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O "INDITOSO CRUZ E SOUSA" DE SILVIO ROMERO E O "MALOGRADO POETA NEGRO" DE JOSÉ VERÍSSIMO Celestino Sachet UFSC Ao p Coutinho Araripe não ter vi passado Universid Con; deseje ab momento reflexões Romero e 32 O fato mais interessante que ocorreu o ano passado (1893, nota de CS) no acampamento das letras, foi a tentativa de adaptação do decadismo à poesia brasi- leira. A responsabilidade deste cometimento cabe a Cruz e Sousa, autor do Missal e dos Broquéis. Essa transplantação literária torna-se tanto mais curiosa quanto se trata de um artista de sangue africano, cujo temperamento tépido parecia o menos apropriado para veicular a flacidez e a frialdade hierática da nova escolal. reparar a "fortuna crítica" da obra de Cruz e Sousa 2 , Afrânio exclui do alentado volume de 362 páginas os textos de nior, Sílvio Romero e José Veríssimo, provavelmente por dumbrado nas páginas dos três autores do final do século "qualidade crítica" exigida pelo rigoroso professor da ide Federal do Rio de Janeiro. iderando que a "qualidade crítica" de uma análise que se .angente não pode excluir a "visão do texto" segundo o histórico em que Autor e Crítico se encontraram, as seguir tentam detectar uma "confissão de culpa", em Sílvio uma "reincidência na culpa", em José Veríssimo, quando Travessia rt, 26, 1993, pp. 59-72

Celestino Sachet

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Literatura

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  • O "INDITOSO CRUZ E SOUSA" DE SILVIOROMERO E O "MALOGRADO POETA NEGRO"

    DE JOS VERSSIMOCelestino Sachet

    UFSC

    Ao pCoutinhoAraripeno ter vipassadoUniversid

    Con;deseje abmomentoreflexesRomero e

    32

    O fato mais interessante que ocorreu o ano passado(1893, nota de CS) no acampamento das letras, foi atentativa de adaptao do decadismo poesia brasi-leira. A responsabilidade deste cometimento cabe aCruz e Sousa, autor do Missal e dos Broquis. Essatransplantao literria torna-se tanto mais curiosaquanto se trata de um artista de sangue africano, cujotemperamento tpido parecia o menos apropriadopara veicular a flacidez e a frialdade hiertica da novaescolal.reparar a "fortuna crtica" da obra de Cruz e Sousa2, Afrnioexclui do alentado volume de 362 pginas os textos denior, Slvio Romero e Jos Verssimo, provavelmente pordumbrado nas pginas dos trs autores do final do sculo"qualidade crtica" exigida pelo rigoroso professor da

    ide Federal do Rio de Janeiro.iderando que a "qualidade crtica" de uma anlise que se.angente no pode excluir a "viso do texto" segundo ohistrico em que Autor e Crtico se encontraram, asseguir tentam detectar uma "confisso de culpa", em Slviouma "reincidncia na culpa", em Jos Verssimo, quando

    Travessia rt, 26, 1993, pp. 59-72

  • 60 Celestino Sachet

    abordam a obra de Cruz e Sousa, especialmente os livros Missal,Broquis, Evocaes e ltimos sonetos.3

    Ao apresentar a 1a edio dos dois volumes da Histria daLiteratura Brasileira, no longo prefcio que lhe abre as pginas,Slvio Romero descreve seu novo trabalho como "um livro de amor,feito por um homem que sente h perto de vinte anos sobre o coraoo peso do dio que lhe tem sido votado em sua ptria", pelo rigorismocom que elabora os textos de anlise crtica sobre os livros que voaparecendo.

    Cruz e Sousa, pobre e azarada ave negra de Santa Catarina,viu-se depenada, no pelas garras do falco sergipano e nem pelasmos do critico impiedoso. Pior: ele foi excludo da primeira edioda Histria, pelo raio laser do Silncio e pela Maldio de ter sidopublicado, na dcada dos Oitenta, apenas em Santa Catarina.

    Mais do que provvel, os dois livros Julieta dos Santos eTropos e fantasias de 1883 e 1885, as duas obras continuavaminditos para o feroz mutilador de poetas e de prosadores, at 1888,quando editada a referida Histria.

    No entanto, ao conhecer-lhe a prosa de Missal e os sonetos deBroquis, bem como os poemas de Evocaes, nascidos no ano damorte do Autor, as unhas do crtico se encolhem e, pena e borracha mo, comea a cantar hinos de admirao e de louvor ao nosso PoetaSimbolista, sado do Desterro desde 1890, para terminar seus dias denegro e de tuberculoso no Rio de Janeiro e em Minas Gerais.

    Morto Cruz e Sousa 19 de maro de 1898 e, provavelmenteconhecidos j os trs livros publicados no Rio de Janeiro, SfivioRomero mal e mal se dispe a introduzir o nome do poeta negro nasegunda edio da Histria, publicada em 1902, nome quase sempreligado s circunstncias e s caractersticas de sua negritude. Contudo,no "prlogo" dessa nova edio, o crtico, aceitando sugestes deleitores, decide alterar a periodizao anteriormente proposta eestabelece um quarto perodo, o da "Reao crtico-naturalstica, de1875 a 1893, data dos Broquis de Cruz e Sousa, ou 1900, ano dapublicao do 1 volume do Livro do Centenrio do Brasil", no qual,o prprio Slvio Romero publica um longo ensaio sobre a evoluoda Literatura Brasileira, com destaque especialssimo obra de Cruze Sousa, conforme ser visto mais adiante.

  • Caiedio dse conheem nossos nosscrecebe e,do sculedio, It

    Fille Sousafigurar crnalgrcomo de

    RomerosubtropiAracial

    O "Inditoso Cruz e Souza"...

    61

    n . VII da Parte I "Fatores da Literatura Brasileira" na51888, ao tratar da presena do negro esclarece que "se no:.'e um s negro, genuinamente negro, livre de mescla, notvelhistria, conhecem-se inmeros mestios, que figuram entres primeiros homens", ao ser preparada, a segunda edio,n nota, ao p da pgina, este pequeno acrscimo: "Ao findar) XIX deu-se o caso de Cruz e Sousa" pgina 142 da 5'tilizada no presente ensaio.ro de escravos, sem nenhum perigo de branqueamentos, Cruz5, pois, um "negro, genuinamente negro, livre de mescla", atre os primeiros homens da Poesia Simbolista Brasileira,exrcito de crticos que teima em negar-lhe a poeticidade,

    peito pela impossibilidade de negar-lhe a negritude absoluta."Concluses gerais", ainda no primeiro tomo, Slvio

    olta a insistir na presena atuante "dos africanos, mesmo osais", na caracterizao das coordenadas de nossa formao

    Quaestuda aTobias B"evolu,de BentoConclui (

    E

    Na histria poltica, civil, literria, artstica, sua cola-borao foi de todos os tempos, por intermdio prin-cipalmente de seus parentes mestios, com seusjornalistas, seus oradores, seus jurisconsultos, seuspoetas, seus artistas, bastando s citar um Cruz eSousa.. .4

    a terminar a primeira edio da Histria, Slvio Romero'Sexta e ltima fase do Romantismo: o Condoreirismo deirreto". Ao longo do ensaio intercala uma reflexo sobre a) geral da poesia brasileira" a comear com a Prosopopia,Teixeira, e descobre uma caminhada cheia de altos e baixos.ue

    escola condoreira coube representar os ltimos ful-gores do Romantismo e fechar-lhe o ciclo evolutivo.A linha representativa do desenvolvimento potico,aps os condoreiros, baixa de novo de 1870 ou 71 at1879 ou 80, voltando a subir com os parnasianos,Delfino, Bilac, Raimundo Correia, Alberto de Olivei-ra, Tefilo Dias, e com os divergentes Murat, McioTeixeira, e outros, at encontrar Cruz e Sousa e ossimbolistas, no se podendo por enquanto, dizer se vaiem marcha ascensional ou depressiva, ao findar osculo XIX e iniciar-se o sculo XX5.

  • 62 Celestino Sachet

    Parece evidente que o final do pargrafo, ao incluir o nome deCruz e Sousa e os simbolistas, um acrscimo posterior primeiraedio.

    II

    Raimundo Magalhes Jnior, em Poesia e vida de Cruz e Sousa,narra a converso de Slvio Romero para a causa do Poeta Negro deSanta Catarina. "Mudando-se de casa, Nestor Vtor tornou-se vizinhodo spero e desbocado sergipano. Falou-lhe repetidamente em Cruze Sousa. (...) Levou inditos (...) ao exame do crtico e acabou,finalmente, por venc-lo ou convenc-lo"6.

    O perseguidor torna-se apstolo aps a morte da vtima!Em 1899, a propsito do livro Primcias, de Carvalho Aranha,

    Slvio Rornero publica o ensaio "O simbolismo", posteriormanteincludo em Estudos de Sociologia e Literatura, 1901, no qual ocrtico admite a chegada de uma outra escola, totalmente diferente dasanteriores.

    Quanto ao simbolismo, o desnorteamento completo.Geralmente o pintam como uma reao mrbida doidealismo, uma espcie de faquirismo ocidental nosdomnios da arte, uma coisa area, sem nervo, semsistematizao, sem saber o que quer. (...) A artesimblica justifica-se por si mesma. Toda a grandepoesia foi sempre obscura, ensombrada e at mstica7.

    Com o pressuposto de que "um poeta novo deveria suscitar umacrtica nova", Slvio Romero descobre em Cruz e Sousa esse "poetanovo".., ainda que morto, j!

    E o falco de unhas afiadas transforma as negras penas deMissal, de Broquis e de Evocaes empedras preciosas da LiteraturaBrasileira; e o novo Saulo, cado do cavalo, passa, imediatamente asoltar cartas e cartas, sobre a nova Doutrina e sobre o novo Mestre!

    Ainda em 1899, o crtico sergipano prepara o ensaio "Literatura1500-1900" para integr-lo ao Livro do Centenrio, com um Cruz eSousa batizado, "a muitos respeitos", como "o melhor poeta que oBrasil tem produzido". Em 1905, Evoluo do lirismo brasileiroproclama o poeta negro como "o ponto culminante da lrica brasileiraaps quatrocentos anos de existncia"8.

    Devemos delicadeza do Sr. Nestor Vtor, grandeamigo do poeta e que se encarregou de publicar-lhe

  • O "Inditoso Cruz e Souza"... 63

    as obras pstumas, a ventura de ler os manuscritos doilustre morto, que nos hoje plenamente conhecido.O que achamos de mais notvel nas poesias de Cruze Sousa fcil de ser dito em poucas palavras.Em primeiro lugar, ressaltam de todas as suas compo-sies uma elevao d' alma, uma nobreza de senti-mentos, uma delicadeza de afetos, uma dignidade decarter que nunca se desmentem, nunca se apagam.Dai, como segunda qualidade aprecivel, a completasinceridade do poeta: este no faz cantatas a condes-sas e duquesas, nem entoa fingidas ladainhas a san-tas...

    Inspirados pela natureza, pelo infinito cenrio domundo exterior, ou pelas peripcias da vida, pelosatritos da sociedade, ou pelas dores intimas de seucorao, os seus versos so sempre simples, espont-neos, sinceros, como as confisses de uma alma limpae digna. Nada de pose. Outra qualidade da arte de Cruze Sousa o poder evocativo de muitas de suas poesias.Ele no descreve nem narra. Em frases vagas, indeter-minadas, aparentemente desalinhadas, sabe, por nosabemos que interessante e curiosa magia, atirar opensamento do leitor nos longes indefinidos, suges-tionando-lhe a imaginativa, fazendo-o perder-se nosmundos desconhecidos, sempre melhores do queaquele em que vivemos. (...)A filosofia que transuda da poesia de Cruz e Sousa, a de um triste, mas um triste rebelado; o pessimismo,ltima flor da civilizao humana.Ele o caso nico de um negro, um negro puro,verdadeiramente superior no desenvolv,imento da cul-tura brasileira. Mestios notveis temos tido muitos;negros, no, s ele; porque Luiz Gama, por exemplo,nem tinha grande talento, nem era um negro pur sang.Assim outros. Sofre os terrveis agrores de sua posi-o de preto e de pobre, desprotegido e certamentedesprezado. (...)Como espcime de seu estilo, e para que se veja bemdistintamente o ponto a que nos levou a evoluo da

  • 64 Celestino Sachet

    lrica, teremos de tambm citar um trecho deste mag-no poeta.E como cit-lo faclimo, porque tudo o que deixouem verso bom, no precisamos de ir alm da primei-ra pgina de seu mais antigo livro, Broquis. E eis a"Antfona": Formas alvas, brancas, Formas clarasDe luares, de neves, de neblinas!...9

    No, Sr. Slvio Romero, Broquis, para ser "seu mais antigolivro", deveria ter sido escrito dez ou sete anos antes! E ter seu nomealterado para Julieta dos Santos ou Tropos e fantasias.

    "O inditoso Cruz e Sousa" e a expresso nasceu da pena deSlvio Romerol , torna-se profeta depois de morto e depois damorte de seus dois primeiros livros!

    Para findar: o Simbolismo, nome por certo mal esco-lhido para significar a reao espiritualista que nestefinal de sculo se fez na arte contra as grosserias doNaturalismo e contra o diletantismo espicurista daarte pela arte do Parnasianismo, , nas suas melhoresmanifestaes lricas, uma volta, consciente ou no,ao Romantismo naquilo que ele tinha de melhor emais significativo. No Brasil, porm, para que elecaminhe e progrida, ser preciso que, deixando delado as ladainhas de Bernardino Lopes e Alphonsusde Guimaraens, deixando, em suma, as afetaes d' Ossimples, prossiga na trilha que lhe foi aberta por Cruze Sousa, no o Cruz e Sousa da prosa abstrusa doMissal e das Evocaes, porm o Cruz e Sousa dosFaris e dos ltimos Sonetos, e essa h de ser umadas mais belas pores da lrica nacional, que iroainda florescer nos primeiros anos do sculo que vaientrar".

    Em 1943, ao preparar a 3' edio da Histria, Nlson Romero,filho do crtico, incorpora obra, entre outros textos novos, oscaptulos "Confronto em retrospecto (1904)" e "Reaes antirromn-ficas na poesia Evoluo do lirismo" parte dos quais estotranscritos acima. Com

    eles, a Histria de Slvio Romero lava-se daculpa do desconhecimento. E a pera magna da pobre ave negra deSanta Catarina encontra, finalmente, a sua Epifania proclamada por

  • O eda Hist()Machadoparaensedezenov -literrioconcentr. manch

    AoVerssimluma hist.na "Revi,Kosmos",

    ParaPoeta deBrasilein1907, pel(seguida d

    oJanus"13,

    o

    tudioso do Simbolismo Brasileiro que percorrer as pginasia da Literatura Brasileira de Bento Teixeira (1601) ade Assis (1908) , publicada em 1916, pelo crticoJos Verssimo, perder seu tempo pois nenhum doscaptulos do livro leva o nome do importante movimentodo final do sculo passado. E se a pesquisa devesse-se em Joo da Cruz e Sousa, pior ainda: o negro "pur sang"branca ao longe das 319 pginas, na 4a edio de 196312.isso do Movimento e do Poeta na ltima obra de Jos publicada no mesmo ano da morte do Autor escreve'a mais estranha e mais alongada, que abre a primeira ponta

    ta Brasileira" de 1897 e se completa, no outro, na "Revistade janeiro de 1906.aprofundar a histria de um Silncio Proclamado sobre oanta Catarina, os seis volumes de Estudos de Literatura

    , publicados no Rio de Janeiro (Ed. Garnier), entre 1901 en crtico paraense, apontam para a Confisso de uma Culpauma Repetio Permanente do Pecado da Omisso.ue Joo Alexandre Barbosa denomina "A dupla face de'nda que por razes estranhas ao que acima foi apontado.

    [oo

    O "Inditoso Cruz e Souza"... 65

    um "livro de amor", disposto a depenar, agora, quem ouse negar apoeticida de do negro, pur sang, nascido no Desterro e morto noExlio, privado da Sade, da Fama e da Glria.

    III

    IV

    i iEm 901, Jos Verssimo publica a "primeira srie" de Estudosde Litera ura Brasileira, conjunto de nove ensaios anteriormenteeditados a "Revista Brasileira", entre 1895 e 1897. O quarto texto "Um ro ance simbolista IA Giovanina, do Sr. Afonso Celso" _14,de 1897, pea axial para o des-velamento dos pressupostos tericosque alime taro o crtico nas suas reflexes sobre o Simbolismo e,claro, sob e Cruz e Sousa. Nele, no texto, a Escola sobrevive e chega,mesmo, a ser proclamada nos aspectos da sua Individualidade asubverter m o Realismo e o Parnasianismo, enquanto o pobre diabonegro de anta Catarina, j morrendo de tuberculose, de misria e deesquecim to sofre profundo escalpelo nas ousadas construeslingiistic -literrias de seus estranhos versos "africanos".

  • 66 Celestino Sachet

    Depois de abrir o ensaio alertando sobre o perigo de "sentenciara legitimidade ou ilegitimidade das novidades que aparecem nodomnio da esttica, Jos Verssimo des-vela o conceito de Literaturaenquanto pressuposto terico para a definio de Simbolismo.

    Se a literatura o meio pelo qual o homem se define,a pintura a expresso de uma poca, claro que essemodo, essa pintura, essa forma de expresso ho demudar e variar conforme as variaes e mudanas doshomens, das sociedades, dos tempos. E como s va-riaes de fundo correspondem variaes de forma, es modificaes de pensamento, modificaes de lin-guagem, cada poca e pois cada sociedade e portantocada homem emprega uma forma particular de defi-nir-se".

    Contudo, essa "forma particular em definir-se", tem queesconder a Fragmentao do Autor e a Individuao do ObjetoEsttico para fixar-se pelas veredas do Todo, do Social-em-espelho.

    Ser social, ser humana , porm, a condio supremada arte, e no s no concebvel, mas possvel, senoassim. Uma arte, se pudssemos admitir a hiptese que apenas exprimisse o indivduo, sem nenhumainfluncia ou reao social, uma tal arte seria talvez anegao da prpria arte".

    Casado com Renan "a obra bela a que representa, em traosdefinidos e individuais, a eterna e infinita beleza da naturezahumana ", Jos Verssimo entende o Simbolismo como um grupode nefelibatas, estetas, msticos e decadentistas a personificarem"uma idia, em um ser humano, em uma paisagem, em uma narrao",num conjunto de manifestaes as "mais dissemelhantes da arte dodia", pois a escola no passa de um individualismo, impregnado ata alma, "das mais altas e mais generosas aspiraes sociais".

    Vlida, por "ser um dos elos da cadeia da evoluo progressivade nossa espcie (...), um impulso a mais a favor dela" e, ainda, porser uma reao contra o Realismo e o Parnasianismo cientifizantes, afrmula esttica da nova escola merece "a ateno e o apreo" docrtico: o Simbolismo vale na medida em que for capaz de

    trazer para a arte, com o individualismo, uma maiorliberdade de manifestao do artista, com as preocu-paes sociais, um maior sentimento da solidariedade

  • O "Inditoso Cruz e Souza"... 67

    humana e com o idealismo, um novo esforo em favoro progresso indefinido da nossa espcie 17.

    Tal e qual as escolas anteriores, o Simbolismo, naquele final desculo, tima das "aberraes inerentes a qualquer movimentoespiritual no seu perodo de apostolado" e vtima, ainda, dosmedocres que, apenas percebendo dele a parte externa e artificial dotexto, re-i plantam o escrever gongrico dos sculos XVI e XVII aressuscita em

    os ttulos arrevezados, o abuso das maisculas, aspreocupaes pueris de tipografia, as ridculas trans-formaes e disfarces dos prprios nomes, a intempe-rana de metros e formas mtricas em antagonismocompleto com a prosdia e o gnio da lingual 8.

    "Ap stolo" que trai a Doutrina um Judas , e Mestre,"medocr: ", a proclamar o Logro, Joo da Cruz e Sousa!

    Se o Simbolismo , como quer o Sr. Brunetire, areintegrao da idia na poesia, o Sr. B. Lopes nopode absolutamente pretender ao ttulo de simbolista,pois no h descobrir na sua vislumbre de idia. tudo o que o Parnasianismo decadente, de envoltacom afetada simplicidade posta em moda pelo Sr.Junqueiro e confrades, tem de mais vazio dela. Nopode tambm, e pela mesma razo, pretender essettulo o Sr. Cruz e Sousa. O seu livro de versosBroquis apenas de uma parnasiano que leu Verlai-ne, sem possuir deste, em grau algum, nem a facilida-de de idealizao potica, nem a sinceridade daemoo artstica, nem a cincia inata da lngua nem aplasticidade das formas mtricas. No h nessa reu-nio de poemas, na maioria sonetos, nada, seno tal-vez a inteno gorada, que a faa classificar na poesiasimbolista. So uma imitao falha de Baudelaire,modificado pelo poeta das Ftes galantes. E a falta deemoo real, acaso o trao caracterstico desses ver-sos, tal que surpreende. O livro de prosa do mesmoescritor, Missal, tem ainda menos valor que Broquis. um amontoado de palavras, que dir-se-iam tiradasao acaso, como papelinhos de sortes e colocadas umasaps outras na ordem em que vo saindo, com rarodesdm da lngua, da gramtica e superabundante uso

  • 68 Celestino Sachet

    de maisculas. Uma ingnua presuno, nenhum pu-dor em elogiar-se e sobretudo nenhuma compreenso,ou sequer intuio, do movimento artstico que pre-tende seguir, completam a impresso que deixa estelivro em que as palavras servem para no dizer nada19.

    Como se percebe, na opinio do crtico, anda muito mal daspernas e da cabea o nosso pobre poeta vivendo as ltimas semanasde vida:

    leitor de Verlaina, sequer capaz de copiar omestre do Parnasianismo francs; imitador de Baudelaire, sofre de uma tal vesgueirapotica que o leva a chocar ovos sem chance deexplodirem a Vida; poeta, canta srios desvios da personalidade, pois incapaz de externar uma "emoo real"; homem, demonstra ser portador de uma afasiagrave quando amontoa palavras sem gramticas e semsemnticas; cidado, um despudorado que se empanturra doprprio elogio; simbolista, a negao da prpria escola da qualconfessa alimentar-se.

    VI

    O aparecimento de ltimos sonetos, 1905, obra pstuma dopoeta de Santa Catarina, obriga o crtico paraense a substituir asgrossas lentes dos culos escuros que haviam impedido uma leitura,mais s claras, de Broquis e Missal.

    Corrodo pelo Engano, talvez, ou temeroso de perder a urea deCrtico, provvel, Jos Verssimo entra pelos sonetos do autor morto,com uma confisso de culpa, pelo menos, discutvel: a razia de 1897,aquela, contra Broquis e Missal, no pretendera ferir poeta: quandomuito, os petardos se destinavam ao escritor, incapaz de transmitir afidelidade de "sua inspirao". Por sinal, tragdia inerente a qualquercristo da Raa Negra!

  • negro;Utbs,nascim

    em

    profun

    mieste,

    F

    O "Inditoso Cruz e Souza"... 69

    Os ltimos sonetos de Cruz e Sousa (...) modificaramde muito o juzo que desde o seu primeiro livro fiz domalogrado poeta negro.Nunca ousei dizer que em Cruz e Sousa no houvesseabsolutamente matria de poesia, nem sensaes esentimentos, ideao bastante, dons verbais, capazesde fazer um poeta. Admiti sempre que os havia, maso que no senti ento, alm da msica das palavras,do dom de melodia, que comum dos negros, era acapacidade de expresso, e essa incapacidade escon-dia-me a sua inspirao. Ou ele no tinha de fato nadapara dizer ou no o sabia de todo dizer, e esta inapti-do de expresso artstica parecia-me chegar nele inibio patolgica. O caso que, com certas restries,continua a ser exato, curioso como fenmeno depsicologia tnican.

    E - sta vez, ainda, o Negro de Santa Catarina escreve sonetosque, "se lhes vamos mais fundo que ao sentimento literal", nadasignific . pela dificuldade em atribuir-lhes um ttulo, encerr-los emuma ephrafe, ou pass-los para outra lngua, uma vez que

    constam apenas de palavras gramaticalmente arruma-das, sem sentido aprecivel, ou to escuro e sublima-do que escapa s compreenses miserveis, como aminha. Chega-se mesmo lendo-os a sentir, como quematerialmente, essa falha do poeta, a sua impossibili-dade de exprimir o que acaso sentiria ou talvez nosentisse, no vendo na poesia seno uma acumulaomelodiosa de palavras. o que explica o seu processo,um verdadeiro cacoete, prprio dos primitivos, dasrepeties enfticas, substituindo expresses que lhefaltam21.

    rprio dos primitivos"! Primitivo porque Cruz e Sousa 3orque filho de escravos e porque no nasceu na Grandeorno era a cidade paraense de bidos, em 1857 ano de;nto do crtico!imo prova da incapacidade de comunicao verbal do poetaise, Jos Verssimo transcreve "Demnios" e "dio sagrado",dos melhores, "em que h mesmo alguma coisa de sentido e

    lo", embora a palavra "dio" esteja repetida seis vezes.

  • 70 Celestino Sachet

    E so assim todos os seus versos. Tm a monotoniabarulhenta do tam-tam africano. O homem que os fez,devia ser extremamente sensvel s grandes sonorida-des ruidosas. Seu ouvido no seria feito para a msicade cmara, para os conjuntos dos violinos, nem paraos pianssimos das sinfonias clssicas, mas eu imagi-no como se lhe no dilataria a alma audio dosgrandes trechos de orquestra, cheios dos cobres sono-ros e das zabumbas e tambores estrepitosos. Umafanfarra bem vibrante, devia delici-lo2`.

    O homem Cruz e Sousa um "primitivo", na incapacidade decomunicao lingstica, mas um "ps-moderno", na capacidade decomunho musical com a barulheira dos "heavy metal" deste final desculo.

    A partir de agora, o ensaio do crtico de bidos nega o prprioLogos e espera que o leitor conclua o que ele mesmo j conclura.

    Presumo, entretanto, que o leitor (...) j ter descober-to em Cruz e Sousa um poeta, um verdadeiro, umesquisito e raro poeta. Nesta confuso, neste barulho,sobre as palavras gritadoras e ao mesmo tempo bal-buciantes dos seus sonetos, forma nica em que, pa-rece, lhe foi dado poetar, o que talvez, indicasse acurteza da sua faculdade de expresso potica, notumulto dos sons que o embriagam e enlevam, vislum-bra-se, como a montanha dourada pelo sol, atravs dasnuvens caliginosas rotas pelo relmpago, a alma pro-funda de um poeta, tanto mais digno de simpatia eestima, quando se sente que ele devia sofrer acerba-mente da incapacidade de exprimi-la. Ou talvez, in-consciente feliz, no sofresse, por no sentir esta falhado seu estro e da sua inteligncia, e nem sequer seadvertisse da luta tremenda travada dentro de si mes-mo entre a sua emoo e as suas faculdades de expres-so. Nem por isso essa luta menos visvel, e como asentimos aflitiva, torturante, cruel, o caso deste poetase nos afigura trgico23.

    Depois de transcrever e comentar, en passara, os sonetos"Exortao" e "Piedade", Jos Verssimo envereda pela proclamaoepifnica da presena de um predestinado a mergulhar fundo na

  • essnciavago, ao

    O "Inditoso Cruz e Souza"... 71

    a

    a

    isteriosa do Ser. Como a poesia "tende ao absoluto, aodefinido", o crtico diz que quase estaria a dizer que:ruz e Sousa foi um grande poeta, e os dons dexpresso que faltam evidentemente ao seu estro, oslons de clara expresso, moda clssica, os supriu o;entimento recndito, aflito, doloroso, sopitado, e porsso mesmo trgico, das duas aspiraes de sonhadorda sua mesquinha condio de negro, de desgraado,le miservel, de desprezado. desse conflito pungen-

    e para uma alma sensibilissima como a sua, e queyumilde de condio se fez soberba e altiva paralefender-se dos desprezos do mundo e das prpriasmmilhaes, que nasce a espcie de alucinao da sua)oesia, e que faz desta uma flor singular, de raralistino e colorido, de perfume extravagante maslelicioso, no jardim da nossa poesia24.

    Jostierissimo conclui o ensaio chamando ateno: dentro daPoesia B asileira, como um todo, e do Simbolismo, como ummomento, "Cruz e Sousa um caso particular".

    Ele o que , porque ele foi o que foi, um negro bom,sentimental, ignorante, de uma esquisita sensibilida-de, cujos choques com o ambiente social resultaramem poesia25.

    Em intese: ao morrer o Negro, morreu o Poeta. Por isso, nadade perpet ar-lhe a memria no livro Histria da Literatura Brasileira.O "malog ado poeta negro" no merecia tanta honra!

    IReferncias e anotaes bibliogrficas1 COUTI

    i O, Afrnio (org.). Obra crtica de Araripe Jnior, vol. III,

    1895-1 00. Rio de Janeiro: Ministrio da Educao e Cultura/Casa de RuiBarbo s 4, 1963. p. 135.

    2 COUTIIO, Afrnio, seleo de textos. Cruz e Sousa. Rio de Janeiro:Civiliz o Brasileira/Braslia: Instituto Nacional do Livro, 1979.

    3 Por de conhecer qualquer mudana de opinio em Araripe Jnior sobre aobra de Cruz e Sousa, o estudo dessa questo aguardar outra oportunidade.

    4 ROMER , Slvio. Histria da Literatura Brasileira, organizada e prefaciadapor N son Romero, 5. ed. t. 1, Rio de Janeiro: Ed. Jos Olympio, 1953.p. 333.

    5 . Op cit., t. 4, p. 1316-1317.

  • 72 Celestino Sachei

    6 MAGALHES Jr., Raimundo. Poesia e vida de Cruz e Sousa. So Paulo: Ed.das Amricas, 1961. p. 186-187.

    7 CNDIDO, Antnio, seleo e apresentao. Slvio Romero: teoria, crtica ehistria literria. So Paulo: EDUSP, 1978. p. 158-159.

    8 ROMERO, Slvio. Op. cit., t. 5, p. 1825.9 . Op. cit., p. 1823-1825.10 . Op. cit., p. 1809.ii . Op. cit., p. 1826.12 VERSSIMO, Jos. Histria da Literatura Brasileira, de Bento Teixeira (1601)

    a Machado de Assis (1908), 4. ed. Braslia: Ed. da Universidade de Braslia,1963.

    13 BARBOSA, Joo Alexandre. A tradio do impasse. So Paulo: Ed. tica,1974. p. 157.

    14 VERSSIMO, Jose. Estudos de Literatura Brasileira, i a srie. Belo Horizonte:Ed. Itatiaia/So Paulo: Ed. da Universidade de So Paulo, 1976. p. 73-86.

    15 . Op. cit., p. 74.16 . Idem, ibidem.17 . Op. cit., p. 78.18 . Op. cit., p. 78.19 . Op. cit., p. 79-80.20 . Estudos de Literatura Brasileira, 6 srie. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia/So

    Paulo: Ed. da Universidade de So Paulo, 1977. p. 97.21 . Idem, ibidem.22 . Op. cit., p. 98.23 . Op. cit., p. 98-99.24 . Op. cit., p. 100.25 . Op. cit., p. 101.