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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades- Instituto de Artes Débora Mazloum Paisagens Hybridas Rio de Janeiro 2016

Centro de Educação e Humanidades- Instituto de Artes Débora … · 2020-03-11 · RESUMO Mazloum, Débora. Paisagens hybridas. 2016. 79 f.Dissertação (Mestrado em Processos Artísticos

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades-

Instituto de Artes

Débora Mazloum

Paisagens Hybridas

Rio de Janeiro

2016

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Débora Mazloum

Paisagens Hybridas

Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre ao Programa de Pós-Graduação em Artes, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Processos Artísticos Contemporâneos.

Orientadora: Profª. Dra. Malu Fatorelli

Rio de Janeiro

2016

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CATALOGAÇÃO NA FONTE

UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEHB

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou

parcial desta dissertação, desde que citada a fonte.

_____________________________________ __________________ Assinatura Data

M476 Mazloum, Débora. Paisagens hybridas / Débora Mazloum. – 2016. 79f.: il. Orientadora: Malu Fatorelli. Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio

de Janeiro, Instituto de Artes. 1. Arte contemporânea – Teses. 2. Natureza (Estética) –

Teses. 3. Instalações (Arte) – Teses. 4. Paisagem – Teses. 5. Realidade - Teses. 6. Museus – Teses. 7. Espaço e tempo em arte - Teses. I. Fatorelli, Malu,- 1956. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Artes. III. Título.

CDU 7.036

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Débora Mazloum

Paisagens Hybridas

Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Artes, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Processos Artísticos Contemporâneos.

Aprovada em 29 de Setembro de 2016.

Banca examinadora:

_______________________________________ Profª. Dra. Maria Luiza Fatorelli (Orientadora)

Instituto de Artes - UERJ

________________________________________

Prof. Dr. Marcelo Campos

Instituto de Artes - UERJ

________________________________________

Prof. Dr. Ivair Reinaldim

Universidade Federal do Rio de janeiro

Rio de Janeiro

2016

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AGRADECIMENTOS

À Malu Fatorelli, que me proporcionou uma prática artística rica,

ultrapassando os espaços institucionais e nos levou para a residência do Jardim

Botânico, sem a qual meu trabalho não teria crescido tanto e com tão belas trocas.

Aos interlocutores Marcelo Campos e Ivair Reinaldim, que tanto

acrescentaram a essa dissertação, tecendo comentários e indicando leituras

extremamente importantes para a concepção e finalização do trabalho.

Ao Gabriel Junqueira, meu amor, companheiro de tantas de estradas e de

tantas conversas. Pelo apoio sem fim inclusive na revisão desta dissertação. Sem

ele este trabalho não seria possivel.

Aos vários amigos da caminhada do mestrado, porque nenhum trabalho é

feito só. À Caroline Valansi, pelas trocas e conversas nos dias quentes que

permanecemos no ateliê. Ao Cezar Sperinde, por compartilhar o espaço de casa,

fazendo com que este se tornasse aquele lugar de arte vida.

Às colegas da residência Projeto Planta Baixa, Junia Pena, Nena Balthar e

Susana Anágua.

Por último e não menos importante, a minha família, pelo apoio constante.

À Capes pela bolsa de pesquisa sem a qual o mestrado teria sido bem menos

profundo.

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RESUMO

Mazloum, Débora. Paisagens hybridas. 2016. 79 f. Dissertação (Mestrado em Processos Artísticos Contemporâneos) - Instituto de Artes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

O projeto Paisagens Hybridas trata de um percurso ao universo dos artistas viajantes, aos gabinetes de curiosidades e suas formações a partir de desdobramentos que contenham idéias relacionadas ao ato de ver uma paisagem e sua elaboração construtiva / narrativa. Configura uma busca ao entendimento acerca da poética de apropriações e alegorias contemporâneas que abrange as questões relacionadas ao espaço instalativo e suas formas . A pesquisa tenta estabelecer diálogos históricos entre tempos diversos, buscando desenvolver a relação com a territorialidade e novas paisagens, assim como a criação de uma natureza hibrida ficcional, questionando relações em torno do efeito de real que instituições tais quais o museu, os gabinetes de curiosidades e museus de história natural atestam. O projeto buscou artistas que de forma semelhante questionem o mesmo espaço institucional e historiográfico na sua relação com a natureza e o que é natural como Mark Dion, Roberth Smitshon e Alberto Baraya.

Palavras-chave: Artistas-viajantes. Alegorias e apropriações. Instalação. Gabinete de

curiosidades. Hibridos. Ficção. Natureza.

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ABSTRACT

Mazloum, Débora. Hybrid Landscapes. 2016. 79f. Dissertação (Mestrado em Processos Artísticos Contemporâneos) - Instituto de Artes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

The Hybrid Landscapes project is a journey into the universe of the traveling artists, the curiosity cabinets and its formations built on the unfolding of ideas related to the act of seeing a landscape and its possible constructive and narrative elaborations. It configures an attempt to understand the poetics of appropriations and contemporary allegories that encompasses issues related to the installation space and its forms. This project attempts) to establish dialogues with various historical times, looking to develop the relation with territoriality and new landscapes as well as the creation of a hybrid fictional nature, questioning the relations that surround the real effect that institutions like museums, natural history museums and the curiosity cabinets attests. The project searched artists that treat similar issues questioning the historical and institutional space as the idea of what is nature versus what is natural such as Mark Dion, Robert Smitshon and Albert Baray, Luiz Zerbini among others.

Keywords: Traveler –artists. Alegorys and appropriation. Instalation. Curiosity

cabinets. Hybrids. Fiction and nature.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Heritage, fragmento do video, Thiago Rocha Pita 2007 .......... 9

Figura 2 - A Coleta da neblina, Brígida Baltar, 2002 .............................. 12

Figura 3 - Homebud, Mona Hatoum, 2016 ............................................... 14

Figura 4 - Jardim de Aclimatação XXI, vista da Instalação. Débora Mazloum,

2015 ......................................................................... 17

Figura 5 - Piauí, Débora Mazloum, 2013 ................................................. 19

Figura 6 - The man who flew from his apartment into the space, Ilya Kabavoc,

2003 ......................................................................... 24

Figura 7 - Quando a Lagoa encontra o mar de Fachinetti, detalhe, Débora

Mazloum, 2015 ............................................................ 26

Figura 8 - Arrasto, Marcelo Moscheta, 2015 ............................................ 28

Figura 9 - The eyes of Gutete Emerita, Alfredo Jaar, 1996 / 2000 ........... 30

Figura 10 - Copo e garrafa de Suze, Pablo Picasso, 1912 ........................ 34

Figura 11 Jardim de Aclimatação XXI, Débora Mazloum, Jardim Botânico do

Rio de Janeiro, 2015 ............................................ 35

Figura 12 - 350 pontos rumo ao infinito, Tatiana Trouvé, 2009 .................. 36

Figura 13 Jardim de Aclimatação XXI, fragmento. detalhe da Instalação, 2015

...................................................................... 39

Figura 14- Ponto Cego, Laercio Redondo, 2013 ...................................... 41

Figura 15 Jardim de Aclimatação XXI, detalhe da instalação, Débora

Mazloum, 2015 ......................................................................... 44

Figura 16 - Exposição Amor, Luiz Zerbini, 2014 ......................................... 49

Figura 17 - Herbário de plantas artficiales, Expedição Shangai, Alberto Baraya,

2012 ............................................................................ 51

Figura 18 - Marcel Broodthaers, Musee de art moderne,departament des

Aigles,section XIX siecle,1968 …............................................. 56

Figura 19 - Fernweh, Tacita Dean, 2009 .................................................... 59

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Figura 20 - O antigo Rio Doce, Débora Mazloum, 2013 ............................. 62

Figura 21 - Ondina, Walmor Correa, 2005 ................................................. 64

Figura 22 Jardim de Aclimatação XXI, detalhes, Débora Mazloum, 2015 66

Figura 23 - Herbarium of artificial plants AlbertoBaraya, Greenhouse, 2007

……………………………………………………………….. 68

Figura 24 - Sealife, Mark Dion, 2012 ......................................................... 69

Figura 25 - Débora Mazloum, Jardim de Aclimatação XXI, Anápolis, 2016 74

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................ 9

1 FRAGMENTOS ALEGÓRICOS TENDEM AO INFINITO ........... 17

2 INVESTIGAÇÕES ACERCA DE UM GABINETE DE

CURIOSIDADES CONTEMPORÂNEO ...................................... 41

3 CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO CONCEITO DE REAL .... 51

4 SOBRE A PERDA DO LUGAR .................................................. 69

REFERÊNCIAS .......................................................................... 77

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INTRODUÇÃO

... Os outros lugares são espelhos em negativo. O viajante reconhece o pouco

que é seu descobrindo o muito que teve e o que não terá.

(CALVINO, 2014,p.29)

A Viagem não começa quando se percorrem distâncias, mas

quando se atravessam as nossas fronteiras interiores. A viagem acontece quando

acordamos fora do corpo, longe do último lugar onde podemos ter casa.

(COUTO, 2006,p.65)

Figura 1 - Thiago Rocha Pita, fragmento do vídeo Heritage, 2007.

Fonte: http://www.arty.net

As viagens que faço não são viagens "reais". Reais no sentido de que não

tem o embate físico que as viagens em geral necessitam, pois não há o

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deslocamento do corpo. No entanto, permanecem os encantamentos e as

frustações, outros embates. São viagens utópicas e se dão à medida que percorro

caminhos diversos, outras paragens. Nesses trajetos, escolho distâncias que não

são próximas temporalmente, perfaço rotas de tempos que não existem em unidade

quantitativa, salto de um livro a outro impunemente. As viagens infinitas às

bibliotecas são mundos guardados dentro de uma estante.

Se "pensar é viajar1" como afirmaram Deleuze e Guatarri, faz-se necessário

entender em que medida e em quais formas as viagens são estruturadas em meu

processo. Quais bifurcações existem, qual seu modelo e quais as convergências

dessas estruturações por onde passa esse pensamento que é matéria prima do

devaneio e consequentemente se torna sonho, que se torna trabalho, que se torna

ficção, que transfigura-se em pesadelo, torna-se desenho e se multiplica. A

materialização e o entendimento dessas formas tão distintas, tão esparsas é o

desafio que se coloca.

Nesse caminho, uma das primeiras bifurcações que faço, dentro dessa

relação de estrutura entre viagem / pensamento é a viagem à biblioteca. Foi na

biblioteca do CCBB do Rio que me deparei com um livro chamado Viagens

Filosóficas, que relata uma missão artística feita pelos portugueses com duração

em torno de 10 anos2 . Sempre gostei de me perder em bibliotecas e em livrarias,

nos sebos da praça Tiradentes, e neles procurar a esmo algum título que me

interessava.

Jorge Luis Borges, em seu conto A Biblioteca de Babel, sugere uma biblioteca

interminável com todos os saberes do mundo, assim como um livro sem fim. Essa

colocação sobre a circularidade do saber que se arma dentro de uma biblioteca

hexagonal é no conto um espaço que não acaba. Me chama a atenção que Borges

intitule o leitor que habita essa biblioteca de viajante.

Acabo de escrever infinita. Não introduzi esse adjetivo por um hábito retórico; digo que não é ilógico pensar que o mundo é infinito. Os que o julgam limitado postulam que em lugares remotos os corredores e escadas e hexágonos podem inconcebivelmente cessar - o que é absurdo. Os que o imaginam sem limites esquecem que não é ilimitado o número possivel de

1 DELEUZE, Felix e Guatarri, Félix. Mil Platôs,2012,Ed. 34 p. 202.

2 FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem ao Brasil, Kapa Editorial,2007,p.12.

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livros. Eu me atrevo a insinuar esta solução para o antigo problema: A Biblioteca é ilimitada e periódica. Se um viajante eterno a atravesse em qualquer direção, comprovaria ao cabo de séculos que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que repetida, seria uma ordem: A Ordem.) (BORGES, 2007,p.78)

A analogia de uma biblioteca infinita me parece pertinente, por se tratar

dessa busca ininterrupta, sempre incompleta, assim como uma viagem sem fim.

Tendo acreditar (ou minha memória seletiva, meu processo de auto-ficção...) que o

descobrimento das Viagens Filosóficas se deu de forma semelhante a partir desse

encontro do perder-se dentro de corredores intermináveis. Lembro-me que no

mesmo período em que visitava a biblioteca do CCBB estava retomando o interesse

nos desenhos botânicos que sempre me despertaram grande vislumbre.

Acredito portanto no processo que se inicia a partir desse lugar de

encantamento. É como uma fagulha que acende o desejo do trabalho. É também

uma simples busca por temas que me interessam, de poéticas das quais gosto de

pensar e vivenciar, como esta de se perder na biblioteca.

Ao ler o catálogo da exposição A Coleta da Neblina, de Brígida Baltar, ela

menciona que ocorreu algo de semelhante ao seu processo. Ela conta que leu uma

entrevista de Janini Antonini, onde a Janini afirmava um pensamento similar: "ela

disse que sempre pensava um novo trabalho a partir de uma experiência que ela

quisesse experienciar", e de fato, assim prossegue tanto para a Brigida como para

mim: "isso parece tão simples mas pra mim foi como uma revelação".3

3 BALTAR, Brígida. Catalogo da Exposição A Coleta da Neblina,2003.p,63.

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Figura 2 - A coleta da neblina, Brigida Balthar, 2002.

Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural.

Na série, intitulada projeto Umidades, desenvolvido durante os anos de 1994

até 2002, a operação de estar na paisagem, e dela coletar alguma coisa que não se

consegue muito é, a meu ver, extremamente interessante e poético. É bonito como

essa relação de olhar a paisagem se estabelece ao perceber o instante da tentativa

da coleta, na qual ela tenta se inserir na paisagem, coletar sua neblina, mas toda

vez que ali se encontra, paradoxalmente se distancia dela. No inicio do catálogo,

Giorgio Ronna faz uma colocação belíssima acerca do fog:

Lembra quando conversamos uma vez se o fog existe ou não? Que ele está sempre a sua frente ou atrás de você, nunca onde você está. (BALTHAR, op.cit.,p.1)

Talvez seja assim com a própria paisagem. Afinal, essa perseguição do fog,

me faz adentrar na outra bifurcação que tento estabelecer e relaciona-se a poética

do viajante: a caminhar e tentar coletar coisas ao longo de seu percurso.

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Entendo a caminhada como uma das bases constituintes de meu processo,

por onde esclareço meu pensamento e o trabalho toma forma a partir do embate que

se dá com este encontro no mundo. As caminhadas aos antiquários, as feiras livres

e aos leilões são cruciais para o estabelecimento de um universo de entretempos

que tanto busco em todos os meus trabalhos. Pois preciso da história que contém

esses objetos, daquilo que está sobre as camadas de cada material.

Mona Hatoum no seu trabalho realizado em 2000 intitulado Homebud, e que

está agora em exposição na Tate de Londres, perfaz um caminho estrutural

semelhante. Em entrevista recente por conta da exposição, ela afirma que as idas

ao mercado de pulgas e as feiras de antiguidade são essenciais para o

desenvolvimento do trabalho. Ela conta que passa uma grande parte do tempo indo

a esses locais e escolhendo os materiais com os quais ela gostaria de trabalhar de

maneira bastante intuitiva e aos quais ela intitula como "objetos- assistidos". No caso

de Homebund, o trabalho se faz como uma assemblage, uma colagem, onde os

objetos e o mobiliário são interligados por fios que acendem luzes que percorrem a

instalação. 4

4 HATOUM, Mona. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Kofcm9teUmo, 2016. Acesso

em: 15/06/2016. Tradução nossa.

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Figura 3 - Homebud, Mona Hatoum, 2016.

Fonte: Tate Britain

Assim, ela estabelece a instalação também como uma colagem, onde a

interligação dos elementos confere a totalidade do trabalho. Homebud dialoga tanto

de forma processual com meus trabalhos como de forma conceitual na questão da

justaposição dos objetos.

Portanto o processo do mestrado também está sendo, como eu acredito que

deva sempre ser, um processo de descoberta da forma como se trabalha, como se

olha para o trabalho e, claro, o questionamento sobre o mesmo. No entanto, ao

longo desse período tenho descoberto de que maneira eu já fazia o que faço hoje,

sob formas tão diferentes e com diferentes propósitos.

Por durante 10 anos trabalhei com cinema. Muitas vezes como cenógrafa e

outras como produtora de objetos. Como cenógrafa, percebo que a questão do

espaço, a questão de se poder construir um lugar já estava ali presente como uma

necessidade. Por outro lado, como produtora de arte, já realizava processos

parecidos como o de andar, de buscar e de coletar.

Outra ponto de ligação se colocou aparente ao ler o texto de Foucault

chamado O Corpo Utópico e as Heterotopias. Nele, a idéia de um lugar que esteja

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justaposto de vários lugares dentro um mundo dito "real" é a âncora para um

pensamento acerca de um espaço em suspenção, sem lugar determinado mas que

agregue em si diversos outros. Esta colocação dialoga diretamente com as

Paisagens Hybridas, com o trabalho seguinte Jardim de Aclimatação XXI e com o

fazer cinematográfico, já que Foucault inclui o cinema como uma heterotopia. Além

do cinema, o jardim e o museu também são considerados como tais. Esses espaços

são mundos que me circundam na medida em que desenvolvo os processos. Nas

palavras de Foucault:

Em geral, a heterotopia tem como regra justapor em um lugar real vários espaços que, normalmente seriam ou deveriam ser incompatíveis. O teatro, que é uma heterotopia, perfaz no retângulo da cena toda uma série de lugares estranhos. O cinema é uma grande cena retangular, no fundo da qual sobre um espaço de duas dimensões, projeta-se um espaço de três dimensões. Porém o mais antigo exemplo seria talvez o jardim. (FOUCAULT, 2013, p.24)

Desse modo a sequencia que tento estabelecer não é contínua mas um

encadeamento pelos caminhos que me levaram até os trabalhos, fazendo uma

analogia textual com a idéia de colagem.

Assim, todos os trabalhos são permeados por suas questões históricas e

tento elaborar a dissertação como uma estrada a ser percorrida.

Estrada esta que fui perceber ao desenvolver o trabalho Jardim de

Aclimatação XXI, no qual o espectador tem que andar ao redor da mesa. Carl Andre

vai afirmar que, para ele, a escultura ideal é uma estrada, porque elas "obrigam a

que sejam seguidas, que se caminhe ao redor delas, ou mesmo que se caminhe

através delas."5

Talvez, seja somente a vontade de construir novos mundos pra que a gente

possa se perder.

Por isso, o trabalho não se constitui de capítulos fechados entre si. Tentei,

mais uma vez, como em um processo de colagem, que a dissertação vá se

desdobrando sobre si mesma e perfaça caminhos entrecortados assim como um

gabinete de curiosidades que na sua constituição fragmentada por agrupamento se

5 CARERI, Francesco. Walkscapes, O caminhar como prática estética, 2013,p. 112

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refaz, e se refazendo estabelece diversas idas e vindas constituindo um percurso

não linear.

Sendo assim, no primeiro capítulo vou aprofundar a questão do processo de

apropriação de materiais diversos para a concepção do trabalho. De que maneira

essa colagem aparentemente abstrata opera na concepção do mesmo e como sua

fragmentação é constituinte de uma alegoria.

No segundo capítulo, pretendo esmiuçar a questão da sobreposição de

tempos que existe nos gabinetes de curiosidades e trazer um pouco de sua história,

analisando o trabalho Jardim de Aclimatação XXI e a decorrência da mesa como

elemento aglutinador importante no processo. Também abordo a questão sobre a

forma com que busco trabalhar com a história e como esta se insere no trabalho.

No terceiro capítulo, procurei entender de que maneira o trabalho Paisagens

Hybridas se relaciona com a questão da veracidade do olhar, aprofundando o

entendimento acerca do "efeito do real". E como a partir disso o estatuto de ficção

opera dentro dos espaços institucionalizados tais quais o museu e o universo dos

artistas viajantes.

No quarto capítulo, Sobre a perda do lugar, a pesquisa se dá de maneira a

tentar perceber como a questão do lugar / espaço é constituinte ou não do trabalho,

e qual o questionamento acerca da idéia de um espaço contemporâneo.

O título da dissertação permanece sendo Paisagens Hybridas, que é o

mesmo de um de meus primeiros trabalhos, porque entendo que tanto o processo,

quanto o próprio trabalho é hibrido. Dessa forma, busquei aprofundar a questão de

como o hibrido é crucial na criação desses universos outros, de modo a ir mais e

mais a fundo na pesquisa. Uma tentativa de misturar os objetos, os lugares, os

olhares e as falas.

No que concerne aos trabalhos dos artistas com os quais tentei dialogar, eles

existem na dissertação não somente como aparato discursivo ou uma mera âncora

de pensamentos. Eles são carregados de uma vontade de fala própria, como uma

imagem que se coloca como texto. Busquei artistas que se assemelhassem as

minhas construções tanto processuais, quanto estéticas, para que no entendimento

do processo haja uma possivel riqueza de correlações.

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1 FRAGMENTOS ALEGÓRICOS QUE TENDEM AO INFINITO

“Toda a paisagem não está em parte alguma”

Fernando Pessoa

Figura 4 - Jardim de Aclimatação XXI, vista da Instalação. Débora Mazloum, Jardim

Botânico do Rio de Janeiro. 2015

Fonte: acervo da artista.

O inicio de meus trabalhos costuma ser sempre fragmentado. É um todo que

parece não conseguir se juntar. Pedaços de diferentes espaços compõem uma certa

unidade, tanto estética, quanto conceitual. E é como uma colagem que opera na

diversidade, na transitoriedade de espaços e tempos simbólicos.

Escolho começar falando e pensando nos fragmentos, pois foi este o

caminho que pareceu surgir na maioria dos meus trabalhos, e acaba por se

configurar como um processo extremamente importante na realização dos mesmos.

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Tanto nas Paisagens Hybridas como no Jardim de Aclimatação XXI o inicio foi um

tanto disperso.

Uma centelha de idéia, uma possibilidade incerta de fazer alguma coisa,

como um vislumbre que ronda a mesa de trabalho, o passeio e o sono, sem projeto.

A partir dali começa uma inquietação. E é um como um novelo de lã, você puxa um

fio e começa todo um desenrolar. E enquanto estava no processo desses trabalhos

não tinha a consciência tão clara de que usava esses procedimentos.

Perceber que os objetos, os desenhos e as coisas ao serem colocadas uma

ao lado da outra reestabelecem uma outra forma a esses fragmentos a partir de um

processo de justaposição, é um procedimento característico de um trabalho

alegórico.6Essas junções, que podem ser feitas ao infinito, geram a cada novo

agrupamento uma nova concepção, rearranjando-se em diversas possibilidades.

Cada universo se refaz numa progressão que tende ao infinito.

Sobre essa multiplicação das formas fragmentárias, Craig Owens, no ensaio

denominado O Impulso Alegórico, sobre um teoria do Pós - modernismo, faz uma

relação entre a alegoria e progressão matemática, onde em ambos os casos a

estruturação a partir do processo de colocação e derivação, uma após a outra,

estabelece uma continuidade sem fim ao processo de encadeamento.

Neste sentido ele afirma que:

O que poderia ser uma sequencia ao acaso para uma pessoa inexperiente aparece ao matemático como uma sequencia cheia de significado. Observe que a progressão pode ir ao infinito. Isso equivale a situação de quase todas as alegorias. Elas não tem nenhum limite "orgânico" inerente ou de magnitude." (OWENS, CRAIG, op. cit , p. 6)

A pergunta que se estabelece como crucial neste trabalho é de fato o que

significa trabalhar com procedimentos alegóricos? E claro, o que é uma alegoria? De

que maneira esse processo é fundamental na feitura do meus trabalhos e nos

trabalhos de outros artistas contemporâneos? Essas são perguntas que me fiz ao

perceber que utilizava sem saber praticamente de todas as ferramentas das quais

Walter Benjamin observou, no ensaio seminal denominado A origem do Drama

Barroco Alemão, como sendo de uma mente alegórica. Estas ferramentas são:

6 OWENS, Craig. O Impulso Alegórico, Sobre uma teoria do Pós -modernismo, A/E,nº4,2004, p.116

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apropriação, repetição, colagem e fragmentação. Nas Paisagens Hybridas, a

tentativa de subverter o real era inicialmente o mote do trabalho que foi se

transformando na medida em que o fazia. O processo das paisagens se dava da

seguinte forma: buscava uma paisagem primeiro na qual eu queria trabalhar e na

qual não pudesse identificar nenhum lugar específico, aquela imagem não deveria

me lembrar de nada (e isto é importante para essa construção de um certo não

lugar). Essa imagem era digitalizada e passava por um processo de photoshop para

ampliação do tamanho e apagamento daquilo que considerava necessário. Depois

disso, imprimia essa imagem no tamanho ampliado, e desenhava por cima dela.

Com nanquim, com lápis, com carvão, com borracha. Terminada essa parte de

desenho, tirava uma outra foto da imagem ampliada e redesenhada e a partir disso

fazia uma outra colagem no computador. Portanto, o processo de adição de

camadas a paisagem em forma de colagem no computador e a apropriação já

estavam presentes nesse primeiro trabalho.

Figura 5 - Piauí. Débora Mazloum, Da série Paisagens Hybridas, 2013.

Fonte: Acervo da artista.

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Era então como uma maneira de subverter a paisagem / imagem, e

transformá-la em outra coisa.

É importante entender o processo, pois foi ele, além da questão da

apropriação que caracteriza num primeiro momento o trabalho como alegórico, a

partir de um fragmento, para o desenvolvimento de sua elaboração.

No caso de Jardim de Aclimatação XXI, as idéias foram surgindo de maneira

independente porém concomitantes. Primeiro um molde de uma planta de plástico, a

questão da irrealidade do jardim, o mapa, o relato, os desenhos botânicos. Tudo me

chamava a atenção. E nesse processo era importante observar `as questões que

surgiam a partir de cada um desses fragmentos. É um mergulho no escuro.

Procurando o que o mundo coloca em seu caminho. A biblioteca como um

mundo, a cidade como ateliê, o Saara como continente, o ateliê como casa, as aulas

como um ônibus. A busca e a coleta.

Assim, esta tentativa de junção desses objetos coletados, reinventados,

acaba por configurar uma nova ordenação para os mesmos, como uma colagem.

Estabelecendo uma relação entre os objetos, entre os desenhos apropriados, entre

novas camadas de nanquim e borracha.

Craig Owens, no ensaio já citado sobre as questões alegóricas, vai apontar

também que, de modo geral, "a alegoria é tanto uma atitude quanto uma técnica,

uma percepção quanto um procedimento"7. Parece, que essa percepção é aquele

dado do imponderável, a busca intuitiva e empírica que move todo o processo,

aquele não saber a priori o que se está fazendo ou ainda qual o seu final. E existe

nesse emaranhado do fazer a percepção de que algo pode ser acrescentado aquela

imagem, que ela pode dizer algo mais. Ou ainda que ao colocar sobrepostas ou

justapostas objetos e imagens se conseguiria algo como uma 3ª camada da obra.

A pergunta então que devo fazer e se relaciona com meus trabalhos é a

mesma: para que serve um possivel comentário daquelas imagens, uma colagem,

uma releitura ou uma 3ª camada da obra?

Uma primeira colocação seria que, ao tecer este tipo de relação a alegoria

pode suplantar o sentido / conceito anterior da obra. Ao colocar este outro possivel

7 OWENS,Craig,op.cit.,2004 p. 114.

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significado pode tanto adicionar significados, quanto chegar a inverter seu suposto

centro. Procedendo dessa maneira, podemos entender que a obra está aberta a

diversas significações, outras anotações e outros pontos de vista, que abrem o

trabalho a diversas camadas, além de estabelecer relações de entre-tempos e

releituras. Ou seja, ela "pode tomar o sentido anterior", refazendo-o ou ainda dando-

lhe múltiplos significados.

Com esta colocação, a alegoria tende a perturbar significativamente todo o

ideal moderno na medida em que desafia a fundação de uma suposta unidade da

obra.8

A partir dessa idéia da alegoria como um certo "símbolo suplantado", cabe

retroceder um pouco e voltar na origem do que a palavra alegoria quer dizer, pois

em sua raiz semântica está embutida o seu significado. A palavra aparece pela

primeira vez sendo usada pelo grego Plutarco, e é a combinação de 2 palavras: allos

(outro) + agoreuein (falar abertamente )9 .

Isto denota que na etimologia da palavra alegoria é sempre considerada a

possibilidade diversa de uma fala com múltiplas vozes, portanto a capacidade de se

colocar no lugar do outro, de imaginar o outro e de ser outro. O caminho da

imaginação se faz na medida desse alargamento das fronteiras do eu.

Seguindo essa trilha, busco estabelecer uma relação dialética (e hipotética

também) a respeito de como o sujeito contemporâneo, toma o lugar / trabalho / voz

do outro e o define como seu, e esse deslocamento afeta as produções realizadas

de modo a ser constituinte e não separável dos mesmos.

Assim, a hipótese traçada por Stuart Hall, embasada na teoria de autores

como Marx, Froid, Althusser e Foucault, é de que a modernidade tardia e suas

novas teorias fundamentam um sujeito descentralizado, diametralmente oposto do

sujeito unificado moderno. Hall, em seu livro A identidade Cultural na pós-

modernidade vai falar: "a identidade torna-se uma celebração móvel."10 Com isso,

novos sistemas de representação e significação se multiplicam com velocidade

dando espaço e lugar a essas diversas vozes. A percepção e importância de

entender a questão do individuo neste momento é de que ele vai refletir diretamente

8 OWENS, Craig, op.cit., p.122 9 MACEDO, Lamb, On tropical nature, 2003, pag. 30. Tese de doutorado.

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no trabalho que o mesma realiza. Nesse sentido outra afirmação de Hall Foster

também colabora a entender essa nova concepção:

A história modernista em particular, costuma ser concebida, secretamente ou não, com base num sujeito individual, ou melhor como um sujeito. (FOSTER, 2015, p. 44-45)

Essa nova possibilidade de mudança de papéis que o sujeito contemporâneo

experimenta possibilita, além de leituras críticas ( o eu que se vê de fora e portanto

capaz de outras elaborações), a abertura do espaço para cada vez mais fabulações

/ ficções ocorrerem, atingindo assim novos campos da imaginação que a própria

ficção / alegoria conduz. É a abertura para a liberdade de poder se colocar no lugar

do outro e assim, forjar a si mesmo. E se somos muitos podemos representar

diversos papéis.

Diana Klinger sugere um conceito em sua tese de doutorado Escrita de Si,

Escritas do Outro: Autoficção e etnografia na narrativa Latino - Americana

contemporânea que ela denomina de "autoficção" e parece aplicável a hipótese que

aqui esboço sobre este outro alegórico.

Neste conceito o que importa é que "a persona" esteja de alguma maneira

dialogando com as seus outros sujeitos, e que esses aparentes opostos são

complementares, ainda que atuem em universos diferentes. Ela afirma a questão de

que não existe somente um eu, mas vários, e que se misturam formando um

universo que de aproximações entre ficcional e “real”. Diana se refere

especificamente a questão da literatura, no entanto é um conceito que cabe ser

apropriado pelas artes visuais. Ela argumenta que:

Pelo contrário, tanto os textos ficcionais quanto a atuação (a vida pública) do autor são faces complementares da mesma produção de subjetividade, instâncias de atuação do eu que se tencionam ou se reforçam, mas que em todo o caso, já não podem ser pensadas isoladamente. (KLINGER, 2006, p. 57).

Falar sobre si ou falar sobre o outro implica sempre saber a relativização do

discurso, entendendo a impossibilidade de uma verdade completa sobre o eu (ou

sobre o trabalho), e uma subjetivação constante. Dentro dessas várias facetas, as

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apropriações feitas a partir da fala dos outros, de tempos diversos juntam-se de

maneira complementar na formação de um trabalho alegórico.

Na instalação intitulada "The Man How flew from his apartament into the

world", do artista Ilya Kabakovov, apropriação, tempo e ficção são questões

inerentes ao trabalho, além da fragmentação que articula a própria montagem e por

consequência o discurso do espaço. Nela, o artista organiza uma "cena", onde um

sujeito fabula a sua própria ida ao espaço (de fato sideral!). No caso desta

instalação, Ilya cria um personagem ficcional que habita aquele apartamento. Esta

instalação é parte de um projeto desenvolvido por ele que abarca 10 personagens

distintos em situações diferentes. Todos estão envoltos pelo realismo criado pelo

artista e juntos compõem uma única instalação. Nela, existem somente os rastros

dessa pessoa que esteve por ali. O discurso que ele coloca fixado ao lado da porta

de entrada da casa é escrito pelo personagem intitulado Nikolaiev, vizinho do

homem que se ejetou. A instalação flerta com um realismo nonsense, com a

apropriação de cartazes da antiga União Soviética colados em toda a parede, com a

simulação do sonho de construir uma catapulta para si.

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Figura 6 - The man ho flew from his apartment into the space, Ilya Kabavoc. 2003.

Fonte: Centre George Pompidou, 2003.

Nesse momento, ainda é possível acercar-se da porta e dar uma olhada no interior, onde se vê a maquete com o plano de vôo do viajante em um dos cantos, alguns desenhos colados sobre as paredes, e uma estranha catapulta que elevou a única poltrona existente na peça até as bordas de um enorme buraco irrompido no teto. Tudo está coberto de estuque e pó,devido ao forte impacto dos explosivos que permitiram que o desaparecido transpassasse o concreto rumo ao céu.

11

A fala de Nikolaiev emula a vivência de uma pessoa naquele interior,

transforma a situação de maneira que se entende que o homem construiu de fato

11

Bernardes, Maria Helena, publicado na Revista Carbono nº 5, verão de 2003 - 2004. Acesso em: 14/10/2015.O texto é baseado no relato de Nikolaiev sobre seu vizinho, O homem que se ejetou.

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uma catapulta para atirar-se rumo ao céu. Existe uma estrutura narrativa no interior

do espaço por onde pode-se ver, o plano de voo, os cartazes, o gesso no chão.

Entendo este trabalho também como uma colagem, onde a apropriação dos

cartazes, a sensação de necessidade de fuga para o além, os esboços, ressaltam a

vontade de partida do personagem e colaboram para o "efeito de real" necessário

para a construção narrativa da instalação. Para Ilya esse conjunto de instalações

devem ser vistos como um "caleidoscópio de inúmeras pinturas" onde, com esta

afirmação ele acentua o aspecto de colagem que os mesmos carregam. No entanto,

ele se refere a este trabalho como "total instalation."

Total Instalation significa literalmente uma instalação total, onde o que o

artista tem em mente ao fazer esta afirmação é que o espectador possa entrar no

espaço em todos os sentidos. Com o corpo, com o inconsciente, com a razão. Ele

acredita que a instalação teria uma capacidade aproximada a de uma pintura do

séc. XVI., onde o espectador poderia entrar no espaço e ser absorvido por ele.

Dessa forma, a instalação teria a capacidade imersiva de colocar espectador dentro

de um lugar com diversas vistas, afirmação esta que seria o oposto da perspectiva

tradicional de um ponto de fuga.12

Claire Bishop no livro Instalation Art, associa o trabalho de Ilya à uma "dream

scene". Ela estabelece uma relação com a proposta feita por Freud para a

interpretação dos sonhos, onde 3 aspectos são fundamentais: a sensação de uma

percepção visual(sonhos são imagens)consciente, uma composição estrutural e o

mais importante (para o meu enfoque) a elucidação do sentido pelo método da livre

associação.

Esse método parece colocar um possivel paralelo com o processo de

colagem, seja ele sobre papéis, sobre objetos ou sobre espaços.

12

BISHOP, Claire. Instalation Art, 2005, p. 17.

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Figura 7 - Quando a lagoa encontra o mar de Fachinetti, detalhe, Débora Mazloum,

2015.

Fonte: acervo da artista.

Durante o processo da Residência no Jardim Botânico, realizada no ano de

2015, na qual resultou o trabalho Jardim de Aclimatação XXI, fui muitas vezes a

biblioteca procurar por imagens do jardim para entender como se deu a criação do

mesmo e buscar relatos de pessoas que estiveram ali nesse período, que

coincidentemente é próximo `a chegada da corte portuguesa no Brasil. Em uma

dessas buscas na biblioteca me deparei com o relato da inglesa Maria Graham. Ela

esteve no Brasil durante os anos de 1821, 1822 e 1823 e durante sua estadia

escreveu sobre suas impressões nos estados por onde passou, e interessou-se

pelos desenhos botânicos, ainda que ela mesma não fosse considerada uma artista

- viajante.13

Nesses relatos, tive um vislumbre que me perseguiu durante todo o caminho

da residência. E quando digo caminho digo em sua literalidade, pois toda vez que

13

CAMPOS, Maria de Fátima, Relatos de viagem e a obra Multifacetada de Maria Graham, artigo publicado na Revista Sitientibus,n.41,2009.

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pegava o ônibus para chegar ao jardim botânico, imaginava como seria ver o mar da

dali.

Maria contava que Dom João VI construiu uma casa perto da entrada do

portão do Jardim, e ali recebia convidados para passar o final de semana ou realizar

almoços. Essa casa, tinha uma vista para a Lagoa, e Maria falava que: "Nosso

almoço foi servido na varanda de tal casa, da qual tínhamos uma vista encantadora

da lagoa, com as montanhas e matas, o oceano com 3 ilhotas ao largo...". Pelo

relato parece que seria possivel avistar um ponto em que a Lagoa Rodrigo de

Freitas se juntaria ao Oceano Atlântico. E a seguir: "A Lagoa.. está cercada de

montanhas e florestas exceto onde uma pequena barra arenosa permite um

desaguamento ocasional para o mar, quando a lagoa enche a tal ponto que ameaça

prejudicar as plantações das circunvizinhas."14

Que imagem então seria essa, da Lagoa com a mata tropical ao seu redor,

que ao transbordar vai de encontro ao mar? Procurei muito por tal imagem mas não

a encontrei. Encontrei muitas pinturas do artista Nicolau Fachinetti retratando as

imediações do Jardim Botânico e da Fazenda da Lagoa. E a atmosfera onírica

persistia em mim, onde como num sonho que desaguava a floresta tropical, o rio de

outrora a mata virgem com uma lagoa enorme.

Tirei uma foto na biblioteca do Jardim Botânico (num procedimento igual ao

das Paisagens Hybridas de uma pintura de Fachinetti e fui alterá-la no computador.

Esta da qual me apropriei, era de um ponto de vista que se diz estar dentro do

jardim Botânico.

Portanto, acabei fazendo uso de novo desse elemento, que é a apropriação e

que caracteriza fortemente os meus trabalhos.

Nesse caso, se tratava também de uma certa busca pela memória do local,

onde a idéia não era de fato uma busca somente pela origem do lugar, mas uma

busca pelo sonho daquilo que um dia já foi, ainda que permeado e embaralhado por

memórias relatos e invenções.

Para Hal Foster, trabalhar com apropriação de imagens tem dois significados,

que entendo que operam também dentro dos conceitos abordados pelos meus

trabalhos. O primeiro deles é o questionamento acerca da unicidade pictórica. Ao

14

Gaspar, Claudia Braga e Barata Carlos Eduardo. De Engenho a Jardim. Memórias Históricas do Jardim Botânico,2008, p. 187.

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reutilizar imagens, a própria repetição coloca em questão a singularidade tanto da

imagem como do olhar.

O segundo, explicita como a articulação desta apropriação pode vir a ressaltar

os próprios artifícios da representação, e nesse caso se configura como o próprio

questionamento do olhar, a subjetividade do mesmo e sua intrínseca possibilidade

de ficção. No livro O Retorno do Real ele coloca:

No entanto, a relação da arte da apropriação com o anteparo-imagem não é tão simples: ela pode ser critica do anteparo, até hostil e fascinada por ele, quase apaixonada. E ás vezes essa ambivalência sugere o real;isto é, como a arte da apropriação trabalha para revelar as ilusões da representação. (FOSTER, op. cit, p. 140)

Esta operação, de dar a ver as ilusões da representação é um ponto

importante que estrutura o trabalho. Ainda mais ao tratar de apropriações que se

ralacionam com a história e com história do lugar. É como a torção necessária ao

trabalhar no universo da apropriação.Esta torção se dá de maneira a tentar

ficcionalizar a realidade, fazendo conviver representaçãoes diversas, tempos

distintos, e para tanto, é necessário situar esta inflexão e consequente

impossibilidade de dar a ver o mundo que nos circunda.

Figura 8 - Arrasto, Marcelo Moscheta, Museu dos Bandeirantes,2015.

Fonte: www.marcelomoscheta.art.br

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Com essa reconfiguração-colocação acerca de uma das formas com as quais

procuro trabalhar, que literalmente vai a biblioteca, coleta material e busca o relato,

se assemelha ao processo de construção do trabalho Arrasto, de Marcelo Moscheta.

Arrasto é uma instalação realizada na casa dos Bandeirantes em São Paulo e

configura em sua feitura poéticas semelhantes de apropriação. Nesse projeto,

Marcelo percorre as margens do Rio Tietê e além de percorrê-las fisicamente, vai

até as pequenas bibliotecas das redondezas do rio a fim de fazer sua pesquisa. Em

uma delas, encontra uma foto de autor desconhecido que sintetiza a memória de um

espaço que não existe mais, a do Salto do Avanhadava. Este Salto foi inundado pela

construção da Usina Hidrelétrica Nova Avanhandava na déc. de 70 e foi durante um

grande período uma atração turística importante da região. 15

No caso do trabalho Arrasto a apropriação desta foto é convergente ao

pensamento que tive ao tentar dar conta em uma imagem da possibilidade do Mar

se juntar com a Lagoa. No caso de Moscheta, ele tenta trazer de volta uma memória

que estava esquecida pelo inundamento do rio. Seu processo, sua forma de

trabalhar, assim como o meu perpassa o universo dos artistas viajantes

reelaborando-o, atualizando-O, com as ferramentas dos novos descobridores /

pesquisadores, artistas. Divino Sobral, no texto da exposição de Arrasto, comenta

sobre o processo de Marcelo que: "não tem limites e é movediço, uma vez que ele

age como viajante, coletor, arquivista e colecionador..."16

Ao lado do desenho central, Marcelo colocou pedras que ele encontrou no

caminho de sua ida a margem do rio Tietê. Este agrupamento traz também além da

questão da apropriação das pedras, o impulso colecionador e catalogador ( no caso

dele) que move e moveu vários artistas viajantes.

Nas palavras de Marcelo:

Evocar uma presença através de uma ausência é fazer um exercício de construção através de contraposições – e essa é minha forma de pensar o fazer artístico. O lugar geométrico do eu, como diria Ítalo Calvino, repousa na intersecção entre a linha do horizonte – a paisagem – e a linha vertical contida nela – meu corpo. Desse cruzamento, resultam as medidas

15

SOBRAL,Divino.Texto catálogo da exposição Arrasto, Memória submersa ou retida nas margens do rio que correm ao interior,2015 www.marcelomoscheta.art.br/ data de acesso: 11/04/2016 16

SOBRAL, Divino. op. cit,.2016.

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necessárias para se construir um espaço/obra pautado na paisagem como referência para o eu. (MOSCHETA, 2015.)

O que gosto ao trabalhar com esses dados da memória, uma busca a

biblioteca pinçando imagens e referências,como as pedras de Marcelo, é um estado

de não melancolia acerca do passado, apenas um indício de reconstrução

fantasiosa que também acontece "através de contraposições", como fala Moscheta,

de reativações.

Figura 9 - The Eyes of Gutete Emerita, Alfredo Jaar, 1996 / 2000.

Fonte: www.alfredojaar.net.

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Na instalação de Alfredo Jaar, The eyes of Gutete Emerite, alguns elementos

relacionados as questões alegóricas operam com grande capacidade de articulação

entre si, criando uma espécie de narrativa que opera entre o espectador e a

situação.

Projeto Ruanda, foi o nome dado à série de trabalhos que Jaar desenvolveu

ainda sobre o impacto de sua primeira de muitas outras viagens feitas a Ruanda

durante quase 10 anos.

O projeto inicia no ano de 1994, o mesmo ano em que ocorre o massacre.

Inicialmente, Jaar e seu assistente percorreram o país no intuito de fotografar e

documentar a tragédia, que não teve a devida importância nem para mídia, nem

para os políticos das grandes nações no poder de então. Jaar tira uma inúmera

quantidade fotos mas, ao retornar da viagem, diz que não pode ver aquelas fotos de

novo. 17

"I remember her eyes, the eyes of Gutete Emerite."18

E o que ele se lembra, sem voltar a ver todas as fotos que tirou, são os olhos

de Guetete Emerite. Esses olhos são como uma síntese possivel da viagem e do

massacre, pois ela viu a morte dos filhos e do marido. E, pelos olhos dela, nós

vemos o horror. Sem de fato vê-lo. Mas podemos imaginá-lo. E podemos ver a dor e

o sofrimento embutidos ali. Antes desta instalação, Alfredo havia desenvolvido

outros trabalhos com os olhos de Gutete. Mas na instalação, a fragmentação desse

olho em mais de mil slides colocados sobre uma caixa de luz, faz exatamente essa

ponte de ligação entre: quem olha, que olha os olhos de Gutete, e de Gutete que viu

aquilo do qual não se pode falar. Ocorre na instalação um processo discursivo

entremeado de olhares extremamente fortes e potentes. Também uma operação

mental difusa que se relaciona com a escolha dos olhos dessa mulher, quando Jaar

retorna da viagem e diz que não pode ver as fotos de novo, mas que se lembra dos

olhos dela. Essa escolha, parece conseguir fazer coexistir desordenadamente o

motivo da lembrança e da escolha dos olhos.

17

STRAUSS, Davi Levi. A sea of Griefs is not a proscenium: on the Rwanda projects from Alfredo Jaar. Data de acesso: 15 de maio de 2016. Tradução nossa. http://www.alfredojaar.net 18

Ibidem, Strauss, Davi Levi. Apud Jaar, Alfredo.

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Essa ordem em desordem é também o que Walter Benjamin vai, ao falar

sobre Baudelaire, a respeito do funcionamento desta mente alegórica, um

funcionanmento que opera a partir de uma certa junção de coisas aparentemente

desordenadas:

A mente alegórica seleciona arbitrariamente do vasto e desordenado material que seu conhecimento lhe oferece. Ela tenta concordar uma peça com outra, para ver se elas podem combinar-se. Esse sentido com essa imagem, ou essa imagem com esse sentido. O resultado nunca é previsível, já que não há mediação orgânica entre os dois. (BUCHLOH, 2.000,p.8)

No caso da Instalação de Jaar houve uma colagem do mesmo elemento, com

uma repetição exaustiva dos olhos Gutete. Aqui, mais uma vez são perceptíveis os

dois elementos com os quais temos discutido: repetição e fragmentação. No interior

dessa operação, está a premissa de dar a ver aquilo que ninguém quer ver, e da

construção narrativa (e, neste caso, política) daquilo que os jornais não viram - no

caso omitiram - sobre o massacre que estava em curso em Ruanda. Assim, o

trabalho se dá na dimensão onde o alegórico é também como um texto a ser

decifrado.19 Um discurso que se coloca de maneira indireta, nas entrelinhas, numa

comunicação entre o significado e o significante.

Rosalind Krauss menciona no 1º capítulo do livro Os Papéis de Picasso,

sobre como o estado deambulatório do signo no sentido rotativo assume a questão

da própria significação. Onde se estabelece como um jogo entre seus

componentes, no qual " a circulação do signo é uma norma da relatividade."20

Ela argumenta que nas primeiras colagens feitas por Picasso, no final do ano

de 1912 estabeleceram uma espécie de campo binário onde, por entre suas dobras

reestabelece seus significados e as ativa na contramão dos significantes. O que

primeiramente Krauss atenta nessa questão é o fato de que as colagens de Picasso

não encontram nenhuma semelhança com um referente no mundo "real".

19

OWENS, Craig. op.cit.,p.7. 20

KRAUSS, Rosalind. Os papéis de Picasso, Ed. Iluminuras,2006,p.45

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Com isso ativa esse novo aspecto aberto do signo , sem a fixidez " que o

semiólogo chamaria de uma condição icônica" 21 . Com esta abertura, voltamos

aquela condição alegórica de um certo "simbolo suplantado", com a obra aberta a

reconfigurações. No caso das colagens de Picasso, essa reconfiguração é clara na

medida que ele vai juntar fragmentos de jornal numa colagem.

Cada fragmento de jornal forma o signo de um significado visual; então quando junta sua extremidade a de outro, ele se reforma e seu significado muda. (KRAUSS, op.cit.,p.43)

E é exatamente quando seu significado acaba por se reestabelecer como

outro, que aparace o processo da narrativa interna do trabalho, ou seja o fator entre,

daquilo que se quer dizer mas não se diz diretamente. E esta é uma das

características alegóricas mais profundas, a intertextualidade. No caso das colagens

de Picasso, esse jogo chega a ser quase literal de se perceber, pois as colagens são

feitas à partir de papéis de jornais, papéis esses que ele manteve por inúmeras

vezes na íntegra, colunas inteiras visíveis, o que se subentende que deve -se ler o

que está escrito. O jornal é o veículo por onde se articulam diversas vozes, fazendo

conviver no mesmo espaço do papel palavras por vezes dissonantes.

Com tal afirmação retornamos de novo na questão sobre o que a própria

palavra alegoria quer dizer.

21

Krauss, Rosalind.op.cit.,p.46.

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Figura 10 - Copo e garrafa de Suze, Pablo Picasso,1912.

Fonte: The Albrecht-Kemper Museum of Art | Saint Joseph - Estados Unidos.

Ao juntar elementos fragmentados se dá o processo discursivo do entre. Entre

aquilo que se quer dizer e aquilo que de fato se diz, a alegoria tem como uma de

suas caracteristicas fundamentais um processo de dualidade. E especificamente por

conta desse processo duplo é que vai afirmar o lugar da narrativa que se estabelece

nesse entremeio. Para Jule Pepin, "a alegoria diz uma coisa, mas quer dizer

outra".22

Ou seja, ela é o oposto da comunicação direta pois paradoxalmente revela e

esconde seus significados simultaneamente.

No caso do trabalho Jardim de Aclimatação XXI, a mesa funcionou como

elemento aglutinador semelhante à folha de papel de Picasso, ou ainda à mesa de

luz de Jaar.

22

MACEDO Lamb, Silvana Barbosa, op. cit.,p. 30

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Figura 11 - Jardim de Aclimatação XXI, Débora Mazloum, Jardim Botânico do Rio de

Janeiro, 2015.

Fonte: acervo da artista.

E, como uma colagem que opera numa diversidade de tempos, na

transitoriedade de espaço, o trabalho se configurou na colocação de diversos

pequenos objetos sobre ela.

É exatamente essa mediação entre coisas, entre tempos a virada textual que

estabeleço vai sempre buscar esse dar em "lugar algum", desorganiza o espaço da

narrativa histórica linear, questiona o discurso oficial, tentando exacerbar a própria

circularidade. Com a narrativa desencontrada é gerada a possibilidade de que o

espectador possa se perder.

Essas intertextualidades que o trabalha pretende discutir, busca abordar por

meio da colagem de objetos, de desenhos, de híbridos (criados em ateliê ,

laboratório), de plantas falsas, de imãs, de pinturas apropriadas a circularidade

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36

inerente ao se trabalhar com diversas camadas de história, a ficção de um jardim

artificial .

Colocar os objetos em contraposição uns com os outros é criar afinal esse

espaço simbólico do entre, que estabelece a intertextualidade e enfatiza a ficção. É

nesta junção improvável que se deu de fato, a invenção e tentativa de um processo

que eu desconhecia, na verdade não somente de um só processo, mas de vários.

Para Walter Benjamin, ocorre é que na montagem / colagem todos os

procedimentos de uma mente alegórica são colocados a vista, por assim dizer:

"apropriação e subtração do sentido, fragmentação e justaposição dialética dos

fragmentos, separação do significante e do significado. "23

Figura 12 - 350 pontos rumo ao infinito. Tatiana Trouvé, 2009.

Fonte: Sculpture Magazine, Fevereiro de 2010.

23

BUCHLOCH, Benjamin. op.cit., pag. 8

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37

No trabalho de Tatiana Trouve, 350 pontos rumo ao infinito, apresentado em

diversos lugares dentre eles a 29ª Bienal de São Paulo, 350 pêndulos encontram-se

no limite da tenção de se chocarem com o chão. Esse limite que coloca o trabalho

em um eterno estado de suspensão se dá pela força de um campo magnético

situado em baixo do solo, invisível para nossos olhos, fazendo quase como que uma

mágica. Essa suspenção, que se configura no entre da iminência de colisão é uma

suspenção que tende a alargar o tempo, fazer com que ele simule uma paralização

e por isso vá ao infinito, assim como ressalta o inerente estado pré-choque dos

pêndulos no chão.

Trazer a problematização do infinito se dá tanto por causa da fragmentação,

que pode se desdobrar ad eternum, tanto por causa da apropriação na medida das

configurações intermináveis do outro. No sentido da fragmentação, cada fragmento

é sempre como um universo. Um pequeno microcosmo que se encerra dentro de si

mesmo significados diversos. E a partir da justaposição feita pelo encontro de vários

microcosmos novas articulações se refazem.

Para Tatiana, nesta instalação a percepção do infinito estaria na disposição

dos pêndulos, arrumados de tal forma no espaço à dar a sensação de um chão

esférico. Em entrevista concedida para a revista Art in America, a crítica Francesca

Paolo, sugere sobre a instalação: "parece que joga com a idéia de onde estamos no

mundo, sugerindo que estamos sempre um pouco fora do centro." 24 Com esta

colocação, voltamos a questão da fragmentação do sujeito contemporâneo e essa

menção ao espaço esférico sugere a idéia de universo. E o universo seria então o

espaço infinito por natureza.

Parece até uma questão de metafísica. Que todo espaço finito encerra em si

mesmo uma infinidade de desdobramentos. Calvino, este autor que me acompanha

durante todo o mestrado, afirma no seu ensaio sobre a exatidão sobre a questão

paradoxal do infinito do universo. Em sua argumentação aponta que nas palavras de

Giordano Bruno, "cósmologo visionário que vê o universo como sendo infinito e

24

PIERPAOLO, Francesca. Trouve, Tatiana. Entrevista realizada em 2010. Disponível em: http://www.artinamericamagazine.com/news- features/magazine/tatiana-trouv. data de acesso: 15/05/2016

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composto de inumeráveis mundos, embora não possa afirmar que ele seja

totalmente "infinito", porque cada um deles é em si finito."25

Cada pedaço é um todo, e o consequente reconhecimento de que ao mesmo

tempo o todo encerra sobre si mesmo somente a possibilidade de representação de

uma parte, pelo avesso deixa entrever que apenas sendo parte deste infímo é que é

gerado um processo sem fim de fabricação de outros fragmentos e assim por diante.

No caso do trabalho Jardim de Aclimatação XXI, cada um dos objetos

colocados na mesa encerra em si mesmo um pequeno mundo, uma pequena ordem,

como um microcosmo. A relação dos agrupamentos realizados e justapostos sobre a

mesa de fato tende ao que no Jardim Botânico chamam de "Unidades de

Conservação". Assim, existe uma certa ordem sobre o universo aparentemente

desorganizado. É como se as espécies dialogassem com seu entorno, e para tanto

foi criado uma base em cima da mesa, de vidro ou de outro material de modo que

ressaltasse essa configuração.

25

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milenio,1990,p.85.

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Figura 13 - Jardim de Aclimatação XXI, fragmento. detalhe da Instalação,2015.

Fonte: acervo d artista.

"A princípio eles parecem orbitar pelo espaço cristalino como inúmeras

facetas radiantes de uma jóia ausente..."

"A princípio eles circulam no espaço cristalino com a brancura como seu

meio, tanto um lugar real quanto a abstração de um sistema..."

"A princípio eles parecem circular pelo ar cristalino como tantas facetas leves,

as luzes saídas de um invisivel lustre rotatório..."

"A princípio eles orbitam pelo sistema da colagem, cada fragmento em

constante jogo semântico...

"A princípio eles parecem girar pelo espaço límpido com muitas facetas

cintilantes pela água..."

"A princípio eles parecem se agitar no espaço vazio, aterrisar com leveza na

superfície abstrata, folhas amareladas sopradas pelo vento, algumas de cabeça para

baixo, outras na posição certa. .."

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Esta foi a forma com que Rosalind Krauss iniciou vários parágrafos no

capítulo sobre as colagens de Picasso e a que me refiro nesta dissertação, chama-

se a Circulação do Signo.26

O que me pareceu interessante nessas analogias iniciais feita por ela é a

forma de remeter ao elemento circular uma certa propriedade do vidro ou melhor de

um cristal multifacetado em suas diversas variações. E a instalação Jardim de

Aclimatação XXI é feito de diversos tipos de vidros diferentes, como no detalhe da

foto da página acima. Assim como para Calvino:

O cristal, com seu facetado preciso e sua capacidade de refratar a luz, é o modelo de perfeição que sempre tive por emblema, e essa predileção se torna ainda mais significativa quando se sabe das propriedades da formação e do crescimento dos cristais se assemelham às dos seres biológicos mais elementares, constituindo quase uma ponte entre o mundo mineral e matéria viva. (CALVINO, op.cit. 1990, p.86)

Dentro desta circularidade que percorre o trabalho, também me pareceu

interessante estabelecer uma certa unidade com dois autores já citados, e dessa

forma fazer uma colagem no próprio texto.

Pois, talvez o cristal, o vidro ou aquilo que é translúcido seja o maior símbolo

deste espaço que pode se localizar entre as coisas.

26

KRAUSS, Rosalind. op.cit, 2006. p.43 - 79.

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2 INVESTIGAÇÕES ACERCA DE UM GABINETE DE CURIOSIDADES

CONTEMPORÂNEO

Em períodos de mudanças aceleradas, a história não se

deixa ser mais compreendida como um ponto fixo, mas como

ponto de partida, da mesma maneira como mapas nunca serão

territórios de fato.

(REDONDO, 2013, p.25)

Figura 14 - Ponto cego, Instalação sonora, escultura de madeira, espelho e

intervenção para revelar galeria subterrânea do edifício, Laercio Redondo, 2013.

Fonte: Casa França Brasil, 2013.

Na exposição intitulada Conto sem Reis, Laercio Redondo propõe um

pensamento acerca de como trabalha com a história nos dias de hoje. Nela o artista

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instala , na sala principal da Casa França Brasil a palavra REVOLVER, feita de

madeira.

A palavra é como uma síntese do pensamento relacionado a uma forma de se

trabalhar com a história, e essa se dá no "sentido de investigar, examinar".27 No

trabalho intitulado "Ponto Cego", a palavra somente é legível ao espectador a partir

de alguns pontos de vista, que variam em função da posição. O interessante desse

jogo de olhar conforme a posição é também uma colocação a respeito da forma de

se trabalhar com a história. Nem todas as coisas são vistas de todos os ângulos, e

algumas permanecem como que soterradas. Para Frederico Moraes, é como dar voz

aos inauditos onde "histórias contadas sobre a cidade devem ser repensadas fora da

ótica oficial."28

Esses são dois pontos importantes que serão desenvolvidos ao longo do

trabalho: a questão do olhar e a questão de como se ver e trabalhar a história.

História que questiona a própria história, a história hegemônica a história vigente. É

como uma proposta contrária, andar pelas frestas, buscar outros caminhos possíveis

que lidem com essas perspectivas. Assim, revolver, remexer o passado é um

processo constante em minha pesquisa, que parto, também, das apropriações desse

passado para revirá-lo, na tentativa de um novo constituir-se. Esse constituir-se do

trabalho é atravessado por tempos diversos, que se mesclam nessa intenção de se

fazer um outro tempo, um tempo hibrido.

No caso da instalação Jardim de Aclimatação XXI, foi possível organizar

sobre uma mesa os diversos objetos, desenhos, impressões e etc., que

configuraram essa mistura através de uma justaposição. Inserida nesta ideia é a

vontade de ver o tempo e a história de uma forma não linear, não cíclica, que não

englobe um passado presente e futuro bem definidos. Como para Peter Paul

Pelbart, onde “o tempo contém uma infinidade de mundos”29.

Nesse redemoinho de lidar com a história de maneira um tanto desordenada,

a própria história se torna quase como que uma abstração.

Walter Benjamin argumenta sobre a perspectiva de um historiador dialético,

que conseguisse estabelecer camadas e conversas outras sobre o pensamento

27

REDONDO, Laercio,site do artista. 2013. Disponível em: laercioredondo.com/pontocego. Acessado em: 14 de out. de 2015. 28

COELHO, Frederico. Catálogo da exposição, Contos Sem Reis, 2013,p. 11 29

PELBART Peter Pál, O tempo não reconciliado,2010,p,57

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histórico, fazendo a convergência de diversos tempos diferentes, estabeleçendo um

diálogo entre história e pessoas. Pensamento esse que não seria de maneira

nenhuma linear, e sim faria conversações entre tempos distintos. No prefácio escrito

por Paulo Sergio Rouanet sobre o texto Drama Barroco Alemão, de Benjamin, ele

explica:

A idéia de que o termo “origem não designa o vir-a-ser daquilo que se origina e sim algo que emerge do vir a –ser da extinção”, corresponde ponto por ponto a tese de que o historiador dialético deve libertar o objeto histórico do fluxo da história continua, salvando-o sob a forma de um objeto mônada: fragmento de história, agora intemporal, que o olhar de medusa do historiador mineraliza, transformando-o em natureza, e como tal dá acesso a pré-história do objeto e a sua pós-história. Na perspectiva da história descontinua, a única verdadeiramente dialética, não se pode portanto falar em gênese, que supõem o vir –a –ser e o encadeamento causal, e sim em origem, que supõem um salto no ser além de qualquer processo. (ROUANET,1984,p.19)

Ao agrupar os elementos em cima da mesa, o trabalho se configurou como

uma história que não tem uma linha reta, mas várias. Estabelece conversas de

"entretempos", tão importante para a criação dessa outra possibilidade temporal,

que cria diálogos para todos os lados. Assim, é como se existe essa tentativa de

olhar a história pelo avesso ao perceber que: “Escrever a história é assumir que ela

poderia ter sido escrita de maneira totalmente outra”, como disse Arlette Farge num

seminário para historiadores em Paris. 30 Ao tratar a história de maneira

fragmentada, escolhendo pontos distintos, é uma forma de desconstrução da

mesma para a construção de um novo sentido.

30

FARGE, Arlete, apud Pelbart, Peter. op.cit., 2010, Ed. Perspectiva p.104

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Figura 15 - Jardim de Aclimatação XXI, detalhe da instalação, Débora Mazloum,

2015.

Fonte: Acervo da artista.

Nestor Garcia Canclini no seu livro Culturas Hibridas tenta estabelecer as

questões relacionadas ao hibridismo e os paralelos realizados no âmbito

sociocultural dos países latino-americanos. No caso dos meus trabalhos, tanto no

Jardim de Aclimatação XXI como nas Paisagens Hybridas, os híbridos são tratados

de forma semelhante: a primeira num sentido quase tautológico, busca relacionar

materiais que a principio não conversam fazendo uma espécie de pesquisa

laboratorial (científica) em ateliê de processos relacionados a fusão de materiais. A

segunda característica é com o hibrido de tempo, que dialoga com essa forma não

linear de lidar com a história. Ao se questionar sobre essa suposta veracidade do

discurso histórico hegemônico, tende-se entrar numa esfera do experimentalismo,

de dissolução das fronteiras, onde acaba por questionar-se acerca das esferas de

produção que caracterizam específicamente o local em detrimento de uma cultura

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global. Contudo, entendo ser a questão poética do tempo, assim como as suspeitas

com relação ao discurso dominante da história e portanto algo como uma libertação

da idéia de verdade que busco enfatizar em meus trabalhos ao relacioná-los as

questões hibridas. Canclini vai colocar que:

Os artistas que assumem as novas condições de comunicação e verossimilhança da cultura suspeitam de todo relato histórico "governado por uma Verdade ( de classe ou nação homogênea). Suas obras, fragmentárias ou inacabadas, buscam desenfatizar os gestos sociais. Ao escolher uma relação questionadora ou dubitativa com o social produzem uma contra-épica. Se já não há uma Ordem coerente e estável, se a identidade de cada grupo não se relaciona com um único território mas com múltiplos cenários, nem a história se dirige a metas programáveis, as imagens e os textos não podem ser se não fragmentos, collages "mescla irregular de texturas e procedências que se citam umas as outras disseminadamente. (CANCLINI, 2013,p.370.)

Para Canclini, o hibrido seria mais uma categoria a ser colocada no âmbito

possivel dos procedimentos alegóricos, por tratar a história por meio de seus

fragmentos, por estabelecer colagens diversas e se apropriar de modelos

indiscriminadamente. E dessa forma tende-se a deslocar da suposta narrativa de um

lugar, visto que perde suas características específicas que se relacionam no âmbito

do local, e se transformam no não lugar, ou no lugar da heterotipia, conforme

veremos no último capítulo.

E essa configuração, essa vontade de mistura tempos diversos se deu em

parte pelo aprofundamento da pesquisa do universo dos artistas viajantes. Foi a

partir dali que descobri a enorme gama de possibilidades e interesses que os

gabinetes de curiosidades carregavam. Ao participar de uma residência artística no

Jardim Botânico do Rio de Janeiro, iniciei um outro processo de pesquisa histórica

na biblioteca do jardim acerca de sua criação. Na pesquisa percebi o quão próximos

eram todos esses espaços. A inauguração do Jardim Botânico era próxima a

chegada da corte no Brasil e consequentemente se ligava a renovação da cidade do

Rio de Janeiro. Me chamou especialmente atenção o mapa do jardim, e sua

alteração ao longo do tempo onde neste era visível o próprio percurso da história da

formação de diversos jardins. Era como se a história do Jardim do rio, também

estivesse relacionada a história e a construção de todos os jardins, já que suas

mudanças foram marcadas por períodos importantes da construção dos mesmos.*

Assim quando Dom João resolve por amor as plantas, instituir um Jardim de

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Aclimatação, para checar se as plantas vindas de países exóticos ( China, Índia,

Ilhas Mauricio etc..) poderiam sobreviver ao clima nos trópicos, ele formou um

jardim diferente de qualquer outro que pudesse existir no Brasil à época.

Durante várias décadas no Jardim Botânico do Rio quase não existiam

plantas nacionais. Em vários decretos, Dom João afirmava a implantação de um

jardim de plantas exóticas, como no Alvará de 1º de março de 1811:

"...Estabelecimento de um Jardim Botânico de cultura de plantas exóticas, que

mando seja formar na dita fazenda da Lagoa...."31

No entanto o jardim pode ser visto de uma forma um pouco mais lúdica, um

lugar de utopia32, onde se poderia armazenar todos os tipos de plantas do mundo,

assim como um grande gabinete de curiosidades. A partir disso, começou-se a

estruturar o pensamento de semelhança existente entre esses dois locais.

Os viajantes do séc. XIX faziam diversas travessias pelo dito mundo novo, e

suas coletas, seus desenhos iam sendo armazenados em salas com grandes

estantes, mesas e prateleiras, assim como as plantas e animais oriundas também

dessas mesmas colônias. O pensamento que se estruturou e ganhou forma acerca

da idéia de que de que o Jardim Botânico foi e ainda é como um grande gabinete de

curiosidades a céu aberto, configura um paralelo entre esses espaços. A idéia de se

mostrar ao mundo os objetos exóticos de outras culturas, as plantas adquiridas em

países distantes, trata de um lugar de fascínio onde uma estrutura de poder

enquadra os saberes, normatiza os povos e acumula conhecimento por uma

sociedade dita mais avançada. O acúmulo de posses no séc. XVII, diz respeito

também a formação do individuo burguês, e sua noção de propriedade. 33 Os

gabinetes de curiosidades e o inicio da formação das coleções estão neste âmbito

de uma cultura que preza por um ideal de riqueza calcado na acumulação.

No entanto, o enfoque do trabalho é afirmação e a percepção que essas

coleções devem ser vistas como representações, estatutos fictícios de uma

realidade, feita como recorte civilizacional.

Para Baudrillar citado por James Clifford, “O ambiente de objetos privados e

sua posse – dos quais as coleções são uma manifestação extrema - são uma

31

GASPAR, Braga, Claudia e Barata, Carlos Eduardo. De Engenho a Jardim. 2008,ed. Capivara,p. 47 32

FOUCAULT, Michel. O Corpo Utópico e as Heterotopias, 2013,N-1 edições p. 24 33

CLIFFORD, James, Colecionando Arte E Cultura, 2011.Ed. Humus, p.150.

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dimensão da nossa vida que é tanto essencial quanto imaginária. Tão essencial

quanto os sonhos.”34.

Esta relação um tanto mágica que acredito dizer respeito em meus trabalhos,

é a tentativa de construção do espaço heterotópico. Pois como para Foucault, a

sobreposição de tempos vai de encontro ao espaço quase ficcional, do jardim, da

biblioteca.

Nas palavras dele:

...a idéia de tudo acumular, a ideia de, em certo sentido, parar o tempo, ou

antes deixá-lo depositar-se ao infinito em certo espaço privilegiado, a ideia de constituir um arquivo geral de uma cultura, a vontade de encerrar todos os tempos em um só lugar, todas as épocas, todas as formas e todos os gostos, a idéia de constituir um espaço de todos os tempos, como se este próprio espaço pudesse estar definitivamente fora do tempo ,essa é uma idéia totalmente moderna: o museu e a biblioteca são heterotopias próprias as nossas culturas. (FOUCALT, op.cit. 2013, p,25.)

É esse espaço que me interessa, esse espaço de uma tentativa impossível de

armazenar ou de mostrar todos os saberes, toda uma cultura, todos os tempos.

O trabalho se colocou no entretempo do gabinete que ainda não contavam

com as formatações dos museus, suas catalogações e quantificações. Esta foi uma

escolha estética e conceitual.

Em parte porque a própria história dos Gabinetes de Curiosidades está como

que inserida no trabalho.

Haviam duas nomenclaturas para esses gabinetes que eram também

chamados de câmaras de curiosidades: Câmaras das Maravilhas (Wunderkammer )

e Câmara das Artes ( Kunstkamer). Essas diferiam entre si por conta de seus

objetos. A câmara das maravilhas era mais comumente encontrada no norte da

Europa e era constituída por um acervo mais exótico, com coisas bizarras como

sereias empalhadas, unicórnio e tubarões presos no teto das abóbodas.35 A outra

Câmara das Artes tinha um apelo mais cientificista e portanto menos exótica, mas

ainda seguindo a simples necessidade de colecionar e juntar. Ao longo dos séculos

seguintes, os gabinetes de curiosidades foram se tornando, na medida em que a

34

BAUDRILLAR, Jean, apud. Cliford, James,op.cit,2011,Ed. Humus, p. 153. 35

Moro, Fernanda de Camargo, O gabinete de Curiosidades de Domenico Vandelli, 2008, p. 20

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filosofia iluminista e a racionalização do pensamento ganham espaço, um lugar de

classificação e ordenação do mundo que surgia.

Com isso, o conceito de "teatro do mundo", símbolo de uma época e muito vinculado a um imaginário fantástico, foi esvaziado dos seus personagens: o crocodilo deixou o céu de estrelas- do-mar para se juntar aos irmãos da sua espécie no gabinete de história natural, a sereia mergulhou novamente no seu reino da ilusão.... (MORO, , 2008, p. 20 )

A mesa que acabou por se configurar como um gabinete, se tornou a moda

dos antigos gabinetes, antes ainda dessa tentativa de ordenação que pairou sobre o

séc. 19. É como se esse jardim de aclimatação, estivesse ligado ao fio imaginário

das Câmaras das Maravilhas, com seus objetos exóticos e suas consequentes

misturas.

Mistura essa, de todos os tempos, que se configurou importante em minha

busca, pois dada a liberdade de junções que o gabinete permite, pude fazer buscas

em meu próprio ateliê e com isso rever de uma certa maneira uma produção

adormecida.

Revisitei o meu próprio espaço e pude perceber quanto tempo de maturação

é necessário para que os objetos, as coisas façam algum sentido. Eles estavam ali,

esperando a data certa de saída para o mundo. Portanto a mesa, esse elemento

capaz repousar as coisas teve um grande papel aglutinador, estruturante. Tal qual a

mesa que Luiz Zerbini colocou no hall central da exposição intitulada "Amor".

Zerbini, como disse Luis Camilo Osório, tinha a mesa como uma grande peça

escultural por onde se juntavam e faziam um aglomerado de suas referências em

que muitos elementos eram trazidos do próprio ateliê do artista. É como um gabinete

de curiosidades que expõem a "memória afetiva" do artista: "a mesa estrura-se a

partir da diagramação em cartela e funciona como memória do processo criativo."36

36 OSÓRIO, Luis Camilo, catálogo da exposição Amor, 2014 p. 9.

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Figura 16 - Exposição Amor de Luiz Zerbini, realizada no Mam- Rio de Janeiro,2014.

Fonte: catálogo da exposição.

Na mesa de Luis Zerbini tal qual a mesa do Jardim de Aclimatação XXI foi

organizada com a tentativa de criar e estabelecer alguns grupos, como funcionam

como a organização dos Jardins Botânicos, as já citadas no 1º capítulo "Unidades

de Conservação". Cada agrupamento tinha ali uma tentativa de aproximação não

exatamente por temas mas por universos que se assemelhavam. Terras impróprias

para um lado, plantas de ferro com ferrugens em outro e assim por diante. Com essa

mínima configuração foi possível estabelecer alturas diferentes para cada grupo e

assim aproximar a configuração de um jardim na mesa.

A mesa pode ser equiparada também à um grande espaço liso, que como

para Deleuze e Guatarri é um espaço que possibilita crescimentos diversos com a

liberdade de se percorrer o trajeto e escolher suas pausas. O deserto, espaço livre

por excelência do nômade é o espaço no qual o viajante pode também se perder.

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Assim como o trajeto que o espectador deve fazer em volta da mesa, escolhendo

pontos de interesse para olhar o trabalho.37

Tanto no liso como no estriado há paradas e trajetos, mas no espaço liso é o trajeto que provoca a parada, uma vez mais o intervalo toma tudo, o intervalo substância.. (DELEUZE, GUATARRI,2012, p. 197)

É interessante observar e perceber a correlação de que este espaço liso é

feito pelo nômade, viajante por excelência. Nesse sentido, essa viajem é feita sem

sair do lugar "real", assim como foram feitas as Paisagens Hybridas. Volto aqui

também ao conceito pensamento = viagem. Viajar na própria cidade, no arquivo,

paisagem como representação do pensamento. Essa viagem que se propõem ao

redor da mesa tenta, por meio dessa adição de camadas e substratos do tempo,

alargar a experiência do presente. Como se em cada espaço, em cada unidade de

conservação que o espectador possa parar, o tempo ali se estendesse e abrisse e

assim pudesse experienciar o andar como um "flaneur" que passeia por ali. Calvino,

, faz uma análise com relação a escrita sobre esse processo que se propõem alargar

o tempo:

A divagação ou digressão é uma estratégia para protelar a conclusão, uma multiplicação do tempo no interior da obra,uma fuga permanente; fuga de quê?...(CALVINO,op. cit.,p. 61)

37 Deleuze, Gilles e Guatarri, Felix, Mil Platôs,2012,p.197.

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3 CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO CONCEITO DE REAL

“A desobediência como método de

trabalho.”

Felipe Ehrenberg.

Figura 17- Herbario de plantas artificiales, Expedição Shangai, Alberto Baraya,

2012

Fonte: Galeria Nara Rosler, São Paulo.

Alberto Baraya artista colombiano que no ano de 2002 inicia um trabalho que

se relaciona a pesquisa dos artistas viajantes. Baraya sai em viagens pelo mundo,

assim como os botânicos do séc. XIX, mas ao invés de coletar espécies nativas,

sementes locais ou plantas exóticas, busca por plantas artificiais em sua maioria

made in china para compor um Herbário "contemporâneo". Uma catalogação das

plantas de plástico existentes em lugares distintos.

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Baraya observa e trabalha de maneira bastante crítica em relação ao modelo

de catalogação difundido e criado no séc. XVIII e vigente até hoje. Seu trabalho

passa pelo questionamento acerca da questão do real e do colecionismo. Numa

entrevista concedida para sua exposição em São Paulo, ele fala que: "Botânicos e

exploradores já existem. Eu só mudei um dos objetivos para apontar para o próprio

mecanismo. É um projeto absurdo, que aponta para o absurdo de se catalogar o

mundo inteiro."38

Com esta observação percebe-se a critica relacionada as viagens botânicas

assim como essa crença na possibilidade de catalogação de todas as espécies. Esta

ideia de catalogação, tão em voga para os artistas viajantes, tem inicio no séc. XVI a

partir do projeto enciclopédico. Para tal, são realizadas diversas expedições ao

chamado Mundo-Novo, nas quais os artistas viajantes se inserem na configuração

de retratar esses novos continentes, de maneira mais fiel possivel. O tratado de

botânica de Carl Von Linné, ou Lineu, é publicado pela primeira vez em 1735, e trata

da classificação taxonômica dos reinos em 3 distinções: o animal, o vegetal e o

mineral.39

Tanto o tratado de botânica de Lineu, como a estrutura dos gabinetes de

curiosidades e mais a frente as separações que criaram os museus em diversas

categorias, sempre me pareceram um pouco irreais. Irreais no sentido, não só como

para Baraya, da loucura de catalogar o mundo inteiro, assim como da perplexidade

de dar conta de uma representação histórica e verídica única da natureza e seu

efeito de real. Esse lugar onde se colocam essas grandes representações,

paisagens pitorescas, destinos distantes, plantas exóticas, animais-monstros e as

próprias lâminas botânicas, exercem e exerceram sobre meu olhar uma espécie de

sonho, uma alegoria, uma névoa que desagua em ficção tencionando o real.

Demonstra essa vontade racional de organizar, catalogar e separar por espécies.

Alberto Baraya parece compartilhar desse olhar de estranhamento sobre as

representações. Nas palavras dele:

38

BARAYA, Alberto. 2013. Visualisado no site: Artsy.net. acessado em: 12/06/2016. 39

MARQUEZ, Renata, Geografias Portáteis, 2009. p. 139. tese de doutorado.

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A lâmina botânica é uma ficção. Mostra algo que nunca se encontraria na realidade. Numa lâmina botânica podem estar a flor e o fruto que nunca dão juntos num mesmo momento, na mesma planta. Ou ainda diferentes estágios de crescimento, da planta que são postos ali como uma condensação de tempo e espaço na figura da lâmina. (MARQUEZ, apud BARAYA, op.cit,p.145).

A lâmina botânica poderia ser entendida então como um híbrido de tempo,

pois ao fazer uma colagem de estados distintos da planta esta se coloca de modo a

justapor tempos diversos. Nesse sentido, se assemelha a idéia de alegoria, pois se

apropria de uma natureza inexistente, fazendo uma junção dessas diversas fases de

crescimento da planta. Configura o estatuto de representação que a mesma carrega

colocando-a num lugar de ficção.

Por conta dessa concepção de entender que tanto a lâmina, quanto o museu

de história natural, os gabinetes ou até mesmo os nossos museus de arte podem ser

olhados como ficções, o trabalho se ramifica e tangencia suas fronteiras ao

aproximar-se do conceito um pouco mais filosófico acerca do que é o real, e como

era o olhar desses viajantes que organizaram essa estrutura de saberes. Esse

universo que circunda as expedições, circula pelo séculos passados que fazem

parte da nossa estrutura de sociedade e fomentam nossa credibilidade num discurso

histórico linear, sem tréguas formatado como conhecemos hoje é delimitado e

classificado a partir do séc. XIX. A história natural, para Michel Foucault, é colocada

entre a distinção sobre o pensamento do homem moderno em relação ao homem do

Renascimento.

Na antiguidade clássica o exótico, os paraísos selvagens das matas nativas,

os monstros dos lagos outros eram vistos de forma espetacular e quase mágicos

nos jardins e gabinetes de curiosidades. No séc. XIX contudo, esses seres

passaram ao domínio da razão, e foram colocados e organizados em quadros, de

modo a situar a formatação da representação da natureza dentro do universo

singular da descrição do visível, onde este articula uma linguagem própria e

pretende excluir a incerteza do exótico por meio de sua nominação e classificação.

Toda uma fórmula de representação de linguagem, baseado nos novos tratados de

ciências formatam esse projeto, onde o olhar é vinculado ao discurso.40 No entanto,

há como um buraco há ser resolvido. Este buraco se situa no momento da

40

FOUCAULT, Michel. A palavra e as coisas,2000. p. 181.

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articulação de um saber, que o separa e classifica, ao invés de somente juntar e

acumular como eram os espaços dos gabinetes. Foi como uma transformação da

"41maneira de como se fazer história." A pergunta formada por esse buraco é: como

se deu afinal a criação dos museus? No início do seu livro As Palavras e as Coisas,

Foucault coloca que:

Este livro nasceu de um texto de Borges.

Do riso, com sua leitura que perturba todas as familiaridades do pensamento...fazendo vacilar nossa prática milenar do Mesmo e do Outro. Este texto cita uma certa enciclopédia chinesa" onde está escrito que: "os animais se dividem em :a) pertencentes ao imperador. b)embalsamados c) domesticados d)leitões e) sereias f)fabulosos g) cães em liberdade h)incluídos na presente classificação i) que se agitam como loucos.

(FOUCAULT,,2000,prefácio).

O maravilhoso dessa observação, foi perceber que as coisas podem ser

nomeadas e classificadas de diversas formas. A instituição, naquilo que a palavra

quer em si dizer - instituir o nome- é múltiplo. Que a organização das coisas do

mundo pode ser qualquer uma, apenas foi acertado no séc. XIX houvesse uma

norma vigente, um padrão para legitimação. Robert Smithson, por exemplo, que

também vai questionar essa configuração / formatação do olhar classificatório, faz

uma colocação que ilustra perfeitamente a clareza do artifício da representação que

opera nesses espaços: "Não há nada de natural no museu de história natural, a

natureza é simplesmente mais uma ficção dos séc. XVIII e XIX."42

O estatuto de ficção que opera nos museus de história natural, nos museus

de arte, museus etnográficos e afins passam a organizar de forma sistemática as

representações, quando deslocados do seu ambiente privado das coleções e

começam, assim, a tecer a rede imbricada do estatuto do verossímil, do real, da

história atestada e confirmada pelo espaço que a circunda.

Entender a construção das coleções implica também perceber as questões

relacionadas ao poder estratégico dos Estados e de indivíduos de acumular, reter

41

FOUCAULT,Michel. Ibidem,p.180 42

SMITHSON, Robert,apud,Marquez, Renata, op.cit, p.93.

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55

saberes e demonstrar soberania por tanta as vezes em cima de outros povos e

culturas. A partir deles, afirmar a primazia de um povo e de novo atestar a verdade

daquilo que se configurou real. O individuo burguês é até hoje o individuo das

posses. James Clifford vai esboçar, no texto Colecionando arte e Cultura, sobre

essa necessidade de acumulação e entender como a questão passa politicamente

pela construção da sociedade burguesa no séc. XVI, onde a sensação de poder se

estabelece nesse lugar do ter, algo como "um eu ideal como proprietário"43. Essa

acumulação se estende ao Estado, a cultura, ao outro e aos domínios da natureza.

No Ocidente, contudo, colecionar converteu-se ao longo dos tempos numa estratégia para definição de um "eu", de uma cultura e de uma autenticidade de natureza possesiva."

44 (CLIFORD,op. cit. p,150).

Essa mesma natureza possesiva parece ter sido como um mote inicial para

Marcel Broodthaters, tanto na premissa e vontade inicial de sua prática artística,

quanto do seu desejo-devir de um homem frustrado que não tem posses suficiente

para poder acumular. Douglas Crimp, percebe esse impulso de colecionador e

sua virada criativa (como ele mesmo, Marcel afirma), pela ausência da possibilidade

de organizar uma coleção para si: "...Já que não teria condições de formar minha

própria coleção, por absoluta falta de recursos, tinha que encontrar outra maneira de

lidar com a má-fé que me permitia fraquejar diante de tantas emoções fortes..."45

Marcel, iniciou sua atividade como artista plástico com mais ou menos 40

anos e tinha sido poeta até então, função esta que possivelmente ele continuou a

exercer, ao se relacionar com os estatutos de nomeação das coisas.

...proibida a entrada do povo. Aqui se brinca o dia inteiro até o fim do mundo. (BROODTHAERS, apud. CRIMP, p.184)

43

CLIFORD, James.op.cit, 2011,p.76 44

CLIFORD,James,op. sit.,p.150. 45

DOUGLAS, Crimp, Sobre as Ruínas do Museu, Martins Fontes,2015 p.178

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56

Figura 18 - Marcel Broodthaers, Musse de arte moderne, department des Aigles,

section XIX siecle,1968.

Fonte: Crimp, Dougals, sobre as Ruinas do Museu.

O museu de arte moderna que Marcel inaugurou em sua residência em

Bruxelas, instaura o momento no qual ele se auto-intitula como um dos ministros de

Belas Artes falando de seu gabinete no qual era também o diretor deste museu

inventado. "Sou o diretor. Não ligo. Pergunta. Por que você faz isso?46

A instalação era composta por diversos postais do séc. XIX, embalagens de

quadros vazios, indicações nas portas de entrada como se fosse uma galeria e na

janela escrito a palavra museu.47 O projeto desse museu que permaneceu aberto

46

BROOTHAERS,Marcel apud CRIMP, Douglas, op.sit.,p.185 47

Ibidem,p.184.

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57

durante 4 anos, tem vários departamentos por onde Broothares pode articular a

representação dos vários papéis e agentes que o museu pode assumir.48

Essas várias sessões que Marcel organiza são correlatas aos

desdobramentos que de certa maneira ocorrem na passagem não direta do gabinete

de curiosidades para o museu.

Para Foucault, a grande articulação se dá na forma como se nomeiam as

coisas e portanto "a exposição das coisas em quadro" a partir da linguagem49. Para

Crimp, paradoxalmente é um erro colocar de forma direta a passagem de que o

museu tal qual conhecemos hoje em dia é um desdobramento do gabinete de

curiosidades. Ele afirma que:

Esse tipo de coleção do final do Renascimento não evolui para o museu moderno. Pelo contrário foi espalhado. Sua única relação com as coleções dos dias de hoje está no fato de que algumas de suas curiosidades acabaram se ajeitando em nossos museus.(ou departamentos de museus) de história natural, de etnografia, de artes decorativas, de armas e armaduras, de história...e mesmo em alguns casos, em nossos museus de arte. (CRIM, op. cit.,p.200)

Crimp coloca que de uma certa maneira isso deve ao fator político da

expansão dos territórios feitas pelos regimes imperialistas, consumado pelo "poder

que se constitui através de seus sistemas de conhecimento."50

Tal afirmação das questões relativas ao processo de poder que as coleções

e os museus estabelecem, faz retroceder para a própria pergunta sobre a

veracidade de tal ordenação, onde o que faz Broodthares é colocar esse certo olhar

de desconfiança acerca de "como é estranho o modo pelo qual o mundo ordena seu

conhecimento" 51

48

BISHOP,Claire,op.cit.p.33 . 49

FOUCAULT, Michel,op. cit. p,180, 50

CRIMP,Douglas. op. cit. p. 200. 51

Ibidem, p.200.

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58

Por isso o trabalho de Broodthaers é tão contundente. Ao fazer parte desse

jogo, desordenando o museu a ponto de virar seu diretor, seduz seu público num

envolvente estado de encantamento dúbio e poético. Nessa articulação, Marcel é

um alegórico irônico que questiona o sistema de dentro dele mesmo e se auto-

intitula da maneira como quer. Alegórico, na inversão do sentido onde: a alegoria

fala uma coisa quando quer dizer outra."52

Pois afinal, ele vai afirmar que:

A ficção permite-nos apreender a realidade e, ao mesmo tempo, o que é oculto pela realidade. (BROODTHAERS, apud CRIMP, op. cit,p.177).

Essa capacidade de se posicionar entre os meandros do sistema por meio

da ficção, é aquilo que, Ranciere vai relacionar com a própria necessidade de

invenção da ficção. Para que se possa compartilhar da criação desses outros

mundos, dar a ver as diferenças, onde há a exigência política, de uma necessidade

de ficcionar o real. Se o museu, as lâminas botânicas, o saberes se científicos

podem assumir esse estatuto de real da história, é portanto esse lugar que interessa

de ser questionado e por fim ficcionado.

Nesse caminho, Ranciere coloca que imagens não são "descrições do

visível".53 E é exatamente nesse ponto que se dúvida do projeto enciclopédico e que

se pode questionar as catalogações de Lineu. Foucalt, por outro lado vai afirmar que

que "a história natural não é nada mais que a nomeação do visível."54

O colecionador só é compreendido com seu desaparecimento.

(BENJAMIN, apud CRIMP, op.cit, p.180

Esperamos que nossa fórmula "Imparcialidade mais admiração" seduza a todos. (BROODTHAERS, apud CRIMP, op. cit, p.183)

52 LAMB,Macedo, apud. Pepin, Jules, op.cit. p.30 53 RANCIERE, Jacues, O efeito da realidade e a política da ficção,2009. Revista Novos estudos, Cebrap, p.75-90. 54 FOUCAULT, Michel. op. sit, p.81.

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De Bruxelas a Antuérpia são cinquenta quilômetros. É pouco tempo para se refletir sobre este museu. Pensei, portanto, sem parênteses, sem palavras dentro. (BROODTHAERS,apud CRIMP, op. cit, p.189)

Figura 19 - Fernweh, Tacita Dean, 2008.

Fonte: Marian Goodman Galery.

Fernweh é uma palavra alemã que significa e simboliza a vontade de ir

embora. Um anseio por viajar.55

Retrata a necessidade de partida, o desejo de ir. Fernweh é um trabalho de

fotogravura, no qual Tacita se apropria de pequenas gravuras do séc. XIX

encontradas num mercado de pulgas. Duas operações que Tacita usa no processo

desse trabalho, além da poética implícita em torno da viagem me chamam a

atenção: a apropriação de gravuras antigas encontradas no mercado de pulgas e o

recurso de ampliação das mesmas. Processos muito semelhantes aos quais realizo

em meus trabalhos. Tacita afirma que "esta obra deve ser abordada pelo título."56

55

DEAN, Tacita. A medida das coisas,2013,p.81. Catálogo da exposição. 56

Ibidem, Dean, Tacita, 2013,p, 81. Catálogo da exposição.

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Nesse desejo de ir embora, para além da essência de estar de fato em

viagem, cabe agora perguntar quem está olhando?

O fascínio pelo séc. XIX, talvez esteja aí, nesse universo que permeia esses

olhos, os olhos dos descobridores, os artistas, os botânicos os loucos e os antigos

mágicos cientistas. Pois é a partir do olhar deles, dessa construção de um olhar que

se presume verdadeiro, sem falhas, um olhar que descreve e comprova a realidade

é que são organizados os livros de botânica, as catalogações de plantas e dos

animais, as descrições dos experimentos.

Para Foucault:

...Trata-se em primeiro lugar da não distinção entre aquilo que se vê e aquilo que se lê, entre o observado e o relatado, da constituição, pois de uma superfície única e lisa, onde olhar e linguagem se entrecruzam no infinito..... (FOUCAULT,op. cit,p.56)

Ainda pensando sobre esse lugar que atesta o real, Jonathan Crary no seu

livro Suspenções da Percepção aborda a respeito de um certo "efeito de realidade".

Ele constata que para a conservação dessa percepção de (realidade), a obra de

Manet na "Estufa" pode ser bastante elucidativa, pois nela algumas das questões

mais importante da vida moderna são colocadas: a primeira seria o entendimento da

integridade da visão, a segunda seria como que "obsessão com a unidade da

percepção."57.

Para ele, assim como para Barthe (ainda que se reportando a fotografia) esse

"efeito de realidade, depende a veracidade do discurso histórico."58

Toda a nossa civilização tem o gosto pelo efeito de realidade,o que é comprovado pelo desenvolvimento de gêneros específicos como o romance realista, o diário íntimo, a literatura documental, o artigo de jornal, o museu histórico, as exposições de objetos antigos e sobretudo, o desenvolvimento massivo da fotografia cuja única característica pertinente(frente ao desenho)

57

CRARY, Jonathan. Suspenção da Percepção,2013,p.114. 58

Ibidem.p.155.

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é justamente o fato que significa que o evento representado "realmente" aconteceu. (BARTHE, apud CRARY, 2001,p. 155)

O trabalho Paisagens Hybridas e os objetos óticos tentam dialogar mais

diretamente com esse questionamento, tanto acerca do que é o real como com a

questão dessa suposta integridade da visão. E exatamente por esse paradoxo,

nesse lugar dúbio de quem desenha, é que resolvi me apropriar das gravuras dos

artistas viajantes do séc. 19 e desenhar sobre elas. A série de desenhos Paisagens

Hybridas trata de um processo de pesquisa que engloba questionamentos acerca da

idéia de paisagem, a noção estruturada do tempo e as formas de representação que

temos avaliado.

E nessas gravuras dos artistas viajantes, sugerem também essa idéia de

verdade acerca do mundo que lhes era desconhecido, assim como as lâminas

botânicas. Nesse caminho, nas Paisagens Hybridas, tento refazer o processo de

formatação da realidade, a transfiguração do saber em verdade, o próprio

questionamento do olhar que atesta o que é real e o que não é. A problematização

do discurso da formatação de desenhos que buscavam dar a conhecer um mundo

novo por meio de similitudes nada mais é do que um jogo de representações

calcada no formato de linguagem pré-estabelecido.

As obras configuradas pelos viajantes engendram uma história de pontos de vista de distâncias entre modos de observação, de triangulações de olhar. Mais do que a vida e a paisagem americana exigem que se focalize a expeça camada da representação. .Evidenciam versões mais que fatos. (BELUZZO, 1996,p.10)

E e por um lado o trabalho Jardim de Aclimatação XXI se relaciona com os

antigos gabinetes de curiosidade, ainda sem a estrutura da catalogação que viria no

séc. XIX as Paisagens Hybridas são permeadas pelo universo da nominação.59

59

MARQUEZ,Renata, op. cit.p,139.

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62

Figura 20 - O Antigo Rio Doce, Debora Mazloum, 2013.

Fonte: Acervo da artista.

Nessa perspectiva, busquei com esses desenhos atestar a mesma verdade,

criando a mesma formatação dos desenhos do séc XIX e mantendo até o nome dos

gravadores originais, como uma co-autoria. Coincidentemente, é neste mesmo

séc. onde as coisas são catalogadas, que surgem vários tipos de instrumentos

óticos para a melhor captação do olhar, mediadores que fazem o papel de ampliar o

mesmo. Primeiro o microscópio, depois lupas, óculos, lentes e câmeras...chegando

até a exposições de panoramas em rotundas de 360˚,que são paisagens

enormes(10m x 100m) expostas nos grandes centros europeus60.

60

MARTINS, Carlos,Burgui Sergio, Kovensky. A Paisagem Brasileira no Instituto Moreira Sales. 2001, Catálogo, p.:15.

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63

No trabalho de Walmor Correa, artista plástico de Porto Alegre, perguntas

acerca da veracidade da história, atestada pela linguagem dialogam diretamente

com as Paisagens Hybridas também são colocadas. Porém Walmor trabalha não

com paisagens, mas com a recriação de seres utópicos advindos da literatura

brasileira, de mitos indígenas e animais. Ele cria seres fantásticos, híbridos de

impossibilidades. Ao mesmo tempo que, assim como eu, questiona a história e a

ciência e tenta atestar a veracidade por meio de sua linguagem, sua estrutura que

em geral se repete, partindo dos antigos tratados de ciência natural, como os de

Lineu. No caso das Paisagens Hybridas, pude perceber que a configuração das

gravuras obedeciam a um padrão: nome do país em cima, nº da prancha no topo

direito, nome do desenhista do lado direito ( nesse caso meu nome, que mantive),

nome do gravador do lado esquerdo e abaixo de tudo geralmente o nome do lugar.

Este padrão de linguagem já era dominado pelos primeiros viajantes. Sobre este

jogo de linguagem, Paula Ramos afirma que:

..há tanto uma emboscada constituída pelo conjunto figura-forma, como o artifício de verdade e de ciência proposto pela estrutura de apresentação; há tanto uma cristalina mentira no conteúdo, como o discurso legitimador no formato. Trata-se de uma tensão, de um conflito entre as partes constitutivas do trabalho....”

61 (RAMOS,2006)

61

RAMOS, Paula. O estranho Assimilado. Processos cartográficos na poética de Walmor Correa. 2006 . Disponível em: www.walmorcorrea.com.br, Acessado em: 5 de Setembro de 2014.

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64

Figura 21 - Ondina, Walmor Correa, Série Unheimlich, Imaginário Popular

Brasileiro, 2005.

Fonte: www.walmorcorrea.com.br.

O trabalho de Walmor com esses seres fantásticos traz a questão do hibrido e

estabelece outra ponte. O hibrido, nesse caso de materiais, de formatos, de seres,

nada mais é do que a construção de um universo de ficção, que se caracteriza e se

atesta como "real" no rigor científico que seus desenhos carregam.

O significado da palavra Hybrido é a resultante de um animal ou vegetal, que

passa por uma transformação genética, onde ocorre o nascimento de uma coisa que

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65

foi misturada, que sofreu um cruzamento pela combinação com outra, onde ambas

provém de raízes diferentes, e dessa mistura podemos talvez dizer assim, ocorre a

formação de uma nova espécie. Em Latim, a palavra Hybris, significa “falta de

limites, falta de limites impostos pelos deuses, desmedida, essa falha maior que

coloca em perigo o equilíbrio do cosmos e mais tarde da ordem política da polis."62

Pode-se entender então que híbrido seja, nesse sentido, uma mistura

transgressora, por trazer a perturbação de uma ordem que diz ser pura, correta, por

tentar transfigurar esse desejo de ordenação e de catalogação do mundo. Uma

percepção de algo antinatural, e que o natural seria somente aquela natureza que já

está aí e que não passou pela transformação da mão do homem, aquela natureza

cujos artistas viajantes desenharam sobre os conceitos de similitude, como o efeito

de real.

O questionamento acerca da natureza e o que é ser natural e o que é ser

híbrido, perpassa o projeto sobre essas duas variantes: o híbrido material e o híbrido

de tempo. Em meu trabalho o lugar do híbrido é ressaltar a máxima ficção possivel

dentro deste universo cientificista, com toda a estranheza que ele pode causar.

Assim, o efeito de realidade tende a não existir, a similitude tampouco ocorre, e

muito menos uma descrição daquilo que vemos, já que não existe um parâmetro real

daquele objeto ou paisagem.

No trabalho Jardim de Aclimatação XXI, haviam duas plantas hibridas,

desenvolvidas de maneira bastante parecidas a partir de um molde de uma planta

de plástico. Desse molde obtive o negativo e o positivo foi feito com algum outro

material sintético. Uma delas, é comumente chamada de "flor de pedra" e foi

realizada com cimento e grafite.

62

Gagnebien, Jean Marie, Lembrar Esquecer Escrever,2006, p. 19

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66

Figura 22 - Jardim de Aclimatação XXI, detalhes, Débora Mazloum, 2015.

Fonte: acervo da artista.

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67

O outro objeto que aparece na foto acima foi realizado a partir de um molde

de folha de amendoeira de plástico, fazendo um processo semelhante. No entanto

nesse caso o positivo foi finalizado com resina.

Portanto, na mesa que é também um jardim, mas um jardim de plantas falsas,

um gabinete de curiosidades contemporâneo relaciono esses objetos de modo a

colocar sobre eles um lugar de tensionamento entre o natural e o não natural a partir

dos objetos híbridos misturados aos objetos artificiais. Para o dicionário natural é:

“em que não há trabalho ou intervenção do homem”. Anne Cauquelin, no seu livro A

Invensão da Paisagem, vai demonstrar o quão importante é entender de que forma é

possivel se distanciar das representações da natureza a ponto levar ao

desdobramento de que a paisagem e natureza não são a mesma coisa. Ela

considera essa relação como: " ligada a esse sonho sempre renascente da origem

do mundo - ela teria sido "pura", de uma pureza na qual nos mantêm os édens e a

qual retornamos, não obstante nosso saber."63 Desse modo, os objetos híbridos em

meu trabalho, que já são uma cópia da cópia tendem a enfatizar que não há pureza

alguma na representação nem da natureza e muito menos da paisagem, tampouco

no espaço do jardim, e nem nos museus. A idéia de um jardim passa pelo

questionamento da possibilidade do homem dominar a natureza. Esse domínio,

essa construção, é também tensionada na medida da criação de um gabinete com

diversas espécies artificiais. O pensamento que em qualquer jardim nada cresce

"naturalmente" é a premissa para a construção dos trabalhos. Colocado desta

maneira, todo jardim é falso. Para Robert Smithson, o problema do jardim se dá na

tentativa de sempre se buscar um jardim paradisíaco, como que um éden perdido,

um certo lugar do paraíso na terra. Ele argumenta que: "O problema abissal dos

jardins envolve de alguma maneira uma queda de algum lugar ou de algo. A certeza

do jardim absoluto nunca será recuperada."64

Com isso, perfazendo as circularidades dos caminhos dessa dissertação,

penso em outro trabalho de Alberto Baraya que dialoga com esse universo onírico

de construção de uma natureza totalmente artificial e portanto ficcional. Green

House foi apresentado pela primeira vez na Miami - Basel Art Fair em 2007.

63

ANNE,Cauquelin, A invensão da paisagem,2007, p.31 64

SMTHSON, Robert. Escritos de artistas anos 60/70, 2006,p. 188

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Neste ele coloca dentro de uma estufa plantas artificias criando uma espécie

ficcional de microcosmo. Ficcional porque assim como as lâminas botânicas, essas

plantas, ainda que fossem naturais, tampouco sobreviveriam em sua habitat natural

em conjunto.

É assaz conhecido que as plantas tem ódio entre si... diz que a Oliveira e Videira odeiam a

couve. O pepino foge da Oliveira...(Marquez, Renata. op. sit,p155)

Figura 23- Herbarium of artificial plants, Alberto Baraya, Greenhouse,2007.

Fonte: Arco Colombia

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4 SOBRE A PERDA DO LUGAR.

Figura 24 - Sealife, Mark Dion, 2012.

Fonte: Georg Kargl Fine Arts Vienna.

O desdobramento acerca da possibilidade de ficção que se estabelece com a

estrutura de catalogação e nominação presentes em instituições tais quais o museu,

os gabinetes de curiosidades e as lâminas botânicas, são espaços que conferem a

legitimidade histórica necessária para meu trabalho.

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Ao ficcionalizar esses espaços, o trabalho pretende dialogar com um lugar

que quer se configurar outro, que tenta não estabelecer relação direta com espaço

algum.

Nas Paisagens Hybridas, era de fundamental importância que aquelas

paisagens não remetessem a lugar algum, e no Jardim de Aclimatação XXI era

fundamental a tentativa de ser como um jardim fora do tempo.

Foucault desenvolveu o conceito de espaço heterotópico ao realizar uma

palestra para alunos da faculdade de arquitetura de Paris. Seu pensamento abarca a

percepção de que existem espaços que são outros, que se constituem por não

terem uma definição tão exata sobre si, que borram as fronteiras esgarçando suas

áreas. Em sua definição, esses contra-espaços encerram numa certa medida

tempos diversos, uma colagem de lugares e de espaços, uma junção de

incompatibilidades por onde parece ser possivel realizar uma conexão entre o lugar

alegórico e o heterotópico. Para Foucault:

Em geral, a heterotopia tem como regra justapor em um lugar real vários espaços que, normalmente, seriam ou deveriam ser incompatíveis. (FOUCALT,.op. sit.p.24)

Esse espaço outro traz em sua essência a continuação do diálogo acerca do

conceito de realidade, pois se contrapõe à utopia quando colocada em confronto

direto com lugares existentes no nosso mundo, como nas palavras de Luis Aragon:

"criando uma ilusão que denuncia todo o resto da realidade como ilusão..."65.

Ao inverter a dicotomia realidade versus ficção Foucault articula a redefinição

dos limites do espaço e reelabora portanto o conceito de lugar.

Esse espaço, que se constitui como uma certa "suspensão" é o espaço do

museu, o jardim do teatro e do cinema e minha suspeita é de que o híbrido, tanto o

de tempo como o híbrido de materiais também possa se encaixar a idéia de um

espaço heterotópico.

No trabalho do artista americano Mark Dion, por exemplo, são abordadas

várias questões que também estão presentes nessa dissertação, como a operação

65

FOUCAULT, Michel, apud Aragon Luis.op.sit. p.28

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relacionada a construção de espaços heterotópicos assim como a torção

relacionada ao efeito de real66. Dion parece também estar seguindo os rastros dos

artistas viajantes, dos botânicos do séc. XIX e reconfigurando-os. Nessas

reconfigurações, os trabalhos remetem a lugar nenhum, pois perdem sua referência

inicial, enfatizando seu aspecto discursivo. Ele estabelece diálogos acerca das

questões sobre como a realidade é atestada nesses espaços institucionais como o

museu, realizando uma configuração do real tal qual sua referência que a partir de

sua semelhança impossível, se torna ficção. Com isso, ele trata do paradoxo que

envolve a investigação acerca dos meios de produção de verdade, como fala Renata

Marquez em sua tese de doutorado Geografias Portáteis 67 . Neste contexto, a

abordagem de diversas camadas do pensamento acerca do universo dos viajantes e

suas contraposições, o gabinete de curiosidades que passa pelo museu de história

natural e o relatos dos viajantes perfazem caminhos que vão dar em lugar nenhum.

Na instalação Sealife, por exemplo, Dion armazena em uma vitrine objetos de

pet shops e outros produtos de plástico, perfazendo de novo a idéia de um gabinete

de curiosidades contemporâneo e aqui se conectando diretamente à minha

pesquisa, onde o armazenamento de objetos insignificantes do dia a dia são

convertidos em relíquias.

As novas ambiências propostas são desenhadas ora como laboratório ora como museu ora como wunderkamer, ora como espaço doméstico, ora como unidade móvel. Dion cria um microcosmo misto agregando a noção da técnica artística da instalação, um itinerário. Ele é o viajante protagonista de uma rede espacial, na qual conectam-se uma série estudada de lugares distintos e distantes entre si. Percorremos na exposição esse microcosmo misto que nos remete sempre a outros lugares e a outros imaginários: expedicionários, naturalistas, taxidermistas, cientistas, museográfos, contrabandistas, consumidores vorazes." (MARQUEZ, op sit, p.128)

Dion articula essa outra espacialidade, que vai além do conceito de

heterotópico e reconfigura, dentro da história da arte, a própria noção de lugar, a

própria perda da referência do site do qual ele vai tirar suas relações. Pois Dion,

66

CRARY, Jonathan,apud Barthes,Roland. op.cit. p,155. 67

MARQUEZ,Renata. op.cit,p.124

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assim como vários artistas pensados aqui, trabalham com a memória dialética do

lugar, fazem alusão a ela mas reconfigurando-a.

No projeto intitulado On Tropical Nature, desenvolvido em 1991, Miwon Uon

vai constatar que existem várias concepções diferentes de site que operam

concomitantemente no trabalho.68 O Primeiro site era o local onde Mark se instalou,

um acampamento na floresta tropical próximo a Caracas na Venezuela. Ali, durante

3 semanas consecutivas ele coletou espécies que encontrava e ao final de cada

semana mandava essas espécies para uma das salas da exposição em Caracas, o

2º site. O que constituía então o 3º site era a exposição coletiva na qual essas

coletas eram reagrupadas, e por fim o 4º site, o menos literal, no qual o projeto tenta

"se fazer parte do discurso que diz respeito a representação cultural da natureza e a

crise ambiental global."69 Com isso, a relação da perda da referência direta na

construção do trabalho relacionada ao lugar, faz com que a arte contemporânea

possa permitir diversos deslocamentos tanto por parte do artista, como por parte do

trabalho em si. Diferente da questão levantada pelos artistas da década de 70 na

criação dos trabalhos da Land Art e sua necessidade de saída da galeria, onde o

local no qual o trabalho se instalava era determinante para a estrutura conceitual do

mesmo chegando as já conhecidas polêmicas em torno do Titled Arc de Richard

Serra, que não podia ser removida do local para onde foi pensada por exemplo.

Hoje, ocorre um desprendimento em relação ao lugar, uma desterritorialização se

buscarmos as premissas no conceito estabelecido por Deleuze e Guatarri no livro

Mil Platôs. Com isso, ao realizar instalações, residências e diversos tipos de

deslocamentos, artistas que trabalham com a memória do lugar, ou com site-

specific ainda que se refiram ou façam alusão a um espaço geográfico ou histórico

específico, não mais o fazem como sendo uma estrutura unilateral de diálogo. O que

ocorre é uma inversão da orientação de lugar, onde a questão do trabalho ( seu

aspecto discursivo, conceitual e temático) é que passa a ser o vetor do próprio

trabalho, sua intertextualidade e possibilidade de variações contínuas. O que se

configura hoje é algo como uma inversão do vetor. Um desapego com relação a

localidade e uma aproximação com o próprio assunto do trabalho, quer este esteja

aonde esteja. Esta inversão, totalmente calcada por uma arte cada vez mais

68

KWON,Miwo, Um lugar após o outro, Revista Arte Ensaios, nº 17, p. 171. 69

Ibidem, p. 172.

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nômade e cada vez mais globalizada constituída de sujeitos dispersos enfatiza seus

temas sócios-políticos, culturais e pessoais em detrimento de questões puramente

regionais/locais ainda que consiga muitas vezes abarcá-la. Entendo que esse seja

exatamente um dos pontos nevrálgicos que o site-oriented intrinsecamente aborda.

E sobre essa mudança acerca do nome, antes site especific para agora site

oriented, Miwon coloca que a diferença ocorre por que atualmente a arte acontece

"com localidades múltiplas e operando num campo discursivo diferentemente da

moderna especificidade".70

Nesse contexto, percebo que ocorreu uma semelhança na residência do

Jardim Botânico com os artistas que trabalham com site-oriented ao articular no

trabalho Jardim de Aclimatação XXI um deslocamento para um lugar aberto,

composto de intertextualidades.71Sobre essa virada conceitual em relação ao site

Uon coloca:

O que significa que agora o site é estruturado intertextualmente, mais do que espacialmente e seu modelo não é mais um mapa, mas um itinerário, uma sequência fragmentária de eventos e ações ao longo de espaços ou seja uma narrativa nômade cujo percurso é articulado pela passagem do artista. (KWON,Miwo,op.sit.p,172)

Ainda que eu queira que o trabalho Jardim de Aclimatação XXI se configure

como um lugar sem lugar específico, quer dizer sem data cronológica, sem relação

espaço-temporal direta, ele faz referência a um lugar físico onde foi criado e

exposto pela primeira vez, que é o Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Levanto essa

questão do deslocamento do trabalho e da importância da perda da referência, pois

o pensamento acerca dessas questões aflorou ao remontar a mesa em Anápolis,

uma cidade no interior de Goiás que não tem Jardim Botânico e nem a história

sobrecarregada de museus e instituições com as quais o trabalho dialoga e que são

tão presentes no Rio. Ali, se tornou evidente a perda das suas referências acerca da

cidade do Rio, a praia era qualquer praia do Brasil, o jardim qualquer jardim, o

gabinete um gabinete de curiosidades contemporâneo.

70

KWON,Miwo, op.sit,p184 71

KWON,Miwo,O lugar errado, Revista Urbania,p,148.

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Figura 25 - Jardim de Aclimatação XXI, Débora Mazloum, Anápolis, 2016.

Fonte: Acervo da artista.

Ao trabalhar com a história do lugar, necessariamente invocamos seu

passado ainda que a leitura não seja direta. Por isso existe essa dialética, de se falar

do lugar e ao mesmo tempo se distanciar dele. Se o que nos importa é de fato a

intertextualidade do trabalho, o que se quer dizer, o paradoxo se estabelece na

medida que invoca a história do lugar ao mesmo tempo que "expressa a dissipação

do mesmo". Dessa forma, entendo essa ser uma das indagações importantes a

serem pensadas e tratadas.

Para Miwon Uon, a saída estaria, baseada em Frampton, numa maneira de

buscar lidar de forma relacional, no espaço entre.

Outro aspecto relacionado a essa questão é a forma como tenho chamado o

Jardim de Aclimatação XXI e usado como seu segundo nome: gabinete de

curiosidades contemporâneo. Este "codinome" vai de encontro a fala de Gerardo

Mosqueira onde as palavras internacionais e contemporâneos se afirmam quase em

sobreposição uma a outra. Ele fala que:

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As denominações internacional e contemporâneo superpõem-se na prática, e de fato são empregadas como sinônimo.Isso mostra que não se concebe uma atualidade que não seja universal e vice-versa. (MOSQUERA, 2003, p.2).

Isto me parece ser exatamente o outro o desafio para o qual o trabalho

aponta, semelhante a questão da perda da referência do site, para Miwon Uon. Se

em ambos os trabalhos, o Jardim de Aclimatação XXI e as Paisagens Hybridas se

caracterizam pelo espaço heterotópico, sem lugar, nessa direção eles tenderiam a

um caráter universalizante e globalizado que afasta as diferenças locais para uma

consequente generalização. Para Gerardo Mosqueira, no texto Caminhando com

Diabo, ele coloca que na realidade "não existe cultura que não seja híbrida."

Não há ainda uma conclusão para tal emboscada pois não há locais

hermeticamente fechados, assim como a idéia de todas as fronteiras, geográficas ou

do pensamento serem irrestritamente abertas é irreal. Outra colocação interessante

que Gerardo Mosqueira percebe é sobre como ainda mais "vasta que o êxodo é a

disporá mental."72

Chegamos nessa possibilidade do global pois tivemos, além de óbvios

avanços tecnológicos, todo o séc. XIX e sua cultura calcada nas classificações como

falava Foucault.

Nesse caminho se voltar ao séc. XIX significa pensar as bases desse

pensamento, o alicerce da cultura ao qual estamos inseridos hoje, e tentar

problematizá-lo revisitando-o.

Gosto de pensar o lugar do entre as coisas, onde o alegórico e o hibrido se

encaixam como uma certa possibilidade de deslocamentos construtivos de mundos

ficcionais a serem pensados em relação direta com o mundo que habitamos hoje.

Pois afinal, o que de fato me interessa desse lugar heterotópico é o tema da

possibilidade de uma utopia do lugar outro, quer dizer essa infinita possibilidade.

Onde dentro do espaço da realidade se abra lugar para o sonho, para o

questionamento, para o devaneio, para o impossível do infinito guardado no grão de

areia.

72

MOSQUERA,Gerardo, Caminando con El Diablo,2009,p,162.

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Que o trabalho possa atingir esse lugar e sua consequente possibilidade de

construção de novos mundos, que possamos percorrer, nos perder e nos encontrar

quando assim acharmos melhor.

Com tantas dissonâncias em minha vida, de fato aprendi a preferir estar fora

do lugar e não absolutamente certo. (SAID, 2004, p,90)

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