelobraçoatépararmos

atrásdocarro,protegidosdaruaedequasetodasasjanelasdacasa.—Melarga!—gritei,afastando-o.—Qualéoseuproblema?—Qualomeuproblema?Estábrincando?Dei um passo para trás, me apoiando no carro e, de repente, uma

memória surgiu naminhamente.Eu estava sendo esmagada contra umaparededepedras.Balanceiacabeçaeamemóriasumiu.—Porquevocêprecisasertãobabaca?Luca se aproximou, diminuindo a distância entre nós em mais 15

centímetros.—Porquebebeuapontodeficardaquelejeito?—retrucouelecomuma

vozcruel.—Nãotemnenhumapreçopelaprópriasegurança?—Comoousadizerisso?—rebati.—Nãotemamenorideiadoqueestá

falando,entãocalaaboca!—Fuieuquecateivocêdacalçada!—Parasuainformação,eunãotinhabebido!Lucamordeuolábioesentiaraivasubiremminhacorrentesanguínea

como metal ardente. Antes que pudesse me controlar, minhas mãosestavamno peito dele empurrando-o com tanta força que ele cambaleouparatrás.Partiparacima,empurrando-ocadavezmais.—Eufuidrogada,seuidiota!Porummomento,ficamosencostados,unidospelaforçadaminharaiva

e o som das nossas respirações pesadas. E então, com uma lentidãoexagerada,elemeseguroupelosombrosemeafastougentilmente.Tenteimeconcentrarnarespiraçãoemeacalmar,masestavaofegante

demais.—Entendo—disseeleporfim.—Eunãosabia.Deideombros,semforças.—Achoqueeudeveriatersidomaiscuidadosa.Elefranziuonarizcomnojo.— E ele deveria ter sido bem mais respeitoso, independente do seu

estado.Senti um nó na garganta,mas eu tinha conseguidome controlar pelos

últimosdoisdiasenãoiacederàslágrimasagora,especialmentenafrentedeLuca.—Nãomelembrodenada—falei,mordendoalínguaeolhandoparao

chãoatrásdele.—Aindatenhodificuldadesparalembrar.

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—Não tente.— Luca botou asmãos nos bolsos do jeans.—Algumasmemóriassóvãotemachucar.—EstáquerendodizerquevoumesentirpiorsesouberoqueRobbie

fez?Elebalançouacabeça.— Ele não machucou você, tá? Estava só sendo um bêbado idiota

tentandoasortecomumagarotabonita.Arregaleiosolhoscomoelogionãointencional.— Eu estava apenas tentando explicar qual era a do cara — ele se

corrigiu rapidamente.—Ele foi burro, certo?Não deveria ter tentado seaproveitardevocê.—O-ondefoi?Ondeagenteestava?Eunãosabiaqueseriatãodifícil falarsobreaquelanoite,ecertamente

não imaginei que falaria disso com o arrogante Luca Priestly, mas euprecisavasaber.—Aalgumasquadrasdaqui.Euovicomvocêumpoucoantes...—Ele

parou de súbito emudou a direção da frase.—Não gostei da cara dele,então dei a volta para ver se ele estava fazendo algo que não deveria.Quando encontrei vocês, dava para ver que você estava apagada, entãodecidiintervir.—Oqueaconteceucomele?—Nãoselembra?—Não.—Sópediqueelefosseembora,eelefoi—respondeuelesemmais.—

Elefoibemobediente.—Entãoelesimplesmentefoiemboranomeiodanoiteemedeixoucom

você,alguémquemalconhecia?EstudeiLucacomatenção,esperandoumaresposta.Osolfaziacomque

seusolhosazuisbrilhassemdeformaquaseamigável,masnãohavianadasemelhantenotomdavozdelequandomerespondeu.—Quando peço para alguém fazer uma coisa, geralmente não preciso

pedirduasvezes.—Issoquasepareceumaameaça.Lucaapenasrevirouosolhosedeudeombros.—Sabequemdrogouvocê?—Não.—Eugostariadesaber,seconseguiressainformação.—Porquê?—perguntei,mesentindoinquieta.— Está perguntando por que quero saber a identidade da pessoa que

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acha aceitável envenenar a bebida de garotas durante uma festa?— Suarespostatinhatomdeobviedade.—Nãovejoquediferençaissofazparavocê—retruqueiclaramente.—Não—concordouele.—Nãovê.Eupodiaperceberahostilidadevoltando,sentiomesmocalafriodanoite

emqueelehaviamandadoNicseafastardemim,eaquiloiaalémdosmeuslimites.Eleeratãoirritante.—Oquevocêdisseparadeixarseuirmãocontramim?Elebalançouacabeça.—Nãovouentrarnesseassunto.—Mereçoumaexplicação.— É melhor você ir embora. Acho que já fiz o suficiente por você,

Gracewell—devolveuelenamesmamoeda.—Nãoestouinteressadoemajudarvocêemeuirmãoateremum“felizesparasempre”.Gracewell?Entãoeunãomereciamaisnemser chamadapeloprimeiro

nome.—Oqueeufizparavocêmeodiartanto?Elerevirouosolhosnovamente.—Eunãoodeiovocê.Eunãosintonadaporvocê.Arespostameferiumaisdoqueeugostaria.—Vocêéhorrível,sabia?Elenempiscou.—Earrogante—sussurrei.—Emetido.— Terminou? — Em um instante ele havia me imprensado contra o

carro.—Vamosesclarecerumponto,certo?—Seuolhareraagressivo.—Estaéaúltimavezquequerovervocêpertodestacasa,entendeu?Quandocaminharparacasadepoisdotrabalho,atravessearua.Nãoolheparacá.Nãovenhanessadireção.Sequerrespirenessadireção.Eujádissequenãosoudepedirduasvezes.SeeuencontrarvocêpertodoNicdenovo,mesmoseestiver sódizendooi ou correndoatrásdelequenemumcachorrinhoperdido,vouatrásdevocê,daquelasuaamigainglesatagarela,dasuamãee,acredite,vocênãovaigostar.Entendeu?Senti o pavor se infiltrar no meu corpo. Agora eu estava vendo.

FinalmenteestavavendooperigodequeotioJackeasra.Baileytentavamme avisar. Sem falar nomau comportamento, que devia ser responsávelpelo sangue na camisa de Luca. Talvez meu tio paranoico e a velhafofoqueira estivessem certos sobre aquela família — pelo menos sobreLucaestavam.Euqueriadizeralgocorajosoeinteligente,maselemefitavacomosefossemedevorar,entãoassenticomoumzumbi.

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—Deagoraemdiante,vamosseguircaminhosdiferentes.Capisce?Minhavoztremeuderaivaemedo.—Vocênãopodefalarcomaspessoasassim.Eletirouasmãosdocarroeseafastou.—Entendeuoqueacabeidedizer,Gracewell?Cruzeiosbraçoseassenti.—Estamosentendidos?—Super.—Vocêtemmedodemim?—Eleinclinouacabeça.—Sim.—Aminhavozsaiuenfraquecida.—Temorgulhodisso?Lucameolhoupormuitotempoantesderesponder.—Não,nãotenho—respondeu,tãobaixoquepreciseimeesforçarpara

ouvi-lo.Eentãosevirouecaminhouparaacasa.—Espere!—chamei,quandominhaparteracionalprotestou.Lucaseviroudevagar.—Vocêsedáotrabalhodemanterseuirmãolongedemim,masaíme

levaparaohospital e quer se certificardeque estoubem.Enãodiz seunomeparaaenfermeira,casoeupensequevocêéumcaraminimamentedecente.Nãoentendo.—Nãoprecisaentender.Sóprecisaaceitar.—Entãoporquesedeuotrabalhodemecatardacalçada?Porquese

importasefuidrogadaounão?Aperguntaficoususpensanoarentrenós.Elepiscouduasvezeseaboca

se abriu em um “O”. Por um segundo, ele pareceu tão jovem e inocentequantoseuirmãogêmeo.—Estábrincando?—Eleestavapasmo.—Nãosouummonstro.—Nãoéoqueparece.Eleapertouonarizepuxouoarcomosefossedizeralgo.Masnãodisse.

Emvezdisso,balançouacabeça.—Émelhorvocêirembora,Gracewell.—Eutenhoumnome,sabia?Eleriu,olhandoparaocéu,comoobommaníacoqueera.—ÉSophie.S-O-P-H-I-E.Elecontinuourindo,masquandovoltouaatençãoparamim,avozestava

perfeitamenteimpessoal.—Temcertezadisso?Fiqueipálida.—Comoassim?—Vocêentendeu.

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Antesqueeupudesseprocessaroembrulhonomeuestômago,elevoltouafalar.Dessavez,suavozestavaperturbadoramentecalma.—Nãoentendeu?VocêéumaGracewell. É tudoquevocê sempre será

paranós.—OqueimportaparavocêsesouumaGracewell?—euquissaber.Por um momento interminável, ele me encarou, pensativo. Quando

finalmente cedeu, soltou um suspiro profundo, como se tivesse enfimtomadoumadecisão.Atravessouaentradadecarrosechegouatémimemquatropassadas.—Realmentenãotemamenorideiadeporquenãoébem-vindaaqui?

—chiouele.—Érealmentetãoignoranteassim?Engoliemseco,reparandoaaridezinstantâneanaminhagarganta.—Doqueestáfalando?Luca franziu o cenho. Eu não tinha entendido a pergunta, e ele não

entendiaaresposta.—Cazzo.—Elemeestudoucomumaconfusãoquaseviolenta;orosto

estava tenso, fazendo com que parecesse abatido.— Não vou lidar comisso.—Querorespostas!—protestei.—Nãovaiconseguirnenhumaaqui.— Onde, então?— perguntei, quase implorando, a voz sucumbindo à

irritação.Luca ficou tenso, as últimas gotas de paciência que ainda tinha para a

nossaconversaterminaramrápido.— Pergunte ao seu pai, Gracewell. Você deve estar lhe devendo uma

visita.A sensação familiar de pesar subiu porminha espinha.Meu pai. Tudo

sempre voltava ao meu pai. É claro que tinha algo a ver com ele— eujamaissuperariaoqueelefez.Jamaissuperariaavergonha.Mashaviaalgonovo nas palavras de Luca, algomais profundo, que faziameu estômagorevirar.OquemeupaifezparaosPriestly?Antesdeserpreso,elejamaistinhafeitonadaerrado.Atéondeeusabia,pelomenos.Luca não ia esperar até eu descobrir. Ele me deu as costas de novo,

caminhou apressado até a casa e bateu a porta com um baqueensurdecedor.Comorostoquenteeardendo,olheiparacimaeencontreiValentinono

mesmolugaremqueoviranaprimeiranoite.Estavaperfeitamenteimóvel,comoscotovelosapoiadosnoparapeito,olhandoparamim—eparatudoquetinhaacabadodeacontecer.Seurostoerasolene.Seráqueeletambém

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meodiava?Seráqueconcordavacomaformaqueseugêmeoagia?Elelevantouamãoeamanteveerguidanoar,comoemumacontinência.

Aceneidevolta,comobraçoquepareciatãopesadoquantomeucoração,eele sorriu para mim. Foi um pequeno gesto de gentileza — um levemovimentodoslábios,nadamais.Eentãoelesumiu.Efuideixadacomaideiadeque,serealmentequeria

respostas,precisariaprocurá-lasnolugarquemaisestavaevitando.

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CAPÍTULODEZESSETE

AMEMÓRIA

Nodiaseguinte,falteiaotrabalhoepegueiumônibusparavisitarmeupainoCentroCorrecionalStateville,emCrestHill.Nãoconteiparaminhamãe—elaandavaestressadadesdeoincidentenafestadaMillieeacheiqueaprisãodeviaseraúltimacoisasobreaqualelagostariade falar.Alémdomais, eu estava indo em busca de respostas para um problema que elaparecia desconhecer e, se fosse tão ruim quanto eu imaginava, preferiamanterascoisascomoestavam.O centro correcional era composto por diversas alas de concreto e um

prédio circular protegido por uma cerca de arame e dez torres devigilância. Fora dos muros, mais de oito mil hectares de campo abertocercavamaprisão,mantendoisoladosdavidanormalseusmaisdequatromilpresidiários,incluindomeupai.Eraasextavezqueeuovisitavaemumanoeseismesesdeprisão,ea

cadavezficavamaisdifícil.Tenteiponderarofatodequeaindateriamaisquatroanosdevisitaspelafrente.Depois de mostrar a identidade e passar pela revista de segurança,

encontreimeupainasaladevisitas.Ànossavolta,osoutrosprisioneirosseacomodavam com suas famílias em cadeiras de metal e mesas brancas;crianças e bebês dividiam o ambiente com avós robustas e adolescentesgóticos.Osguardasobservavamdasparedes,comolhosatentosàprocurade um abraço ou qualquer outro movimento proibido, por cima ou porbaixodasmesas.

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Meupaiestavamaispálidodoqueeuesperavaecomolheirasaindamaisprofundas.Eusabiaqueelepodiaestarbempior.Comomeupainãofaziapartedenenhumagangue,eleera,emtermosprisionais,um“nêutron”,oquesignificavaqueospresidiáriosmaisviolentosnãooincomodavam.Noentanto, não conseguia evitar os efeitos da escassez de comida e doexercíciofísicolimitado.Eleestavaperdendopesoedormindopouco.—Comovocêestá?—Comeceiamorderaunhadomindinho;umtique

nervosoquenormalmentevoltavanapresençadele.Meupaisacudiuocabelogrisalhobagunçadoparaquecaíssenatestae

escondesseomachucadosobreoolho—quasenãooincomodavam.— Indo, Soph.—Ele tentou sorrir,mas saiu torto e amarelo.—É tão

bomvervocê.Reunitodasminhasforçasparanãodesabarnobancogeladodemetal.

Eleeraasombradohomemquetinhamecriadoabasedecontosdefadas,filmes de aventura e longas viagens. As piores atitudes que ele tinhatomadonavidaenvolviamgritarcomigoquandoestavairritado,esquecerdelavaralouçaouficaratétardenaruacomotioJackdevezemquando.Elenãopertenciaaomesmolugarqueummontedeassassinos.Mesmoquetivessematadoumhomem.—Pai,vocênãoparecemuitobem.—Nãotemmuitasfrutaselegumesnadietadaqui—provocouele,mas

o tom levenãoalcançouseuolhar.Ele se inclinoue segurouminhamão;sentiamãoásperaecalejadadelenaminha.—Felizaniversárioatrasado,Soph.— Sem encostar!— gritou um guarda por perto. Resisti à vontade de

bater a cabeçanamesaquando afastamos asmãos. Emvezdisso, fixei oolharnasminhasunhas.—Obrigada,pai.—Então,comovãoascoisasemcasa?—Seusolhosseacenderamcom

interesse,relaxandoseurostoemedistraindodasnovasrugasemvoltadabocadele.—Umtédio,comosempre—menti,omitindodepropósitoaparteem

quehaviammedrogadonafestadaMillie.EusabiaquetioJackouminhamãecontariamembreve,masnãoqueriaqueelesoubessepormim.—Comeceiumlivronovoontem...Escuteienquantoelemecontavatudosobreoslivrosqueandavalendo.

Quando terminou, iniciei minha lista de assuntos seguros, incluindo osnovosclientesdaminhamãeemLincolnParkeamaisrecenteideiainsanada Millie de ir explorar as ilhas gregas depois que nos formássemos.

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Falamos sobre as visitas semanais da sra. Bailey e mencionamosrapidamentemeuúltimoanodeescola,quecomeçariaembreve.Meupaisorriu e participou em todos osmomentos certos até que a conversa seencerrou de forma natural. Por mais que eu quisesse debater tópicosinofensivos,sabiaqueprecisavaabordaroassuntoprincipal,porque logonosso tempo acabaria. E, até o momento, eu não tinha sequer chegadopertodefalardomotivodavisita.—Pai—comeceiantesqueelepudesseentraremmaisumaconversa

arrastada.—Tenhoumapergunta.Ele se ajeitou na cadeira eme observou com atenção. Eu adorava isso

nele—sempremetratavacomoalguémdignoderespeito,desdecriança.Esabiaque issosignificavaqueelemeresponderiadamelhormaneiraquepudesse.—Oquefoi,Soph?Decidiirdiretoaoassunto.—Vocêselembradequefaleisobreanovafamíliaquesemudouparaa

antigamansãoPriestly?Sãocincogarotos.As pálpebras dele tremeram, mas sua boca se manteve fechada,

esperandoqueeuterminasse.—Bem,achoquetalvezvocêosconheça.—Vocêfaloucomatalfamília?—perguntouele,coçandoapenugemno

queixo.—Elesprocuraramvocê?—Sim—respondi.—Jáfaleicomeles.Meupaienterrouorostonasmãosesoltouumsuspiro.—MeuDeus—disseelecomavozquaseengasgada.Voltei a sentir uma terrível angústia. Ela fezmeus olhos arderem e se

agarrouàminhagarganta.—Pai?—Sophie—começouele,masdessavezcomumavozcansadaecheia

de decepção. Então, descobriu o rosto, deixando as mãos pousarem namesacomumbaque.—AcheiquetioJacktinhaditoparavocêficarlongedeles.—Comovocêsabedisso?—Porqueeleveiomeverquandosoubedamudança.Enósdecidimos...—Espere—interrompi.—OqueosPriestlytêmavercomagente?Meupaipiscouduasvezesefezumacareta.—OsPriestly?QuemsãoosPriestly?— Os...— parei de repente. Meu cérebro virou de cabeça para baixo.

Pense. Quem eram os Priestly? Nós apenas havíamos deduzido uma

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conexãoentreafamíliadeNiceacasaantiga.Afinal,elanuncatinhasidopostaàvenda,oquecomcertezasignificavaumaherança.Atéminhamãenãohavialevantadoessaquestão.Masagora...— Sophie — chamou meu pai com a voz tão baixa que precisei me

aproximar.—Nãoseideondetirouessaideia,maselesnãosãodafamíliaPriestly.SãodafamíliaFalcone.Foicomosetivesselevadoumsoconacara.Caíparatrásnacadeira.Comopudesertãoburra?Tãoignorante?Luca

estava certo. Eu estava errada. Estive errada o tempo todo. Eles nuncatinhamseapresentadocomoPriestly—eupegueionomedavelhalendaurbanaenuncamedeiaotrabalhodeconfirmarseeraverdadeounão.Aconclusão chegou como uma tempestade de raios. A aparênciamediterrânea,osdiálogosemitaliano,a insígniadefalcão.OrostodeNic.Aquelesmalditosolhos.Oódioimediato.— Falcone — repeti, Fal-co-ne, minha voz parecia distante enquanto

embaralhavaaspalavrasquemudavamtudo.— Sim. — Houve uma pausa demorada, e então meu pai perguntou,

delicadamente:—VocêselembradequemeraAngeloFalcone?Eraumaperguntadolorosaedesnecessária.Essenomeestavagravado

nomeucérebroparasempre.—Claroquemelembro.—Apoieiacabeçanometalgeladodamesa.Eu

haviaolhadocinquentavezesparaafotodeAngeloFalconee,aindaassim,nãotinhafeitoaconexão.TinhavistoodesenhofeitoporValentinoenãotinhafeitoa ligaçãoentreorostodeleeohomememtodosos jornaisnaépoca.OhomemcomosolhosdeNic.MeuDeus.Levanteiacabeça.—Éohomemquevocêmatou.—Issomesmo.—Meupaipôsasmãosnocoloparaqueeunãopudesse

ver, mas eu sabia que ele estava inquieto. Com a concentração, euconseguiaveraveiapulsandonatêmpora.Elecomeçouarangerosdentes,umhábitoadquiridonaprisão.Porumlongoperíododetempo,nenhumdenósfalounada,mascadavezqueouviaaquelesomeumeencolhia.Eu jamais esqueceria aquele nome. Mas nós nunca falamos sobre o

assunto,nãoabertamente.Talvezfosseahora.— Foi no Dia dos Namorados— falei, quebrando o silêncio. Eu tinha

recebidoumcartãodeWillAckermannocolégionaqueledia.Eleodeixounomeuarmárionahoradorecreio,comseunúmerodetelefonenapartedetrás.Tinhaodesenhodeumursodepelúciasegurandoumcoração,edoladodedentrohaviaumpequenopoemasobrecomoelegostavadomeu

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cabelo. Não era amaior criação literária domundo,mas quasemorri defelicidade.Eugostavadeledesdesempreetodasasminhasamigasestavammorrendodeinveja.—Sim—disseele.—EraDiadosNamorados.— Estava caindo uma tempestade — continuei, meus pensamentos

focadosemoutraépoca.—Euestavacomdordecabeça,entãotomeiumaaspirina e fui dormir cedo.Quando estavaquase adormecendo, amamãeentroucorrendonomeuquarto.Elachoravaeeunãoentendiaoqueestavatentandomedizer...—Pareidefalar.Davaparaverqueeradifícilparaeleescutar tudo isso. Era aindamais difícil falar,mas insisti, porque alguémperderaavidanaquelanoiteeeuapenascomeçavaaentenderagravidadedasituação.OpaideNicestavamorto.Eeusóhaviameconcentradoemcomomeupaihaviasidojogadoatrásdasgradesporumerroquecometeuquando estava assustado no escuro da lanchonete no meio de umatempestade. — A mamãe disse que você estava sozinho, fechando alanchonete, quando um homem apareceu no escuro e começou a gritar.Você achouque ele estava tentando roubar o restaurante, entãopegou aarmaqueJacktinhalhedadodeNataleatirounele.—Eelemorreu—terminouele.—Sim—concordei.—Elemorreu.—E,nofimdascontas,elenãoestavaarmado.MeuDeus.—Isso.—Eeunãotinhalicençaparaaarmaqueusei.Sópiorava.—Ah.— Eu não deveria estar armado— falou ele, frustrado.—Mas estava

tardeeeuestavanervoso.SeutiohaviamecontadosobreasganguespertodeCedarHillepenseiqueprecisavameprotegermelhor.Acheiqueaquelehomemfossemeatacar.—Entãoatirounele.—Minhaexpressãoeraindecifrável.Pordentro,eu

estava gelada.—E agora está preso por homicídio culposo, enquanto osfilhosdeAngeloFalcone...—EstãomorandoemCedarHillpertodaminhafilha—completouele,

mordendoolábioantesqueumpalavrãoescapasse.Euapertavaospunhoscomtantaforçaqueminhasunhasmachucavam

aspalmasdasmãos.—E você não pensou em compartilhar essa informação extremamente

importantecomigo?

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—Jackeeunãoqueríamosdeixarvocêesuamãeassustadascomisso.Quasericomoabsurdodaafirmação.—Então achou que eramelhor eu ficar sabendo por um dos filhos de

AngeloFalcone?—AcheiqueJackiadarumjeitoparaqueficasselongedeles!—rebateu

ele,comumaraivaquaseigualàminha.Secontinuássemosdessejeito,umdosguardasmemandariaembora.—Vocêdeviatermecontado—falei,baixandoavoz.—Eunãoteriame

assustado.Conseguirialidarcomisso.—Provavelmente.Talvez.Umdia.— Certo, e o que você faria se não tivesse medo? — rebateu ele. —

Sempre existia a possibilidade de você querer se aproximar deles, pedirdesculpasoucorrigiroquefiz.Conheçovocê,Soph.Temumbomcoração.Nãoébesteiradaminhapartepensarquevocêfariaalgodotipo.—Issoéloucura,pai!—Talveznãofosse,maseuestavatãonervosaque

nemiacogitarapossibilidadedeeleestarcerto.—Eoquevocê ia fazerpara eles ficarem longe demim?— chiei.—Eles foram à lanchonete nanoite seguinte àmudança! Um avisomenos enigmático seria bom. AcheiqueotioJackestavasósendoesquisito!Meupaibalançouacabeçaesuspirou,derrotado.—Talvezagentedevesseteragidodeoutrojeito—cedeuele.Elemeobservouemsilêncioporummomento.Osolhossearregalaram

atédominaremseu rosto abatido; o azuldeles tinha se transformadoemumcinzaescuro.—Sophie,agoraquesabeaverdade,porfavor,fiquelongedosFalcone

como Jack havia pedido. Não temos como saber o tamanho doressentimentodelesemrelaçãoamimouporqueestãodevoltaaCedarHill.—Ok.— Foi tudo o que disse. Estava cansada demais para continuar

discutindo. E, além do mais, não é como se os Falcone estivessemimplorandoparaandarcomigo.—Eles já sãouma famíliaperigosadequalquer jeito—continuouele,

vacilante.— O que isso quer dizer?—Me lembrei vagamente de saber algo na

época; Angelo Falcone não era bem um cidadão modelo. Seria bompesquisar de novo os detalhes, levando em consideração que, na época,evitei de propósito ler qualquer coisa mais detalhada sobre a vítima domeupai.—Querdizerquenãogostodenadadisso—respondeuele,orostoem

pânico.Umpânicoqueelevinhatentandoesconderdemim.—Nãogosto

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desaberqueestãopertodaminhafilhaequenãopossofazernada.Partedemimquisdizerjáfezosuficiente,maseunãopodiasercruel.—Sãosógarotos—falei.—Sãodaminhaidade.— Cinco minutos! — gritou um guarda corpulento a três mesas de

distância.Meupaicomeçouaretorcerasmãos.— Vai ficar longe deles? Por favor, tome cuidado. Vou falar com Jack

sobreisso.—Sãosógarotos—repeti.Elefechouosolhosetentouseacalmar.—Éissoqueaprisãofazcomapessoa.—Quandoeleabriuosolhosde

novo,aindaestavamtensosdepreocupação.Assenti,fingindocompreender.—Achaqueelesvoltaramatrásdealgumacoisa?—Nãosei—disseeleemvozbaixa.—Sinceramente,nãosei.Do nada, lembrei da imagemdo pote demel como laço preto. Afastei

aquelepensamento.

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CAPÍTULODEZOITO

OFAZ-ANJOS

Quandochegueiemcasa,disseàminhamãequeestavacomdordecabeçae ia me deitar. Lutando contra o desejo de ignorar tudo e me forçar adormir, peguei o laptop antigo do meu pai e digitei “Angelo Falcone,Chicago” no Google. Achei um artigo do ChicagoSun-Times de dois anosantes,emfevereiro,ecliquei,derepenteinundadaporumaondadenojoedescrença.

ANATADASFAMÍLIASMAISINFAMESCOMPARECEAOVELÓRIODOCHEFEDAMÁFIAANGELO“FAZ-ANJOS”FALCONE

Aconteceunaterça-feira,18defevereiro,ovelóriodonotóriochefedamáfia, Don Angelo Falcone, na Holy Name Cathedral, em Chicago.Falcone, conhecido pelo apelido “O Faz-anjos” por conta da supostacarreira como prolífico assassino da máfia, foi morto a tiros às 23horas,em14defevereiro.Falcone estava do lado de fora da Gracewell, uma lanchonete

localizada em Cedar Hill, nos arredores de Chicago, quando seenvolveuemumadiscussãocomodonodoestabelecimento.Falcone,queestavadesarmado, levoudoistirosnopeito.Elemorreunahora.Michael Gracewell, proprietário da lanchonete, permanece detido à

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espera de julgamento. Apesar de Falcone ter um alto envolvimentocomamáfia,apolícianãoacreditahavermotivaçãocriminosaemsuamorte.AngeloFalconeerabemconhecidopelapolíciadesdesuaascensãoa

chefe do negócio criminoso da família Falcone emmeados dos anos1990.Apesardetersidopresodiversasvezes,Angeloprovouterumacapacidadequestionável de evitar a prisão, com testemunhas-chavesque desapareciam ou retiravam seus depoimentos antes dojulgamento. Ele é suspeito de ser responsável pelos recentesassassinatosdedoisdosprincipaismembrosdaGanguedoTriânguloDourado,uminfamecarteldedrogasdoMeio-Oeste,entreoutros.PoliciaisàpaisanaeagentesdoFBIestavaminfiltradosemmeioà

multidão na terça-feira. Embora não fosse esperadonenhum tipo deproblema,emnomedagrande tradiçãode respeitoentreas famíliasda máfia em velórios, os agentes policiais foram tentar identificarquem será o sucessor de Angelo Falcone como chefe da dinastiaFalcone.AidentidadedosegundoemcomandoeradesconhecidapelapolíciaàépocadamortedeFalcone.ApolíciaacreditaqueoirmãomaisnovodeAngelo,FeliceFalcone,

seja seu sucessor. Emuma ação que pareceu confirmar essa dúvida,Felice Falcone (imagem acima) falou rapidamente com jornalistas,enquanto as outras pessoas presentes não deram declarações àimprensaapósacerimônia.O suposto novo chefe da máfia Falcone fez a seguinte declaração

sobre o falecido: “Angelo era um verdadeiro soldado de Deus. Nãotemos dúvida de que ele será recompensado nos céus por seu bomtrabalhonaTerra.Ele será recebidopeloNossoSenhorcomhonraedignidade,almalimpaeumcoraçãonobre.Sentiremosmuitosuafalta,maselejamaisseráesquecido.”O “Faz-anjos” foi enterrado em um caixão preto de mármore no

mausoléudafamília,noCemitérioGraceland.Ele deixa uma esposa — filha do clã rival Genovese — Elena

Genovese-Falcone e cinco filhos: Valentino, Gianluca, Giorgino,DominicoeNicoli(foto).

Encarei a imagemno finaldapágina.Ao fundoestavaNic:umaversão

ligeiramentemais nova e tristonha, de ternopreto.O cabelo estavamais

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curtodoqueagora,semasmechascacheadasrebeldesquecaiamnatesta.Estavamenos forte, o que deixava seu rosto abatido, e a boca estava emumalinhaséria.Eleseguravaocaixãodopaisobreoombroesquerdo.Luca segurava o outro lado do caixão, com a mesma expressão

concentrada,osolhosassombrosamenteazuis.GinoeDomestavamatrásdosirmãos,cadaumdeumlado,suasfeiçõestomadaspeloluto.Aofundo,reconheciohomemaltoecarecadorestauranteeo inconfundívelFelice,vestindoumaecharpecinza-escuroecomorostoabatidoigualaosoutros.Valentino estava na parte de baixo dos degraus da catedral, o rostoinexpressivo, os olhos vazios. Amãe deles— amulher alta e de cabelosescurosdodesenho—estavaaolado,comumvéupretocobrindoorosto.AmãodelaapertavaoombrocurvadodeValentinocomfirmeza,enquantoeleviaosirmãoslevaremopaiembora.Tapei a boca para impedir uma ânsia de vômito. Era demais para

assimilar,mastudovinhadeumasóvez,comogolpesderealidade.Meupaimatouohomemnaquele caixão; eledeixouaquelamulher chorandosemummarido;edeixouNicparasempresemumpai.MasopaideNiceraumassassino—umfamosochefedamáfia,oFaz-

anjos—eseu legadorondavaa famíliacomoumanuvemdetempestade.AgoraFeliceestavanocomando,sabeláoqueissosignificava,ederepenteelenãopareciamaistãoinofensivooupeculiar,apenasassustador.Minhacabeçacomeçouagirar,eantesqueeumedessecontadoquese

passava,estavacorrendoparaobanheiro.Fiqueiláporumbomtempo—abraçadaaovaso,buscandoara cadaarfadaviolentaquebalançavameucorpo, como se tentasse assimilar que minha vida em Cedar Hill haviamudadoparasempre.

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CAPÍTULODEZENOVE

AVERDADENUAECRUA

Parada na calçada, eu tentava arrancar meus pés da gosma que meprendia. E afundava. Um falcão havia descido do céu, me rondando deperto.Bicoumeusolhosatéarrancarsanguedaspupilasemedeixarcega.Ping!Pisqueicomforçae,naescuridão,vimeupai,caídocomacabeça

nasmãos.Chamei,maseleestavadesaparecendoe,quantomaiseutentava,maismeuspulmõesardiam.Ping! Acordei, suando e sem ar. Atrás das cortinas, algo se mexia na

janela. Peguei meu telefone na cabeceira e acendi a tela. Era 1h48 damanhã.Ping! Saí da cama e espiei pela janela. Uma figura alta e sombria se

agachounochãoepegoualgodagramamalcuidada.Levantouumbraço,mirandoonde estava aminha cabeça. Ele parouquandome viu no lugarondealgunssegundosantesestavamascortinaselargouapedrinha.Abriajanelaeumabrisadearfrescodeverãotocoumeurosto.—Sophie?—Eleseaproximou,ativandoosensordeluzacimadajanela

dacozinha.—Nic?— Fechei os olhos e recuei, todas as informações voltando de

umasóvez.Viflashesdovelóriocomapalavra“máfia”.OpaideNichaviamatadopessoasemeupaitinhamatadoopaidele.—Sophie—repetiuele.—Precisofalarcomvocê.Engoliemseco,torcendoparaminhavoznãofalhar.—Ok.Voudescer.

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Acendialuzdoquarto,cateiumcardigãrosanochãoeovestiantesdedescerasescadas.Quandochegueiaoquintal,Nicestavaparadoaofundo,noescuro,esperandopormim.Aluzvoltouaacenderenquantoeuandavaemdireçãoaele.Tinhauma

expressãoenigmáticaeoolharfixadoemmim.—Oi— faleiquandocheguei.Cruzeiosbraços,esperando,enquantoa

noitenosenvolvia.—Deveestarseperguntandooqueestoufazendoaqui.—Entreoutrascoisas.Achoquenãoolheiparaele.Tinhaculpademaisdentrodemim,e,seeu

oolhassenosolhos,sabiaquenãosegurariaaverdade.—Precisavasabersevocêestavabem.Lucamecontouoqueaconteceu...

—Eleparouefalouumpalavrãobaixinho.—Enãoqueriadeixarascoisasdessejeito,nãocomessasituaçãoqueomeuirmãocriou.Eleerrouaofalardaquelejeitocomvocê,Sophie.Mordiolábioatémachucar.—Achoquenãotenhomaisnadaparadizer.— Pode pelo menos olhar pra mim? — Ele se aproximou até uma

distânciaemqueerapossívelverseuspés.Balancei a cabeça, mantendo os olhos voltados para a grama. Muitas

emoções borbulhavam dentro de mim. Eu precisava aguentar firme, ouperderiacompletamenteocontrole.Precisavamanterofoco.—Sophie,porfavor...—Nãoposso.—Minhagarganta latejava.Fecheiosolhosparasegurar

aslágrimas,maspodiasenti-laschegando,prontaspararolar.Eunãotinhaforçasparasuportartudoaquilo,nãomais.—Porquenão?—murmurouele.—Comopossoolharpravocêsabendooquesei?—Levanteioqueixoe

encareiopeitodele.—Sophie...—Fuivisitarmeupaihoje—continuei, abalada.—Seiqueelematou

seupai.Seiqueéporissoquevocêmeodeia.Nicestendeuobraçoetocoumeuqueixo,levantando-ogentilmenteaté

queeuerguesseorostoeoolhassenosolhos.E então a represa que sempre conteve minhas lágrimas se abriu por

completo. Elas rolaram pelo meu rosto rápida e abundantemente,sacudindomeucorpoacadasoluço,comarespiraçãoengasgada,buscandoar.Tudoqueeuhaviaescondidodentrodemim—aprisãodomeupai,a

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dordaminhamãe,oabandonodotioJack,odesprezodosFalconepormimemeudesejolatenteporNic—estavareunidonaquelaslágrimaspesadasque rolavam por meu rosto e corriam até o pescoço. Me deixei cairagachada, com as mãos na cabeça, enquanto chorava de formadescontrolada pela primeira vez desde a prisão do meu pai, sem meimportarcomnadaanãosercomadorquefinalmenteselibertavadomeucorpo.Emuminstante,Nicestavaaomeulado,aninhandomeucorpocurvado

nosbraços.Eleapoiouacabeçanaminhaesussurrouparaomeucabelo:—Porfavor,nãochore,Sophie.Porfavor,nãochore.Ele me abraçou por muito tempo, até a corredeira de lágrimas se

transformaremriachocalmoeeuconseguirrespirarnovamente.EntãoNicpuxou minha cabeça para o seu peito e me afundei nele, sentindo seucheiro.— Como você não me odiaria? — murmurei na pele dele. — Seria

impossívelvocêolharparamimenãoveroquemeupaifez.Eleacaricioumeucabeloefalougentilmente:—Nãoénadadisso,eujuro.—Elenãofezdepropósito,Nic.Foiumacidente—soluceibaixinho.—

Eleéincapazdemachucaralguém.—Eusei—sussurrouele.—Porfavor,nãochore.—Desculpa.—Apalavrasaiutãoemboladaquemalaentendi.—Vocênãotemquesedesculpar.—Tenho,sim.Lucadisse...—Olhepramim...Porfavor,sóolhepramim.Levanteiacabeçadevagar,sentindoopesoeatonturadeumasóvez.Ele

enxugouminhasbochechas.—Presteatenção,Sophie.Vouserbemclaro.Lucanãotinhaqueterdito

nadadaquilopravocê.Issotudonãotemnadaavercomvocêoucomele,eLucasabedisso.Oqueaconteceucommeupaifoiumacidente.Jápassou.— Mas não passou. — Pensei nos desenhos de Valentino e no rosto

abatidoecansadodomeupai.Jamaispassaria.—Bem,nãoémaisnovidade—respondeuele, comcuidado.—Enão

culpovocê.Quandotevejo,mesinto feliz.—Ele levantoumeuqueixodenovo.—Nãome importa de onde veio ou quem é sua família. Eu soubenaquela primeira noite, quando segurei você nos meus braços, que nãoqueria soltá-la. Mas aí você saiu correndo, então precisei largar...— Eleficoupensativoesorriu.—Emesentivazio.—Nãoconsigoentender—sussurrei.—PorqueoLucadiriaissosenão

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eraarazãoporquevocêestavameevitando?—Porque estava tentando se livrar de você—admitiu ele.—E sabia

queissoiafuncionar.— Nunca fiz nada pra ele— protestei inutilmente.— Como ele pode

odiaralguémquemalconhece?—SeiquetudomudoudepoisqueDomcontouaelequemvocêera,mas

Lucanãoaodeia.Elesóésuperprotetor.Revireiosolhos,queestavamúmidoseardidosdetantochorar.—Doqueeleestáprotegendovocê?—Nãosousóeu.—Nicacaricioumeurostooutravez.Engoliemseco.

Eununcaquisbeijá-lotantoquantoagorae,noentanto,tambémnuncamesentitãoávidaporinformações.— Você sempre faz o que ele manda? — Ouvi a amargura na minha

própriavoz.Nicapertouos lábios,acentuandoasombrasobasmaçãsdorostoeos

olhos.—Basicamente.—Porquê?Elerecolheuasmãos,entrelaçando-as.—Écomplicado.—Éporissoquenãopodemaisficarcomigo?—insisti,observandosuas

mãosesentindofaltadocalordelasnaminhapele.—Porqueelemandou?AexpressãodeNicseentristeceu.—Vocêfazparecersimplesdemais.—Nãoé?—Não.—Nãoconsigoentender.Nicbalançouacabeça.—Seiquenão.Eumeafasteidevagarparaquenossoscorposnãomaissetocassememe

endireitei,observando-ocomfrieza.Quandovolteiaabriraboca,disseaspalavrasdaformamaislentaeclarapossível,paraqueeleentendessequeeusabiamaisdoqueelepensava,equenãoprecisavadasuaproteção.—Deveteravercomessahistóriademáfia.O silêncio que veio em seguida foi retumbante. Nic reagiu como se eu

tivesse batido nele; sua respiração ficou acelerada e instável, o queixotremia.Euoobserveiatentamente,mantendominhaexpressãoneutra.— O que quer dizer? — perguntou ele, enfim, mas as palavras mal

produziramsomalgum.

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Mantiveavozfirme.—Achoquesabeoquequerodizer.Eleolhouderelancesobreoombro,comoseestivessecommedodeque

alguémpulassedos arbustos.Ele voltoua atençãopara a gramaatrásdemim.Estaloualínguaedisse:—Nãosei.—OFaz-anjos.—Foiumaafirmação,nãoumapergunta,efezoarúmido

deverãoparecermaisfresco.Elefechouosolhoscomforça.Euoatingiexatamentecomoimaginei,e

mearrependinamesmahora.— É verdade, então? — perguntei, assustada, mas querendo a

confirmação.—Asuafamíliaédamáfia?Elearrancouumpedaçofinoelongodegramaetentoudividi-loaomeio.—Nãonegoainformação.Sentiafamiliarsensaçãodenáuseacrescendonoestômago,masestava

fraca demais dessa vez. Eu havia enfrentado boa parte dosmeusmedosantesde cairno sono, e agoraa confirmaçãodealgoqueeu já sabianãoparecianadademais.Quandofiqueiemsilêncio,elesegurouminhamãoderepente,comose

temessetermeperdidonaquelebreveinstantedesilêncio.Aperteiamãodeledelicadamente.—OFelicemandavocêmachucaraspessoas?Vocêrespondeaelecomo

respondeaLuca?—Claroquenão.—Elepareciaofendidocomasuposição,efiqueifeliz

comisso.Seelenãorespondiaao“chefe”,entãonãodeviaestarenvolvidocomoqueopaieraacusadodefazer.—Oquesignificaparavocêeparaosseusirmãosfazerpartedamáfia?Nichesitou,edavaparaverqueeletentavaformularumaresposta.—Infâmia.—Enotoriedade?—Penseinoartigoetremi.— Sim — concordou, como se não o incomodasse tanto quanto me

incomodaria. — No momento em que nascemos, somos marcados pelareputaçãodafamília,nomeadosemhomenagemaosnossosantepassadosecriadoscomumfortesensodelealdadeehonra...—Vocêsmachucamaspessoas?Ele passou a mão no cabelo até que ficasse caído ao lado dos olhos,

protegendo-os.—Nãoéassim.—Comoé,então?

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Nicsegurouminhasmãos.— Sophie, tem muita coisa que não posso contar para você. Fiz uma

promessa séria e, quebrá-la significaria violar um código de sigilorespeitado por todos os membros da minha família. Mas se não puderconfiar em mais nada, confie nisso: sou uma boa pessoa, com valoresmorais. Meus irmãos são leais até a morte. Fomos criados sabendodiscernir oque é certo e oque é errado.Protegemos e servimos ànossamãeparaqueelapossaser feliz todososdiasdasuavida, lamentamosamortedonossopaievamosàigrejatodososdomingospararezarporsuaalma. Quero proteger os que amo e os que não podem proteger a simesmos.Mas, acima de tudo, quero fazer omundomelhor com aminhapresença.Sentiumaondadealívio.Eunãosabiaoqueestavaesperandoqueele

fossedizer,masissoerabemmelhor.—Vocênasceunessemundo—falei,quasecomigomesma—,masisso

nãoquerdizerquefaçapartedele.—Nicsuspiroucomosefossedizeralgo,mas se conteve. — Nós dois vivemos à sombra dos nossos pais —continuei,percebendoaquilopelaprimeiravez.—Eujamaismachucariavocê—concluiuelecalmamente.—Eusei.—Entrelaceimeusdedosnosdele.Eutinhavistoaquelasmãos

machucaremAlex,tinhavistoferimentosroxosnasjuntasdosdedos,masprecisava acreditar que comigo seria diferente. Estudei nossos dedos, apelemorenadelejuntoàpalidezdaminha,apegadaforteesegura.Pareciadiferente.Pareciacerto.Por um tempo, nenhumde nós disse nada.Muitas feridas psicológicas

foramexpostaseestávamosexaustosdeemoção.—Sabeporquenãopossoficarcomvocê?—disseNic,enfim.—Quero

quesaibaquenãofuieuqueescolhimeafastar.Euestavacomeçandoaentenderisso.—QuandoLucadescobriuquemeuera,tudomudou,nãoé?—Oqueháemumnome,certo?—OrostodeNicseentristeceu.—Não

éumaboaideiaagenteficarjunto.Nãodepoisdetudoqueaconteceu.Nãoquerochamaratençãodesnecessáriaparavocê.—Estou correndo perigo? Elesme avisaram sobre isso...—Pensei no

meutioecompreendisuapreocupação.Umafamíliamafiosasemudaparaa rua vizinha à da família responsável pela morte do seu chefe. Dei umsuspiroprofundo.— Jack avisou? — As palavras de Nic continham um ligeiro tom de

animosidade.

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—Omeupaitambém.—Vocênãoestáemperigo.—Eletentouparecercasual,mashaviaalgo

novoemsuavoz,contendo-a.—Masachoqueémelhorvocêsficarembemlongedenósedealgunsmembrosdafamíliamais...rebeldes.Pelomenosporenquanto.Nicvoltouaficarquieto.Subiuasmãosparaosmeusbraçosecomeçoua

esfregá-los.Eunemtinhapercebidoqueestavacomfrioatésentirocalordotoquedele.—Épraeuficarcommedo?—perguntei.—Nãoprecisatermedodenada—respondeucalmamente.Deiumsorrisofraco.Estavacommedodeperdê-lo,masnãopodiadizer.

Nãoajudariaemnada.Eledesviouoolharparameuslábios.—Seeusoubessequeaquelanoiteseriaaúltimavezqueabeijaria,não

teriaparado.Meusorrisovacilou.Porqueelenãopodiaseroutrapessoa,qualquerum

quenãofosseumFalcone?—Émelhoreuirembora—disseele,comoseconvencesseasimesmo,

nãoamim.Maselenãoestavaseafastando,estavaseinclinandonaminhadireção.Nossosdedos estavamentrelaçados e elemepuxavaparaperto,passandoosbraçospelaminhacintura.Devagar, como se lutasse contra o desejo, ele encostou sua testa na

minha.—Mas,ese...Ese,poruminstante,vocênãoforSophieGracewelleeu

nãoforNicoliFalcone...—Eleparoudefalaredeixouoslábiostocaremosmeus.Fuitomadapelodesejoquandonossoslábiosseencontraram.Abocade

Nicestavafirmenaminha,quenteedeterminada,equandonossaslínguasse tocarammedeixei levar,completae inteiramente,pelapaixãodaquelebeijo.Logo,nomeiodealgotãointensoquetivedificuldadesparameafastare

recuperar o fôlego, um zumbido distante nos puxou de volta para arealidade.Ofegante,Nicseafastoudemimepescouotelefonequevibravanobolsodacalça.Elebotouamãonocoraçãoeapertouopeito.—Valentino.—Avozdelesooutrêmula.—Estouindo.—Eledesligoue

voltouaatençãoparamim,masadoçuranos seusolhoshavia sumido, epercebi, com um susto, que estava olhando para uma versão muitodiferentedeNicoliFalcone.

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—Vocêprecisair—falei,aindacomdificuldadepararespirar.—Desculpe.— Ele segurouminhamão.— Sophie, por favor não fale

comninguémsobre isso. Fizumapromessae aminha famílianão ficariafelizsesoubessequenãoacumpri,mesmoqueapenasporuminstante.—Nãovou—faleisemprecisarpensar.Aindasentiaocalordoseubeijo

nos meus lábios, e seria capaz de fazer qualquer promessa naquelemomento.Elelevouminhamãoaoslábios,beijando-adeleve.—Riguardati,Sophie—sussurrouele.—Tenhacuidado.Por um breve momento de loucura, considerei correr atrás dele e

resgatá-lo, mas então lembrei do aviso de Luca. Eu não queria que elechegassenemremotamentepertodeMillieoudaminhamãe.Eume arrastei escada acima e voltei para a cama, pensando no breve

instante no quintal quando tudo em minha vida era empolgante e feliz.Assimquecomeceiaadormecer,melembreidealgoqueNictinhadito.Jackavisouvocê...?Comoelesabiaonomedomeutio?Eununcahaviamencionado—tinha

certezaquenão.Eentãocomeceiamelembrardeoutrosfatos,fatosqueestavamapenas

começando a fazer sentido: as perguntas esquisitas de Luca na primeiranoite quenos conhecemos; o interesse deDompelo local de trabalhodaMillie, e comoele ahaviadispensadodepoisdedescobriroquequeria ameu respeito;Nic à espreita na lanchonete na noite emque invadimos olugar, o carro parado longe, no escuro, como se ele estivesse esperandoalgumacoisa...oualguém.Derepente,tiveumasensaçãohorríveldequeatalcoisaouotalalguém

eraamesmapessoaqueevitavaCedarHilldesdequeosFalconehaviamchegado—meutioJack.FoiquandopercebiqueeunãosabiaahistóriacompletaentreosFalcone

eosGracewell.Eque,emboraNicgostassedemim,nadadisso interferiaemsuahabilidadedementir,emuito,naminhacara.

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CAPÍTULOVINTE

OFILME

Os primeiros efeitos da minha despedida noturna de Nic foram maiscomplicados do que eu esperava. O que ele disse virou meu mundo decabeça para baixo eme fez questionar tudo que eu pensava saber sobreminhafamíliaeminhasemoções.Devezemquando,memóriassorrateirasdosseusolhosescuros,dotoquedocabelobagunçadooudecomoàsvezesosorrisodelepuxavamaisum ladodaboca invadiamminhamenteemedeixavamaindamaisnervosa,quasemecausandoumadorreal,capazdemedividiremduas.Tentei ignorar o máximo possível as imagens desagradáveis fazendo

turnos duplos na lanchonete, chegando cedo e saindo tarde para ganharumagrana.UmapequenapartedemimesperavaqueNic fosseaparecer,maseusabia,lánofundo,queelenãoviria.Fizquestãodepegarocaminhomais longo para casa depois do trabalho para não passar pela mansãoPriestly—ouFalcone—ecorreroriscoderevisitarosentimentohorrívelassociadoaela.Meu tio saiuda faseestranhaparaabizarrice total.Edesapareceupor

completo. Liguei sem parar, mas ele nunca atendia. Mandei inúmerasmensagens, mas ele só respondeu uma vez e, quando o fez, usou duaspalavrasirritantes—“Estoubem”.Maismentiras.Algoestavaacontecendocomele,eusabia,masaindanãoentendiaoque

era.Jacksabiaqueeutinhaperguntaseelenãotinhaamenorintençãoderespondê-las,fossepormensagemdetextoouqualqueroutraforma.Agora

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elenãoestavaapenasevitandoCedarHill:estavameevitandotambém,oque me deixava cada vez mais ansiosa. Começava a me sentir como seestivessegritandoparaovazio,semninguémporpertoescutando.—Realmentenãotevenotíciasdele?—perguntouMillieaopassarmos

soboarcodepedranaentradadoRayfieldPark.Eranoitedecinemaaoarlivre,eelahaviameconvencidoa ircomela.Queriaqueeu tentasse,porpelo menos algumas horas, me distrair, antes que enlouquecesse depreocupação.—NãoparececoisadoJack.—Eu sei.— Jack prometeu ameupai que sempre cuidaria demim, e

ignorarminhas tentativas de contato não era um bom sinal.—Deve teralgomuitoerradoparaeleterseafastadodetudo.Seguimos um dos caminhos de pedra sinuosos que cercavam uma

clareira verde margeada por castanheiras. À nossa frente, algunsadolescentes espinhentos carregavamumapilha de cobertores, cestas depiqueniqueecadeirasdobráveis.—Eseelenaverdadetiverfugidocomtodoodinheirodalanchonete?

—perguntouMillie.—Quedinheiro?Nósduasrimos.Era bomme divertir com a Millie depois de todos os acontecimentos.

EmboraelasoubesseoquemeupaitinhafeitoaopaideNic,tenteinãomesentir culpada por omitir alguns detalhes— com relação à máfia— dahistória.Eu tinhaprometidoaNicenãoqueria seralguémquequebravapromessas. Além domais, eramelhor paraMillie que não soubesse; nãoqueria arriscar colocá-la em perigo, ainda mais depois das ameaças deLuca.Milliepôsodedonoqueixo.—Bem,seutiodevereceberdinheirodealgumlugarparapagaraqueles

ternosmetidosabesta.—Podeacreditar.Eujáviascontabilidades.Nãoédalanchonete.—Droga—lamentouMillie.—Euaindatinhaesperançasdeganharum

aumento.Seguimos uma multidão por um caminho lateral em direção à praça

centraldoparque.Maisàfrente,ErinReyesetrêsdosseusclonesinsípidosflertavamcomumgrupodegarotosdaescola.Elameviuedeuumrisinho,jogandoocabeloparao ladoemseuhabitualgestode“eusoumelhordoquevocê”.Arisadaficoumaisalta.—Essagargalhadasópodeserfalsa.—Combinacomonarizdela—retrucouMillieantesdemearrastarpara

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longe.Elapassouamãopelotroncodeumcarvalhonocaminho.—Estátentandosereconectarcomanatureza?—provoquei.Elamedeuumleveempurrãoecambaleei,saindodatrilhaparaalama

queacercava.—Ei!—Estousótentandofazervocêrelaxar.—Vocêéumverdadeirotesouro.— Obrigada, Sophie — agradeceu Millie, fazendo uma reverência

ridícula.Finalmente chegamos à praça: grandes extensões de grama separadas

portrilhasdepedraladeadasporenormesárvores.Noladoopostohaviammontadoumatelagigante.—Temumtrailerdetacosesteano!—guinchouMillie,mearrastando

peloshortjeans.—Vamossentarporaqui.Uma multidão já relaxava em cadeiras e cobertores em frente à tela.

Havia famílias com crianças, que corriam despreocupadas, e casaisabraçadinhos carregandodesde almofadas e cestasdepiquenique a latasdecervejaegarrafasdevinho.— Uau, as pessoas devem realmente amarMonty Python — observei,

enquantoMillie estendia seu cobertor em um local nomeio do caminhoentreatelaeotrailerdetacos.Elaajeitouosquatrocantos,certificando-sedequeestavamretos.—Nãoacreditoquevocênuncaviuessefilme.Assimquenosacomodamos,esvazieiasacolaeespalheinossobanquete

improvisadopelacoberta,fazendofileirasdebalasechocolates.Millieenfiouamãoemumsacodejujubasetacouquatronabocadeuma

sóvez.—Euamoisso—disseelacomasbochechasinfladas.—Emboraeuseja

proibida de comer jujubas. — Ela sorriu, revelando pequenos gomoscoloridosqueagoraestavampresosaoaparelho.Ri da cara dela, feliz. Desde a noite em que conheci Nic, fiquei me

torturando com dúvidas e chafurdando em autopiedade. Isso estava mefazendomaismal do que bem. Eu precisava parar com aquilo antes queficasseloucapensandonoquenãopoderiamudar.Abri um sorriso e então o senti enfraquecer ao ver a expressão que

apareceuderepentenorostodeMillie.—Eupenseiqueeleestavaforadacidade—murmurouela,comavoz

forçadamentebaixa.

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—Oquê?—Seguioolhardela e apertei osolhosparaver emmeioàmultidãocrescente.—Dequemvocêestáfalando?—RobbieStenson.Eleestáaqui.

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CAPÍTULOVINTEEUM

AARMA

ConcentreitodaminhaatençãonapartedetrásdacabeçaredondaidiotadeRobbie Stenson. Embora eu aindanãome lembrasse de nadadaquelanoite, ficava com raiva só de olhar para ele. Era como se minha peleestivesseemchamaspeloquetinhaacontecidoemeucérebrolutasseparaacompanhar. Ao meu lado, a risada estridente de Millie zunia no meuouvido.Elaassistiaaofilmecontente.—Porquevocênãoestárindo?—perguntouela.Olhei para a tela, um monte de cavaleiros ingleses discutia

incessantementecomumsotaquefrancêscômico.Estranho.—Estoudistraída.— O que você acha que vai conseguir encarando a cabeça do Robbie

dessejeito?—Millieenfioumaisummontedepipocadocenaboca.—Estátentandofazercomqueeleexplodacomopoderdamente?—Nãosei.—Franziorosto tentandoencontraraquela lembrançaque

rondavameuconsciente.—Estoutentandomelembrar.Millieenfioumaisumpunhadodepipocanabocaemastigou,pensativa.—Nãotente—disseela,deixandogrãosmeladoscaíremnocobertor.—

Tenteesqueceroassunto.Vocêestáaquipararelaxar,lembra?Fiz o possível para seguir o conselho dela,mas, ainda assim, algo não

estavacerto...Depoisdequaseumahora,atelaficouescura,sinalizandoointervalo.—Taco?—sugeri,sentindoanecessidadedeesticaraspernas.

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—Jáquefazquestão—respondeuMillie,deitando-se.—Querodois,porfavor.Limpeiofarelodaroupaeatravesseiogramado,parandonofinaldafila

detacos.Logoestavaespremidaentreumagarotadecabelorosa-shockingeumcaragordinho.—Caixa livre!—gritouumavozde adolescente.Uma levadepessoas

atrás demim correu para formar uma segunda fila e, de repente, me viparadaquaseaoladodeRobbieStenson.Eleolhouderelanceparamimedesviouosolhosrapidamente,masnão

sem que eu pudesse ver o hematoma amarelado namaçã do rosto e nomaxilarprotuberante.Oquetinhaacontecidocomele?Ocaixafezsinaleafilaandou,melevandocomela.Robbieparoudomeu

lado; ele brincava de rodar um copo vermelho nas mãos, e o líquidobalançavaparafrenteeparatrás.Elelevouocopoàboca,encaixando-onoslábios e dando goladas na bebida. Cada vez que eu via o copo subindo edescendo,ficavamaisfixadanele.Eentãotudovoltou.Lembrei de ter ido ao quarto dos pais de Millie e dado de cara com

RobbieStenson.Derrubei cerveja emmim—nãoera issooqueele tinhadito? Mas Robbie estava com dois copos. E disse que sequer estavabebendo.Fizumacaretaaomelembrardabebidadoceegasosa,pensandoem como ele havia insistido para que eu bebesse e como, quando nossentamos na cama, eu tinha ficado desconfortável com seus olhares. Eentãotodoorestodamemóriaeraumvazio.Percebi,nomesmomomentoem que o caixa tocou o sinal novamente, ativando um alarme no meucérebro,queRobbieStensontinhamedrogadonaquelanoiteeplanejadome levar para casa eme atacar. Não havia nada de inocente ou ingênuonessahistória.E,paracompletar,tinhacertezadequeascoisaspoderiamteridodemal

apiorseLucanãotivesseinterrompidonomomentocerto.Afilaandoudenovo.—Anda—resmungouogordoatrásdemim,maseunãoconseguiame

mexer.Estavacoladanochão.—Ei,anda!—insistiuele.Senti uma ânsia de vômito. Ao meu lado, Robbie avançava na fila,

balançandoocopovermelhosemparar.Oobjetotinhaviradoumpêndulode memórias explosivas, lançando cada uma delas na minha direção, eantesquemedesseconta,empurreiRobbieparaforadafila.—Oquefoi?—Seucorpoparrudocambaleouparaolado.Eletropeçou

ecaiunagrama,apertandoascostelas.

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—Comopôde?—Partidenovoparacimadele,masdessavezeleestavapreparado. Se levantou e foi para longe de mim, saindo de perto damultidão.Fuiatrás.—Qualéoseuproblema,garota?—gritoueleporentreosdentes.—Vocêtentoumeatacar!—disparei.—Não tenteinada—ele respondeucom tanta segurançaqueeu teria

duvidado da minha memória se tudo aquilo não estivesse pulsando tãoforte na minha cabeça. — Estava levando você para casa quando seunamoradomeencheudeporradasemmotivonenhum.Temsortedeeunãoterprestadoqueixa.EntãoLucaeraoresponsávelpeloshematomasdeRobbiee,pelovisto,

nãotinhapegadoleve.Noentanto,maisestranhodoqueapossibilidadedeLucaserumpsicopataeraperceberque,nofundo,eusentiaumacentelhadesatisfação.RobbieStensonnãosesafoudasuatentativadeviolação.—Seiquevocêmedrogou.—Estavavagamentecientedahisteriaque

cresciadentrodemim.GraçasaLucaFalcone,Robbiepagoupeloquefez,masnãotinhapagadopeloqueplanejavafazer.—Vocêarmoutudo!Eumelembrodoquevocêmedeu.Robbieriucomdesdémefranziuorosto.—Lembra?—Aindarindo,elegirouemvoltademimcomoumurubu

rondandoapresa.—Bem,duvidodequeissosesustentenafrentedeumjuiz.—Entãovocêadmite?—rebati,furiosa.Ele deu de ombros e parti para cima dele outra vez. Uma dor aguda

atingiu meu ombro esquerdo quando caí no peito dele. Ele me agarrou,pressionandoasminhascostelas.—Pare!—Orostodele se contorciadedor.Elemeapertoucommais

força,tentandomeameaçar.—Vocêestápassandovergonha,esqueçaisso!Luteieesperneeinosbraçosdele.—Mesolta!—guinchei.Craveiasunhasnospulsosdeleomaisforteque

pude,atéelemesoltar.—OK—respondeuele.—Desaparecedaminhafrente.Puleiparatrás,aumentandoadistânciaentrenós.— Você é doente! — gritei, erguendo o punho na direção dele, a

adrenalinaamilnasminhasveias.—Comovocêpôdefazer issocomigo?Comqualquerpessoa!OsorrisodeRobbiedominouorostomachucado.—Ah,porfavor.VocêdevesaberquecomerafilhadeMichaelGracewell

dámuitamoral.

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—Vocêquisdizerestuprar—cuspiaspalavras,encurralandoRobbie.—Nãomedigaquevaitentarbrigarcomigo—ironizouele.Eleeraapessoamaishorrendaquejátinhavistonavida.—Odeiovocê.—Relaxe,Sophie.Eunãotocariaemvocêagora.Ojeitoqueeledissemeunome,comosefosseumpalavrão,fezcomque

eumesentissefisicamentedoente.—Vocêvaipagarporisso!—Assisticomsatisfaçãoàcorsumirdorosto

dele. Os olhos ficaram grandes e ele se retraiu ainda mais. Mas estavaenganadadepensarqueminhaspalavrastinhamcomeçadoasurtirefeito,porque Robbie não olhavamais para mim; olhava para alguém atrás demim.Donada,umaterceiravozsejuntouàconversa.Erasinistramentecalma,

emcomparaçãoànossadiscussãoacalorada.— Ciao, Robert. Quanto tempo. — Com aquele tom doce, eu poderia

pensar que era alguém próximo, até amigável, se eu não tivesse tantacertezadequeeraLucaFalcone.ViRobbielevantarasmãoseseencolher,enquantoLucasaíadetrásdemimcomosetivesseacabadodebrotardochão. Há quanto tempo ele estava ali escutando? Virei, procurando seusirmãos,maseleestavasozinho.—Nãopudedeixardeouviraconversadevocês—continuouele,calmamente.—Esperonãoestarmeintrometendo.—Fiquelongedemim,cara,ouvouchamarapolícia.—AvozdeRobbie

tremeuumaoitavaacimadonormal, e a arrogância logodesapareceudorostodele.—Robert—chamouLuca.—Achoquevocêprecisaseacalmar.Parece

agitadodemais.—Vocêquebrouminhascostelas!—Sóumaouduas—brincouLuca,desdenhoso.—Oquevocêquer?AvozfalsamenteamigáveldeLucaeraaindamaisassustadoraqueseu

tomdeameaça.—Sóquerofalarcomvocêsobreumacoisa,podeser?EledeumaisumpassoàfrenteeRobbiecambaleouparatrás.—Nãoconheçovocê.Oqueagentepoderiaterparafalar?—Oseupainãotemumaempresademóveis?Robbiearregalouosolhos.—Comosabedisso?Lucadeumaisumpasso,diminuindooespaçoentreosdois.—Éumainformaçãopública,não?

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—Achoquesim.—Evocêtrabalhaparaele,certo?Aessaaltura,eusóviaapartedetrásdacabeçadeLucaenquantoelese

aproximavadeRobbie,ignorandominhapresençaporcompleto.— Sim, trabalho — respondeu Robbie, parecendo um pouco mais

confiante.—Quebom.—Lucacruzouosbraços.—Vamosdeixarnossohistórico

deladoporumsegundo,certo?Oquepassou,passou,eachoquedevemosdeixarissoparatrás.Issonãoédaminhacontamesmo.Robbieassentiucomoumdaquelescachorroscomacabeçademolaem

painéisdecarro.—Estouprecisandodemóveisnovos,seéquevocêacredita.—Sério?—Eacheiquepodiacompensarnossoencontroinfelizdepoucotempo

atrás—LucaapontouparaorostomachucadodeRobbie,girandoodedoparaefeitodramático.—Lembradisso?—Si-sim.—Edisso?—Eleapontouparaascostelas.— Claro — sibilou Robbie, abraçando o corpo com os braços

rechonchudos.—Então,penseiqueparafazeraspazes,poderíamosfazerumnegócio.

Precisodebastantecoisa.Robbierelaxouosombros.—Nãosouumcaramau—continuouLuca,etiveaimpressãodevê-lo

sorrir; um eventomais raro que um eclipse solar.— Então por que nãoconversamossobreisso?— Agora? — Robbie levantou uma sobrancelha. — O filme já vai

recomeçar.Porquenãofalamossobreissoquandoeuestivernotrabalho?—Éurgente,entãovamosconversaragora.—LucasegurouRobbiepelo

pescoço.—Vamos.—Eleoafastoudoparque,indoemdireçãoàsárvores.—DêtchauzinhoparaGracewell—mandouLuca.—Elaficaaqui.Sentiotomdeavisoemsuaspalavras,masaovê-losdesapareceratrás

do trailer de tacos, dei de cara com um dilema inesperado.O filme estáprestesa começar, lembrei amimmesma,masmeuspésme levavamemdireção às árvores e não para onde Millie estava sentada, esperando—certamentejásempaciência—pelostacosqueagoraeunãotinhamaisamínimaintençãodecomprar.Omodo como Luca envolveu Robbie nos seus braços parecia que eles

eramquaseamigos, e euprecisavaadmitirquehavia algo inegavelmente

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convincentenamaneiracomoelefalaracomRobbie.Aocontráriodomeuagressor,nãofuiburraosuficienteparacairnopapodele.Eusabia,maisdoquemuitagente,queLucanãoprecisavadeamigos.Oumóveis,aliás.Oquerquefosseaconteceremmeioàquelasárvores,dificilmenteseriaumatransação de negócios — pelo menos não para Robbie. Mas, como umcompleto idiota, ele deixouLuca guiá-lo para longe, e eunão tinha comonãoosseguir.Apressandoopassoparanãoperdê-losdevista,masmantendodistância

suficienteparaquenãomevissem,deiavoltanotrailerdetacosnahoraemqueofilmerecomeçou.Maisàfrente,viLucaeRobbiesumirematrásdeduasárvoresinclinadas.Eufizumanovaparadaeentãoseguiasvozesdosdoisnapontadospés,desviandodegravetosefolhassecas.Depoisdemuitosminutosmeesgueirando,aconversadeleschegouaté

mimatravésdeumapequenaclareira.Eleshaviamparadodeandar,entãoparei também. Pelo espaço entre as árvores, vi os dois parados um defrenteparaooutro;Robbie apertavaas costelas eLucaparecia relaxado,comasmãosaoladodocorpo.Chegueimaisperto.—Masacheiquevocêqueriafalarsobremóveis.—protestouRobbie.— Acabei de lembrar — respondeu Luca. — Não preciso de móvel

nenhum.—Entãoporqueestamos...OarfoitiradodospulmõesdeRobbieantesqueelepudesseterminara

frase.Observei,horrorizada,LucasocarabarrigadeRobbie, fazendocomquecaíssecurvadonochão.Eleroloudeladonaterraegemeu.—Estamosaqui,Robert,porqueouvioquevocêdisseparaaSophie.—

AvozdeLucaestavabizarramentecalma.ElepisounopédeRobbie,masaterraabafouseugrito.—Esetemumacoisaqueeuodeiosãopessoasqueempurram drogas para as outras. — Luca rondou Robbie, encobrindo-ocomsuasombra,eochutoucomforçanoombro.—Odeioespecialmentealguém que droga uma garota e tenta estuprá-la. — Ele ergueu o pé edepoischutoudenovoabarrigadele.Escuteiosomdealgosequebrando.Robbiegritou,comacaranaterra.Lucausouosapatoparavirá-lo.—Querdizer,jáeraruimosuficientequandopenseiquevocêestavasódandoemcima dela, mas agora? — Luca pisou nas costas de Robbie e ele ficoubalbuciando,orostocheiodeterraegrama.—Agoravocêéomaisbaixodossereshumanos.Vocêéaescóriahumana.Comecei a cambalear para frente, quase paralisada de medo, mas

determinada a fazer alguma coisa. Porém, minha tentativa de ajudar foi

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frustradapelachegadadeoutrapessoa.— Levante! — berrou ele, e o som daquela voz me paralisou

completamente.—Nicoli,faleiparaficarlonge!MasNicnãoestavaprestandoatençãoemLuca;sequerolhavaparaele.

Nic olhava cheio de ódio para o corpo contorcido de Robbie enquantopartiaparacimadele.—Levante-se,Stenson!—gritouelecomumavozquaseirreconhecível;

límpidaecomumaraivaqueeununcatinhaouvidoantes.—Levante-seeolhenosmeusolhosouvouatéaíefurovocê!Devagar, Robbie se forçou a levantar do chão. Sustentou metade do

corpo junto a uma árvore, apoiando asmãos no tronco e comos joelhosdobradosàfrente.EletentavarespirarenquantoLucaseafastavadosdois,deixandoasmãosatrásdascostaseinclinandoacabeçacomoseassistisseaumshowdemarionetes.Tentei me mexer, mas não conseguia. Minhas pernas tremiam

intensamenteepreciseimeseguraraumaárvoreparanãocairdemedonochão.—Mandeivocêselevantar—repetiuNic,enfurecido.—Nicoli—avisouLuca,masnãosemexeu.—Cuidado.Gemendodedor,Robbieselevantoucomumacareta.—Minhascostelas—choramingouele.—Porfavor.Nicoagarroueo jogounotroncodaárvore,depoisapertouagarganta

deRobbie,cujorostocomeçavaasangrar.—Vocêachaaceitáveltocaremumapessoaquandonãoquersertocada?

Oqueestáachandodisso?—Eleaumentoua forçadoapertonopescoçogrossodeRobbie.—Nicoli—murmurouLuca.Eleseaproximouebotouamãonoombro

doirmão,comoumconselheiro.—Staiattento.—Oqueéisso?—balbuciouRobbiecomorostocomeçandoaficarroxo.

—Issoéuma...Em seguida, houve uma sequência confusa de movimentos, então

conseguiapenasentenderduascoisas.AprimeirafoiosurgimentodeumobjetodemetaljuntoàcabeçadeRobbie.Asegundafoiosomdeumclique.Eentão,comumarespostacalculada,escuteiNicconfirmartudoqueeu

játinhavisto:—Éumaarma,seuidiotademerda.Robbietentougritar,masNicenfioutãorapidamenteocanodaarmana

bocadelequeogritoficouengasgado.

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—Escutebem,seulixohumano—rosnouNic.—Esteéoúltimoaviso.Vou ficardeolhoemvocê.Seeu ficarsabendoquevocêchegoupertodealgumtipodedrogadenovo,vocêvaimorrer.Sevocêtentardarqualquertipodedrogaparaumagarota,apedidodelaounão,vocêvaimorrer.E,sesequer tentar piscar para Sophie Gracewell de novo, vou arrancar seucoraçãoeenfiá-lonaporradasuagarganta.Estámeentendendo?Robbieassentiu.— A polícia talvez não tenha provas suficientes para condená-lo por

tentativadeestupro,maseutenho.Enãosoumuitofãdejulgamentocomjúri popular, Stenson. Então, aconselho você a aceitar esse último avisocomose fosseumpresentedeDeus.Mudesuavida.E se sequer suspiraralgosobreestaconversaparaapolícia,vailevarumtirodeumdosmeusirmãos antes mesmo de deitar para dormir. Pode ter certeza. — Nic seinclinoupara frentequaseemcâmera lenta.—Ouquemsabeeudevesseatiraremvocêagoramesmoefazerumfavoraomundo.Forceiminhas pernas fracas para frente, tentando impedir o que quer

queestivesseprestesaacontecer,masLucachegouantes.—Basta!—girou,afastandoamãodeNicdabocadeRobbie;Nicbaixou

o braço, mas não largou a arma e Luca não o obrigou a fazê-lo. Em vezdisso, só segurou o braço com o revólver para que não fosse usadonovamente. Permaneci imóvel onde estava, metade exposta, metadecoberta, observando a respiração arfante de Nic enquanto ele encaravaimpassívelorostoassustadodeRobbie.NicfinalmenteseafastoudeLucaeguardouaarmanacinturadojeans.

O movimento pareceu quase intuitivo, e fiquei me perguntando se eleestavaarmadonaúltimavezquetinhameabraçado.Elebalançouocabelo,deuumpassoparatrás,segurandoopeito,edeuascostasparaRobbie.—Luca,livre-sedeleantesqueeumudedeideia.OirmãomaisvelhoseadiantouedeuumtapinhanorostodeRobbie,em

umademonstraçãobizarradecamaradagem.—Entendeutudo,Robert?Robbieenxugouaslágrimasdorostocomascostasdamão.—Eupro-prometo—respondeuaossoluços.—Quebom.—LucalevantouobraçoeapontouatrásdeRobbie,parao

restante do parque.— Agora corra como se sua vida dependesse disso.Porqueéaverdade.EfoiexatamenteoqueRobbiefez.Semperdernemmaisumsegundo,ele

se lançou sem jeito por entre as árvores até que fosse apenas um pontomancandonaescuridão.Quandoosomdospassosdesiguaisdesapareceu

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porcompleto,LucadesviouaatençãodasárvoreseseconcentrouemNic.— Eu falei para você ficar longe.— Ele parecia mais cansado do que

irritado,comoseestivesseacostumadoaessetipodecomportamento.— Você falou que ele tentou se aproveitar dela. Nãome falou que ele

tinhausadodrogas!—Eunãosabiadissonahora.Evocênãodeveriabisbilhotar.—Nãodeveriaesperarqueeunãomemetesse.—Seiunpazzo,Nicoli.—Destavezédiferente.—Vocêsempredizisso.—Masédiferente.—Elanãoésua.—Éminhafunçãoprotegê-la.—Vocêquasematouocara—sibilouLuca.—Elemerecia—rebateuNiccomtranquilidade,quasedeformanatural.— O que aconteceu com o plano de ficarmos quietos? Você podia ter

estragadotudo.Eeujádisse,nãoédasuaconta.—Elaédaminhaconta,porra!—Dequalquerjeito,elanãovaimaisquererternadacomvocêmesmo

—continuouLuca,despreocupado.Niclevantouacabeçacomumgolpe;osolhosagitados.—Porquenão?Sentimeucoraçãoseapertaremagoniaaoperceberoqueestavaprestes

aacontecer;eratardedemais,nãohavianadaafazer.Lucalevantouobraçoeapontoudiretamenteparamim.—Porqueelaestáparadabemali.Nic seguiu a direção apontada até seu olhar encontrar omeu e, assim

comonanoiteemquehaviadescobertomeunome,ohorrordistorceuseurosto. Ficamos ali, distantes, ambos de coração partido por motivosdiferentes.—Sophie...—sussurrouele,maseratardedemais.Eunãoconseguiafalar.Eusequerabriaabocadetãochocada.Comeceia

meafastar.Elecambaleouparafrente.—Deixeelair—aconselhouLuca.—Elaestáapavorada.Voltei tropeçando para a sombra das árvores. Minha retirada se

transformou em um impulso inconsequente. Corri em desespero peloparque,emdireçãoàtelabruxuleante.Quandopasseipeloúltimoconjuntodeárvores,deiavoltanotrailerdetacos,ondedeidecaracomMillie.

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—Cuidado,Soph!—gritouelaenquantoeutropeçavaecaíanagrama,aoladodotacorecém-lançadoparalonge.Resmungando,elamelevantoudochão.—Ondevocêsemeteu?— Precisamos ir embora— expliquei, acelerando o passo.— Se você

soubesseoqueacabeidever...—Oqueestáacontecendo?—Vamos!—Puxeiminhaamigaemdireçãoaogramado.Guardeitodas

as nossas coisas de volta na bolsa, espiando toda hora as árvores,esperando o reaparecimento de Nic e Luca. — Explico tudo quandoestivermos longedaqui.—Esaícorrendodenovo,arrastandoMilliepelocaminho.— O que está acontecendo?— chiou ela entre um fôlego e outro. —

Estou.Muito.Fora.De.Forma.Pra.Isso.— Só vamos embora! — Guiei Millie pelo caminho de volta até

avistarmosaentradadoparque.Antesdepassarmos sobo arco, elaparoue apertouabarriga comose

tivesselevadoumsoconoestômago.—Pare—pediuela,ofegante.—Preciso.Deumminuto.—Podemoscontinuar,porfavor?—Achoque.Meuspés.Estãosangrando.—Elaretirouocabelodorosto,

que brilhava comuma camada de suor.—O que está acontecendo. Comvocê?Antesqueeupudesserelatartudoqueeutinhaacabadodetestemunhar,

alguémmeagarroupelobraço,afastando-medela.—Ei!—ProtesteiaoverNicmepuxandoparapertodele.—NempenseemdizernadaparaMillie—suplicouele,comavoz tão

baixaquesóeuouvi.Eleapertouasmãosemtornodosmeuspulsos.—Porfavor.Atrás de nós, Millie começava a perceber as manchas de suor que se

acumulavam sob os braços e o sangue que escorria entre as tiras dasandália.—Quenojo—reclamouela,atirando-senagrama,ofegante.—Nãopodecontrolaroquedigooudeixodedizerparaminhamelhor

amiga!—falei,furiosa,soltando-medele.—Vocêprometeu—disseele,comcalma.—Acheiquesignificavaalgo.—Prometiquandopenseiquevocêeraummembro inativodamáfia,o

que,óbvio,vocênãoé!Issoéoutrahistóriacompletamentediferente.Nãovoumantersegredonenhumsobreisso!—Sophie—disseele, irritado.—Realmenteprecisoquevocênãofale

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nadasobreoqueacaboudever.Eupodiaversuairritaçãoaumentando.Agarreiacamisetadeleeopuxei

paraalateraldoarco.—Vocêmentiuparamim!Elelevantouasmãos,rendendo-se.— Não menti, Sophie. Eu só... deixei algumas coisas de fora. Posso

explicar.Euoempurrei.—Fezcomqueeuacreditassequevocêerabom!—Eusoubom!—Não, não é!— Voltei a empurrá-lo.—Me fez pensar que você era

inocente.Fezcomqueeuacreditassequevocênãofaziapartedetodaessamaluquicedemáfia!Comcautela,Nicretirouasmãosdopeito.—Eununcadisseisso.—Vocêtevebastantetempoparafalaraverdade.—Euqueriaestapeá-

lo.Usei todomeuautocontroleparamanterasmãos fechadasao ladodocorpo.—Eusei.—Masnãofalouaverdade.Resistênciaedeterminaçãochamuscavamnoolhardele.— Não tive tempo suficiente para explicar tudo. Mas não menti para

você.Tudoqueeudisseéverdade,sónãodojeitoquevocêinterpretou.—Pergunteisevocêmachucavaaspessoas!Vocêdissequenão!Eleseaproximou.—Eudisse que não era como você pensava. E não é. Tudo o que faço

envolveproteção.—Proteção—ironizei.—Éoquedizparavocêmesmoquandobotasua

armanabocadealguém?Elemepuxouparasi.—Presteatenção.—Não—implorei,sentindoaslágrimasseformarematrásdosolhos.—

Estoucommedodevocê.Eleseencolheucomoseeudefatotivessebatidonoseurosto.—Eudissequenuncavoumachucarvocê.—Comopossotercerteza?Elemeencaroutãofirmequequaseperdiarespiraçãoe,depoisdeum

momentoangustiante,respondeucalmamente.—Porquevocêéumapessoaboa.

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Olheifuriosamenteparaele.—Umdenósprecisaser!—Eutambémsouumaboapessoa.—AcaboudebotarumaarmanabocadeRobbieStenson—rosnei.—Sintomuitoquetenhavistoaquilo,masfoiinevitável.—Comoumataquedaquelepodeserinevitável?Seusolhosescureceram,maselenãorespondeu.— Não é possível que não saiba que fez algo inaceitável. Preciso dar

queixanapolícia.—Sophie,fizaquiloporvocê.Comoeupodiadeixá-loimpunedepoisde

terdescobertooqueeletentoufazercomvocê?Eumeafasteidenovodele.—Estálouco,Nic?Sabequenãopodesairporaíbotandoarmasnacara

daspessoasporminhacausa.Seicuidardemimmesma!Eleapertouonarizesuspirou.—Aquilofoiumfavorparaasociedade.Stensonéotipodesujeitoque

nãovaiparardepoisdeumagarotasó.Fiztudoquepodia,excetoexplodiracabeçadele.Fiqueisemar.—Dáparasermenosexplícito?Elepassouamãopelocabelo.—Desculpe.—Nãoachoqueestejaarrependido.Elenãoolhavamaisparamimeeusabiaquetinharazão.Elenãoestava

arrependido;estavaarrependidodeeutervistoacena.—Sei quenão tenhoodireitodepedir algopara você—disse ele—,

mas,porfavor,nãoconteparaninguémoqueviu.Vaitrazerproblemas.—Nãobrinca.Fuitestemunhadeumcrime.Emesmoqueavítimaseja

alguémqueodeio,aindaassimnãoécerto.Nãovouguardarseusegredo.Nãosereisuacúmplice.— Entãome deixe explicar pelo menos.— Ele segurouminhasmãos,

fechando os dedos em volta delas antes que eu pudesse afastá-las. —Sophie, vou quebrar a promessa. Vou contar o máximo que puder —sussurrouele,nervoso.—Precisoqueentendaquemeusou.Porfavor,medêachancedecontartudoavocê.—Étardedemais—falei,masminhacertezaeratãofracaquantominha

voz.Elelevouminhamãoatéseucoraçãoesentiasbatidasnopeitodele.— Não sou uma pessoa ruim. Admito que menti ao deixar que

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acreditassenoquequisesse.Precisavaquevocêsesentissefelizeseguraenãoqueriaacabarcomessasensaçãodepoisdetudoquedescobriusobrenossospais.Não tenhovergonhadequemsououdeondevenho,maseuestavacommedodequevocêdescobrissetudoenãomedesseachancedeajudá-la a ver o que realmente significa. Tive pânico de que a verdademudasseamaneiracomomevê.Masvocêmerecetertudo,edareitudosevocêdeixar.Minhacertezaestavasendodestruídaenósdoissabíamosdisso.Afastei

minhasmãoseascruzei.Eusabiaquedeveriamexistirmaisexplicações,masnãoacheiqueeleadmitiriade forma tão fácilapósmentirparamimpor tanto tempo.Dessa vez, ele estavame convencendo—com todososargumentoscertos.Euestavanamãodele.Odiavaasensaçãoe,aomesmotempo,ansiavaporela.—Vocêtemumachance.

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CAPÍTULOVINTEEDOIS

AVOCAÇÃOFALCONE

Nicmeofereceucaronadoparqueatésuacasa,maspreferi irapécomMillie.— Ah, uma briguinha de casal — deduziu ela no caminho para casa.

Millie não estava completamente errada, mas também não estavacompletamentecerta.NãoconteiaverdadesobreabrigaemRayfieldParkpelo mesmo motivo que não havia contado que iria para a casa de Nicdepois que seguíssemos caminhos diferentes na avenida Shrewsbury. Eunão estava pronta para processar a história toda e, até lá, queria mecertificardequeelaestariasegura.Quantomenoselasoubesse,melhor.Quandovireinaentradadoportão,Nicjáesperavapormimnaportade

casa.—Vocêveio.Eumeaproximeiemsilêncio.Eleseencostounaportaabertaparaque

eu pudesse passar. Tentei não prestar atenção quando encostei nele aoentrar,maspudeverareaçãoemseurosto.A parte da frente da casa era completamente diferente da cozinha

modernanapartedetrás.Euestavaimersanocenáriodetodasashistóriasde terror que já tinham me contado, e era exatamente como na minhaimaginação.Notetoalto,aindacobertodeteiasdearanha,haviaumlustredecristal.

As tábuas de madeira no chão do grande foyer eram desbotadas edesniveladas,eestalavamcomcadapasso.Àfrente,umagrandeescadaria

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cobertaporumgrossotapetevermelhoviravademaneirabruscaàdireitaparaosegundoandar,eopapeldeparededealtorelevosedescolavadasparedesemfiaposmaltrapilhos.Ocorredorseguiaàesquerdadaescadaria,levandoauma fileirade cômodos fechados compequenasportas.O ladodireito se destacava pelas novas portas enormes envernizadas compuxadoresgrossosdemetaldourado.— Sophie? — Virei e encontrei Nic, me olhando com antecipação. —

Podeviraquicomigo?—Elemeguiouatéumagrandesala,ondedoissofásvermelhosdecourocontornavamumaimponentelareira.EumesenteiemumdossofáseNicescolheuooutro.Percebi,semuma

gota de surpresa, que não havia uma TV, apenas um descanso de couropara pés, um relógio antigo sobre a imponente lareira e uma estanteembutida que ocupava inteiramente a outra parede. Era abarrotada deDickens,Defoe,Twain,Swiftedetodososoutrosgrandeseintimidadoresautores. Acima da lareira, uma pintura a óleo dominava o ambiente. Erauma espécie de anjo vingador representado com uma vastidão de coresescuraseemolduradoemourovelho.Ocupavaalargurainteiradalareira.—EsseaíéumadasdoValentino—disseNic,seguindomeuolhar.—Éincrível.—Émeiodramática.Dramática. Minhamemória trouxe à tona a imagem de Nic apontando

umaarmaparaacabeçadeRobbieStenson.—Bem,pelomenoselegastaotempodelecomboascriaçõesartísticas.Nicpigarreou,constrangido.—Bem,estouaqui—falei,concentrandomeuspensamentosnoqueeu

precisavasaber.—Comeceafalar.Elesedebruçounobraçodosofáemeencaroucomseusolhosescuros.—Oquevoucontarparavocênãoéparaosfracos—disseele.—Não

debato sobre minha família com frequência e preciso saber que não vaiusarnadadissocontramim.Contranós.Hesiteieeleinterrompeumeusilêncio.—Quandotudofordito,nãopodereivoltaratráseissojáéumriscopor

sisó.Penseilongamentesobreoqueeledisse,ponderandodeverdadeoque

mepediaeoquemeofereciaemtroca:acompletaverdade.EunãoqueriatrairaconfiançadeNic,mastinhamedodeprometermeusilênciocasooqueelemecontassefosseassustadordemais.Maseuprecisavasaber.Elequeriacompartilharsuahistória,queriaconfiaremmime,apesardetudo,eutambémqueriaconfiarnele.

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—OK—falei.—Prometo.—Nãovoufalartudo.Nãoposso.—Sóprecisodosuficienteparaentender,Nic.Eleme observou pormais um instante, como se tentasse ler algo nos

meus olhos. E então ele se acomodou e suspirou, rendendo-se, enfim,depoisdetodoaqueletempo.— Sophie, minha família e eu estamos no negócio da proteção. E isso

quer dizer que às vezes precisamos machucar pessoas, e outras vezesprecisamosmatá-las.E ali estava— finalmentedito.Meumedo inconfessohavia se tornado

realidade.Tal pai, tal filho:Nic tambémeraum “Faz-anjos”. Cobri a bocacom a mão e me concentrei em tentar tranquilizar a respiração. Eu nãoconseguiafalar.Estavaenjoada.—Me deixe explicar— continuou Nic. Ele estendeu amão paramim,

mas me encolhi e ele desistiu. E então soltou uma nova bomba. — Sóperseguimospessoasquemerecemmorrer.Olheiparaele,boquiaberta.—Issoéumaespéciedepiadadoentia?—Foioqueconseguidizercom

abocaaindatapada.—Porquenãoéengraçado.Eleficouapenasmeolhando—defendendooargumentomaisloucoque

eujátinhaouvidodasuaboca.— Está querendo dizer que persegue gente como Robbie Stenson?—

pergunteirapidamente.Eleassentiu,calmo.Calmodemais.—VocêteriamatadoRobbieseLucanãoestivesseláparaimpedir?Elenãoesperouumsegundopararesponder.—Semhesitar.Penseiemmelevantar,bateraportaecorreromaislongepossível.Mas

não levantei, não consegui — não quando ainda restavam coisas adescobrir.—Nãopercebeoquantoissoélouco?Dessavez,Nicdesviouoolharcomumacareta.—Elemereciacoisapior...SeLucanãoestivesselá...—Vocêprovavelmenteestarianacadeia—completei,friamente.—Eeleasetepalmosdaterra.Baixeiasmãosesegureiocourodosofáparacontrolararaiva.— É para isso que serve a polícia, Nic. Não cabe a cidadãos comuns

armadoscomovocêeLuca.Um abismo se criou entre nós. Olhei para meu colo e a amargura me

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apertouagarganta.EmboraNicnãomedevessenada,eumesentiatraída,feridapelasuaverdadeirarealidadeeassustadapelossentimentosqueeuaindatinhaporele,apesardetudoisso.Penseimaisumavezemirembora.Comosesentissemeuincômodo,ele

se sentou ao meu lado no sofá, tocando minha coxa descoberta com aperna,emesentienergizadapelaproximidade.Eleapoiouoscotovelosnosjoelhosesevirou,deixando-meapenascomapaixãonavozeobrilhodosseusolhos.— Então você acha que Robbie Stenson desistiria de machucar outra

pessoa só porque não conseguiu fazer o que queria com você? —perguntouele,docilmente.—Porqueeuachoquenão.Alguémprecisavabotá-lonolugarantesquetentassefazercomoutrapessoaoquefezcomvocê. Uma pessoa que poderia não ter tanta sorte. É isso que fazemos,Sophie.—Oquequerdizercoméotipodecoisaquevocêsfazem?—perguntei.

— Está tentando me dizer que sua família é uma espécie de esquadrãomoralistadajustiça?Inesperadamente, Nic riu; uma reação estranha e imprópria e me fez

questionarcomoeleconseguiasertãodespreocupadocomnossaconversa.— Quando decidimos combater um problema, não agimos dentro dos

limites da lei. Para nós, é muito simples. Existe todo um submundo docrime que não pode ser controlado pela polícia. Criminosos que nãopensamduasvezesantesdemataremalguémqueatrapalheseusganhos;otipodegentequetemmaisadvogadosejuízessobasasasdoquedinheironobanco.Elesnãoseguemasregras.Sãocomessascoisasquelidamos.Apoieiascostasnosofá,sucumbindoaopesodetudoqueelemepedia

paracompreender.—Masporqueprecisacaçarqualquertipodepessoa?Oqueissotema

vercomvocês?Nic baixou a voz e falou com calma, como se revelasse um terrível

segredo:—Temtudoavercomagente,Sophie.Estáemnossosangue.—Domesmojeitoquecomandara lanchoneteestánomeusangue?—

Euteriaridosenãoestivessetãohorrorizada.—Maisoumenos.—Nicsorriu.—MinhafamíliavemdaSicília.Desdeo

início,cadaumdenósjánasceudentrodamáfia.Nãoforamintroduzidos.Nasceramnela.Paranós,nãoexisteumaescolha,umaalternativadevida.Senti umapontada de dúvida. Isso queria dizer que ele estava preso a

essetipodevida?SerumFalconesignificavanascerdestinadoamatar,do

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mesmojeitoqueserumGracewellsignificavaserpéssimoemmatemática?Comoissoerapossível?Eleprosseguiu,inabaladocommeusilêncio.—AstradiçõesdosFalconesãoexclusivas,nossasociedadeéligadapelo

sangueenossasaçõessãofrutodehonraesolidariedade.Estamosnaterrapara fazerdomundoum lugarmelhor.Damos tudopela famíliae, assim,damostudopelaprocuradobem.—É tudomuito poético— falei após ummomento de ponderação.—

Masquandovaicomeçaraexplicarapartesobrematargente?— Agora. — Nic reagiu com uma calma pavorosa. Ele sequer piscou,

apenasrepousouamãonaminhaeentrelaçounossosdedossobreojoelhodele.Deixeiquefizesseisso.Nãosabiaporque,masestavatentandovê-locomoumprodutoda suaancestralidadee criação, enão tinha certeza sedevia puni-lo antes que entendesse o significado disso. Mal sabia se eucorriaperigoounãoporestarali,masmesenticonfortadapelotoquedelee,apesardetodosossinaisparacorrer,fiqueiali.— Na Sicília, a máfia surgiu da necessidade de proteger os cidadãos

locais. Não era como é hoje em dia, com famílias diferentes comandadaspor códigos de conduta cruéis e esquemas ilegais de dinheiro. A máfiaoriginal, La Cosa Nostra, era diferente. — A voz dele ficou melancólica,comose lembrassedealgodeque tinha feitoparteumdia.Talvezele sesentisse assim.—Depois que a Itália anexou a Sicília a seu território noséculoXIX,asterrasforamtiradasdaIgrejaedoEstadoedadasacidadãoscomuns.“Ocomérciocresceu,assimcomoocomercialismoe,comisso,surgiuo

ladofeiodeganhardinheiro:ganância,crime,assassinato.Nãoexistiaumaforçapolicialdeverdade.Os locaisnão tinhamninguémparaprotegerascasas,osnegócios,atémesmoosfamiliares,entãoforamprocurarissoemoutro lugar. Meu avô dizia que foi um simples exemplo de oferta edemanda.Primeiro,pequenosgruposdehomenscomeçaramasurgirportodaSicília;emtrocadedinheiro,elesgarantiamasegurançamatandoosqueameaçavamapaz.Anotíciaseespalhoue,depoisdeumtempo,essesgrupos passarama ser contratados por famíliasmais ricas para executarvinganças pessoais, as famosas vendetas, ou para garantir proteçãoadicional.”— Então, esses tais grupos, os primeiros membros da máfia, eram

apenasumaformadeleiautorregulamentada?—perguntei.Éfamiliar.— E foi esse o problema — respondeu Nic. — Sem lei, além da sua

própria,amaiorianãoresistiuàtentação;algumasorganizaçõesseviraram

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contra quem protegiam, caindo na violência banal, extorsão, lavagem dedinheiroenocrimeorganizado.Tudoaquiloquerepresentaa infâmiadamáfianosdiasdehoje.“Depois disso, muitos deles que haviam se tornado grandes famílias a

custadoprópriotrabalho,imigraramparaosEstadosUnidos.AfamíliadomeuavôfoiumadasprimeirasaimigrarnoiníciodoséculoXX.—Nicfezumapausaantesdecontinuar,refletindoumacertezasilenciosa.—MasosFalconenuncaescolheramocaminhodacorrupçãodequemestavaàsuavolta,nemnaSicílianemaqui.Sempretentamosprotegeraquelesquenãopodemprotegerasimesmos,eficardoladocertoentreocertoeerrado.E,àsvezes,acoisacertaématarumhomemdotipoerrado.”Derepente,elepareciabemmaisvelho.Partedemimqueriachorarpor

eleepelainocênciaquenuncahaviaexperimentadodeverdade,masoutrapartequeriasacudi-loegritarcomeleporsertão idiota,pornãoversuavocaçãocomoeuvia—umdesejoinsanodemorte.—Sobreoqueestápensando?—perguntouele.Balanceiacabeça.—Quevocêpodemorrer com17anosporqueviveatrásdevinganças

quenemsãosuaseaindanãoconsigoentendermuitobemomotivo.— É meu trabalho — disse ele, simplesmente. E então vieram cinco

palavrashorríveis:—Souummatadordecarreira.Perdiacapacidadedepiscar.Derepentenãohaviaespaçosuficientenos

meuspulmõesparaenchê-loscomoarqueprecisavapararespirar.Seeutivesse lembradodealgumpalavrãonaquelemomento, teriausado todosaomesmotempo.Nicapenasesperou,comeducação,enquantoeuligavaapalavra“matador”aumgarotode17anoscomlindosolhoscastanhoseumsorrisoespontâneo.— Quantas? — balbuciei, enquanto os números giravam na minha

mente;cincopessoas?Dez?Cinquenta?Elemeolhouconfuso,maseusabiaqueeletinhaentendido.Simplifiquei.—Quantaspessoasvocêjámatou?—Nãosei.—Mentira.— Chute— exigi, mas minha voz falhou. Eu realmente queria saber?

Seriapiorqueminhasdeduções?— Não foram muitas. — Os olhos de Nic aumentaram e me peguei

reparandonospontosdouradosdentrodeles.Eumeconcentreidenovo.Eunãoiadeixarqueocharmedeleosalvasse

dessa.—Qualquernúmeroacimadezeroé“muito”.

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Nicteveobomsensodedesviaroolhar,mesmoqueestivessefingindoavergonhaquedeveriasentir.—Então,quantasforam?—insisti.—Nãopossofalarsobreisso,Sophie.Podemecausarproblemas—disse

ele,quaseimplorando.—Apenassaibaqueelaserampessoasruins.BempioresdoqueStenson.Eéomeutrabalho.—Comopodeserseutrabalho?—Finalmentedisse,emboratenhasaído

comumavozagudadedoerosouvidos.—Nãopoderiasernenhumoutro.—Poderiasermuitascoisas,Nic!—Euestavagritandosemquerer.—

Poderiaserprofessor,médico,vendedor,pescador,contador...—Sophie—interrompeuNiccomgentileza.—Tenteseacalmar...Eumeobrigueiaficarcaladaatécontrolarahisteria.Quandoenfimme

acalmei,admiti:—Estoucommedo.— Eu disse que jamais machucaria você — afirmou ele, com

tranquilidade.—Ésóumtrabalho.—Não—falei,balançandoacabeça.—Comopoderiaser?— Os Falcone são uma das linhagensmais respeitadas e honradas na

máfiaamericana.Asoutrasfamíliassemprenosprocuram,porummotivoou outro, e nós sempre ajudamos. Essa tem sido a nossa vocação nosubmundo.Eécomooperamosdentrodaomertà.—Aúltimapalavrasaiucomnaturalidadedasuaboca.—Oqueéomertà?—Minhalíngualutoucontraapronúncia.Nicsorriudaminhatentativadesastrosa.—Éumcódigodesilêncio.Nossogruponãofalacomalei,masfalamos

entre nós e é assim que fazemos as coisas. Amaneira como resolvemoscertos...problemas.—Querdizerpessoas—apontei.—Pessoas—confirmouele.— Então a sua família é uma espécie de divisão especial damáfia?—

deduzi.Elepensouporumminutoantesdeabrirumsorrisosuave.—Achoqueviramosisso.Nossaparteseencarregadepessoasquenão

deveriam estar vendendo drogas nas ruas, ou traficando, ou matandoinocentes...—Eleengrossouavoz.—Cuidamosdaescória.Elemeobservouatentamenteenquantoeucomeçavaa juntaraspeças

para visualizar o cenário que ele descrevia. A família dele feria ematavapessoascujoobjetivodevidaeraferirematarinocentes.Eraseutrabalho,

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maseramaisdoqueisso:eraseulegado.Mascomoelejustificavaissoparasimesmoecomoeupoderiaexplicarsuacompreensãodissotudo?Pensarque eu estava sentada ao lado de ummatadorme deixou tonta e, aindaassim,quandoolheiparaNic,nãosentimedo,senti...confusão.—Evocêssãopagosparafazerisso?—Sim,somos.—Poroutrasfamíliasdamáfia?—Sim.—Generosamente,imagino.— Isso não importa. — Ele tinha razão, a resposta não importava. A

mansãofalavaporsisó.—Espere.—Haviaalgofaltandonaexplicaçãodele.—Masosmembros

damáfiatambéminfringemalei,certo?Seiquenãovivemexatamentedeacordocomasleis.Ouvifalaremcabeçasdecavaloeassassinatossecretose lavagem de dinheiro e rixas familiares pesadas... — Interrompi meuraciocínio,esperandoqueNicnãonotassequeeuacabeidecitarummontede coisas que eu tinha visto em filmes nos últimos anos. Afinal, aquelashistóriasdevemtervindodealgumlugar.Elesuspirou.—Sim,asfamíliasnãosãoexatamenteangelicais.— Então como eles protegem vocês se precisam caçar, pelo menos,

algunsdeles?Nicmeolhoucomoseeutivessesubitamentecriadochifres.— Sophie— disse ele, ofendido. — Jamais perseguimos membros da

nossaprópriacultura,nãoimportaoquefaçam.Derepenteeuestavadevoltaaomeupróprioplaneta,vendo-odelonge

eresistindoàvontadedesacudi-loatéaburricesairdele.—Issoéumapiada?—Não.Eumesenteisobreasminhaspernasparaficarmaisaltadoqueeleno

sofá.—Entãoapenasperseguemcriminososcomunsdodiaadia?Enenhum

doseulado?— Não podemos— disse ele, olhando-me de baixo com seus grossos

cíliospretos.—Porquenão?—Porque senão estaríamos todosmortos a essa altura.—Ele foi tão

enfáticoquefiqueimenossurpresadoquedeveria.—Masasfamíliasdamáfianãobrigamentresitodahora?—Maisuma

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afirmação tirada do cinema, mas tinha a impressão de que estava certasobreisso.—Sim,masnãocomagente.Somosintocáveis.—Porquenamaiorpartedotempoestáfazendootrabalhosujoporeles,

certo? Você presta um serviço e em troca mantém essa vida de luxo—retruquei.—Issoétãoerrado.Nicseendireitounosofá,deixando-noscomamesmaalturanovamente.—Eliminamosapiorespéciedanossasociedade.Nãovêisso?Balanceiacabeça.Comoelepodiasertãoingênuo?—Estáapenaseliminandoaconcorrência,Nic.Amáfiaaindaassimpode

fazeroquequiser.—Éumserviçoàsociedade.—Serviçobemseletivo.—Melhordoquenãofazernada.— Você não se incomoda? Não pensa em como isso é hipócrita?

Assassinos que pagam você para assassinar outros assassinos?—Minhacabeçaestavacomeçandoagirardenovo.—Tentonãopensarmuitonisso.—Poisdeveria.—Como assim?—perguntou ele, ferido.— Já parou para pensar que

todaminha famíliavaiparao infernopor fazerChicagoum lugarmelhorparavocêmorar?Jáparouparapensarquenãoimportaquantaliberdadeeproteção nós temos, continuamos de mãos atadas por outros em nossacultura?—Sim!—supliquei.—Pensenisso!— Sophie, não há nada que eu possa fazer! — A voz dele se tornou

raivosa.— Issoéaminhavida.É tudoquesemprevivi.Éoqueconheçocomocerto.Étudooqueconheço.Boteiasmãosnocoloemereclineiparatrás,reconhecendoquelutava

umabatalhaperdida.—Nãodeveriasertudoounada.—Eusei—cedeuele,exausto.—Masoquepossofazer?—Podeirembora.—Aúnicaformadelargaresseestilodevidaéemumcaixão—concluiu

eledeformaassustadora.Osilênciorecaiusobrenós.Partedemimcompreendia.Euqueriachorar

por ele e pelo futuro ao qual estava preso, mas não chorei. Estavaanestesiadademais, assustadademais para considerar a possibilidadedeque talvez Nic não quisesse largar seu estilo de vida, de que gostava de

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puniraspessoas,deassisti-lastremendoe implorandoporperdãodiantedele.Fiqueiolhandoparaminhasunhasenquantoeleolhavaparamim.—Ésuicídio—balbuciei.Nicserecostouesorriu,eporumsegundoaparentouseroadolescente

quedeveriaser.Felizedespreocupadoenãosombrioeduro.—Meus irmãoseeu fomos treinadosparaesse tipodevidadesdeque

aprendemos a andar — disse ele. — Sabemos ler um ambiente comoninguém. Sabemos como quebrar o pescoço de alguém de dez formasdiferentes. Temos o conhecimento para nos infiltrarmos em gangues e ahabilidadedeatirarnolíderacempassosdedistância.—Pareciaqueeleestava citandoa listadehabilidadesbásicasdocurrículoenão relatandoatividadesmafiosasespeciais.—Vocêrespondeaochefedasuafamília?—perguntei.—Sim—disseNic lentamente,comosecomeçasseaperceberalgo.—

Seguimosasinstruçõesdele.—Quemé?Elebalançouacabeçacomosesaíssedeumtranse.—Sophie.—Elehesitou.—Eujáfaleidemais.Meempolguei...Sempre

façoissocomvocê...—Eleseinterrompeu.—Vocêpoderiaacabarcomigo.—Nãovou—respondi,automaticamente.Eunemhaviapensadonisso,

masmeucoraçãojátinhaaresposta.Apesardetudo,eunãoqueriadestruí-lo. Ele já estava sendo destruído pelas pessoas à volta dele. Pela própriafamília.Seaomenosvisseisso,talvezeupudesseconvencê-lo.—Nãopossofalarmaisnada—disseele.Nãofaziadiferença;eujásabiaquemeraochefe.Comoopaidelespodeterautorizadoissoquandoestavavivo?Certavez,

meupaimeviubrincandode fumarumcigarrode chocolateequasemedeixoudecastigo.MasopaideNicprovavelmentehaviadadoaprimeiraarma comoumpresente para ele, e o ensinou a carregá-la, apontá-la e amatarcomela.EagoraeraFelice?Certamenteeradaresponsabilidadedelecuidardosgarotos,nãousá-losparamatarpessoas.Deixei meu corpo cair no encosto do sofá, sentindo uma exaustão

repentina.—Nãoprecisadizermaisnada—falei,comgentileza.Nicse inclinouparabaixodeixandonossosnarizesalinhadosenquanto

eleolhavaparamim.—Estácommedo,Sophie?Fizoquepudeparaignorarnossaproximidade.—Nãosei.

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—Nãosaiucorrendo.—Aindanão.Eleabriuumlevesorriso.Estavacomeçandoamesentirintoxicadadenovo;tontadedesejo.— Você faz coisas ruins. — Lembrei a mim mesma em voz alta,

cometendo o erro de encará-lo. Quantas pessoas passaram seus últimossegundosnaterraolhandoparaaquelesolhos?—Sóàsvezes—disseele,calmamente.—Precisalevarissotudotãonaboa?—Nãome sintomal com o que faço.— Ele passou o dedo pelomeu

pescoçoesentiumarrepionacoluna.Quantospescoçoseletinhaquebradocomaquelesdedos?—Masmesintomalporvocênãogostardessapartedemim,poisessaparteéquasetudoquesou,Sophie.—Mastemtantabondadeemvocê,Nic—sussurrei.—Bondadepelaspessoascertas.—Eleobservoumeuslábiosenquanto

passavaosdedosneles.—Porpessoascomovocê.Sentiumacorrentefamiliar.Nãosedistraia.Ondeestavatudoaquiloque

euqueriadizer?Derepente,nãomelembravadenada.—Nãodeveriadesobedeceràlei.Elepuxoumeuqueixoparapertoepassouonariznomeu.—Eusei—murmuroucontrameuslábios.Arespiraçãodeleestavatão

irregular quanto a minha.— Bella mia — gemeu suavemente na minhabocaefoisuficienteparaqueminhadeterminaçãofossepelosares.Dessa vez, o beijo foimais intensodoque o anterior.Nic enganchou a

mãoemmeucabelo,puxando-meparasieencaixandonossoscorpos.Elearrastouabocanaminhapele,inebriando-mecomseusbeijos.—Édifícildemaisficarlongedevocê—gemeueleparameupescoço.—

Nãoqueromaisserbonzinho.—Entãonãosejamais—falei,agarrando-ocommaisforçaesentindoos

músculos das costas dele tensionados sobmeus dedos. Cuidadosamente,ele deitou minha cabeça para trás e encontrou minha boca de novo,separandomeuslábioscomsualínguaenquantomedeitavanosofácomasmãossobminhascostas.Quandoaportadafrenteseescancarou, fazendotremerosofádebaixo

de nós, fomos jogados de volta à realidade com um choque. Levantei atempodeveroolharaterrorizadodeNic.Elepuloudepécombochechasaindavermelhaseosolhosatentos.

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CAPÍTULOVINTEETRÊS

OBRAÇODIREITO

Lucaentrouàspressasnasala.—Nic,vocêtevenotíciasdoVal...Masquemerdaelaestáfazendoaqui?—Otomdafraseficoudrasticamenteagudodametadeparaofinal.Nicposicionouocorpodeformaprotetoraàfrentedomeuelevantouas

mãos,comoseLucafosseumpolicialcapazdemeatacarearrancarminhacabeçafora.Eleparouànossa frente.Seuolhareraumamisturade fúriaechoque,

mashaviaalgoamaisquenãoidentificava.—Nic,vouarrancarseucoraçãoefazervocêcomê-lo,seuidiota...—Ele

continuoua frasecomapiorcombinaçãodexingamentosqueeu já tinhaouvidodeumasóvez.Nicpuloudepéeenfrentouoirmão.—Euprecisavaexplicaroqueelaviu.OsolhosazuisprofundosdeLucairradiavamódio.—Eachoumelhortrazê-laaqui?Niccerrouospunhos.—Nãocomece.Sentindoqueestavaperigosamentepertodeperderocontrole,levanteie

empurrei Luca para fora do caminho. Não sabia lidar com a ideia de serplateia de uma conversa que, com certeza, eu não entenderia, mas queaindaassimmeenvolveriaosuficienteparaficarcheiadedúvidas.Eunãodeveria estar ali com eles de qualquer forma e, agora queminha clareza

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mentalhaviaretornado,fariausodela.—Voudaroforadaqui.Nicestendeuobraçoparamim,masLucadeuumtapanamãodele.—Deixeelair—avisouele.—Anãoserqueprefirapiorartudo.Nic não protestou e me perguntei qual seria o motivo. Eu me afastei,

passandopelocorpoenrijecidodeLucasemolharnovamenteparanenhumdosdois,ebatiaportadacasacomoumademonstraçãodehostilidade.Enquanto eu atravessava o chão de cascalho da entrada,minhamente

era inundadaporperguntassobrecomoeupodiaestardevoltaàmesmasituação. Eumal havia começado a esquecer e agorame via de volta aopontoinicial,confusaeabandonadaporummafiosoquemefaziatãobemquantoumaseringacheiadeveneno.Comeceiacorrer,derrapandonocascalho,masnãochegueimuitolonge

antes de algo agarrar meu braço e me jogar sem a menor preocupaçãocontraaposturaobstinadadaúltimapessoaquedesejavaver.EumesolteidopeitodeLuca,ondehaviaaterrissado.Eleagarroumeus

ombrosemeempurrouatéaparededepedranofinaldaentradadecarros,imprensada entre as mãos dele, como da outra vez. O rosto de Luca foitomadoporsuajáfamiliarraivaselvagem.—Acheiquetinhaditoquenuncamaisqueriavervocênaminhacasa.—

Ele estava tão próximo que eu podia ver uma pequena cicatriz brancaacimadoseulábio.Passouporminhacabeça,deformabemimprópria,queeu provavelmente era uma das poucas pessoas vivas que sabiam daexistênciadacicatriz.Assopreiumamechasoltada frentedosmeusolhos,acertandoosdele

semquerer.Comoagorajásabiaquenãomachucariaumagarotainocente,sentiumagotaamaisdeconfiançaparafalarcomele.—Nicmeconvidou.—Nãome importaseoPapativesseconvidadovocê.Nãoébem-vinda

aqui.—Bem,aviseissoaoseuirmão.Nãorespeitosuaautoridade.Minharespostaoprovocouepudeversurgiremduasentradasnassuas

sobrancelhas.—Sabequenãopodeficarcomele.—Euconsigolidarcomisso.—Nãoconsegue,não.—Seiquevocênãovaimemachucar.Os olhos de Luca sinalizaram algo, mas quando voltou a falar, estava

calmo—quasegentil.

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—Issonãoquerdizerquevocênãovásemachucar.—Eleapertouosolhos,frustradoe,quandoosabriunovamente,estavamemchamas.—Medigaoqueeuprecisofazerparamelivrardevocê,jáquelembrarocrimedoseupainãoajudoumuito!Empineionarizememantiveséria.—DigaoqueestãofazendoemCedarHill.Lucameobservoucauteloso,hesitando,eentãodisse:—Não.—Entãoachoquevouficarporaquimesmo.—Eunãofariaissosefossevocê.—Oquevai fazer,Luca?—Cerreiospunhosao ladodo corpo.—Vai

botarumaarmanaminhacara?—Sefornecessário.—Quanta coragem!—explodi.Estávamos tãopróximosagora.—Não

podeusarpalavras,masvaificarsuperfelizdeusarumaarma.—Nãovouseroresponsávelpordestruirsuainocência!Inclineiacabeçanadireçãodeleparaquesoubessequenãoestavacom

medonemeratãoinocentequantoeleimaginava.—Váemfrente—sussurrei.—Podedestruir.—Nossosrostosestavam

colados.—Quasefuncionoudaoutravez,quandofalousobremeupai.—Nãoimporta—respondeuele,resoluto.—Nãovouserocaraquedá

umsoconacaradoBambi.Levanteiavozdenovo.—EntãomedizoquevocêsestãofazendoemCedarHill!Luca moveu seu olhar impassível dos meus olhos para minha boca e

afastouqualquerpensamentoqueestivesseseformandonasuacabeça.—Não—disseelecomcalma.Empurreiopeitodele,afastando-odemim.— Sei que são damáfia. Se acha que não consigo lidar com isso, está

errado.Ele balançou a cabeça, incrédulo, a voz pulsava comumnível de raiva

muitosuperioraomeu.—Claroqueelecontouparavocê.Aqueleidiota.Evocêaindaestáaqui,o

quenãotefazmuitomaisinteligentedoqueele.Encarei-ofuriosa.—Seiquevocêsnãomachucampessoasinocentes.Sãotodoscheiosde

“honra” e “moral”... por mais distorcido que isso seja — acrescentei,venenosamente.Ele se afastou e não conseguia mais ler sua expressão. Houve um

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momentodesilêncioeentão,comumavozfriaecalculada,eledisse:—Evingança.—Oquê?Elesemicerrouosolhos.—Esqueceudefalardevingança.—Oquetemavingança?—Estremeci,lembrando-medomeupai.Edo

paidele.Nossohistórico.OsorrisodeLucaacentuouoscontornosdoseurosto.— Ah, Nicoli não contou essa parte? Faz sentido que ele tenha sido

seletivo.Mordi o lábio, procurando dentro de mim pela força que eu tinha

acabadodereunir,masquegasteitodagritandonacaradele.—Eledissequevocêsnãosãoiguaisàsoutrasfamílias.—Sim.—Lucapermaneceuperfeitamenteimóvelemeobservoucomo

um gavião rondando uma presa.— Exceto quando falamos de vingança.Como as outras famílias, os Falcone sempre conseguem a vingança,independentedesermoralmenterepreensível.—Não—falei,projetandooqueixoebalançandoacabeça.—Não?—Luca gargalhou; deduzi que era sua risada real, e fazia um

estranhosommetálico.—Gracewell,vocêérealmenteuma figura.Oquevocê imaginou? — perguntou ele, entretido. — Que fôssemos anjosvingadores com armas e canivetes, sem pecado ou culpa? Você viu Nicbotar uma armana boca deRobbie Stenson.Ouviu o gatilho ser ativado.Realmente acredita que a ideia de vingança estaria afastada de umadinastiadematadoresterritorialistasetemperamentaisquedesignouasimesmaatarefadedistribuirocarmanosubmundo,algoquenãodeveriaser função de ninguém na terra? Acha que tudo que fazemos é a coisacerta?Ele balançou a cabeça, incrédulo, e amaldiçoei minha ingenuidade. Eu

tinhasidoburraosuficienteparamedeixarlevarporumanoçãoromânticade que Nic era uma espécie de vingador. Ele era um assassino, simplesassim,esuscetívelaosmesmoshumoreseàsmesmastentaçõesquetodos.DeslizeideladonomuroparasairdasmãosdeLuca.Elemedeixouire

sentiumapontadadealívio.—Vocênãovaimemachucar...—Não—respondeuele.—Nãovou.—Entãoporqueestásendotãodramático?AvozdeLucaficouperigosamentecalma.—Prestebastanteatençãonoquevoudizer.—Preciseimeconcentrar

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nos lábiosdeleenquanto falavaporqueotomturquesadosseusolhosderepentesetornouintensodemais.—SouobraçodireitodetodaadinastiaFalconee seestoudizendopara serdiscretaenãovirmaisaqui, entãoébomacreditarquetenhoummotivo.PrecisaseafastaromáximopossíveldessacasaedeCedarHill.Nictalvezestejaseiludindo,achandoquepodeprotegervocêdoqueestáprestesaacontecer,masnãopode.Meupai foiassassinadoeissosignificaquesuafamíliatemumadívidadesanguecomanossa,Sophie.Umadívidadesangue.Oarquerestavanosmeuspulmõesfoiarrancado

demimemumgolpesó.AexpressãodeLucademonstrouhesitação,masele a escondeu antes que pudesse entender o que significava. Quandochegououtravezàporta,elesevirou.Euestavaplantadanomesmolugar,comoeleesperava.—Sabeoquequerdizeropotedemel?—perguntouele.Meuestômagosereviroucomotomdavozdeleecomofatodeelesaber

do mel. Embora eu sempre achasse que soubera, no fundo, haver umaconexão, de repente tudo parecia mais sinistro do que jamais poderiaimaginar.Balanceiacabeça.—Nãoeraumpresente.—Nãoacheiquefosse—menti.Não havia mais nenhuma emoção na voz ou no rosto de Luca; estava

completamenteinexpressivo.Eledesviouoolhardemimparaocéuescuro.—TemummotivoparameutioFeliceserchamadopelosubmundode

“APicada”,sabe?Não respondi nada. Apenas fiquei ali, tentando fazer asminhas pernas

funcionaremenquantomelembravadorostocheiodepicadasdeabelhadeFelice.— Quando Felice Falcone entrega uma amostra do seu mel com laço

pretoaalguémsignificaquevoltaráparabuscaropote.Tenteiignoraroapertonagarganta,maserademais.—Equandovolta, voltaarmado.Opotedemel éoPresentedeMorte

dosFalcone.—Lucavoltouseuolharnovamenteparamim,encarando-medecima.—Queestesejaseuúltimoaviso.Váemboraenquantohátempo.Fiquei pálida e minha mente girava freneticamente. Eu tinha todas as

peças,sóprecisavaencaixá-las.—Masoquesão...—Fale com seu tio,Gracewell— interrompeuLuca.—Oudevodizer,

Persephone?

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Antes que eu pudesse responder, ele bateu a porta num baqueensurdecedor,deixando-meali,tremendodacabeçaaospés.

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CAPÍTULOVINTEEQUATRO

OSINVASORES

Seguiparacasa,tirandootelefonedobolsoeligandoparameutio.Tocoue tocou até cair na caixa postal. Pelo amor deDeus.Quase espatifeimeutelefonedetanta frustração.Ligueimaisquatrovezesenada.Deixeiduasmensagensdevozeentãomandeiumamensagemdetexto:

Sei o que o mel significa. Precisamos falar sobre os Falcone. Ligue

urgente.

Euestavaquaseemcasaquandomeutelefonecomeçouatocar.—Jack—atendi.—Achoqueestouemperigo.— Sophie, acabei de ler suamensagem. Está tudo bem?—A voz dele

estavatomadapelopânicoeaminhacomeçavaaficarigual.—Ondevocêsemeteu?Ligueiváriasvezes!—explodi.—Concentre-se,Sophie—rebateuele.—Explicoissomaistarde.Onde

elesestãoagora?—Nãosei—falei.Eleseramtantosquepodiamestaremqualquerlugar

fazendo qualquer coisa. Contei as ameaças de Luca; sobre a dívida desangueeomel,tentandofazerminharespiraçãoacompanharaspalavras.

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—Ondevocêestáagora?—perguntouelequandoterminei.Vireinoportãodecasa.—Estouemcasa—respondi.—Entreetranquetodasasportas.Voumandaralguémaí.—TioJack?—Euestavaenroladacomaschaves.Tinhaapenastrêsno

chaveiro,masficavamcaindoporcausadaminhamãotrêmula.—Elesvãomemachucar?—Não—respondeuele,rapidamente.—Claroquenão—acrescentou

logodepois.—Oqueestáacontecendo?—Eraaperguntaquenãoqueriacalareeu

aindanãotinhaencaixadotodasaspeças.—Não tenho tempoparaexplicar, Sophie.—Eupodiaouvir elegritar

ordensparaalguémdooutroladodalinha.Acerteiachavenafechadura.Ocliquedeaberturameencheudealívio.—Sevocêsabiaqueeuestavaemperigo,porquefoiemboradessejeito?Agora que meu medo se encontrava sob controle, estava ficando com

raiva.JackandavaevitandoCedarHillcomosefosseumadoença,emnomedasuaprópriasegurança,masnãotinhasedadoaotrabalhodedizerparaque eu eminhamãe fizéssemos omesmo. Lá se vai a promessa que elefizera a meu pai. Ela estava em Chicago para uma série de provas devestidosdenoivaatéamanhãànoite,maseusabiaque ficaria furiosadenãosaberdahistória.Aindamaisdessa.—Sophie—dizia Jack comumúnico e longo suspiro—, elesnão vão

machucarvocê.Eunãoteriadeixadovocêaíseachasseisso.Essesgarotossãosóconversa.Aquelafamíliaamaosomdaprópriavoz.—Elesqueremvingança,Jack.—Batiaportaepasseiacorrente.—Eles

queremumadívidadesanguepeloquepapaifez.OLucamesmomedisse!—Corriparaacozinhaesubinobalcãodapia.Apoieiotelefonenoombroetranqueiasjanelas.Jacknãopareceuimpressionado.—IgnoreoqueLucadisse.Estáapenastentandoassustarvocê.Descidobalcão.—Masporquê?—Presteatenção.EusouoproblemadosFalcone.Apenaseu.Nãovocê.— Como assim, você?— Forcei amaçaneta parame certificar de que

estavatrancada.—Nãoposso falardissoagora.MandeiEricCainatéaí.Elevaimanter

vocêemsegurança.Vocêoconheceunomeuaniversárioalgunsanosatrás.—Eume lembro— falei, lembrando vagamente de umhomembaixo,

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afeminado, com um cabelo vermelho escuro invejável. Como exatamenteelememanteriasegura?—EncontrovocêemalgumlugarpertodeCedarHillefalamossobreo

assunto.—Eamamãe?—perguntei.Meutioteveaaudáciadesoltarumarisada.Cerreiospunhosatécravar

asunhasnaspalmasdasmãos.—ElesnãochegariamnempertodaCeline—disseele,menosprezando

o assunto.—Ela não temnada a ver comigo. Todomundo sabe que suamãemedespreza.Eelesnãoestãointeressadosempunirseupai,Sophie.Trancoutodasasportas?—Sim.—Euestavanocorredornovamente.Subidoisdegrausporvez

depois de decidir trancar as janelas do segundo andar como garantia.—Porquevaimetirardaquisenãoestoucorrendoperigo?Falepelomenosalgumacoisaparaeumepreparar.— É uma precaução, Sophie. — Ele fez uma pronúncia elaborada da

palavra“precaução”comoseeu fossemesentirmelhor.Nãoadiantou.—Eles jamais iriamatrásdevocêporcontadoqueseupai fez.Éuma ideiaabsurda. Emesmo se fossem, o que não é verdade, a máfia Falcone nãomachucapessoasinocentes.Éumadassuasregraspreciosas,moralmentesuperioreseidiotas.Eelesamamseremmoralmentesuperiores.Eupodiasentiroveneno.Então Jacksabia tudoqueeusabiaedecidiu

não me falar nada. E isso queria dizer que ele não era inocente? O queexatamenteelefezparaentrarnalistadosquemerecemmorrer?—Vocêparecesaberbastantecoisasobreeles.Valeupeloaviso.—Podia

termepoupadomuitotempoemuitapaixonite.—Euavisei,sim.—É.Umabelaporcariadeaviso.Descicorrendodevoltaparaoprimeiroandarcommeuspésbatendono

chãocomotrovões.— Sophie, realmente não posso entrar nessa discussão agora. — Ele

pareciacansado.—Tenhapaciência.Jámandeialguémaí.—Estoutentando.—Deslizeipelaportaentreabertadasalae fecheia

janela.Estavafechandoascortinasquandoouviumavozatrásdemim.—Olá,Sophie.Deixeiotelefonecairnochão.GinoeDomFalconeselevantaramdosofá

aomesmotempoecaminharamnaminhadireçãocomopassocoordenado.— Como entraram na minha casa?— Tentei encontrar o telefone no

chão, mas o cômodo estava completamente escuro. Os dois deram de

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ombroscomosrostosencobertospelobreu.Elestinhamensaiadoisso?—Émelhoriremembora.—Cruzeiosbraçosnumatentativademostrar

resistência.Tambémsubiotomdavoz,torcendoqueJackaindaestivesseescutando.—Estouesperandovisitas.A risada de Gino pareceu um latido rouco. Dom parou a trinta

centímetrosdemimeoirmãoficoulogoatrás,comumrabodecavaloquelhedavacincocentímetrosamaisdealtura.Osdoisestavamcomomesmosorrisoameaçador.—Oquevocêquer,Dom?—Aprincípio,Jack—disseele.Atrásdele,Ginoassentiucomenergia.—

Mas não podemos perder mais nenhum tempo tentando achá-lo. Nãovamosmaiscorreratrás.—Eseguirvocênãonoslevoualugaralgum—acrescentouGinocoma

monocelhafranzidasobreseusolhosindecifráveis.—Étãochato.Cambaleeiparatrás,batendocomapernanoparapeitodajanela.—Estavammeseguindo?RezeiparaqueJackaindaestivessemeescutandodeondemeutelefone

tivessepousado.— Sim— declarou Dom, assertivo.— Foi por acaso que descobrimos

quemvocêera.Pensamosqueeventualmentenoslevariaaoseutio...—Eledisse isso como se eu o tivesse decepcionado namissão da qual eu nãotinhaomenorconhecimento.—Masnãofoioqueaconteceu.Ginocomeçouarirentreosdentes.— Estavam me seguindo — repeti. Minha voz parecia distante;

transbordadadeincredulidade.—Háquantotempo?—Tempodemais—falaramaomesmotempo.—Nic foi contra, se fizer você se sentirmelhor.Anda comprandouma

brigaparadeixá-laforadisso—mencionouDomcomfalsaempatia.—Masascoisassãocomosão.—Foradissooquê?— Comprando uma briga e perdendo — desdenhou Gino, ignorando

minhapergunta.— Mas — acrescentou Dom —, se não estivéssemos seguindo você,

provavelmente teria sido estuprada naquela noite depois da festa maischatadomundo.—MeuDeus.—Sentiumembrulhodehorror.—FoiassimqueLucame

encontrou.— Não era para ele se meter — disse Dom, decepcionado. — Não

estávamosautorizadosafazernadaquemodificasseseudiaanãoserque

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seutioaparecesse,masLucaquebrouasregras,comosempre.Agentenemtinhaficadosabendoatévocêchegargritando,falandosobreoassuntonaportadanossacasa.Empalideci. Gino parecia ter se desligado da conversa e dispersado a

atençãopelocômodoescuro.Aoouvirumsomdoladodefora,oolhardeDom se desviou para uma fresta na cortina, atrás de mim. Aproveitei adistraçãomomentâneadosirmãosedeslizeipelaparedeatémeaproximardaporta.Elesmeseguiramcomorobôs.—Eunãofariaissosefossevocê—disseGinocomsualínguapresa.—

Nãoquerobateremumagarota.Mesmoquesejavocê.—Vocêvaiterqueircomagente.—Dompareciaquasepesaroso,mas

nãofezmuitoparaaplacarmeuantigoódioporele.Nãosótinhainvadidominha casa e estava tentando me levar a algum lugar contra minhavontade,comohaviausadoMillieedadoumpénabundadela.Issoofaziaumcompletoeimperdoávelbabaca.Saíemdireçãoàportaaberta,masGinomebloqueouinstantaneamente.Eleesticouobraço,fechandoapassagem.Domdeuavoltaemefechoupelooutro lado.Eleolhouparao irmãoe

fezumgestodecabeçacontrolado.Ginocaiudequatroesearrastoupelochão como um réptil, vasculhando o lugar com a mão enquantoengatinhava.Eracompletaedesnecessariamentedramático.Tenteicorrer,masDomagarroumeubraçoemepuxoudevolta.—Não.Finalmente,Ginopescoumeutelefonedebaixodapoltronaeselevantou,

balançandootelefonenoar.—Achei—disseele,triunfante.Dompegouotelefoneebotouaoouvido.— Fala, Jackie! — ironizou ele. Meu ouvido foi inundado por gritos

distantes.—Achoqueestánahoradeencerrarmosessenegócio.Rindosozinho,Ginoveioparameulado.—EstánahoradeSophiedartchauzinho.—Osorrisodelemostroudois

dentes lascadose a línguaabaixodeles.Euainda tentavaentenderoqueJackestavadizendoquandoGinoescondeuotelefonedemim.Domcobriuobocaleapontouparaoirmão.—Andalogo—ordenouele.Opanoúmidoveiodonada.

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PARTEIII

“Ondeestiveromal,cairásobreeleomachadofatal.”WILLIAMSHAKESPEARE,Hamlet

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CAPÍTULOVINTEECINCO

AVINGANÇADODIADOSNAMORADOS

Eu ouvia um zunido. O mundo vibrava, pulsando em meus ouvidos efazendocomqueeumesentissecomosehouvesseabelhassaindodomeucrânio.Acordei comumespasmo.Umacacofoniadocedecheirospairavapeloar,puxando-medaescuridãoquemeenvolviacompletamente.Abriosolhoseviumtetobrancoesentiumterrívelnónagarganta.Gemi.— Ah, acordou, finalmente. Estava querendo saber quanto tempo

demorariaparapassaroefeito.Eunãoprecisavavirara cabeçanadireçãodavozparasaberdequem

era. Tinha o tom suave pouco comumpara umhomeme cada sílaba erapronunciada com uma precisão exagerada, revelando seu leve sotaqueitaliano.—Felice—falei.Tenteimesentar,masnãoconsegui.Lacresdeplástico

prendiam minhas pernas e braços, apertando desconfortavelmente ospulsosecalcanharesexpostos.—Ondeestou?—De forma geral? Em Lake Forest. Especificamente? Deitada nomeu

sofá.O couro fez barulho quando lanceiminhasmãos atadas em direção às

pernasemesentei.Remexiocorpo,deixandoos joelhoscaíremnosofáebotando asmãos emmeu colo enquanto um raio de sol batia nosmeus

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olhos,fazendocomqueminhaspálpebrastremulassem.Eu estava quase na altura da grande janela saliente do outro lado do

cômodo.Osolcomeçavaasepôrnocéurosado—eudeviaterficadomuitotempoapagada.Davaparaverqueeuestavaapelomenosumandaracimado térreo.Do ladode fora, havia umvelho celeiro demadeira escondidoatrásdeumjardimcobertopor floresvibrantesqueseestendiamatéumcampo aberto. Dezenas de cabanas demadeira pontilhavam a grama emfileirasperfeitas.— Colmeias — percebi em voz alta. Eu podia ouvir levemente os

enxames de abelhas voando e havia pelomenos duas zunindo em algumlugardentrodocômodo.—Bemobservado,Persephone—disseFelice.Eleestavasentadocomas

costas retas em uma poltrona à minha frente, com uma pernaabsurdamentelongacruzadasobreaoutra.Revireiosolhosparaelee franziocenho.Tudonele—desdeocabelo

grisalhopenteadoparatráseostraçosmediterrâneos,atéoternocaroderiscadegiz—gritavacaramafiosoassustador. E, de acordo comminhasprimeirasimpressõessobreacasa,semfalardolocal,eleerarico.—MeunomeéSophie—rebati.— Aparentemente é mesmo. Se tivéssemos sabido disso mais cedo,

teríamossidopoupadosdeumaconfusãoetanto.Saberíamosqueeravocêdesdeoinício.Peloquepudever,estávamosasósnocômodo.Alémdosofádecouro

pretoondeeuestavasentada,nãohavianadaalémdeFeliceesuasabelhas.Elasvoavamemcírculossobreacabeçadelecomoseodefendessem,eavisãofezminhapeleformigar.—Devodizerqueestouimpressionadoquevocênãogritouainda.—Ele

apoiouosdoiscotovelosnosbraçosdapoltronaejuntouasmãosnomeiodocorpocomaspontasdosdedossetocando.—Porqueeugritaria?Elebalançouacabeça.— Estamosmuito longe da civilização. Aqui só tem você e as abelhas,

Persephone.Sentialgosemelhanteamedodentrodemim,masminhacabeçaainda

estavatontadoquehaviammedadoparadormir.Eradifícilentendermeussentimentosdeformacorretaeaindamaisdifícilnãodizeracoisaerrada.Eu sabia que havia sido sequestrada, mas não conseguia decidir o queresponder.EumeconcentreinasmarcasnorostoenopescoçodeFelice.Eramoleosasevermelhas,eemalgunslugaresborbulhavamraivosamente.

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—Então,éaquiquemoracomsuasabelhas?Romântico.—Eusabiaquenãodeveriater faladoaquilo,masmeucérebrohaviadesistidode fazeracoisacerta.—Éumapenaqueelaspiquemtantovocê.Elelevantouassobrancelhas,mostrandoasrugasnatesta.—Éumaescolhapessoalnãousarumarededeproteçãoquandoestou

na companhia das minhas abelhas. Acho que nos mantêm afastadosdesnecessariamente; prefiro ficar perto e senti-las naminha pele.— Eledesviou o olhar para a abelha que voavamais próxima da sua cabeça esorriucomoumpaiorgulhoso.—Éumahonraserpicadoporcriaturastãonobres. É extraordinário que abrammão da própria vida por um rápidomomentodaminhaatenção.Nãoexistecriaturamaismajestosadoqueaabelha.— Se você acha— falei, sem entender o que quis dizer. Meu cérebro

estavatãoconfusoeozunidosópioravatudo.—Eurealmenteacho.Aabelhajáestáemextinçãoedigoquedevemos

fazerdetudoparaprotegerafilhamaisnobredanatureza.A filhamais nobre da natureza? Tive vontade de desmaiar de novo só

paranãoterquelidarcomaquelaloucura.—Oquevocêquerdemim?Feliceapertouoslábioseoqueixoficouestranhamentepontudo.Elenão

merespondeu.Apenasmeencarouetiveaimpressãodetê-loofendidoaointerromperaconversasobreabelhas.—Podepelomenosafrouxarasamarras?Estádoendomuito.—Meus

pulsosetornozelosestavamemcarne-vivaeardendo.Elebalançouacabeça;dessavezfoiquaseimperceptível.—Aindanão,Persephone.—MeunomeéSophie.NãochamovocêdeFabio.Felicejogouacabeçaparatráseriuatélacrimejar.—Comtodososmotivosquevocêteriaparaficarirritada...—disseele,

secandoosolhoscomascostasdamão.—Vocêéengraçada.Nãomesentiacômica,esimdrogada.—Recebiseumel,aliás.Muitoobrigada.— Acho que nós dois sabemos que não era para você, mas vou

esclarecer, uma vez que não consigo compreender se está se fazendo deburraouseéburra.Omeleraparaseutio.—Nãoachoqueeletenhagostado.—Ah,não?—Felicecontorceuorostodandoosorrisomaiselaborado

quejávi.Eraassustadorecínico.—Elequebrouopote—falei,séria.Minhavontadedeserengraçadinha

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estavapassando.Voltavaaospoucosamimmesma.—Acontece.—Felicejogouamãoparaoalto.—Seiqueeunãodeveria

dardicasparaminhasvítimas,masnãoconsigoescondermeuamorpelodrama. E fique sabendoqueproduzo omel eumesmo e é absurdamentedelicioso,nãoquealguémdefatoprove.—Euprovei.Acheimeiosemgraça—menti.—Quegrosseria.—Felicefezumacaretaantesdeprosseguir.—Mesmo

assim,cumpreafunção.Acreditoquetodosmerecemumavisoparateremachancededeixartudoemordem.—Antesque vocês osmate?—perguntei. Embora já soubesse, queria

queeledissesseparaativarmeucérebroquezunia.—Claro.—Felicesorriu,mostrandoduas fileirasdedentesafiados.—

Comavisoousemaviso,semprenosencontramosnofinal.E,àsvezes,ousodizerqueaperseguiçãoéamelhorparte.Senti um calafrio na espinha. Enfim, e de forma desagradável, a

gravidadedasituaçãomealcançou;euprecisavapensaremoutraspessoasalémdemim.—PorquemandouumPresentedeMorteparameutio?—Minhavozvaciloueumaondademedopassoupormim.—Setemalgumacoisaavercomoquemeupaifez,nãofoidepropósito.Felicelevantouodedoparaeumecalar.—AmortedomeuqueridoirmãoAngelopelasmãosdoseupaifoi,claro,

umapena,masnãoacreditoqueelatenhasidodemáfé.Sentimeusombrosrelaxarem.—Quebom.— Isso não quer dizer, claro, que essa situação toda não seja sobre

vingança.Porque...—disseele,pondo-sedepé—éclaroqueé.AalturadeFelicederepentepareciabemmaisimponente.Elecomeçou

aandardeumladoparaooutroetiveaimpressãodequefaziaissotodahora—intimidaçãoatravésdeencenação.Deviaterumternoespecialparacada situação. A echarpe em seupescoço fazia uma cascata enquanto eledeslizavaparafrenteeparatrás.—Achoquejápossodeduzirquevocênãotemamenorideiadequeseu

tio, JackGracewell, éummembroessencialdomaior carteldedrogasdomeio-oeste. A Gangue Triângulo Dourado, como tão eloquentemente seautodenominam.Estoucertoemdeduzirisso?EncareiFelice, chocada.Nãopodiaserverdade.Tinhaqueserpartedo

teatrodele.— Entre outras ações, eles recentemente começaram a vender uma

drogahíbridaque,aosertomada,causaefeitosextremamenteintoxicantes

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e podem causar uma série de efeitos colaterais desagradáveis, comoparanoia,perdadememória,paralisiae,meumenosfavorito,morte.—Elebalançouacabeçaviradoparaa janela, comoseospássaroseas floresotivessemdecepcionadotodosdeumasóvez.—Não—foitudoqueconseguidizer.Faltavampalavras.Estavapasmae

Felice podia ver; pior, ele se alimentava disso, como um parasita bem-vestido.Elevoltouacaminhardeumladoparaooutro.— É claro, estamos monitorando seu tio e os parceiros não muito

estimadosdeleháquasequatroanos.Desdeotempoemqueelecomeçouausar a lanchonete, o aconchegante estabelecimento da sua família, paraguardarcarregamentosdedrogasentreasentregas.—Oquê?—Voltei à vida.— Jackusou a lanchonetedomeupai para

traficardrogas?—Bem,imagineiqueseriafácilligarasduascoisas,mastalvezeuesteja

próximo demais da situação, então é mais fácil para mim. — Felice seagachou para ficar mais perto.— No início, havia apenas três membroscruciaisdaGangueTriânguloDouradoque faziamnegóciosdesse ladodoAtlântico,cadaumposicionadoemumpontochavedomeio-oeste;pontosque, quando ligados no mapa, formam um triângulo perfeito… — eledesenhouumtriângulocomosdedosnoar—…deimensolucro.Sentiumaabelhavoandopertodemaisdomeuouvidoevireia cabeça

porreflexo.—Cuidado—avisouFelice.Elese levantounovamente.—Comochefe

dos Falcone,meu irmãoAngelo era basicamente encarregadode liquidaressacadeiadeatividadesilícitas.Nãoeraumatarefafácil,masnóssempredissemos: “Umfalcãonãocaçamoscas.” Juntos,mudaríamososubmundodasdrogasnomeio-oeste.Os movimentos de Felice ficaram leves, uma das mãos estava enfiada

atrás das costas, melancólico, como se estivesse passeando por uma ruavazia.— Meu irmão coordenou de forma bem-sucedida a queda dos

fundadoresumedois da gangue emum tempo relativamente curto, semmencionaroutrosmembros importantesdecadaequipe.—Elearregalouosolhosclaroseencarouotetocomosefalassecomalguémnoalém.—Edevodizerqueafamíliafezumtrabalhomuitoartísticocomeles,masnãoquero ofender sua sensibilidade, Persephone, então não vou entrar emdetalhes.Eume lembrei da matéria do jornal com um susto. Ela mencionava a

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Gangue Triângulo Dourado. Angelo Falcone tinha sido acusado pelosassassinatos — assassinatos brutais —, mas nunca condenado. Eu nãosabia se tinha a coragem de acreditar, mas antes que eu pudesse mecontrolar,falei:—EJackéonúmerotrês.— E Jack Gracewell é o esquivo terceiro ângulo do tal triângulo —

confirmouFelice,subitamentesombrio.Eleestalouosdedos,umporum,erepareiqueestavamtãopicadosquantoorosto.—Srta.Gracewell,nuncaconhecisujeitotãoescorregadioesemescrúpuloscomoseutio.Eu também, percebi comumenjoo subindodomeu estômago. Se tudo

que Felice dizia era verdade, eu não conheciamesmomeu tio. Certo, eusabiaque Jackera capazdeperder a linha: elebebiademais, tinhapaviocurto e a tendência a desaparecer de vez em quando. Mas aquelasacusaçõeseramcompletamentediferentes.— A gente quase conseguiu, sabe, acabar com todos eles e teríamos

encerradoo assunto,mas claroquenão foi assim.PorqueAngelodeudecara com o irmão errado naquela fatídica noite de dia dos namorados e,então,tudomudounumpiscardeolhos.Sentiogostodebilesubindopelagarganta.Penseinomeupaisozinho

no escuro do lado de fora da lanchonete e em como deve ter ficadoassustadoquandoAngeloFalconeoabordou,gritando.Elenão fazia ideiadequemera.Nãotinhacomo.Elejamaisseenvolveriaemalgodessetipo.Certo? Cerrei os punhos para impedir que minhas mãos tremessem.Quantaspessoasnaminhavidanãoeramquemdiziamser?—EunãosabiaqueJacktinhaumirmãotãoparecidocomeleatéanoite

emqueoviatirarnomeu irmão.Umapéssima investigação,certo?Possodizerquemuitas cabeças rolaramapósessa confusão infeliz.—Felice sepermitiuumsorrisoafetadoantesdeacrescentar:—Literalmente.—Vocêestavalá?Elesuspirou,oânimoteatralemqueda.—EstavaescuroeAngeloabordouoGracewellerrado.Oplanejadoera

quemeuirmãoapagasseJackeoarrastasseatéobecoatrásdalanchonetepara que pudéssemos atirar nele com mais privacidade; foi um pedidopessoalmeu,entende,masnuncachegamosaessapartee,pelomenosisso,vocêsabe.MeencolhisódepensarneleatirandoemJack.Felicebalançouodedo,parafrenteeparatráscomoummetrônomo,até

euquererarrancarodedoforaejogá-lodevoltanacaradele.—Vocênãodevemetaxardemonstro.FoiJackquemcontribuiu,eainda

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contribui, como lado negro da sociedade da piormaneira possível. E foiJackquecolocouseupainaquelasituaçãotãoinfeliz.Sealgumdiaeufossevender drogas, o que é claro jamais faria, certamente não usaria umdosestabelecimentosfamiliaresdomeuirmãocomoestoque.— Jack não faz essas coisas. — A dúvida me fez vacilar. As palavras

saíramdaminhabocaoscilantese forçadas.—Meupai jamaisodeixariafazerisso.Nãoacreditoemvocê.Eu teria cruzadoosbraços e saídodo cômodo sepudesse.Nãoporque

estavacomraiva,masporqueestavacommedodaverdadeeoqueelamefariaentendersobreminhafamíliaesobrecertoeerrado.—Bem,felizmenteparamim,nãofazdiferençasevocêacreditaounão.

Nãomudaaverdadedasituação.Quantomaiseupensavanoassunto,maispendiaparaaversãodele.Até

porque era estranho pensar que Angelo Falcone estaria desarmadorondando uma pequena lanchonete no meio da noite. E ainda maisestranhoeramtodososnegóciosmisteriososqueJacktinhaemChicago.Etodo o dinheiro que ele aparentava ter, os carrosmodernos e os ternoscaros.Sempretevealgoestranhonele:algoquefaziaminhamãemantê-loaumadistânciasegura,algoqueoimpediadeteraprópriafamília.IssosemcontarcomoódiointensopelosFalcone.Quantomaiseujuntavaaspeças,menosridículosoava.—Então,seéverdade...—comecei.—Éverdade—Feliceesclareceu.—Bem,entãoporqueestouaquisenadadissotemavercommeupai?

Nãofiznadadeerrado.—Depoisdamorte tristedomeuquerido irmão, asoperaçõesde Jack

sofreramumdeclínio tãograndequepensamosqueaTriânguloDouradohouvesseacabadointeiramente.Claroquesemprepretendemosencerraroquecomeçamos;comumespaçodetempoparaoluto,claro.Masquandodescobrimos que nossa informação estava errada e que Jack agoracomandava a gangue inteira diretamente de Chicago, percebemos queteríamosdenoslivrarlogodele.AdquirimosumaresidênciaemCedarHille, apartirdali, começamosaeliminaros sócios-chavedo seu tio,umporum.Issoexplicavaoentregadorafogado—Luistambémfaziapartedisso?E

todososoutrosdesaparecimentosmisteriososquea sra.Bailey tinhamefaladocomtantaurgência—aquelesqueignoreitãodepressa?Todoessetempo,ebemdebaixodomeunariz,estavammatandogente.—Issoéhorrível—falei,confusa.

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—Naverdadesechamacompetência—corrigiuFelice.—E,agoraquesabemosqueJackéaúltimapeçadoquebra-cabeça;enfraquecidosemseufielescudeiro,precisamoseliminá-loomaisrápidopossível,antesqueeleconsigasereorganizar.Estánahoradeencerrarmos issodamaneiraquemeuirmãoplanejou.EntreiempânicoaopensarnoquefariamcomJack,semsaberquantos

dos seus “sócios” haviam sido mortos nos últimos meses e tentei nãopensaremquantosdelesencontraramseufimnapontadaarmadeNic.—Entãovaimatá-lo.— Sim.— Felice se sentou lentamente na cadeira como se seus ossos

pudessemquebrar se não tivesse cuidado.—E é aí, queridaPersephone,quevocêentra.Eumeirritei.—Essenãoéomeunome.—Nãoentendoporquevocêodispensa.—Elefezumapausacomose

esperasse uma justificativa minha para algo que agora pareciainsuportavelmentetrivial.Quandonãorespondi,elecontinuou,chocadodemaneiravisível.—Porquenãogostade ser lembrada comoa gloriosa ebelaRainhadoSubmundo,a incrívele infernalDeusadaMorte?Sophieétãosemgraçaemcomparação.—Realmenteesperaqueeuresponda?— O significado desse seu nome me intriga. Você até encontrou seu

Hades.—Elesorriue tivea impressãodequeesperavame impressionarcomseuconhecimentodemitologiagrega.Nãohaviafuncionado.Quandonãofaleinada,elecontinuou:— Foi Dominico que descobriu quem você era, quando estava com

aquela garçonete britânica trivial tentando conseguir informações sobreJack. Quando Nicoli percebeu que você era, na verdade, PersephoneGracewell, tentou se afastar, mas era tarde demais. De repente, você setornouomeiomaisfácildechegarmosaonossoalvoquandojáestávamosficandosempaciência.Pensei em Nic e franzi o cenho. Esse tempo todo ele estava lutando

contraoprópriodesejoemnomedaminhasegurança,eestavaperdendo.Ementindo.—Masvocênãoenxergouoperigo,nãoé?Porquevêapenasaspartes

quedesejavereécegaparatodooresto.Euoencareifuriosa.—Não sou cega para nada.—A não ser pela vida secreta domeu tio

comoreidasdrogas.Epelavidasecretadaminhapaixonitecomomatador.

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—Claro,claro—respondeuFelice,sarcasticamente.—Comoumvelhobobocomoeusaberiaqualquercoisasobreoassunto?Não tenhodúvidaalguma de que vocês estão completamente apaixonados e que contouafetuosamentetodasascicatrizesqueeletemnamãoondepuxaogatilho.Felicemeencaroumaliciosamenteeeuoodiavaporisso;mas,acimade

tudo, euoodiavaporqueestava certo.Eunão tinha feitopazes comessapartedeNic;tentavaignorá-la.Atéjustificá-la.—Então,vejabem—continuou,sentindoprazer—,quandoJackfugiu,

deixouvocêparatrás,aúnicacoisaqueofazperderacabeça.Esperávamosquefossenoslevaratéele.“Noentanto,comoseutioémaisinteligentequeumbandidoqualquere,

inexplicavelmente, tem se mantido fora do nosso alcance, precisamosadotar um plano mais improvisado, onde você é a isca. — Ele bateu asmãos. — Se Jack não aparecer no galpão abandonado de carros emHegewischantesdameia-noitedehoje,asituaçãovaiterumareviravoltamuitoinfeliz.”—Entãovaimematar?—perguntei,sentindo-mecompletamentevazia

pordentro.Eraesseofim?Euhaviacaídoemumpoçodementiraseagoratinhaumaarmaapontadaparaminhacabeça?Felicemeencarou,impassível.—Nãomeagradaaideiadematarumaadolescente,masachoqueteria

deperguntaraalguémmaisqualificadodoqueeu,Persephone.—Tipoquem?Feliceficoudepé.—Nossochefe.Meuqueixocaiu.—Vocênãoéochefe?—Eu?—Algosombriosurgiunorostodele,masantesqueeupudesse

tentar entender, ele se animou até parecer um personagem de desenhoanimado.—Nãosouochefe.Masobrigado.Ficohonrado.—Oquevocêé,então?—Eu?Souumsimplescriadordeabelhas.—Aofalarisso,umadesuas

abelhas voou na linha dos meus olhos, a apenas trinta centímetros dedistância,comoseeletivesseprogramadoaquilo.—Eummatador—euolembrei.—Realmenteachoquenãosomosdefinidosporapenasumacoisa.— A não ser que seja um matador. Nesse caso, é tudo que pode ser

mesmo.—Talvezdevessedizerissoaoseupai.OuaoseucharmosoHades,entre

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umbeijoeoutro.Seeupudessepulardosofáearrancarorostodelefora,euoteriafeito.—Dequalquerforma—continuouele,demaneiracondescendente—,

souapenasoconsigliere dos Falcone.Dou conselhos, que geralmente sãoignorados. Buscarei alguém mais apto a responder sua pergunta.Sinceramente,estoucansadodoseusarcasmoadolescente.

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CAPÍTULOVINTEESEIS

OCHEFE

Eu o ouvi antes de vê-lo — o piso de madeira rangia enquanto eledeslizava parameu campo de visão, asmãosmal tocavam as rodas paraque elas se mexessem. Ele se virou com uma série de movimentoscomplicadose ficoude frenteparamim.Ocorpoeramagro,masnão tãocorcundaquantoeumelembrava;estavavestidocomcalçaspretaseumacamisa de botão preta engomada e apertada nos ombros. A ocasiãoespecial?Meufim.Ele deslocou a perna esquerda para que ficasse esticada na minha

direção, tocando no chão. A perna direita, que era ossuda e virada paradentronaalturadoquadril,encostavanaoutraeelepareciacontorcidodacinturaparabaixo.Eletirouasmãosdasrodaseentrelaçouosdedossobreo colo. A primeira vez que o vi, ele estava sentado atrás de uma mesa,reproduzindoamemóriadosseusmodelosausentesememostrandoummundodiferente atravésdos lápis.Agora eleme encarava com seuolharazul-celesteeoslábiostensos.—Queriamever?—Aquelavozmusical.Tinhadificuldadesdeacreditar

quepodiaseraforçacomandantedeumafrotainteiradematadores.— Valentino — eu disse, com a voz surpreendentemente firme. Falei

como se o conhecesse há anos,mas a expressão dele não se alterou. Erailegível.—Porfavor,medigaquenãoéverdade.Elesemexeunacadeira,ajeitandoocorpo,ederepenteficoumaisalto,

osombrosmaislargosdoqueantes.Percebiquehaviasidobobadepensar

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queeleerafraco.—Oquenãoéverdade?—cantarolouele.—Vocêéochefedessacoisatoda?—falei.Elelevantouassobrancelhasincrivelmentepretas.—Quandodiz“coisa”estáfalando“família”?—Sim.—Étãodifícilassimdeacreditar?—rebateuele.Eumeinclineiparafrente,comosetentasseromperabarreirainvisível

entrenós.—Sim.Édifícildeacreditar.Eleapontoucomodedoparaarodadireitadacadeiraderodas.—Porcausadisso?—Haviaumapontadadeamarguranaresposta.—Não.Porquepareceusertão...sensívelantes.— Eu sou sensível — respondeu ele. — É uma das minhas maiores

qualidades.—Masvocêmatapessoas.—Minhavozestavafalhando.Eleapontouparaarodadenovocomoexplicação.—Euordenomortes.—Issonãoémuitomelhor.— É ummal necessário para um bemmaior— respondeu ele.— As

coisassãocomosão.—Vocêvairealmentemematar?—Minhavozfraquejoueumacorrente

de lágrimas correu pela minha bochecha até meu pescoço, deixando-omolhadodeformaincômoda.Aindaassimmantiveorostoerguido.Apesardetudo,euseriacorajosa.Valentinodemorouaresponder.Desviouoolharparaajanela.—Sim.— Mesmo se Jack aparecer? — Eu não acreditava no que estava

perguntando;nãodeveriacogitarapossibilidadede trocarumavidapelaminha,mas aparentementemeu instinto de sobrevivência eramais crueldoqueeu.Valentinovoltouaolharparamim.Sorriulevemente.—Mesmoassim.Abriabocaparafalar,masumchorosufocadosaiunolugar.Tremendo,

enterreia cabeçanasminhasmãosatadase caínopranto, tentando tirartudodemimdeumavez.Euprecisavamecontrolarparaencontrarumasaída daquela situação, mas meus ombros sacudiam e minha respiraçãosaíaemfortesarquejos.—Semepermiteexplicar—disseele.Eunãoqueriaolharparaele,mas

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seu tom permaneceu inabalado commeu surto emocional.—Não queroser nada senão justo nesse papel que foi dado a mim. Tento ser o maislógicopossívelquandotomodecisõessobrevidaemorte.—Masvocênãoé justo—solucei.—Nadadissoé justo.Nãosouuma

traficantededrogas!Souapenasumagarota!—UmagarotaGracewell.E,sintodizer,umapontasolta.Elemedeixouchorarempaz,enãofalounadaatéeufinalmentelevantar

acabeça.—Jacktemumadívidaporcausadasualucrativaatividadecomdrogase

seusefeitosdestrutivosdegrandealcance.Issoéóbvio.Masadívidadoseupaiconoscoexistepeloqueelefezaomeupai.—Seupaiestavatentandomatá-lo!—gritei.Eutremiatantoqueachei

quefosseentraremcombustão.—Éclaroqueelesedefendeu!Acoisatodafoiumacidente.AtéFeliceadmitequemeupainãofeznadadepropósito!—Comovocêsabe?—Apostura impassíveldeValentinomepegoude

surpresa. Por um momento risível me senti uma idiota por reagir tãoviolentamente,quandoeleconseguiateressaconversafalandodomesmojeitocomoseestivessepedindoumapizzaparaojantar.—Oquequerdizer?—Aspalavrastremeramnaminhagarganta.—Comosabequeseupaiéinocente?—perguntouele,estudandominha

reação.—Comosaberqueseutionãoconfiouosegredoaele?Queelenãoestavadispostoafazeronecessárioparadefenderafamília?—Porque...—vacilei.Valentinosemicerrouosolhose,derepente,mesentigelada.—Porquemeupaijamaismachucariaalguémdeliberadamente—falei,

comaconfiançarenovada.Eunãotinhacertezademuitacoisa,masestavacertadisso.—Elenãoécapazdeumacoisadessas.—Você achava, antes de hoje, que seu tio era capaz de comandar um

carteldedrogas?Hesitei.—Vocêachouqueeueracapazdecomandarumadinastiadematadores

antesdestasituaçãoemquenosencontramos?Desvieioolhar,maselenãocedeu.— Você achou na primeira vez que beijou Nic, que ele era capaz de

afogarumhomemnasuaprópriabanheira?—Pare— implorei, sentindoumavontadeesmagadoradevomitar.—

Apenaspare.— Máscaras — disse Valentino. — Veja o que acontece quando as

tiramos.

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—Éhorrível.—Enterrei o rosto nasmãos para que ele não tivesse oprazerdeversuaspalavrasmequeimandopordentro.—Caosabsoluto—lembroucomcalma,comosenãotivesseacabadode

aniquilar a reputação da minha família.— Como é basicamente decisãominha,acreditoquequandotivermosapreendidoseutionogalpão,aformacorretadeprosseguiréacertar,deumavezportodas,adívidadesanguedoseupai.Levanteiacabeçanovamente,tontaeenjoada.—Entãovaimeusarparaatraí-loemematarmesmoassim?Valentinodeudeombros.—Éomelhorplano.Pensei na minha mãe e em Millie e precisei engolir mais um soluço.

Minhamãenãosobreviveriaaisso,elajámallidavacomtudocomoestava.E Millie — que abriu mão de várias amizades para ficar ao meu ladoquandomeupai foipreso.Elanão tinhamaisninguém.Tínhamosapenasumaaoutra.QuandoValentinoabriuabocaoutravezavozeracínica,emboraotom

musical permanecesse, cantarolando uma por uma as palavras que meferiam.—Nicnãoviráatrásdevocê,Sophie.Elenãosabedenadadisso.Não falei nada.Apenas fiquei ali, sentindo o vazio aumentar dentro de

mim.—Querumlenço?—Elepuxouumpanovermelhodesedadobolsoda

camisa.Asiniciaisdeleestavambordadascomlinhapretanocanto.Ignoreiogesto.—Acheiquegostassedemim.Acheiqueagenteseentendia.—Eugostodevocê.—Eledevolveuolençoparaobolso,inabaladopela

rejeição.—Seascircunstânciasfossemoutras,achoqueseríamosamigos.—Masestádispostoamematar?Elefaloucomconvicção:—Fuiescolhidopelomeupaiparaocuparessaposiçãoporquesempre

fui capaz de separar meus sentimentos pessoais da missão dos Falcone.Tenhoahabilidadedecompartimentalizar.—Parabéns—ironizei.—NãotenhocertezadoqueNicfalousobremim.—Apernaesquerda

dele tremeu contra a direita em um espasmo súbito. — Mas Luca e eufomos nomeados juntos, sabia? Dois chefes. Foi uma decisão inédita nomeiodosubmundo,masparaafamíliafaziasentido.Semprefizemostudojuntosdesdeantesdenascermos, somosduasmetadesdeum inteiro.Eu

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permaneceria calmo e controlado, tomando decisões de longe e ele secertificaria de que elas seriam obedecidas da forma correta. Era essa aideia. Juntos seríamos o chefe perfeito: justos e eficientes. Afastados ecompletamenteenvolvidos.—Maselenãoéochefe.Éobraçodireito—argumenteisemmotivo.Se Valentino ficou surpreso com meu conhecimento da sua

infraestrutura,nãodemonstrou.—Estácerta.—Elesorriu,revelandoosdentesderelance.—Eleabriu

mãoda posição logo após amorte do nosso pai. Afastou-se da sua partenessepapel.— Por quê? — perguntei, chocada. Entre os cinco irmãos, Luca se

encaixava perfeitamente no papel de chefe da máfia. Ou era o que eupensava.Valentino levantouasmãos,gesticulandoparaocômodoe tudodentro

dele:eu,ele,umsofápretodecouro,minhamorteiminente.—Talvezporcausadisso.Essestiposdemanobrassãoparticularmente

difíceis de digerir. — Ele fez uma pausa, ponderando algo. — Ou —aventurou-se —, quem sabe ele achou que me devia isso. — Valentinoapontou com casualidade para a perna deformada, mas o rostodemonstrava outra coisa. — De qualquer forma, Luca e eu sempretrabalhamos juntos em perfeita harmonia, até o momento em que estasituaçãoseapresentouparanós.ÉclaroquebrigocomNictodahora,entãonãoénenhumasurpresaqueagenteotenhadeixadodeforadisso,masfoia primeira vez emminha vida que discordei domeu irmão gêmeo sobrequalquercoisa.EofatodesersobreodestinodeumagarotaGracewellqueelenemconhecenãofazsentidoparamim.Sentiumpesoinesperadonomeupeito.—Maseu souo chefe—resumiuValentino, como lirismoda suavoz

encobrindo a franqueza da declaração. Tive a impressão de que ele nãoqueriaqueacentelhadeesperançadentrodemimcrescesse.—Entãoadecisãofinalésua—percebi.—Éminha—disseele,solene.—ELucavairespeitarisso.E,semmaisnemmenos,acentelhaseapagou.—Tevenotíciasdomeutio?—Desejeipoderligarparameutioefalar

paraquenãosedesseotrabalhodeiraomeuresgate.Sepretendiammematardequalquerjeito,asituaçãotodaeraumaarmadilha.—Édifícilconvencerumbarãodasdrogas,egoístapornatureza,atrocar

suavidaporoutra,mesmoque seja ade alguémmuitoqueridopara ele.Mastenhocertezadequeassimqueeleassistiraoseuvídeovaientendera

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gravidadedasituação.—Quevídeo?Valentinoabaixouacabeça,desviandodemim.—SejavalentecomCalvinoouelevaipegarmaispesado.Elesaiuefiqueisozinhanovamente.

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CAPÍTULOVINTEESETE

OVÍDEO

Algumtempodepois,umaportaabriuefechouatrásdemim,eosomdepassos pesados marcou o silêncio. Um homem careca, com aparênciaimpiedosaeumgrossobigodenegroentrounocômodo.Eume lembravadeledaqueledianorestaurante—Calvino.Ele se sentou na poltrona livre contorcendo o rosto anguloso até que

parecesseartificial,emeencaroucomumsorriso.—VivocênoEateryalgumassemanasatrás—falei,torcendoparaque,

aoiniciarumaconversa,eudescobrisseumasaídaparaoquequerqueeleestivesseplanejandofazercomigo.—Vocêmatouaabelha.Osorrisosetransformouemumacareta.—Eaindaestoupagandoporisso.—Avozdeleeraroucaegrossa.De

forma absurda,me ocorreu que ele seria umbom locutor de rádio. Querdizer,seonegóciodeassassinatosnãofuncionasse.—Oquevaifazercomigo?—Basicamenteamesmacoisa.—Orostodeleficousombrioeoolharse

desviouparaaportaatrásdemimquandoelaseabriu.Ummeninodeuns12 anosparou atrásdeCalvino, pousandoasmãos

nosombrosdelecomoumaposenaquelaspinturasbizarrasde família.Omeninoeraobviamenteseufilho.Elestinhamomesmoqueixopontudo,oslábiosfinosepálidoseonarizaquilinoquedominavaseusrostos.Osolhoseramescuros,compálpebraspesadase,comotodososFalcone,apeledosdoiseramorena.

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Calvinogesticulouparaogaroto,eemrespostaelesacouumtelefone—omeutelefone—dobolso.—Ei!—gritei, assustando até amimmesma.Osdois se virarampara

mim, com a mesma cara de surpresa alongando seus rostos. — Essetelefoneémeu,seumerdinha!Devolve!—Não—provocouogaroto.—C.J.—opaiavisouaele.—Euaviseiparanãofalarcomela.C.J.franziuatesta.— Diga quando quiser que eu comece a gravar — falou para o pai,

ligandoacâmeradocelularefazendocomquealuzdoflashseacendesse.Claro.Eles iriammandarovídeodomeu telefonepara Jack.Calvinose

levantouesubiuasmangaspretasdacamisa,mostrandoapontadeumatatuagemnobícepsdireito.Oinstintofezeumeencolhernosofáelevanteiaindamaisaspernasdobradasnafrentedocorpo.—Possocomeçaragora?—C.J.pulavadeumpéparaooutro.— Sim. — Calvino sacou um canivete do bolso e abriu a lâmina.

Reconheciocanivetedafamília;eraidênticoaodeNic.— Ele pode ver isso? — Gesticulei para o garoto quando ele se

aproximou.—Ésóumacriança.Calvinoergueuasgrossassobrancelhasquecombinavamperfeitamente

comobigodedelagarta.—EleéumFalcone.Calvinomanteveaexpressãodechoqueporcincosegundosparadeixar

claroaofensacausadaporminhapergunta.Useiotempoparameencolhernocantodosofá:erguiaspernas,escondendoabarriga,etenteilevantarocorpoenquantooloucodocaniveteeseufilhovinhamnaminhadireção.—Querfazeraintrodução?—perguntouofilho.CalvinopareciasurpresocomaaparenteengenhosidadedeC.J.—Boaideia.Umsorrisolargoseespalhoupelorostocheiodeespinhasdogaroto.Eu me encolhi no sofá, com os pés amarrados, enquanto Calvino me

olhava casualmente, como se soubesse que, não importava o quanto eutentasse,eleaindapoderia fazeroquequisesse.Eleguardouocaniveteeagarroumeubraço.Deslizeidevoltaparaomeiodosofáemumsópuxão.Eleentãoseapertouaomeulado,paraquenósdoisficássemosdentrodoalcancedacâmera.CalvinoseagachouemepuxoupelagoladacamisetaparaqueC.J.pudessedarumzoom.O cheiro forte de loção pós-barbame acertou. Reparei, aterrorizada e

com uma pontada incontrolável de curiosidade, uma cicatriz grossa que

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cruzavaatestapertodaraizdocabeloqueumdiaexistiu.QuandoCalvinoseaproximou,acicatrizbrilhou,fazendocomquesuacabeçaparecesseterumatampa.— Jack Gracewell. — Cada sílaba era rascante como garras de metal

arranhandoumtambor.—Esperoqueestejaterrivelmentemal.C.J. fez sinal de positivo atrás do telefone. Tenteime afastar da cabeça

brilhosadohomem,maseleapertouminhanucaatéarranharapelecomasunhas,mefazendogritardedor.— Como pode ver, estamos com a sua amada sobrinha, a srta.

Persephone Gracewell. — Ele acariciou meu cabelo em um só longomovimento.Tenteidesviar a cabeça,masele agarrouminhamandíbula emepuxoudevolta com tanta forçaqueouviumestalo.Fecheiosolhosetenteinãogritaraofecharabocacomumúnicocliqueagonizante.—Como você sabe— continuou ele para a câmera, acertandominhas

mãosagitadascomumúnicoedolorosogolpe—,nãoficamosfelizescomanossaconversamaiscedo,eachamosquearespostadevidaàsuahesitaçãoéumendurecimentodanossaparte.Endurecimento?Apalavra zuniunaminha cabeça comoumalarmede

carro.Calvino agarrou meu cabelo e o entrelaçou nos dedos, puxando com

brutalidade.Estiqueiosbraços,socandoopeitodeleomaisfortepossível,maseledesvioudosmeusgolpeseacabeisóacertandooar.—Porfavor!—gritei.Ele continuou a puxar meu cabelo, tão forte que senti como se fosse

arrancarocourocabeludo.— Você tem até meia-noite para aparecer, sozinho e desarmado, no

galpão abandonado perto da antiga Hegeswich, onde vamos conversarsobreseusnegóciosealibertaçãodagarota.Então eles estavam enganandomeu tio duas vezes: sobre seu próprio

destinoesobreomeu.—Malditosmentirosos—reagi.Calvinomedeuumtapanorosto.Ogolpemearrancouaslágrimasdos

olhos.Chorandocopiosamente,soquei-onoombro;eleseencolheuesoltouum palavrão baixinho. Aproveitando omomento de distração, rolei paraforadosofáeluteiparaficardepé,pulandoemdireçãoàporta.Calvinosaltouparafrenteeagarroumeusombros,mepuxandodevolta

paraaquelesofámaldito.Cobriorostocomasmãosatadasenquantoeleme segurava, respirando ofegante pelo nariz. Ele se curvou, perto osuficiente para que eu sentisse sua respiração no cabelo, assoprando-o

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paratrásenquantoelemeforçavaatirarasmãosdorosto.Elebateunomeunarizcomabasedamão,mefazendomorderaparte

de dentro do lábio. O gosto de sal e ferrugem tomou minhas gengivas,misturadoàtorrentedesanguequesaíadonariz.Meesforceipararespirarenquantoosangueescorriapeloslábiosatéoqueixo.—Pare!—implorei.Comeceiaescalarosofá,masCalvinomepuxoude

volta.Minhacabeçacaiunopeitodelecomumbaqueeeleasegurouali.—Sevocênãoaparecer,Jack—elevoltouànarraçãopsicóticadovídeo

—,vamosmatá-la.Depoisvamosatrásdevocêcomtodososhomensquetemosatétedeixarmospenduradonotetodoseuapartamento.Elemeempurrouecaínosofá,doloridaetremendo.C.J.correueparoucomacâmeraatrintacentímetrosdemimepudever

cadaespinhacheiadepusnoseurostoensebado.—Viuoquemeobrigoua fazer,Gracewell?—Calvino fezumapausa,

comoseesperasseumarespostadeJack.Meuchoropreencheuosilêncio.Eunemtinhapercebidoqueestavachorandoatémeouvir.ElefezumgestoparaC.J.desligaracâmera.— Isso aí!—comemorouo filho.—Ficouótimo.—Pareciaque tinha

tiradodezemumaprova,emvezdeteracabadode filmarumvídeocomumagarotaindefesade17anossendoagredida.CuspiumapoçadesanguenacamisadesedadeCalvino.—Vocêéummonstro!Elelevantouamãonaminhadireçãoemeencolhi.—Cuidadocomessalíngua—avisou.—Ouvouarrancá-ladasuaboca.

— Ele então se levantou e botou amão no ombro do filho.—Mostre ovídeoparaFeliceeenvie.ElesairálogoparaseprepararparaachegadadeGracewell.Voulogodepoiscomagarota.—Possoirtambém?—perguntouC.J.animado.—Dapróximavez.ErabomsaberqueessetipodecoisaerarecorrentenafamíliaFalcone.Ogarotosumiuefiqueisozinhacommeutorturador.Senteiemeencolhi

toda,braçosepernasencolhidosaomeuredor.— Nem quebrou nada — informou Calvino, de um jeito que dava a

entender que achava que eu estava sendo dramática. Ele flanou de voltaparaapoltronaeseacomodou,relaxandocomumsuspiroprofundo.Eu queria gritar ummonte de palavrões para ele, mas minha energia

desapareciaumpoucomaisacadarespiração.Eusabiaqueprecisavafugir,se não por mim, por minha mãe, minha melhor amiga e meu pai. Atémesmo pelo meu tio Jack. No fundo, ainda tinha esperanças de que

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houvesseumaexplicação,algoquetornariatudoaquilomenospavorosodoqueparecia.Calvino me observava com o olhar fixo. Concentrei minha atenção no

cômodoemvolta.Eupodiapularpelajanela,masprovavelmentequebrariauma perna na queda. E ainda teria que me preocupar com as abelhas.Mesmoseeuconseguisse,dealgumjeito,melivrardasamarras,precisariacorrerpelocampoaofundooumearriscarpelafrentedacasa.Eunãosabiaquantas pessoas estavam ali ou qual o tamanhodo lugar. A porta estavaatrásdemim.Setivessesorte,quemsabeCalvinoficariaentediadoecairianosono.Jáestavadenoite,afinal.Minhamente aindagiravaquandoele se levantououtravez e voltoua

enrolarasmangasdacamisa.—Oque você está fazendo?—Tentei pular para fora do sofá,mas as

amarrasnaspernasmeimpediram.—Eunãotinhaterminado—respondeuelequandocaínochãoetentei

mearrastarparalonge,usandoobumbumeaspernascomoumalagarta.—Sóprecisavadeumdescanso.Calvino me cercou, e fui me arrastando com pressa até bater com a

cabeçanaparede. Ele levantouopé como se fosse chutarumabola,masroleiparaoladonosegundodecisivo.Continueimearrastandopelochãocomaajudadasmãos,masCalvino

voltouamechutar,dessavezacertandomeuladodireito.Sentiumestalodealgosequebrandoeperdioar.Viestrelas,avisãoficouembaçada,emeagarrei ao chão duro de madeira tentando escapar. Ouvi um gemidocansadoemalgumlugaracimademimemecontorciaorecebermaisumchute.Umaondadeenjoomedominou.Puxeiosjoelhosnaalturadopeitoeme

enrolei em posição fetal enquanto pontadas de dor incontroláveisperfuravammeucorpo.Calvinocomeçouamerodear,mas,destavez,emvez de chutar, eleme virou como sapato para que eu ficasse de bruços.Comosaltodosapato,pressionouasminhascostas.— Pare— chiei. Tenteime agarrar ao chão,mas ele fezmais força, e

entãoouviocanivetedeleseabrindo.—Por favor—pediofegante,masnão sabia para quem.Eu estava sozinha e precisava fazer algo antes quefossetardedemais.Elemerolounovamenteefiqueidebarrigaparacimaencarandoasluzes

ofuscantesdoteto,apertandoosolhosatéseurostoangularvoltarafoco.Calvinoergueualâmina,passandoopolegarpelofio.Devagar,empurrei

meucorpoparaoladoepuxeiaspernasparatrás,dobrandoumpoucoos

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joelhos. Eraminha última esperança. Rezei para que ele não semexesseantesqueeulançasseaspernasparafrente,efoioqueaconteceu;Calvinoestavaocupadodemaisencarandocomafetoanavalhafaiscante.Eraminhaúnicachance:peguei impulsonochãocomasmãosatadase

lanceiaparteinferiordocorpoparafrentecomtodaaforçaqueconseguireunir, usando o cotovelo e os quadris como impulso. Minhas pernasgiraram em um semicírculo e, quando Calvino reparou o que eu tentavafazer,eujáestavanomeiodarasteira.Numa queda que pareceu em câmera lenta, ele despencou para trás,

tombandodasuatremendaaltura.Ocanivetecaiuaoladodomeuombro.Calvinobateuacabeçanaparedecomumbaqueensurdecedor,seencolheue escorregou para o chão a meio metro de mim e, então, com um leveespasmonaperna,ficoudeitadoaliemtotalimobilidade.Eumeesgueireipelaparedeatéconseguirsentar,mordendoolábiocom

forçaparasufocarosgritosdedorseacumulandodentrodemim,pegueiocanivete e iniciei o trabalho nas amarras das pernas. Cortei-as o maisrápidopossível,olhandoderelanceparaCalvinodevezemquandoparatercerteza de que ele não estava prestes a me atacar. Seus olhos estavamfechados,masopeitoaindasubiaedescia,entãoeusabiaquetinhapoucotempo.Asamarrasdaspernassesoltaram.Meesforceiparacortarasamarrasdasmãoscomocanivetedeponta-

cabeça,masnãoencontreioângulocertoeastentativasforaminúteis.Maseuhaviachegadolongedemaisparadesistir,mãosatadasounão.Segureiocanivetecomasduasmãosefuisubindoatéficardepé.Quando finalmente levantei, a dor no peito me queimou como uma

chama.Tivequemecurvar,apertandoocanivetenamão fechada.Comaparede como apoio, me arrastei para frente, um passinho de cada vez,intercalandogritoscomumchorosemfôlego.Aportaestavaquaseaomeualcance.Atrásdemim,arespiraçãodeCalvinoficavacadavezmaisestável.Devagar,comeceiaescorregarpelaparede.Aperteiminhascostelas,mas

sentiaforçaseesvairdomeucorpo.Eutremiadedore,derepente,fugirpareceuimpossível.Calvinoiriamealcançar.Eu não conseguia levantar a cabeça, não viamais a porta, mas estava

pertoosuficienteparasentiracorrentedearquemeatingiuquandoelafoiaberta. Usando cada gota remanescente de força, ergui a cabeça e olheiparafrente.—Sophie?Abriabocaparagritar,masaspalavrassaíramemarfadasofegantes.—Seu.Imbecil.

Page 231: Catherine Doyle - Vingança

CAPÍTULOVINTEEOITO

AFUGA

Lucaeeunosencaramosporumlongoeagonizantemomento.Viaexpressãodelesefechar.Tenteifalarnovamente,masnãoconsegui.

Eusabiaquebeiravaa inconsciência;pontadasdedoratravessavammeupeito,ecadarespiraçãoeramaisdifícilqueaanterior.Mastambémsabiaque, semepermitisse cairna escuridãoque seduziaminhamente, talveznão voltasse a acordar— afinal, Luca era o braço direito de Valentino etinhaordensparacobrardemimumadívidadesangue.Apoiando a mão aberta na parede, me forcei a continuar em frente,

mantendo o canivete o mais longe possível do corpo e usando o ombrocomoapoioparamemanterdepé.—Saiadomeu caminho.—Exibi o canivete e tentei empurraropeito

delecomooutroombro.Luca apoiou uma das mãos nas minhas costas e, com a outra, tirou a

navalhademimcomfacilidade.Comumgesto,elefechoualâminaejogouocanivetenosofá,longedomeualcance.—Nãopodepassarpormim.Levantei o olhar, irritada. Eu já tinha visto aqueles olhos ofuscantes o

suficienteparaumavidainteira.—Melarga.Elenãolargou.Vasculhouocômodocomosolhosatéencontrarocorpo

imóveldeCalvino.—Vocêfezissocomele?—perguntouele,impessoal.

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Assenti.Eleme estudou: primeiro viu o sangue seco nomeu queixo, depois, a

formacomoeutentavaapertarascostelas.—Cazzo—murmurou,balançandoacabeça.Minhas pernas fraquejaram,mas Lucame segurou. Eleme levou até o

chãoemeudeixou sentada.Desejeimandá-lo tirar asmãosdemim,masnãoofizporque,duranteummilésimodesegundo,sentiumalíviodetodaador.Quaseconseguiasuportá-lanaquelanovaposição,massabiaquenãopoderiapermanecernela.Precisavafugir.Sem tirarosolhosdemim,Lucapegouo celular,digitouumnúmeroe

levouotelefoneaoouvido.—Elaaindaestáaqui.—Umsilênciocurtoeentão:—Umahora.—Ele

desligouebotouotelefonedevoltanobolso.—Oquê,emumahora?—Minhavozestavaofegantedetantador.Lucanãorespondeu,emecontorciquandooutraondadedorcomeçoua

seespalharpelocorpo.EleselevantouefoiatéondeCalvinocomeçavaasemexerdeitadonochão.— Svegliati — disse ele, cutucando o ombro do outro com o sapato.

Calvino resmungou,mas não abriu os olhos.—Vou levá-la ao galpão—continuou Luca, como se fosse perfeitamente normal dialogar com umhomem semiconsciente. — Vou tentar disfarçar para os outros nãoperceberem que uma garota de 17 anos sem nenhum treinamento eamarrada conseguiu apagar você. Enquanto isso, é melhor você serecuperarporaqui.ApernadeCalvinotremeuenquantoLucaseafastavadele.—Pezzodimerda—murmurouele,antesdevoltaraatençãoparamim.—Nãovoualugarnenhumcomvocê—falei.—Nãotemescolha.—Nicnuncavaiteperdoar.Minhavozfalhoueamaldiçoeiaminhademonstraçãodefraqueza,mas

Lucanãopareceunotarouseimportar.ElevoltouoolharparaCalvino.—Nicnãoéaminhapreocupaçãonomomento.Ele espioupelaporta aberta o cômodoao lado.Quando se virou, eu já

estavadepédenovo,cambaleando.Manqueiemdireçãoàsaída.Lucaergueuacabeça.—Vocêvaicomigo,Sophie.—Não—protestei,mearrastandoparafrenteatéestarmosnaentrada.

— Eu já disse que não respeito sua autoridade. — Cambaleei e quasetropeceinovãodaporta.

Page 233: Catherine Doyle - Vingança

Lucame segurou novamente. Tentei socar o ombro dele, mas perdi oequilíbrio, e ele me segurou pela cintura, escorando meu corpo e medeixandomeioflutuandoemeiodepé.—Issonãomudanada.Tenteimelivrar,maselenãolargava.—Odeiovocê—protestei.— Então isso não vai ajudar— respondeu ele. Antes que eu pudesse

rebater, ele levantou minhas pernas e me pegou no colo. Esperneei omáximo que pude,mas isso só serviu para queme segurassemais fortejuntoaoseupeito.Elemecarregoupassandoporumsegundocômodomaior,umasalade

estar mal iluminada cheia de caixas de pizza e latas de Coca-Cola. Umtorneio de pôquer estava passando nomudo na imensa televisão de telaplana,cercadaporgrandespoltronasdecouro.Continuei a lutar mesmo enquanto a dor agonizante tomava conta de

mim,deixandoescapargemidosincompreensíveis.—Calaaboca—ameaçoueleaoabriroutraportaparapenetrarmosa

escuridãodovãodaescadadosegundoandar.Nãoobedeci.Griteiatéavozfalhareagargantadoer.Chegamosaopédaescadariaquesedividiaemdoiscaminhosidênticos.

Luca desceu rápido, com os pés batendo nomármore até chegarmos aotérreo,ondeparamosemumsalãocircularcomochãodepedrabranca.Aocentro,umcandelabrodevidroiluminavaomosaicodobrasãodafamíliaFalcone gravado no piso sob nossos pés. Meus golpes ficavam cada vezmaisfracos.—Por favor—falei,olhandoparaele.Minhacabeçapousounoombro

deLucaquandofuitomadapelocansaço.—Porfavor,nãofaçaisso.Abocadeleestavatensa,esticandoafracacicatriznolábio.Elenãoolhou

paramim.Chegamosàportadafrenteesaímosparaanoite.Lucaapressouopasso

e começou a correr. A casa se erguia no céu escuro atrás de nós; umamansãogigantescadetrêsandaresconstruídaempedrabranca.Aocentro,o teto era abobadado e destacava-se do resto da casa, apoiado em umafileirasemicirculardecolunas.A entrada de carros era longa, escura e cheia de curvas. Quando

finalmenteparamos,Lucameafastoudocorpoeabriuaportadocarro,meacomodandonobancodocaronaefechandoaportaantesqueeutentasseescapar.Elepulounobancodomotoristaeligouomotorcomumrugido.Orelógiodopaineldizia10h04.

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—Aonde estamos indo?— Eu já sabia. Apenas queria que ele falassecomigo,reconhecessesuasações.Atégritarseriamelhordoqueosilênciomortal instaurado entre nós. O silêncio significava que ele estavaconcentrado demais no que teria que fazer e que minhas súplicas nãoestavamsurtindoefeito.Dirigimos em silêncio por um bom tempo, atravessando ruas desertas

que não reconheci até finalmente voltar a enxergar traços de civilização.Tenteimemanteralerta,massabiaquemeuestadodeconsciênciaoscilavacomasondasdedorquetomavamomeucorpo.TenteidetudoparaamolecerLuca:chorei, implorei,gritei,maselenão

cedeu. Sequer olhou para mim. Apenas encarava a estrada à frente,trincandoosdentesesegurandoovolantecomtantaforçaqueosnósdosdedosficarambrancos.E, então, quando o relógiomarcava 10h57, quase uma hora depois de

termossaídodeLakeForest,paramos.Lucasaiudaestradaeestacionouaolado de uma pequena loja de conveniência. Pela primeira vez desde quetinhacomeçadoadirigir,eleolhouparamim.Euoencareidevolta,vendoseusolhosinacreditavelmenteazuis,eespereienquantoeleseremexianobanco. Luca tirou algodobolsode trás emeu estômago se contorceudemedoquando ele se inclinounaminhadireção, largandoo quequer quefossenomeu colo. Porummomentonão senti dor, apenas surpresa. Eraumanotadecinquentadólares.Foientãoqueelecomeçouafalar,rápidoecalmo:— Eu tirei você da casa do Felice contra a sua vontade. Quando

chegamosnacidade,pareiemumsinalvermelhoevocêfugiu.Correuatéalojadeconveniência.Eunãofuiatrásdevocêporquetinhamuitagenteládentro.Nãopodiacorreroriscodeserpego.Vocêligouparaumtáxi.FoiparacasadasuamãeevocêsduasfugiramdeCedarHillimediatamente.Comeceiatremer,primeironasmãosedepoisnocorpotodo.Eleestava

melibertando.Elenãoiamematar.—Masomeutio...—falei,comlágrimassurgindonosolhos.AexpressãodeLucapermaneceuinabalada,avozsombria.—Vocênãovaivoltarparacasaantesdoenterrodoseu tio.Valentino

nãovainosmanteremCedarHillsóporsuacausa.Nãovaigostardevocêter fugido,masvai superar isso assimqueadívidade JackGracewell foracertada.—Masse...—Sophie—Lucameinterrompeu.—Vocênuncamaisveráseutio.—Porfavor—sussurrei.—Porfavor,vocêprecisaajudá-lo.

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—Algunserroseupossocometer—respondeuele,apático.—Outros,não.—Estáquerendodizerquematariamvocêsetentasseajudá-lo?Maséa

suafamília.—Quisdizerqueeunãotentaria—respondeuele,nomesmotom.Engoliminhaspalavras.LucanãosónãopoderiaajudarJack,comonão

queria fazer isso.Nofundo,eleacreditavaqueJackdeveriamorrer,enãohavianadaqueeupudessefazerarespeito.Comoumgarotoquetinhasidocriado para acreditar que pessoas más são inteiramente más poderiacompreenderoconceitodequedentrodamaldadepodeexistirabondadee, mais importante, o potencial para o bem? Luca e sua família viam omundoempretoebranco.Depoisdeumaolhadarápidaporcimadoombro,Lucatirouocanivete

dobolsoecortouasamarrasnomeupulso.Euasvicaindosemacreditar.Elemeempurrouaarmaefechoumeusdedosnocabo.— Você roubou meu canivete e levou com você, caso precisasse se

proteger.Olheiparabaixoeviainscrição:

Gianluca,20demarço,1995

Eleestavarealmentemedandoseucanivete,ocanivetepersonalizado.E,

maisdoqueisso,estavaconfiandoqueeunãoousariacontraele.Pareciafrioeartificialnasminhasmãos,masoguardeiemumdosbolsosdoshortjuntoànotadecinquentadólares.—Obrigada—falei,porquenãoconseguidizermaisnada.Nãosabiase

ficava grata ou apavorada. Estava exausta, confusa e trêmula. Mas eleestavamelibertandoe,mesmocomtudoqueaconteciaànossavolta,issosignificavaalgumacoisa.Ele estavaenfrentandoaprópria família.Estavamedandoavidadevolta.—Vocênuncamaisvainosver,Sophie.—Aspalavrasdelecarregavam

umaconclusãoarrebatadora,massuaexpressãopermaneciaamesma.Eleestava,comosempre,cuidadosamentecontrolado.Antesqueeupudesseresponder,aportadocaronaseabriuequandome

vireiviNic,paradoali,nopequenoestacionamentonos fundosda lojadeconveniência,segurandoaportaparamim.Saídocarro.Olhamosumparao outro e identifiquei cada milímetro de dor acumulado nos seus olhosescuros.

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Eleme observou— omachucado no rosto emeu corpo encolhido, asmãos apertando as costelas. Ele fechou os olhos, soltou um suspiroprofundoe,eujuro,omeucoraçãoeodelesepartiramumpouconaquelemomento.—Sintomuito—falouele,voltandoaabrirosolhos.Eu não podia dizer que estava tudo bem. Estavamuito longe de estar

tudobem.Masofereciemtrocaalgopequeno:umsorrisolento,comolhosmarejados, para o garoto que haviame beijado comonunca antes.Haviabondade dentro dele, mesmo que estivesse enterrada lá no fundo doscódigossobosquaisconduziasuavida.Fiquei parada enquanto Nic passava por mim, tomandomeu lugar no

carroaoladodeLuca.Eleestendeuamãoeeuasegurei.Nicpegouaminhadelicadamente, comose fossedeporcelana,passouopolegarnasmarcasvermelhasnomeupulso,levantou-aeabeijou.—Riguardati—murmurouelejuntoàminhapele.E,assim,osirmãosFalconeforamembora,medeixandocurvadanochão,

chorandotantoquemalrespirava.

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CAPÍTULOVINTEENOVE

OGALPÃO

Quantomaiseuchorava,maispensavasobretodososacontecimentose,devagar, minha determinação se tornou mais forte do que a dor. Se osFalcone só botavam gente na cova, como poderiam saber o que umasegundachancepodefazerporumapessoa?Quebemfaziamaoarrancaropotencialdeumhomemantesdeelepoderdescobrirobemdentrodesi?LucaeNictalveznãotivessemescolhaparamatarJack,maseusim.Eu

não sabia o número para ligar para ele — sem falar que meu telefoneestavasobacustódiadobandido-em-treinamento,C.J.—,massabiaaondeestavamindo.Eutinhaumaarmaedinheiroparairatélá.Seabandonassemeu tio agora, jamais me perdoaria, e jamais me lembraria de Nic comqualquersentimentoalémdedesprezo.Euhaviaprometidoaomeupaiquecuidaria de Jack e, se seu irmão morresse daquela forma, ele jamais serecuperaria.Elemalconseguiasobrevivercomoestavaagora.Masaindaexistiaumachance;euaindapoderia fazeralgo.Poderiame

colocar entre Nic emeu tio, poderia impedir um assassinato. Talvez nãoconvencesseLuca,massabiaqueNicmeescutaria.Elenãodizimariaminhafamília,nãodepoisdetudoquedividimos.Eumelevanteiefizopossívelparalimparorosto,esfregandoosangue

doqueixoe cobrindoo roxonosolhoscomocabelo.Forceimeucorpoaficar ereto, caminhei até a loja de conveniência e troquei a nota decinquentadólaresparaquepudesseterumamíseramoedade25centavospara chamar um táxi. Esperei no banheiro da loja até o táxi chegar,

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estudandomeureflexo.Afasteiocabeloemaranhadodorostoereprimiaexpressão de horror. Manchas roxas fundas faziam bolsas sob os olhosinchados.Apontedonarizestavatorta,easbochechas,vermelhasondeeuhavialimpadoosanguecomasmãos.Agarreiapiaaosentirumapontadarepentina de dor nas costelas. Algumas semanas atrás, meu maiorproblemaeraoefeitodaumidadenomeucabelo.Comoeutinhachegadoàqueleponto?Em algum momento, um grande mal-entendido devia ter acontecido.

Tudo havia saído de controle. Era impossível pensar nas drogas, nodinheiroounospioresaspectosdaalmadomeutiosempensarnaspartesboas—aquelasqueeuconhecia.Meutionãoeraumvilãounidimensionalcomo os Falcone imaginavam — por que abriam exceções para elesmesmosenãoparaJack?Nãoeracerto.Mesmoquenãopudesseconvencê-losantesquefossetardedemais,precisavatentar.Vinteminutosdepois,paraaperplexidadedomotoristadetáxi,desciem

um terreno baldio nos arredores da Velha Hegewisch. No perímetro,sacolas de plástico voavam como fantasmas acima de carrinhos desupermercado.Ovelhogalpãodeautopeçasficavanomeiodoterreno;umaestrutura imensa sem portas, com paredes de concreto rachadas,manchadasdeferrugemecocôdepombo.Dooutrolado,haviacontêineresempilhadoscomogigantesLEGOsdascoreslaranja,begeeazul.Lánoaltoum letreiro desgastado, que se balançava no único prego restante, diziaAUTOPEÇASGREENE.Caminheicomcautelaemdireçãoaolocal,sentindomenosmedodoquedeveria.Estavaempépuramenteàbasedeadrenalinaesentiameucoraçãobatendonapontadosdedos.Andeipelafileiradecontêineresdeaçoatéencontrarumbecoumpouco

mais largo que um carro. Estava escuro como breu e completamenteescondido da entrada do terreno. No final do beco, virei à direita eencontreidoisSUVdosFalconeestacionadosesemninguém.Então,LucaeNicjátinhamchegado,masdequemeraosegundocarro?Omotivoparaaescolha do local era óbvio. Dava a eles uma entrada secreta e vantagemimediataquandoJackchegasse.Nos fundos do galpão, uma pequena porta ficava escondida atrás de

váriaspilhasdecaixotesdemadeira,eestavaentreaberta.A trancahaviasidoarrombada,masduvidoqueissofossenecessário—aportajáestavasedespedaçandonoscantoseprovavelmentepodiaserderrubadaatéporumacriança.Caminheinapontadospésentreoscaixoteseentreidisfarçadamente.O

espaçonointeriorestavaquasevazio,eeramuitoúmido.Ocheirodemofo

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tomava conta do ar e nos cantos pilhas de mais caixotes corroídos porcupim se amontoavam, lotados de restos de embalagens plásticas.Pendendodentrodeumagaiola,umaúnicalumináriailuminavaumespaçocircularnapartedafrenteeoutralâmpadamenorhaviasidopenduradanocentro,ondeosFalconeestavamdepé,protegidosemparteporumapilhade caixotes até a altura do peito. Luca estava discutindo com Felice,enquantoGinoeDomobservavamàssuascostas,brincandocomasarmas.Nic estava distante, esperando logo na porta. Se eu chamasse a atençãodele,quemsabeelemeouviriasemserinfluenciadopelosirmãos.Comecei a seguirpelas lateraisdogalpão, apertandoas costelas aome

agacharatrásdascaixas.Ratosentravamesaíamcorrendodoscaixotes,epreciseime esforçar para não gritar toda vez que um passava pormeustênis.Parei de me mexer e ouvi o barulho de um carro distante se

aproximando.Amovimentaçãonogalpãocaiuemumsilêncioabsoluto.Omotor foidesligadoemalgumlugardooutro ladodaentrada.Ouvia

portasefechar.Jack.Meucoraçãobatiaforteerápidonopeito.Derepente,sópensavanorostodomeutioquandoeledessedecaracomasarmasqueestavamprestesaserapontadasparaasuacabeça.E,então,algoinesperadoaconteceu:ouviumaportasefechar,eoutra,e

finalmenteaquartaporta.Jacknãoestavasozinho.Nicespioupelaentradadogalpãoeretraiuacabeça,confuso.—Ele está acompanhado— anunciou aos outros, afastando-se da sua

posiçãoe juntando-seaLuca.Osdoispareciam inquietos,masnãomuitosurpresos. Não sei por que estava tão chocada: entrar sozinho em umgalpãoescuroerasuicídio.Jackeramaisespertodoqueissoe,paraminhatristeza,maisdoqueacostumadoaessemundoeacomoelefuncionava.—Elesvãoestararmados—disseDom,demaneiracasual.—TípicodoGracewell—disseFelice, comumarisada falsa.—Nunca

honra seus acordos. Sempre soubemos que ele viria com tudo. Quantossão?—Estáescurodemais,nãoconsigover.—AvozdeNicpareciafrustrada.

Elesacouaarmaesecertificoudequeestavacarregada.Comoeupoderiachegaratéeleagoraqueestavatãopróximodosirmãos?QuemsabeseeualcançasseJackantesdeeleentrar,poderiaimpedi-lodesequerpassarpelaporta.Aqueletempotodoeuhaviamepreocupadocommeutio,enãopareiparapensarqueeletambémchegariapreparado.IssosignificavaqueNiceLucanãoestavamnemumpoucomaissegurosdoqueele.

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Vingançaidiota.Fiquei mais atenta aos meus passos quando notei que os caixotes

ficavam mais espaçados. Estava cada vez mais difícil me esconder atrásdeles e, como cada respiração parecia uma facada nas minhas costelasquebradas,eutinhadificuldadeemfazeresforço.Sepassassepelaportadafrenteantesdealguémentrar,quemsabeevitariaummassacre.—Eusabiaqueiaserumcaos—esbravejavaFelice.—Eseeleperceber

que não estamosmais com a garota, não vai hesitar em atirar primeiro.Precisamosficaratentos...Perdemosnossavantagem.AssombrasdeDomeGinoassentiram.Lucafaloubaixodemaisparaeu

escutar,maspelosseusgestos,deduziqueeledefendiasua inocência.Deondeeuestava,pareciaconvincente.Euesperavaquesim.—Enãoestãonemprotegidos.—FeliceapontouparaopeitodeLucae

Nic.— Saiam pelos fundos antes que alguém semachuque. Valentino jáestáirritadoosuficiente.Nãopodemoscorreroriscodeerrardenovo.Nenhumdosdoissemexeu.—Vamosprosseguircomaoperação—disseLuca.Nicestalouopescoço,ajeitouosombrosetrincouosdentes.Seeraassim

que ele ficava em combate, era bem eficiente, e fez comque eu quisessearrancarmeuscabelos;afinal,eleestavasepreparandoparamatarmeutio.OsFalconepararamdefalar;ninguémmaisqueriadiscutir.Ficaramem

silêncio,todosconcentradosnaporta,esperandoJackdaroprimeiropasso.Os Falcone sabiam que Jack estava do lado de fora; Jack sabia que osFalcone estavam do lado de dentro. Ambos tinham reforços e,provavelmente,armas.Eeuestavapresa,agachadaemmeioamijoderatoecaixotesmofadosemumgalpãonomeiodonada,pensandoemqualentequerido iriamorrer primeiro, e se eu sobreviveria tempo suficiente paratentar perdoar os que permanecessem vivos. Se isso não era o fundo dopoço,nãoquerianempensarnoqueseria.Eutentavaespiarpeloespaçoentredoiscaixotescaídosquandoaporta

dogalpãoseabriu,sóumpouquinhoe,depois,maisumtanto.Congelei.OsFalconeergueramasarmas.Eratardedemais.Euhaviafalhado.—Olá—chamouumavozbaixaetensa.Meucorpointeiroficougelado.Ninguémrespondeu.—Olá?— repetiu ela, a palavra uma simples gota naquela imensidão

vazia.Em cliques sequenciais, eles prepararam as armas para atirar e a

apontaramparaminhamãeenquantoelaentravanogalpão.

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CAPÍTULOTRINTA

AESCOLHA

O cabelo caía em mechas despenteadas no seu rosto, e ela usava umcardigãvelhoporcimadopijama.Aindatinhapantufasnospés.Derepente,pareciaquetodososmeuspesadeloshaviamseunidoemum

sóeexplodido, formandoumúnicoespetáculohorrível.E isso? Issoeraomeufundodopoço.Seeuachavaqueestavacomraiva,aquelacenamudavatudo.Sentium

calor me atravessar e mal consegui segurar o grito. O que Jack estavapensando?Comoelepôdefazerissocomaminhamãe?Amulherdoirmãodele? Eume senti enjoada e, de repente, não sabiamais de que lado euestava. Luca estava certo; eudevia ter idopara casa.Devia ter fugidodeCedarHill comela. Eudevia tê-lamantido em segurança. Ela era aúnicapessoa na família com quem eu podia contar e fui boba por pensardiferente.Quandoviuasarmasapontadasparaela,minhamãesufocouumgrito.

Asmãoscobriramabocaeelacambaleouparatrás.OsFalconehesitaram,seentreolhando,masnãoabaixaramamira.Não

entendia comopodiamverqualquer coisapertode ameaçadoranela. Elamaltinha1,50m,cinquentaquilosetremiacomoumavara.Mordiascostasdamãoetenteimeconcentrar,masestavagritandopor

dentro. Cheguei mais perto — o mais perto que pude sem ficar com aproteção dos poucos caixotes que ainda sobravam. Ainda não era osuficiente. Eu queria desesperadamente pular das sombras e tirá-la dali,

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massabiaquelevariaumtiroantesdechegarlá.Minhamãegirouocorpomaisumavezparafrente,apertandoosbraços

aoseuredor.— Vim buscar minha filha. — O medo havia deixado a voz dela

irreconhecível.—VimbuscarSophie.Lucaabaixouaarma.—OqueoGracewellachaqueestáfazendo?Osoutrosnãosemexeram.— Não abaixe a arma — avisou Felice. — Isso claramente é uma

armadilha.—É amãedela— insistiuNic, virando-separa cuspirno chão.—Ele

estáusandoamalditacunhada.—Temmaisgentedoladodefora—retrucouFelice.Elesemicerrouos

olhosecomeçouaanalisarminhamãecomosequisessetercertezadequenãoeraumailusão.—Nãoseioqueeleachaquevaiconseguircomisso,mas se Jack Gracewell pensa que não vamos atirar em você, estácompletamenteenganado.— Ca-cadê minha filha? — Minha mãe não estava conseguindo se

concentrar.Aatençãodelatinhasedispersadoaoverasarmaseagoraelaenxugavaatesta,osolhosvasculhandotodoogalpão.Àminhaprocura.—Cadêela?—perguntou,opânicotomandoolugardomedonavozofegante.—Eledissequeelaestavaaqui.Oquefizeramcomela?—Ondeestá JackGracewellnesteexatomomento?—Felicecaminhou

nadireçãodela,mirandonacabeça.—Digaoqueeleestáplanejandooumatovocêagoramesmo.—Pare!—gritouNic.EleesticouobraçonafrentedotioeFeliceparou

derepente.—Nicoli—sibiloueleemresposta.—Precisaaprenderaescolhersuas

batalhas.—Elanãotemnadaavercomisso—esbravejouele.—Éclaroquetem,estábemaqui!—Combinamosdenãoferirmaisinocentes.Vocêétãohorrívelquanto

Valentino!—Bobagem—disseFelice,indignado.—Éclaroquedevemosmatá-la.LucaentrounomeiodeNiceFelice.— Realmente deseja destruir ainda mais esta família, Felice? —

perguntouele,avozcuidadosamentecontrolada.—Nãoéassimquemeupailidariacomasituação,etodosnóssabemosbemdisso.— Então não deveria ter negado o último pedido dele. Certamente

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estariaagoraemumaposiçãomelhorparareclamar.A expressão de Luca ficou levemente hostil, mas a voz permaneceu

inalterada.—Tenhocertezadequenãoprecisolembrá-lo,Felice,queindependente

daminhadecisão,aindaestouacimadevocê.Felicefezumacaretaeabaixouaarmadevagar.Avidavoltouàsminhas

pernasbambas.—So-Sophie?—Minhamãeseinclinouparafrente,torcendoopescoço

para tentar enxergar atrás dos caixotes.Mas eu não estava ali e, quantomaiselaseesforçava,maisdifícileravê-lafrustrada.Lágrimassilenciosascorriamporseurosto,reluzindonaluzbaixa.—Sophie?—Ondeestá JackGracewell?—repetiuFelice.Eleestavatãoobcecado

em estudá-la que não ouviu um ruído baixo vindo dos fundos do galpão.Nenhumdelesouviu.Deiumsaltodesustoeadornascostelassemultiplicou,comoseuma

mãoinvisíveltivesseresolvidorepuxarmeusórgãos.Eumeagacheieseguio barulho. Quatro pessoas estavam entrando pela porta dos fundos, semovimentandoporentreoscaixotes,abaixadosrenteaochão.Avisãodeuma cabeça ruivame alertou para a posição de Eric Cain. É claro que omelhoramigodeJackestavaenvolvidonisso,assimcomotodomundo.Aoseulado,reconheciospassosdomeutio,quesearrastavaemdireçãoaosFalcone.Comeceiaentrarempânico,indecisaentregritarechamaraatençãode

NiceLucaparaavisá-losdapresençadeJack,ouficarquietaparaqueJacksalvasseminhamãe damira cada vezmais instável de Felice. Talvez elemerecesse isso, talveznão.Chequeio canivetedeLucaemmeubolsoeapartemaisraivosademimimaginoualâminaseenfiandonocorpoJack.Deque adiantava aparecer nomeu resgate se estava disposto a usarminhaprópriamãe,mesmosabendoqueelapoderiasemachucar?— Chega! — Era Gino; Gino, o instável. Ele se atirou para frente,

passandobatidoporFeliceeNiccomaarmalevantada.Minhamãegritou,cambaleandoparatrásequasetropeçando.—Gino!—OgritodeNicabafouomeuepareciaqueninguémnotava

nossasvozesembaralhadas.Lucasaltounamesmahorae,emumsegundo,estavaparadona frente

daminhamãecomaspalmasestendidasparaoirmão.—Gino,não—faloutambém,porémmaiscalmo.—Elaéumadistração—disseGinocoma línguapresa,balançandoa

armaloucamentenoar.—EéamulherdeMichaelGracewell!Pelomenos

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assimvamosacertaradívidadesanguequevocêeCalvinoestragaram.—Cuidadocomoquediz,Gino—disseLucasempestanejar.Assombrasnofundoseaproximavam.Avisteiapontadocortedecabelo

militardeJackaalgunscaixotesdedistância.Decidiiratéele.Sesoubessequeeuestavabem,talvezelepudessesairdefininho,eLucaosconvenceriaadeixarminhamãeirembora.Eumearrasteipelochãodeconcreto,olhandoporcimadoombroaome

aproximar o mais rapidamente possível. Minha mãe havia enterrado orostonasmãoseseuchoroecoavapelogalpão.ViLucasevirarecochicharalgoparaela.Elaseendireitouecomeçouaenxugarorostocomasmãostrêmulas. Disse algo a ele, que assentiu, e então minha mãe abriu umsorrisochoroso,comorostocontorcidopeloalívio.Elasabiaqueeuestavaviva.Quando me virei, Jack não estava mais no meu campo de visão, e as

sombrasrastejantesnãoerammaissombras:eramhomens.Estavamdepé,combraçosesticadosearmasempunho.Griteiomaisaltoquepude,maseratardedemais.Nosfilmesésempretãodramáticoquandoalguémlevaumtiro.Otempo

congela,amúsicaaumentaeenvolveomomento.Quandoabalaatingeocorpo, ele cede, cada membro reagindo em perfeita sincronia,cambaleando, quase flutuando no ar e, embora a intenção fosse seraterrorizante,sempreháalgoperfeitamenteartísticonacena.NãofoiassimcomLuca.Elesimplesmentecaiu.Umahoraestavadepé,

nafrentedaminhamãe,enaoutraestavacaídonochãoemumapoçadoprópriosangue.O som ainda ecoava nosmeus ouvidos quando ela começou a gritar, e

entãoseiniciouumadiscussão,eoportãodosinfernosseabriu.EricCain,ohomemquehaviaatiradoemLuca,atirou-senochãoerolou

emdireçãoaumapilhadecaixotesquebrados.Domcomeçouaatirarnele,abrindoburacosnoscaixotes,fazendocomqueeleselevantasseepulasseentre as caixas como uma gazela, mirando no fundo do galpão. Outrohomem— poucomais do que uma cortina de cabelo louro platinado—tentava desviar de Gino enquanto Felice encurralava o quarto membro,todosatirandoporentreoscaixotes.Nic foi direto na direção de Jack, com a arma em punho,mas foi Jack

quematirouprimeiro.AbalafoipararemumacaixaaoladodacabeçadeNic,queatiroudevolta,masJackdesviou,saltandoparatrásdeumatorredecaixotesedesaparecendodevista.Eunãoconseguiamaisvê-los,masosgritos,misturadosaocaos,aindaeramaudíveis.

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Eumearrasteipelochãodecimento, seguindoo sanguedeLucacomoumatrilhaeignorandoadorquepulsavanascostelas.Minhamãejáestavaagachada, tentando tirá-lo do caos com uma das mãos e protegendo acabeçadasbalascomaoutra.Alguémgritoumeunomeemeprepareiparaoimpactodeumabalaquenãoveio.Atrásdenós,umaportabateuequasetodaagritariafoiparaoladode

fora. Quando alcancei Luca, apertei a cintura dele para parar osangramentoquejorrava.Osangueborbulhava,feroz,sobasminhasmãos,encharcandomeusdedosecobrindo-osdeumagosmaquente.— Sophie! — gritou minha mãe, agarrando meus ombros. — Sophie,

vocêprecisairembora!—Não!—Fizmaisforça,sentindoascostelasreclamarem.Aspálpebras

deLucatremulavameseurostoestavapálido.Eraestranhovê-loassim.—Chameumaambulância!Minhamãemesoltouecomeçouatatearocasacoagitadamente.—Estousemotelefone.Eunãopensei...—falouela, indecisa.—Tudo

aconteceutãorápido,Jackdissequeprecisávamossaircorrendoseagentequisesse ter alguma chance de... Ai, estava tão preocupada que malconseguiapensar...—Elasedistraiu,murmurandoincompreensivelmente.Agorajáestávamospertodasaídadogalpão.Elacomeçouapuxarcaixotesànossavolta;construindoumabarreiraimprovisada.NãohaviasinaldeNicoudeJack.Anteseuosouviagritando,masagora

não havia mais nada. Do lado de dentro, o tiroteio havia se encerrado.Alguémhaviatidoobom-sensodelevarocaosparalongedenós,eeunãotinhacertezadequalladohaviapensadonisso,nemseerapormimouporLuca, mas de qualquer forma naquele momento fiquei profundamentegrata.Doladodefora,trêsoutrostirosforamdisparadoseummotorfoiligado.

Alguémestava indoemborana frentedogalpão, e eunão sabia se ficavaaliviadaouapavoradaporisso.—Precisamos pedir ajuda.—Arrastei Luca emdireção à porta com a

mão livre. Ele gargarejou e um jato de sangue escorreu dos seus lábiospálidos,marcandoapelebrancacomogiz.—Éperigosodemais,Sophie—sussurrouminhamãe.—Nãosabemoso

queestáacontecendoláfora.O som de outro motor me assustou. Estava mais afastado, vindo dos

fundosdogalpão.PneuscantarameeusabiaquepelomenosumFalconeestavaindoembora.—Imbecis—xinguei.—Estãoabandonandoele.

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—Provavelmenteachamqueelejáestámorto.—Omodocomoeladissetraíasuasprópriasexpectativassombrias.—Estáquase.As lágrimasardiamnosmeusolhos,maspisqueirapidamenteparaque

caíssemedesimpedissemminhavisão.—Sevocêseguraroferimento,possotentarachar...Alguém chutou a porta da frente. Jack entrou apressado no galpão, a

camisaencharcadadesuoreorostoinchadoevermelho.Eleempunhavaaarmaevasculhavacomosolhosogalpãobuscandopossíveisameaças.—Estásalva—disseelesemolharnemparamimnemparaminhamãe,

aindavistoriandoogalpão.—Temosqueir.—Ondeestãoosoutros?—perguntei.—Carterestámorto.Dois tirosnacabeça.Grantaindaestáporaícom

umdeles.Cainlevouumtironobraço,masresistiue...—OsFalcone—interrompi.—OndeestãoosFalcone?Jack não entendeu a aflição na minha pergunta; provavelmente achou

queeramedo.—Cainosatraiuparaumabuscavãatéooutroladodacidade;aqueles

manésachamqueestãomeperseguindo.Pensaramqueiaserfácil,masmesubestimarammaisumavez.Elesnãofazemideiadoquecomeçaram.Voucaçar aqueles merdinhas um por um. Ninguém bota a mão na minhasobrinhaesai impune.—Oorgulhonavozdeleeradesmedido;devesernormal no estranho submundo, onde a moral era completamentedistorcida.—Precisamostirá-lasdaquiantesqueosoutrosFalconevoltem.LigueiparaHamisheeleestáacaminho;vamosencontrá-lona frentedoterreno. Teremos que contabilizar Grant como uma baixa. Ele era novomesmo...Jackinterrompeuodiscursoinflamado.Pelaprimeiravezsuaatençãose

voltoupara nossopequenobunker atrás dos caixotes. Ele avistou Luca eseusolhossearregalaram.—Merda—xingou,fazendoumacareta.—Cheguemparaolado.EleapontouaarmaparaacabeçadeLuca.—Para!—berrei,movendoocorpoparaficarnamiradaarma.Jackseaproximou,pisandonosanguedeLucacomosefosseumapoça

dechuva.Elesuavizouavozemumatentativademeconfortar.—Nãoprecisaolhar.—Jack!—gritouminhamãehistericamente.—Nãoatirenogaroto!Jacknãocompreendia.Lucaeraapenasmaisumapeçaeliminadadoseu

jogo,nosdistraindodafuga.—Celine,seelanãovieragora,nãovamosconseguirlevá-laaumlugar

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seguro.Lucaestava inconsciente,maseuaindaouviaumchiadosaindodoseu

peito. Protegi o corpo dele com o meu, deixando que nossas testas setocassememeucabelocaíssenorostodele,escondendo-o.Estendiminhamãolivreenquantoaoutraapertavaoferimento.—Não.—Eleprecisamorrer,Sophie.Éobraçodireitodeles.—Agentilezana

suavozestavasetransformandoemfrustraçãoeapaciência,emurgência.—Nãomefaçaarrancá-lodevocê.—Jack—minhamãetentououtravez.—Precisamosajudá-lo.Ouviseusjoelhosestalandoquandomeutioseagachouaomeulado.—Nãosejaridícula,Celine.Segurei-ocommaisforça.—Vamos, Soph.—Ele agarroumeu ombro eme afastou do corpo de

Lucaemumsómovimento.—Viredecostas.Eumejogueiparafrente,maselemepuxou,mearrastandopelochãoaté

minhaspernasficaremmanchadascomosanguedeLucaeeuestarlongedemaisparaimpedi-lo.Griteiaovê-loapontaraarmaparaacabeçadele.Ouvi um tiro estrondoso. Foimais alto dessa vez, e pareceu alterar as

partículas no ar àminha volta, fazendo-as vibrar umas contra as outras.Minha mãe e eu gritamos, mas Luca, que mal estava vivo, permaneciaintacto.Em vez disso, a arma voou damão de Jack e deslizou aomeu lado no

chão.—Filhodaputa!—xingouele,baixandoa cabeça comumaexpressão

confusa.Abalahaviaatravessadosuamão,eagoraoburacofaziaescorrersanguepelobraço.Jackseencolheunochão,respirandofundoeapertandoseus dedos ensanguentados. Chutei para longe a arma, que deslizoupelochão e parou entre dois caixotes destroçados pelas balas, longe do seualcance.Nofundodogalpão,Niccorriaparanós,orostocobertodeterra,aroupa

ensopada de algo que devia ser o sangue de outra pessoa. Ele aindasegurava a arma, apontada para o meu tio, como se planejasse atirarnovamente.Achoqueelenãoestavabrincandosobreterumamiraperfeita.—Seusamigosestãomortos!—gritouele.Jackcomeçouasearrastarparatrásemdireçãoàporta,levandoocorpo

pelochãocomamãoilesa.— Sophie!— gritou ele, mas ele não me olhava; não me via. Mas eu

estavavendo;seurostoestavapálidoetomadodemedo,eosanguedelese

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misturavaaodeLuca.Nicparoudecorrerelevantouaarmanovamente.—Pare!—ordenou.—Nic,não!—gritei.—Elenãoestáarmado.Deixeeleirembora!AcabeçadeNic semexeucomosealgumacoisazunisseporperto.Ele

hesitou.Jackjáestavanaporta;segurouobatentecomamãoboaetentouselevantar.Estavaquaseconseguindo.EentãoNicatirounele.Minhamãeeeugritamos. Jackbateunaportaeumamanchavermelha

começouaseformardoladoesquerdodacamisa.NicparouaoladodeLuca,nemsequerolhouparaJack.Guardouaarmae

seagachouaoladodoirmão,checandoapulsaçãonopescoço.—Precisamoslevá-loparaohospital—disseeleparaminhamãe,que

tremiavisivelmente,mascontinuavapressionandooferimento.Eu estava anestesiada demais para me mover. Continuava encarando

meutioesuanovaexpressãodepânico.Eleaindaestavavivoemeolhavacomocorpometadedentrodogalpãoemetadefora.Observeioferimento— era logo abaixo do ombro esquerdo, não exatamente no coração,masbempoderiatersido.Delonge,deondeminhamãeeNicestavamjuntos,meutiopareciabemmorto,maseuviaoestadodealertanoseurostoeomedonosolhos.Nichaviaatiradopara ferirouparamatar Jack?Eseelesoubesseoqueeu jásabia—queabalanãohaviaatingidoocoraçãodomeutio—,seráqueterminariaoserviço?—Sophie—chamouminhamãe,comavozofegante.ElaeNichaviam

começadoalevantarLuca.—Podenosajudar?Precisoquevocêpressioneoferimentoenquantocarregamosele.Jack merecia meu perdão? Não. Ele merecia morrer? Não era uma

decisão minha nem de ninguém. Não tive tempo para pensar. Eu melevantei sem dizer nada, estendendo a mão para ajudar e bloqueando avisão do corpo do meu tio enquanto caminhava até eles. Então fomosrápidos, os três em sincronia, emdireção aos fundosdo galpão, longedetodoaquelesangue.NãomevireiparaverseJackaindaestavalá.MinhamãeeeucarregamosLucaatéoúltimocarrorestante,enquanto

eucambaleavaaoladodeles,apertandominhascostelascomumadasmãosepressionandooferimentodelecomaoutra.Eentãofomosembora,Lucaeeudeitadosladoaladonobancodetrás,minhamãosegurandocomforçaseutorsoenquantonossasrespiraçõespesadassemisturavam.Enquanto Nic acelerava pela escuridão, imerso em uma conversa

apressadacomminhamãe,eumeentregueiàdoreàescuridãoquehaviam

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merondadoanoiteinteira.

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CAPÍTULOTRINTAEUM

OHOSPITAL

Pela segunda vez no mesmo verão, acordei em uma cama de hospital.Tudo ao redor era estranho e sem cor. Imagens surreais dançavam naminhamenteenquantoeuficavaali,deitada,mesentindoaummilhãodequilômetrosdaTerra.Leveiamãoaopeitoesentiumalevepontada.—Sophie?—Umsinotilintanterompeuaminhabolha.Virei a cabeça para o lado direito, fazendominha bochecha dormente

pulsar, como se a dor pairasse fora do corpo, me observando. Tenteiresmungar, mas minha voz ficou presa na garganta e saiu em forma dearfadaspatéticaseinsignificantes.— Querida?—Minha visão se estabilizou e vi o rosto da minha mãe

tomando vulto a apenas alguns centímetros do meu. Os olhos estavammarejadoseorostoabatido.—Comoestásesentindo?Tenteifalar,masnãoencontravaaspalavrase,mesmoseasencontrasse,

não teria condições de botá-las para fora. Fiz uma careta e pisqueirepetidasvezes,osmovimentosdaminhamãedesconexos.—Omédicodeumorfinaparavocê.Estácomduascostelasquebradas,o

nariztambém.Nãosepreocupesevocêsesentirumpoucoestranha.—Elapegou a minha mão e apertou com força. Senti apenas um leveformigamento.Eu estava me sentindo eufórica e abatida ao mesmo tempo, e as

memórias passavam como flashes no meu cérebro aturdido enquantoficava deitada na cama do hospital. Eume lembrei da dor de cada golpe

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dadopor Calvino; a discussão comLucanamansãode Felice; uma longaviagemdecarroa lugaralgum.Mexiasmãossobacobertae,aospoucos,comeceiaentenderqueestavavestindoumacamisoladehospital.Aomeulado, na mesa de cabeceira, minhas roupas estavam dobradas em umapilha. O cabo de um canivete saltava do bolso da frente. Tive mais ummomentodeconfusãoesóentãome lembreidealgo,maisumamemóriadesconexa.EraocanivetedeLuca.Masporqueeleestavacomigomesmo?Aperteiosolhosatésefecharemetenteientraremcontatocomaspartesmaisobscurasdaminhamente.Quando abri os olhos, Nic estava no quarto, com a aparência de quem

nãodormia haviamuito tempo; o cabelo estava caídona testa e olheiraspesadasmarcavam seus olhos. Ele entregouumcopodescartável de caféparaminhamãeesesentouaoladodela.Porumsegundo,pudejurarquenão eram nada além de cabeças flutuantes, e então a onda de morfinapassou o suficiente para que eupudesse compreender um certo nível derealidade.—Vocêestáacordada.—Eleabriuumlevesorriso.Respondicomumgemidoofegante.Nicse inclinouparapertoatéqueseusolhosescurosdominassemmeu

campodevisão.—Vocêéteimosa,SophieGracewell—repreendeuelecomavozgentil.

—Nãoseioqueeuteriafeitosealgotivesseacontecidocomvocê.Tenteime lembrarumpoucomelhordosacontecimentos.Meucérebro

foitomadoporumamemóriadistantemaspassageiradegritos.EncareiNiccom tanta vontade que senti lágrimas escorrerem dos olhos para meucabelo.Ele passou o dedo gentilmente sob meu olho inchado; eu estava

desesperadaparasentirseutoque,masnãoconseguia.—Vouconsertarisso—disseele.—Prometo.Fecheiosolhos,melembrandocomumsustodocheirodeumidadedo

galpão.Reviumafileiradecaixotesestendidadiantedemimnaescuridão.Niceseusirmãosestavamparadossobumaluzsolitária,discutindo.Quandoabriosolhosnovamente,Nic tinhatiradoamãodomeurosto,

massuaatençãocontinuavaemmim.—Meperdoe—sussurrouele.Pelocantodoolho,enxergueiminhamãe;lágrimascorriamsemcontrole

peloscantosdosolhosdela.— Querida, sinto tanto. Eu não sabia de nada disso. Pensei que você

estavacomaMillieatéJackbaternanossaporta.Eunãotinhaideiadoque

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eleestavafazendo.Eunãosabiadenadadisso.Consegui vê-la então, em outra época, em outro lugar, chorando como

agora,vestindoomesmopijamaeasmesmaspantufasqueeutinhadadodeNatal.Estendi amão e segurei o braçodela emuma tentativa de confortá-la,

masmalsentisuapeleporcausadamorfina.Quandomedeiporsatisfeitapelatentativadesajeitada,tenteisentarnacama.— Pare—murmurou Nic, botando a mão na minha.— Não tente se

mexerainda,OK?Pare.Nichaviagritadoissonogalpão.LogoantesdeatiraremJack.Jack.— Jack— falei com dificuldade. O sommal saiu da minha boca, mas

minhamãeentendeu.— Parece que seu tio sobreviveu. — A voz dela não demonstrava

nenhumaemoção.Nãotinhacertezaseelaestavaaliviadaoudecepcionada.Cautelosamente, desviei o olhar para Nic. O rosto dele era ilegível. Nãosabiadizerseeleestavasurpresoounãopelanotícia,masnãoolhavamaispara mim. Desviei o olhar também, mas nossos dedos permaneceramentrelaçados.Quandominhacabeçapousoudevoltanotravesseiro,pareceuquetodaa

confusãonomeucérebrohaviasumido.Minhamemóriavoltouemflashes:balasvoavamàminhavoltaenquantoeumeencolhiacomaminhamãe.ViJack, primeiro segurando uma arma, depois agarrando a própria mãoenquantoosangueescorriapeloseubraço.Nochão,Lucareviravaosolhossem foco e arquejava com dificuldade. Estava deitado em uma poça desangue e meus dedos estavam dentro do corpo dele, tentando mantê-lovivo.Derepente,a imagemdeLucacaindonochãodominouminhamentee

cadamínimodetalhedanossafugaretornouaosmeuspensamentos.Fiqueitãosemarquemeupeitodoeu.Jogueiasmãosparaoalto,agitando-asemdesespero, até conseguir de novo a atenção de Nic. Ele agarrou minhasmãoseasbotououtravezaoladodomeucorpo,segurandomeusdedos.—Estátudobem—garantiuele.—Luca—arquejei.—CadêoLuca?Minharespiraçãoseacelerouparaacompanharmeubatimentocardíaco

e,derepente,oquartocomeçouarodar.Nicprocuravaalgonobolso.Adornas costelas tinha voltado e minha pele parecia se contorcer. Um gritoabafadosubiupelomeupeito.Minhamãeestavadepé,tentandometranquilizar.— Ele sobreviveu— afirmou ela.— Também está vivo, querida. Está

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vivo.Nicabriuopedaçodepapelqueestavasegurando.— Está no final do corredor. Perdeu muito sangue, mas está se

recuperando.Conseguimostrazê-loatempo.—Você salvouele— falei, sentindoumsorriso seabrirnomeu rosto.

Eraumsentimentoincrívelnãotermaisquemepreocupar.—VocêatirounaarmadoJack.— Foi realmente impressionante— concordouminhamãe. Dava para

ver pelo tom da sua voz que ela não sabia se ficava impressionada oudecepcionada.—Vocêosalvou—corrigiuNic.Eleestavaenvergonhadoecomosolhos

sombrios.—Vocêparouosangramento.—Foi tão corajosa, querida.—Minhamãe começou a acariciarminha

testa.—Estoutãoorgulhosadevocê.— Tome.—Nicme entregou o bilhete que ele já tinha aberto.— Ele

ainda não consegue andar por aí, mas pediu que eu te entregasse issoquandovocêacordasse.Agarrei o bilhete commais força do que pretendia, quase rasgando o

papel. Era simples e curto, escrito emumabela caligrafia em tintapreta.Demoreiumtempoparaentender:

Faleiparavocêirparacasa.

Senti um sorriso se abrir. Nic me observava com atenção; rugas de

expressãomarcavamatestaeabocaestavatensa.Olheinosolhosdeleeaseriedadedesapareceu.Elesorriuparamimdeformaencorajadora.—Caneta?—pedi.Minhamãerevirouabolsaemeentregouoquepedira.Vireiobilhetee

escrevi na parte de trás. Demorei muito mais do que deveria e, quandoterminei, as linhas soba influênciadamorfinaeram tortas edesconexas,subindoedescendopelopapelcomosefossemescritasporumacriançadeseisanos:

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Não está agradecido por eu não respeitar sua

autoridade?

DobreiopapelepasseiparaNic.—Vocêpodeentregarissoparaele,porfavor?A expressão séria voltou a seu rosto e, dessa vez, ele não tentou

esconder.—Claro—concordouele,olhandoparaopapelaosairdoquarto.—Já

volto.Minhamãeseinclinounaminhadireçãoebaixouavoz.— A polícia esteve aqui mais cedo fazendo algumas perguntas. Eles

devemvoltar.— Sem declarações — respondi, repousando de novo a cabeça no

travesseiro.Euqueriadizermais,masestavaficandosemenergia.Minhamãenãopareceusurpresacomaresposta,esóbalançouacabeça.—Não,nãoimaginoquetenhaoquedizertambém.— Bem-vinda a omertà — murmurei. Minha língua parecia pesada e

molenaminhaboca.—Omertà—repetiuela,calmamente,epudeverpeloseutomquesabia

oqueissoqueriadizer.

FIM