Cemitério de Pianos - José Luís Peixoto

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  • 7/25/2019 Cemitrio de Pianos - Jos Lus Peixoto

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    Cemitrio de Pianos o quarto romance de Jos Lus Peixoto. Os

    narradores, pai e filho, desvendam a histria da famlia, que vive emLisboa, e falam da morte: a morte como destino irremedivel, cicloininterrupto, renovao e elo entre geraes.

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    But for those like us, our fate is to face the world as orphans, chasing

    through long years the shadows of vanished parents. There is nothing for it

    but to try and see through our missions to the end, as best we can, for until

    we do so, we will be permitted no calm.

    KAZUOISHIGURO

    When we were orphans

    No rogo somente por estes, mas tambm por aqueles que, pela sua

    palavra, ho-de crer em Mim, para que todos sejam um s; como Tu, Pai,

    ests em Mim e Eu em Ti, que tambm eles estejam em Ns, para que o

    mundo creia que Tu Me enviaste. Dei-lhes a glria que Tu Me deste, para que

    sejam um como Ns somos Um. Eu neles e Tu em Mim, para que eles sejam

    perfeitos na unidade e para que o mundo reconhea que Tu Me enviaste e os

    amaste, como Me amaste a Mim. Pai, quero que aqueles que Me deste, onde

    Eu estiver, tambm eles estejam Comigo, para que vejam a minha glria, a

    lria que Tu Me deste; porque Tu me amaste antes da fundao do mundo.

    Pai justo, se o mundo no Te conheceu, Eu conheci-Te, e estes conheceram

    que Tu Me enviaste. Dei-lhes a conhecer o Teu nome e d-lo-ei a conhecer,

    para que o amor com que Me amaste esteja neles e Eu esteja neles tambm.

    JOO, 17, 20-26

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    Quando comecei a ficar doente, soube logo que ia morrer.Nos ltimos meses da minha vida, quando ainda conseguia fazer a p

    o caminho entre a nossa casa e a oficina, sentava-me numa pilha de tbuase, sem ser capaz de ajudar nas coisas mais simples: aplainar o aro de umaporta, pregar um prego: ficava a ver o Francisco a trabalharcompenetrado, dentro de uma nvoa de pontos de serradura. Em novo,tambm eu tinha sido assim. Nessas tardes, tanto tempo impossvel depoisde ter sido novo, certificava-me de que no estava a ver-me e, quando noaguentava mais, pousava a cabea dentro das mos. Segurava o pesoimenso da minha cabea: mundo: tapava os olhos com as mos para sofrer

    dentro da escurido, dentro de um silncio que fingia. Depois, nas ltimassemanas da minha vida, fui para o hospital.A Marta nunca me foi visitar ao hospital. Estava grvida do Hermes.

    Estava nos ltimos meses, e a Marta, com a natureza que tem, precisou demuitos cuidados durante o tempo da gravidez. De repente, lembro-me dequando era pequena e to feliz na trotinete que lhe comprei em segundamo, lembro-me de quando ia para a escola, lembro-me de tanto. Enquantoeu estava no hospital espera de morrer, a Marta estava noutro hospital,

    no demasiado longe, espera que o Hermes nascesse. Como que est o meu pai? perguntava a Marta, deitada, mal

    penteada, com os lenis da cama de hospital a taparem-lhe a barriga. L est na mesma respondia algum mentindo. Algum que

    no era nem a minha mulher, nem a Maria, nem o Francisco, porquenenhum deles tinha foras para lhe mentir.

    Na ltima tarde em que estive vivo, a minha mulher, a Maria e oFrancisco foram ver-me. Durante toda a doena, o Simo nunca me quis

    visitar. Era domingo. Eu estava apartado dos outros doentes, porque iamorrer. Tentava respirar e a minha respirao era um zumbido grosso,rouco, que enchia o quarto. Ao fundo da cama, a minha mulher chorava,engasgada pelas lgrimas, pelo rosto contorcido e pela dor: o sofrimento.Sem escolher as palavras, dizia-as dentro de uivos estendidos, esticados,longos, interrompidos apenas por tomadas sfregas de flego. Erampalavras que ardiam dentro do seu corpo emagrecido, vestido com umcasaco de malha, uma saia estimada, sapatos engraxados: Ai meu ricohomem meu amigo que s o meu maior amigo e eu fico sem ti meu ricohomem meu companheiro meu amigo to grande to grande.

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    A Maria chorava e tentava abraar a me, consol-la, porque, nopeito, sentiam as duas o mesmo vazio definitivo e terrvel que eu tambmteria sentido se algum dia tivesse perdido uma delas. O Francisco olhavapela janela. Tentava no ver. Tentava no saber aquilo que sabia.

    Tentava ser um homem. Depois, srio, aproximou-se de mim. Notempo eterno e concreto, pousou-me festas no rosto e pousou a mo sobrea minha mo. Na mesinha-de-cabeceira, sobre o tampo de ferro cinzento,descobriu um copo de gua e um pau que tinha um pedao de algodo naponta. Molhou o algodo na gua e assentou-mo na boca seca e aberta.Mordi-o com toda a fora que tinha, e o Francisco surpreendeu-se porsentir pela ltima vez a minha fora. Retirou o algodo. Olhou-me, e choroutambm, porque j no conseguia aguentar. A Maria abraou-o e tratou-ocomo quando era pequeno: No tenhas medo, menino, que a gente note vai deixar sozinho. A gente vai tratar de ti.

    Toda a minha fora. Usei toda a minha fora e s consegui fazer umsom horrvel de moribundo. Queria dizer ao Francisco e Maria que eutambm nunca os deixaria sozinhos, queria dizer-lhes que eu era o maioramigo que tinham na vida, que nunca os deixaria sozinhos e que nuncadeixaria de ser o seu pai, e de tratar deles, e de proteg-los. Em vez disso,usei toda a minha fora e s consegui fazer um som horrvel de moribundo.

    O som de uma voz que j no conseguia falar, o som de uma voz que,usando toda a sua fora, s conseguia fazer um barulho rouco com agarganta, um som horrvel, um som de moribundo. Olharam para mim, echoraram mais, e sentiram no peito todo o vazio terrvel, negro: profundoprofundo: que eu tambm teria sentido se algum dia tivesse perdido umdeles.

    Foram para casa da Maria e cada um ficou abandonado num cantodentro do sofrimento. Longe, protegida, a Ana tinha dois anos e estava na

    casa dos avs do lado do pai. Desprotegidos, a minha mulher, a Maria e oFrancisco esperavam que o telefone tocasse. Esperavam que telefonassemdo hospital com a notcia de que eu tinha morrido. Foi assim que aenfermeira disse: Em princpio, telefonamos ainda hoje. Telefonamoslogo que o seu marido falecer.

    Foi assim que a enfermeira disse. Sem reparar talvez que a minhamulher j no era ningum. Sem reparar que as palavras que lhe dizia seperdiam sem eco dentro da sua escurido.

    Vagarosa, a noite. Com o vagar desmedido das coisas mundiais, anoite cobriu todos os lugares do mundo que eram todos s ali: a casa daMaria: os bonecos a imitarem porcelana sobre as prateleiras dos armrios,

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    as cobertas sobre os sofs, os cantos dobrados dos tapetes, os candeeiros aimitarem cristal, as pinturas estampadas nos quadros: e a casa de festas deanos em que, desafinados, cantvamos os parabns, batamos palmasdesencontradas e nos ramos: e a casa de festas de Natal em que mesentava no sof, e se punha a toalha de mesa com desenhos de pinheiros esinos, e se usavam os copos de p alto. Nessa casa, cada um ficouabandonado num canto dentro do sofrimento.

    s nove horas da noite, o telefone tocou. O telefone tocou durante ummomento que foi muito longo, porque ningum o queria atender, porquetodos tinham medo de o atender, porque todos sabiam com uma certezamuito grande que, ao atend-lo, iria acabar definitivamente a esperanaat ao ltimo instante, iriam acabar os quase trs anos da minha doenaque, sempre se soube, me ia levar morte, me ia levar at quele telefoneque tocava e que ningum queria atender. O telefone tocou. O somatravessou a casa e o peito da minha mulher, da Maria e do Francisco.Quem atendeu foi o marido da Maria. As suas palavras dentro de umasuspenso negra do tempo, como dentro de uma sombra do tempo: Sim,sim. Est bem. Eu digo. Aproximou-se dos meus filhos e da minhamulher e disse-lhes. Um muro invisvel entre o seu rosto e as palavras quedizia. Um muro invisvel entre o mundo e as palavras que dizia. Um muro

    que no permitia a compreenso imediata de palavras to simples. OHermes tinha acabado de nascer.O Hermes tinha acabado de nascer. As palavras foram: Nasceu o

    menino da Marta.O Hermes tinha acabado de nascer.No hospital, a Marta estava a descansar. E ningum sabia como ficar

    feliz, mas a felicidade era to forte e crescia de dentro deles. Era como setivessem uma nascente de gua no peito e a felicidade fosse essa gua.

    Houve um milagre que fez lgrimas transformarem-se em lgrimas. Etinham as mos pousadas sobre o peito. Tinham as plpebras fechadasmuito devagar sobre os olhos para sentirem a chuva branda dessafelicidade que os cobria, inundava.

    Passou uma hora. O telefone tocou de novo. Eu tinha acabado demorrer.

    A luz da manh no sente os vidros limpos da janela no momento emque os atravessa, pousando depois nas notas de piano que saem da

    telefonia e flutuam por todo o ar da cozinha. A luz da manh, pousada nasnotas de piano, detm-se, pontilhada, nos reflexos dos azulejos brancos daparede, nos cantos da mesa revestidos por frmica, nas gotas de gua que

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    Agora, a ris est quieta e brinca com as bonecas: No querespapar? Porque que no queres papar? pergunta boneca, enquantolhe encosta uma colher pequena na boca de borracha. Depois, penteia-a.Depois, deita-a a dormir. V-a dormir durante um instante, e acorda-a.Troca-lhe a roupa e tenta de novo dar-lhe de comer. A minha mulher volta cozinha. Nas chvenas penduradas dentro do armrio, na fruteira, nostalheres lavados, no cabo da vassoura, nos panos suspensos na parede dolava-loias, na caixa de fsforos com ndoas de gordura, na chaleirapousada sobre o fogo apagado, os seus olhos reconhecem a paz damanh. Abre a janela e, depois de escolher algumas molas e uma pea deroupa do alguidar cheio, inclina-se sobre o parapeito para estend-la. Erepete esses gestos. E, de cada vez que se baixa para segurar umas calasdo marido da Maria, ou uma blusa da Maria, ou uma camisola interior dasnetas, submersa por um pedao da msica de piano que, com a fora deuma brisa, enche a cozinha. E, de cada vez que se inclina sobre o parapeitoe puxa a corda para acertar uma mola, pensa que Lisboa e o mundo soenormes. O seu tronco, lanado a partir da janela do terceiro andar de umprdio de Benfica, sente um pouco daquilo que poder ser a experinciade voar. neste instante que pensa no nosso filho Francisco, que partiuontem de madrugada para a maratona, para os Jogos Olmpicos, como se

    partisse para uma iluso. Esse pensamento esteve sempre por baixo detodos os outros, como um lume de brasas que, por vezes, desperta numachama. E, primeiro, o orgulho: o nosso filho, o nosso menino: o peso detodas as lembranas da ternura: e o nome impresso em jornais,importante. O nome. Demos-lhe o meu nome para que o tornasse seu. Essenome que foi meu e que agora lhe pertence completamente. O nome etodas as pessoas que o pronunciam: Francisco Lzaro. Depois, depois, oorgulho.

    Como se pudesse falar em silncio com o Francisco, baixa o olharsobre a rua, sobre o passeio onde faltam pedras: figuras irregulares deterra com a forma das pedras que faltam: e levanta o olhar. No outro ladoda rua, dois prdios separados por terrenos onde crescem pedaos detijolos, gargalos de garrafas partidas e rodas enferrujadas de carros depassear bebs. Um pouco mais longe, hortas de couves, cercadas porvedaes feitas de latas enferrujadas. Um pouco mais longe, a estradaonde, dia e noite, passam automveis nas duas direces. E depois dessa

    estrada, Lisboa inteira. E depois de Lisboa, o mundo e o nosso filho, o nossomenino. E, sobre tudo, em tudo, a manh.

    Baixa-se no cho da cozinha para apanhar uma blusa da Ana: golas

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    redondas, bordadas: e duas molas. A msica de piano continua contnua apartir da telefonia. Comea a inclinar-se sobre o parapeito e, de repente,ouve-se um estrondo na sala, uma derrocada, a exploso de qualquer pesoque se esmaga contra cho: vidros, madeira, ferro. Ainda dentro dessemomento, os gritos sbitos da ris. A minha mulher larga a blusa da Ana eno fica a v-la planar at ao passeio, porque vai a correr na direco dasala. A minha mulher conhece bem as diferenas entre os vrios tipos dechoro da ris: quando faz uma birra, quando est apenas assustada ouquando est mesmo aflita: por isso, corre o mais depressa que capaz. Porbaixo dos gritos estridentes da ris, as batidas rpidas do corao da minhamulher a aproximar-se. O seu corpo atravessa o corredor com os mesmosmovimentos de quando vai a andar, mas muito mais depressa, porque essa a sua maneira de correr.

    Era a nossa casa. A minha mulher sentava-se nos degraus dasescadas do quintal, passavam fins de tarde amenos do incio de agosto, eficava compenetrada a fazer malha. Fazia casaquinhos ou botinhas de lpara o nosso filho. Faltava um ms para que nascesse e ela j lheimaginava o tamanho dos braos e o tamanho dos pezinhos. s vezes,estendia as peas, meio tricotadas, nas palmas das mos e, nessesmomentos, era como se visse os braos ou os ps do nosso filho ainda por

    nascer.Eu segurava a ponta da mangueira, a gua grossa, fresca, e acertavanos ps das rvores e das plantas. Havia o cheiro fresco da terra aembeber a gua. Havia uma aragem que nos serenava a pele do rosto.

    Em instantes, lembrava-me de lhe contar alguma coisa. Ela parava-sea ouvir-me. Pousava as agulhas e a malha sobre a barriga, ficava a ouvir-me e, s vezes, a malha comeava a mexer-se sozinha.

    Era o nosso Francisco a dar pontaps dentro da barriga.

    Eu dizia: Quando for grande, h-de ser jogador de futebol. Mal eusabia.Anos mais tarde, recordando-se dos pontaps que, noite, lhe

    desenhavam ngulos na pele da barriga redonda, a minha mulher repetiumuitas vezes: O meu Francisco comeou a treinar-se para corredorainda antes de nascer.

    Era de manh que eu chegava oficina. Abria o porto e o eco dasvoltas da fechadura era natural nas paredes cobertas de serradura e de

    p. Com os primeiros passos das botas na terra da entrada, havia dois outrs pardais que voavam entre as vigas do tecto e se escondiam nassombras das telhas. Quando estava bom tempo, abria as janelas sobre o

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    ptio. No meu banco de carpinteiro, as ferramentas estavam onde as tinhaarrumado. O trabalho esperava-me no ponto exacto onde, no dia anterior,tinha decidido parar. Era de manh e, quando segurava cada ferramentapela primeira vez: o martelo, o formo, o serrote: sentia na palma da mo oincio ameno de mais um dia.

    O meu tio chegava a meio da manh. Trazia as mesmas roupas davspera: metade da camisa fora das calas, a fivela do cinto desacertadacom o boto. O olho esquerdo brilhava-lhe na cara por lavar. Quando eracriana, numa brincadeira, o meu tio tinha ficado cego do olho direito. Aochegar oficina, o seu olho direito era a plpebra mais lisa, mais branca doque o resto da pele, assente sobre a rbita vazia. Tinha os lbios secos egretados. Os dentes sustinham uma pelcula pastosa de vinho tinto. Tinhasempre um sorriso infantil, sincero. Dizia-me bom dia. Eu no lhe dizianada. Ele esquecia-se e dizia-me bom dia outra vez. Ento, tirava talvez umleno enrodilhado do bolso e assoava-se. Depois, saa para o ptio. Se euestava a medir ou a marcar alguma pea, ouvia o arco da sua urina cairsobre o cho de cascas de pinheiro. Depois de tempo e passos que seaproximavam, voltava e lavava talvez a cara sob a gua fria da torneiraaberta. A gua misturava-se com a serradura do cho. Com assobrancelhas despenteadas, sorria e, finalmente, aproximava-se do banco

    onde o aguardavam as ferramentas desarrumadas num monte.As manhs passavam com o meu tio a contar histrias que, s vezes,repetia e que, s vezes, no terminava; passavam sob as histrias que omeu tio contava e que eu, s vezes, no ouvia. Enquanto trabalhava:martelos a bater, serras a atravessarem ripas, limas a limar, lixas aalisarem tbuas: deixava de ouvir o meu tio para me fixar nos sons dacidade que entravam pelas janelas e pela porta do ptio, como sechegassem de muito longe: preges, vozes perdidas, campainhas de

    bicicletas.Foi o meu pai que me deixou a oficina. Em certos dias, quando vinhado mercado de mo dada com a minha me, pedia-lhe: Vamos minhaoficina.

    Se algum me ouvia e entendia, ria-se por eu ser to pequeno e falarassim. A minha me no se ria porque tinha sido ela que me ensinara autilizar essas palavras.

    O meu pai morreu longe da minha me, exausto, no mesmo dia em

    que eu nasci.

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    Durante toda a minha infncia, em certos seres, a minha meaquecia uma chocolateira de gua e pedia-me para ir ao quintal buscar

    uma folha de limoeiro. O nosso limoeiro tinha folhas grandes e grossas,custosas de desprender-se e que faziam barulho no momento em que asarrancava dos ramos mais baixos. A minha me lavava a folha emergulhava-a dentro da gua a ferver para fazer o nosso ch. Era nessemomento que trazia para. o centro da mesa um embrulho de papel pardoque, lentamente, sob o meu olhar, abria. Eram dois bolos que tinhacomprado na padaria e que, com a ponta da faca, cortava ao meio. Eu subiapara cima de um banco e tirava duas canecas do armrio. Sentvamo-nos

    mesa, me e filho, a comer as nossas metades de bolo e a beber ch. Aseguir, a minha me contava histrias que terminavam sempre com o risodo meu pai. A minha me quase se ria ao explicar o riso do meu pai.Depois, a minha me dizia que o meu pai era muito valioso.

    Havia ento uma pausa. Silncio. E a minha me contava-me como, decerteza absoluta, o meu pai se orgulharia de saber que eu iria tomar contada oficina. Era nesse momento que falava da minha oficina: A tua oficina dizia, sria, a olhar-me nos olhos. A voz da minha me era frgil e

    segura, era suave, era firme. A oficina esteve parada at ao dia em que omeu tio se props tratar dela, pagando a pequena renda com que a minhame se governava. Havia meses em que o meu tio, por desorientao oupor causa da bebida, se atrasava a pagar. A minha me contava com isso e,para essas ocasies, poupava algum dinheiro no fundo da caixa da costura.Foram poucas as vezes em que, depois de todos os prazos, determinada,teve de fazer as duas ruas que separavam a nossa casa da oficina parareclamar a renda. Quando o meu tio a via entrar, envergonhava-se, baixava

    o rosto, pedia-lhe muitas desculpas sentidas e, quase sempre, lacrimejava.Comecei a trabalhar com o meu tio poucos dias depois de fazer doze

    anos. Nesses tempos de aprendiz, tentava compreender aquilo que memandava fazer entre a torrente de histrias incompreensveis que contava.Aquilo que o meu tio tinha para me ensinar era o pouco que conseguiraaprender ao ver o seu pai a trabalhar e aquilo que aprendera com os seusprprios erros e tentativas. Com catorze anos, trabalhava j com maisperfeio do que ele e ensinava-lhe coisas que ele nunca soubera ou queesquecera.

    Tinha catorze anos quando a minha me ficou doente. Numa semana,

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    conheciam-se-lhe todos os ossos e todas as veias do corpo. A sua peletornou-se amarelada. O seu olhar ficava parado em pontos. Supliquei-lheque no morresse. Pedi-lhe por tudo. Mas, passadas algumas semanas,morreu.

    Foi como se tivesse esperado apenas por ver-me criado.Durante as semanas seguintes, o meu tio ficou em silncio. Numa

    manh, comeou a contar uma histria que nunca mais terminou e o tempocontinuou a passar.

    Infludo com as histrias que contava para si prprio, raramente omeu tio ouvia as pessoas que chegavam, com passos pesados na terra daentrada, e que, a qualquer hora, vinham encomendar trabalhos ou ver seestavam prontos os trabalhos que tinham encomendado. Por isso,surpreendia-se muito quando as via surgir na porta da carpintaria.Eufrico, rodeava-as a falar alto e a sorrir. Essas pessoas, mesmo que no oconhecessem j, ignoravam-no e dirigiam-se a mim. Foi exactamente issoque aconteceu na manh em que chegou o italiano.

    O bigode fino danava-lhe sobre os lbios ao ritmo das palavras quedizia. Enquanto falava, o bigode, fino, engraxado, assumia as formas maisdiversas: um til, uma linha, um ngulo recto, um arco. Ao mesmo tempo,usava as mos limpas, lisas, brancas, e os dedos esguios, bem tratados, as

    unhas ligeiramente compridas, para fazer gestos e, assim, esculpir no ardiante de si toda a espcie de formas: um cavalo nobre com arreios deprata, sales com gravuras no tecto, um piano. Em momentos repentinos,parava-se a investigar se o tnhamos entendido e acertava os botes depunho com a ponta dos dedos ou depenicava as golas brilhantes do fraque.Decidia ento que no o tnhamos entendido e continuava.

    Mas tnhamos entendido tudo. Talvez tudo. Desde que o italianocomeara a falar que a voz do meu tio foi esmorecendo, mais fraca, mais

    fraca, como se descesse escadas, at que se calou completamente e, com oolho esquerdo arregalado, ficou apenas a ouvir com interesse vivo esincero. Quando o italiano se cansou ou quando j no sabia mais como seexplicar, eu e o meu tio olhmo-nos para confirmar que tnhamosentendido. O italiano tocava e cantava em bailes. Tinha um piano avariadoe algum lhe dissera que, ali, poderamos consert-lo.

    Com o italiano entre ns, atravessmos a carpintaria e a entrada,caminhmos at rua e, no topo de uma carroa puxada por duas mulas

    cansadas, estava um piano de cauda, a reflectir as nuvens no seu brilhonegro, atado por cordas que o envolviam. Antes que eu conseguisse dizeralguma coisa, o meu tio olhou para o italiano e, com gravidade, estendeu-

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    lhe a mo e disse: Pode deixar que ns consertamos-lhe o piano a tempode tocar no baile.

    O italiano ignorou a mo do meu tio, sorriu e, virando-se para mim,disse que o baile seria no sbado noite. Tnhamos trs dias. Virei-me parao meu tio para discutir a deciso, mas fiquei a meio da primeira palavraporque ele tinha j virado as costas e, contornando poas de leo domecnico de motorizadas que ficava um pouco mais acima, caminhavaapressado na direco da taberna. Mudo, olhei para o italiano, encolhi osombros num instante de incompreenso mtua e, com a mesma pressa, omeu tio saiu da taberna, liderando um grupo de homens esfarrapados,trpegos, velhos, tortos e aleijados.

    Sob as ordens do meu tio, os homens comearam a desatar o piano.Foi o meu tio que abriu completamente o porto da oficina e que, com umsalto, subiu para cima da carroa e comeou a empurrar lentamente opiano, que deslizava nas suas pequenas rodas para os braos dos homens.

    Aguentem a. E desceu para ajud-los.O meu tio contou at trs e, num som do interior do peito, disse: upa.

    Nesse momento, levantaram mais o piano e deram passos que arrastaramo som da poeira no cho. Carregavam o piano como se estivessem acarregar o mundo inteiro. Os corpos dos homens, agarrados ao piano, e as

    suas pernas, dobradas pelo peso, eram um animal negro, como umaaranha. As suas vozes, abafadas pelo peso: no largues agora, empurrapara a tua esquerda: rodeavam o piano. Atravessaram a entrada da oficinae dirigiram-se para a carpintaria. Havia homens que entravam de costas ehavia outros que, de frente, levantavam o pescoo para os guiar.

    Assim que desapareceram na porta da carpintaria, o italianoentregou-me um carto: penso Flor de Benfica. Ainda eu tinha o cartodiante dos olhos, quando o italiano me apresentou a mo. Estendi-lhe a

    minha e ele, veloz, apertou-me o pulso e abanou-me o brao. Sorriu muito,limpou o verniz dos sapatos na parte de trs das calas, subiu para cima dacarroa e, com uma palavra em italiano, partiu rua acima.

    Quando os homens saram, como se tivessem visto o mundo todoentre as paredes da carpintaria, escondiam o esforo num sorriso e batiamas mos, como se as limpassem do p, esfregavam as mos nas pernas dascalas cheias de ndoas, como se as limpassem. O meu tio vinha com eles,segurava o novelo das suas vozes. Saiu com eles pelo porto, contornaram-

    me como se fosse invisvel, deram passos na estrada de terra e entraramna taberna. O meu tio pousou os cotovelos sobre o balco de mrmore epagou um copo de vinho a cada um dos homens.

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    Era ainda de manh. Eu estava sozinho e parado na estrada, frenteao porto aberto da oficina. Tinha os braos estendidos ao longo do corpo eum carto abandonado numa das mos. Pedaos de vento traziambadaladas de sinos que assinalavam horas distantes. Tinha vinte e doisanos, tinha os braos estendidos ao lado do corpo, nunca tinha consertadoum piano e no me conseguia imaginar a ser capaz de faz-lo.

    Diante da porta da sala, sem que parasse realmente, foi como se aminha mulher tivesse parado porque, num nico instante, uma imagem,inteira e ntida, suspendeu-se diante de si: a ris, pequena, sentada, com aboca aberta num grito constante; rodeada de vidros partidos, jarrosderrubados, bonecos de loia sem cabea; ao lado do mvel de canto,tombado sobre o tapete, como um cadver velho cado de bruos; e a riscom a mo levantada, aberta, com a palma da mo coberta de sangue quelhe escorria entre os dedos. Em trs passos de vidros a estalarem abafadossob a sola das pantufas, a minha mulher segura-a por baixo dos braos elevanta-a no ar. Os gritos da nossa neta rasgam as paisagens estampadasnos quadros das paredes, cortam a pele do rosto da minha mulher eimpedem-na de respirar.

    Pronto, pronto diz, enquanto abre a torneira do lavatrio sobrea mo da ris, mas os gritos da menina so reflectidos pelo espelho

    manchado de ferrugem e pelos azulejos brancos da casa de banho.O telefone comea a tocar. Sobre a mesa de pinho: a gaveta de papisriscados e de esferogrficas que no escrevem: sobre o napperon derenda: a madrinha da minha mulher a escolher novelos de linha naretrosaria: ao lado da moldura cromada: a fotografia que tirmos todosjuntos no Rossio: o telefone grita. Com a fora do ferro, estende umaurgncia constante, que se interrompe durante um flego rpido, paravoltar logo a seguir, com o mesmo pnico e a mesma autoridade.

    O telefone continua a tocar. A ris chora e grita. As lgrimasdesenham-lhe riscos de gua quente sobre as faces vermelhas. A minhamulher segura-lhe a mo debaixo da torneira aberta. O sangue dilui-se naloia rachada do lavatrio e desaparece. Na palma da mo da ris, um vidroenterrado numa ferida. Num s gesto, com a ponta dos dedos, a minhamulher puxa-o e sente o interior da carne.

    Pronto, pronto diz, ao voltar a pousar-lhe a mo sob a gua fria.Os gritos da ris tornam estridente a luz branca da lmpada pendurada

    num fio, tremem os frasquinhos de loes ordenados numa prateleira,entram na banheira e arranham a superfcie do esmalte com guinchos.

    O telefone continua a tocar. Cada toque uma mo que agarra o

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    corpo da minha mulher e o aperta, que agarra a sua cabea e a aperta, queagarra o seu corao e o aperta. Nos seus braos, a voz da ris comea aencontrar conforto e, lentamente, alguma paz. A minha mulher fecha atorneira, enrola a mo da ris numa toalha branca do bid e, levando-a aocolo, sai da casa de banho a correr e avana pelo corredor.

    O telefone continua a tocar. Os passos da minha mulher so rpidosna alcatifa porque ningum costuma telefonar durante o dia. Dentro de si,teme que seja uma m notcia, teme que seja uma notcia que a deite porterra, que a destrua, que a condene outra vez: a morte. Aperta a menina deencontro ao peito e avana ansiosa pela alcatifa: o mais depressa que capaz. E o telefone pra de tocar. Os passos da minha mulher perdem osentido, abrandam e param.

    Na cozinha, a msica de piano continua a nascer da telefonia e empurrada pelo vento que entra atravs da janela aberta.

    No queria dizer nada ao meu tio, porque queria ver o resultado doseu entusiasmo. Ele rodeava o piano com palavras e passos que,subitamente, mudavam de direco. distncia, com os braos cruzadossobre o peito, eu olhava-o e no acreditava em nada do que dizia. Naserradura que cobria o cho, havia o desenho de uma forma irregular queera o carreiro por onde o meu tio seguia. Num impulso, quebrou essa

    corrente de passos desenhados e foi buscar um banquinho: coberto derestos de tinta e de pregos tortos: que colocou frente do piano. Sentou-se,levantou a tampa que cobria o teclado e percorreu-o com o olhar. Quasecomovido, disse: O teu pai iria ficar to feliz se aqui estivesse.

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    Foi nesse momento que tudo encontrou um sentido dentro de mim. Omeu pai. Como um dedo sobre uma tecla a despertar um mecanismo

    adormecido, compreendi. entrada da oficina, direita, havia uma porta fechada, tapada pelotempo e por cadeiras a que faltava uma perna, por tampos de mesas eoutros restos que se foram acumulando num monte desordenado. Nesseincio de tarde, eu e o meu tio afastmos tudo e, como no sabamos dachave, fui eu que arrombei a porta com dois pontaps na fechadura.

    A minha me evitava falar dessa diviso fechada da oficina. Se ofazia, dizia sempre que no havia l nada que me interessasse. Quando

    essa explicao deixou de ser suficiente, falou-me de sustos. Disse: Hsustos l dentro.Com dez anos, essa explicao chegava-me. Depois, passaram veres

    e invernos. Deixei de fazer perguntas. Havia uma porta fechada entradada oficina, lentamente tapada por tbuas, por trastes, e eu no pensavanisso. Pensava noutras coisas.

    Nesse incio de tarde, ficmos parados durante um momento peranteessa porta subitamente aberta. L dentro, a escurido absoluta cobria

    todas as formas. Era como se tivssemos aberto uma porta sobre a noite.Diante de ns, na escurido podiam estar campos cobertos pela noite, ouum rio coberto pela noite, ou uma cidade inteira: adormecida ou morta:coberta pela noite.

    O meu tio entrou primeiro. Deixei de v-lo entre sombras desombras: um vulto entre vultos. Ele sabia os caminhos, e foram precisospoucos passos, poucos sons misteriosos dentro da escurido, at que, coma manga da camisola, comeasse a limpar o vidro da pequena janela

    coberta de p. Atravs dos seus movimentos, entraram raios de luz.Devagar, a claridade encheu todo o vidro.A luz deslizou pelas superfcies de p. Pouco se via da sujidade das

    paredes e o peso do tecto baixo era mais real porque havia pianos de todosos gneros que se erguiam, slidos e empilhados, quase a tocarem o tecto.Encostados s paredes, havia pianos verticais uns sobre os outros: naordem com que o meu pai, ou o seu pai antes dele, os tinha equilibrado. Aocentro, havia muros de pianos sobrepostos. A luz atravessava os espaosvazios entre eles e, mesmo da porta, podia distinguir-se o labirinto decorredores que camuflavam. E sobre um piano de cauda estava outro

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    piano de cauda, mais pequeno e sem ps; sobre esse estava um pianovertical, deitado; sobre esse estava um monte de teclas. Ao lado, separadospor uma fresta que a luz atravessava, dois pianos verticais, com a mesmaaltura, encostados um ao outro, suportavam um piano vertical maisrobusto que, no seu topo, segurava um pequeno piano de armrio. Haviapianos encaixados de todas as formas possveis. Nas folgas onde no seencaixavam completamente, a claridade atravessava teias de aranhaabandonadas que seguravam gotas de gua, como pontos de brilho. O arfresco entrava nos pulmes e trazia o toque hmido do p pastoso que eraa nica cor: o cheiro de um tempo que todos quiseram esquecer, mas queexistia ainda. O silncio desprendia-se dessa cor clara e antiga. A luzatravessava o silncio. No cho, havia tampos esfolados de pianos, ao alto,encostados a outros pianos. Em certos cantos, havia vares de metal, teclas,pedais e pernas de piano presas umas s outras com arames. Atravs doespao entre dois pianos, a partir da pequena janela finalmente luminosa,o meu tio olhava-me com um sorriso. Quando fixei directamente o seurosto, sorriu mais, saltou para o cho com um estrondo das botas edesapareceu entre os pianos.

    Entrei, escolhendo o lugar onde pousava cada p, como se temessealguma coisa que desconhecia. Nas sombras imaginava segredos de um

    tempo, antes de eu nascer, que me seria proibido para sempre: aeternidade: e que, no mesmo instante, se tornava to concreto e simplescomo os objectos que tocava todos os dias, como o caminho entre a casa e aoficina, como as memrias que tinha e que me guiavam. Sozinho, sentindo-me vigiado por todos os pianos sem arranjo, avanava. Contornei um pianovertical e, no fundo desse novo corredor, vi o meu tio com os braos dentrode um piano de cauda e apressei-me na sua direco. Deu um passo atrs,pousou-me uma mo no ombro, apresentou-me o mecanismo do piano com

    a outra mo e disse que aquele seria um dos pianos a que voltaria parabuscar peas. Olhei-o incrdulo, mas encontrei tal confiana que, nessemomento, deixei de ter dvidas de que seramos capazes de consertar opiano.

    Nessa tarde, e no dia seguinte, e no outro, e na manh de sbado,aprendi a parte mais importante daquilo que, durante toda a minha vida,haveria de aprender sobre pianos. Solene, o meu tio olhava-medirectamente com o seu olho esquerdo quando me queria explicar os

    pontos que eu no deveria esquecer nunca. Eu abanava a cabea eprestava ateno a cada uma das suas palavras. Ficavam gravadas emmim, como se, no meu interior, existisse um lugar feito de pedra espera

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    de receber a forma do significado dessas palavras. Da mesma maneira,prestava ateno a todas as histrias que o meu tio contava. Quando seperdia em pormenores e comeava a esquecer-se de contar o fim dealguma, eu perguntava-lhe o que tinha acontecido depois do ponto em quese afastara. Ele no estranhava o meu interesse sbito pelas suas histriase continuava. Nas histrias que o meu tio contou durante esses dias,percebi um pouco mais da minha prpria histria. O meu pai, como o seupai antes dele, tinha passado anos a fazer portas e janelas porque noconseguia sobreviver apenas de consertar pianos. Na maior parte dotempo, o meu pai fazia portas e janelas, fazia bancos para as pessoas sesentarem, fazia mesas a desejar que as pessoas tivessem pratos de sopapara pousar nelas; mas, em todas as iluses, escutava pianos, como seescutasse amores impossveis. Quando acabava de consertar um piano,sozinho, sem saber uma nota, o meu pai fechava a oficina toda para, nocentro da carpintaria, tocar msicas que conhecia e msicas que inventava.Gostava talvez de ter sido pianista mas, nem mesmo quando ainda notinha desistido de todos os seus sonhos, se tinha permitido sonhos dessetamanho. O meu tio fixou o seu olho esquerdo em mim para garantir queeu nunca iria esquecer e disse: O teu pai, quando falava ou pensava empianos, tinha redemoinhos de msica dentro dele.

    Durante esses dias, o meu tio mandou-me muitas vezes ao sto.Antes, apontava-me a pea de que precisava: um abafador, uma molada alavanca, um boto de regulao: e, logo a seguir, voltava a esconder orosto no interior do piano. Nas primeiras vezes, a voz da minha me,repetida pela memria, voltava a dizer-me as palavras de quando eu eracriana e lhe falava daquela porta fechada na minha oficina. Depois, aospoucos, fui-me convencendo com as palavras do meu tio: O teu pai iriaficar to feliz se aqui estivesse. E comecei a acreditar que, qualquer que

    fosse a ideia da minha me: proteger-me, proteger a lembrana do meupai: eu estaria a respeit-la porque estava a dar uma vida nova aos sonhosdo meu pai, da mesma maneira que estava a dar uma vida nova s peasmortas daqueles pianos. s vezes, demorava-me um pouco mais do queseria necessrio porque ficava a entender a tranquilidade, ou a olhar paraos pianos que me rodeavam e a imaginar as histrias que cada um delesguardava: palcos de tbuas, bailes, mestres a ensinar, meninas compunhos de renda a aprender. Quando regressava carpintaria, o meu tio

    nunca dava pelo atraso e sorria-me quando lhe estendia a pea certa quetinha pedido.

    No incio da tarde de sbado, olhmo-nos com uma satisfao tmida

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    quando soubemos que o piano estava pronto. A meio da manh, o meu tiosaiu para ir buscar o afinador. Chegou, trazendo-o pelo brao. O afinadorera cego. Apontava a cabea para cima ou para lugares onde no acontecianada. A cabea girava-lhe autnoma sobre o pescoo. Era mais velho doque o meu tio. Tinha as mos lisas. Falava pouco. Passmos horas a acertarnotas em cada tecla. O afinador apertava as cordas com uma chave deprata que segurava, firme e cuidadosamente, entre os dedos. E os sonspuros: ntidos no silncio: desenhados no ar, a demorarem-se breves, aecoarem na memria e a deixarem outro silncio: outro silncio: outrosilncio diferente. Quando por fim se ouviu uma palavra, foi o meu tio queme pediu para ir avisar o italiano. Sorri-lhe, abanei a cabeaafirmativamente e no fui capaz de dizer nada porque, dentro de mimtinha um redemoinho infinito de msica infinita.

    Sentia a minha mulher acordada. Poderia ter-me lembrado quefaltavam poucos dias para a data que o mdico tinha dito, mas lembrava-me apenas das noites em que o calor no a tinha deixado adormecer. Era oincio de setembro. Ela dava voltas impacientes na cama. De cada vez quese virava, o mundo ficava suspenso nos seus gestos porque era tudo muitolento, porque era difcil e, s vezes, parecia que era impossvel. O seu corpoera grande de mais. Os seus braos tentavam agarrar-se aos lenis. No

    encontrava posio. As juntas da cama rangiam. Eu estava acordado,adormecido, acordado, adormecido. Quando adormecia, continuava meioacordado. Quando acordava, continuava meio adormecido. Nospensamentos vagos que tinha, acreditava que era o calor que no adeixava adormecer totalmente.

    Estremunhado, abri os olhos quando senti as pernas quentes emolhadas, quando ela me abanou os ombros, gritando e sussurrando: Acorda! Rebentaram-me as guas.

    Custou-me a acertar com os ps nas calas. Tentava acertar com ump e dava pulinhos com o outro.Ela fechou-se na casa de banho. Quando bati porta, pediu-me para

    ir avisar a Marta. Entrei no quarto das nossas filhas s escuras. A Martaacordou assustada. Esperei pelo silncio at se ouvirem apenas as marsda respirao da Maria a dormir. Nesse momento, disse-lhe: A tua meest quase a ter a criana. Vamos agora para a maternidade. Toma contados teus irmos quando acordarem.

    Na penumbra, os olhos da Marta escutavam-me muito srios.Sa do quarto das nossas filhas. A Marta ficou sentada na cama. Os

    seus olhos eram preocupados e brilhavam. Abri a porta do quarto do

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    Simo. Era ainda to pequeno, e dormia. Fechei a porta devagar. Procurei aminha mulher. Atravessei o corredor. A camioneta tinha menos de um anoe, nos ltimos meses da gravidez da minha mulher, estacionava-a portade casa. Amparei a entrada da minha mulher na camioneta. Corri para aporta do condutor. Arranquei em segunda.

    Limpei as remelas com o indicador nas primeiras vezes em queparmos atrs de automveis parados. Prestava pouca ateno ao inciodaquela manh. s vezes, a minha mulher comeava a queixar-se maisalto. Ento, acelerava, dava solavancos nos carris dos elctricos,ultrapassava automveis que apitavam, passava por semforos vermelhos.Depois, tinha automveis frente e no conseguia passar. Virava-me paraa minha mulher e perguntava-lhe se estava bem. Olhava para o relgio, otempo era muito rpido. Perguntava-lhe outra vez se estava bem.Acelerava um rugido do motor sem sair do lugar, olhava para o relgio, otempo era muito rpido. Perguntava-lhe outra vez se estava bem e, quandoconseguia andar, voltava a acelerar: solavancos nos carris dos elctricos,ultrapassar carros, passar semforos vermelhos. Ela, no seu sofrimento,dizia-me: Vai com calma.

    Eu enervava-me: Como que eu posso ir com calma? Ela dizia-me: Calma.

    E chegmos maternidade, corri para ela, e entrmos de brao dado,eu a pux-la, ela pesada com dores, e eu a pux-la. Dirigi-me a umaenfermeira e, antes de conseguir dizer alguma coisa, a enfermeira disse-me: Calma.

    E levou-a. A minha mulher virou-se para trs para me ver sozinho,com os braos e com os olhos abandonados. E esperei. Olhava para orelgio. A manh. A manh com o tamanho de um vero. Toda a manh.Olhava para o relgio. O tempo era muito lento. A enfermeira passava por

    mim, eu ia atrs dela e, antes de conseguir dizer alguma coisa, era ela queme dizia: Tenha calma. V comer qualquer coisa. E eu desistia.Foi depois da hora de almoo que a enfermeira voltou a entrar na

    sala de espera e me disse: Ento, no quer ir ver o seu filho? Os meusps deslizaram pelo cho de mosaicos, o meu corpo atravessou oscorredores de paredes cinzentas e de lmpadas quase fundidas,intermitentes, a falharem.

    Os meus olhos no viam nada. E entrei no quarto. De uma vez: a

    minha mulher deitada na cama a segurar o nosso Francisco nos braos. Asorrir com a vida. Caminhei mudo e lento at cama. No soube dizernada. Mais tarde, haveria de dizer que, logo ali, tinha percebido tudo aquilo

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    de que ele seria capaz. Mais tarde, haveria de dizer tantas coisas. Naquelemomento, no soube dizer nada. Toquei a face do menino com as pontasdos dedos. Toquei a testa da minha mulher com os lbios. O tempo noexistia.

    Sem um instante para gastar com perguntas sem resposta, a minhamulher volta a entrar na casa de banho com a ris ao colo e, quando abre aporta do armrio dos medicamentos, no quer pensar em quem poderiaestar a telefonar-lhe.

    A ris j pesada. A minha mulher senta-se na ponta do bid epousa-a no cho. sua frente, a ris fica de p, com a mo aberta eestendida para ela. So uma av e uma neta. Sobre os joelhos, a minhamulher equilibra algodo, tintura de iodo, fita adesiva e um rolo deligadura. Tem a voz delicada porque quer que a ris no chore mais. Tentasorrir e tenta distra-la: Agora, vinhas ao hospital para te curares. Entodiga l, senhora, teve um acidente? Com os lbios apertados e os olhosmuito grandes, a ris murmura gemidos magoados, quase fingidos, eestende-lhe mais a mo.

    Oh, vamos j cur-la. E despeja tintura de iodo sobre uma bolade algodo que aproxima da ferida.

    A ris vai para comear a chorar, mas a minha mulher consegue

    cont-la. Diz-lhe: Pronto, pronto. E enrola-lhe a mo pequena numatira de ligadura que prende com fita adesiva.Depois, encontra um instante para lhe passar os dedos pelo cabelo:

    ternura: e, devagar, aproxima-lhe os lbios da testa. Sorri-lhe: J passou.A ris fica em bicos de ps, com o queixo erguido sobre o lavatrio,

    enquanto a minha mulher lhe lava a cara ainda desordenada pelo choro.Sente-lhe o rosto. Sente-lhe o rosto atravs da toalha de pano turco e, sdepois, pousando-lhe uma mo sobre o ombro, pergunta como que o

    mvel caiu. Era a boneca diz a ris.A minha mulher percebe que a nossa neta quis subir ao armrio

    para tirar a boneca, vestida de nazarena, que a Maria tinha a enfeitar umadas estantes do armrio. uma boneca de plstico que a Maria comprounuma excurso. Tem as sete saias das mulheres dos pescadores da Nazare um chapu preto sobre um leno de flores. Tem pestanas pintadas sobreos olhos pintados. Est descala sobre uma base redonda que diz:

    recordao da Nazar. Apesar de todas as vezes que a av lhe ralhou, a ristem uma cegueira desmedida por aquela boneca. Quando a minha mulhercomea a preparar-se para lhe ralhar, tocam campainha.

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    Mais uma vez, o seu corao. J passa da hora em que o carteiropoderia tocar campainha, cedo para a hora de almoo da nossa filha eno costume haver outras visitas durante todo o dia. A minha mulherdeixa a ris a esper-la na casa de banho.

    No mexas em nada diz-lhe, brusca. E avana pela alcatifa docorredor. Como se uma ideia caminhasse tambm pelo corredor, viesse nasua direco e se cruzasse com ela, passa-lhe pela cabea que quem est atocar campainha pode ser a mesma pessoa que lhe telefonou h minutos.Pode ser algum que precisa de avis-la de uma notcia terrvel que jaconteceu, que a deitar por terra: a morte: que a destruir: a morte: quea condenar outra vez. Tenta afastar esse pensamento negro. Carrega noboto que abre a porta da rua l em baixo e, nesse instante, escuta o ecoelctrico da porta a abrir-se na entrada do prdio. Espera. Tenta distinguiros passos que deveriam agora entrar no prdio, ou que deveriam agorasubir os degraus de mrmore, mas, em vez disso, ouve trs batidas naporta de cima: a pouca distncia de si: trs batidas firmes na madeira. Como susto, alarmada, pergunta: Quem ? Mas ningum responde. Volta aperguntar: Quem ? Mas ningum responde.

    A penso Flor de Benfca no era muito distante Foi a vontade quetinha de chegar que fez com que, nessedia o caminho me parecesse to

    longo. As ruas de Benfca que conhecia desde sempre, eram novas porqueno conseguia v-las. Enquanto caminhava, no reparava nos cesabandonados e sarnosos que se encostavam s paredes, amedrontados,com as plpebras pesadas sobre os olhos; nem nas casas em runas, comvidraas partidas pedrada e com paredes pintadas de cinzento pelotempo; nem nas crianas, sujas, de cabelo rapado por causa dos piolhos,que puxavam as mangas dos casacos das mulheres e que lhes estendiam apalma da mo. Era sbado e o incio da tarde trazia movimento s ruas.

    Passavam mais automveis do que era habitual: apitavam cornetas eassustavam as velhas, que davam saltos debaixo dos xailes e praguejavam.Grupos de midos descalos corriam atrs de arcos de ferro: o som davarinha a deslizar no interior do arco. Raparigas levavam alcofas de fazermandados no ngulo do brao e desviavam o rosto corado quandopassavam porta dos cafs. Alheio a tudo isso, eu continuava a caminhar eprestava ateno s imagens que apenas existiam dentro de mim ou queseriam o mundo todo se, por acaso, tivesse fechado os olhos: o rosto do

    meu tio de manh, o meu rosto quando chegava a casa ao incio do sero eo rosto do italiano quando lhe comunicasse que o piano estava pronto. Nasduas manhs anteriores, desde que o piano chegara oficina, quando eu

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    entrava no alto da rua, via logo o meu tio encostado ao porto, a esperar-me. Tinha um ar esperto e, ainda distncia, j lhe comeava a distinguir osorriso infantil. Quando eu me aproximava com a chave, ele dava-me umapalmada nas costas e, assim que abria o porto, passava-me frente ecaminhava directo para o piano. Ao fim do dia, nem por uma vez ficou nataberna. Antes de subir ao poial da minha casa, via-o descer a rua eafastar-se, fechado nas suas cismas, na direco do quarto onde, nessaaltura, morava. Era o incio do sero quando eu, na casa onde jantavasozinho, enchia a bacia e, depois de lanar as duas mos cheias de guasobre o rosto, parava-me a olhar para o espelho pequeno do lavatrio.Dentro dos meus olhos, distinguia um sentimento que s ento comeava aconhecer e que me fazia inventar toda a espcie de sonhos. Naquelesbado, enquanto caminhava, estava certo de que conhecia o entusiasmoque iria encontrar no rosto do italiano quando lhe dissesse que o pianoestava pronto. Assim que vi a penso no fundo da rua, apressei-me. Adistncia desses ltimos passos foi maior.

    Bati porta e ningum abriu. Bati outra vez e apareceu uma senhoradesinteressada, de culos, que, em silncio, sempre a segurar a porta, meolhou dos ps cabea como se me perguntasse o que queria dali. Foi oseu olhar que me desfez o sorriso. Perguntei-lhe pelo italiano e,

    imediatamente, respondeu-me que o senhor italiano no queria serincomodado. Disse-lhe que trazia notcias do piano que ele tinha deixado aarranjar; continuou a fixar-me em silncio; insisti e, s ento, me deixouentrar. Com um movimento do queixo, apontou-me um corredor queacabava na porta para uma sala de cadeires e napperons de renda.Seguiu-me e esperou que me sentasse.

    Quando saiu: os seus passos espetados na madeira encerada: ficou asua ausncia a controlar cada um dos meus movimentos. Tinha as mos

    pousadas sobre os joelhos, sentia a serradura fina que cobria a fazenda,das calas e, como se os vasos de fetos me vigiassem, como se as cortinasme vigiassem, fiquei quieto, tentando no respirar.

    O seu rosto: o mesmo desinteresse: entrou e saiu durante ummomento. Disse: O senhor italiano vai descer dentro de um minuto.

    A passagem do tempo fez-me perceber que o meu entusiasmo,comparado com a realidade, era ridculo. A realidade era aquela salaarrumada e velha. O meu entusiasmo era uma iluso que construra

    sozinho a partir de nada. Sentado, assistia s sombras que cresciam daspernas dos cadeires.

    Foi ento que a minha vida mudou para sempre.

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    Antecedida pelos estalidos breves que as tbuas do cho faziam soba sua leveza, ela entrou na sala e espantou-se ao ver-me. Eu teria apenasficado envergonhado se no fosse pela suavidade branca do seu rosto. Elatinha os cabelos apanhados num lao, era uma menina e, no seu rosto,havia qualquer milagre: pureza: que eu no sabia descrever. Os olhosgrandes: o cu. Se estivesse suficientemente perto, acredito que poderiater visto pssaros a planarem dentro dos seus olhos, seria um ms daprimavera dentro dos seus olhos: infinito. Ela era uma menina frgil e omeu olhar pousava com cuidado na pele do seu pescoo, nos ombros sob ovestido de flores que trazia. Ela era uma menina frgil e descala: o inciodas pernas, os tornozelos finos, os ps nus como se no tocassem o cho.Sob o seu olhar, consegui sentir uma fora invisvel que me levava a mona direco dos seus cabelos, que invisivelmente os deslizava no interiordos meus dedos, mas continuei sentado e imvel, de olhos levantados aimaginarem tudo. Foi s quando passou esse momento e entrou o italiano,perfumado, penteado, que percebi que eu era um carpinteiro com o corpocoberto por serradura, com a barba por fazer e com as mos brutas. Oitaliano sorriu-lhe como se a salvasse. Pousou-lhe a mo na cintura e disse-lhe algumas palavras italianas que a fizeram sorrir tambm. Virou-se entopara mim e, como se no notasse, deixou-lhe a mo pousada na cintura.

    Deixou-lhe a mo pousada na cintura. Foi a minha voz que lhe disse que opiano estava pronto, mas no ouvi a sua reaco, no vi o seu rosto,porque, embora estivesse a olhar para ele, conseguia apenas reparar namo que deixara pousada na cintura dela. Ento, disse-me para irmosbuscar o piano e, no mesmo momento, tirou-lhe a mo da cintura e entroua mulher que, abrindo muito os olhos, a mandou sair e ir fazer qualquercoisa desimportante. Ela desapareceu. Depois um momento vazio. Quandoatravessei o corredor na direco da sada, inspirei todo o ar que pude

    porque nesse ar estava ainda o perfume da sua passagem. Em silncio,sentado na carroa, ao lado do italiano, avanmos rapidamente pelas ruasat oficina.

    A minha mulher resolve no ter medo e, de repente, num impulso,envolve a maaneta com a fora dos dedos e abre a porta.

    frente da minha mulher, distncia de um brao, est um ciganovestido de preto. Na pele queimada, entre as rugas que lhe abremcaminhos no rosto e que o transformam em qualquer coisa arvel como

    terra, est a idade sria dos seus olhos castanhos a olhar para ela. A barbabranca, emaranhada como uma nuvem de teias de aranha, termina-lhesobre o colarinho da camisa preta, rua. Tem um chapu tambm preto,

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    sem forma, enfiado na cabea. E um cinto velho, de cabedal gasto, prende-lhe ao corpo magro as calas desbotadas: as calas cinzentas e pretas,pretas com manchas cinzentas. Sobre o tapete da entrada, as botascobertas de lama seca.

    A minha mulher fica muda a olhar para ele. No h nenhuma palavraque saiba dizer. Atrs dele, as plantas, amparadas por canas, tornam-sesubitamente ntidas nos vasos. Da mesma maneira, o vazio fresco dasescadas a meio de uma manh de sexta-feira torna-se ntido. A claridade espera de eco torna-se ntida.

    Um movimento do brao do cigano apresenta a pequena blusa daAna que a minha mulher deixou cair enquanto estendia a roupa. Ento,com a maneira que os ciganos tm de falar, a voz rouca. E as palavras: Deixou cair isto? Nos seus dedos: anis grossos de ouro, unhas com riscosde terra, o indicador amarelado por cigarros: est a blusa da Ana. A minhamulher, com o rosto baixo, mas com os olhos levantados, recebe a blusa e,com a voz muito sumida, agradece. O cigano baixa as plpebras como serespondesse e vira as costas, d dois passos e comea a descer as escadas.Encostada ombreira da porta, a minha mulher v o cigano descer,compenetrado, com metade do corpo tapado pelo corrimo de cimento.Quando a sua imagem se desvanece, restando apenas o som arrastado das

    botas no andar de baixo, a minha mulher fecha a porta devagar.Atrs da porta, segura a blusa da Ana com as duas mos e pensa ummundo por trs dos seus olhos abertos. Fixa-se para ouvir os sons l embaixo, mas ouve uma torneira a correr na casa de banho. Deixa a blusasobre a mesinha do telefone, ao lado da moldura cromada com a fotografiaque tirmos todos juntos no Rossio, e avana apressada pelo corredor. Nacasa de banho, a ris tem a torneira do bid aberta sobre uma mistura desabonete e de papel higinico desfeito. De repente, pra-se a olhar para a

    entrada da av. S ests bem a esbodegar tudo diz a minha mulher, enquantofecha a torneira.

    Arregaa as mangas molhadas da ris e, segurando-a pela mo queest enrolada numa ligadura, puxa-a pelo corredor at ao quarto. Troca-lhe a blusa e a camisola interior. Ento, deixa-a sentada na cama e desce osestores. A ris j sabe. A minha mulher procura o cobertor branco edeitam-se as duas. Para si prpria, a minha mulher murmura: Agora

    vamos dormir um bocadinho porque acordaste muito cedo.A ris no responde, mas, depois de um momento, diz: av, conta

    uma histria.

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    Arrastando a voz em certas palavras sussurradas, a minha mulhercomea a inventar a histria de uma menina chamada ris que fez umacorrida com outras meninas e que ganhou.

    Ela era como o tio Francisco, no era? -Era. Ela tambm corria uma maratona. av, conta outra vez. No. Agora vamos dormir.

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    E ficam as duas. Os sons da rua: os carros, os autocarros: sodistantes depois da janela. A ris: av, no roubas o meu cobertor.

    E ficam as duas. O ar do quarto tem a cor de sombras. Entram pelosburacos dos estores linhas de luz, paralelas, ligeiramente oblquas, queatravessam a penumbra e que pousam nos dois corpos deitados sobre acama pequena. No espelho do guarda-fatos, est um quarto igual, com umaav e uma neta, deitadas sob uma penumbra de sombras, atravessada porlinhas paralelas de luz.

    No peito magrinho da ris, a sua respirao abranda. Os seus lbiospequenos perdem a forma de poderem dizer uma palavra. Entregam-se a

    perder a fora. Adormece. A minha mulher, quando a sente dormir,levanta-se com todo o cuidado. Aconchega o cobertor no corpo da ris que,ao senti-la, respira mais profundamente, como se suspirasse.

    Era domingo porque estava sol, porque eu tinha decidido que no iatrabalhar, porque se ouviam poucos automveis na cidade, porque omundo parecia infinito, porque as minhas filhas tinham vestidos com laosque se atavam atrs da cintura e porque eu tinha dormido at seracordado pelos sinos da igreja a chamarem as pessoas para a missa. A

    minha mulher sorria e a manh tinha a claridade do seu sorriso. A minhamulher era mais nova aos domingos de manh quando sorria. Os nossosfilhos eram crianas. O Francisco ainda no tinha nascido. A Marta jajudava a me.

    Na noite anterior, quando a minha mulher me falou do polvo quetinha comprado no mercado, consegui imagin-la a voltar para casa,carregada com alcofas a penderem-lhe da ponta dos braos durante todo ocaminho, com as asas das alcofas marcadas em vincos vermelhos na palma

    das mos.Naquela manh, quando afastou as fitas da porta do quintal e me

    chamou, eu estava procura de uma factura na gaveta dos papis.Caminhei pelos mosaicos da cozinha e recebi o alguidar quando ela moestendeu e disse: J o limpei. Agora precisa de ser batido. Escolhi umatbua do monte da lenha e, sobre o tanque de lavar a roupa, comecei abater-lhe. No cho, o ralo do esgoto estava coberto com as morraasensanguentadas que a minha mulher tinha tirado de dentro do polvo.

    O Simo e a Maria eram pequenos. Estavam sentados na terra, abrincar, e olhavam-me. A Marta e a me esperavam e olhavam-me muito

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    srias.No foi preciso muito para perceber que o polvo era demasiado rijo.

    Aproximei-me dos degraus da entrada de casa e comecei a bat-lo comtoda a fora de encontro ao cimento.

    Os meus filhos ficaram espantados. S perceberam que se podiam rirno momento em que a me se comeou a rir. Para que se rissem mais, euexagerava os gestos com que batia o polvo de encontro aos degraus. Euqueria que a minha mulher e os meus filhos se rissem e fossem felizes.

    A cadela que tnhamos na altura era velha, estava prenha eassustou-se. Entrou na cozinha a correr, com o rabo entre as pernas.Depois de entregar o alguidar com o polvo minha mulher, antes de ela opassar por gua, lavei as mos com uma barra gasta de sabo azul queestava no tanque, passei um pano molhado nos degraus e voltei cozinha.A cadela estava deitada em cima de um monte de duas ou trs camisolasvelhas que a minha mulher tinha colocado num canto, ao lado da lareiraapagada, onde sabia que ela gostava de se deitar. Olhou-me magoada ebaixei-me para lhe fazer festas, como se lhe pedisse desculpa.

    Continuava a procurar a factura na gaveta dos papis quando aMarta entrou para comear a pr a mesa. No desisti de a procurarquando a minha mulher, vinda do forno que tnhamos no quintal, entrou a

    segurar a travessa de barro e a dizer para no se aproximarem, ainda queningum estivesse prximo dela. No desisti de a procurar quando aminha mulher se chegou porta do quintal para chamar o Simo e a Maria.Desisti quando a minha mulher me disse com a voz doce de estar tudobem: Vai sentar-te porque seno fica frio.

    No sei do que falmos. O sol entrava pela janela e traava umatorrente certa de luz que atravessava o ar, que iluminava p a agitar-se eque se fixava de encontro aos mosaicos. A minha mulher, a temperar a

    salada, a procurar guardanapos, a correr com o prato de plstico do Simo,atravessava essa torrente de luz, desorientava o movimento do p e sorria.O Simo comia sozinho. s vezes, levantava o garfo no ar. A Marta e a

    Maria olhavam vagamente para os pratos. Eu olhava para a minha mulhera servir-se. Foi nesse momento de silncio que o Simo apontou para o stioda cadela e disse: me... A cadela est a morrer com sangue.

    Ao mesmo tempo, olhmos todos para a cadela. Estava a nascer umdos seus cachorrinhos. As nossas filhas comearam a gritar, cuspiram o

    polvo meio mastigado para dentro dos pratos, levantaram-se num estrondoe saram para o corredor. O Simo tinha o corpo virado na cadeira. Aindatinha os seus olhos bonitos de criana. Era pelo canto do olho direito que,

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    sem entender, via a cadela. A minha mulher levantou-se, agarrou-o ao coloe levou-o para o corredor. Eu levantei-me tambm e fui atrs.

    No corredor, a Marta e a Maria recuperavam a respirao emisturavam gargalhadas com gritinhos. O Simo comeou a chorar. Aminha mulher tentava confort-lo e, ao mesmo tempo, ria-se para asnossas filhas. Foi a Marta que me disse: Veja l se os ces j nasceramtodos, veja l se a cadela est bem.

    Abri um pouco da porta e enfiei a cabea na cozinha. Havia uma poade gua com laivos de sangue volta da cadela. Continuavam a nascercachorrinhos, com plo viscoso, de olhos fechados. Voltei com a cabea aocorredor, murmurei um som de boca cheia e abanei a cabea para dizerque sim. Tinha a boca cheia de polvo que no conseguia engolir.

    Depois de carregarmos o piano: toda a nossa fora, todo o limite danossa fora: depois de o levantarmos at o conseguirmos dispor sobre acarroa, fechei o porto da oficina. Enquanto o italiano dava voltas e nscom a corda, foi-se virando ora para mim, ora para o meu tio, e foi-nosdizendo como o piano estava bom, melhor que novo; ele j tinha vistotantos pianos, os seus dedos j tinham passado pelas teclas de tantospianos, mas nenhum: bem, talvez um: mas quase nenhum era to suave eestava to bem arranjado e afinado como aquele. E, em palavras italianas,

    disse-nos para irmos ao baile nessa noite. No seria preciso convencer-nosmuito, mas insistiu. No seria preciso convencer-me muito, mas chamou-me parte e sussurrou que pagaria o arranjo depois de receber opagamento do baile, e, voltando a falar para todos, levantou a voz parainsistir que fssemos ao baile. Os homens que o meu tio tinha ido chamar taberna olhavam-no de boca aberta, com sorrisos de poucos dentes.

    Acompanhei o meu tio e os homens taberna e, nessa tarde, fui euque paguei um copo de vinho a todos. Os copos foram cheios at uma

    superfcie tinta e brilhante ficar beira de transbordar. Os homenspararam aquilo que estavam a dizer, levantaram os copos e, como seestivessem a asfixiar-se, beberam-nos num nico gole. Depois, bateramcom o fundo de vidro grosso dos copos no mrmore do balco econtinuaram a falar. Estvamos alegres. O meu tio pagou mais uma rodada.De novo, as conversas pararam por um instante. O dono da taberna tinhandoas de vinho tinto na camisa e, com os braos pousados sobre o balco,fixava-nos com um olhar pasmado. Todos os homens falavam para o meu

    tio e ele respondia em todas as direces. s vezes, puxava o brao dealgum, apontava para mim e dizia: o meu sobrinho.

    Os homens j sabiam, mas no fazia mal, porque nenhum o ouvia

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    realmente. Paguei outra rodada e samos. Era maio. Havia luz favorvelsobre as ruas. A claridade aproximava-se do fim da tarde e, devagar,ganhava a sua cor mais bem-intencionada. Eu e o meu tio caminhvamosjuntos e estvamos alegres. Quando cheguei porta de casa, antes de nossepararmos, sorrimos e no dissemos at amanh, como em todos os dias,porque, da a pouco, amos voltar a encontrar-nos no baile.

    Escolhi duas ou trs tbuas no monte de lenha para acender o fogo,enchi uma panela de gua, que deixei a aquecer, e sentei-me num banco apensar nela: a lembrar-me do seu rosto. Nesse momento enlevado, quisacreditar em tudo. Tinha vinte e dois anos e era capaz de acreditar emtudo. O tempo passou assim. J tinha anoitecido quando me levantei dobanco e fui despejar a panela de gua no alguidar onde me lavei. sescuras, a gua escorria pelo meu corpo e dava-lhe formas brilhantes: pelomeu peito, pelas minhas pernas. Levantava as mos cheias de gua,despejava-as sobre a cabea, ou nos ombros, ou na barriga, e ainda levavagua quando passava as palmas das mos pelo corpo, como se o moldasse.Limpei-me: a toalha tornada macia por anos de uso: e risquei o fsforo comque acendi o candeeiro. Vesti a minha melhor camisa, as minhas melhorescalas, o meu melhor casaco e calcei as minhas melhores botas. J depoisde me pentear, demorei-me diante do espelho do lavatrio a fingir que

    ainda me penteava. Abri os botes da camisa para espalhar uma gota degua-de-colnia, voltei a aboto-los e sa.A noite sobre as casas. A porta do salo onde ia comear o baile

    estava rodeada por uma multido de homens e crianas. Estavam todosreunidos volta da luz. Ainda no se ouvia msica, ouviam-se muitas vozessobrepostas. Aproximei-me e comecei a encontrar espao para passarentre ombros e cotovelos. Ao lado da porta, estava um homem sentado auma mesinha com uma mala de carto aberta. Quando me preparei para

    entrar, ps-me um brao frente: : - um tosto.Disse-lhe que conhecia o pianista, mas ele continuou a olhar paramim com as sobrancelhas franzidas. Olhei l para dentro e vi o italiano afalar com ela. Senti a pele do rosto a aquecer, senti o sangue a bater rpidonas veias das tmporas. Levantei o brao e acenei-lhe, chamei-o, gritei-lhe,mas eu era invisvel. As vozes das pessoas enchiam a sala. As vozes daspessoas eram uma massa compacta, como uma pedra, em toda a sala. Elefalava com ela. Ela ria-se. Continuei a acenar-lhe, juntei os dedos nos lbios

    e assobiei-lhe. Mas eu era invisvel. Perdi a aco, esqueci os meusprprios braos, quando o italiano se afastou dela e comeou, decidido, acaminhar no sentido do piano: sobre um estrado, ao fundo do salo: o

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    piano que eu e o meu tio tnhamos consertado. Sem deixar de v-lo, ela deudois passos para trs e sentou-se numa cadeira vazia, ao lado da mulherque, nessa tarde, me tinha aberto a porta da penso. As vozestransformaram-se todas em silncio quando o italiano se sentou, afastandoas abas do fraque, e, num instante suspenso, levantou as duas mos sobreo teclado.

    Quando soaram as primeiras notas, mesmo entre a multido depessoas que estava porta: as crianas a furarem por baixo das pernas:no se ouviu um nico rudo. Normalmente, os bailes eram acompanhadospor acordeo. A maioria das pessoas que estavam ali nunca tinha visto umpiano. Os movimentos trgicos do italiano sobre o banco, ora aproximando-se, ora afastando-se do teclado, acompanhavam a torrente de msica quese lanava, em mars, sobre a sala. Submersas, algumas mulheres erguiamlenos bordados ao rosto para conseguirem conter as lgrimas. Levando asmos de dedos abertos por duas vezes sbitas ao teclado, o italianoterminou essa primeira msica. As palmas rebentaram em todo o salo e oitaliano, de p, dobrou-se sobre a mo que atravessou ao longo da cintura.Depois de muito tempo, quando as palmas comearam a esmorecer, voltoua sentar-se e, das suas mos, saram notas mais soltas; ento, levantou orosto na direco de todas as pessoas que olhavam para ele e comeou a

    cantar em italiano. As mulheres sorriam e, logo a seguir, guardaram osorriso quando vrios homens atravessaram o salo e lhes estenderam obrao. Comearam a danar dois casais, depois trs, depois quatro. Foinesse momento que senti uma mo a segurar-me o brao.

    Voltei-me para ver o meu tio, de barba feita, a sorrir-me sob um riscoao lado, com a pele da testa embranquecida pela ausncia da boina, comroupas lavadas e passadas, com sapatos engraxados. Paguei dois tostes aohomem da mesa que, em troca, me deu dois quadrados de papel

    carimbados e, seguido pelo meu tio, desci os degraus at aos mosaicos dosalo.Ela viu-me. Tive a certeza de que ela me viu entrar. Vi o seu rosto a

    ver-me, logo tapado por um casal que se fixou, em meneios, a danar suafrente. Parei-me atrs do muro de homens parados que olhavam para oscasais a danar, que fumavam cigarros e que esperavam outras msicaspara se aproximarem daquela que tivessem escolhido e, com sorte,danarem tambm. A rodearem o salo, em cadeiras encostadas s

    paredes, estavam as raparigas solteiras e, ao seu lado, as mes. No centro,estavam os crculos que eram feitos pelos pares que danavam: rodandojuntos, com uma distncia de dois palmos entre os corpos, os rapazes

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    seguravam a cintura das raparigas; elas pousavam-lhes uma mo nascostas e seguravam a outra mo na mo que o rapaz levantava no ar. Aofundo, sobre um estrado de madeira, o italiano tocava piano e cantava,olhando muitas vezes na direco dela, sentada ao lado da mulher que eujulgava ser sua me. Na outra ponta do salo, atrs do muro de homensque esperavam, atrs de mim, havia vozes e havia o rosto dos homens queas diziam e que, s vezes, entravam por uma porta onde estava um balco.Atrs de mim, cansado de olhar para nada que lhe chamasse a ateno, omeu tio foi um dos homens que entraram pela porta da diviso de fumoonde estava um balco. Vi-o sorrir no momento em que pediu um copo devinho. Com as mos a revolverem os bolsos, abriu muito o olho esquerdo,sorriu e pediu um copo de vinho.

    Quando voltei o rosto para a frente, ela estava a ver-me. O seu olharfixo era atravessado por casais que passavam a danar, mas continuavaimvel e fixo. Pude ento v-la. Tinha uma gargantilha de veludo: o seupescoo liso e branco e puro. Os seus olhos faziam-me um pedido. Tive acerteza de que os seus olhos me faziam um pedido. Nos cantos dos lbios,erguia um sorriso muito subtil. Qualquer outro no teria conseguidodistingui-lo. Acabou a msica, algumas senhoras aplaudiram, os paresdesfizeram-se e ela continuou a olhar para mim. A forma das suas

    sobrancelhas disse-me uma palavra: um pedido: mas eu no sabia danare, por isso, continuei com as mos nos bolsos, triste, a olhar para ela a ver-me e a perceber que a tinha decepcionado. Quando regressou a msica eos pares a danarem, ela virou o rosto na direco do italiano e, com asmos vazias, pousadas sobre as pernas, deixou de olhar para mim. Entreina diviso de homens encostados ao balco e aproximei-me do meu tio.Falava alto e ria-se muito para um grupo de homens. O meu tio levava umcopo meio cheio nos movimentos rpidos que fazia com os braos. Quando

    pousei os cotovelos sobre o balco e pedi um copo de vinho, fiquei a ouvir omeu tio durante um momento e no consegui entender nada que fizessealgum sentido. Quando o meu tio me viu, apontou para mim, orgulhoso, edisse: o meu sobrinho.

    E pagou-me mais um copo de vinho. E um dos homens pagou maisum copo de vinho. Voltei ao salo para v-la. Voltou a olhar para mim e,logo a seguir, virou o rosto. Voltei a entrar e a pedir outro copo de vinho; eo meu tio voltou a pagar-me outro copo de vinho; e um dos homens, outro,

    voltou a pagar mais um copo de vinho. Voltei ao salo para v-la.Num instante, decidi que, na prxima dana, iria estender-lhe a mo

    e ela iria aceitar. Ela iria aceitar. Nos meus pensamentos, tentei convencer-

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    me de que, quando a tivesse nos braos, como num milagre, seria capaz dedanar, mas havia sempre algo que me impedia de acreditarcompletamente. Enquanto pensava, no queria que a msica acabasseporque, nesse momento, iria ter de cumprir a minha deciso.

    E a msica acabou. Algumas senhoras bateram palmas, os paresdesfizeram-se e eu atravessei o muro de homens parados e comecei aandar na direco dela. Enquanto caminhava, ela voltou o rosto para mime, debaixo do seu olhar, os meus passos foram muito lentos e difceis.Ento, frente a frente, olhei-a nos olhos e senti a sua respirao a serrespirada pelo meu peito. A mulher que estava sentada ao seu lado, queme tinha aberto a porta da penso, que eu julgava ser sua me, olhou-metambm. Ento, num movimento que imaginei desenhado no ar, que anteviantes de cada um dos seus instantes, estendi-lhe a mo. E esperei.

    De repente, o rosto dela e o rosto da mulher ao seu lado e o rosto detodas as pessoas da sala viraram-se no sentido da diviso ao canto, ondehavia um balco. Do seu interior, saam gritos confundidos por vozes. porta, havia uma multido de homens que queriam ver, que se punham embicos de ps e que se seguravam nos ombros daqueles que estivessem sua frente para verem melhor.

    Comecei a correr, afastando com os braos todas as pessoas que se

    paravam diante de mim. Abri um caminho entre aqueles que estavam porta e, quando consegui entrar, vi o meu tio deitado de barriga no cho.Tinha o joelho de um dos homens com quem falava antes espetado nocentro das costas. Tinha um dos lados do rosto completamente encostadoao cho e gritava gemidos sob os gritos do homem que lhe repetia: Dizl isso outra vez.

    Ningum me conseguiu prever. Lancei-me sobre o homem eempurrei-o. Quando os outros vieram para mim, fizeram-no pouco

    convictos e empurrei-os tambm. Levantei o meu tio e abriu-se umcaminho nossa frente para sairmos. Enquanto saamos: o meu tio combotes arrancados da camisa, com o cabelo a cair-lhe sobre a testa: olheipara ela e, distncia, vi o seu rosto a ver-me.

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    A minha mulher est sentada na cadeira que fica entre o cabide decasacos esquecidos desde o inverno e a mesa do telefone. Chegou para

    levar a blusa da Ana que o cigano apanhou na rua. Ainda no tinha dadodois passos na direco da cozinha, quando o telefone comeou a tocar nassuas costas. No passou um instante at que o atendesse.

    Era a mulher do Francisco. Era a sua voz tmida. Telefonou compoucas palavras, apenas para dizer que ele tinha chegado bem. OFrancisco tinha-lhe telefonado a dizer que tinha chegado bem. A minhamulher tentou saber como era a cidade onde ele estava. Queria saber seera como a imaginava. Tentou saber as palavras exactas que ele tinha dito

    mas, quando percebeu que no lhe ia dizer mais nada, perguntou-lhe como que estava. A mulher do Francisco est grvida. Assim que a barriga secomeou a notar, deixou de trabalhar no hospital. Foi mandada para casa.A sua voz muito baixa: como se fosse desfazer-se em p. Foi com essa vozque lhe disse que estava bem. Depois do silncio, despediram-se.

    A minha mulher, ao desligar o telefone, sentou-se na cadeira.Primeiro, fixou o olhar no vazio. Depois, segurou a moldura cromada eolhou para o rosto do Francisco na fotografia da nossa famlia. Tinha seis

    anos. Para quem nos v ali, teremos sempre a mesma idade. Estaremossempre naquele instante. Estamos sempre naquele instante. O Franciscoest muito srio. Tenho a mo sobre o seu ombro. Do meu lado, est aminha mulher entre as nossas filhas. Do lado do Francisco, est o Simo,afastado, quase a sair da fotografia. A Maria a que sorri mais. A Martaainda est elegante. O Simo est mal-humorado. Atrs de ns, a fonte doRossio. Na fotografia, faltam ainda muitos anos para nascer a nossaprimeira neta: a Elisa: mais ainda para nascer a Ana, mais ainda para

    nascer o Hermes, mais ainda para nascer a ris. A Marta ainda no pensaem casar-se. A Maria ainda no conhece o namorado. Naquele instante,estvamos felizes. Antes, tivemos gestos que nos levaram quele instante;depois, tivemos gestos que nos tiraram daquele instante; mas, naqueleinstante, estvamos felizes.

    O castigo que escolhi para mim prprio saber aquilo que aconteceua seguir.

    Demos voltas ao Rossio para esperar que a fotografia fosse revelada.A Maria e a Marta andavam juntas. O Francisco andava ao p de mim. Aminha mulher e o Simo andavam sozinhos, dois passos minha frente,

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    cada um de seu lado. s vezes, eu olhava para o centro da praa e via ofotgrafo colocar-se debaixo do pano, levantar um brao e tirar fotografiasa casais com bebs ao colo. Cansados de passarmos muitas vezes pelosmesmos vendedores de castanhas e pelas mesmas vendedoras de flores,cansados de nos desviarmos das pessoas que caminhavam contra ns,quando passou o tempo e recebemos a fotografia num envelope,concordmos todos que estvamos desfavorecidos.

    Nesse tempo, a camioneta ainda no era demasiado velha e foi nelaque voltmos para casa. O Francisco e o Simo iam na parte de trs.Quando se baixavam, via-lhes os rostos no espelho retrovisor. O ventodesfigurava-lhes as expresses. Agarravam-se mais e davam tombosquando os pneus da camioneta passavam por dentro de algum buraco naestrada. A minha mulher ia a meu lado e falava com as nossas filhas. Eu iacalado.

    O castigo que escolhi para mim prprio saber aquilo que aconteceua seguir.

    Depois de jantarmos, sob a lmpada da cozinha, as cortinas aagitarem-se levemente nas janelas, as brasas a esmorecerem na lareira,era inverno, o meu brao, a minha mo grossa num s movimento, comoum impulso, mas nem sequer um impulso, como a vontade que se tem por

    um momento e que se concretiza nesse mesmo momento, vontade de outrapessoa dentro de mim, vontade que no pensada, mas que surge comouma chama, e o meu brao, a minha mo grossa a atravessar uma distnciarecta e invisvel, eu a olhar para o seu rosto e a abrandar um pouco dessafora, e a minha mo a acertar-lhe na face e na boca, as pontas dos meusdedos grossos a tocarem-lhe nos cabelos e na orelha, o som bruto da carnecontra a carne, ela a virar a expresso da cara contrada sob a minha mo,e a minha mo a deixar de existir quando ela caiu despedida, o som

    desordenado do seu corpo a cair no cho, as suas costas a derrubarem umbanco de madeira, eu logo a querer levant-la, logo a querer segur-la,logo a querer desfazer aquilo que tinha acabado de acontecer, mas a ficarparado e a esperar que acontecesse, no posso fazer nada, no possovoltar atrs, impossvel, e o seu corpo parou, comecei a sentir a memriaardente da sua face, boca, cabelos e orelha ainda na minha mo, e todos osobjectos da cozinha como se ardessem, a balana de pesar gramas defarinha, o azulejo com uma paisagem de Lisboa pendurado na parede, o

    cinzeiro de loua brilhante, e as crianas a chorarem, as crianas achorarem, o mais pequeno veio a correr e agarrou-se s minhas pernas,senti o seu corpo magro agarrado s minhas pernas como se quisesse

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    impedir-me, como se segurasse uma montanha muito mais forte do queele, e segurei-o por um brao, abri a porta e mandei-os para o quarto, omeu brao a apontar para a porta aberta, e eles a terem medo de passarentre mim e a porta aberta, gritei palavras, a mais velha chorava aslgrimas que no conseguia conter, o seu rosto corado, vermelho, a irmchorava todas as lgrimas que tinha, o seu nariz curvado, os irmoschoravam como homenzinhos que j no queriam chorar, que j tinhamcomeado a querer desaprender de chorar, e passaram por mim, fechei aporta. Ela levantou-se e sentou-se num banco, ao lume, a chorar. Eu pouseios punhos cerrados sobre a mesa, a minha respirao rpida, quase aquerer chorar.

    Era domingo. Acordei a meio da manh com um sabor amargo epastoso a envolver-me todo o interior da boca. Vesti umas calas e, emtronco nu, abri a porta do quintal e dei dois passos: a terra debaixo dosps. Habituei-me devagar luz que me encandeava, mas no aguentei o solna cabea e, por isso, parei-me debaixo do limoeiro. Aos domingos, ospssaros so mais livres. Exibem-se em voltas no ar porque sabem que aspessoas reparam mais neles. Aos domingos, o barulho das ruas diferente:as vozes, despreocupadas, assentam sobre o espao vazio deixado pelasvozes speras dos dias de semana. Aquele era um domingo assim, era um

    domingo domingo, mas eu despertava de um mundo onde no haviadomingos e, para mim, aquele dia era-me estranho, da mesma maneira queme teria sido estranho qualquer outro dia.

    Passei a boca por gua. Lavei-me debaixo da torneira do quintal.Respirei. Gotas de gua, pousadas nas minhas pestanas, davam brilho aoscantos do tanque onde a minha me j no lavava roupa. Entrei em casa,limpei-me e, ao vestir-me, os ossos deram estalidos secos, como ramos devideira a partirem-se.

    Tentei pensar enquanto caminhava pela rua. Era domingo. Passavapor senhores com correntes de relgio a sarem-lhes dos bolsos e porsenhoras que regressavam da missa.

    Aos poucos, voltava a aproximar-me de mim prprio. Aos poucos, eracomo se voltasse a ganhar os gestos das minhas mos, os movimentos nosmovimentos das minhas pernas. Era como se eu voltasse ao meu rosto.

    Ao bater porta da penso com os ns dos dedos, senti esse instantecomo a entrada ntida e definitiva na realidade: todos os contornos

    regressaram aos objectos: as cores deixaram de derivar em manchas.Enquanto esperava, fixava a porta, imvel, minha frente. Atrs dela,escutava uma corrente de passos que se aproximava. E o som da

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    fechadura a abrir-se. E a porta a afastar-se, a abrir-se.Era ela. Era o seu rosto que estava diante de mim a olhar-me. Eram

    os seus lbios suspensos, a profundidade infinita dos seus olhos, a pele. Seesticasse um brao poderia toc-la. Uma superfcie de calor envolveu-me. OSol colou-se todo ao meu corpo e transformou-se em pele quente. Tambmela no esperava ver-me ali. O seu rosto ganhou novas formas ao olhar-me.Qualquer outro no teria conseguido distinguir. Nos cantos dos lbios,erguia um sorriso muito subtil.

    Nesse silncio luminoso, no sei como fui capaz de dizer as palavrasda frase banal que apenas perguntava pelo italiano. No sei como fui capazde entender, dentro da sua voz frgil e incandescente, que o italiano tinhaido embora de madrugada. No sei como fui capaz de flutuar na vastidodos seus olhos: o horizonte: e perguntar-lhe se o italiano no tinha deixadonada para mim. No sei como no morri: o corao a rebentar-me nocentro do peito: quando ela, sem parar de olhar-me: a pureza e a beleza:abanou a cabea, to devagar, para um e para outro lado: a pele lisa do seupescoo: a maneira como os meus dedos poderiam deslizar,demoradamente, sobre a pele lisa do seu pescoo. O italiano tinha idoembora sem me pagar e eu apenas conseguia olh-la e sorrir.

    Ao despedirmo-nos, presos aos olhos um do outro, continumos a

    sorrir porque queramos dizer muitas coisas. Quando ela fechou a porta,continuei no mesmo lugar. Durante tempo que no poderia ser contado,continuei a olhar para a porta fechada, a sorrir e a sentir tudo o que aindasobrava da sua presena.

    Cheguei oficina. Entrei Encostei-me a um piano: o meu corpomarcado no p: e lembrei-me da imagem do rosto dela. Falei para aimagem do rosto dela. Escutei a imagem do rosto dela. E passaram horas.S muito depois me lembrei do italiano. Foi embora de madrugada e no

    me pagou o trabalho com dinheiro, pagou-me com algo muito mais valioso:os pianos e a imagem indelvel do rosto dela.Por um instante, a minha mulher encosta-se ao parapeito e passa o

    olhar pela rua vazia, como se procurasse o vulto do cigano. Na cozinha,olhando para nada, suspende-se: s ela sabe aquilo em que pensa: e,depois de um arrepio, volta a mexer-se. Segura a blusa hmida da Ana.Limpa-lhe a terra do passeio com a mo e decide estend-la porque nopode coloc-la molhada no cesto da roupa suja.

    Essa blusa era da Elisa quando era mais pequena. Todos os nossosnetos herdaram roupas uns dos outros.

    Mesmo o Hermes, quando era beb, usava roupas da irm e da Ana.

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    Nas poucas vezes que a Marta saa com ele rua, as pessoas eramenganadas pelas cores e diziam: Que rica menina.

    Quando o Hermes comeou a andar, a Marta deixou de lhe vestir asroupas da irm e da prima.

    Era uma mala de carto, riscada por arranhes, gasta nos cantos,velha. Ao lado do fecho, por baixo da pega, tinha a figura em estanho deum homem a correr: as pernas e os braos parados a meio de ummovimento. Todos os nossos netos tentaram arrancar o pequeno homemde estanho. Nenhum conseguiu. Estava ali colado para sempre. Foi a Martaque guardou as roupas da Elisa na mala e a levou para casa da Mariapoucos meses antes de a Ana nascer. A Maria voltou a guardar essasroupas na mala, acrescentou-lhe algumas que comprou, e levou-a maischeia para casa da Marta poucos meses antes de o Hermes nascer. A Martavoltou a guardar essas roupas na mala, acrescentou-lhe algumas quecomprou, e levou-a mais cheia para casa da Maria poucos meses antes de aris nascer.

    A minha mulher estende a blusa e pensa vagamente na eternidade.Um dia, essa blusa que foi comprada para a Elisa, que usada pela Ana,ser usada tambm pela ris. Mesmo depois desse dia, o futuro continuar.

    Ah carocha de carocha! dizia eu, e a Ana vinha a correr para

    mim na cozinha. Era um fim-de-semana, porque a Maria tinha vindovisitar-nos. A Ana tinha pouco mais do que um ano, mas j corria para mima dizer: Av, av, av. E quase lhe faltava o ar. Eu estava muitodoente. Tinha dores e sabia que estava prximo de morrer. A Ana eramuito parecida com a Maria quando era pequena: tinha o cabelo escuro eos olhos muito azuis e brilhantes. Quando eu via os seus olhos com umsorriso de criana, tinha pena, porque pensava que ela, quando fossegrande, no se iria lembrar de mim. Eu no me lembrava dos meus avs

    que morreram quando eu tinha a idade dela. Ah carocha de carocha! dizia eu. Ela vinha a correr e saltava-me para o colo. Eu estava sentado num sof que veio da casa da Mariaquando ela comprou uns sofs melhores. Segurava-a no colo e fazamosuma brincadeira. A Maria estava a fazer o jantar com a me. Por uminstante, estavam esquecidas de mim. Eu fazia uma brincadeira com a Ana.As suas mozinhas davam-me palmadas na cara. Eu sorria-lhe muitomagro.

    Ao fim de algumas semanas, at o meu tio reparou. Durante os dias,sem que houvesse pianos para consertar, eu passava horas perdidas nosof.

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    De manh, atrasava-me sempre e, por vrias vezes, encontrei o meutio a esperar-me junto ao porto, com a barba por fazer, despenteado, asegurar a boina na mo e a olhar-me admirado com o olho esquerdo muitoaberto. No fim do dia, no queria estar sozinho em casa e ficava com o meutio na taberna. Mas tambm no queria estar na taberna.

    Bebia copos de vinho e ficava numa das pontas do balco, nodeixando que ningum falasse comigo.

    Todos os meus pensamentos eram o rosto dela repetido. hora de almoo, deixava o meu tio sentado numa tbua a comer e

    saa pelas ruas. Era o incio do vero e eu avanava por cima da luz. Aspessoas que vinham oficina diziam: Ontem, vi-te na rua, tentei chamar-te, acenei-te, mas no me viste.

    Eu no via nada. Quando chegava esquina antes da penso, parava-me com o corpo coberto pela parede, assomava a cabea e esperava.Numas vezes, ela vinha porta: o seu perfil. Noutras vezes, ela saa: o seucorpo desenhado no passeio. Em mais do que uma ocasio: a sua voz acumprimentar algum: a sua voz a dizer uma frase: a sua voz trazida poruma aragem: a sua voz a flutuar: a sua voz frgil.

    durante as tardes inteiras de uma semana, escrevi e rasguei, eescrevi de novo, e rasguei de novo, e escrevi de novo a carta onde dizia

    uma parte daquilo que sentia por ela. Podiam passar-se horas no tempoque demorava a escolher uma palavra. Quando a escrevia, passavaminstantes at que rasgasse o pedao de papel onde a tinha escrito. Sabia decor todas as palavras que decidira escrever e todas as alternativas a cadauma delas. Era nisso que pensava quando, ao fim da tarde, no incio danoite, me encostava ao balco da taberna, no deixando que ningumfalasse comigo.

    Talvez aquele tenha sido o dia mais quente de todo o vero. O sol

    ardia nas ruas. Eu avanava por cima do sol.No bolso, levava o papel. No papel, levava as palavras que tinhaconseguido juntar, escritas com a minha letra, escritas com o lpis decarpinteiro. O papel, como um pedao de sol dobrado no bolso, queimava-me tambm. Tinha terminado de escrev-lo havia trs dias. Nos dois diasanteriores, tinha esperado por ela na esquina antes da penso. Na vspera,ela tinha aparecido porta por um instante e, logo a seguir, tinha voltado aentrar. Naquele dia, esperei por ela na esquina antes da penso. Quando j

    acreditava que ia voltar para a oficina sem conseguir v-la, ela saiu pelaporta e, afastando-se, caminhou pelo passeio. Deixei de pensar. Atravesseia rua e, dando passos muito maiores do que os dela, caminhei, olhando

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    apenas para as suas costas a aproximarem-se cada vez mais, cada vezmais, at estarem distncia de dois passos, at estarem distncia domeu brao, at estarem ao meu lado. Ao passar por ela, coloquei o papel napalma suave, suave e fresca da sua mo. Estremeceu e senti ainda os seusdedos a envolverem a ponta dos meus dedos. Retirei a mo como se nuncaa tivesse tocado e olhei-a nos olhos. No parei de caminhar. Ela olhou-me,abrandou, fechou o papel na mo e no parou de caminhar.

    A Maria chegou quando a minha mulher j tinha estendido a roupa,j tinha desligado a telefonia e j tinha uma panela sobre o fogo, envolvidapor vapor. A minha mulher no se assustou assim que sentiu a chave aentrar na fechadura e a revolv-la, mas estava fixa num pensamento e, aoabandon-lo, comeou a movimentar-se mais depressa e apenas parouquando a Maria entrou na cozinha.

    Sem perguntar, mas entendendo a tranquilidade deserta da casa,mas sabendo, a Maria entrou zangada com a minha mulher: sempre amesma coisa. Quantas vezes j lhe disse que, se a deitar de manh, ela noquer dormir nada noite? A minha mulher no respondeu. Esperou. AMaria continuou zangada. Disse duas ou trs frases que significavam amesma coisa. A sua voz era mais severa por existir nica entre o silnciodos movimentos. Os outros sons: o assobio da ch