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1 FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. 30 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001 (Biblioteca Universitária. Série 2, Ciências sociais, v. 23). Primeira edi- ção: 1959. * Primeira Parte – Fundamentos econômicos da ocupação territorial Os primeiros capítulos do livro buscam apresentar as relações econômicas e po- líticas que apontaram os rumos da colonização portuguesa no Brasil e também os pro- cessos nas demais colônias da América, dos séculos XVI ao XVIII. Primeiro, trata de explicar as razões que levaram a estabelecer-se na América portuguesa uma empresa agrícola de larga escala. Assim como a Espanha, Portugal esperava que suas terras na América pudessem fornecer grandes quantidades de me- tais preciosos. Estava claro que a ocupação das terras seria necessária para garantir sua posse. No entanto, diferentemente da Espanha, que já havia conseguido explorar me- tais preciosos de forma a sustentar a ocupação, Portugal dispunha de recursos relati- vamente escassos para realizar essa mesma tarefa. Para tanto, Portugal contava com a experiência da produção de açúcar —uma especiaria em ascensão na Europa—em suas ilhas do Atlântico, detendo o conhecimento técnico que viabilizaria a ocupação com a exploração econômica. Além disso, o monopólio do comércio do açúcar, que no século XV era controlado pelos comerciantes das cidades italianas, foi rompido com a distri- buição da produção portuguesa pelos comerciantes flamengos, que já era expressiva na segunda metade do século XVI. Essa participação dos holandeses no fluxo do açúcar por toda Europa não estava limitada à etapa de comercialização, pois eles também con- tribuíram com investimentos de capital nas instalações produtivas localizadas no Bra- sil. Quanto à questão da mão-de-obra, Portugal também detinha as condições para tornar o empreendimento agrícola da colônia economicamente viável. Tanto pela falta de mão-de-obra na metrópole, quanto pela falta de condições econômicas capazes de atrair colonos, o empreendimento poderia ter se tornado inviável devido ao custo da mão-de-obra. A possibilidade de reduzir custos, retribuindo com terras o tra- balho que o colono realizasse durante um certo número de anos, não apresentava atrativo ou viabilidade, pois, sem gran- des inversões de capital, as terras praticamente não tinham va- lia econômica (pp. 11-12). * Resumo elaborado por Christina Andrews para uso em aula.

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FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. 30 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001 (Biblioteca Universitária. Série 2, Ciências sociais, v. 23). Primeira edi-ção: 1959.* Primeira Parte – Fundamentos econômicos da ocupação territorial

Os primeiros capítulos do livro buscam apresentar as relações econômicas e po-

líticas que apontaram os rumos da colonização portuguesa no Brasil e também os pro-

cessos nas demais colônias da América, dos séculos XVI ao XVIII.

Primeiro, trata de explicar as razões que levaram a estabelecer-se na América

portuguesa uma empresa agrícola de larga escala. Assim como a Espanha, Portugal

esperava que suas terras na América pudessem fornecer grandes quantidades de me-

tais preciosos. Estava claro que a ocupação das terras seria necessária para garantir sua

posse. No entanto, diferentemente da Espanha, que já havia conseguido explorar me-

tais preciosos de forma a sustentar a ocupação, Portugal dispunha de recursos relati-

vamente escassos para realizar essa mesma tarefa. Para tanto, Portugal contava com a

experiência da produção de açúcar —uma especiaria em ascensão na Europa—em suas

ilhas do Atlântico, detendo o conhecimento técnico que viabilizaria a ocupação com a

exploração econômica. Além disso, o monopólio do comércio do açúcar, que no século

XV era controlado pelos comerciantes das cidades italianas, foi rompido com a distri-

buição da produção portuguesa pelos comerciantes flamengos, que já era expressiva na

segunda metade do século XVI. Essa participação dos holandeses no fluxo do açúcar

por toda Europa não estava limitada à etapa de comercialização, pois eles também con-

tribuíram com investimentos de capital nas instalações produtivas localizadas no Bra-

sil.

Quanto à questão da mão-de-obra, Portugal também detinha as condições para

tornar o empreendimento agrícola da colônia economicamente viável. Tanto pela falta

de mão-de-obra na metrópole, quanto pela falta de condições econômicas capazes de

atrair colonos, o empreendimento poderia ter se tornado inviável devido ao custo da

mão-de-obra.

A possibilidade de reduzir custos, retribuindo com terras o tra-

balho que o colono realizasse durante um certo número de

anos, não apresentava atrativo ou viabilidade, pois, sem gran-

des inversões de capital, as terras praticamente não tinham va-

lia econômica (pp. 11-12).

* Resumo elaborado por Christina Andrews para uso em aula.

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Entretanto, Portugal já tinha experiência do comércio de escravos africanos, ex-

periência essa que se desenvolveu consideravelmente a partir do século anterior, no

reinado de Dom Henrique. Estava, assim, solucionado o problema do fornecimento de

mão-de-obra barata para o empreendimento açucareiro da colônia.

Enquanto isso, diferentemente da estratégia portuguesa, os espanhóis trataram

de estabelecer os seus domínios nas terras americanas com um modelo que, além de

pretender ser auto-suficiente em termos locais, também deveria ser capaz de fornecer

um excedente líquido, na forma de metais preciosos. Houve, assim, uma expansão dos

gastos públicos na Espanha—e também dos gastos privados subsidiados por recursos

públicos—, o que acabou por resultar em uma inflação crônica que se propagou para o

restante da Europa. Sem uma estrutura produtiva e suprindo suas necessidades de

consumo por meio de importações, a Espanha acabou por transferir riqueza para os

demais países europeus. Com isso, tanto a metrópole como as colônias espanholas en-

contraram a decadência econômica. “Cabe, portanto, admitir que um dos fatores do

êxito da empresa colonizadora agrícola portuguesa foi a decadência mesma da econo-

mia espanhola, a qual se deveu principalmente à descoberta precoce dos metais precio-

sos.” (p. 15)

No entanto, o processo que veio a desarticular o monopólio da produção de

açúcar nos trópicos teve lugar após o apogeu alcançado na primeira metade do século

XVII. A ocupação de Portugal pela Espanha seguiu-se de uma guerra entre Holanda e

este segundo país, motivada pela intenção dos holandeses de manterem o controle do

comércio de açúcar. Nesse contexto, a Holanda ocupa as regiões produtoras de açúcar

no Brasil (1630 – 1654). Isso representa o fim do sistema cooperativo que existiu até

então. A ocupação permitiu que os holandeses tivessem acesso às técnicas de produção

do açúcar e a seu sistema organizacional. Após a expulsão dos holandeses do Brasil,

esses não tiveram dificuldade de estabelecer um sistema concorrente de produção de

açúcar no Caribe. “A partir desse momento, estaria perdido o monopólio, que nos três

quartos de século anteriores se assentara na identidade de interesses entre os produto-

res portugueses e os grupos financeiros holandeses que controlavam o comércio euro-

peu” (p. 17).

O sistema de produção de produtos tropicais no Caribe teve efeitos profundos

na economia de toda a América. De um lado, o sistema de produção baseado na pe-

quena propriedade nas ilhas do Caribe é desarticulado como a implantação da produ-

ção de açúcar que, assim com era o caso no Brasil, tinha sua viabilidade econômica em

um sistema baseado na grande propriedade e na mão-de-obra escrava. Nesse caso,

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porém, os holandeses não ocuparam as regiões produtoras, mas se ocuparam de finan-

ciar e garantir know-how para a produção. Para isso contribuíram as dificuldades eco-

nômicas das colônias inglesas e francesas que se agravavam com o isolamento em rela-

ção às metrópoles.

Dessa forma, menos de um decênio depois da expulsão dos ho-

landeses do Brasil, operava na Antilhas uma economia açuca-

reira de consideráveis proporções, cujos equipamentos eram to-

talmente novos, e que se beneficiava de mais favorável posição

geográfica. (p. 26)

Esse novo sistema produtivo nas Antilhas também teve conseqüências para as

colônias americanas do norte. Ali ainda foi possível manter-se uma colonização basea-

da na pequena propriedade. Inicialmente, a colonização baseada na auto-suficiência

indicava um lento desenvolvimento. Como a produção açucareira no Caribe implicou

a migração de pequenos produtores dessa região para as colônias do norte, estabelece-

se um contato mais próximo entre as duas regiões. Além disso, com a desarticulação da

pequena propriedade, as ilhas caribenhas passaram a ser importadoras de alimentos,

que passaram a ser fornecidos pelos pequenos produtores agrícolas do norte. Daí ou-

tras formas de comércio entre as regiões foram sendo estabelecidos, o que fez prospe-

rar outros setores nas colônias setentrionais, como a produção naval e a produção de

bebidas alcoólicas, a partir da matéria-prima produzida nas Antilhas, entre a segunda

metade do século XVII e a primeira metade do século XVIII. Furtado destaca a impor-

tância da separação entre essas duas regiões, pois isso permitiu que nem todos os re-

cursos disponíveis fossem canalizados para a produção de açúcar. Isso representou o

aparecimento na América do Norte de um tipo de economia similar à da Europa na

época, baseada em uma produção voltada tanto para o consumo interno como para a

exportação. Fatores como a guerra civil inglesa no século XVII e as prolongadas guer-

ras entre Inglaterra e França favoreceram o fortalecimento do sistema formado entre as

Antilhas e colônias setentrionais, devido ao isolamento das colônias em relação às me-

trópoles. As tentativas empreendidas pela Inglaterra no século XVIII para coibir a rela-

ção comercial entre as suas colônias e as Antilhas só fez por acirrar os atritos de uma

relação já deteriorada pela existência de um sistema econômico em flagrante contradi-

ção com a condição colonial. Com isso, precipitou-se a separação entre as colônias se-

tentrionais e a Inglaterra.

A diferença entre os sistemas econômicos entre a América tropical e a América

do Norte estabeleceu também as diferenças entre os grupos sociais dominantes nessas

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regiões. Enquanto os interesses dos produtores das Antilhas inglesas permaneceram

ligados a setores econômicos da Metrópole, nas colônias do norte os interesses econô-

micos já estavam internalizados, já que envolviam grupos comerciais situados em Bos-

ton e Nova York, que se encontravam freqüentemente em conflito com a Metrópole.

Essa independência dos grupos dominantes vis-à-vis da Metró-

pole teria sido um fator de fundamental importância para o de-

senvolvimento da colônia [norte-americana], pois significava

que nela havia órgãos políticos capazes de interpretar seus ver-

dadeiros interesses e não apenas refletir as ocorrências do cen-

tro econômico dominante. (p. 31)

Após a independência em relação à Espanha, Portugal viu-se em uma situação

frágil na segunda metade do século XVII. A perda dos entrepostos orientais e a ocupa-

ção holandesa no Brasil colocavam em cheque a permanência do pequeno reino de

Portugal como Metrópole comercial. Era preciso buscar apoio em uma grande potên-

cia para garantir a colônia na América. Assim é que Portugal firma diversos acordos

com a Inglaterra, garantindo amplas vantagens comerciais em troca de apoio político e

proteção militar. Com isso, Portugal torna-se um “vassalo” comercial da Inglaterra.

Essa medida, porém, não solucionava o problema econômico da Metrópole,

ainda abalada pela desorganização do mercado de açúcar. Portugal chega a iniciar uma

política para substituir importações, mas essa acaba não se consolidando. O início do

ciclo do ouro no Brasil tornou viável a continuidade dos acordos entre Inglaterra e Por-

tugal. Assim como havia sido o caso da Espanha, Portugal obtém os produtos de que

necessita, para si e também para a colônia, por meio de importações, especialmente da

Inglaterra, que se consolidava na Europa no século XVII como potência manufatureira.

Como observou o Marquês de Pombal, “os próprios negros que trabalhavam nas minas

tinham que ser vestidos pelos ingleses” (p. 35).

Quando a mineração de ouro no Brasil entra em decadência, no último quartel

do século XVII, a Inglaterra já se encontravam em plena revolução industrial. Para

garantir os mercados para seus produtos manufaturados, a Inglaterra abandona a sua

postura mercantilista, adotando uma posição liberal, com abolição de tarifas alfandegá-

rias. Nesse contexto, Portugal, que tinha muito poucas vantagens comerciais segundo

os tratados com a Inglaterra, se enfraquece ainda mais, com a abolição das vantagens

na comercialização de vinho para a Inglaterra.

A transferência da corte portuguesa para o Brasil contou com o apoio dos ingle-

ses. Deste modo, o início século XIX mantém a relação de dependência de Portugal em

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relação à Inglaterra. Essa situação de dependência reproduz-se na emancipação do

Brasil em relação a Portugal: a transição quase sem percalços é fator que favorece a

continuidade da dependência da ex-colônia em relação à Inglaterra. A tentativa da

coroa portuguesa em fazer com que a Inglaterra interpretasse a independência brasilei-

ra como um ato de agressão a Portugal foi infrutífera. A Inglaterra tinha interesse em

manter suas vantagens comercias com o Brasil independente e, assim, decide trocar o

reconhecimento da independência por acordos vantajosos para si. “Pelo tratado de

1827, o governo reconheceu à Inglaterra a situação de potência privilegiada, autolimi-

tando sua própria soberania no campo econômico” (p. 37).

No final do século XIX, o Brasil estabelece-se como principal fornecedor de café

aos EUA, estabelecendo vínculos que iriam além das relações comerciais. Isso favorece

uma posição mais independente em relação à Inglaterra. Quando expira em 1842 o

acordo firmado com a Inglaterra, o Brasil revoga sua vassalagem ao não aceitar a reno-

vação do mesmo. “Contudo, do ponto de vista de sua estrutura econômica, o Brasil da

metade do século XIX não diferia muito do que fora nos três séculos anteriores” (p. 38).

Mantivera-se a estrutura da economia na produção agrícola com base no trabalho es-

cravo, o que retardou o processo de industrialização.

A expansão cafeeira da segunda metade do século XIX,

durante a qual se modificariam as bases do sistema eco-

nômico, constituiu uma etapa de transição econômica, as-

sim como a primeira metade desse século significou uma

fase de transição política. É das tensões internas da eco-

nomia cafeeira em sua etapa de crise que surgirão os ele-

mentos de um sistema econômico autônomo, capaz de ge-

rar o seu próprio impulso de crescimento, concluindo-se

então definitivamente a etapa colonial da economia brasi-

leira. (p. 38)

Segunda Parte – Economia escravista de agricultura tropical: séculos XVI e XVII

O ponto-chave da economia escravista deste período corresponde à forma como

são remunerados os fatores de produção. Em uma economia industrial, os investimen-

tos se refletem diretamente na renda da coletividade por meio da remuneração dos

fatores de produção. Assim, os investimentos em equipamentos e construções corres-

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pondem tanto à remuneração do capital utilizado, como ao pagamento da mão-de-

obra utilizada. “Esses pagamentos a fatores, que são uma criação da renda monetária

ou de poder de compra, somados, reconstituem a valor inicial da inversão.” (p. 48).

Como observa Furtado, a “inversão feita numa economia exportadora-

escravista é fenômeno inteiramente diverso” (p. 48). Isto é porque uma parte desses

investimentos é feita na forma de importações —materiais de construção, equipamen-

tos e mão-de-obra escrava—, ou seja, pagamentos ao exterior e, por isso, não podem se

refletir na renda da coletividade. Outra razão para a não conversão de investimentos

em renda para a coletividade se deve à utilização de trabalho escravo. O lucro do em-

presário corresponde à diferença entre o valor da produção e o custo de reposição e

manutenção da mão-de-obra escrava. Assim sendo, quando aumentam os investimen-

tos, o único efeito corresponde ao aumento no lucro do empresário, que não represen-

ta, entretanto, fluxo de renda, uma vez que “não era objeto de nenhum pagamento” (p.

49).

Nesse sentido, a mão-de-obra escrava pode ser comparada com os ativos fixos

de uma fábrica. Utilizando-se o maquinário ou não, os custos são constantes (reposi-

ção e manutenção). Mesmo no caso em que o empresário utiliza a mão-de-obra para

outras atividades que não diretamente a produção, ainda que as atividades aumentem

o ativo do proprietário, também não há fluxo de renda monetária. O consumo também

não representa um fluxo de renda, pois grande parte é feita por meio de importações

de bens do exterior. O escravo, quando utilizado para serviços pessoais de ser proprie-

tário, igualmente não representa fluxo de renda. Nesse exemplo, Furtado compara o

escravo com um automóvel: o desembolso de um valor inicial para sua aquisição é o

retorno pelo serviço prestado. Mas, mais uma vez, não há fluxo de renda. Assim sen-

do, da mesma forma que um carro parado não afeta a renda da coletividade, a renda

não se altera “caso os escravos deixassem de prestar serviços pessoais a seus donos.”

(p. 49)

Assim sendo, no sistema escravista-exportador, a renda concentra-se em sua

quase totalidade nas mãos do proprietário do engenho, correspondendo ao valor das

exportações do açúcar produzido deduzido dos custos dos fatores de produção que,

como vimos, têm sua origem nas importações. Assim sendo, a entrada líquida de capi-

tais corresponde à diferença entre importações e exportações, resultando em um fluxo

de recursos entre a unidade de produção e o exterior. Essa simplificação nos fluxos

monetários corresponde a uma “natureza puramente contábil” dessa economia, o que

não quer dizer que não seja uma economia monetária. Ela é, mas sua manifestação é

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restrita ao fluxo externo, por meio de importações e exportações. Furtado critica as

análises que identificaram no sistema escravista-exportador um modelo de tipo semi-

feudal. Nesse modelo a economia está isolada e não é possível tirar partido da divisão

do trabalho. Portanto, enquanto no sistema semifeudal a característica fundamental é a

não-especialização, no sistema escravista-exportador trata-se de um caso extremo de

especialização econômica que é totalmente voltada para o fluxo externo.

Assim, Furtado chega ao argumento sobre a expansão e evolução estrutural do

sistema escravista-exportador. Diferentemente do caso da produção de açúcar nas ilhas

do Atlântico, que se viu limitada pela falta de capacidade de expansão dos mercados

consumidores, a produção crescente do produto no Brasil logrou ser acompanhada de

uma crescente expansão dos canais de distribuição. Ou seja, a produção realizada no

Brasil colônia no século XVI não encontrou seus limites na superprodução. Assim sen-

do, a expansão pôde ter lugar apenas por meio da expansão dos fatores de produção.

Considerando-se que a rentabilidade do sistema escravista-exportador era suficiente

para auto-financiar a sua própria expansão, esta ocorreu principalmente pela ocupação

crescente de terras, então bastante abundantes. Portanto, a expansão foi possível sem

qualquer modificação da estrutura produtiva; um crescimento em extensão sem mu-

danças estruturais. Além disso, mesmo nos períodos de recessão econômica, o fato de

que a erosão do nível de rentabilidade se dava de forma bastante lenta devido ao sis-

tema escravista. A manutenção do escravo era feita pela utilização de sua própria

mão-de-obra, ou seja, o escravo sustentava a si próprio e a família de seu senhoril com

seu trabalho, permitindo que sistema sobrevivesse três séculos sem que isso resultasse

em uma mudança na estrutura produtiva. “Não havia, portanto, nenhuma possibili-

dade de que o crescimento com base no impulso externo originasse um processo de

desenvolvimento de autopropulsão” (p. 52). Tal estrutura permaneceu como forma

latente até o século XIX, quando condições propícias deram-lhe novo impulso.

Não obstante o caráter eminentemente externo do sistema escravista-

exportador do século XVII, outra atividade econômica desenvolveu-se, de forma de-

pendente, junto à produção açucareira. Trata-se da produção pecuária, que tinha na

demanda dos engenhos por carne para alimentação e animais para tração uma forma

de atividade econômica, em especial no Nordeste. Assim como no caso da produção

de açúcar, trata-se de uma atividade que se expandia por ampliação da ocupação de

terras. A rentabilidade da pecuária era muitas vezes menor do que a obtida na produ-

ção de açúcar. Assim sendo, a dominação da produção açucareira não só subordinou a

produção pecuária a seu sistema, mas também implicou na penetração da ocupação

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para o interior do país. A incompatibilidade entre o plantio da cana e a criação de ga-

do, fez com que a pecuária se expandisse com a utilização de terras do interior do terri-

tório, o que implicava também uma correspondente queda de rentabilidade com o

progressivo afastamento do litoral. Nesse sentido, nas suas origens, a atividade pecuá-

ria era principalmente uma atividade de subsistência, à qual se dedicavam colonos sem

capital para investimentos e que também acabou por incorporar a mão-de-obra indíge-

na. Furtado estima que a renda gerada pela atividade pecuária no século XVIII, quan-

do já havia se expandido para a região sul, era cerca de 20 vezes menor do que a renda

gerada pela exportação de açúcar.

A atividade pecuária, embora atrelada à atividade açucareira, em longo prazo,

teve um comportamento diverso da atividade exportadora. Como visto acima, no auge

da rentabilidade do sistema escravista-exportador, na primeira metade do século XVII,

o autofinanciamento tornava possível dobrar a produção no prazo de dois anos. No

entanto, a expansão dessa produção dependia de importações. Com o fim do monopó-

lio na produção de açúcar, a economia nordestina entra em lenta decadência. Ainda

que os custos de produção não fossem totalmente monetários, a dependência das im-

portações, principalmente devido à necessidade de mão-de-obra escrava, levou ao pro-

cesso de declínio do sistema produtivo. Gradualmente, a mão-de-obra que não podia

mais se manter na atividade econômica predominante no litoral ia sendo absorvida

pelo setor pecuário. Com isso, a atividade pecuária aprofundou a sua característica de

atividade de subsistência. O fato de que o produto da pecuária era também a fonte de

alimentos e de matéria-prima para a produção artesanal, permitiu um crescimento ve-

getativo tanto dos rebanhos como da população vinculada a esse setor. Isso foi possí-

vel sem que a população emigrasse, considerando que a atividade pecuária podia se

expandir para o interior e não havia escassez de terras para essa atividade extensiva. O

crescimento demográfico, porém, foi acompanhado por um processo de regressão eco-

nômica, e o caráter não-monetário das atividades produtivas se aprofundava.

A expansão da economia nordestina, durante esse longo perío-

do, consistiu, em última instância, num processo de involução

econômica: o setor de alta produtividade ia perdendo impor-

tância relativa e a produtividade do setor pecuário declinava à

medida que ele crescia. [...] Dessa forma, de sistema econômico

de alta produtividade em meados do século XVII, o Nordeste se

foi transformando progressivamente numa economia em que

grande parte da população produzia apenas o necessário para

subsistir. (p. 64)

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Em suma, o declínio econômico da colônia não representou uma retração da expansão

territorial. Pelo contrário, as dificuldades enfrentadas pelos colonos no século XVII

implicaram mesmo na penetração do território, em especial no Nordeste e Norte. Du-

rante o período de prosperidade, foi possível povoar toda a costa brasileira. “A fins do

século XVI praticamente todas as terras tropicais do continente —isto é, as terras po-

tencialmente produtoras de açúcar— estavam em mãos de espanhóis e portugueses,

por essa época unidos sob um só governo” (p. 65). A situação tornou-se difícil para os

colonos após a ocupação de Pernambuco pela Holanda. A colônia do Maranhão ainda

articulava-se com o sistema nordestino de produção de açúcar, mas o Pará ficou total-

mente isolado. Nos dois casos, foi necessário lutar com seus próprios meios para garan-

tir a sobrevivência. Uma vez que todos os meios de subsistência tinham que ser obti-

dos pelas unidades familiares, a captura de mão-de-obra indígena tornou-se fator deci-

sivo de sobrevivência. Isso implicava penetrar cada vez mais fundo nas florestas tropi-

cais, o que resultou em um maior conhecimento do potencial econômico das mesmas.

Na primeira metade do século XVIII a região paraense progres-

sivamente se transforma em centro exportador de produtos flo-

restais: cacau, baunilha, canela, cravo, resinas aromáticas. A co-

lheita desses produtos, entretanto, dependia de uma utilização

intensiva da mão-de-obra indígena, a qual, trabalhando disper-

sa na floresta, dificilmente poderia submeter-se às formas cor-

rentes de organização do trabalho escravo. Coube aos jesuítas

encontrar a solução adequada para esse problema. Conservan-

do os índios em suas próprias estruturas comunitárias, trata-

vam eles de conseguir a cooperação voluntária dos mesmos.

Dado o reduzido valor dos objetos que recebiam os índios, tor-

nava-se rentável organizar a exploração florestal em forma ex-

tensiva, ligando pequenas comunidades disseminadas na imen-

sa zona. Essa penetração em superfície apresentava a vantagem

de que podia estender-se indefinidamente. Não se dependia de

nenhum sistema coercitivo. (p. 67)

Ao se iniciar o século XVIII, a economia estava cada vez mais voltada para atividades

de subsistência, resultando na reversão da divisão do trabalho, na retração da produti-

vidade, na fragmentação das unidades produtivas e na “desaparição das formas mais

complexas de convivência social, substituição da lei geral pela norma local, etc.” (p. 69)

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Terceira Parte – Economia escravista mineira: século XVIII

O processo de decadência da produção de açúcar fez com que Portugal chegas-

se à conclusão de que só a exploração de metais preciosos poderia representar uma

saída para a situação. Para tanto, foi particularmente útil o conhecimento dos sertões

que os habitantes de Piratininga dispunham. Mas esse conhecimento não era suficiente,

e foi preciso enviar especialistas para que a exploração do ouro pudesse ter lugar. A

técnica de exploração do ouro também foi determinante para as mudanças econômicas

e sociais do século XVII. Em primeiro lugar, há a questão da escala de produção. En-

quanto a exploração da prata na América espanhola acontecia por meio de grandes

minas, no Brasil a extração do ouro era feita em pequena escala, nos sedimentos de

aluvião. Com isso, a exploração do ouro no Brasil atraiu de Portugal indivíduos com

posses modestas, compatíveis com o sistema de exploração, que incluía desde a utiliza-

ção de mão-de-obra própria, até um nível empresarial com utilização de numerosos

escravos. Com isso, a população de europeus aumentou consideravelmente na colônia,

superando a população de escravos.

Outro efeito econômico importante do ciclo do ouro foi o considerável impulso

à produção pecuária. A forma de exploração do ouro —em regiões distantes dos por-

tos de escoamentos, em áreas geograficamente acidentadas— implicou um aumento

substancial da demanda por animais de carga. Considerando ainda que as regiões de

exploração não podiam suprir as necessidades de alimentos daqueles envolvidos na

atividade mineira, a necessidade de transporte de alimentos também demandava a

utilização dos animais. Com isso, o rendimento da atividade pecuária cresceu, supe-

rando seu caráter de subsistência. O resultado foi uma sofisticação do sistema de pro-

dução, com o aparecimento de especializações nas diversas fases de produção pecuá-

ria. A produção pecuária do sul do país beneficiou-se especialmente da eclosão do

ciclo do ouro, e a região de São Paulo tornou-se o entreposto de comercialização dos

animais, cujos compradores vinham de regiões que hoje compreendem os estados de

Minas, Goiás e Mato Grosso.

Uma vez que a atividade mineira era menos concentradora de renda do que a

produção de açúcar, o ciclo do ouro possibilitou a formação de núcleos urbanos com

densidade populacional significativa. Isso possibilitou a ascensão social de homens

livres sem propriedade rural, até então restrita aos donos de engenhos. No entanto, o

desenvolvimento das atividades manufatureiras, que poderia dar dinâmica à economia

local, não teve lugar. As razões para tal remontam o Tratado de Methuem firmado en-

11

tre Portugal e Inglaterra em 1703 e que estabeleceu a dependência do primeiro em rela-

ção à produção manufatureira do segundo. Cabe lembrar que a tentativa de Portugal

de desenvolver suas atividades manufatureiras teve vida breve e foi definitivamente

sepultada pelo Tratado. O ciclo do ouro no Brasil é que forneceu as condições para que

o tratado fosse mantido. Sem o afluxo de ouro da colônia, Portugal dificilmente teria

tido condições de manter o acordo, uma vez que a exportação de vinho teria sido insu-

ficiente para compensar as necessidades de importação de todo o tipo de manufaturas

da Inglaterra. Assim, seria necessário algum tipo de protecionismo para fomentar a

produção manufatureira. O ciclo do ouro no Brasil “resolveu” a questão mantendo o

padrão de importações.

Quanto à colônia, o não-desenvolvimento das atividades de manufatura não re-

sultou apenas das tentativas de interdição impostas pela Metrópole. Faltavam conhe-

cimentos técnicos que pudessem ser aplicados em atividades manufatureiras. O declí-

nio da produção de ouro também não favoreceu as condições para o desenvolvimento

de atividades mais dinâmicas. A exploração do ouro alimentava nos mineiros a espe-

rança de fortuna rápida. Com o declínio da produção, os ativos utilizados na produção

eram exauridos na manutenção da produção. Diferentemente do caso dos engenhos de

açúcar, nos quais a rentabilidade, ainda que decrescente, ainda propiciava condições

para a manutenção da produção, no caso da exploração do ouro a rentabilidade chega-

va rapidamente a zero, forçando a sobrevivência por meio de atividades de subsistên-

cia. Após o apogeu entre 1750 e 1760, a extração de ouro entrou em rápido declínio,

fazendo retroceder, mais uma vez, toda a economia para o nível de subsistência.

Uns poucos decênios foi o suficiente para que se desarticulasse

toda a economia da mineração, decaindo os núcleos urbanos e

dispersando-se grande parte de seus elementos numa economia

de subsistência, espalhados por uma vasta região em que eram

difíceis as comunidades e isolando-se os pequenos grupos uns

dos outros. Essa população relativamente numerosa encontrará

espaço para expandir-se dentro de um regime de subsistência e

virá a constituir um dos principais núcleos demográficos do pa-

ís. [...] Em nenhuma parte do continente americano houve um

caso de involução tão rápida e tão completa de um sistema eco-

nômico constituído por população principalmente de origem

européia (p. 85 -86)

12

Quarta Parte – Economia de transição para o trabalho assalariado: século XIX

O final do século XVIII foi rico em acontecimentos políticos mundiais que re-

percutiram no Brasil. A guerra da independência na América do Norte e a revolução

francesa alteraram a oferta de produtos tropicais e ofereceram novas oportunidades de

desenvolvimento econômico para a colônia portuguesa. O Maranhão têm período de

prosperidade, beneficiando-se do apoio do Marquês de Pombal para desenvolver a

produção e o comércio de produtos em alta demanda devido à guerra da independên-

cia americana: arroz e algodão. Posteriormente, já no inicio do século XIX, com as

guerras napoleônicas e a transferência da corte portuguesa para o Brasil, novo período

de oportunidades econômicas tem lugar. A Metrópole deixa de ser o entreposto da

produção da colônia e a abertura dos portos é uma consequência natural dos aconteci-

mentos. A produção de açúcar ganha novo fôlego, devido à revolta no Haiti e a desar-

ticulação da produção naquela ilha.

O primeiro decênio da independência, no entanto, é marcado por dificuldades.

Como já mencionado acima, o Brasil independente herdou de Portugal a submissão

econômica à Inglaterra. Além disso, a partir da abdicação de Pedro I em 1831, os pro-

prietários rurais se estabelecem definitivamente como a classe dominante que exerce o

poder. O financiamento do governo central dependia das tarifas de importação, mas

devido ao acordo firmado com a Inglaterra, essas não ultrapassavam o valor médio de

15% ad valorem. Uma alternativa seria a taxação das exportações, mas isso afetaria os

lucros dos proprietários rurais. A saída foi cobrir o déficit com a emissão de papel moe-

da. Os perdedores nesse esquema foram as camadas médias urbanas, que empobrece-

ram com a desvalorização da moeda local frente à libra-esterlina. Desta situação emer-

giram as primeiras revoltas sociais em núcleos urbanos.

Um aspecto que Furtado procura destacar se refere às razões que levaram os

EUA a ser tornarem uma potência industrial, enquanto o Brasil se manteve subdesen-

volvido, com uma economia baseada na produção e exportação de produtos primários.

Na sua análise, não foram os acordos comerciais de 1810 e 1827 com a Inglaterra que

impediram a industrialização. O fator decisivo foi o desequilíbrio que o Brasil enfren-

tou com a queda dos preços dos produtos exportados. A isso se somou o fato de que, a

partir da independência que implicou a eliminação da Metrópole como entreposto, as

importações tornaram-se mais atrativas. Assim sendo, a queda no valor das exporta-

ções e o estímulo inicial às importações geraram o desequilíbrio que afetou a balança

comercial. Como mencionado acima, a estratégia para contornar o déficit foi a expansão

13

da emissão de moeda, o que resultou na desvalorização cambial e, finalmente, na redu-

ção da capacidade de importar, fator necessário para aquisição de maquinários.

As diferenças entre Brasil e EUA remontam ao século XVII. Enquanto no Brasil

a classe dominante era formada por grandes proprietários rurais de produtos exportá-

veis, nos EUA essa classe consistia de pequenos agricultores e de grandes comercian-

tes. O fator decisivo no desenvolvimento dos EUA teria sido o fato de que essa colônia

desenvolveu algumas manufaturas que não competiam com as da Metrópole. Essa

produção interna expandiu durante os anos da guerra da independência, quando foi

cortado o fornecimento de produtos manufaturados da Inglaterra. Na fase de forma-

ção da nação, cada país teve sua própria interpretação do liberalismo. Para ilustrar

essa questão, Furtado recorre às ideias de dois representantes das classes dominantes

nos EUA e no Brasil: Alexander Hamilton e Visconde de Cairu.

Ambos são discípulos de Adam Smith, cujas ideias absorveram

diretamente e na mesma época na Inglaterra. Sem embargo,

enquanto Hamilton se transforma em paladino da industriali-

zação, mal compreendida pela classe de pequenos agricultores

norte-americanos, advoga e promove uma decidida ação estatal

de caráter positivo —estímulos diretos às indústrias e não ape-

nas medidas passivas de caráter protecionista— Cairu crê su-

perticiosamente na mão invisível e repete: deixai fazer, deixai pas-

sar, deixai vender. (p. 101)

Além das interpretações distintas de liberalismo, o fato de que as exportações brasilei-

ras entraram em declínio dificultou a possibilidade de acúmulo de capital necessário

para a industrialização. A frota mercantil dos EUA expandiu-se substancialmente du-

rante o período dos conflitos na Europa, o que favoreceu o comércio com as Antilhas,

isoladas da Inglaterra e França, o que contribuiu para favorecer o desenvolvimento dos

EUA. A isso se soma a expansão da produção de algodão no território americano, que

encontrou respaldo na revolução industrial em curso na Inglaterra. O resultado foi

uma redução substancial nos preços dos tecidos, o que também acabou por ter conse-

quências no Brasil. A princípio, a base da manufatura só poderia vir de um produto

com alta demanda, no caso, os tecidos. No entanto, no Brasil não havia nenhuma base

de produção manufatureira e essa não poderia desenvolver-se devido à queda dos pre-

ços dos produtos tropicais. Além disso, a classe dominante no Brasil era dos grandes

proprietários rurais, sem qualquer interesse em fomentar a indústria. Com a baixa nos

preços de tecidos importados da Inglaterra, seria ainda mais difícil estabelecer uma

14

política protecionista. Como a queda nos valores exportados representou uma redução

na renda per capita, percebe-se que não seria possível competir com os preços dos teci-

dos ingleses em um contexto social no qual a população urbana havia sofrido um em-

pobrecimento significativo.

Finalmente, cabe destacar o fato de que, se no início do século XIX os EUA

apresentavam um déficit na balança comercial em relação à Inglaterra, mas a forma de

financiamento deste déficit foi distinta. Em lugar de fazer uma expansão monetária, o

os EUA emitiram bônus estaduais e federais que permitiram saldar as dívidas a médio

e longo prazo.

Formou-se assim, quase automaticamente, uma corrente de ca-

pitais que seria de importância fundamental para o desenvol-

vimento do país. Isto foi possível graças à política financeira do

Estado, concebida por Hamilton, e à ação pioneira do governo

central primeiro e estaduais depois na construção de uma infra-

estrutura econômica e no fomento direto de atividades básicas.

(p. 105).

* * *

O processo de transformação econômica do Brasil só iria acontecer na segunda

metade do século XIX, com o desenvolvimento da produção do café em uma escala

capaz de reinserir o país no comércio internacional. Trata-se de atividade econômica

que fazia uso especialmente do fator terra, o único capital em abundância no país, além

de fazer uso de fatores então subutilizados, como a mão-de-obra escrava e o transporte

animal. Mesmo com a redução dos preços médios do café, a expansão cafeeira continu-

ou firme, favorecida pelo fato de que possuía custos monetários ainda menores do

que a produção de açúcar, o que permitiu a sua expansão mesmo nos períodos de que-

da dos preços internacionais. Já cultivado para consumo interno desde o século XVIII,

o café encontra condições favoráveis para a sua expansão na segunda metade do século

XIX. Para isso contribuiu decididamente a emergência de uma nova classe empresarial.

As mudanças sociais e políticas do início do século fizeram com que a cidade do

Rio de Janeiro se tornasse um centro urbano com uma capacidade de consumo sufici-

entemente grande para desenvolver atividades comerciais. Foi a partir desse núcleo de

comerciantes urbanos que se formou a nova classe dirigente, tanto em termos econô-

micos como políticos. Enquanto os proprietários rurais na época da economia do açú-

car estavam totalmente isolados das atividades comerciais —principalmente porque

15

pertenciam a uma época em que as atividades comerciais eram monopólio da Holanda

ou Portugal—, os empresários do café eram capazes de dominar todas as etapas do

processo, da produção à comercialização. Isso foi decisivo para a mudança que viria

representar a economia cafeeira.

Desde o começo, sua vanguarda esteve formada por homens

com experiência comercial. Em toda etapa da gestação os inte-

resses da produção e do comércio estiveram entrelaçados. A

nova classe dirigente formou-se numa luta que se estende em

uma frente ampla: aquisição de terras, recrutamento da mão-

de-obra, organização e direção da produção, transporte interno,

comercialização nos portos, contatos oficiais, interferência na

política financeira e econômica. A proximidade da capital do

país constituía, evidentemente, uma grande vantagem para os

dirigentes da economia cafeeira. Desde cedo eles compreende-

ram a enorme importância que podia ter o governo como ins-

trumento de ação econômica. Essa tendência de subordinação

do instrumento político aos interesses de um grupo econômico

alcançará sua plenitude com a conquista da autonomia estadu-

al, ao proclamar-se a República. O governo central estava sub-

metido a interesses demasiadamente heterogêneos para res-

ponder com a necessária prontidão e eficiência aos chamados

dos interesses locais. A descentralização do poder permitirá

uma integração ainda mais completa dos grupos que dirigiam a

empresa cafeeira com a maquinaria político-administrativa. [...]

É por essa consciência clara de seus próprios interesses que eles

se diferenciam de outros grupos dominantes anteriores ou con-

temporâneos. (pp. 115-116).

Uma vez que o fator terra não era impedimento para a expansão da produção,

as preocupações se voltaram para o problema da escassez da mão-de-obra. Em primei-

ro lugar, as condições em que a agricultura de subsistência se estabeleceu no país não

permitiam a mobilização dessa mão-de-obra. Além disso, os grandes proprietários não

tinham interesse em deslocar essa mão-de-obra para a iniciante atividade cafeeira. A

mão-de-obra escrava também não se mostrava mais viável, uma vez que sua popula-

ção, não se expandiu: a taxa de mortalidade superava a taxa de natalidade, indicando

as condições precárias a que era submetida a população de negros africanos no Brasil.

Ficou evidente, portanto, que a solução se encontrava na atração de imigrantes euro-

peus.

16

Ainda no período do império, a primeira tentativa do governo brasileiro de fo-

mentar a imigração de europeus foi considerada um fracasso. Por causa da ausência

de um mercado interno para absorver o excedente de produção das colônias formadas

por imigrantes alemães, elas regrediram a uma agricultura de subsistência. Posterior-

mente, as tentativas feitas por cafeicultores para importar diretamente mão-de-obra,

submetendo-a a uma forma de servidão, também fracassaram. Esses fracassos iniciais

levaram ao estabelecimento de formas de contratação de mão-de-obra mais atrativas,

como o pagamento de salários como uma parte fixa e outra variável. A imigração pas-

sou a contar com a ajuda do governo, que custeou a viagem dos imigrantes. Essas me-

didas coincidiram com as dificuldades econômicas da unificação italiana, que resulta-

ram na depressão econômica no sul da Itália, com grande pressão sobre a terra, dado o

excedente da população agrícola. Isso deu forte impulso à imigração italiana para o

Brasil.

Estavam, portanto, lançadas as bases para a formação da gran-

de corrente imigratória que tornaria possível a expansão da

produção cafeeira no Estado de São Paulo. O número de imi-

grantes europeus que entraram nesse estado sobe de 13 mil, nos

anos setenta, para 184 mil no decênio seguinte e 609 mil no úl-

timo decênio do século. O total para o último quartel do século

foi 803 mil, sendo 577 mil provenientes da Itália. (p. 128)

Outros dois aspectos relativos à mão-de-obra são destacados por Furtado: refe-

rem-se ao deslocamento migratório do Nordeste para a região Amazônica e ao fim da

escravidão e seu impacto na redistribuição de renda. Quanto à primeira questão, ela se

refere ao ciclo da borracha, impulsionado pelos altos preços dessa matéria-prima no

final do século XIX e início do século XX. Cabe destacar que o papel da produção de

borracha na Amazônia, foi de caráter “emergencial,” para suprir a demanda internaci-

onal imediata até que fosse dada uma solução definitiva —que veio com a produção

asiática. Apesar desse caráter quase provisório, o fluxo migratório foi um dos maiores

da história do país, sendo que na última década do século XIX pelo menos 200 mil pes-

soas se deslocaram para a região amazônica. No entanto, como havia sido em outros

ciclos de expansão econômica, passadas as condições favoráveis, a população ocupada

nessa atividade retraiu-se a um nível extremamente básico de subsistência, enfrentan-

do ainda as dificuldades de um ambiente de floresta tropical, sensivelmente mais inós-

pito do que aquele existente nas grandes propriedades cultivadas.

17

Com relação ao fim da escravidão, Furtado destaca que duas alternativas ex-

tremas ilustrariam o efeito da abolição na atividade econômica. De um lado, a abolição

não representaria nenhuma distribuição de renda, uma vez que a remuneração ofere-

cida aos escravos libertos seria correspondente ao nível de subsistência já existente.

Esse foi o caso de algumas ilhas inglesas nas Antilhas. No outro extremo, o fim da es-

cravidão representaria uma real distribuição de renda aos trabalhadores libertados,

correspondendo a um processo semelhante a uma reforma agrária, sendo que o ativo

distribuído seria a própria mão-de-obra. Nesse caso, os ex-escravos receberiam uma

remuneração consideravelmente superior ao nível de subsistência. No caso do Brasil,

não teria ocorrido nem uma situação nem outra, mas no Nordeste, teria ocorrido uma

aproximação do primeiro caso, e na produção de café em São Paulo, seria uma aproxi-

mação do segundo caso. No que se refere aos engenhos de açúcar, os deslocamentos

de mão-de-obra devido à abolição foram pequenos, predominando a permanência na

propriedade rural original, mediante uma remuneração mínima. No caso das fazendas

de café, a possibilidade de retenção de mão-de-obra mediante remunerações mais altas

encontrou barreiras em questões culturais. Depois de séculos de escravidão, era de se

esperar que os escravos liberados não tivessem qualquer compreensão de um sistema

que possibilitasse acumular rendimentos para usufruí-los no futuro. A concepção de

trabalho estava contaminada com a ideia de opressão e a libertação significou também

a libertação do trabalho que excedesse as necessidades de subsistência. De fato, essa

era a única forma de sobrevivência que os escravos conheciam. Além disso, uma vez

que a política de imigração de mão-de-obra europeia já estava em andamento, não ha-

via razão, do ponto de vista econômico, para que fossem criadas condições para o

aproveitamento da mão-de-obra dos ex-escravos. Assim é que a população descenden-

te dos escravos africanos foi deixada à sua própria sorte e não houve alterações estru-

turais na distribuição de renda como consequência da abolição.

Observada a abolição de uma perspectiva mais ampla, compro-

va-se que a mesma constitui uma medida de caráter mais políti-

co que econômico. A escravidão tinha mais importância como

base de um sistema regional de poder que como forma de or-

ganização da produção. Abolido o trabalho escravo, pratica-

mente em nenhuma parte houve modificações de real significa-

ção na forma de organização da produção e mesmo na distri-

buição da renda. Sem embargo, havia-se eliminado uma das vi-

gas básicas do sistema de poder formado na época colonial e

18

que, ao perpetua-se no século XIX, constituía um fator de en-

torpecimento do desenvolvimento econômico do país. (p. 141)

Apesar da permanência da estrutura econômica em suas formas gerais —ou se-

ja, economia de exportação de produtos primários, a eliminação do trabalho escravo e

sua substituição pelo trabalho assalariado vieram modificar profundamente a econo-

mia brasileira.

* * *

A expansão do setor exportador de café foi, na segunda metade do século XIX,

responsável pelo crescimento da renda nacional. Entretanto, esse crescimento, como

seria de se esperar, foi desigual nas regiões brasileiras. Os principais produtos de ex-

portação do Nordeste, o açúcar e o algodão, não lograram obter os preços tão favorá-

veis quanto o café. Nesse ínterim, outros setores da economia brasileira seriam afeta-

dos pela grande expansão do setor cafeeiro.

Para ilustrar essas mudanças, Furtado analisa o desenvolvimento de três setores

da economia brasileira da época, a saber: 1) a economia do açúcar e do algodão e a eco-

nomia de subsistência a ela associada; 2) a economia de subsistência do sul do país e 3)

a economia cafeeira. Como já mencionado, o primeiro setor logrou uma expansão len-

ta, possivelmente abaixo da taxa de crescimento populacional, o que marca o início das

diferenças de desenvolvimento regional que iriam se aprofundar nas décadas seguin-

tes. O setor de subsistência do sul teve melhor destino. O trabalho assalariado permi-

tiu que uma parte considerável da economia se integrasse à economia monetária, for-

mando o embrião de um mercado interno. Os pequenos produtores rurais puderam

aferir vantagens de uma melhora da produtividade, uma vez que o mercado interno se

expandia. A produção pecuária no sul também encontrou novas oportunidades no

aumento do consumo interno. Também o comércio urbano beneficiou-se com a chega-

da do poder de compra dos trabalhadores ligados ao setor cafeeiro. O resultado foi o

desenvolvimento geral da economia e a expansão do setor urbano.

Apesar dessa expansão na segunda metade do século XIX, a estagnação e mes-

mo o retrocesso observados na primeira metade desse mesmo século vieram a ter efei-

tos duradouros. Furtado estima que, se a taxa de crescimento da economia observada

na segunda metade do século XIX tivesse sido observada também na primeira metade,

o Brasil teria chegado a 1950 com uma renda per capita similar à observada nos países

da Europa Ocidental.

Os dados apresentados no parágrafo anterior projetam alguma

luz sobre o problema do atraso relativo da economia brasileira

19

na etapa atual. Esse atraso tem sua causa não no ritmo de de-

senvolvimento dos últimos cem anos, o qual parece haver sido

razoavelmente intenso, mas no retrocesso ocorrido nos três

quartos de século anteriores. Não conseguindo o Brasil inte-

grar-se nas correntes em expansão do comércio mundial duran-

te essa etapa de rápida transformação das estruturas econômi-

cas dos países mais avançados, criaram-se profundas dissimili-

tudes entre seu sistema econômico e os daqueles países. (p. 150)

O desenvolvimento subsequente da economia brasileira será marcado, como foi

mencionado acima, pelo surgimento do trabalho assalariado. Apesar do setor cafeeiro

continuar dependente do comércio exterior, a introdução da mão-de-obra assalariada

representou uma mudança fundamental. Daí em diante, os efeitos dos momentos de

expansão e retração do setor exportador terão reflexos distintos nas rendas dos assala-

riados e na renda dos proprietários. No momento inicial de expansão do setor cafeeiro,

o efeito é uma melhor utilização dos fatores já existentes no país, em especial a terra e a

mão-de-obra. Como efeito paralelo, há o aumento da produtividade do setor de sub-

sistência. A partir dessa primeira fase, a expansão do setor cafeeiro teve lugar manten-

do-se os salários estáveis, pois não existiam pressões internas para um aumento real

dos salários devido à emigração em massa; ainda assim, a remuneração da mão-de-

obra agrícola representou uma expansão da massa salarial e dos salários médios. A

expansão também pôde acontecer pela existência de terras abundantes. Desse modo, a

perda de produtividade devido ao esgotamento dos solos pôde ser contornada pela

ocupação de novas terras, sem que para isso fosse necessário aumentar o capital por

unidade de produção.

Destarte, o fato de que o crescimento do setor exportador fosse

extensivo não impedia que o salário médio do conjunto da eco-

nomia se elevasse. Em síntese, como a população crescia muito

mais intensamente no setor monetário que no conjunto da eco-

nomia, a massa de salários monetários —base do mercado in-

terno— aumentava mais rapidamente que o produto global (p.

153)

O funcionamento de todo o sistema tinha por base o fato de que o setor expor-

tador podia reter todos os lucros nas fases de expansão e sofrer os menores prejuízos

nas fases de retração. Isso era possível uma vez que a queda no preço internacional do

café era compensada pela desvalorização cambial, uma vez que o setor exportador era

20

também vendedor de reservas cambiais. Considerando que pelo menos parte do con-

sumo de produtos importados pela massa assalariada tinham uma demanda inelástica

—tratava-se de produtos ou matérias-primas de gêneros de primeira necessidade— a

desvalorização cambial resultava em uma transferência de renda do setor assalariado

para o setor exportador. Nos momentos de expansão, porém, não havia transferência

de renda dos exportadores para os assalariados, e os primeiros logravam reter prati-

camente toda a renda relativa à expansão.

No que se refere às políticas de equilíbrio, Furtado aponta para a ausência de

uma compreensão pelas elites políticas do processo real da economia. A doutrina do-

minante na época era aquela que se aplicava aos processos de expansão e contração nas

economias dos países desenvolvidos que, via de regra, eram pouco dependentes das

importações. Nesse contexto, o pensamento econômico recomendava a aplicação do

padrão-ouro, que pressuponha que cada país tivesse uma reserva nesse metal (ou em

moeda conversível) para fazer frente aos períodos de desequilíbrio na balança de pa-

gamentos. O problema é que tal modelo não poderia ser aplicável a uma economia

como a cafeeira, com uma fonte de recursos externos variável, mas com pelo menos

uma parte dos gastos em importações fixas. Para que o modelo do padrão-ouro pu-

desse ter algum efeito no desequilíbrio da balança de pagamentos no Brasil, seria ne-

cessária uma reserva de recursos enorme. Uma vantagem da economia cafeeira é que

ela podia continuar a funcionar nos períodos de crise, justamente porque acumulava

nos momentos de expansão e transferia suas perdas nos momentos de recessão para os

assalariados. Com isso, a economia podia continuar em funcionamento, ainda que às

custas das camadas dependentes do trabalho assalariado, em especial a população ur-

bana.

O processo de correção do desequilíbrio externo significava, em

última instância, uma transferência de renda daqueles que pa-

gavam as importações para aqueles que vendiam as exporta-

ções. Como as importações eram pagas pela coletividade em

seu conjunto, os empresários exportadores estavam na realida-

de logrando socializar as perdas que os mecanismos econômi-

cos tendiam a concentrar em seus lucros. (p. 165)

Como fator agravante da crise, no entanto, estava a entrada de capitais na for-

ma de empréstimos o que, com a crise cambial, aumentava o peso relativo do serviço

da dívida. Na última década do Império, visando controlar o processo inflacionário, o

governo passou a financiar o déficit principalmente por meio de empréstimos externos,

21

mantendo apertada a expansão da base monetária. Aprofundam-se, então, os conflitos

de interesse entre os empresários do café e os políticos do império, esses últimos ainda

ligados ao antigo setor escravista-exportador. O resultado será uma política de descen-

tralização com o fim do Império e a constituição da República.

A proclamação da República em 1889 toma, em consequência, a

forma de um movimento de reivindicação da autonomia regio-

nal. Aos novos governos estaduais caberá, nos dois primeiros

decênios da vida republicana, um papel fundamental no campo

na política econômico-financeira. A reforma monetária de 1888,

que o governo imperial não executou, na forma como foi apli-

cada posteriormente pelo governo provisório, concedeu o po-

der de emissão a inúmeros bancos regionais, provocando subi-

tamente em todo o país uma grande expansão de crédito. (p.

171)

Essa medida provocou a depreciação cambial que veio a atingir fortemente os

assalariados urbanos. A política monetária do governo federal, por sua vez, mostrou-

se totalmente inadequada, uma vez que se limitava a expandir a base monetária visan-

do cobrir o déficit do governo, sem levar em consideração a expansão da economia que

se verificava então. Trata-se de um período marcado por revoltas militares, que esta-

vam vinculados às emergentes camadas médias urbanas. Assim têm início os conflitos

que irão desafiar as esferas de poder da República Velha.

Os interesses diretamente ligados à depreciação externa da mo-

eda —grupos exportadores— terão a partir dessa época que en-

frentar a resistência organizada de outros grupos. Entre estes

se destacam a classe média urbana —empregados do governo,

civis e militares, e do comércio— os assalariados urbanos e ru-

rais, os produtores agrícolas ligados ao mercado interno, as

empresas estrangeiras que exploram serviços públicos, das

quais nem todas têm garantias de juros. Os nascentes grupos

industriais, mais interessados em aumentar a capacidade pro-

dutiva (portanto nos preços dos equipamentos importados),

que em proteção adicional, também se sentem prejudicados

com a depreciação cambial. [...] Tem início assim um período de

tensões entre os dois níveis de governo —estadual e federal—

que se prolongará pelos primeiros decênios do século atual (pp.

172-173)

22

Quinta Parte – Economia de transição para um sistema industrial (século XX)

A situação extremamente favorável à produção de café na última década do sé-

culo XIX —com a diminuição da oferta da produção asiática e a descentralização políti-

ca que possibilitou a expansão da política de emigração pelos estados produtores—

veio a ser também, como não poderia deixar de ser, o início de seu declínio. Com o

estímulo fornecido pelos preços externos atraentes, os investimentos na produção au-

mentaram. Paralelamente aos investimentos privados, eram investidos recursos públi-

cos na expansão da infra-estrutura —estradas de ferro, portos e transporte marítimo.

Uma vez que, da perspectiva do investidor privado, não se encontravam barreiras à

expansão da produção, devido à abundância de terras ociosas e mão-de-obra, a produ-

ção cresceu substancialmente. Isso indicava, naturalmente, uma tendência à baixa dos

preços internacionais, o que veio efetivamente a acontecer no final dos anos 1880. Em

1883, a saca de café era vendida por £ 4,09, mas em 1886 esse preço caiu para £ 2,91 e

em 1899 para £ 1,48 . Diferentemente da estratégia anterior, porém, já não era mais

possível compensar as perdas pela depreciação cambial, uma vez que se tornou politi-

camente inviável aumentar a pressão sobre os setores urbanos. A confortável situação

dos produtores brasileiros, que forneciam cerca de três quartos da produção mundial,

permitiu que fosse implementada uma política de manutenção de preços do café. Essa

política, concebida pelos governos e produtores foi oficializada em 1906, por meio do

“Acordo de Taubaté” que determinava: (a) caberia ao governo comprar os excedentes

da produção, para restabelecer o equilíbrio entre oferta e demanda; (b) essa compra

seria viabilizada por meio de empréstimos externos; (c) a amortização dos juros dos

empréstimos seria realizada por meio de novo imposto sobre a saca de café (determi-

nado no padrão-ouro); e (d) visando estabilizar o preço no longo prazo, o governo de-

veria desestimular a expansão de novas plantações.

Inicialmente, o acordo foi posto em prática pelos governos estaduais, em espe-

cial o do estado de São Paulo. O mecanismo funcionou a contento, exceto no que se

referia à questão de inibição da expansão da produção. Uma vez que os preços possi-

bilitavam lucros atraentes e continuavam abundantes os fatores que possibilitavam a

expansão da produção cafeeira, os investimentos continuaram e, com isso, a tendência

de queda de preços no longo prazo. Esse mecanismo, entretanto, entrou em colapso

com a crise de 1929. O aumento da produção correspondeu a um aumento dos esto-

ques, mas a exportação se manteve estável, devido a uma certa inelásticidade da de-

manda pelo café. Com a Grande Depressão e a queda dos preços de todos os produtos

23

primários (o preço do café entre setembro de 1929 e setembro de 1931 caiu cerca de

280%), a possibilidade de que a compra dos estoques pudesse continuar se afigurava

ainda menor.

Era perfeitamente óbvio que os estoques que se estavam acu-

mulando não tinham nenhuma possibilidade de serem utiliza-

dos economicamente num futuro previsível. Mesmo que a eco-

nomia mundial lograsse evitar nova depressão, após a grande

expansão dos anos vinte, não havia nenhuma porta pela qual

pudesse antever a saída daqueles estoques, pois a capacidade

produtiva continuava a aumentar. A situação que se criara era,

destarte, absolutamente insustentável. (p. 182)

Furtado observa que tal situação só poderia ter sido evitada se tivessem sido

criados incentivos para o redirecionamento dos investimentos gerados pelo lucro na

produção do café para outros setores igualmente ou mais lucrativos do que o setor ca-

feeiro. No entanto, fatores conjunturais vieram a encaminhar a questão para uma solu-

ção que, ainda que de forma absolutamente inconsciente e tendo em vista a defesa dos

interesses dos produtores de café, correspondiam aos interesses da própria economia

do país. Essa saída evitou o aprofundamento da crise e mesmo fomentou o desenvol-

vimento da produção industrial para o abastecimento do mercado interno.

Para que seja compreendido o mecanismo que veio a ser implementado, é pre-

ciso inicialmente examinar alguns aspectos da conjuntura econômica da época. Uma

vez que já haviam sido feitos investimentos para o aumento da produção nos dois anos

anteriores à crise, com a maturação dos cafezais a produção atinge seu pico em 1933.

Nesse momento, já não era mais possível expandir os estoques de café por meio de

empréstimos externos, que se evaporaram como conseqüência da crise de 1929. As

reservas cambiais do governo também se esgotaram rapidamente. Assim, a questão

central passou a ser: o que fazer com a produção cafeeira. Esta deveria simplesmente

apodrecer nos pés de café? Deveria ser colhida? Se colhida, qual seria o destino da

produção: armazenamento ou destruição?

A situação peculiar foi que, do lado do consumidor não houve uma queda tão

acentuada dos preços e a demanda, apesar da crise, manteve-se relativamente constan-

te. Na verdade, o prejuízo com a queda dos preços desta vez havia ficado com os pro-

dutores. Os setores compradores, percebendo a fragilidade dos fornecedores devido à

grande quantidade de estoques, souberam impor os seus preços e recolher os lucros

com o comércio. Em um primeiro momento, a crise cambial resultou na desvalorização

24

na moeda, o que, mais uma vez, representou um alívio para o setor exportador. Aliado

a isso, fez-se um esforço para aumentar as exportações, que cresceram 25% entre 1929 e

1937. No entanto, quando a queda de preços acabou por superar a depreciação da mo-

eda, ficou patente que outra alternativa teria que ser apresentada para solucionar a

crise.

A destruição dos excedentes das colheitas se impunha, portan-

to, como uma conseqüência lógica da política de continuar co-

lhendo mais café do que se poderia vender. A primeira vista

parece um absurdo colher o produto para destruí-lo. Contudo,

situações como essas se repetem todos os dias na economia dos

mercados. Para induzir o produtor a não colher, os preços teri-

am que baixar muito mais, particularmente se se tem em conta

que os efeitos da baixa de preços eram parcialmente anulados

pela depreciação da moeda. Ora, como o que se tinha em vista

era evitar que continuasse a baixa de preços, compreende-se

que se retirasse do mercado parte do café colhido para destruí-

lo. Obtinha-se, dessa forma, o equilíbrio entre a oferta e a pro-

cura a nível mais elevado de preços. (p 189)

A recuperação econômica mundial que se inicia a partir de 1934 não irá alterar o

preço do café, que se mantém constante durante toda a década. Embora os preços de

outros produtos primários, como o algodão, aumentaram substancialmente com a re-

cuperação econômica, os preços do café em 1937 ainda eram inferiores aos preços pra-

ticados em 1932. No entanto, a política de manutenção de preços do café após a crise

de 29 pode ser considerada um sucesso devido a seu efeito mais amplo. Uma vez que

toda a dinâmica da economia estava ligada ao setor exportador de café, a política da

continuidade da produção juntamente com a destruição do café excedente permitiu

que a geração de renda fosse mantida no conjunto da economia. Assim, os trabalhado-

res rurais continuaram a receber seus salários e a consumir produtos manufaturados. O

resultado global dessa política —ainda que não planejada— foi que a queda da renda

monetária no Brasil no período mais agudo da crise foi entre 25 e 30%, enquanto nos

EUA e outros países industrializados, essa queda ultrapassou os 50%. Isso em um con-

texto no qual a queda nos preços de atacado de manufaturas tinha sido consideravel-

mente menor que a queda dos preços dos produtos primários, em especial o café.

A diferença está que nos EUA a baixa de preços acarretava

enorme desemprego, ao contrário do que estava ocorrendo no

Brasil, onde se mantinha o nível do emprego se bem que se ti-

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vesse de destruir o fruto da produção. O que importa ter em

conta é que o valor do produto que se destruía era muito inferi-

or ao montante da renda que se criava. Estávamos, em verdade,

construindo as famosas pirâmides que anos depois preconizaria

Keynes. (p. 192)

No novo contexto da crise, as condições sinalizavam para uma alteração no di-

recionamento dos investimentos. Era claro para os setores que detinham capital para

investimento que o mesmo não deveria ser dirigido para o setor cafeeiro. Nos quinze

anos após a crise de 29 foram contidos não só os investimentos na expansão dos cafe-

zais, mas também na sua manutenção, o que acabou por reduzir a capacidade produti-

va em 50% nesse período. Ao mesmo tempo, com a depreciação da moeda, os produ-

tos manufaturados importados se tornaram demasiadamente caros para o consumo no

mercado interno. Assim, criaram-se as condições para o estímulo à produção de manu-

faturados no Brasil. Esse processo foi possível devido à oferta a preços convidativos de

equipamentos de empresas que fecharam suas portas nos países industrializados. Essa

fase de expansão da indústria deu-se também por meio do uso mais intensivo da estru-

tura produtiva já instalada (como parece ter sido o caso do setor têxtil). Além disso,

houve uma expansão da indústria de bens de capital, o que viabilizou a expansão da

produção industrial mesmo com as substanciais reduções nas importações. Assim é

que, de maneira totalmente inconsciente, implementara-se no país a primeira política

de desenvolvimento industrial por meio da substituição de importações.

A decisão de continuar financiando sem recursos externos a

acumulação de estoques [isto é, sua eliminação física. C.A.],

qualquer que fosse a repercussão sobre a balança de pagamen-

tos, foi de conseqüências que não se podiam suspeitar. Manti-

nha-se assim a procura monetária em nível relativamente ele-

vado no setor exportador. Esse fato, combinado ao encareci-

mento brusco das importações (conseqüência da depreciação

cambial), à existência de capacidade ociosa em algumas indús-

trias que trabalhavam para o mercado interno e ao fato de que

já existia no país um pequeno núcleo de indústrias de bens de

capital, explica a rápida ascensão da produção industrial, que

passa a ser o fator dinâmico principal no processo de criação de

renda. (p. 202)

* * *

26

Na década seguinte, o sistema econômico passa a apresentar elementos de de-

sequilíbrio, que se manifesta no recrudescimento do processo inflacionário. As razões

para isso se localizam nas restrições ao comércio externo resultantes da Segunda Guer-

ra mundial. Como foi visto anteriormente, a economia brasileira logrou reduzir a que-

da na renda monetária por meio da política de manutenção do preço do café, destruin-

do seus estoques. Ao mesmo tempo, a expansão da produção para o mercado interno

se acentua, graças à desvalorização da moeda que altera os preços relativos dos produ-

tos manufaturados. Durante a Segunda Guerra, porém, as condições já não são tão

favoráveis.

As condições que favoreceram a expansão da indústria voltada para o mercado

interno deixam de existir e a capacidade de produção atinge sua capacidade máxima.

Ao mesmo tempo, o setor exportador continua a expandir-se: entre 1937 e 1942 o au-

mento da renda do setor de exportação foi de 45%. Assim sendo, há a acumulação de

uma renda monetária que não pode ser utilizada, pois as importações eram contidas

pelas restrições ao transporte marítimo e pela economia de guerra dos países exporta-

dores.

Ora, como a economia estava funcionando à plena utilização de

sua capacidade produtiva, mesmo sem ter em conta os efeitos

da baixa geral de produtividade, era inevitável que a pressão

resultante do desequilíbrio entre o nível da renda monetária e o

da oferta de bens e serviços se resolvesse numa alta de preços.

(p. 209)

Como os países em desenvolvimento se recuperaram mais lentamente da crise

dos anos 30, a situação de desequilíbrio teve um desenvolvimento mais lento, possibili-

tando a introdução de mecanismos para reorientar a utilização dos recursos exceden-

tes. No caso do Brasil, a solução só foi encontrada com o fim da guerra, quando se tor-

nou possível voltar às importações.

Duas opções colocaram-se ao governo diante desse quadro: permitir a desvalo-

rização da moeda e com isso o estabelecimento de um novo patamar de preços relati-

vos ou manter estável a taxa de câmbio, mas impor uma política de restrição à impor-

tação de produtos manufaturados. A escolha pela segunda alternativa teve conse-

qüências importantes para o processo de desenvolvimento industrial. Na verdade, a

escolha foi motivada mais pelo temor que a desvalorização teria sobre o custo de vida

do que por uma política deliberada de incentivo ao setor industrial. De todo o modo,

27

ao serem mantidas a taxa de câmbio e a restrição às importações criaram-se condições

extremamente favoráveis aos investimentos na produção interna de manufaturados.

Dessa forma, a conseqüência prática da política cambial desti-

nada a combater a alta de preços foi uma redução relativa das

importações de manufaturas acabadas de consumo, em benefí-

cio da de bens de capital e de matérias-primas. O setor indus-

trial era assim favorecido duplamente: por um lado, porque a

possibilidade de concorrência externa se reduzia ao mínimo

através do controle das importações; por outro, porque as maté-

rias-primas e os equipamentos podiam ser adquiridos a preços

relativamente baixos. (p. 218)

Embora essa política não tenha sido totalmente bem sucedida no que se refere

ao controle da inflação, teve pelo menos como efeito redistribuir parte dos ganhos em

produtividade do setor industrial para a população como um todo. Assim é que, entre

1945 e 1953, a elevação dos preços do setor industrial foi de 60% enquanto que na eco-

nomia como um todo foi de 130%. “Mesmo assim, o desnível entre os preços internos

dos produtos industriais e os das importações continuava a ser substancial, comparati-

vamente à paridade de 1939” (p. 219). Assim sendo, o setor que colheu maiores benefí-

cios da política cambial foi o setor industrial.

A política cambial acompanhada de controle seletivo de impor-

tações resultou, destarte, não somente em concentração, na mão

do empresário industrial, de parte substancial do aumento de

renda de que se beneficiava a economia, mas também em am-

pliação das oportunidades de inversões que se apresentavam a

esse empresário. (p. 222)

A situação de desequilíbrio tendeu a agravar-se com uma melhora substancial

no preço internacional do café em 1949. Com isso, o setor exportador voltava a aumen-

tar a renda monetária interna sem que com isso houvesse um mecanismo capaz de res-

tabelecer o equilíbrio entre essa renda e a oferta de bens de consumo internamente à

economia. Furtado chama a atenção para o fato de que esse processo inflacionário é

principalmente um mecanismo de distribuição da renda real. Entretanto, diferente-

mente do que havia ocorrido em situações anteriores, nas quais o setor claramente be-

neficiado foi o setor exportador, na situação mais complexa da economia industrial os

ciclos de distribuição e redistribuição da renda tornaram-se mais curtos, tendo uma

duração de um ano, levando à sugestão de que existiria uma inflação “neutra”, ou seja,

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à idéia de que todos preços aumentariam com a mesma taxa ao mesmo tempo. Essa

situação teria dificultado a escolha de políticas de combate à inflação.

A dificuldade que existe em deter a alta de preços, numa infla-

ção neutra de circuito anual, está em que a estabilização teria

como resultado aquilo contra o que o sistema econômico se está

defendendo, isto é, a redistribuição da renda real. Em qualquer

dia ou mês do ano existe um grupo que está na frente, na luta

pela redistribuição da renda. Esse grupo seria o beneficiário da

estabilização do nível de preços. Mesmo que fosse possível es-

tabelecer a padrão médio de distribuição da renda no período

de um ano, e que se pretendesse estabilizar os preços tomando

com base esse padrão —vale dizer, introduzindo uma série de

reajustamentos de preços e salários— dificilmente se lograria

contentar todos os grupos. (p. 228)

É nesta parte final do livro que Furtado deixa de lado sua abordagem de inter-

pretação histórica e apresenta, em breves linhas, o que seria uma alternativa para o

Brasil nesse ponto de seu desenvolvimento. Sua visão está no desenvolvimento da

indústria de bens de capital.

A transformação estrutural mais importante que possivelmente

ocorrerá no terceiro quartel do século XX será a redução pro-

gressiva da importância relativa do setor externo no processo

de capitalização. Em outras palavras, as indústrias de bens de

capital —particularmente as de equipamentos— terão de cres-

cer com intensidade muito maior do que o conjunto do setor

industrial. Essa nova modificação estrutural, que já se anuncia

claramente nos anos cinqüenta, tornará possível evitar que os

efeitos das flutuações da capacidade para importar se concen-

trem no processo de capitalização. É essa uma condição essen-

cial para que a política econômica se permita visar ao duplo ob-

jetivo de defesa do nível de emprego e do ritmo de crescimento.

Somente assim alcançará o sistema econômico uma maior flexi-

bilidade, e estará em condições de tirar maiores vantagens do

intercâmbio externo, pois poderá mais facilmente adaptar-se às

modificações da procura que se exerce nos mercados internaci-

onais. (p. 236)

29

É também nesse ponto do livro que Furtado discorre sobre as desigualdades de

desenvolvimento entre as regiões brasileiras. Na sua análise, a concentração do setor

industrial —e, portanto, da renda— na região sudeste tem explicações no processo de

desenvolvimento econômico e, deixada em seu rumo natural, tende a aprofundar-se.

Ele sugere uma nova forma de integração nacional, que superaria a mera articulação

entre as economias regionais como se observara no passado. Em outras palavras, a

superação das desigualdades regionais e, em especial, do subdesenvolvimento do nor-

deste, deveria ser uma política deliberada, capaz de fomentar a industrialização nessa

região e, ao mesmo tempo, garantir a oferta de alimentos para abastecer os centros ur-

banos em expansão.