Microsoft Word - Cecília da Pagu FINAL.docCecília Meireles: imagens
femininas*
Maria Lúcia Dal Farra**
Resumo
Ao traçar a trajetória da poeta Cecília Meireles, este artigo
evidencia sua capacidade de perscrutar as coisas existentes para
surpreender nelas o rasgo imperecível. Ao longo de sua obra, a
autora convulsiona a lógica discursiva, renomeia os seres,
transmuta-lhes os atributos, confundindo-os e encaminhando-os a um
caos que pede urgência na reordenação do que seria um novo mundo.
Palavras-chave: Mulheres Poetas, Literatura, Poesia, Cecília
Meireles.
* Recebido para publicação em maio de 2005, aceito em dezembro de
2005. ** Professora titular da Universidade Federal de Sergipe.
[email protected]
Cecília Meireles: imagens femininas
Abstract
Drawing the way of poet Cecilia Meireles, this article shows her
ability to scrutinize existing things in order to discover in them
the imperishable trait. Along her work, the poet revolutionizes
discursive logic, renames beings, changes their attributes,
confounding them and leading them to a chaos that demands urgency
in the reordering of what would be a new world.
Key Words: Women Poets, Literature, Brazilian Poetry,
Cecília Meireles.
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A Ecléa Bosi, que a visitou na casa do Cosme Velho
I. Vida e obra
Cecília Meireles viveu 63 anos e pertence à estirpe daquelas
mulheres que têm o privilégio de completarem um giro inteiro de
vida, um ciclo perfeito – imagem do uruboro mordendo a própria
cauda. Como Florbela Espanca e Clarice Lispector – a primeira, de
modo artificial, porque se suicidou; e a segunda em virtude de um
câncer – Cecília falece durante o seu inferno astral, pois que
deixa a existência terrena dois dias após a comemoração do seu
aniversário.
Tendo vindo, portanto, ao mundo, em 7 de novembro de 1901, no Rio
de Janeiro, nessa mesma cidade o deixa, em 9 de novembro de 1964. E
as circunstâncias adversas do seu nascimento, transmutadas por ela
em bens inigualáveis, demonstram desde o princípio o teor do seu
temperamento e a sua férrea vontade.
Nascida sob um signo a que nada faltaria para ser funesto, Cecília
reconhece, nesse infortúnio, o sinal ativo de forças que lhe serão
muito próprias, capazes de esclarecer o seu estar no mundo e a sua
especificidade existencial. Deveras. Três meses antes do seu
nascimento, seu pai, funcionário do Banco do Brasil, falece,
culminando, desse modo, o encadeamento das mortes dos três irmãos
mais velhos da menina. Todavia, a corrente de catástrofes não se
aplacava aí, pois que, três anos após o seu nascimento, é a vez da
mãe professora, que morre deixando a guarda da filha à avó materna,
Jacinta Garcia Benevides, por quem Cecília será criada e a cuja
memória dedicará, depois, em 1945, o belíssimo e pungente ciclo das
oito Elegias acopladas a Mar absoluto.
E é espantoso que Cecília afiançará, mais tarde, à posteridade, que
esse sentimento que tão cedo a impregnou, a noção de
“transitoriedade de tudo”, pois que está impressa na sua vida desde
logo ao nascer, tornou-se o fundamento mesmo da sua
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personalidade. E que, muito embora as mortes dos seus lhe tenham
oprimido e maltratado, acarretando muita dor e outros tantos
contratempos materiais, acabaram por lhe imprimir “uma tal
intimidade com a Morte”, que fez com que ela conhecesse desde cedo
e “docemente” – e é essa a palavra que ela usa! – as relações entre
o Efêmero e o Eterno, aprendizagem que, geralmente para os outros,
é muito penosa “e, por vezes, cheia de violência”.
Confessa ela, talvez por isso, que “em toda a vida, nunca me
esforcei por ganhar nem me espantei por perder” – o que atesta,
segundo creio, o alcance precoce de um desprendimento
extraordinário, de um nirvana invejável. Sua “infância de menina
sozinha” ofertou-lhe “duas coisas que parecem negativas” ao olhar
alheio, mas que, ao contrário, para Cecília, sempre foram muito
positivas: “a solidão e o silêncio”. De maneira que
Essa foi sempre a área da minha vida. Área mágica, onde os
caleidoscópios inventaram fabulosos mundos geométricos, onde os
relógios revelaram o segredo do seu mecanismo, e as bonecas o jogo
do seu olhar. (...) Foi ainda nessa área que apareceram um dia os
meus próprios livros, que não são mais do que o desenrolar natural
de uma vida encantada com todas as coisas, e mergulhada em solidão
e silêncio tanto quanto possível.1 A admirável mulher que nos
transmite tais palavras sofreria
ainda outro e outro infortúnios – maneiras que a vida certamente
encontrou para ir depurando e aperfeiçoando a têmpera do seu
caráter. Durante a primeira metade da década de trinta, Cecília
atravessará atribulações de um período de perseguição política mais
ou menos velada que, em verdade, tem início logo em 1929. Nessa
altura, a defesa brilhante da sua tese, intitulada O espírito
vitorioso, escrita para a obtenção da cátedra de Literatura na
Escola Normal do Distrito Federal, não será suficiente para 1
Entrevista de Cecília Meireles a Fagundes de Menezes (1953).
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impedir a arbitrariedade do júri, de modo que a poetisa se vê
preterida. Por ironia (e, certamente, por desagravo do destino), é
apreciando as mesmas questões pedagógicas que o seu trabalho
discutia, que o Diário de Notícias do Rio de Janeiro a contrata
como colunista durante os próximos quatro anos, quando então, já em
1934, Cecília será finalmente designada, pela Secretaria de
Educação, para dirigir o recém-fundado Centro Infantil no Pavilhão
Mourisco do Rio de Janeiro.
Nessa quadra, ela e o marido, o artista plástico Fernando Correia
Dias, com quem se casara em 1921, se empenham em transformar tal
espaço num universo encantado para as crianças, conseguindo desse
lugar uma acolhida prazeirosa para o maravilhamento dos pequenos e
a primeira biblioteca infantil da cidade. Mas as intrigas
políticas, que não a deixam em paz, desta feita levantam suspeita
sobre a legitimidade moral e educacional dos livros que compõem o
acervo, alegando que a biblioteca continha obras perniciosas para a
formação das crianças... De maneira que a biblioteca é fechada por
ordem de Getúlio Vargas. E é patético! Um dos exemplos sacados para
prova de acusação é a presença, nas estantes do espólio adquirido,
do volume As aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain – argumento que
desagrada e choca a cultura americana, e que alcança repercussão
negativa tanto nos Estados Unidos quanto nos meios intelectuais
brasileiros.
Além desse injusto e afrontoso golpe profissional, Cecília terá de
conseguir forças para suportar, em 19 de novembro de 1935, o
inesperado suicídio do marido, o penoso desgaste emocional e
afetivo decorrente dessa perda bem como a responsabilidade
financeira de manutenção da casa e da criação de suas três Marias:
Elvira, Matilde e Fernanda. É a partir de então que ela se
sobrecarrega de atividades: torna-se professora de Literatura
Luso-Brasileira e da disciplina de Técnica e Crítica Literária na
Universidade do Distrito Federal, ao mesmo tempo em que mantém uma
coluna sobre folclore no jornal A Manhã, outra, de crônicas
semanais, no Correio Paulistano, outra, de
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escritos regulares, n’A Nação, além de organizar a revista Travel
in Brazil. Para tanto muito lhe vale a sua aplicação nas línguas
que conhecia tão bem, a ponto de ter sido, pela vida afora,
excelente tradutora de Rilke, Virginia Woolf, Lorca, Tagore,
Maeterlinck, Anouilh, Ibsen, Pushkin, assim como de antologias da
literatura hebraica e de poetas de Israel, conhecedora que era
Cecília da língua inglesa, francesa, italiana, espanhola, alemã,
russa, hebraica e dos dialetos do grupo indo-irânico.
Por esse tempo, coisas bizarras passam a lhe ocorrer. Tendo sido
convidada para uma série de conferências na Universidade de Lisboa
e de Coimbra, Cecília seguira para Portugal com o marido Correia
Dias. Por meio do amigo açoriano Armando Cortes-Rodrigues, que ela
considerava sua alma-irmã e com o qual se corresponderia ainda por
longos anos, Cecília marca um encontro, em Lisboa, na Brasileira do
Chiado, com Fernando Pessoa – que, aliás, não aparece. Assim,
depois de aguardar, debalde e em vão, por duas horas seguidas o
escritor no célebre Café, Cecília topa, no hotel, com um recado de
Pessoa. Ele se desculpava, então, por não ter podido vê-la: Pessoa,
que era muito crédulo da astrologia, consultara o seu horóscopo
matinal que lhe desaconselhara por completo o encontro com Cecília
naquele dia. Em compensação, ele se incumbira de deixar para ela,
com o pedido de desculpas, um livro que lhe ofertava: nada mais
nada menos que Mensagem – o que torna muito provável que tenha sido
Cecília Meireles, no Brasil, a primeira leitora dessa única obra
publicada em vida por Pessoa.2
Outra coisa curiosa acontece ao final da desditosa década de
trinta. Apertada a meio de tantos encargos após a morte do
2 Apenas no Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras,
organizado por Nelly Novaes Coelho (2002:113-116), obtive esta
preciosa informação. Todavia, há alguns dados que me parecem
desencontrados na biografia de Cecília e de Pessoa, e que
necessitam ser precisados: Cecília teria ido para Portugal em
setembro de 1934; Mensagem teria aparecido em dezembro de 1934.
Teria Pessoa alguns exemplares já disponíveis na altura em que
Cecília está em Lisboa?
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marido, Cecília recebe uma carta de um desconhecido, que se
identifica como médium, e que lhe sugere a eliminação de uma das
letras do seu sobrenome, que ela assinava, então, Meirelles, com
duplo ele. O misterioso remetente insistia que a vida tornar- se-ia
mais leve para ela se extraísse do seu nome essa precisa consoante.
Cecília acede ao conselho do desconhecido e passa a assinar seu
sobrenome tal como o grafamos hoje: Meireles, com um único ele. E
não é que, espantosamente, a sua vida começa a tomar outro
rumo?
Cecília estreara, em 1919, com o livro de poemas Espectros, aliás,
muito bem recebido por João Ribeiro, que preconizara, para muito
breve a ela, “a reputação de poetisa, que de justiça lhe cabe” em
virtude do seu “talento” e das suas “qualidades poéticas”. Depois
disso, Cecília publicara Nunca mais... e Poema dos poemas, em 1923,
e Baladas para El-Rei, em 1925, ambos ilustrados pelo marido
Correia Dias. Em 1939, portanto, depois de todos os percalços que
narrei, dera à luz ao extraordinário Viagem que, embora sendo o
resultado da depuração das intemperanças sinistras dessa década,
parece trazer, ainda, a marca do tempo em que foi composto, pois
que vem para causar polêmica e mal- estares nos meios intelectuais
da Academia Brasileira de Letras. Olegário Mariano se indispõe com
a obra, enquanto Cassiano Ricardo a defende acirradamente – nesse
desencontro é muito provavelmente a questão do modernismo que está
em causa...
Após alongados debates, e malgrado o fato de Cecília ter-se
recusado a proferir o discurso que fizera, estropiado pelos cortes
sofridos pela censura prévia que não a poupara, o prêmio da
Academia lhe é, por fim, conferido. Aliás, depois da sua morte e
ainda outorgado pela mesma Academia Brasileira de Letras, lhe seria
destinado o Prêmio Machado de Assis.
Creio que também faz parte dessa fase benfazeja que agora se
inaugura, o convite que Nehru, Primeiro Ministro da Índia, lhe
endereçará em 1953, para que ela visite o seu país, quando Cecília
terá a oportunidade de receber uma alta homenagem: o título de
Doutor Honoris Causa pela Universidade de Delhi.
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Mas regressemos ao ano de 1940. Cecília viúva se casa com Heitor
Grillo e vai dar aulas na Universidade de Austin (Texas), viajando
pelos Estados Unidos e pelo México. Dedica-se, em seguida,
incansavelmente à sua obra, disciplinando-se num regime diário de
escrita e de trabalho poético que pode-se dizer monástico. E, ao
mesmo tempo em que publica obras primas como Vaga música (1942),
Mar absoluto (1945) e Retrato natural (1949), ela leva a cabo uma
extensa pesquisa cujos frutos só dará à luz, dez anos depois, em
1953. Trata-se do Romanceiro da Inconfidência, obra muito elogiada,
aliás, por Murilo Mendes.3 Além dessas, Cecília publicará ainda
outras primorosas peças: as Canções (1956), Metal rosicler (1960) e
Solombra (1963), o último de seus livros de poemas publicados em
vida.
Mas é a partir de 1940, dessa nova fase de sua vida, que Cecília
recomeça, também, a saga de viagens, deixando de tempos em tempos a
aprazível morada de Cosme Velho e a inflexível disciplina de
escrita, a fim de conhecer diferentes continentes, percorrendo, ao
longo da sua vida, países tais como a Argentina, o Uruguai, a
França, a Bélgica, a Holanda, a Índia, incluindo Goa, a Itália,
Porto Rico e Israel. Tal mapa palpilhado pouco a pouco no encalço
de conhecimento de seus povos não era para ela, todavia, simples
terras a viajar, mas culturas a serem decifradas, geografia e
história a serem apreendidas, experiências poéticas que redundaram
em obras que, embora sendo versos de itinerância, são, antes, pura
poesia contemplativa. Em verdade, os lugares visitados perfazem,
para Cecília, “retratos de uma grande pátria transcendente”, desejo
de abolição das linhas demarcatórias, terras que ela habita na sua
condição de “moradora de uma latitude própria”, ela que, naquilo
que escreve,
3 Cf. a apreciação de Murilo Mendes, “Romanceiro da Inconfidência”,
publicado em Vanguarda (Rio de Janeiro, 1953). Segundo crê Miguel
Sanches Neto, Cecília, fundando uma “nacionalidade intemporal”,
rende, nessa obra, homenagem ao ato de escrever, contrapondo a
escrita libertária e poética dos inconfidentes à escrita
burocrática e covarde dos funcionários e traidores. Cf. “Cecília
Meireles e o tempo inteiriço” (Secchin, 2001:XXI-LIX, vol. 1)
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exerce a condição de andarilha solitária e de exilada sem parada
fixa. (Cf. Sanches Neto, 2001) É o que emana da leitura dos Doze
Noturnos da Holanda (1952), dos Poemas escritos na Índia (1953),
dos Poemas italianos (1953), de Pistóia, cemitério militar
brasileiro (1955) e dos Poemas de viagens (1940-1964).
Julgo que o eixo de tais peregrinações se encontra prazeirosamente
na tão almejada visita à terra ancestral, a da avó Jacinta, os
Açores, lugar de sortilégios que, mesmo antes de lá Cecília pousar
os pés, já era de sobra sua terra prometida. Isso porque a tão
amada avó, que “sabia muitas coisas do folclore açoriano”, e que
“era muito mística, como todos os de S. Miguel”, foi quem lhe
ensinou tudo sobre sua terra natal, de que sentia tanta falta. Foi
a avó Jacinta quem a fez cantar os rimances típicos, quem a
instruiu nas parlendas do seu lugar – nos jogos infantis rimados,
beabá para a aprendizagem da poesia. De maneira que o seu gosto
pelo folclore peninsular e o conhecimento da cultura oral
portuguesa que, pouco a pouco, Cecília foi adquirindo a partir da
infância, e que lhe permitirá, por exemplo, escrever os versos de
Amor em Leonoreta (1951, retirado das narrativas de Amadis de
Gaula), consentindo aos críticos o equívoco de lhe atribuírem um
veio mais lusitano que brasileiro – advém justamente da ascendência
da cultura açoriana da avó sobre a futura poetisa. E tudo isso
amalgamado, como a própria Cecília assegura, à sabedoria que
recebera da “escura e obscura Pedrina”, sua pajem brasileira,
que
sabia muito do folclore do Brasil, e não só contava histórias, mas
dramatizava-as, cantava, dançava, e sabia adivinhações, cantigas,
fábulas, etc [e que] contava com a maior convicção histórias do
Saci e da Mula-sem-cabeça (que ela conhecia pessoalmente).4
4 São ainda testemunhos colhidos na citada entrevista à
Manchete.
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É dessa maneira que a menina que recebera de Olavo Bilac, aos nove
anos de idade, uma medalha de ouro confeccionada especialmente para
ela, e que estudara canto e violino, vai-se adentrando cada vez
mais nos domínios da cultura oral, portal que a encaminhará
definitivamente à literatura. E não apenas à poesia5, como também à
ficção6, ao teatro7, à crônica (1964a; 1967), à prosa poética
(1956; 1948; 1959), aos ensaios, às conferências8, aos livros
didáticos9 e às traduções.
II. Fortuna crítica: poeta ou poetisa?
Darcy Damasceno assegura que ela foi apresentada à literatura
brasileira, entre 1919 e 1927, por um grupo de escritores católicos
ligados às revistas Árvore Nova, Terra do Sol e Festa, jovens
congregados em torno de Tasso da Silveira e de Andrade Murici. Tais
revistas tinham como missão o programa de renovação das letras
brasileiras através do equilíbrio temático e do aparelhamento
métrico. Festa, a mais significativa delas, se sustentava sobre uma
tríade que, pode-se dizer, condensava o programa de todas elas:
pensamento filosófico, tradição e
5 Em cujo rol também se encontram poemas infantis, sobretudo Ou
isto ou aquilo (1964). 6 É o caso de Olhinhos de Gato, obra
publicada na Revista Ocidente, nºs 7 ao 23, Lisboa. 7 Remeto o
leitor para O menino atrasado (1966), A nau Catarineta (escrita
para teatro de marionetes em 1946), bem como para outras peças
inéditas: O ás de ouros, Sombras, O jardim, Oratório de Santa Maria
Egipcíaca. 8 São muitos os ensaios e as conferências, de modo que
destaco, dos primeiros, Notícia da poesia brasileira (1935), Poetas
novos de Portugal (1944) e Problemas da literatura infantil (1951).
Dos segundos, destaco: O folclore na literatura brasileira (1957),
A Bíblia na poesia brasileira (s/d) e Expressão feminina da poesia
na América (1959a). 9 Criança, meu amor (1924), livro adotado em
Minas Gerais e Pernambuco pelo Conselho Superior de Ensino; Rute e
Alberto (1945), adaptado para ensino do português; Rute e Alberto
resolveram ser turistas (1939), que compreende matéria de Ciências
Sociais.
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universalidade. É crível que a convivência com esse ideário possa
explicar, pelo menos inicialmente, o misticismo de Cecília, a
feição espiritualista de seus poemas, a adesão às fontes
tradicionais do lirismo luso-brasileiro e a admiração pelo
Simbolismo.
A partir desse patamar, a poesia de Cecília Meireles há de se
encaminhar para um certo barroquismo. A apreensão do mundo por meio
da sua inexorável mutação, a tentativa de eternizá-lo naquilo que
ele possui de perecível, o apelo ao elemento concreto na
representação da mais profunda intimidade ou do pensamento mais
abstrato, a pulsante acuidade perceptiva que se vale de toda a gama
sensorial para localizar as qualidades ocultas incrustadas no mundo
físico – são, segundo Damasceno, índices de tal concepção
literária. De maneira que interessam, à Cecília, a instabilidade da
fortuna, a mutabilidade e a precariedade do mundo, a variegada
espécie humana.
Assim, a sua capacidade de perscrutar as coisas existentes para
surpreender nelas o rasgo imperecível acaba por endereçá-la, ao
longo de sua obra, a um procedimento que convulsiona a lógica
discursiva, renomeia os seres, transmuta-lhes os atributos,
confundindo-os e encaminhando-os a um caos que pede urgência na
reordenação do que seria esse novo mundo. É sob a luz inaugural
oferecida às coisas por tal artífice que é Cecília, que as coisas
voltam a nascer. (cf. Damasceno, 1983).
Provavelmente, é a tal procedimento indicado por Damasceno que
Menotti Del Picchia se atém quando chama a nossa atenção para o
prodígio de levitação que a poesia de Cecília Meireles executa, na
medida em que se situa na linha demarcatória entre consciente
objetivo e subconsciente lírico, místico e imaterial, dando margem
a uma ausência de explicações lógicas. Menotti acha que é por essa
via de instabilidade entre os dois universos que Cecília torna
explicável o surrealismo, semeando múltiplas ressonâncias na alma,
oferecendo um sentido que transcende a evocação poética, criando,
pois, uma “vaga música”. (cf. Del Picchia, 1942)
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E é nessa musicalidade que Moreira da Fonseca constata o talento da
poesia de Cecília, visto que, através do trabalho sonoro, ela
diluiria o poema numa atmosfera que provoca uma contínua mescla
entre imagens, idéias e pensamentos, amalgamando-os numa “fluência
quase inconsútil”. (Fonseca, 1957) Impressiona a variedade formal
de que Cecília se apropria para imprimir tal fluência, a ponto de
Osmar Pimentel concluir que ela abrange praticamente a expressão de
todos os ritmos líricos importantes. (Pimentel, 1943) Portanto,
“ecletismo” seria a palavra-chave para tantas qualidades poéticas,
o que de nada lhe valeria se Cecília não contasse com o seu
“misterioso acerto”, o qual Mário de Andrade (s/d) considera um dom
especial, um “dom raro”.
Pois bem. Queria fazer notar, quando trago para aqui essas rápidas
pinceladas da crítica a respeito da obra de Cecília Meireles, que,
bizarramente, a autora à qual tais estudiosos se referem também se
situa, tal como se concebe a sua poesia, ao nível das abstrações.
Cecília Meireles é, de uma maneira geral, nomeada não como mulher,
mas como “poeta”, como “a poeta” e até mesmo como “o poeta”. Este
último tratamento, ele todo em masculino, é-lhe conferido por uma
mulher, Eliane Zagury, estudiosa aplicada da biografia e da obra de
Cecília, autora do livro Cecília Meireles (1973) – uma das obras
pioneiras dedicadas à poetisa.
Ora, a história desse tratamento masculino concernente a uma mulher
tem um longo e questionável desenvolvimento. Observe-se o contexto
em que Cecília se encontrava no início do século XX. Foi por essa
altura que a poesia passou a ser praticada assiduamente por
mulheres que, para tal, se reuniam em salões para trocarem
experiências poéticas, incluída que fora a poesia entre as prendas
femininas tais como bordar, tocar piano, pintar e costurar.
Tal deslocamento dos objetivos estéticos não passou despercebido
aos críticos de plantão que viram aí alegre e ridículo motivo para
chacota. Por ter atingido, assim, a zona do trivial, a poesia não
escapou ao preconceito e ao azedume dos
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comentaristas literários da época que chegaram a ver, nas poetisas,
extraordinária semelhança... até mesmo com (sic!) os cogumelos! E
cito um infeliz mas jocoso dito a respeito, com o qual topei na
Revista Portuguesa de 9 de junho de 1923, e que sai da boca de um
tal Dias-Sancho. Para ele, os cogumelos,
além de se reproduzirem prodigiosamente, usam chapéu, como elas [as
poetisas], e se há alguns saborosos e suculentos, outros há,
todavia, que envenenam perigosamente... Mas se as poetisas se
levantam até a vitrine das livrarias,
considera ele, então a culpa é dos “críticos e jornalistas”, que
procuram convencer os leitores de que a “carolice de banalidades”,
picante para os “serões com os primos”, e brilhante para os “álbuns
de praias”, tem extremas sutilezas... As poetisas da época usam,
segundo Dias-Sancho, o verso para tudo: para confessar
“sortilégios” de amores, para reclamar das “contas da modista”,
para entender a “complicada psicologia das suas cozinheiras”, para
compor um “manual de namorados”, para transpor em “valsas” os
beijos e as alongadas horas de espera...
Esta é a situação em Portugal; mas não é menos diferente do que
ocorre nos salões literários do Brasil. Como se pode constatar
acompanhando o arrazoado desse comentarista, o vocábulo “poetisa”
passara, por essa época, a designar, pejorativamente, a
pequeno-burguesa que escrevia poemas para entreter aos outros e a
si mesma, levando as poesias a que figurassem como passatempo lido
em voz alta nas tediosas consoadas ou no convívio açucarado dos
salões de chá. E tanto é assim mesmo, no Brasil, que a própria
Cecília Meireles, numa entrevista para A Gazeta de São Paulo,
declara que tem a impressão
de que se trata a mulher poetisa apenas como uma dilettante.
Considera-se que o poeta tem sempre coisas a dizer, mas a poetisa,
não. Em geral, o homem costuma
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segregar a mulher que escreve, que é, por assim dizer, uma mulher
prendada. Dizem os homens que a poesia na mulher é uma habilidade.
[Mas] (...) a mulher também tem o que dizer. Tal como o homem,
também tem uma experiência humana. (A Gazeta, São Paulo, 28 de
novembro de 1953). E, num outro texto, a conferência proferida por
Cecília, a
“Expressão feminina da poesia na América” (1959a), ela vai explicar
que “o espírito – e a arte que é uma de suas manifestações – talvez
seja essencialmente andrógino”. Embora seja, pois, “andrógino” o
espírito que anima a arte, como, durante o transcorrer da História,
as condições sociais separaram o homem e a mulher em campos muito
específicos, é natural que a arte de cada um tivesse sofrido
contornos diferenciados. A mulher foi posta em reclusão, ignorante
do mundo, “guardiã da casa e dos filhos”. Ela atravessou “os tempos
em cativeiro ou no sacrário, quase incomunicável, como os
prisioneiros e os deuses”. Todavia, as suas “faculdades de alma”
jamais deixaram de palpitar sob tais muros ou prisões,
instintivamente suprindo a carência da eventualidade de uma cultura
formal. Além disso, considera Cecília, a mulher desempenhou sempre
um papel preponderante na transmissão da arte oral, sempre a seu
alcance, a ponto de ela mesma ter-se convertido num “livro vivo e
emocionante”, depositária de “todos os ensinamentos morais e
práticos retidos permanentemente pela memória”.
Num tempo como o de hoje, argumenta ela, em que tudo lhe passa a
ser permitido, a mulher abandona essa cidadela e descobre os
recursos ilimitados de que dispõe. Ela expõe, assim, as “aptidões
enormes para o ritmo, a rima, a invenção imaginativa, o jogo de
imagens – que constituem quase toda a disciplina poética”. Egressa
de um universo e de uma poesia quase essencialmente doméstica, a
mulher, tematiza Cecília, tem alcançado, no domínio literário,
experiências idênticas à do homem, realizando-se na poesia com a
mesma naturalidade que o homem, com a diferença de que chega a isso
por caminhos
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diversos do dele. Assim, é urgente constatar que, sob a arquitetura
das composições femininas, há uma elaboração do espírito, “uma
inquietação e uma investigação de caminhos interiores” – diz ela –
uma forma específica de conhecimento, que não é nem científico e
nem filosófico, mas poético. Claro está que “Não se pode dizer
(...) que isso [o conhecimento poético] seja um privilégio de
mulher; é um privilégio dos verdadeiros poetas, apenas”.
A mulher chegou, portanto, a tal estágio, como conclui alegremente
Cecília, malgrado aquela “tortilha” reclamada pelo poeta satírico
que, ao considerar inexpressiva a beleza de sua mulher, aceita,
como compensação, que ela faça bons versos, muito embora ele
prefira verdadeiramente dela que faça – isso sim! – boas
tortilhas...
A propósito das discussões encetadas aqui e retomando a questão do
tratamento de gênero dado pela crítica à Cecília, acho que é
preciso que se atente para o seguinte: está mais do que na hora de
recuperarmos a acepção original do vocábulo “poetisa”, visto que a
nossa língua guarda este feminino para o masculino “poeta”, porque,
a meu ver, chamar poeta a uma poetisa é incorrer num escorregão
ideológico de que Natália Correia se deu conta já há muitos anos,
quando nos lembrou que “A homenagem que distingue o gênio poético
feminino com o prêmio de lhe masculinizar o estro, ultraja uma
poesia que quer feminizar o mundo com a magia da sua claridade
lunar”. (Correia, 1981)
Por outro lado, é possível supor que, no caso de Cecília, o fato de
sua poesia falar, muitas vezes, a partir de um ponto de vista
universalista, evitando o uso da acepção de gênero que cabe de
nascença à sua autora; o fato de sua obra, de uma maneira geral,
praticar uma espécie de “estética da ascese”, de “escalada para o
sublime”, de “ponte para o elevado”, nas palavras de Sanches Neto –
podem explicar tal estado de coisas. É de se cogitar, pois, que
tais procedimentos poéticos concorreram substancialmente para que
Cecília fosse vista de maneira neutral a que, de certeza, o
masculino “poeta” podia representar com mais propriedade. Além do
mais, a sua contigüidade espacial e
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temporal com uma poesia de extração fortemente feminina – como é a
de Gilka Machado ou, como é o caso menos pronunciado de Adalgisa
Néri, mas igualmente envolvente – deve ter favorecido para conferir
a uma o epíteto de “poeta” e às outras o epíteto de
“poetisa”.
Trago para aqui, para confirmar tais hipóteses, o parecer de Nuno
de Sampaio, quando comenta o êxtase presente na obra de Cecília,
que ele qualifica de “místico”, aproximando-o a uma tradição muito
mais européia que brasileira. No caso de ser oriundo do Brasil, em
tal êxtase imperaria, segundo ele, uma sensualidade tropical –
coisa que não ocorre com Cecília. Sublinhando, pois, a diferença
lírica de Cecília, ele assegura, por fim, que a
sua poesia transfiguradora e sobrenatural acerca-se mais do cunho
de qualquer poeta nórdico que da sensualidade tropical da também
brasileira Adalgisa Neri, outra grande poetisa: esta ama cada
forma, tudo que toca, tudo que acaricia; cada coisa lhe diz:
“Adalgisa!”, o que nunca aconteceria a Cecília Meireles, pois se
uma acaricia e permanece (tropicalismo indolente e sensual), a
outra reduz e ascende (atavismo europeu que Cecília constantemente
relembra). (Sampaio, 1949) Este é apenas um dos casos de apreensão
neutral e isenta
de sexo da obra ceciliana; mas há toda uma linhagem crítica que
permite essa interpretação. Observem os exemplos: sua poesia contém
uma “graça aérea”, sustentando-se como uma poética “das alturas”,
como o quer Manuel Bandeira (s/d); sua poesia freqüenta a “região
das terras altas”, mais perto das nuvens que da cidade dos homens
lá em baixo, como o quer José Paulo Paes (Paes, 1997); sua poesia
levanta uma obra intemporal, paradoxalmente atual e inatual, como o
quer Carpeaux (1960:203- 209); sua poesia cultua a beleza imaterial
e prefere a abstração e o desapego pelo ambiente real, como o quer
Paulo Rónai (s/d); sua poesia exala uma “veemente austeridade”,
como o quer Darcy
Maria Lúcia Dal Farra
349
Damasceno (1983); a temática da ausência (metáfora da sombra)
enquanto afirmação de uma presença que se foi é constante em
“Solombra”, último livro de Cecília, na abordagem de Alfredo
Bosi.10 Como se constata, tais qualificações trabalham, direta ou
indiretamente, para o atestado de uma poética que o neutro “poeta”
provavelmente represente a contento, muito embora essa diafaneidade
apontada seja mais pertença dos históricos atributos concernente à
mulher mariana que ao homem...
Numa das últimas amostragens dessa mesma tradição crítica, e muito
mais explicitamente, Sanches Neto considera, no prefácio à edição
comemorativa dos cem anos da poetisa, que a experiência humana de
Cecília está conjugada a uma visão espiritual do mundo. Assim, ela
teria preferido ser “um patrimônio da língua portuguesa”,
impedindo, desse modo, a compartimentação de si e da sua obra entre
masculino e feminino. A sua marca seria antes a de “poeta” que de
“mulher-poeta”:
O sujeito masculino é usado para representar a universalidade de
sua voz e não para negar o olhar feminino, que aparecerá em vários
poemas da autora. Esta irmandade com tudo a leva a uma concepção do
poeta fora da categoria de gênero, não a colocando no centro de sua
poesia. A mulher, para Cecília, não era uma categoria biológica,
assim como a poesia não era apenas estrutura de linguagem ou um
documento do tempo presente, e sim um objeto dotado de
universalismo. Evitando cultuar a diferença, ela privilegiou antes
a comunhão mística de tempos, espaços, vozes e estilos. Considero
tal argumento muito bem dosado, além de ser
emitido com muita precaução e sensatez. De fato, há um olhar
feminino em muitos dos poemas da autora, em que ela própria
se
10 Cf. Cecília Meireles: a música ausente. Suplemento literário de
O Estado de São Paulo 9, 418. São Paulo, 10 de fevereiro de 1965:4;
cf também Bosi, 1973:38 e 1978:512-515.
Cecília Meireles: imagens femininas
350
identifica como mulher; há também poemas em que ela trata de
mulheres; e há também outros poemas em que ela se serve do
masculino para fazer prevalecer uma visão universal.
Todavia, queria apenas observar que aquilo que Sanches Neto
privilegia para explicar, em Cecília, a ausência de diferença
sexual, é o que sublinha, a meu ver, uma pronunciada diferença de
gênero – e é aí que seu argumento não me convence. Porque isso que
ele chama, na citação acima, de “irmandade com tudo”, de “comunhão
mística de tempos, espaços, vozes e estilos” e que leva a “uma
concepção de poeta fora da categoria de gênero” – é, sem sombra de
dúvida, uma propriedade essencialmente feminina. É, culturalmente,
e até biologicamente, uma categoria muito mais próxima das
atribuições femininas que masculinas.
Relembro que, na mítica universal, é a mulher que une e o homem que
separa; é a mulher que indiferencia e o homem que discerne. O
indiferenciado primordial tem status feminino, enquanto a ordem, a
organização do caos, o trabalho de nomeação e consequente
diferenciação das coisas é culturalmente masculino. A imagem
primordial do universo é a do útero primevo, onde todas as coisas
se encontravam interligadas em perfeita consonância e aliança. Esta
é a acepção da ânima primordial: a de espaço comunitário que
acolhe, ligando, a imensa variedade das coisas, maternidade bojuda
e visceral – útero, coisa de mulher. É a força maternal que
empreende a reunificação e que transforma o corpo em espaço
coletivo e pleno.
Se essa é a característica principal da poesia de Cecília, então
pode-se dizer que a sua poesia é de mulher. De fato, na apreciação
de Murilo Mendes sobre Cecília, ele a trata por “poetisa”,
justificando (e isso porque, muito provavelmente, está dialogando
com posições antagonistas do seu contexto histórico) que esse
“título” é o que parece a ele o “mais adequado a uma mulher”.
Também Moreira da Fonseca insiste em vê-la como mulher. Para
esclarecer seu ponto-de-vista, informo que ele crê que uma das
excepcionalidades de Cecília seja justamente
Maria Lúcia Dal Farra
351
a construção, retifiquemos, a composição de uma poesia densamente
feminina, não apenas a poesia feita por alguém que é mulher, mas
obra de mulher, com um sem- número de perspectivas sobre as coisas,
que os homens não teriam, poesia na qual uma das grandes forças é a
delicadeza, e delicadeza de poeta, que transfigura a vida em canto.
E para encerrar a análise de tais perspectivas, cito, aqui, o
parecer de Gaspar Simões, de todos o mais bizarro: Nada sensual na
sua expressão, pelo menos sem sensualidade à flor da pele, muito
mais intelectual do que qualquer outra escritora da nossa língua,
Cecília Meireles, que, lida à portuguesa, sobretudo desde que os
seus versos adotaram metros clássicos tratados à moderna – a rima
branca e o ritmo surdo – parece sem sexo, desprendida de corpo e
alma do que no corpo e na alma é frêmito terreno – lida à
brasileira, logo ganha corpo e alma, corpo e alma de mulher, tão
muscularmente carnal, no fim de contas é a música dos seus versos.
Assim, segundo Gaspar Simões, a diferença de sexo
apresentada por Cecília depende (sic!) da tradição literária e
sonora em que se lêem os seus versos... À portuguesa, Cecília não
teria sexo; lida à brasileira, Cecília seria... mulher!
III. A poetisa e seus rostos femininos
Cecília Meireles é contemporânea de Gilka Machado (1893- 1980) e de
Adalgisa Nery (1905-1980), sendo, ao mesmo tempo, contemporânea da
portuguesa Florbela Espanca (1894-1930).11 Cecília e Gilka foram as
duas únicas mulheres ligadas à revista
11 A partir daqui retomo, para dialogar com elas e ultrapassá-las,
algumas idéias já expostas num outro estudo meu. (Dal Farra,
2000)
Cecília Meireles: imagens femininas
352
Festa, a que já me referi, fundada em 1927 por Tasso da Silveira e
por Andrade Muricy. Também Cecília enceta a sua vida literária no
mesmo tempo em que o fizeram Gilka e Florbela, visto que Espectros
data de 1919, assim como o Livro de Mágoas de Florbela. Gilka
estreara em 1915 com Cristais partidos, a que se seguiriam Estados
de alma (1917) e Mulher nua (1922). Adalgisa editaria a sua
primeira obra em versos apenas em 1937, anos após a morte do marido
Ismael Nery, obra intitulada Poemas, portanto, mais perto do tempo
em que Cecília publicaria Viagem, que é de 1938, editada em
1939.
Contrariamente à poesia de Florbela, de Gilka e de Adalgisa, a de
Cecília Meireles nunca teve a pretensão de erguer a bandeira da
mulher como sua causa, o que, todavia, não impediu que a sua obra
primasse em tudo por aquilo que se entende por feminilidade: pela
delicadeza dos temas, pela musicalidade e pelas nuances rítmicas,
pela leveza de traços e sobretudo pela suave ambiência que perpassa
o seu lirismo personalíssimo, quase sempre de inspiração popular e
folclórica. Mas isso não quer dizer que o olhar sobre a condição
feminina esteja ausente dos seus versos.
É possível, segundo creio, apontar algumas zonas privilegiadas a
partir das quais emerge a questão da mulher nessa obra. A meu ver,
são, em Cecília, os objetos especulares, tais como o “espelho” e o
“retrato” (que se desdobram em “desenhos”, em “canções”, em
“inscrições”, etc) que auxiliam a eclodir nela o fervilhamento
daquilo que a endereça ao âmbito das inquietações concernentes ao
feminino. Aliás, lembro que o seu livro de poemas de 1949 ostenta
justamente esse título sintomático: Retrato natural.
Num de seus mais célebres poemas, “Retrato”, pertença de Viagem, a
perscrutação da própria imagem leva à constatação de profundas
mudanças perpetradas em sua pessoa e que sequer foram pressentidas
pela poetisa. O eixo do poema é sem dúvida psicológico e afetivo,
mas há nele uma chave de ouro tão veemente que, a meu ver, chega a
introduzir uma outra ótica – a
Maria Lúcia Dal Farra
353
da passagem da vida enquanto perda de faces, de imagens, enquanto
desdobramentos de identidades, característica que remete
inevitavelmente ao feminino. Diz o poema12:
Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim
magro nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo. Eu não tinha
estas mãos sem força, tão paradas e frias e mortas; eu não tinha
este coração que nem se mostra. Eu não dei por esta mudança, tão
simples, tão certa, tão fácil: - Em que espelho ficou perdida a
minha face? (p.232) O poema, que se nomeia “retrato”, desemboca,
afinal, no
“espelho”, quase que promovendo, como se vê, uma igualdade, uma
equiparação entre os dois objetos, esses dois modos de se enxergar,
de se auto-perscrutar, visto que ambos são, por assim dizer,
reflexivos. E, no caso desta peça, a imagem que a poetisa conhecia
de si mesma está perdida, embutida no fundo de um espelho
desbaratado pelo tempo, espelho que também não se pode localizar,
de maneira que o retrato mostra apenas a outra face, a que restou,
e que é a presente, porém desconhecida e fonte de grande
estranhamento. De qualquer forma, este poema de Cecília, malgrado
enfoque o tempo transformador e inexorável, a mudança sem remissão,
aponta, ao mesmo tempo, para o desmembramento, para a
transfiguração, para o desdobramento de rostos.
12 Cada um dos poemas se encontra identificado pelas respectivas
páginas em que comparece na citada edição de Poesia Completa
(2001), situadas entre parênteses, logo após a transcrição de
trechos ou de todo o poema em pauta.
Cecília Meireles: imagens femininas
354
Se nele tratava-se de procurar reconhecer, inutilmente, uma face
perdida, já num outro, intitulado “Auto-retrato”, pertença de Mar
absoluto, Cecília busca analisar-se, olhando-se e observando- se,
muito embora longe de se compreender ao certo. E eis que, por fim,
ela acaba por se dar conta de que, embora una, é, na verdade,
muitas. De maneira que o seu “perfeito acabamento” seria este: ser
múltipla e una em cada momento que lhe é, ao mesmo tempo, próprio e
alheio. Cito dois trechos desse extenso poema:
Se me contemplo, tantas me vejo, que não entendo quem sou, no tempo
do pensamento. (...) Múltipla, venço este tormento do mundo eterno
que em mim carrego: e, una, contemplo o jogo inquieto em que
padeço. (pp.456-459) A citada peça versa sobre a identidade dessa
mulher que se
contempla ao espelho e que procura narrar o que vê de si mesma,
devassando a sua intimidade conturbada.
A crer nestes dois exemplares poemas, a questão da identidade
feminina parece, em princípio, manifestar-se em Cecília, de maneira
puramente simbólica. Ou seja: o seu “eu”, como se pode constatar
também em muitas outras peças, parece se colocar como reduto de
toda a humanidade, recolhendo as vidas eternas que, em si, têm
necessidade de se expressar ou que vêem nele o representante da sua
espécie – daí a tal dimensão universalizante que os críticos
sublinham em sua obra. Observe-se
Maria Lúcia Dal Farra
355
o caso do poema intitulado “Compromisso”, que me parece ser mais
apropriado para esclarecer tal simbólica.
Nessa peça, Cecília refere o “secular compromisso” dos seus braços,
cujo trabalho é uma obrigação “sobrenatural”, visto que seus
antepassados querem que ela efetue, por eles, aquilo que eles não
conseguiram, solicitando, os irrealizados, que ela viva e cumpra,
por eles, a sina que não puderam levar adiante. Assim, Cecília
acaba por descobrir no seu ser solitário uma perfeita “assembléia”,
ao mesmo tempo em que se levanta como condutora do seu povo, a ele
se entregando. Conclui, portanto, ela, em “Compromisso”, que
vive
por homens e mulheres de outras idades, de outros lugares, com
outras falas. Que vive “por infantes e velhinhos trêmulos”; vive
por
“gente do mar e da terra”, vive por “gente suada, salgada,
hirsuta”, vive por “gente de névoa”. E assegura, então:
Esta sou eu – a inúmera. Que tem de ser pagã como as árvores e,
como um druida, mística. (pp.461-463) Se tais poemas, bem como
outros tantos, pendem para uma
explicação simbólica da divisão de pessoa ou da multiplicação dela,
visto que Cecília representa as ansiedades e aspirações de toda uma
“gente”, é preciso notar que esse ser chamado a tornar- se o
catalisador da espécie, essa “inúmera”, é... uma mulher.
Já nesse estágio representado pelo poema “Compromisso”, se exige
dela muito mais do que ser apenas paradoxal, tal como no anterior
poema “Auto-retrato”. Aqui, o seu “povo” pede a ela que encarne a
própria contradição, ou seja, que ela se transforme naquela que,
sendo uma, é, ao mesmo tempo, todos.
Esta “inúmera” tem, pois, o “rosto vário”, como se diz no belíssimo
“Inscrição” de Mar absoluto. E com um adendo: além
Cecília Meireles: imagens femininas
356
de encontrar-se nesse estado de oxímoro, Cecília também se acha,
neste próximo poema, em situação de entrelugar. Cito-o:
Sou entre flor e nuvem, estrela e mar. Por que havemos de ser
unicamente humanos, limitados em chorar? Não encontro caminhos
fáceis de andar. Meu rosto vário desorienta as firmes pedras que
não sabem de água e de ar. E por isso levito. É bom deixar um pouco
de ternura e encanto indiferente de herança, em cada lugar. Rastro
de flor e estrela, nuvem e mar. Meu destino é mais longe e meu
passo mais rápido: a sombra é que vai devagar. (pp.543-544) Cecília
está, como se vê, entre uma e outra coisa,
transfigurada, já agora, em ser intervalar que, por essa razão,
obtém a capacidade de levitar e de deixar heranças por tudo. É como
se seu ser repartido fosse alimento para o mundo, rastro de todas
as coisas; mas há, todavia, um grande descompasso interno nessa
pessoa que consegue tal prodígio: seu andar segue rápido, mas sua
sombra vai devagar.
Sem refutar, portanto, a face simbólica dos poemas em pauta, e que
é óbvia dentro do contexto ceciliano, gostaria de lembrar que esse
desgoverno, esse desconcerto, esse descompasso, esse entrelugar que
o sujeito poético padece em tais obras, pertencem culturalmente à
esfera do feminino. Quanto mais não seja, integram esse estado de
desordem aquilo que é obscuro e tenebroso, bem como os valores do
noturno e do desenfreado, que se contrapõem, na cultura ocidental,
ao equilíbrio, à perfeição e à ordem, representados pelo domínio
do
Maria Lúcia Dal Farra
357
masculino. Portanto, apenas uma expressão poética de índole
culturalmente feminina seria capaz de se representar assim dividida
e dilacerada. E, neste caso, o sujeito poético que o exprime é,
coincidentemente, uma mulher.
Num poema de Retrato natural, o “Tempo viajado” (pp.616- 617),
Cecília está à procura do seu rosto por retratos, agora em processo
de decomposição ou de destroços, porque se trata de retratos
rasgados – na busca de poder se recompor. Tal estágio de
itinerância é difícil e doloroso – penoso, sofrido – mas tem, de
certeza, a sua contrapartida: inversamente “As doces uvas sabem a
enxofre”, cogita ela. Pois bem: nessa viagem por dentro de tais
estraçalhamentos, Cecília por fim se levanta, conseguindo emergir,
ascender de tal estado ruinoso. Porém, constata, malgrado estar de
pé, se achar “toda em pedaços”. Mesmo assim – e essa é a grande
lição do poema! – prossegue com sua voz. É preciso, pois,
continuar, a qualquer custo, o seu canto. É urgente cantar!
Esta é a mesma aprendizagem colhida por Cecília no extraordinário
“Desenho” de Mar absoluto, poema que comporta tanto da sua
auto-biografia:
Fui morena e magrinha como qualquer polinésia, e comia mamão, e
mirava a flor da goiaba. E as lagartixas me espiavam, entre os
tijolos e as trepadeiras, e as teias de aranha nas minhas árvores
se entrelaçavam. Isso era num lugar de sol e nuvens brancas, onde
as rolas, à tarde, soluçavam mui saudosas... O eco, burlão, de
pedra em pedra ia saltando, entre vastas mangueiras que choviam
ruivas horas. Os pavões caminhavam tão naturais por meu caminho, e
os pombos tão felizes se alimentavam pelas escadas, que era
desnecessário crescer, pensar, escrever poemas, pois a vida
completa e bela e terna ali já estava. Como a chuva caía das
grossas nuvens, perfumosa! E o papagaio como ficava sonolento! O
relógio era festa de ouro; e os gatos enigmáticos fechavam os
olhos, quando queriam caçar o tempo.
Cecília Meireles: imagens femininas
358
Vinham morcegos, à noite, picar os sapotis maduros, e os grandes
cães ladravam como nas noites do Império. Mariposas, jasmins,
tinhorões, vaga-lumes moravam nos jardins sussurrantes e eternos. E
minha avó cantava e cosia. Cantava canções de mar e de arvoredo, em
língua antiga. E eu sempre acreditei que havia música em seus dedos
e palavras de amor em minha roupa escritas. Minha vida começa num
vergel colorido, por onde as noites eram só de luar e estrelas.
Levai-me aonde quiserdes! – aprendi com as primaveras a deixar-me
cortar e a voltar sempre inteira. (pp.523-524) Nesse extenso e tão
comovente poema em que Cecília
enfoca a sua saudosa e tão feliz infância ao lado da avó, ela o
encerra, como se vê, sem temer a presença adversa de quaisquer
esfacelamentos. O que quer dizer: embora tudo seja adverso, o canto
deve prosseguir.
Assim, se tento elaborar o percurso daquele rosto inicial que venho
seguindo, daquele rosto que tem dificuldade em se reconhecer, e
que, pouco a pouco, vai se transformando em vários, em muitos, em
inúmeros, num flagrante processo de fragmentação (porque é de
“corte” que se fala) – veremos, então, que muito embora esse rosto
corra o risco de tornar-se ruptura e frangalhos, a poetisa reage na
certeza da recomposição perene e cíclica, porque exorta as forças
primordiais da sua identidade vital. Contra esse desgaste do tempo,
da vida, da própria condição da mulher emissora, as lembranças
revividas e atualizadas neste “Desenho” são bens inigualáveis e
perenes, tesouros que alimentam a continuidade de existência,
nutrientes que hão de sempre recompor sua voz e sustentar o seu
canto.
Em lugar de elegia, pois, a poética de Cecília, atravessando as
adversidades do feminino, desemboca num poema de júbilo e de
encantamento, porque a quebra, a ruptura, o esfacelamento não a
vencem. Ao contrário, como a força mítica da natureza, a
Maria Lúcia Dal Farra
359
invocação da primavera é capaz de suplantar o terrível e penoso
inverno.
E não será este o histórico magistério feminino? – pergunto. O de
se deixar cortar e voltar sempre inteira?
Num duplo soneto intitulado “A Mulher”, também a Florbela jovem
apelava, em 1916, para o altruísmo, solicitando à mulher, que
também ela concebe em estado de oxímoro – pois que, para ela, é
“fraca” e é “forte” simultaneamente – que esmague o coração dentro
do peito e o impeça de doer. Que seja, enfim, sempre Vênus em
Marte; que saiba fingir quando
em teu peito A tua alma se estorce amargurada! (Dal Farra,
1996:52-53) A lição é, sem dúvida, extraordinária. Mas é bom que
não
passe despercebido que tais apelos heróicos feitos às mulheres são
certamente resquícios da ideologia do “fiat Maria”, também agregado
biblicamente à imagem feminina. É bom de lembrar que a simbólica
mãe de Cristo é sinônimo de abnegação, desprendimento, renúncia,
generosidade e modéstia, atribuições legadas à mulher durante toda
a História Ocidental. (Aubert, 1975)
Todavia, há, em Cecília uma crítica, ao menos implícita, a esse
altruísmo feminino, reparo que, a meu ver, se alberga na mítica da
sereia, uma de suas tópicas. Num poema de Viagem, intitulado
precisamente “Sereia”, Cecília aproxima a mulher à sereia, ao
canto, ao luar, à solidão e à ambiência noturna, valores que se
manifestam, pois, como femininos. Assim,
Linda é a mulher e o seu canto, ambos guardados no luar. Seus olhos
doces de pranto - quem os pudera enxugar
diz a primeira estrofe. Todavia, esta mulher, que é a sereia – logo
se saberá – é aquela que canta enquanto chora. No transcorrer
do
Cecília Meireles: imagens femininas
360
poema, vê-se que ela canta para expressar seus pesares; porém, ao
emiti-los tão lindamente nesse canto, ela salva o mundo.
Entretanto, de tanto cantar – tal como a cigarra – ela se exaure.
Ou seja: o mesmo canto com que ela ajuda o mundo a sonhar é aquele
que a mata. Cito a última estrofe:
A mulher do canto lindo ajuda o mundo a sonhar, com o canto que a
vai matando, ai! E morrerá de cantar. (pp.279-280) Este poema
parece explicar, pois, qual é o destino do canto
que os anteriores poemas exortavam. E esse destino é funesto: a
morte. Se, de fato, uma das encarnações do feminino em Cecília
Meireles parece ser, pois, a sereia, não posso deixar de concluir
que, através dessa emblemática, a mulher perfaz, nesta obra, um
trágico circuito. Ela é aquele ser indulgente e magnânimo, capaz de
transformar a dor em música para dar alma e enlevo ao mundo;
todavia, enquanto executa sua heróica missão tutelar, acaba
morrendo em nome desta.
Retornemos agora ao “espelho”. Já nesta peça de Mar absoluto, que
tem inicialmente por título “Mulher ao espelho”, Cecília usa o
objeto especular para experimentar diversos estereótipos femininos.
Assim, ela passará tanto por aqueles de origem literária, como é o
caso da Margarida de Goethe e da Beatriz de Dante, quanto por
aqueles de vertente mística, como é o caso de Maria e de Madalena.
E o que ela constata no interior desses modelos é que a todos se
exigiu um tipo específico de comportamento que os moldou contra a
sua própria vontade, sacrifício que, em contrapartida, lhes deu um
privilégio: o de falar com Deus. Ou seja: a imolação terrena tem a
sua compensação celestial:
Hoje que seja esta ou aquela, pouco me importa.
Maria Lúcia Dal Farra
361
Quero apenas parecer bela, pois, seja qual for, estou morta. Já fui
loura, já fui morena, já fui Margarida e Beatriz. Já fui Maria e
Madalena. Só não pude ser como quis. Que mal faz, esta cor fingida
do meu cabelo, e do meu rosto, se tudo é tinta: o mundo, a vida, o
contentamento, o desgosto? Por fora, serei como queira a moda, que
me vai matando. Que me levem pele e caveira ao nada, não me importa
quando. Mas quem viu, tão dilacerados, olhos, braços e sonhos seus,
e morreu pelos seus pecados, falará com Deus. Falará, coberta de
luzes, do alto penteado ao rubro artelho. Porque uns expiram sobre
cruzes, outros, buscando-se no espelho. (pp.533-534) Muito embora
se considere, aqui, que tudo é fortuito e
passageiro, que tudo é “tinta”, a obsessiva e infindável procura do
rosto no espelho e a sensação de morte que percorrem este poema não
se amenizam. Ao mesmo tempo, o passeio pelo Eterno Feminino parece
reduzi-lo, antes, ao Eterno Não-Ser.
Num outro poema de Mar absoluto, e convenientemente intitulado
“Mulher adormecida”, Cecília se retrata como sendo aquela que ainda
não nasceu, a que aguarda vida a cada instante, ou a que não
nascerá jamais, a “jamais nascida”. Ela é como a “árvore em quieta
semente”, é aquela que está perenemente aguardando a vida, acolhida
apenas pelo ventre da noite, sem família, não tendo sequer rosto –
e muito menos “nome”:
Cecília Meireles: imagens femininas
362
Sem nome e sem família cresço, e sem rosto me reconheço.
(pp.478-479) Recolhida na noite, hibernando nos escuros, embutida
nos
negrumes, posta em abandono, entranhada num “enredo”, numa “vagueza
imensa” – assim se encontra a mulher deste poema, que dá a
impressão cósmica da mulher mítica se gestando, ainda, no útero
primeiro. Mora ela no “ventre da noite”, e todas as manifestações
que a envolvem como faixas tutelares são valores femininos.
Também o “nome” é, na poética de Cecília, um outro sintoma de
remissão à condição da mulher. Em “Tardio canto” de Vaga música, o
nome que a mulher tem é um nome atribuído, um nome que lhe foi
dado, e é nada além que um “nome agreste”, repleto de “espinhos”,
um “nome amargo” (p.366). A temática do “nome” remete, dentro da
mística feminina, ao ritual do batismo, ao ritual de atribuição de
nome à mulher. Assim, em “Passeio”, do livro Viagem, Cecília
considera que
Não há palavras nem rostos: eu mesmo não me estou vendo. Alguém me
tirou do corpo, fez-me nome, unicamente, nome, para que as
perguntas me chamem, com vozes tristes, e eu não me esqueça de tudo
se houver um dia seguinte. (pp.309-311) Haver um dia seguinte é
acreditar que se possa esperar a
própria vinda, tal como se diz no poema “Explicação” de Vaga
música, dedicado a Alberto de Serpa:
Deus não fala comigo – e eu sei que me conhece. A antigos ventos
dei as lágrimas que tinha. A estrela sobe; a estrela desce... -
espero a minha própria vinda. (p.406)
Maria Lúcia Dal Farra
Haver um dia seguinte é, pois, confiar num despertar, quem
sabe num nascer definitivo, num encontrar-se no espelho, num
discernir entre os rostos vários, num desembaraçar-se do enredo em
que essa mulher foi aprisionada antes mesmo de existir, num
conhecimento do seu verdadeiro nome.
E a propósito desse dado acerca da reclusão feminina, quero referir
que se encontra, nos Dispersos de Cecília, um extenso poema datado
de 1956, com este comovente título: “Prisão”. Contra o singular do
título prolifera, nele, uma progressão geométrica assustadora que
vai povoando as quatro alongadas estrofes do seu corpo e que dizem
respeito ao número exorbitante de mulheres encarceradas: de quatro
passam para quarenta, de quarenta para quatrocentas, de
quatrocentas para quatro mil, de quatro mil para quatro milhões – a
ponto de se perder a conta. Trata-se, aqui, de estender a cela para
todas as mulheres do mundo, para todas as mulheres do planeta, que,
na verdade, estão encarceradas pelos outros... ou por si
mesmas.
Prisão Nesta cidade quatro mulheres estão no cárcere. Apenas
quatro. Uma na cela que dá para o rio, outra na cela que dá para o
monte, outra na cela que dá para a igreja e a última na do
cemitério ali embaixo. Apenas quatro. Quarenta mulheres noutra
cidade, quarenta, ao menos, estão no cárcere. Dez voltadas para as
espumas, dez para a lua movediça, dez para pedras sem resposta, dez
para espelhos enganosos.
Cecília Meireles: imagens femininas
364
Em celas de ar, de água, de vidro estão presas quarenta mulheres,
quarenta ao menos, naquela cidade. Quatrocentas mulheres
quatrocentas, digo, estão presas: cem por ódio, cem por amor, cem
por orgulho, cem por desprezo em celas de ferro, em celas de fogo,
em celas sem ferro nem fogo, somente de dor e silêncio,
quatrocentas mulheres, numa outra cidade, quatrocentas, digo, estão
presas.
Quatro mil mulheres, no cárcere, e quatro milhões – e já nem sei a
conta, em cidades que não se dizem, em lugares que ninguém sabe,
estão presas, estão para sempre - sem janela e sem esperança, umas
voltadas para o presente, outras para o passado, e as outras para o
futuro, e o resto – o resto, sem futuro, passado ou presente,
presas em prisão giratória, presas em delírio, na sombra, presas
por outros e por si mesmas, tão presas que ninguém as solta, e nem
o rubro galo do sol nem a andorinha azul da lua podem levar
qualquer recado à prisão por onde as mulheres se convertem em sal e
muro. (pp.1759-1760) Cecília constrói o poema – esse imenso
calabouço! – num
crescendo fortificado, de modo a nada deixar de fora. As mulheres
estão presas pela geografia que as cerca; estão presas pelos modos
possíveis da vida que as rodeia; estão presas pelos estados da
matéria; estão presas pelos sentimentos alheios ou próprios;
estão
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presas pelos ciclos do tempo; estão presas até pelo impronunciável,
“em cidades que não se dizem” e “em lugares que ninguém sabe”;
estão presas em espaços incomunicáveis, impossíveis de serem
libertas; estão presas dentro de si mesmas, convertidas “em sal e
muro”.
Na verdade, o desembocar desta prisão feminina remete ao mito de
Eurídice que, de fato, se encontra no princípio e no fim da
trajetória feminina, segundo creio, pois que é o olhar de Orpheu,
do seu amante, enfim – é o olhar masculino – que a leva de volta ao
encarceramento definitivo no Hades, no Inferno, após ter frustrado
a sua salvação. Ou igualmente, como quer Ana Maria Domingues de
Oliveira, reatualiza-se, neste poema, o drama da mulher de Ló: “Na
prisão, as mulheres repetem o drama da mulher de Ló, convertendo-se
em ‘sal e muro’, imagens radicais de esterilidade”. (Oliveira,
2001)
O poema desemboca, pois, numa zona de aridez e de infertilidade
absolutas no que diz respeito ao feminino, pois que essas mulheres
foram levadas à incomunicabilidade total, visto que “nem o rubro
galo do sol” e “nem a andorinha azul da lua” são capazes de
transportar qualquer recado a elas. Não há escapatória alguma, pelo
menos não há nada de que o nosso vasto mundo disponha e que possa
lhes oferecer a fim de evitar que penetrem definitivamente na mudez
e na solidão. Não há dia, não há noite, não há mensageiros – não há
voz que as alcance.
Assim prisioneiras também são as meninas do poema “Balada das dez
bailarinas do cassino” de Retrato natural. Nessa extensa peça,
Cecília Meireles aborda justamente o patético da situação feminina,
enfocando essas crianças (convertidas em mulheres pintadas e
extravagantes) que se oferecem, à noite, num cassino, dançando em
volta das mesas onde os homens comem, se divertem e se entediam,
numa indiferença quase agressiva. Transfiguradas em muitas, graças
ao chão espelhado por onde deslizam (ou caem), elas também perfazem
mais que dez, vinte, multiplicadas em progressão geométrica na
exemplaridade das suas imagens.
Cecília Meireles: imagens femininas
366
Vestidas espalhafatosamente, semi-nuas, é certo, escondidas e
constrangidas na carne das fantasias desengonçadas que ostentam,
divididas entre o pudor natural e a insidiosa vileza do ambiente,
essas crianças parecem cumprir a ronda dos pedintes, dos
subalternos, asfixiadas e comprimidas pelo papel que desempenham. O
curioso é que o único gesto de dança que seus corpos desenham
durante todo o poema, o de dobrar os joelhos, seja não um índice do
seu sonâmbulo bailado, mas antes da sua condição, da sua deplorável
penúria e mendicância.
Do mesmo modo que as mulheres aprisionadas do poema anterior, as
meninas de agora, antecipadamente adultas, trazem o sinal da
esterilidade e do desencanto. Em seus quadris perpassa uma faixa de
morte, de modo que elas,
Como quem leva para terra um filho morto, levam seu próprio corpo,
que baila e cintila. E o declínio que representam vai minguando
pouco a pouco
enquanto o poema se engendra: de “gafanhotos perdidos” e
assustados, as meninas se deslocam para “pobres serpentes sem
luxúria”, para “anjos anêmicos” embalsamados de melancolia,
imobilizando-se, por fim, em “múmias”. Parece, então, que
contemplam a própria morte, uma vez que se vergam sobre si mesmas
como “ramos de nardos inclinando flores” precocemente fenecidas no
seu colorido azul, branco, verde e dourado. E o luto parece tomar
conta de todo o poema, sobretudo daquelas que se dão conta dessa
humilhação, dessa vergonha. E Cecília assim encerra o poema:
Dez mães chorariam, se vissem as bailarinas de mãos dadas.
(pp.617-618) Contraponto dessa imagem feminina violentada e
usurpada
da sua infância, surge, na poesia de Cecília, um outro protótipo: o
da mulher doméstica, impecável, que luta incansável e
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alegremente para promover a harmonia do lar – misto de fada e de
anjo tutelar. E que tem enorme prazer em produzir benfeitorias
caseiras, a ordenação que permite o conforto, a limpeza, a alvura
das roupas brancas e da louça. Semântica da água corrente, do mar,
do sol, da claridade, da goma, das nuvens brancas, da cintilação
dos objetos, da espuma, do chão espelhante, do linho, do frescor,
do lírio, do silêncio – essa mulher constrói o ninho, o arrimo e o
aconchego. E é esta que mais propriamente se endereça à tradição do
“fiat Maria”.
São dois os poemas que trago para aqui a fim de anunciar esse
exaltante lado feminino: “Edite” e “Alvura”, ambos de Mar absoluto,
e ligados pela mesma mulher de nome Edite, a quem se encaminha toda
a sorte de louvores. Ambos os poemas a exortam num hino de alegria,
cantando a sua perfeição na terra, anjo que aguarda o Messias, ou
que prepara os outros para a morte.
Cantemos Edite, a muito loura, branca e azul, que à luz
ultravioleta se converte em ser abstrato, em anjo roxo e verde, com
pestanas incolores, que sorri sem nos ver e nos fala calado.
Cantemos Edite, a que trabalha silenciosa preparando todas as
coisas desta vida, porque a qualquer momento a porta deste mundo se
abre e chega de repente o esperado Messias. (pp.579-580) Estas são
as mulheres felizes por cumprir a sua sina histórica
da abnegação, do servir, do pôr-se à disposição, sem reclamações e
sem louvações: são elas simples como a vida e, por isso mesmo,
merecem o canto.
E por fim, apenas para encerrar provisoriamente essas imagens
femininas de Cecília, valho-me de um poema um tanto raro na sua
poética. Trata-se de “Cavalgada”, pertencente a Viagem, poema que,
através de uns tantos meandros, expõe, talvez, a face mais sensual
de Cecília e, contraditoriamente, a mais discreta, conferindo assim
personalíssima continuidade a uma
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linhagem erótica literária que obtivera relevo numa peça de Álvares
de Azevedo.13
Cecília faz confluir, aí, todo o seu sangue, as suas estrelas em
máxima cintilação, para o lugar onde acena a mão dele. Essa
cavalgada se mostra, em verdade, uma “luta entre luz e trevas” que
se adensa numa “torrente fantástica” e ambígua, na qual são
carregados todos os seus sonhos, sem que ela saiba, sequer, para
onde estão seguindo:
Meu sangue corre como um rio num grande galope, num ritmo bravio,
para onde acena a tua mão. Pelas suas ondas revoltas, seguem
desesperadamente todas as minhas estrelas soltas, com a máxima
cintilação. Ouve, no tumulto sombrio, passar a torrente fantástica!
E, na luta da luz com as trevas, todos os sonhos que me levas,
dize, ao menos, para onde vão! (p.283) O fulcro do poema parece
irradiar-se do carinho que
promove a mão desse homem no corpo dessa mulher. É a partir desse
aceno que o sangue dela toma um ritmo bravio, galopando
sofregamente e correndo como um rio na direção desses dedos. O
corpo dela dá a impressão de estar sendo bombeado, perfazendo uma
espécie de circuito que carrega, desesperadamente, nas suas ondas
revoltas, tudo o que nela são estrelas soltas que, assim, cintilam.
É possível ouvir passar a torrente fantástica dentro de si, como se
fosse uma luta entre a luz e as trevas. Mas ela sequer
13 Refiro-me à leitura do poema “Meu sonho”, de Álvares de Azevedo,
por Antonio Candido (1985:38-53).
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pode saber, em estado tão febril, para onde, desse modo, esse homem
a transporta – para onde leva os sonhos dela.
Termino de propósito estas especulações com este poema tão vivo e
tão poderoso na sua sensualidade, para concluir, temporariamente,
um olhar sobre a poética de uma mulher que a tradição literária
tem-se recusado a chamar de “poetisa”.
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