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1 SÃO LEOPOLDO, 03 DE DEZEMBRO DE 2007 | EDIÇÃO 246 Células-tronco embrionárias Algumas ponderações éticas e científicas Editorial Neste mês de dezembro, o STF deverá julgar a ação direta de inconstitucionalidade que barra a pesquisa com células-tronco embrionárias autorizada pela nova Lei de Biossegurança. Uma discussão científica e ética está em curso. Na busca incansável pela cura de doenças degenerativas e com o intuito de prolongar a vida humana, membros da comunidade científica defendem o uso de células-tronco embrionárias para pesquisas. Em contrapartida, surge o questionamento: é ético utilizar- se de embriões para tal atividade? Esse tema polêmico está em debate nas páginas da IHU On-Line desta semana. Para Lluís Montoliu, pesquisador científico do Departamento de Biologia Molecular e Celular do Centro Nacional de Biotecnologia, com sede em Madrid, na Espanha, o principal desafio ético dessas pesquisas, consiste no debate “sobre o status, a condição que se atribui a um embrião em seus estágios pré- implantatórios”. No entanto, para o subprocurador geral da República Cláudio Fonteles, a resposta é irretorquível: “a vida é inviolável”. Fundamentado na Constituição de 1988, Fonteles é contrário à utilização de embriões para pesquisa e afirma que o estado deve “garantir a dignidade da pessoa humana”. Do mesmo pensamento compartilha Francesco D’Agostino, professor de Filosofia do Direito e de Teoria Geral do Direito, na Facoltà di Giurisprudenza da Universidade de Roma. Para ele, a humanidade precisa superar suas diferenças extrínsecas e perceber que todos compartilham “dos mesmos princípios morais”. Favorável aos avanços da ciência, ele contesta a utilização de embriões nos estudos e comenta que “nem todos os métodos que os cientistas usam são eticamente aceitáveis”. Já para Volnei Garrafa, professor da UnB, o embrião não pode ser considerada como uma pessoa. Segundo ele, “a ciência tem se mostrado impotente para definir sob o prisma acadêmico quando se dá o início da vida humana, quando um embrião passa a ser pessoa. Jamais chegaremos a um consenso, seja biomédico, seja religioso, seja moral”. Laurie Zoloth, pesquisadora e diretora do Centro de Bioética, Ciência e Sociedade da Universidade Northwestern, dos Estados Unidos, é favorável ao uso de embriões nas pesquisas, e argumenta que não deve haver limites na ciência. “A pesquisa com células-tronco embrionárias humanas é um grande avanço para a humanidade, porque destrava enigmas-chave sobre como crescem as células jovens”, considera. A idéia de Zoloth é compartilhada pelo pesquisador José Garcia Abreu Júnior, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Segundo ele, embora a reprogramação celular avance, os estudos com embriões ainda são indispensáveis como fonte comparativa de células-tronco somáticas. Nesse sentido, salienta, “as pesquisas são desenvolvidas com o objetivo final de preservar a vida ou melhorar a qualidade dela”. Considerações parecidas são feitas por James Edgar Till, Ph.D. em Biomedicina, pela Universidade de Yale. O pesquisador defende que

Células-tronco embrionárias

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  • 1 SO LEOPOLDO, 03 DE DEZEMBRO DE 2007 | EDIO 246

    Clulas-tronco embrionrias

    Algumas ponderaes ticas

    e cientficas

    Editorial Neste ms de dezembro, o STF dever julgar a ao

    direta de inconstitucionalidade que barra a pesquisa com

    clulas-tronco embrionrias autorizada pela nova Lei de

    Biossegurana. Uma discusso cientfica e tica est em

    curso. Na busca incansvel pela cura de doenas

    degenerativas e com o intuito de prolongar a vida

    humana, membros da comunidade cientfica defendem o

    uso de clulas-tronco embrionrias para pesquisas. Em

    contrapartida, surge o questionamento: tico utilizar-

    se de embries para tal atividade? Esse tema polmico

    est em debate nas pginas da IHU On-Line desta

    semana.

    Para Llus Montoliu, pesquisador cientfico do

    Departamento de Biologia Molecular e Celular do Centro

    Nacional de Biotecnologia, com sede em Madrid, na

    Espanha, o principal desafio tico dessas pesquisas,

    consiste no debate sobre o status, a condio que se

    atribui a um embrio em seus estgios pr-

    implantatrios. No entanto, para o subprocurador geral

    da Repblica Cludio Fonteles, a resposta

    irretorquvel: a vida inviolvel. Fundamentado na

    Constituio de 1988, Fonteles contrrio utilizao de

    embries para pesquisa e afirma que o estado deve

    garantir a dignidade da pessoa humana. Do mesmo

    pensamento compartilha Francesco DAgostino,

    professor de Filosofia do Direito e de Teoria Geral do

    Direito, na Facolt di Giurisprudenza da Universidade de

    Roma. Para ele, a humanidade precisa superar suas

    diferenas extrnsecas e perceber que todos

    compartilham dos mesmos princpios morais. Favorvel

    aos avanos da cincia, ele contesta a utilizao de

    embries nos estudos e comenta que nem todos os

    mtodos que os cientistas usam so eticamente

    aceitveis. J para Volnei Garrafa, professor da UnB, o

    embrio no pode ser considerada como uma pessoa.

    Segundo ele, a cincia tem se mostrado impotente para

    definir sob o prisma acadmico quando se d o incio da

    vida humana, quando um embrio passa a ser pessoa.

    Jamais chegaremos a um consenso, seja biomdico, seja

    religioso, seja moral.

    Laurie Zoloth, pesquisadora e diretora do Centro de

    Biotica, Cincia e Sociedade da Universidade

    Northwestern, dos Estados Unidos, favorvel ao uso de

    embries nas pesquisas, e argumenta que no deve haver

    limites na cincia. A pesquisa com clulas-tronco

    embrionrias humanas um grande avano para a

    humanidade, porque destrava enigmas-chave sobre como

    crescem as clulas jovens, considera. A idia de Zoloth

    compartilhada pelo pesquisador Jos Garcia Abreu

    Jnior, da Universidade Federal do Rio de Janeiro

    (UFRJ). Segundo ele, embora a reprogramao celular

    avance, os estudos com embries ainda so

    indispensveis como fonte comparativa de clulas-tronco

    somticas. Nesse sentido, salienta, as pesquisas so

    desenvolvidas com o objetivo final de preservar a vida ou

    melhorar a qualidade dela. Consideraes parecidas so

    feitas por James Edgar Till, Ph.D. em Biomedicina, pela

    Universidade de Yale. O pesquisador defende que

  • 2 SO LEOPOLDO, 03 DE DEZEMBRO DE 2007 | EDIO 246

    embries excedentes devem ser doados e utilizados

    para pesquisas que poderiam conduzir s novas terapias

    mdicas. Karen Lebacqz, ex-professora de tica

    Teolgica, da Pacific School of Religion, em Berkeley,

    Califrnia, afirma que possvel realizar pesquisas com

    clulas-tronco embrionrias, de tal maneira que se

    respeite o embrio. Ela argumenta que o destino do

    embrio muda em pesquisa com clulas estaminais. Ele

    no dar vida ao embrio como uma criana, mas ele

    trar a possibilidade de uma vida estendida na forma de

    uma linha de clulas estaminais.

    Tatiana Midori, fsica, fala da possibilidade da

    incorporao pelas clulas das nanopartculas de xidos

    de ferro. Assim, com a injeo em seres vivos de

    clulas-tronco marcadas com as nanopartculas,

    possvel acompanhar o seu percurso de modo no-

    invasivo.

    Andr Dick comenta o livro Vira e mexe,

    nacionalismo: paradoxos do nacionalismo literrio, de

    Leyla Perrone-Moiss. Os poemas desta edio so do

    professor Benno Dischinger. Parceiro do IHU, ele

    tambm o destaque do IHU Reprter desta semana.

    A todas e todos uma tima leitura e uma excelente

    semana!

  • 3 SO LEOPOLDO, 03 DE DEZEMBRO DE 2007 | EDIO 246

    Leia nesta edio PGINA 01 | Editorial

    A. Tema de capa ENTREVISTAS

    PGINA 04 | Llus Montoliu: Uma mudana radical no panorama das clulas-tronco

    PGINA 07 | Cludio Fonteles: Embrio humano vida humana

    PGINA 10 | Francesco DAgostino: Embries so seres humanos: eticamente indispensvel respeit-los

    PGINA 13 | Laurie Zoloth: Cincia sem limites

    PGINA 15 | Karen Lebacqz: O respeito pelo embrio compatvel com a pesquisa de clulas estaminais

    PGINA 17 | Jos Garcia Abreu Jnior: Pesquisas em prol da vida?

    PGINA 20 | Volnei Garrafa: O embrio no uma pessoa

    PGINA 24 | James Edgar Till: Destruio embrionria x avano cientfico: uso de clulas-tronco esbarra na legislao

    B. Destaques da semana Entrevista da Semana

    PGINA 26 | Tatiana Midori: Sntese e caracterizao de nanopartculas para aplicaes biomdicas

    Inveno

    PGINA 28 | Poema de Benno Dischinger

    Livro da Semana

    PGINA 31 | Vira e mexe, nacionalismo, de Leyla Perrone-Moiss

    Anlise de Conjuntura

    PGINA 37 | Destaques On-Line

    PGINA 39 | Frases da Semana

    C. IHU em Revista PERFIL POPULAR

    PGINA 40| Izaque Bauer

    PGINA 43| Sala de Leitura

    IHU REPORTER

    PGINA 44| Benno Dischinger

  • 4 SO LEOPOLDO, 03 DE DEZEMBRO DE 2007 | EDIO 246

    Uma mudana radical no panorama das clulas-tronco ENTREVISTA COM LLUS MONTOLIU

    O Prof. Dr. Llus Montoliu pesquisador cientfico do Departamento de Biologia

    Molecular e Celular do Centro Nacional de Biotecnologia, com sede em Madrid, na

    Espanha. Licenciado e doutor em Cincias Biolgicas pela Universidad de

    Barcelona, desde 1991 trabalha em diversos projetos no campo da transgnese

    animal. Na entrevista que concedeu por e-mail, com exclusividade para a IHU On-

    Line, Montoliu fala sobre as implicaes ticas do debate em torno das clulas-

    tronco embrionrias e sobre os avanos das recentes descobertas na rea.

    Confira.

    IHU On-Line - Quais seriam os maiores avanos da

    clonagem teraputica e da relao entre a clonagem e

    as clulas-tronco humanas?

    Llus Montoliu - Como sabemos, lamentavelmente, as

    propostas de clonagem teraputica, descritas e

    verificadas em ratos, no puderam se aplicar, todavia,

    em clulas humanas. O trabalho do pesquisador sul-

    coreano Woo Suk Hwang1, que supostamente descreveu a

    obteno de clulas-tronco a partir de embries humanos

    clonados, tem sido considerado uma fraude. Hoje, apesar

    de haver equipes dispostas a prov-lo, no temos

    constncia tcnica de que a clonagem teraputica em

    seres humanos constitua uma alternativa vivel,

    reprodutvel, para a medicina regenerativa ou

    reparadora, ainda que o desenho terico seja

    prometedor e a possibilidade de gerar clulas com a

    identidade do paciente-receptor-doador continue sendo

    muito atrativa. A vantagem principal das clulas-tronco

    de origem embrionria, frente s clulas tronco de

    origem adulta, somticas, radicava em sua plasticidade.

    Hoje em dia, com o recente descobrimento das clulas-

    1 Woo Suk Hwang: suposto pesquisador pioneiro na clonagem de

    embries humanos para obter clulas-tronco. Tambm lidera uma

    equipe de cientistas na Universidade de Seul, na Coria do Sul. (Nota

    da IHU On-Line)

    tronco pluripotentes2 induzidas, a partir de clulas da

    pele (realizado, de forma independente, por duas

    equipes lideradas por Yamanaka3 e Thomson4), o

    panorama mudou radicalmente e pode ser que j no

    seja to necessria a clonagem teraputica. Ao menos, o

    que sim certo, que descobrimos novas alternativas

    para obter clulas pluripotentes que se parecem muito s

    clulas-tronco embrionrias.

    IHU On-Line - Quais so as principais expectativas na

    sociedade em relao aos avanos cientficos

    relacionados clonagem teraputica? As clulas-tronco

    embrionrias podem resolver todos os problemas da

    medicina regenerativa? 2 Clulas-tronco pluripotentes: so capazes de gerar tecidos de

    origem ectodrmica, endodrmica ou mesodrmica, mas no

    conseguem se diferenciar em placenta e anexos embrionrios. Elas

    surgem aproximadamente a partir do 5 dia ps-fecundao, quando o

    embrio tem cerca de 32 a 64 clulas. (Nota da IHU On-Line) 3 Shinya Yamanaka: respeitado cientista japons, da Universidade de

    Kyoto, no Japo, que tambm conseguiu clonar camundongos atravs

    das clulas da pele. (Nota da IHU On-Line) 4 James Thomson: bilogo e cientista americano, da Universidade de

    Winsconsin, nos Estados Unidos. um dos pioneiros na pesquisa com

    clulas-tronco embrionrias. Atualmente, tambm co-diretor do

    Instituto de Clulas-Tronco da Universidade de Harvard. (Nota da IHU

    On-Line)

  • 5 SO LEOPOLDO, 03 DE DEZEMBRO DE 2007 | EDIO 246

    Llus Montoliu - Em modelos animais, especificamente

    em ratos, os nicos nos quais se tem podido avaliar, de

    fato, a clonagem teraputica, a resposta que uma

    alternativa muito prometedora para obter linhagens

    celulares especficas com a identidade gentica do

    paciente-receptor. Entendo que as expectativas da

    sociedade frente a todas estas tcnicas so enormes,

    logicamente, mas a partir dos mbitos cientficos

    devemos responder com tranqilidade, sistematicidade e

    prudncia, e continuar pesquisando o processo.

    IHU On-Line - Como o senhor v a recente descoberta

    da nova tcnica de produzir clulas-tronco a partir de

    clulas adultas da pele? Elas agem como as clulas-

    tronco embrionrias? Tm o mesmo potencial de

    regenerao? Essa descoberta pode realmente

    provocar mudanas na utilizao de embries?

    Llus Montoliu Depois do nascimento de Dolly (1996)

    e da obteno das primeiras clulas-tronco embrionrias

    humanas (1998), este talvez seja o experimento mais

    surpreendente, inesperado e prometedor neste campo.

    Os primeiros dados vieram da equipe de Yamanaka em

    2006, em ratos. Estes mesmos experimentos foram

    reproduzidos pelo laboratrio de Jaenisch5 em 2007, e,

    finalmente, tambm este ano, a mesma equipe de

    Yamanaka e a de Thomson, a que descobriu as clulas

    embrionrias pluripotentes humanas, tem replicado os

    experimentos em clulas humanas. Com efeito, a

    modificao gentica de algumas clulas da pele

    mediante a introduo de quatro genes induz que

    aquelas se reprogramem e convertam em clulas-tronco

    pluripotentes, praticamente indistinguveis das clulas-

    tronco pluripotentes embrionrias. um descobrimento

    formidvel. Pelo que sabemos, tem um potencial

    5 Rudolf Jaenisch (1942): alemo especialista em Biologia Celular e

    clonagem. pesquisador do Instituto de Tecnologia de Massachussetts e

    do Instituto Whitehead para Pesquisas Biomdicas, nos Estados Unidos.

    (Nota da IHU On-Line)

    regenerador idntico ao das clulas embrionrias, ainda

    que, todavia, seja preciso pesquisar muito antes de

    passar este descobrimento s clnicas. A modificao

    gentica das clulas no incua e pode causar

    problemas secundrios, pois se usam vrus (retrovrus)

    para vincular os genes clula, que, nestes momentos,

    no poderia ser usada em aplicaes clnicas humanas,

    pelo perigo potencial que acarretam. Porm, se

    possvel reativar os mesmos genes que agora se tem

    aportado externamente, ou seja, despertar os prprios

    genes das clulas da pele, ento poderemos pensar numa

    eventual passagem s aplicaes nas clnicas. E, com

    efeito, estes estudos permitem prever uma diminuio

    no uso de embries, posto que eles j no seriam

    necessrios para obter clulas-tronco pluripotentes, que

    tambm poderiam induzir-se a partir de clulas da pele,

    ou de outros lugares do corpo.

    IHU On-Line - O que o senhor apontaria como os

    grandes desafios ticos que envolvem as pesquisas

    sobre clulas-tronco embrionrias?

    Llus Montoliu - O uso de embries humanos, apesar de

    que seja para aplicaes potencialmente benficas,

    sempre implica em controvrsia, pois no todas as

    pessoas concedem ao embrio o mesmo status. O que

    para uns um grupo de clulas com um potencial imenso

    de desenvolvimento (sempre e quando se implante no

    tero de uma mulher), para outros um projeto de vida

    em si mesmo, que, levado o argumento ao extremo, se

    reveste de quase os mesmos direitos que os de uma

    pessoa humana. Este o principal desafio tico, o debate

    sobre o status, a condio que se lhe atribui a um

    embrio em seus estgios pr-implantatrios. um tema

    sobre o qual todo o mundo tem uma opinio, mas nele se

    mesclam dados tcnicos, cientficos, objetivos, crenas e

    valores, subjetivos, que correspondem ao mbito pessoal

    de cada um, sendo todos respeitveis.

  • 6 SO LEOPOLDO, 03 DE DEZEMBRO DE 2007 | EDIO 246

    IHU On-Line - Em quais so tipos de tratamento as

    clulas-tronco adultas ou somticas podem ser

    utilizadas?

    Llus Montoliu - Na teoria, nos mesmos procedimentos

    para os quais estariam indicadas as clulas-tronco

    pluripotentes embrionrias (ou, agora, induzidas). Em

    todo tecido que requer ser reparado ou regenerado,

    possvel induzir a diferenciao das clulas-tronco a esse

    tecido destino. Sobre o papel, o potencial diferenciador,

    a plasticidade das clulas embrionrias pluripotentes

    parecia superior das clulas-tronco adultas, ainda que

    os recentes experimentos com clulas-tronco

    pluripotentes induzidas obrigam a repensar todo este

    esquema e talvez, estas clulas, sejam suficientes para

    obter qualquer tipo de clulas necessrias.

    IHU On-Line - O senhor vislumbra a possibilidade de

    controlar o processo de diferenciao e proliferao

    das clulas-tronco embrionrias que, at ento,

    considerado imprevisvel? O que podemos imaginar, do

    ponto de vista cientfico, se esse controle fosse

    possvel?

    Llus Montoliu - Em alguns casos, em modelos animais

    (em ratos) tem deixado de ser imprevisvel. O processo

    diferenciador ocorre depois de uma cascata de

    acontecimentos, de indues, causado pela expresso de

    genes especficos, e/ou pela apario de sinais

    provenientes de estmulos externos (por exemplo,

    hormonais e fatores de crescimento). Hoje em dia,

    possvel conduzir a diferenciao de clulas-tronco para

    neurnios, ou clulas mais especializadas, ainda que no

    conheamos, at o momento, todas as chaves do

    processo. Ser necessrio realizar muito mais pesquisas

    para que o processo seja robusto, reproduzvel e no

    submetido ao acaso de circunstncias que escapam ao

    controle do pesquisador. Estou certo de que, cedo ou

    tarde, isto ser possvel. questo de tempo e de

    recursos que se dediquem pesquisa neste campo.

    IHU On-Line Qual a sua opinio sobre a posio da

    Igreja em relao ao uso de embries para pesquisa

    com clulas-tronco?

    Llus Montoliu - Cada grupo social, cada associao,

    livre para manifestar sua posio sobre este e outros

    temas cientficos. Todas as opinies so respeitveis. O

    dever do cientista pesquisar, aportar conhecimento e

    desenhar estratgias que permitam melhorar a qualidade

    de vida da sociedade. O dever dos governantes escutar

    a todos os representantes sociais, dotar-se da melhor

    informao tcnica possvel e, a partir de tudo isso,

    legislar e permitir, ou no, determinados

    desenvolvimentos cientficos, segundo os quais

    considerem oportuno para a sociedade que representam.

    IHU On-Line - Em que sentido podemos associar as

    descobertas e os avanos em pesquisas sobre clulas-

    tronco com a sede, o desejo do ser humano pela

    imortalidade e pela juventude eterna?

    Llus Montoliu - A busca da eterna juventude ou a luta

    contra o envelhecimento so dois temas de

    inquestionvel interesse, provavelmente mais social do

    que cientfico. Em animais, se tem conseguido chegar a

    estender de forma muito considervel os anos de vida de

    muitas espcies. Com efeito, com os tericos possveis

    benefcios da medicina regenerativa no um disparate

    pensar que se poderia estender a vida e, sobretudo, a

    qualidade de vida das pessoas alguns anos a mais.

    Biomedicamente falando, parece que ns, seres

    humanos, poderamos chegar a viver uns 150 anos. No

    entanto, cabe perguntar-nos em que estado e em que

    condies. Em minha opinio, muito mais importante que

    viver 150 anos viver os que nos cabe viver, mas da

    melhor maneira possvel, desfrutando dos momentos, de

    todos os aspectos maravilhosos que a vida tem.

  • 7 SO LEOPOLDO, 03 DE DEZEMBRO DE 2007 | EDIO 246

    Embrio humano vida humana ENTREVISTA COM CLAUDIO FONTELES

    O subprocurador geral da Repblica Cludio Lemos Fonteles contra o uso de

    embries humanos em pesquisas sobre clulas-tronco. Desde 2005, ele move no

    Supremo Tribunal Federal uma ao direta de inconstitucionalidade contra o

    dispositivo da Lei de Biossegurana que permite o uso de clulas-tronco retiradas de

    embries humanos para fins de pesquisa e terapia. Em entrevista concedida por

    telefone IHU On-Line, ele explica sua posio e enfatiza que sua argumentao no

    tem nada de fundo religioso. assentada em dois princpios constitucionais: a

    dignidade da pessoa humana e a inviolabilidade da vida humana.

    Claudio Fonteles graduou-se em Direito, pela Universidade de Braslia, onde tambm

    concluiu o mestrado em Direito, com a dissertao A posio do Ministrio Pblico -

    perspectiva processual penal. Fonteles exerceu o magistrio por quase 40 anos, tendo

    lecionado Direito Penal e Processual Penal (1971-2002), na UnB, UniCeub e Escola

    Superior de Magistratura. Ingressou no Ministrio Pblico Federal em 1973 e exerceu o

    cargo de procurador-geral da Repblica, de 2003 a 2005. Atuou politicamente como

    secundarista e universitrio, tendo sido membro da Ao Popular AP -, movimento

    estudantil ligado esquerda catlica que comandou a UNE na dcada de 1960.

    Catlico, Fonteles membro leigo da Ordem de So Francisco.

    IHU On-Line - Quais so os motivos que o levaram a

    solicitar o impedimento de pesquisas com clulas-

    tronco embrionrias? Em que o senhor fundamenta sua

    posio contrria utilizao de clulas-tronco

    embrionrias para pesquisa?

    Cludio Fonteles So dois fundamentos de ordem do

    Direito Constitucional Brasileiro. Porque a nossa

    Constituio marca, logo na abertura, os princpios

    fundamentais que devem reger a convivncia entre

    brasileiros e brasileiras. Ela destaca no Artigo 3, inciso I,

    como princpio fundamental, a dignidade da pessoa

    humana. um princpio aberto. A partir da, ela vai, em

    todo seu contexto, pontuando como garantir a dignidade

    da pessoa humana. E faz isso logo no Artigo 5, quando

    fala dos direitos e garantias individuais. E, nesse artigo,

    ela estabelece o princpio da inviolabilidade da vida

    humana. Se a prpria constituio diz que a pessoa

    humana, em nosso pas, digna e que o primeiro marco

    para assentar a dignidade humana preservar, em toda

    sua extenso, a vida, usando, portanto, a expresso a

    vida inviolvel, h a necessidade de marcar quando

    comea a vida humana. Eu questionei o tema para dar

    efetividade a esses princpios perante a Suprema Corte, a

    partir de uma lei infraconstitucional, que foi colocada

    pelo parlamento brasileiro para regular a produo de

    gneros alimentcios, que a chamada Lei de

  • 8 SO LEOPOLDO, 03 DE DEZEMBRO DE 2007 | EDIO 246

    Biossegurana Alimentar6. O Artigo 5 dessa lei, que est

    completamente fora de lugar, permite a pesquisa com

    embries humanos. Eu digo que embrio humano vida

    humana. E afirmo isso com base em posicionamentos de

    cientistas, que marcam o incio da vida na fecundao.

    IHU On-Line Ento, o senhor contra o uso de

    embries congelados em clnicas de reproduo

    assistida nas pesquisas com clulas-tronco?

    Cludio Fonteles Claro que sou contra, porque

    embries congelados so vida. No debate que aconteceu

    no Supremo Tribunal Federal, em especial a professora

    Alice Teixeira7, da USP, demonstrou que h casos de

    embries congelados durante 13 anos que se tornaram

    vida. No se pode eliminar a vida. No momento em que

    h fecundao, surge o embrio, chamado zigoto, que

    por ele mesmo comea a se auto-dinamizar, a se auto-

    movimentar e a se bipartir por um mecanismo prprio. E,

    nessa auto-diviso, ele vai se movimentando em direo

    ao tero materno. O tero no definitivo para a vida

    desse embrio. A vida j existe. O tero acolhe apenas.

    No o ninho que d vida ao passarinho, no ? Dentro

    dos conceitos de auto-dinamizao e auto-

    movimentao, demonstramos que no momento da

    fecundao j h vida prpria, independente do pai e da

    me. E chamamos essa vida de nica e irrepetvel.

    IHU On-Line E se esses embries das clnicas de

    fertilizao morrerem por ficarem tempo demais

    congelados, considerando que poderiam ter sido

    6 Lei de Biossegurana: aprovada em maro de 2005, estabelece

    normas de segurana e mecanismos de fiscalizao de atividades que

    envolvam organismos geneticamente modificados (OGM) e seus

    derivados. (Nota da IHU On-Line) 7 Alice Teixeira: graduada em Medicina pela Universidade Federal

    de So Paulo e atua como professora associada da Universidade Federal

    de So Paulo. Atualmente, ela vice-presidente da Sociedade Brasileira

    de Biofsica e Coordenadora do Ncleo Interdisciplinar de Biotica da

    UNIFESP. (Nota da IHU On-Line)

    usados para pesquisas capazes de salvar muitas vidas?

    Como o senhor v essa questo?

    Cludio Fonteles A minha ao significa impedir uma

    nica linha de pesquisa nas doenas degenerativas, que

    relativa ao uso de embrio humano, porque esse vida.

    Depois da minha ao, proposta h alguns anos, a

    medicina evoluiu tanto que est mostrando outros

    caminhos possveis. Descobriu-se que o lquido amnitico

    da mulher tem as mesmas propriedades que o embrio

    humano no processo de gerar clulas totipotentes8.

    Depois, vemos o processo de regenerao at das clulas

    adultas se transformarem em clulas com as mesmas

    propriedades de totipotncia. Agora, recentemente, a

    imprensa toda mostrou que a pele de um adulto tem

    chances de criar clulas totipotentes. Minha ao no

    paralisa em praticamente nada a pesquisa mdica para

    propiciar a terapia nas doenas degenerativas. Eu e

    minha famlia toda autorizamos a doao de rgos em

    caso de morte. Os seres humanos que no doam - e um

    direito que eles tm de no doarem - estariam tambm

    contribuindo para que a cincia no se desenvolvesse?

    No. uma deciso pessoal. Ainda no temos resultados

    concretos e positivos com clulas-tronco embrionrias e

    temos a medicina nos provando que h outros campos

    com a mesma possibilidade de desenvolver com sucesso a

    pesquisa com clulas totipotentes que no as

    embrionrias. Isso muito importante.

    IHU On-Line - Existe diferena moral entre a

    realizao de pesquisas com embries criados em

    laboratrios, como o caso dos embries gerados

    atravs do processo de fertilizao in vitro, ou

    embries gerados a partir do modo natural?

    8 Clulas Totipotentes: so aquelas capazes de se diferenciar em

    todos os 216 tecidos que formam o corpo humano, incluindo a placenta

    e anexos embrionrios. As clulas totipotentes so encontradas nos

    embries nas primeiras fases de diviso, isto , quando o embrio

    corresponde a 3 ou 4 dias de vida. (Nota da IHU On-Line)

  • 9 SO LEOPOLDO, 03 DE DEZEMBRO DE 2007 | EDIO 246

    Cludio Fonteles Sou favorvel fertilizao in vitro

    para os casais que so estreis, para que possam ter essa

    chance. Inclusive, hoje, a medicina permite um controle

    muito grande em relao a esses embries, no sendo

    mais preciso produzir em larga escala para poder

    fecundar a mulher. Tudo se faz em defesa da vida, mas

    com parmetros, disciplina e com o valor tico de

    preserv-la.

    IHU On-Line - Qual deve ser o papel e o poder de

    deciso do Estado, uma vez que os valores morais so,

    em muitos casos, distintos na sociedade,

    principalmente entre grupos religiosos?

    Cludio Fonteles O papel e o poder de deciso do

    Estado deve se dar nos parmetros jurdicos. Na nossa

    conversa, eu estou mostrando que minha argumentao

    no tem nada de fundo religioso. Ela assentada em dois

    princpios constitucionais: a dignidade da pessoa humana

    e inviolabilidade da vida da pessoa humana e, a partir

    da, esses princpios refletem uma opo tica do estado

    brasileiro porque o estado precisa ser tico, mas no

    religioso. Dentro da viso tica e universal, o

    fundamental para ns, homens e mulheres, que seja

    respeitada a vida da mulher e do homem, desde seu

    primeiro momento, quando se chama embrio, depois

    feto, at nascer. Depois, vai se chamar criana, jovem,

    adulto e velho. E o estado h de defender a mulher e o

    homem em todos os estgios da vida.

    IHU On-Line - A maioria dos cientistas unnime ao

    afirmar que o potencial das clulas-tronco

    embrionrias bem maior do que o das clulas-tronco

    adultas (somticas). Como o senhor se posiciona em

    relao ao futuro da cincia mdica no Brasil, caso no

    se possa usar embries humanos para pesquisas? O

    Brasil corre risco de ser ultrapassado nas pesquisas?

    Pode ficar para trs e estar margem do acesso aos

    remdios e tratamentos fornecidos pelos outros

    pases?

    Cludio Fonteles Essa uma viso equivocada. H

    resultados na pesquisa com clulas-tronco adultas, a

    partir da medula ssea. No vamos ficar atrasados coisa

    nenhuma. As recentes concluses da medicina vo no

    sentido contrrio do que dizem esses cientistas, que

    esto pesquisando com clulas-tronco embrionrias.

    Esses cientistas deviam utilizar sua inteligncia e seus

    esforos, que so magnficos, para essas reas da

    medicina internacional. Caso contrrio, ficaremos a

    reboque da pesquisa japonesa e americana, que j est

    partindo para pesquisar em outros setores. Veja essa

    bem recente, que nem v praticamente mais razo de

    pesquisar com embrio. Ento, por que ficam batendo

    nessa tecla dos embries, que no tem nada de real,

    apenas possibilidades e idias abstratas. De concreto,

    temos apenas resultados com clulas-tronco adultas. Me

    agradaria muito se um dia viesse um cientista ou uma

    cientista brasileira e dissesse: Pronto. Depois de anos de

    pesquisa, temos aqui a demonstrao clara de que no

    precisamos mais matar seres humanos (embries) e

    podemos conseguir a mesma propriedade de totipotncia

    nesse tipo de pesquisa.

    IHU On-Line - Que informaes precisam ser

    esclarecidas para que a sociedade entenda

    efetivamente o que os cientistas vm pesquisando

    nessa rea?

    Cludio Fonteles importante que as universidades

    se envolvam, a mdia d um tratamento srio da matria,

    permitindo que as pessoas exponham amplamente seus

    pontos de vista, seu raciocnio e motivao, seja contra

    ou a favor, e isso seja levado do Amazonas ao Rio Grande

    do Sul. preciso mostrar ao pas que temos que debater

    grandes questes. assim que cresce uma sociedade em

    forma de civilizao, na medida em que as pessoas

    debatam, sem nacionalismos, com suas razes, para que

    todos possam tirar suas concluses. Eu sou catlico e

  • 10 SO LEOPOLDO, 03 DE DEZEMBRO DE 2007 | EDIO 246

    claro que minha f catlica bateu a nessa questo. Mas,

    como eu j mostrei em minhas outras respostas, a

    questo muito mais de compreenso jurdica do que de

    argumentao teolgica. Resvalar para o lado emocional,

    como tem feito a grande mdia, no leva a nada.

    Embries so seres humanos: eticamente indispensvel

    respeit-los ENTREVISTA COM ENTREVISTA COM FRANCESCO DAGOSTINO

    Precisamos superar as diferenas extrnsecas e chegar ao corao de cada

    sistema moral particular. Quando isso acontecer, facilmente as pessoas percebero

    que a humanidade uma s e compartilha dos mesmos princpios morais de fundo,

    alertou o professor de Filosofia do Direito e de Teoria Geral do Direito, na Facolt di

    Giurisprudenza da Universidade de Roma, Francesco DAgostino, em entrevista por e-

    mail, concedida IHU On-Line. Relembrando os experimentos feitos pelos nazistas, o

    pesquisador salientou que nem todos os mtodos que os cientistas usam na pesquisa

    so eticamente aceitveis. Ao criticar os estudos com clulas-tronco embrionrias,

    ele reitera que o objetivo no limitar a cincia, mas, sim, os mtodos que ela

    adota. Para ele, futuramente a prpria cincia abandonar como improdutiva

    aquela pesquisa que, levando destruio de embries, cria problemas ticos

    insuperveis.

    Francesco D'Agostino, nascido em Roma, em 1946, professor de Filosofia do

    Direito na Faculdade de Jurisprudncia da Universidade de Roma "Tor Vergata",

    onde dirige atualmente o Departamento de Histria e Teoria do Direito. professor

    visitante em vrias universidades do exterior (Paris II - Panthon-Assas, Madri

    Complutense, Buenos Aires, Granada, Navarra, Atenas). Dirige a Revista internacional

    de Filosofia do Direito. presidente, desde 2002, da Unio italiana de juristas

    catlicos e vice-presidente do Pontifcio Conselho para a Famlia, e membro do

    Comit Nacional para a Biotica, do qual foi de 1995 a 1998 e de 2002 a 2006;

    atualmente, seu presidente honorrio. autor de vrios livros, entre os quais,

    publicado em portugus, citamos, Biotica - Segundo o enfoque da filosofia do direito

    (So Leopoldo: Unisinos, 2006).

  • 11 SO LEOPOLDO, 03 DE DEZEMBRO DE 2007 | EDIO 246

    IHU On-Line - O que as pesquisas com clulas-tronco

    somticas e embrionrias representam para a cincia?

    Como o senhor avalia o desenvolvimento das pesquisas

    do ponto de vista tico? Elas podem ser consideradas

    um atentado humanidade?

    Francesco DAgostino - No a pesquisa com clulas

    estaminais9 enquanto tal que cria problemas ticos, mas

    aquela pesquisa que, para obter clulas estaminais, mata

    embries humanos. Estando convicto de que os embries

    so seres humanos a ttulo pleno, na primarssima fase de

    seu desenvolvimento, acredito ser eticamente

    indispensvel respeit-los.

    IHU On-Line - Como proceder com a tica teolgica e

    racional no campo cientfico? Elas podem ser

    consideradas uma premissa vlida para reger os

    padres da biotica?

    Francesco DAgostino - A biotica no tem um

    fundamento nem bblico nem teolgico: uma anlise

    interdisciplinar de tipo estritamente filosfico. A nica

    filosofia til para construir a biotica a metafsica, no

    no sentido tradicional de ontologia, mas naquele mais

    genrico, de uma perspectiva que no se firma em

    considerar a realidade emprica. De fato, somente com a

    hiptese de que a vida humana tenha um valor absoluto

    (isto , meta-fsico) possvel pretender sempre e em

    geral sua defesa. A metafsica racional. Irracional ,

    antes, o utilitarismo que, reduzindo a tica a um clculo

    diferencial entre til e prejudicial, no consegue

    justificar a relevncia moral da vida humana.

    9 Clulas estaminais: clulas primrias encontradas em todos os

    organismos multicelulares que tm a habilidade de se renovar por meio

    da diviso celular mittica, podendo haver uma diferenciao em

    clulas especializadas. Ou seja, so clulas em que a sua funo

    ainda no foi decidida, mas com o potencial de se diferenciarem numa

    vasta gama de clulas. H duas possibilidades de extrao das clulas

    estaminais. Podem ser adultas ou embrionrias. (Nota da IHU On-Line)

    IHU On-Line - Quais so as emergncias ticas que

    devem ser consideradas nas pesquisas com clulas-

    tronco? Esta atividade necessita de uma

    regulamentao jurdica?

    Francesco DAgostino - Parece, aps as recentes

    declaraes de Wilmut10, que a pesquisa com embries

    para obter clulas estaminais tenha se tornado suprflua.

    Ou seja, parece que a prpria cincia abandonar como

    improdutiva aquela pesquisa que, levando destruio

    dos embries, criava problemas ticos insuperveis.

    IHU On-Line - Em seu livro Biotica na perspectiva

    da filosofia do direito (So Leopoldo: Editora Unisinos,

    2006)11, o senhor se refere idia de um acordo,

    sugerido por Engelhardt. Em seguida, sugere um

    encontro dialgico ontolgico entre as pessoas para

    garantir uma estrutura moral. possvel a realizao

    deste dilogo entre seres humanos com crenas e

    concepes ticas e morais diversas?

    Francesco DAgostino - Engelhardt12 fala de

    estrangeiros morais com referncia queles homens e

    quelas culturas que tm valores e costumes diversos. Na

    realidade, o processo de globalizao no d razo a

    Engelhardt: os valores morais so universais. Se nos

    parecem diversos e irredutveis, somente por causa de

    sua diversa encarnao nos sistemas sociais particulares.

    Quando, no entanto, se consegue superar estas

    diferenas extrnsecas e chegar ao corao de cada

    sistema moral particular, pode-se ver facilmente que a 10 Ian Wilmut: cientista escocs, lder da equipe que produziu a

    ovelha Dolly, em 1996. Sobre Wilmut, confira as Notcias do Dia do

    site do IHU, em 15-11-2007, Clonagem teraputica. Suas possibilidades,

    e em 19-11-2007, Ian Wilmut desiste do clone teraputico. (Nota da

    IHU On-Line) 11 A edio original est intitulada como Bioetica nella prospecttiva

    della filosofia del diritto (Torino: Giappichelli Editore, 1998). (Nota

    da IHU On-Line) 12 Hugo Tristram Engelhardt Jr.: filsofo americano, doutor em

    Filosofia e Medicina, professor da Universidade de Rice, em Houston,

    Texas. (Nota da IHU On-Line)

  • 12 SO LEOPOLDO, 03 DE DEZEMBRO DE 2007 | EDIO 246

    humanidade uma s e compartilha dos mesmos

    princpios morais de fundo.

    IHU On-Line - Nesta mesma obra, o senhor afirma

    que a liberdade das investigaes cientficas devem

    constantemente ser afirmada e garantida, j que, no

    saber e conhecer, nada pode ser considerado ilcito.

    Mas, ao mesmo tempo, chama ateno para a

    necessidade de impor limites e rigorosos controles

    ticos nessas pesquisas. Como possvel estabelecer

    relaes entre estas duas perspectivas?

    Francesco DAgostino - Conhecer sempre um bem,

    permanecer na ignorncia sempre um mal. Mas nem

    todos os modos de adquirir um conhecimento so lcitos:

    por exemplo, no posso obter uma confisso com a

    tortura. Analogamente, nem todos os mtodos que os

    cientistas usam na pesquisa so eticamente aceitveis:

    basta recordar os experimentos feitos pelos nazistas nos

    campos de concentrao. Ningum quer limitar a

    cincia, mas em alguns casos somente os mtodos que

    ela adota.

    IHU On-Line - Ao cogitar a possibilidade de

    transformar a natureza humana, o homem no pe em

    risco sua dignidade e os direitos humanos? Como

    proteg-los, tendo em vista os progressos e avanos da

    gentica?

    Francesco DAgostino - No cria problemas o fato de

    que a natureza seja transformada pelo homem: isto em

    qualquer medida sempre ocorreu (pensemos na

    inatural domesticao dos animais selvagens). Criam

    problemas as razes pelas quais se quer transformar a

    natureza: se so razes no orientadas pelo bem de

    todos, mas somente de alguns, sero decididamente

    condenadas. Assim, por exemplo, manipular o genoma

    humano por razes teraputicas no s legtimo, mas

    tambm louvvel. Manipul-lo para criar pretensos

    super-homens aberrante.

    IHU On-Line - As manipulaes genticas e as

    avanadas transformaes da biomedicina influem na

    concepo e na defesa da identidade do indivduo?

    Francesco DAgostino - Certamente sim, mas no

    isto que cria problemas ticos. Como eu acabo de dizer,

    os problemas nascem das intenes que movem os

    cientistas na manipulao da natureza (e no s da

    humana).

    IHU On-Line - Quais so as razes que levam o senhor

    a afirmar que a biotica laica, antidogmtica e anti-

    metafsica?

    Francesco DAgostino - Os problemas bioticos so

    problemas comuns a todos os homens, porque vida e

    sade so bens que todos os homens percebem e

    compartilham. Por isso, a biotica laica: porque no

    tem limites confessionais (isto , no vale para os

    membros de uma comunidade religiosa particular).

    antidogmica porque deve sempre articular

    racionalmente as prprias doutrinas. No direi, todavia,

    que ela seja em absoluto anti-metafsica, se por

    metafsica se entende como eu gosto de entender um

    pensamento que no se limita a registrar os eventos que

    se do no mundo, mas procura individuar as razes

    ltimas.

    IHU On-Line - Com a utilizao das clulas-tronco

    embrionrias para fins de pesquisa, como ficam as

    questes que se referem aos direitos do nascituro e

    construo de sua identidade?

    Francesco DAgostino - Vale a resposta que dei

    terceira questo: no h futuro para a pesquisa com

    clulas estaminais embrionrias.

  • 13 SO LEOPOLDO, 03 DE DEZEMBRO DE 2007 | EDIO 246

    Cincia sem limites ENTREVISTA COM LAURIE ZOLOTH

    Defensora do uso de embries humanos para pesquisas com clulas-tronco, a

    pesquisadora judia Laurie Zoloth afirma, em entrevista por e-mail IHU On-Line, que,

    se as doenas no tm nenhum limite, as curas tambm no devem ter. Diretora do

    Centro de Biotica, Cincia e Sociedade da Universidade Northwestern, dos Estados

    Unidos, Laurie Zoloth professora de tica Medicinal, Humanidades, e Religio. Em

    2001, foi presidente da American Society for Bioethics and Humanities. Confira a

    entrevista:

    IHU On-Line - Como a biotica e a tradio judaica

    vem a pesquisa com clulas-tronco embrionrias

    humanas?

    Laurie Zoloth - A biotica judaica focalizada na

    grande urgncia para a cura do sofrimento. Assim,

    pesquisar o que pode curar as doenas de profundo

    interesse. A lei e a tradio judaicas no reconhecem

    vida nem a equivalncia moral de um ser humano num

    embrio com menos de quatro dias. Os embries que so

    feitos em laboratrio, e que nunca estaro em um tero

    materno, podem ser usados para a pesquisa, que visa a

    conservar a vida humana. A pesquisa com clulas-tronco

    embrionrias humanas um grande avano para a

    humanidade, porque destrava enigmas-chave sobre como

    crescem as clulas jovens. Considerando que este

    crescimento e diferenciao seja a base para as doenas

    humanas, compreender este enigma ajudar a explicar

    como ns ficamos doentes, e como podemos encontrar

    curas. A pesquisa com clulas-tronco fundamental para

    o avano da medicina.

    IHU On-Line - Quais so os limites morais e ticos que

    devem existir nos avanos cientficos relacionados

    pesquisa com clulas-tronco? Como saber at onde

    podemos ir e qual deve ser a hora de parar?

    Laurie Zoloth - Ns no podemos obrigar as mulheres a

    doar seus vulos para a pesquisa nem criar tecnologias

    injustas que ficaro somente disponveis aos ricos. Ns

    devemos respeitar as opinies dos povos que no

    permitem a pesquisa devido a suas objees religiosas e

    encontrar uma maneira de prosseguir com a cincia at

    quando ns mesmos, s vezes, discordamos. Os limites

    no esto no que queremos saber, e sim em para o que

    ns podemos usar nosso conhecimento.

    IHU On-Line - Para a cultura e a biotica judaica,

    onde comea a vida humana?

    Laurie Zoloth - A vida humana se desvela lentamente,

    uma clula de cada vez, e o embrio cresce e se torna

    uma criana que nasce em nosso mundo. Assim como a

    chegada do inverno, ou a chegada da noite, os limites

    biolgicos no so os legais - ns impomos nossas linhas

    legais sobre deles. Uma criana humana entra em nosso

    mundo como um ser humano quando ela pode viver fora

    do corpo da sua me, portanto no dia do seu nascimento.

    IHU On-Line - Em que sentido essa concepo implica

    nas pesquisas utilizando embries humanos?

    Laurie Zoloth - Isto significa que os embries que

    nunca estaro dentro do corpo de uma mulher tm um

    status diferente daqueles em uma gestao normal. A

  • 14 SO LEOPOLDO, 03 DE DEZEMBRO DE 2007 | EDIO 246

    pesquisa permitida utilizando embries jovens.

    IHU On-Line - Qual a contribuio das pesquisas

    sobre clulas-tronco para o debate em torno da

    questo do aborto?

    Laurie Zoloth - Ns no devemos misturar esses

    assuntos. O aborto um debate sobre a interrupo de

    uma gravidez, sobre quem tem o dever moral para

    decidir isto, e em que ponto o Estado tem algo a dizer. A

    pesquisa em relao s clulas-tronco sobre os

    embries jovens, sendo que 90% deles so expelidos

    normalmente pelo corpo humano nesse estgio inicial, se

    estiverem no corpo de uma mulher. Nenhuns destes

    jovens embries sero usados para uma gravidez, mas

    simplesmente congelados at morte se no forem

    usados na pesquisa.

    IHU On-Line - Qual sua opinio sobre o uso da

    clonagem para a reproduo humana?

    Laurie Zoloth - Isto deve nunca ser feito.

    IHU On-Line - A pesquisa cientfica com clulas-

    tronco promove a justia social?

    Laurie Zoloth - Sim, porque, ao contrrio dos

    transplantes de rgos com elevado aparato tcnico,

    estar a ponto de criar facilmente tecidos de clulas-

    tronco e diretamente dos pacientes permitiria que as

    terapias de cura estivessem extensamente disponveis.

    IHU On-Line - Existe democracia na tomada de

    decises durante os experimentos?

    Laurie Zoloth - Sim, porque cada pas est sendo

    incitado pela comunidade cientfica internacional para

    criar comits pblicos, para rever e supervisionar o

    trabalho.

    IHU On-Line - Podemos esperar que haja igualdade de

    direitos no acesso a futuros benefcios que essas

    descobertas podem trazer?

    Laurie Zoloth - Sim, porque quanto mais estivermos

    envolvidos nos debates, como as entrevistas mostram,

    mais o pblico sente uma parte do esforo da pesquisa.

    As doenas no conhecem nenhum limite, e as curas

    tampouco devem conhecer.

  • 15 SO LEOPOLDO, 03 DE DEZEMBRO DE 2007 | EDIO 246

    O respeito pelo embrio compatvel com a pesquisa de

    clulas estaminais POR KAREN LEBACQZ

    Com base nas questes propostas pela equipe da IHU On-Line, a pesquisadora

    Karen Lebacqz, ex-professora de tica Teolgica da Pacific School of Religion, em

    Berkeley, Califrnia, produziu o seguinte artigo, enviado com exclusividade,

    revista. Favorvel s pesquisas com clulas-tronco embrionrias, a pesquisadora

    afirma que possvel realizar tais pesquisas com respeito ao embrio. Se

    respeito significa valorar a vida e existncia de uma entidade em si mesma e no

    simplesmente por seu uso instrumental para meus fins, ento certamente um

    embrio pode realmente ser respeitado. Eu entendo o respeito neste sentido mais

    amplo e creio que ele se aplica aos embries e no simplesmente aos seres

    autnomos. Confira mais detalhes no artigo a seguir:

    Eu defendo que todas as entidades vivas merecem ser

    tratadas com valor e isso inclui o embrio. No entanto,

    eu apoio a pesquisa com clulas embrionrias estaminais

    e creio que ela pode ser conduzida de um modo que

    respeite o embrio.

    O que significa respeitar algo? Freqentemente,

    respeito entendido num sentido kantiano. Neste

    sentido, respeito significa honrar a autonomia e a

    capacidade de deciso de uma pessoa. Se este o

    sentido bsico do respeito, ento o respeito no se

    aplicaria a um embrio, que no autnomo e no pode

    tomar decises. Por isso, alguns pensam que no h

    problema referente ao respeito com o embrio: ele no

    uma entidade qual se aplica respeito.

    No entanto, possvel um significado mais amplo de

    respeito. Se respeito significa valorar a vida e existncia

    de uma entidade em si mesma e no simplesmente por

    seu uso instrumental para meus fins, ento certamente

    um embrio pode realmente ser respeitado. Eu entendo

    o respeito neste sentido mais amplo e creio que ele se

    aplica aos embries e no simplesmente aos seres

    autnomos.

    Mas, ento, o que requer o respeito? Em primeiro

    lugar, significa tratar algo enquanto isso tem valor em si

    mesmo, e no simplesmente um valor instrumental para

    mim. Isso significa que os embries no podem

    simplesmente ser usados na pesquisa, sem considerar o

    valor fundamental do embrio. Este o primeiro sentido

    do respeito, e ele impe limites no uso de embries em

    pesquisas. Em segundo lugar, respeito significa honrar

    moralmente caractersticas relevantes de entidades ou

    formas de vida. Quando se desenvolvem, os seres

    humanos adquirem caractersticas moralmente

    relevantes. Isto importante quando se trata de

    determinar o que pode ser feito com embries em

    pesquisas.

    Por exemplo: a maioria dos adultos autnomo e suas

    prprias decises sobre cuidados mdicos ou participao

    em pesquisas deveria ser respeitada, mesmo quando

    pensamos que eles esto enganados. Um adulto pode

    escolher participar em pesquisa de risco, e o respeito

    requer que ns honremos esta escolha, mesmo quando

    dela discordamos. As crianas, de outra parte, no so

    autnomas, e os adultos devem decidir por elas,

  • 16 SO LEOPOLDO, 03 DE DEZEMBRO DE 2007 | EDIO 246

    no que se refere aos cuidados mdicos ou participao

    em pesquisas. Respeitar um adulto significa honrar suas

    decises pessoais. Respeitar uma criana, no entanto,

    significa tomar decises por ela baseada nos melhores

    interesses de longo termo da mesma. Respeito no

    significa honrar a capacidade de deciso das crianas, j

    que as crianas ainda no so autnomas. Isto tambm se

    aplicaria como verdade aos embries.

    Embora as crianas no sejam autnomas, elas, no

    entanto, so capazes de sentir dor. A capacidade de

    sofrer moralmente relevante. Por isso, as crianas

    devem ser preservadas do sofrimento dentro do possvel.

    s vezes, no entanto, devemos sujeitar crianas a um

    sofrimento a fim de servir seus melhores interesses por

    exemplo, com tratamentos mdicos penosos. Mas, j que

    uma entidade em desenvolvimento tem a capacidade de

    sofrer, o respeito requer que o sofrimento seja prevenido

    ou minimizado. Isto tambm se aplica pesquisa com

    animais: j que eles so capazes de sentir dor, o respeito

    pelos animais requer que a dor seja prevenida ou

    minimizada.

    Um embrio precoce, como o embrio envolvido em

    clulas estaminais no estgio de blastcitos, no tem a

    capacidade de sofrer. Nenhuma interveno causar dor

    a uma entidade que ainda no possui o substrato neural

    para sentir dor, e por isso a desagregao deste embrio

    no vai causar dor. Conseqentemente, o respeito no

    requer proteo do sofrimento (ou da desagregao que

    acompanha a pesquisa com clulas estaminais).

    Se no h autonomia nem capacidade de sofrer, ento

    o respeito no pode, certamente, ser aplicado nestes

    sentidos. Porm, como fica o valor da vida em si mesma?

    O respeito requer que o embrio seja mantido vivo

    porque sua vida valiosa? A maioria das objees

    pesquisa com clulas estaminais envolve objees

    referentes morte do embrio. A destruio da vida

    parece ser uma clara violao do respeito.

    Mas ser mesmo? Aqui, importante relembrar o

    contexto: a maioria dos embries usados na pesquisa com

    clulas estaminais derivada de um processo de

    fertilizao in vitro e no h inteno de implant-los.

    Eles so considerados embries excessivos, e eles ou

    sero destrudos imediatamente, ou congelados por um

    perodo de anos, at que eles deteriorem at o ponto em

    que no poderiam ser implantados; e, ento, eles sero

    destrudos. Em ambos os casos, o destino do embrio

    a morte. Usando-se o embrio em pesquisa com clulas

    estaminais, muda este destino. Ele no dar vida ao

    embrio como uma criana, mas ele trar a possibilidade

    de uma vida estendida na forma de uma linha de clulas

    estaminais. Isso preserva o embrio de uma simples

    morte e lhe d nova forma de vida. Se respeito por

    uma entidade requer valorar sua verdadeira existncia,

    parece-me que o respeito por um blastcito pode

    resultar no esforo de mant-lo vivo atravs da criao

    de uma linha de clulas estaminais. Dada a escolha entre

    implantar o embrio num tero para gerar uma criana

    ou criar uma linha de clulas estaminais, eu escolheria a

    implantao, porque eu creio que isto uma forma mais

    plena de vida. Mas, dada a escolha entre a morte e a

    vida na forma de uma linha de clulas estaminais, eu

    defendo que o respeito pode requerer o esforo de

    preservar a vida criando uma linha de clulas estaminais.

    Em sntese, a pesquisa com clulas estaminais no

    desrespeita o blastcito13. Ela no viola a autonomia, no

    causa sofrimento, e preserva e protege a vida em

    formao, enquanto, de outra forma, haveria morte. Por

    todas estas razes, eu creio que a pesquisa com clulas

    estaminais compatvel com o respeito pelo embrio

    precoce.

    13 Blastcito: aps a fecundao, o ovo comea a se dividir formando

    o zigoto, que se divide em duas clulas, e depois em quatro, originando

    o blastcito. O blastcito vai se implantar na parede do tero e dar

    origem ao embrio. (Nota da IHU On-Line)

  • 17 SO LEOPOLDO, 03 DE DEZEMBRO DE 2007 | EDIO 246

    Pesquisas em prol da vida? ENTREVISTA COM JOS GARCIA ABREU JNIOR

    Com a reprogramao celular, possvel gerar outros tipos de clulas e tecidos que

    viabilizam a cura de algumas doenas. Esses experimentos, explica o professor da

    Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Jos Garcia Abreu Jnior, ainda tm

    baixa reprodutibilidade, mas so muito promissores. Questionado sobre a

    necessidade de utilizar clulas-tronco embrionrias para a elaborao de pesquisas, o

    professor argumentou que esse tipo de estudo ainda indispensvel, pois atua como

    fonte comparativa nos experimentos de reprogramao de clulas-tronco somticas.

    Estes estudos demonstraro at que ponto uma clula reprogramada assemelha-se a

    uma clula-tronco embrionria, disse o pesquisador, em entrevista concedida por e-

    mail IHU On-Line. Sobre as discusses ticas que permeiam o debate das clulas-

    tronco embrionrias, ele salientou que os estudos esto sendo desenvolvidos com o

    objetivo final de preservar a vida ou melhorar a qualidade dela.

    Jos Garcia Abreu Junior graduado e mestre em Cincias Biolgicas e doutor em

    Neurobiologia do Desenvolvimento, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro

    (UFRJ). Ps-doutor em Biologia do Desenvolvimento na UCLA como Latin Amercian PEW

    Fellow, atualmente atua como docente do Instituto de Cincias Biomdicas, na

    Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

    IHU On-Line - Qual o potencial biotecnolgico das

    clulas-tronco embrinrias?

    Jos Garcia Abreu Jnior - Como as clulas-tronco

    embrionrias podem, em condies controladas, dar

    origem a tipos celulares distintos de todos os rgos do

    corpo, possvel que elas se tornem uma boa fonte para

    a repovoao de tecidos afetados ou degenerados.

    Entretanto, as condies para originar de forma

    controlada estes diferentes tipos celulares ainda so

    desconhecidas. preciso, no entanto, estimular

    pesquisas com estas clulas, para que, no futuro,

    possamos deter a tecnologia necessria para desenvolver

    novas terapias que sero importantes para nosso

    desenvolvimento.

    IHU On-Line - Um dos maiores debates, no que se

    refere s clulas-tronco embrionrias, est

    diretamente relacionado com o questionamento:

    quando comea a vida? Como o senhor percebe esse

    debate?

    Jos Garcia Abreu Jnior Sob o meu ponto de vista,

    a vida comea quando o espermatozide fecunda o

    vulo. A unio dos gametas potencialmente capaz de

    originar um novo indivduo. Entretanto, aspectos

    funcionais sobre a vida devem ser levados em conta. Por

    exemplo, o vulo fecundado no ser vivel se no

    houver condies de implantao e tambm se no

    houver condies nutricionais. Portanto, no se deve

    perguntar quando a vida comea e sim quando ela se

    torna vivel. O Supremo Tribunal Federal (STF) tem

  • 18 SO LEOPOLDO, 03 DE DEZEMBRO DE 2007 | EDIO 246

    dever de encontrar uma soluo legal para este

    problema. Mas leis rigorosas de proteo ao comrcio,

    manipulao e estocagem de embries devem ser

    consideradas antes de viabilizar o uso indiscriminado das

    clulas-tronco embrionrias.

    IHU On-Line Que outros impasses dificultam as

    pesquisas na rea?

    Jos Garcia Abreu Jnior - Como no h uma

    definio sobre o uso e as fontes de clulas-tronco

    embrionrias, pesquisadores que ainda precisam

    conhecer este modelo experimental convivem com forte

    atraso em suas pesquisas. Isso muito grave, pois, para

    uma pesquisa, o tempo um fator fundamental.

    IHU On-Line - Em que consiste a reprogramao

    celular? De que maneira as clulas-tronco

    embrionrias podem ser utilizadas como fonte de

    estudo para essa reprogramao?

    Jos Garcia Abreu Jnior - A reprogramao celular

    um fenmeno biolgico no qual uma clula

    comprometida, ou seja, diferenciada, pode retroceder

    no seu destino e voltar a ser pluripotente, isto , capaz

    de diferenciar-se em outro tipo, ou mesmo de manter-se

    indiferenciada. medida que uma dada clula se

    diferencia (adquire um destino final, por exemplo,

    muscular, sseo, neuronal etc.), ela desliga os genes

    que, em princpio, garantiriam a ela capacidades comuns

    s clulas pluripotentes, como auto-renovao e

    probabilidade de gerar outros tipos celulares. Diversos

    estudos tm demonstrado que essa possibilidade de

    reprogramar o genoma reside em molculas

    citoplasmticas encontradas principalmente em clulas

    embrionrias e no vulo. Tambm se evidenciou que

    estas molculas desaparecem nas fases mais tardias do

    desenvolvimento. Mais recentemente, foram descritas

    algumas destas molculas de forma que se elas so

    introduzidas em clulas diferenciadas podem program-

    las e torna-las pluripotentes, novamente. Estes

    experimentos ainda tm baixa reprodutibilidade, mas so

    muito promissores. Muitas so as fontes de fatores de

    reprogramao, e possvel que haja muitos fatores

    ainda no descobertos. As clulas-tronco embrionrias

    podem ser usadas como fonte para descoberta destes

    fatores e como fonte comparativa nos experimentos de

    reprogramao, por exemplo. Estes estudos

    demonstraro at que ponto uma clula reprogramada

    assemelha-se a uma clula-tronco embrionria.

    IHU On-Line Mas se as clulas-tronco reprogramadas

    j demonstram resultados, por que insistir em estudos

    com clulas-tronco embrionrias? Seria mais tico

    investir em pesquisas com clulas-tronco somticas,

    preservando assim a vida?

    Jos Garcia Abreu Jnior O grande problema

    envolvido nestes estudos que embora se possam

    produzir todos os tipos celulares a partir de clulas-

    tronco embrionrias e mesmo reprogramar clulas

    somticas, os mecanismos que governam este processo

    so bastante desconhecidos. Portanto, sem pesquisas

    com clulas-tronco embrionrias no avanaremos e no

    entenderemos o mecanismo que ocorre naturalmente.

    Conhecer bem estes mecanismos fundamental, porque

    a pretenso teraputica que este tema traz pode ser um

    grande risco caso no sejam conhecidos estes

    mecanismos. Todas as pesquisas que conheo em clulas-

    tronco embrionrias so feitas de forma tica. E as

    pesquisas esto sendo desenvolvidas com o objetivo final

    de preservar a vida ou melhorar a qualidade dela. Alm

    disso, a lei de Biossegurana ainda garante o uso de

    embries que em principio sero inviveis/descartados

    pelas clnicas.

    IHU On-Line O senhor tem percebido evolues nas

    pesquisas com reprogramao de clulas? Para que

    direo caminha os novos estudos?

  • 19 SO LEOPOLDO, 03 DE DEZEMBRO DE 2007 | EDIO 246

    Jos Garcia Abreu Jnior Sim. A reprogramao j

    foi considerada idia insana e ainda existem grupos que

    no acreditam que isso possvel. Entretanto, h um

    crescente avano, sobretudo, nas diversas formas de se

    reprogramar, seja por fuso nuclear ou por molculas

    citoplasmticas encontradas no vulo ou embries

    precoces. Mais recentemente, pelo menos quatro fatores

    (molculas de carter protico) j foram descobertos, e

    seu potencial reprogramador j foi demonstrado. A

    direo atual dos estudos est centralizada na

    descoberta de novos fatores responsveis pelo fenmeno

    de reprogramao, de formas de realizar reprogramao

    sem alterar o nmero de cromossomos e tambm de

    produzir clulas reprogramadas em larga escala.

    IHU On-Line Se forem viabilizados tratamentos de

    doenas como Parkinson, com uso de clulas-tronco,

    este estar disponvel pelo Sistema nico de Sade

    (SUS) ou ser um tratamento bastante elitizado?

    Jos Garcia Abreu Jnior muito difcil de prever,

    porque mesmo em pases mais avanados ainda no se

    pode definir tal aplicao, porque um dos problemas da

    reprogramao celular a realizao destes

    experimentos em alta escala. H muitos tratamentos j

    bem caracterizados que ainda no so disponibilizados

    pelo SUS.

    IHU On-Line - Como a reprogramao das clulas, em

    diferentes tecidos humanos, pode auxiliar no combate

    a doenas degenerativas?

    Jos Garcia Abreu Jnior - H um grande potencial

    nestas descobertas, mas isso ainda apenas um campo

    promissor que avana rapidamente. A grande vantagem

    que, uma vez estabelecida esta tcnica em clulas

    nervosas, ser possvel, por exemplo, retirar celular da

    pele de uma pessoa com Alzheimer, program-la para o

    fentipo neural e utiliz-la para repovoar uma rea

    neurodegenerada. Mas isso ainda fico cientfica.

    IHU On-Line - Um dos principais objetivos do seu

    ncleo de pesquisa reprogramar clulas nervosas

    com extrato de vulos para identificar nesse extrato,

    molculas que sero testadas separadamente para

    verificar a possvel presena de embries. Correto?

    Qual ser o passo seguinte?

    Jos Garcia Abreu Jnior - Correto, mas nossa

    capacidade de identificar molculas nestes extratos tem

    sido limitada por razes tcnicas. Mas nossos resultados

    apontam que extratos citoplasmticos de vulos de

    anfbio so capazes de reprogramar astrcitos, uma

    populao celular do sistema nervoso. A reprogramao

    de astrcitos com estes extratos produz corpos

    embrionrios com aspectos semelhantes queles

    formados por clulas-tronco embrionrias e eles

    expressam marcadores de pluripotncia. Estamos

    ensaiando agora se estes agregados podem se diferenciar

    em outros tipos celulares para provarmos

    definitivamente que foram reprogramados. Pretendemos

    entender o mecanismo de reprogramao e que vias de

    sinalizao e molculas esto envolvidas.

  • 20 SO LEOPOLDO, 03 DE DEZEMBRO DE 2007 | EDIO 246

    O embrio no uma pessoa ENTREVISTA COM VOLNEI GARRAFA

    O professor titular e coordenador da Ctedra Unesco de Biotica da Universidade de

    Braslia (UnB) Volnei Garrafa est entre aquelas pessoas que no considera o embrio

    como uma pessoa. Em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line, ele explica

    sua posio: Por mais argumentos que cada um dos lados favorvel ou contrrio

    interpretao de que um embrio de alguns dias seja j uma pessoa -, acredito que

    jamais chegaremos a um consenso a respeito, por absoluta falta de elementos factuais

    capazes de provar de modo irrefutvel uma ou outra teoria. Doutor em Cincias e

    ps-doutor em Biotica, Volnei Garrafa editor da Revista Brasileira de Biotica, e

    presidente do Conselho Diretor da Rede Latino-Americana e do Caribe de Biotica da

    Unesco (Redbiotica).

    IHU On-Line - Como o senhor define a comunidade

    cientfica brasileira em relao s pesquisas sobre

    clulas-tronco? H preparo tcnico?

    Volnei Garrafa - A resposta a essa pergunta

    complexa. H, sem dvida, cientistas preparados no pas

    para enfrentar esse tipo de desafio. Mas, por outro lado,

    h cientistas excessivamente apressados acelerando o

    processo investigativo, em alguns momentos, alm dos

    limites confiveis da biossegurana. O mundo todo est

    surpreendido com o fato de o Brasil, por meio de um

    grande projeto de pesquisa, ter iniciado um estudo com

    a utilizao de clulas-tronco adultas em amostra de

    1200 pacientes, em fase 3, sem que as fases 1 e 2

    estivessem suficientemente esgotadas para dar a

    tranqilidade indispensvel quanto a possveis reaes

    adversas a curto, mdio e longo prazos desse novo tipo

    de tratamento que a terapia celular. Uma questo que

    no pode deixar de ser comentada neste contexto e

    constatada em todo mundo a do aodamento, a pressa

    estimulada pelo mercado (sempre ele...) em

    transformar cincia em tecnologia, uma descoberta em

    aplicao prtica, de um dia para o outro. H algumas

    dcadas atrs, demoravam muitos anos para um

    conhecimento para ser utilizado na prtica. Agora, pela

    presso econmica crescente dos fabricantes, das

    empresas, das indstrias de medicamentos e dos prprios

    pacientes, muitas vezes desesperados busca de cura,

    entre outras, a tecnologia passa a ser disponvel em

    meses e at em dias. No est sendo dado o tempo

    indispensvel, portanto, para a verificao dos possveis

    problemas que uma nova tcnica, um novo medicamento

    ou um novo instrumental biomdico, possam trazer a

    mdio e longo prazos. E os pacientes portadores de

    doenas ainda incurveis certamente vulnerveis em

    suas decises muitas vezes se entregam

    desesperadamente s pesquisas, em busca de curas

    milagrosas e imediatas.

    IHU On-Line - A postura dos pesquisadores e dos

    brasileiros em geral pode ser vista como avanada ou

    conservadora em relao a esse tema?

    Volnei Garrafa - Apesar das posies moralmente

    afirmativas da maioria dos cientistas com relao s

    pesquisas no campo da gentica e da reproduo

    assistida, por exemplo, considero o Brasil um pas

    bastante conservador. Confundimos a liberdade e o uso

  • 21 SO LEOPOLDO, 03 DE DEZEMBRO DE 2007 | EDIO 246

    de minsculos biqunis que a moda de Ipanema nos

    prope, por exemplo, com a absoluta incapacidade do

    Congresso Nacional em abrir uma discusso responsvel e

    verdadeiramente madura sobre temas moralmente

    espinhosos como aborto, eutansia, utilizao de clulas

    tronco-embrionrias. Na Itlia, pas catlico por

    excelncia, o aborto foi aprovado em um referendo

    nacional por nada menos que 69% da populao no j

    distante ano de 1979. Portugal, recentemente, foi o

    ltimo pas da Europa ocidental a aprovar legislao

    neste sentido. No Brasil, as iniciativas legislativas nos

    campos que envolvem questes morais so

    invariavelmente encaminhadas no Congresso Nacional por

    partidrios ferrenhamente contra, ou a ferrenhamente a

    favor, de determinado assunto, o aborto, por exemplo. O

    primeiro beb de proveta brasileiro nasceu em 1984. At

    hoje, pelas razes acima apontadas, todos projetos de lei

    que tramitaram no Congresso foram engavetados, no

    prosperaram. Por absoluta intolerncia e falta de dilogo

    entre as partes. Chamo a isso de vazios legislativos

    criminosos, pois existem clnicas reprodutivas humanas

    fazendo absurdos nas grandes cidades brasileiras,

    adotando tcnicas utilizadas apenas excepcionalmente,

    como rotina, unicamente com o objetivo escuso de

    aumentar os ndices de sucesso, sem o devido controle e

    com a legislao absolutamente omissa. Isso mostra a

    necessidade absoluta de criao do Conselho Nacional de

    Biotica, nos moldes do excelente Projeto de Lei 6032

    encaminhado pelo Presidente Lula ao Congresso Nacional

    em 5 de outubro de 2005. O referido PL encontra-se, at

    hoje, parado nas gavetas do Congresso. A Frana tem seu

    Comit Nacional desde 1982, criado pelo saudoso

    presidente Franois Mitterrand. Exemplos como esse

    que me permitem afirmar que o Brasil ainda um pas

    conservador.

    IHU On-Line - Como o senhor v a pesquisa que

    descobriu a possibilidade de criao de clulas-tronco

    a partir da pele, possivelmente descartando o uso de

    clulas tronco embrionrias?

    Volnei Garrafa - Interpreto a descoberta como um fato

    extraordinrio, que poder proporcionar avanos

    significativos no sentido de controle de diversas doenas

    na rea biomdica, sem conflitos ticos ou morais, sem a

    necessidade de utilizao de clulas tronco-embrionrias

    provenientes de embries humanos congelados.

    Tecnicamente, parece que isso se tornar realmente

    possvel a partir das descobertas de um grupo japons

    chefiado pelo prof. Shinya Yamanaka, da Universidade de

    Kioto, e publicada na revista Cell, e outro estadunidense,

    comandado por James Thomson, da Universidade de

    Wisconsin-Madison - casualmente a mesma instituio

    que abrigou o inventor da Biotica, Van Ressenlaer

    Potter , e publicada concomitantemente na Science. As

    clulas no caso, fibroblastos adultos, retirados da pele

    de ratos - foram induzidas a transformar-se em clulas

    tronco a partir da introduo nas mesmas de genes

    reguladores, tendo um retrovrus como indutor. O nico

    problema moral possvel de ser levantado nestes casos

    seria aquele de fundo alarmista e j conhecido dos

    cientistas: o homem, outra vez, est brincando de

    Deus. Frases deste tipo, vindos de setores

    fundamentalistas religiosos, que demonizam a cincia e

    seus avanos em inmeras situaes, j foram ouvidos

    quando nasceu Louise Brown, o primeiro beb obtido por

    fecundao assistida em 1978 na Inglaterra, ou quando

    foi anunciado o nascimento da ovelha Dolly, em 1997,

    entre incontveis outras situaes.

    IHU On-Line - O que muda em relao clonagem

    teraputica e ao transplante de rgos caso seja

    realmente possvel obter clulas tronco com alto poder

    de diversificao a partir da pele humana?

    Volnei Garrafa - O que muda que, com maior

    liberdade, os cientistas e a cincia podero avanar mais

    celeremente nas suas pesquisas com clulas tronco-

  • 22 SO LEOPOLDO, 03 DE DEZEMBRO DE 2007 | EDIO 246

    embrionrias, que so mais adequadas que as adultas ou

    mesmo que aquelas do cordo umbilical, mais lbeis e

    mais facilmente manipulveis sob o ponto de vista

    tcnico-operacional da pesquisa. O caminho aberto pela

    utilizao de clulas-tronco adultas, que j nos permite a

    renovao de algumas clulas e tecidos, isoladamente

    (por exemplo, musculatura cardaca), ser

    generosamente ampliado com a possibilidade de

    utilizao de clulas tronco-embrionrias produzidas por

    clonagem teraputica, objetivando a obteno de rgos

    completos a partir de tcnicas laboratoriais, os quais so

    compostos por diferentes variedades de tecidos. A

    possibilidade de construir um novo pncreas a partir da

    utilizao dessa tcnica, por exemplo, nos daria a

    possibilidade de chegarmos muito prximo de termos

    uma doena to difundida e que tanto sofrimento gera,

    como o diabetes, controlada. Isso, no entanto, no deve

    ser visto como algo que ser alcanado nos prximos

    anos; levaremos mais algum tempo, talvez dcadas, para

    chegar a to avanado estgio de desenvolvimento

    biotecnocientfico.

    IHU On-Line - Quais so os maiores desafios do ponto

    de vista tico e moral que esto envolvidos no debate

    em torno das clulas tronco?

    Volnei Garrafa - O maior desafio, sem dvida, vencer

    o conflito, a polarizao, o maniquesmo, sobre a

    utilizao de clulas-tronco provenientes de embries

    humanos, pelas razes de todos conhecidas.

    Pessoalmente, penso que, mesmo daqui a um milnio, se

    o Planeta Terra e a espcie humana ainda aqui existirem,

    esses conflitos no estaro solucionados. A cincia tem

    se mostrado impotente para definir sob o prisma

    acadmico quando se d o incio da vida humana, quando

    um embrio passa a ser pessoa. Jamais chegaremos a um

    consenso, seja biomdico, seja religioso, seja moral.

    Segundo HT Engelhardt Jr., temos um mundo

    irreversivelmente pluralista sob o ponto de vista de

    moralidades. Entre amigos morais, no h conflito, mas,

    entre estranhos morais, a nica forma de convvio

    pacfico, sem que uns matem os outros por diferenas de

    modo de pensar, por meio da frgil virtude da

    tolerncia. De aprendermos a conviver pacificamente

    entre estranhos morais, uns respeitando a moralidade

    dos outros. Neste sentido, nas democracias pluralistas

    modernas, prefervel que as leis sejam declinadas

    afirmativamente, positivamente, deixando aos cidados

    e cidads adultos e informados de acordo com sua

    moralidade e religiosidade a deciso autnoma sobre os

    problemas que os afligem, sem uma deciso prvia,

    proibitiva e paternalista ditada pelo Estado.

    IHU On-Line - Como o senhor defende sua posio em

    relao ao uso de embries humanos para utilizao de

    clulas-tronco? Quais so os seus argumentos ao

    afirmar que embrio no pessoa?

    Volnei Garrafa - Estou entre aquelas pessoas que no

    interpreta o embrio como uma pessoa. E isso me

    ensinou meu querido professor e amigo Giovanni

    Berlinguer14, um dos mais completos sanitaristas e

    bioeticistas do mundo e pessoa que procura em todas

    suas aes ser o mais generosa e justa possvel: quando

    te deparas, ao mesmo tempo, com um conflito moral e 14 Giovanni Berlinguer (1924): Italiano que est entre os mais

    respeitados sanitaristas e bioeticistas do mundo. Iniciou sua carreira

    acadmica como professor de Medicina Social da Universidade de

    Sassari, atividade que desenvolveu at 1974, quando assumiu a ctedra

    de Sade do Trabalho na Universidade La Sapienza, em Roma, onde

    permaneceu at os 75 anos de idade. Atualmente, Presidente de

    Honra do Comit Nacional Italiano de Biotica e membro titular do

    Comit Internacional de Biotica da UNESCO (Organizao das Naes

    Unidas para a Educao, a Cultura e a Cincia). Anteriormente, j havia

    ocupado a cadeira de deputado por trs legislaturas (1972-1983) e

    senador em outras duas (1983-1992), sempre pelo seu velho e amado

    PCI (Partido Comunista Italiano). Sua vasta produo cientfica

    ultrapassa o nmero de 45 obras, uma dzia delas traduzidas para o

    portugus, entre as quais Medicina e poltica (1978), A sade nas

    fbricas (1983) e Reforma sanitria Itlia e Brasil (1988). (Nota da

    IHU On-Line)

  • 23 SO LEOPOLDO, 03 DE DEZEMBRO DE 2007 | EDIO 246

    um problema prtico que necessita ser resolvido, os

    problemas prticos devem receber prioridade diante dos

    conflitos morais. Como disse acima, por mais argumentos

    que cada um dos lados favorvel ou contrrio

    interpretao de que um embrio de alguns dias, um

    blastmero, por exemplo, seja j uma pessoa -, acredito

    que jamais chegaremos a um consenso a respeito, por

    absoluta falta de elementos factuais capazes de provar

    de modo irrefutvel uma ou outra teoria. Temos, ento,

    que nos apegar a outros referenciais. No meu caso,

    utilizo o referencial utilitarista e conseqencialista, mas

    sempre solidrio, abrindo possibilidades de discusso

    para situaes isoladas a serem analisadas em cada

    contexto (social, econmico, cultural...) onde as mesmas

    se do.

    IHU On-Line - O senhor gostaria de acrescentar mais

    algum comentrio que julgue importante e as

    perguntas no cobriram?

    Volnei Garrafa - Uma ltima observao que gostaria

    de registrar que, na mesma linha de Hans Jonas15,

    defendo que a cincia seja LIVRE, desde que seja

    desenvolvida dentro de referenciais ticos e em busca de

    objetivos construtivos. E, ao contrrio, defendo que a

    aplicao das descobertas, a tecnologia, seja

    CONTROLADA. E esse controle no pode ficar

    unilateralmente nas mos de cientistas; o controle

    precisa ser social, por meio de comits pluralistas e

    multidisciplinares. A tica, assim como a cincia,

    glacial. Ou ou no ; no se pode ser 70% tico, por

    exemplo. Igualmente, a tica deve ser diferenciada da

    pura cincia e da pura tcnica. Isso no significa que ela

    15 Hans Jonas (1902-1993): filsofo alemo, naturalizado norte-

    americano, um dos primeiros pensadores a refletir sobre as novas

    abordagens ticas do progresso tecnocientfico. A sua obra principal

    intitula-se Das Prinzip Verantwortung. Versuch einer Ethik fr die

    technologische Zivilisation (1979), publicada em portugus como O

    princpio responsabilidade (Rio de Janeiro: Contraponto, 2006). (Nota

    da IHU On-Line)

    tenha uma posio superior, anterior ou mais importante

    que a cincia e a tecnologia. Trata-se, simplesmente, de

    uma posio diferenciada. A tica sobrevive sem a

    cincia e a tcnica; essas, no entanto, sem a tica, so

    fadadas ao descrdito ou ao fracasso.

  • 24 SO LEOPOLDO, 03 DE DEZEMBRO DE 2007 | EDIO 246

    Destruio embrionria x avano cientfico: uso de clulas-

    tronco esbarra na legislao ENTREVISTA COM JAMES EDGAR TILL

    Eu concordo com a idia de que os embries excedentes, que foram criados para fertilizao in vitro,

    poderiam ser doados, com consentimento, e ser usados para a pesquisa que poderia conduzir s novas

    terapias mdicas. A declarao de James Edgar Till, Ph.D. em Biomedicina, pela Universidade de

    Yale, em entrevista concedida por e-mail IHU On-Line. Ele fala tambm sobre os princpios das

    diretrizes que regem as pesquisas com clulas-tronco no Canad e sobre a importncia das pesquisas

    encontrarem maneiras de ajudar as pessoas que esto doentes, e no "controlar a natureza humana".

    Considerado o pai das clulas-tronco, pois em 1963 descobriu que as clulas transplantadas da medula

    ssea no bao de ratos se auto-replicavam, o cientista canadense James Till estudou cincias na

    Universidade de Saskatchewan, terminando seu bacharelado em 1952 e seu mestrado em fsica em 1954.

    IHU On-Line - Certa vez, John Rawls disse que no h

    mundo social sem perda, ou seja, no h mundo social que

    no exclua alguns modos de vida a fim de concretizar, de

    determinadas maneiras, certos valores fundamentais.

    Relacionando essa teoria com as pesquisas sobre clulas-

    tronco, qual a sua percepo? Embries podem ser

    destrudos para o avano da cincia?

    James Edgar Till - A controvrsia se d, principalmente, em

    relao a mtodos que esto disponveis para a criao e o uso

    de clulas-tronco de embries humanos. Pesquisadores de

    clulas-tronco precisam seguir as leis do pas no qual vivem e

    trabalham. No Canad, as diretrizes para a Pesquisa de clulas-

    tronco pluripotenciais so embasadas nas disposies do Tri-

    Conselho de Estabelecimento de Polticas: Condutas ticas para

    a Pesquisa Envolvendo Humanos.

    IHU On-Line - Essas pesquisas representam um desrespeito

    vida ou, pelo contrrio, so a favor dela?

    James Edgar Till - Eu acho que este excerto da Wikipdia

    resume a controvrsia muito bem: Alguns opositores da

    pesquisa argumentam que esta prtica um declive

    escorregadio em direo clonagem reprodutiva e

    fundamentalmente desvaloriza o valor de um ser humano.

    Contrariamente, pesquisadores mdicos na rea argumentam

    que necessrio buscar a pesquisa em clulas-tronco porque as

    tecnologias resultantes poderiam ter um potencial mdico

    significativo e que embries excedentes criados para a

    fertilizao in vitro poderiam ser doados consensualmente e

    usados para a pesquisa. Isso, por sua vez, conflita com os

    opositores do movimento pr-vida que advogam pela proteo

    dos embries humanos. Tal debate levou autoridades ao redor

    do mundo a criarem modelos regulatrios e realou o fato de

    que a pesquisa em clulas-tronco embrionrias representa um

    desafio social e tico.

    IHU On-Line O senhor apresentou as controvrsias que

    giram em torno do embate sobre clulas-tronco. Qual desses

    argumentos o senhor defende?

    James Edgar Till Eu concordo que esses embries

    excedentes, que foram criados para fertilizao in vitro,

    poderiam ser doados, com consentimento, e ser usados para a

    pesquisa que poderia conduzir s novas terapias mdicas.

  • 25 SO LEOPOLDO, 03 DE DEZEMBRO DE 2007 | EDIO 246

    IHU On-Line - At que ponto os cientistas devem ter

    autonomia em ensaios experimentais sobre a vida humana?

    Qual deveria ser a conduta tica a permear essas atividades,

    independente do pas em que as pesquisas so realizadas?

    James Edgar Till Eu concordo que essa pesquisa, com seus

    atuais desafios ticos e srias transformaes sociais, deve ser

    regulada pelo governo de cada pas. Estes regulamentos no

    necessitam ser os mesmos em todos os pases.

    IHU On-Line - Alguns pesquisadores advertem que a

    tecnocincia se transformou numa fonte de poder (produtivo

    e estrutural). Que implicaes a interao entre cincia e

    tecnologia trazem para a sociedade? A tecnocincia pretende

    controlar a natureza humana?

    James Edgar Till A finalidade de tal pesquisa deve ser

    encontrar maneiras de ajudar as pessoas que esto doentes, no

    controlar a natureza humana.

    IHU On-Line - Como o senhor percebe o crescente

    desempenho da medicina em relao s modificaes da

    natureza humana?

    James Edgar Till Se as novas maneiras encontradas forem

    para ajudar as pessoas que esto doentes, os indivduos doentes

    tero uma escolha. Podem consentir em ter o novo tratamento

    (sim, eu quero ter o novo tratamento), ou no (No, eu no

    quero ter o novo tratamento).

    IHU On-Line - Que medidas e iniciativas deveriam compor

    as polticas pblicas desenvolvidas pelos governos, no que se

    refere aos estudos de clulas-tronco?

    James Edgar Till - necessrio para as agncias que provm

    suporte para a pesquisa com clulas-tronco ter diretrizes para os

    pesquisadores que planejam fazer pesquisa em clulas-tronco.

    As diretrizes devem estar de acordo com as leis do pas no qual

    a agncia fomentadora est localizada.

    IHU On-Line - Que julgamentos ticos e prticos devem

    guiar o debate sobre clulas-tronco no mundo?

    James Edgar Till - As diretrizes canadenses para

    pesquisadores so baseadas em vrios princpios orientadores,

    como:

    Pesquisas realizadas devem ter benefcios de sade

    potenciais para os canadenses;

    Consentimento livre e informado, provido voluntariamente

    e com total divulgao de toda informao relevante ao

    consentimento;

    Respeito pela privacidade e confidencialidade;

    Nenhum pagamento direto ou indireto por tecidos

    coletados para pesquisa com clulas-tronco e nenhum

    incentivo financeiro;

    Nenhuma criao de embries para fins de pesquisa;

    Respeito individual e noes comunitrias de dignidade

    humana e fsica e integridade espiritual e cultural.

    IHU On-Line E como o senhor tem percebido essas aes?

    Elas esto sendo consideradas no debate sobre as pesquisas

    com clulas-tronco?

    James Edgar Till Sim, estes so os princpios das diretrizes

    em que os pesquisadores canadenses devem estar baseados. Se

    os pesquisadores no concordarem com estes princpios, sua

    pesquisa no ser suportada.

    IHU On-Line - O senhor vislumbra tratamentos em doenas

    como o cncer, utilizando-se de clulas- tronco?

    James Edgar Till - Clulas-tronco transplantadas j so usadas

    h vrios anos como parte do tratamento de cnceres

    sangneos, como leucemia e linfoma. Pacientes que sofrem

    destas doenas possuem clulas-tronco de formao sangnea

    danificadas. Em alguns casos, um transplante pode ser capaz de

    restaurar as funes normais das clulas sangneas. Como o

    paciente tem clulas-tronco danificadas, necessrio encontrar

    um doador compatvel antes de comear o tratamento.

  • 26 SO LEOPOLDO, 03 DE DEZEMBRO DE 2007 | EDIO 246

    Entrevista da Semana

    Sntese e caracterizao de nanopartculas para aplicaes

    biomdicas ENTREVISTA COM TATIANA MIDORI

    As nanopartculas de xidos de ferro sintetizadas para marcao celular possuem dimetros da

    ordem de 5-15 nm, o que possibilita sua incorporao pelas clulas. Alm disso, por possurem

    propriedades magnticas, elas podem ser visualizadas em imagens de ressonncia magntica. Assim,

    com a injeo em seres vivos de clulas-tronco marcadas com as nanopartculas, possvel

    acompanhar o seu percurso de modo no-invasivo. A afirmao da fsica Tatiana Midori, autora

    da dissertao Sntese e caracterizao de nanopartculas para aplicaes biomdicas, desenvolvida no

    Instituto de Fsica Gleb Wataghin (IFGW) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Os

    testes biomdicos deste trabalho foram realizados pelo mdico Li Li Min e pela doutora Llia de

    Souza Li, da Faculdade de Cincias Mdicas (FCM), da Unicamp. Para Midori, a colaborao entre as

    reas da fsica e da medicina tem gerado linhas de pesquisa cada vez mais interessantes e

    inovadoras, e a nanotecnologia apenas uma delas.

    O trabalho de Midori constitui a base de um projeto multidisciplinar ainda em andamento, liderado

    pelo doutor Li Li Min. Minha parte foi sintetizar as partculas, caracteriz-las estrutura,

    morfolgica e magneticamente, e repass-las ao Dr. Li para realizao dos testes com as clulas,

    esclarece Midori na entrevista exclusiva a seguir, que concedeu por e-mail IHU On-Line. Na poca,

    utilizamos clulas HeLa, uma linhagem celular muito utilizada em experimentos de laboratrio,

    apenas para verificar a eficcia das nanopartculas na marcao celular. Ao terminar o projeto, a

    fsica foi informada que os primeiros testes com clulas-tronco de cordo umbilical estavam sendo

    planejados. Midori graduada em Fsica Mdica pela Universidade de So Paulo (USP).

    Desde agosto deste ano, o Instituto Humanitas Unisinos IHU vem organizando o III Ciclo de Estudos

    Desafios da Fsica para o Sculo XXI: o admirvel e o desafiador mundo das nanotecnologias. O evento

    serve como preparao para o Simpsio Internacional Uma sociedade ps-humana - Possibilidades e

    limites das nanotecnologias, que acontecer na Unisinos, de 26 a 29 de maio de 2008.

  • 27 SO LEOPOLDO, 03 DE DEZEMBRO DE 2007 | EDIO 246

    IHU On-Line - Como essas nanopartculas que voc

    desenvolveu rastreiam o percurso das clulas-

    tronco?

    Tatiana Midori - As nanopartculas de xidos de ferro

    sintetizadas para marcao celular possuem dimetros da

    ordem de 5-15 nm, o que possibilita sua incorporao

    pelas clulas. Alm disso, por possurem propriedades

    magnticas, elas podem ser visualizadas em imagens de

    ressonncia magntica. Assim, com a injeo em seres

    vivos de clulas-tronco marcadas com as nanopartculas,

    possvel acompanhar o seu percurso de modo no-

    invasivo.

    IHU On-Line - Que benefcios esse mapeamento de

    percurso traz medicina?

    Tatiana Midori - O rastreamento de clulas in-vivo,

    com nanocristais e imagens de ressonncia magntica,

    tem potencial para ser uma poderosa tcnica para se

    determinar a histria e o destino das clulas e, assim,

    entender e avaliar a eficcia das diferentes terapias

    baseadas em clulas-tronco. No entanto, a utilizao

    prtica desta tcnica ainda limitada e, para que se

    atinja um rastreamento celular de sucesso, necessrio

    desenvolver mtodos eficientes de marcao magntica

    para aumentar o sinal e o contraste nos exames.

    IHU On-Line - Que outros benefcios e aplicaes

    ainda podem surgir com base nessa descoberta?

    Tatiana Midori - Primeiramente, gostaria de esclarecer

    que as nanopartculas de xidos de ferro para aplicaes

    biomdicas vm sendo estudadas por vrias dcadas no

    Brasil e no exterior, e por isso no se pode dizer que foi

    uma descoberta do meu trabalho. Do mesmo modo, a

    marcao de vrios tipos de clulas, incluindo as clulas-

    tr