cavaleria no sertão

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    A cavalaria no Serto

    JERUSA PIRES FERREIRA

    Pontifcia Universidade Catlica/SP

    Brasil

    1. INTRODUO E REMEMORAO

    Sobre os livros de cavalaria dizemos que se trata de fenmeno estranho, a presena de um iderioprprio, a paisagem e situaes inslitas chamando nossa ateno.

    De um lado, o segmento ideal, a construo de paisagens imaginrias, de lugares visionrios, deuma geografia fantstica, e, por outro, a inscrio de experincias vividas e concretas e de sries cultu-rais que vo marcando o seu espao. D-se a insero do tempo mtico no fluxo de uma outra histria.

    Entre os pensadores que tratam de uma discusso mais ampla, Eleazar Meletnski1, Mihail Bakhtine Michel Foucault se preocuparam com tratar a novela de cavalaria em seus procedimentos e em sua

    condio prpria. O primeiro, em suas indagaes sobre mitopoticas e arqutipos literrios.

    Diz-nos Foucault, referindo-se a estes livros emAs Palavras e as Coisas, que sua aventura seruma decifrao do mundo, um minucioso percurso para recolher em toda a superfcie da terra (tarefade cronista) as figuras que nos mostram que os livros falam a verdade2.

    E aqui menciono a presena de Massaud Moises3 nesse campo de estudos, pioneiramente nosapresentando a originalidade do romance arturiano e doMemorial das Proezas dos Cavaleiros da Tvola

    Redonda. Sua colaborao foi inestimvel para a realizao de Cavalaria em Cordel4, livro que escrevina juventude e que, devo confessar, ainda consegue me emocionar e convencer at hoje.

    Um dia, voltando de um jantar na Bahia, ele pede a quem dirigia o carro que tivesse cuidadocom a carga valiosa (ns dois), pois ali estava um pilar da cavalaria andante. que eu fazia minha tese

    sobre o Palmeirim de Inglaterra5, para a Universidade Federal da Bahia, onde j tinha apresentado umtrabalho de concluso de curso sobreA Paisagem Fictcia e a Paisagem Verdadeira no Palmeirim de

    Inglaterra, a partir daquele momento juvenil, uma de minhas paixes.

    1 Eleazar Meletnski, Potica do Mito, Rio de Janeiro, Forense-Universtiria, 1987; idem, Arqutipos Literrios, So Paulo,Ateli Editorial, 1998.

    2 Michel Foucault,As Palavras e as Coisas, Lisboa, Portugalia, 1968.

    3 Massaud Moiss, A Novela de Cavalaria Portuguesa,RevistaHistria, So Paulo, (8): 47-52, 1957.

    4 Jerusa Pires Ferreira, Cavalaria em Cordel, So Paulo, Hucitec, 1993. Est em preparao a terceira edio.

    5 Cf. Jerusa Pires Ferreira, Tapete Preceptivo do Palmeirim de Inglaterra (onde estudo preceito efico, UFBA, 1973. Tesemimeografada, em reviso). Cf. ainda Os Sermonrios do Diabo ou as Novelas de Cavalaria, In: Forma & Cincia, Org.Amlio Pinheiro, So Paulo, EDUC, 1995.

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    Neste campo de evocao e memria de tempos distantes, relato que escutei dizer, por um alto--falante da festa do Bonfim, num recado sonoro, que se estava esperando algum na Barraca do Rei daHungria.Passagem que, de repente, me levaria ao Imperador Clarimundo6, alis curioso e nem sempre

    lembrado romance de cavalaria do sculo XVI, escrito por Joo de Barros, o gramtico e cronista querecria este universo com paisagem e personagens portuguesas, onde se destaca a impressionante profeciade Fanimor.

    Aproveito aqui para homenagear tambm Cavalcanti Proena, o grande estudioso desses temasno Brasil, que, ao tratar do Cangao, nos sugere a criativa incurso pela gesta guerreira, sem deixarde fora a cavalaria encantatria, a presena arturiana transmitida pela tradio portuguesa e as muitasinflexes em nossa cultura, toda uma abertura ao mundo do sebastianismo: por exemplo, D. Sebastio,o rei desaparecido como Arthur, um outro tipo de injuno messinica. Seus ensinamentos e propostasesto ainda a nos desafiar.

    2. UMA IDADE MDIA NOS TEMPOS DA IMPRENSA

    A novela de cavalaria ibrica (escrita ora em portugus, ora em espanhol ou em catalo/valenciano) a resultante, em fico, de um percurso narrativo que vem dos tempos medievais, do relato oral, dagesta, do poema pico, do romance corts, de um mundo de imaginao com caractersticas prprias.Servindo-se da experincia peculiar do universo cavaleiresco (cavalaria uma instituio poltico--religiosa, social, moral e esttica), realiza-se adaptando os novos tempos quele universo, cujas normasesto de algum modo estratificadas e estveis, algo que tem a ver com a criao de um espao ideal.

    Como se sabe, estes livros alcanaram na Pennsula Ibrica um enorme desenvolvimento e prest-gio, dos fins do sculo XV ao comeo do XVII, portanto no espao-tempode um mundo em profundas

    e intensas modifi

    caes. Estas histrias foram contadas, consumidas, ouvidas, copiadas e repetidas,exaustivamente, at muito mais tarde, deslocando-se para o universo da poesia oral e do livro popular.Textos trazendo andanas de cavaleiros, proezas e encantamentos, entremeados de ensinamentos e pre-ceitos moda dos livros de moral e doutrina, foram dos mais assduos tipos de leitura e de escuta, parteefetiva de um repertrio popular mais amplo.

    Para chegar ao processo maduro de sua crtica, teve Cervantes de viv-las, e para colocar em lite-ratura a interpretao de seu tempo, serviu-se deste modelo, construindo emLibro de Caballerias umadas mais importantes obras que o mundo conhece. O Quixote, sntese e crtica, um texto que se contma si prprio e sua glosa, sendo visvel a cada passo como foi intensa a apreenso de toda a tradionovelstica anterior. Alm disso, o famoso captulo VI, o da queima dos livros, passa a representar umdocumento da maior importncia, entre outras coisas para o entendimento do fenmeno em questo,

    para uma teoria da recepo e das relaes entre literatura e os controles do imaginrio.

    Referindo-se de modo geral s novelas de cavalaria, diz-nos Foucault que todos estes romancesextravagantes so precisamente incomparveis e que no mundo nunca alguma coisa se pareceu comeles (apesar de se chamarem crnicas). Sua linguagem fica em suspenso, sem que nenhuma similitudehistrica venha preench-la. Enquanto isso, temos em Bakhtin o assentamento destas fices no mbitode um cronotopo limitado e circunscrito: o mundo das maravilhas e o tempo da aventura7.

    6 Joo de Barros, Crnica do Imperador Clarimundo, Lisboa, S da Costa, 1953, 3 vols.

    7 Mikhail Bakhtin, Questes de Literatura e de Esttica, So Paulo, UNESP/Hucitec, 1988.

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    Acontece que a narrativa cavaleiresca, apesar de apoiar-se num quadro ideal construdo de este-retipos, de topoie de loci comuni,como to bem estudou E.R.Curtius no seu memorvel livro8 terminapor inscrever nele, a seu modo, o social, as contradies e o absurdo, a ferocidade e a ira, os desgnios

    da vida, os bruxedos, encantamentos e a morte. H tambm a proposta amenizadora, que compensa ten-ses sociais pela diverso e pela fora do ritual. Cabe ao cavaleiro andante a proeza, a transferncia daao coletiva, a superao de obstculos, o ideal guerreiro de dominao, mas sobretudo a instalao deuma pretendida ordem restauradora e re-significada. Esta literatura traz para si, ajustando-o, o universomltiplo do conto maravilhoso, a tradio da cultura popular, os caracteres opostos e bem ntidos dobem e do mal, e personagens que os protagonizam, sejam cavaleiros ou gigantes.

    O fato que nos primeiros tempos da imprensa a novela de cavalaria veio a transformar-se numaespcie de literatura de grande circulao, mesmo comportando considervel distncia entre a com-posio de umas e outras novelas, conforme diferentes tempos, espaos, autores, suportes e qualidadede realizao. H todo um percurso, um trajeto de estilos, uma variao desde as mais primitivas

    quelas mais bem conseguidas e elaboradas, clssicas por assim dizer, como o caso do Palmeirimde Inglaterra,do portugus Francisco de Moraes, to presente e valorizado nos estudos de colegas e toadmirado por Cervantes, at as expresses barrocas de umMemorial das Proezasda Segunda Tvola

    Redonda, de Jorge Ferreira de Vasconcelos, e dos continuadores dos ciclos tradicionais ibricos deAmadises e Palmeirins.

    Entre as novelas espanholas, anuncia-se o Libro del Caballero Zifar, cujo relato primitivamenteurdido e parattico o coloca entre as mais curiosas, alm de que parece ser, entre esses, o livro de cava-laria espanhol mais antigo. Segundo Felicidad Buendia, pertencendo primeira metade do sculo XIV,o livro foi tratado com indiferena at a descoberta de sua rara edio de 15129.

    Tirant lo Blanc, dedicada a Don Fernando de Portugal, uma das mais conhecidas hoje, tinha sidoimpressa duas vezes nos fins do sculo XV, em Valncia e Barcelona. E recentemente, no Brasil, porClaudio Giordano, numa bem cuidada traduo e edio. um verdadeiro doutrinrio do cavaleiroandante, pois enunciam-se em seu transcurso preceitos a serem seguidos; de estrutura narrativa muitosimples, est bem fincada no medievo, em verdadeira situao de Cruzada mas apontando para umrealismo to contundente. Apesar de bem prximas, estas duas experincias encontram-se distantes dorelativo padro assumido como a novela de cavalaria ibrica de Quinhentos, j com os ps no mundomoderno. conhecido o interesse profundo que demonstrou o romancista peruano Mario Vargas Llosa,autor deA Casa Verde e Conversao na Catedral, tambm ele estudioso dos livros de cavalaria.

    OAmadis de Gaula, a mais famosa de todas, fez-se presente atravs da qualidade dos seus primeiroslivros e de interminveis continuaes (para alguns tericos, execrveis continuaes!). Algumas delasme pareceram ter um interesse especial, como o caso doLisuarte de Grcia (stimo livro doAmadis)

    ou o Florisel de Niquea (onzeno), barroqussimo texto do portugus Feliciano de Silva, com cenriospreciosos, carregados de fontes e de ninfas10.

    Todo este percurso ter ento a ver com o anunciado Serto.

    8 Ernst Robert Curtius,Literatura Europia e Idade Mdia Latina, So Paulo, Edusp, 1996.

    9 Felicidad Buendia (Org.),Libros de Caballerias Espaoles, Madrid, Aguilar, 1954.

    10 Cf. Jerusa Pires Ferreira, op. cit., 1973.

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    3. EM MEMRIA DE MARLYSE MEYER

    Cavalaria em Cordel O Passo das guas Mortas

    E a vm o Brasil e o Serto. Como nos lembra Cmara Cascudo, apontando para uma indagaocentral que traz muito do que agora continuo a desenvolver sobre o tema, ele encontrava seus primossertanejos discutindo sobre as proezas dos Pares de Frana, sobre a bravura excelente de Roldo e deOliveiros e nunca lhe apareceram as figuras do Palmerim ou dos Amadises nessas disputas de herosmos.

    O que a meu ver no significa que estivessem ausentes, mesmo quando no referidos diretamen-te. Vinham na bagagem do colonizador, povoavam o seu imaginrio, como nos indica to bem SrgioBuarque de Holanda, em seu incomparvel Viso do Paraso11. Aotratar da presena daDemanda doSanto Graal(de que se ocupou no Brasil Heitor Megale), diz-nos Almir Brunetti12, havia coisas que sefixavam no contexto do pensamento heterodoxo para aqui trazido e recriado.

    Falamos de uma bagagem de textos e de um mundo da memria, vamos nos referindo ao oral/escrito/impresso/teatralizado e a uma presena do extraordinrio romanceiro peninsular, to vivo aindahoje no Serto. A tradio opera em camadas profundas e em incluses adaptativas. No nosso caso,recompe-se em outros corpos vivos, inscries de outras culturas (indgenas e africanas). Enquanto noPalmeirim de Inglaterra quelas frmulas de representao se sobrepe a paisagem do Castelo Almou-rol e as ribanceiras do Tejo, no serto, as paisagens recriadas levam da aridez aos lugares encantados.

    Todos esses elementos foram servindo de base para o Cavalaria em Cordel, que enfoca, a partirdo combate, as dimenses ritualsticas e os processos adaptativos do fenmeno cavaleiresco no Brasil.A cavalaria ibrica um percurso que leva a snteses espantosas, de estilos e conquistas de linguagem,bagagem de textos e mundo da memria, laboratrio vivo onde tudo se processa.

    Escolhi como amostra dessa conservao e permanncia, em suas adaptaes compatveis, algunsexemplos que seguem.

    4. A CONSERVAO DE UM LXICO

    Foi assim que analisamos um grande corpo de folhetos daquela literatura que chamamos cordel,observando o fenmeno das capas e a repercusso em que texto sonoro e verbal se unem s imagens:

    Quando Ferrabrs chegou/ nos campos de Marmionda/ S um trovo quando estronda/ troa comoele troou/ em altas vozes gritou/ apoiado numa lana/ como fera que avana/ precipitada em furor/ dizia:oh imperador/ quedeteus pares de Frana?13.

    Os arcasmos e as tiradas cavaleirescas comparecem em funo de se estar seguindo um processodo livro-matriz, de que falarei em seguida A Histria do Imperador Carlos Magno14. Mas h tambm,em compensao, uma sedimentao prvia destas expresses e repertrios. Por exemplo, altas vozesj fora anteriormente incorporado ao universo potico dos folhetos. No eixo adaptativo, assim a maneira

    11 Srgio Buarque de Holanda, Viso do Paraso, So Paulo, Cia. das Letras, 2010.

    12 Almir Brunetti, A Lenda do Graal no Contexto Heterodoxo do Pensamento Portugus, Lisboa, Sociedade de ExpansoCultural, 1974.

    13 Leandro Gomes de Barros, FolhetoBatalha de Oliveiros com Ferrabrs, Recife, 1902. p. 2.

    14 Simo Thaddeo Ferreira, Histria do Imperador Carlos Magno, Lisboa, 1799-1800; Jeronymo Moreira de Carvalho, His-

    tria do Imperador Carlos Magno, Rio de Janeiro, Livraria Imprio, s/d. Cf. ainda elenco de edies desta histria emmeu artigo Um Rei a Resmas: Carlos Magno e a Amrica, In: Euro-Amrica: uma Realidade Comum?, Rio de Janeiro,Comisso Nacional de Folclore/IBECC/UNESCO, Tempo Brasileiro, 1996.

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    sertaneja de referir-se a esse que aqui chegou/ um grande da Turquia/ turco de muita energia/... olegtimo dono/ do reino de Alexandria15.

    Em outro momento se l: E disse em alta linguagem/ com desmedida coragem/ falou a todos

    assim/ qualquer que tocar em mim/ diga que est de viagem16. Este trecho poderia exemplificar o pro-cesso de rima-sentido em relao compulsria, revelando uma maneira de dizer nordestina, apesar devir o episdio diretamente da fonte portuguesa. Ajustam-se o arcasmo de uma expresso tica medievalao cdigo regionalizante, e assim vai ter destaque, no mesmo folheto, a passagem desfeiteando meurei/ de que me serve existir17.

    Ao lado do trabalho de adaptao e mesmo de criao do poeta so mantidos todo o aparato lxico,os lexemas centrais e, ao evocar a figura de Carlos Magno, diz-se aqui como l: Amparo de cristos,guia da verdade/ coluna da igreja, etc.18. H, nesse folheto, sequncias em que se tem um discurso detipo camoniano, correspondente repetio fidelssima de um texto-matriz na conservao exata dosarcasmos significativos: Eu ficarei na terra/ que o vale da tribulao/ esto tristes os cristos/ e Deus

    bastante gostoso19

    . No corpo produzido, aqui e ali comparece ainda o tom clssico do discurso, cor-roborado pelas prprias inverses: O sangue o campo tomava/ provocando piedade/ fora em grandequantidade/ de toda a parte chegava...20.

    H momentos emque o narrador mantm grande fidelidade a uma ambincia medieval: E estandonestas prticas/ Valdivino ento chegou/ arrancando os cabelos/ em altas vozes exclamou/ e para a penhaapontou21. Conserva-se esta seleo vocabular com base naquilo que o pblico entende, requer, apreciae aceita, o que leva ao processo que inclui a sedimentao imaginria como uma investida arcaizanteem vrios planos, e o posterior reconhecimento.

    Em A Priso de Oliveiros, aqui citado como em outras partes onde quer que se mencione ocavaleiresco do cordel, percebe-se que a narrativa acompanha de perto um texto gerador, embora demaneira bastante mais livre em relao matriz, sendo a construo concretizada por meio daquilo queo poeta leu e ouviu. A sequncia narrativa acompanha o texto gerador, mas o discurso frequentementeapropria-se da disperso do texto clssico retido, oralizado ou mesmo difundido em letra, ou por outrasvias. Ocorre, aqui como alhures, uma acoplagem da oralidade ao texto impresso, que veicula toda umatradio vocabular.

    Comparecem processo e lxico mantidos; ali [Oliveiros], como em outros folhetos, nota-se que opoeta vinha seguindo fielmente um texto impresso, utilizando no s referncias diretas, mas ainda osmesmos vocbulos, a exemplo de: apartados os cavalheiros/ de Ricarte e de Roldo, ou a sequncia,com fidelidade descritiva, do relato cavaleiresco que colhera num texto-matriz ou na sua experinciade ouvir: Abderram vestia/ argolas finas e douradas/ num cavalo roxo pombo/ com pratas ajaezadas/as suas roupas de rei/ com pedras finas estreladas22. Quem j leu novelas de cavalaria notardar a

    identificar estas passagens.Constata-se em outro caso, seja no famoso folheto de Leandro Gomes de Barros, (dos mais

    completos de nossos poetas populares dos comeos)o poeta captando passos difusos como a meno

    15 Leandro Gomes de Barros, op. cit., p. 4.

    16 Idem, p. 6;Histria do Imperador Carlos Magno,p. 27.

    17 Leandro Gomes de Barros, op. cit., p. 8.

    18 Ed. Proprietrio Jos Bernardo da Silva, Galalo e a Morte dos 12 Pares de Frana , p. 23.

    19 Idem, p. 25.

    20 Ed. Proprietrio Jos Bernardo da Silva,A Priso de Oliveiros, p. 10, s/d.

    21 Ed. Proprietrio Jos Bernardo da Silva, op. cit., p. 7.

    22 Idem, p. 10.

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    ordem da cavalaria23 e uma incrvel referncia, em tal quadro de transposio, que no comparece nasequncia do texto gerador, mas que a se encontra em outras passagens.

    Todos estes fatos nos levam afirmao de Paul Zumthor de que a tradio se situa, muitas vezes,

    nas profundidades invisveis do espao potico24; mas h momentos em que, nessa conservao dispostaa emergir sob as mais variadas maneiras, a criao inaugura novos elementos e aciona, para alm de umasimples palavra colocada, tanto inveno quanto conservao, instaurando uma potica prpria, culta epopular ao mesmo tempo, sempre disposta a se afirmar para alm de modelos, nas brechas da criao.

    5. UM REI A RESMAS25 CARLOS MAGNO (CAVALARIA E EDIO)

    No texto aqui apresentado, vou destacar a gesta guerreira, deixando um pouco de lado a construodo romance arturiano e um certo cavaleiresco encantatrio.

    Ao falar do texto criado nos sertes do Brasil, devemos dizer, seguindo nossa linha de argumen-

    tao, que a grande matriz impressa foi a novela de cavalaria tardia A Histria do Imperador CarlosMagno, que tem razes de historicidade, unicidade e magia entre ns, presente nos folguedos, nas pr-ticas cotidianas, em nomenclaturas e atitudes, etc. O cavaleiresco comparece em movimentos rebeldescomo a Guerra do Contestado, onde os Pares de Carlos Magno continuam a exercer seu papel pico,construindo nosso cho de herosmos possveis.

    No Estado de Santa Catarina, ocorreu o movimento rebelde conhecido como o Contestado, noqual seus seguidores se referiam a eles prprios como Pares de Frana, maneira da pica medieval,oferecendo curiosa interpretao para pares. Ao invsde doze bravos cavaleiros, consideravam 24 delespara a ideia de par. Entre importantes contribuies sobre este notvel acontecimento social, no livro OsErrantes do Novo Sculo26Douglas Teixeira Monteiro trabalha a ideia weberiana de desencantamento

    e reencantamentodo mundo, apontando para uma espcie de organizao ritual, construda segundoreferncias medievais muito diretas. Tudo isso nos leva constituio de uma espcie de monarquiasertaneja, presente em outros movimentos rebeldes como Canudos (tpico inesgotvel, que dispe deampla bibliografia), correspondente lei de Deus enquanto a Repblica seria a lei do Demnio. Tantoquanto fosse o desejo de reconfigurar o mundo, a pica medieval carolngia estava ligada a uma velhaordem que se impunha.

    Cavalaria em Cordel procura recuperar os dois principais segmentos uma vertente difusa artu-riana, em que ancora o sebastianismo; e uma vertente pica, que traz a permanncia de muitos textos eromances medievais.

    Leitores-ouvintes de diferentes sertes ligavam-se legendria textura da pica cavaleiresca,

    transformada em modelo histrico possvel para pessoas que no experimentavam a ideia de uma Histriacronolgica. H uma continuao entre o seu presente e o passado remoto, relaes de dependncia e devassalidade, conhecimentos de como lidar com formas de dominao e violncia. Entre os guerreiros,contava muito a presena de monges e de penitentes.

    23 Leandro Gomes de Barros, op. cit., p. 10.

    24 Paul Zumthor, ssai de potique mdievale, Paris, Seuil, 1972, p. 81.

    25 Jerusa Pires Ferreira, op. cit., 1996.

    26 Douglas Teixeira Monteiro, Os Errantes do Novo Sculo, So Paulo, Duas Cidades, 1974.

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    Apresentei27, num simpsio que tratou de medievalismos pelo mundo, um trabalho que se chamouViolncia e Cortesia, pensando na presena deste ideal corts, no combate, na disputa como elementoconstitutivo da batalha. A, o dilogo e os cdigos de cortesia formam um universo de leis, num sistema

    articulado nos vrios sertes, de acordo com suas prticas, comportamentos e vicissitudes. Apesar daaridez e da rudeza, a cortesia no est fora de propsito neste universo cannico tantas vezes frequentadoem diferentes tempos e espaos, onde a teatralizao do mundo se apia na cavalaria medieval que aindavive em nosso imenso continente Brasil, por artes da letra impressa e da voz repercutida de Gois Amaznia, onde possa ecoar o encantamento e o mistrio que esses livros/ritos representam.

    Em Cavalaria em Cordel, ao levar em conta os ciclos de narrativas medievais que ainda vivemna tradio oral e tambm uma ampla produo de folhetos populares de todos os tipos no sculo XXbrasileiro os clssicos, entre aqueles editados em So Paulo pela Editora Luzeiro apontei os proce-dimentos de luta e a relevncia do dilogo na batalha, a palavra como ocupao de rivais. Parti dassugestes de Martin de Riquer e de Mario Vargas Llosa28, no prefcio e edio das Cartas de Batalha de

    Joanot Martorell, onde se pode seguir uma espcie de dilogo introduzindo, atravs da disputa verbal,um mundo dramtico e teatralizado da cavalaria medieval, prolongado por sculos afora.

    Em vez de apontar para um novo feudalismo desenvolvido no Novo Mundo, seria melhor levarem conta as vrias camadas da tradio popular, o drama, o apocalipse, contedos vagos persistindo apartir da matria cavaleiresca, atentando para os livros e os textos que os formaram.

    Alguns dos temas de cavalaria continuam seu caminho entre ns, de uma ou outra maneira, aexemplo dasHistrias do Imperador Carlos Magno, lidando com as ideias de bravura, honra e heros-mo. Este texto, em suas seguidas e ilustradas edies, desempenhou o papel de importante matriz paranossa cultura e se constituiu num paradoxo: to conservador quanto revolucionrio. O livro baseia-setambm em converso religiosa e cultural, um dos mais importantes eixos de percepo de nossos tem-pos coloniais. Certamente prope a unificao da Cristandade para a integridade do mundo. Marcas docristianismo significando unidade e poder da expanso europeia tornaram-se signos de conquista. Isto um importante aspecto a explorar. O rei de verdade, cultivado e transformado no imaginrio, torna-se,nessas condies, uma possibilidade histrica, e o imperador francs a base concreta para um con-junto de gestos hericos. Como se sabe, aHistria do Imperador Carlos Magno uma novela tardiado sculo XVIII, assinada por Jeronymo Moreira de Carvalho29, e passa a ser um texto de fundao dacultura brasileira a partir de sua exploso editorial. Ele nos chega por diferentes verses impressas, queorganizam antecedentes medievais, e ainda contando com o alcance da verso espanhola de NicolasPiemonte. Continuou seu caminho entre ns e entre povos que receberam este legado ibrico.

    Numa pesquisa muito estimulante, tambm o norte-americano Stanley Robe evidenciou a presen-a das histrias de Carlos Magno atravs da Amrica e se referiu quantidade de edies deste livro:

    Charles Magne in America30. No caso do serto brasileiro, do Nordeste ou de outras regies isoladas,as histrias do rei ajustaram-se to bem que se uniram aos componentes principais da pica populardo cangao. H muitas razes, em termos antropolgicos e polticos, responsveis pela presena dessaespcie de ordem que evoca o mundo medieval, transmitida por nossa tradio oral, mesmo contandocom uma rpida transformao dos ambientes sociais.

    27 Em 2006, no Congresso ACLA Annual Meeting The Human and its Others Universidade de Princeton/EUA. Cf. aindaJerusa Pires Ferreira, Marcas Medievais Textos e Promessas,RevistaLgua e Meia,Feira de Santana/BA, (1): 64-69,jun. 2001/jul.2002.

    28 Mrio Vargas Llosa, El Combate Imaginario, Barcelona, Barral, 1972.

    29 Jeronymo Moreira de Carvalho, op. cit.

    30 Stanley Robe, Charles Magne in America, In: El Romancero Hoy, New Frontiers-Davis/Cat. Menndez Pidal, Madrid,1979.

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