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CENTRO UNIVERSITÁRIO ADVENTISTA DE SÃO PAULO CURSO DE LETRAS E TRADUTOR E INTÉRPRETE TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO O PAPEL DA IDEOLOGIA EM “O DIÁRIO DE ANNE FRANK”: UMA PROPOSTA DE APLICAÇÃO INTERDISCIPLINAR NO ENSINO MÉDIO JAMILE HELFENSTENS ENGENHEIRO COELHO – SP 2005

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CENTRO UNIVERSITÁRIO ADVENTISTA DE SÃO PAULO CURSO DE LETRAS E TRADUTOR E INTÉRPRETE

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

O PAPEL DA IDEOLOGIA EM “O DIÁRIO DE ANNE FRANK”: UMA PROPOSTA DE APLICAÇÃO INTERDISCIPLINAR NO

ENSINO MÉDIO

JAMILE HELFENSTENS

ENGENHEIRO COELHO – SP 2005

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JAMILE HELFENSTENS

O PAPEL DA IDEOLOGIA EM “O DIÁRIO DE ANNE FRANK”: UMA PROPOSTA DE APLICAÇÃO INTERDISCIPLINAR NO

ENSINO MÉDIO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Letras e Tradutor e Intérprete do Centro Universitário Adventista de São Paulo como requisito parcial à obtenção da graduação em Letras e Tradutor e Intérprete sob a orientação da Profª. Ms. Ana Maria de Moura Schäffer.

ENGENHEIRO COELHO – SP 2005

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Trabalho de Conclusão de Curso defendido e aprovado em 03 de novembro de 2005, pela Banca Examinadora constituída pelos professores:

Profª. Ms. Ana Maria de Moura Schäffer – Orientadora

Prof. Ms. Neumar Lima

Profª. Esp. Fernanda Caroline de Andrade

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DEDICATÓRIA A Todos aqueles que fazem parte de minha vida e fizeram esse sonho tornar-se realidade, dedico este trabalho.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço:

• A Deus O dom da vida e ter me conduzido até aqui, pois sem a ajuda d’Ele jamais

teria conseguido;

• À Professora Ana Maria de Moura Schäffer, a dedicação e ajuda;

• À minha querida família, meu pai, Jairo Helfenstens, cujo apoio e força de vontade

me inspiraram sempre. À minha mãe, Eliana Ap.Luiz Helfenstens os conselhos e por

sempre estar ao meu lado. À minha querida irmã Talita Helfenstens o carinho e

amor;

• Ao meu querido namorado, Eduardo Rossi de Mello, que sempre esteve ao meu lado

tanto academicamente como nas horas difíceis, e a confiança a mim designada;

• Às minhas queridas amigas e colegas de quarto, Claudinha Fantacucci, Caroline

Ferraz, Aline Colombo e Jaqueline Kümpel muito obrigada por tudo;

• Aos meus amigos da turma do 4° Tradutor e Intérprete: Regina Balsante, Norma

Filippini, Daniela Miguel, Adriana Lisboa, Ana Paula Costa, Priscilla Strasser, Débora

Nunes e Michel Santos o contínuo apoio e ajuda;

• Aos meus amigos insuportáveis, Daniela dos Santos, Diogo Pivatto, Marcela Forner,

Denise Carvalho e Michele Maurici a contínua ajuda e a amizade a qual quero

guardar para sempre;

• Às amigas do 4° Letras: Anastácia de Sá, Ani Bravo, Andreza Florêncio, Fernanda

Sales, Lidiane Pinheiro, Marta Bezerra, Sabrina Rostirolla, Solange de Fátima e

Vanusa Clésia, o companheirismo e ajuda contínua.

• Aos amigos: André, Bruno (Baiano), Elmer, Esrael, Evaldo (Nemo), Fernado (Sagüi),

Jair Júnior (Zú), Mikel, Magno, Marcos e Vinicius (Bibi).

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Epígrafe

“No pain, no palm; no thorns, no throne; no gall, no glory; no cross, no crown”.

(Willian Penn)

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Sumário

LISTA DE FIGURAS ............................................................................................................... viii RESUMO ................................................................................................................................ ix ABSTRACT ............................................................................................................................ x INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 1 CAPÍTULOS I – Anne Frank a História de um Diário ............................................................................... 03

1.1 – O que a História fala de Anne Frank ........................................................................ 03 1.2 – Quem foi Anne Frank ............................................................................................... 07

II – O Diário de Anne Frank Moldado pela Ideologia .......................................................... 09

2.1– O que é ideologia? .................................................................................................... 10 2.1.1 – Reescritura ..................................................................................................... 11 2.1.2 – Patronagem .................................................................................................... 13

2.2 – A Ideologia na Tradução .......................................................................................... 14 III – Uma Visão Interdisciplinar para o Diário de Anne Frank ............................................ 17

3.1 – O que é interdisciplinaridade? .................................................................................. 18 3.2 – Aplicação Interdisciplinar de “O Diário de Anne Frank” na disciplina de História....... 20 3.3 – Aplicação Interdisciplinar de “O Diário de Anne Frank” na disciplina de Língua Portuguesa ....................................................................................................................... 20 3.4 – Aplicação Interdisciplinar de “O Diário de Anne Frank” na disciplina de Língua Inglesa .............................................................................................................................. 22 3.5 – Aplicação Interdisciplinar de “O Diário de Anne Frank” quanto aos “Temas Transversais” .................................................................................................................... 22

3.5.1 – “O Diário de Anne Frank” quanto à Ética ........................................................ 23 3.5.2 – “O Diário de Anne Frank” quanto à Saúde ...................................................... 23 3.5.3 – “O Diário de Anne Frank” quanto à Orientação Sexual ................................... 23

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................... 24 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................................... 27

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Lista de Figuras

FIGURA 1 Fatores Ideológicos ................................................................................................................ 11

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HELFENSTENS, Jamile. O Papel da Ideologia em “O Diário de Anne Frank”: Uma Proposta de aplicação Interdisciplinar no Ensino Médio. Engenheiro Coelho, 2005, 38p. (Monografia) – Curso de Letras e Tradutor e Intérprete/ UNASP – Engenheiro Coelho, SP.

Resumo

O objetivo da pesquisa foi reunir comentários e críticas sobre “O Diário de Anne Frank” no

que diz respeito aos vários processos de reescritura sofridos pela obra, apresentando a

trajetória dos acontecimentos que servem de pano de fundo para a publicação do diário,

principalmente o papel poderoso da ideologia vigente atuando, mutilando e alterando o

“original” de Anne Frank. A partir das possibilidades que a obra suscita, apresento também

uma proposta de aplicação interdisciplinar no Ensino Médio, ao relacionar as disciplinas de

História, Língua Portuguesa, Língua Inglesa, além de abranger os Temas Transversais.

Palavras-chave: Anne Frank, Ideologia, Reescritura, Tradução, Interdisciplinaridade.

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HELFENSTENS, Jamile. The Ideology Action in “The Diary of Anne Frank”: One Offer to an Interdisciplinare Teaching to the High School. Engenheiro Coelho, 2005, 38p. (Paper) – Modern Languages Course and Translator and Interpreter/ UNASP – Engenheiro Coelho, SP.

Abstract

The main research purpose was to collect some comments and critiques from “The Diary of

Anne Frank” concerning to rewriting several processes undergone by Diary. It has been

presented the events which go through as a background to the Diary publication, especially

the powerful role of effective and acting ideology by mutilating and changing the ‘original’ of

Anne Frank. Since Anne Frank’s diary has given rise to many possibilities, it is suggested an

interdisciplinary use of the book in high school, relating History, Portuguese, English

disciplines, besides covering Transversal Themes.

Key-words: Anne Frank, Rewriting, Translation, Ideology, Interdisciplinarity

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Introdução

“O Diário de Anne Frank”, (doravante ODAF) começou a chamar a minha atenção no

segundo ano da Faculdade de Letras e Tradutor e Intérprete, nas aulas de Teorias de

Tradução com a Profª Ana Schäffer. Nesta disciplina, estudamos o livro de André Lefevere

“Translation, Rewriting and the Manipulation of the Literary Fame” (1992); o capítulo que

aborda o papel transformador da ideologia em ODAF foi apresentado em forma de

seminário por colegas. Foi a partir da reflexão feita na ocasião que comecei a pensar na

possibilidade de fazer deste tema o meu Trabalho de Conclusão de Curso, uma vez que

vários aspectos da temática chamaram a minha atenção. Procuro abordá-los na pesquisa,

apresentando não somente os aspectos ideológicos atuantes de forma velada em toda

tradução (a mais poderosa forma de reescritura), nas obras de modo geral, e na reescritura

de ODAF de forma específica, que é o escopo da pesquisa em tela.

O objetivo deste trabalho é reunir alguns comentários e críticas sobre ODAF no que

diz respeito aos aspectos da tradução, mostrando a trajetória de alguns fatos ocorridos,

principalmente o poder da ideologia vigente atuando, mutilando e alterando o diário “original”

de Anne Frank. Usando esta mesma obra, apresento uma proposta de um projeto

interdisciplinar, inter relacionando as disciplinas História, Língua Portuguesa, Língua Inglesa,

aproveitando a proposta para sugerir formas de integrar os temas transversais.

Os dados para a pesquisa foram coletados de bibliografias que abordam de forma

direta ou indireta a temática de ODAF , como livros de história, revistas, sites, filmes: “The

Diary of Anne Frank” de 1959, “Anne Frank Remembered” de 1995, A Lista de Schindler, e

outros documentários. Através destes, constatamos que ODAF é um dos documentos mais

valiosos que retratam a Segunda Guerra Mundial, o qual, foi traduzido para mais de 60

idiomas e tornou-se um best seller. No decorrer dos anos houve várias versões do diário,

provocando assim, muita polêmica sobre o mesmo, devido à ideologia vigente da época

(Segunda Guerra Mundial) ainda ser muito forte, o que trouxe muita dúvida quanto a

veracidade do material.

No primeiro capítulo da pesquisa, apresento um relato histórico de ODAF, expondo

quem foi a jovem Anne Frank e quais teriam sido as suas possíveis intenções ao escrever o

diário, as razões que a levaram escrever e depois reescrever o diário teriam sido motivadas

por algo mais, além de um desejo adolescente de extravagar as suas incertezas e desafios?

Por outro lado, discuto as diversas polêmicas e controvérsias que surgiram após a

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publicação de ODAF na Alemanha e como Otto Frank, o pai, juntamente com o Laboratório

Criminal Alemão, conseguiu comprovar a veracidade do diário.

Outro aspecto contundente que é trazido no segundo capítulo: o que pode ter

influenciado as várias reescrituras de ODAF? Ao discutir e tentar explicitar os pressupostos

ideológicos da época, seremos levados a, quem sabe, vislumbrar que as principais causas

de tantas reescrituras do mesmo ligam-se diretamente a fatores políticos-ideológicos.

Contudo, ressalto que o fator ideológico sempre presente esteve presente em tudo aquilo

que se foi escrito, seja consciente, seja inconscientemente, o que parece continuar a ser

regra áurea de todo o tipo de reescritura, as quais serão explicitados também no segundo

capítulo.

Na terceira parte há uma mudança de foco da reescritura (tradução), para uma

proposta de abordagem interdisciplinar de ODAF no Ensino Médio, envolvendo algumas

disciplinas como História, Língua Portuguesa, Língua Inglesa, além de integrá-los aos temas

transversais. Fazem parte do capítulo, algumas sugestões de atividades direcionadas a

cada disciplina, com o objetivo de proporcionar aos alunos conhecimento mais abrangente

de determinado assunto, além de abrir possibilidades de outros cruzamentos com outras

disciplinas.

Os temas transversais foram inseridos no trabalho com o objetivo de ampliar também

as possibilidades de o/a professor/a ao trabalhar os mesmos em sala de aula de modo

indireto e a partir de temáticas atuais (como é o caso das guerras políticas, preconceitos,

religião, entre outros). Foram sugeridas algumas questões que podem ser trabalhadas com

ODAF, oferecendo assim ampla abertura de aplicação em classe, a qual, independe de

condições econômicas para sua abordagem em sala de aula.

As considerações finais apontam limitações da pesquisa e abordam as principais

constatações após o término do trabalho. Sendo assim, sugerem outras possibilidades de

pesquisa, além de apontar a necessidade de professores e alunos estarem sempre

conscientes quanto aos aspectos ideológicos atuantes em todos os tipos de contato literário,

seja por meio das leituras, traduções (reescrituras), adaptações, crítica, historiografia, sejam

por meio da história, só para citar alguns. A ideologia está presente constantemente em

nossa vida e atua de forma inflexível principalmente nas obras literárias, e muitas vezes não

nos damos conta de como ela age de forma direta em nosso dia-a-dia, nos influenciando em

pontos relevantes e nos levando a agir de forma inconsciente.

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Capítulo I

Anne Frank: A História de um Diário

“Espero poder contar tudo a você, como nunca pude contar a ninguém, e espero que você seja uma grande fonte de conforto e ajuda”.

(Anne Frank, 12 de junho de 1942).

Neste capítulo, como já anunciado na introdução, abordarei alguns aspectos

referentes ao ODAF, com o objetivo de situar o leitor temporal e espacialmente. É

importante considerar o que os registros históricos falam sobre o diário, quanto fala dele e

por quem ele foi encontrado, principalmente, por que há tantas dúvidas quanto à veracidade

do mesmo. Há vários indícios que provam que o diário foi mesmo escrito por Anne Frank e

que o livro não é uma mera obra de ficção que relata partes do que os judeus passaram

naquele período.

1.1 – O que a História fala de Anne Frank

Anne Frank tornou-se famosa pelo seu diário. No dia 4 de agosto de 1944 os

soldados nazistas invadiram o “Anexo Secreto”1, levando-os todos para campos de

concentração. Miep e Bep Voskuijl (amigas da família Frank que os ajudava) subiram até o

esconderijo e encontraram os cadernos e anotações de Anne espalhados pelo chão. Miep

os guardou sem nunca tê-los lido com o intuito de entregá-los para Anne quando a menina

voltasse. Das oito pessoas que viviam no Anexo Secreto, apenas Otto Frank sobreviveu aos

campos de concentração. Quando a guerra terminou, e Miep soube que Anne tinha morrido,

entregou o material para Otto Frank recém chegado em Amsterdam dos campos de

concentração, com as seguintes palavras: “aqui está o legado de sua filha Anne para você”.

Regularmente, Otto passou a traduzir para o alemão, trechos do diário da filha, para anexá-

los com as cartas que mandava para sua mãe residente na Basiléia (Suíça). No dia 3 de

abril de 1946, um jornal alemão noticiou a existência do diário de Anne, dizendo que este

era um importante documento que retratava a guerra.

Em 1947, Otto Frank, encorajado pelos amigos, decidiu publicar uma versão “B”,

porém com muitas modificações, realizando um dos desejos de Anne. Podemos perceber

que ela tinha este desejo, pois em maio de 1944 ela escutou através de uma transmissão de

1 Nome dado por Anne Frank ao esconderijo onde sua família e alguns amigos ficaram escondidos.

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rádio Gerrit Bolkestein, membro do governo holandês, dizendo que depois da guerra

esperaria recolher testemunhos oculares do sofrimento do povo holandês sob a ocupação

alemã e que tais relatos pudessem ser postos à disposição do público. Foi a partir daí, que

Anne começou a sonhar com a publicação de seu diário. Otto Frank ao publicar ODAF,

colocou o título que já tinha sido escolhido por ela, “O Anexo Secreto”. O livro foi publicado

na Holanda pela primeira vez em junho de 1947. Com uma edição inicial de 1500 cópias, “O

Anexo Secreto” foi traduzido e publicado em mais de 60 línguas, sendo um dos livros mais

lidos no mundo. Um texto teatral baseado no diário foi escrito com a colaboração de Otto

Frank, estreando em Amsterdam no dia 27 de novembro de 1956; também foi feito um filme

com a colaboração de Otto, cujo premier aconteceu no City Theatre de Amsterdam em abril

de 1959. Pelo o que se sabe, Otto jamais quis ver a peça ou o filme.

Em 1986, o Instituto de Documentação de Guerra de Amsterdam, que tinha recebido

a custódia dos diários, publicou a chamada edição crítica, comparando as versões, com

análise científica, para provar que os diários de Anne foram escritos por ela mesma, nos

anos de 1942-1944, enquanto estava escondida, isto comprovou para sempre a

autenticidade de ODAF.

Uma nota de rodapé para a versão "A" reconhecia a omissão, a pedido da família, de

um trecho de 47 linhas que apresentava um "quadro extremamente impiedoso e

particularmente injusto do casamento dos seus pais". Mas, na versão “B”, não houve

menção a nenhuma parte faltante - as 47 linhas de revisão que Frank tirou. Em 1995, a

editora Doubleday, agora parte da Random House, apresentou uma "edição definitiva" para

lembrar o 50º aniversário da morte de Anne na qual incluiu 30% a mais de material do que

Otto Frank tinha permitido na versão "C" originalmente publicada. Mas a edição definitiva

também não tinha os trechos de revisão que agora apareceram.

A descoberta recente das novas páginas do diário causou confusão na Random

House que afirma que qualquer providência para republicar o livro com o material até então

omitido terá de esperar por uma resolução de questões jurídicas. A Doubleday, que tem os

direitos de publicação do diário em capa dura para a América do Norte, e a Bantam, que tem

os direitos para publicação na forma de brochura, não pretendem pagar uma quantia extra

para republicar o livro com o novo material.

Peter Romijn, chefe de pesquisa do Instituto de Documentação de Guerra, disse que

uma nova impressão da edição crítica já estava programada e agora deve incluir o novo

material. Recentemente Melissa Muller ficou sabendo que não teria permissão para citar o

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novo material no seu livro, decisão que atribui a problemas comerciais, assim como um

esforço equivocado de proteger Otto Frank.

O professor alemão L. Stielau escreveu em uma revista em 1958 sobre suas dúvidas

a respeito da autenticidade de ODAF. Nos anos 30 ele esteve envolvido na liderança da

juventude hitleriana e depois da guerra se tornou um ativo membro de organizações

nazistas. Essa sua publicação de 1958 recebeu uma extensiva cobertura da imprensa. No

início de 1959, Otto Frank deu entrada em um processo contra Stielau. Após exaustivas e

autorizadas pesquisas sobre a autenticidade da letra de Anne Frank, a corte em Lubeck

anunciou em 1960 que o diário era autêntico. Isso foi razão suficiente para que em 1961 se

tomassem medidas legais. Então, Stielau foi obrigado a declarar que com base no exame

convencido de que o diário era verdadeiro e retirar suas afirmações.

Nos anos 60 e 70, a autenticidade do diário foi questionada em várias publicações

sem nenhuma ação legal até 1976 quando ODAF se tornou o tema de um processo em

Frankfurt. Desde 1975, H. Roth vinha publicando com sua própria companhia revistas e

folhetos com títulos como “Anne Frank's Tagebuch - eine Fälschung” (“O Diário de Anne

Frank – uma Fraude”). Em 1976, Otto Frank conseguiu impedir a distribuição desses

panfletos. A Casa de Anne Frank se envolveu no caso como co-autora do processo. Dois

anos depois o juiz decidiu proibir Roth de expressar em público suas idéias sobre o diário

sob penalidade de pagamento de multa ou prisão de seis meses. No recurso de apelação

Roth apresentou um relatório de R. Faurisson para quem pediu um extensivo exame sobre a

autenticidade do diário. O relatório não convenceu a corte e o recurso foi rejeitado em julho

de 1979. Em 1980, Faurisson publicou em francês o resultado de seu relatório com o título

“Le journal d'Anne Frank est-il authentique?”.

Houve ainda, mais dois processos judiciais a respeito da autenticidade do diário

baseados na liberdade de expressão. Ambos os casos ocorreram na Alemanha em 1979. O

primeiro teve como base a distribuição dos panfletos do radical extremista de direita em

1978 em Frankfurt. A publicação alegava que ODAF era uma falsificação e produto da

propaganda judaica sobre as atrocidades alemãs para suportar a morte dos seis milhões de

judeus e para financiar o estado de Israel. No segundo caso, em Stuttgart, o nazista W.

Kuhnt foi acusado de publicidade incitando o ódio racial e a difamação da memória de

pessoas mortas. Huhnt escreveu em uma publicação de extrema direita que o diário era

uma fraude e uma mentira. Em ambas situações a corte decidiu que se a queixa realmente

persistisse pela parte prejudicada a acusação de blasfêmia poderia ainda prosseguir. Tal

determinação causou um certo tumulto na imprensa.

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Outro processo em Hamburgo, após vários anos, também chegou ao fim em 19 de

março de 1993. A autenticidade de ODAF também estava sendo questionada lá. Isto

começou em 1976 quando a peça teatral baseada no diário estreou no local. E. Römer

distribuiu panfletos intitulados de “Best-Seller - ein Schwindel” (“Best-Seller – uma Mentira”)

que alegava que o diário era uma falsificação. O promotor público decidiu processar Römer

novamente. Otto Frank foi co-autor do processo. Em 1977 a corte distrital multou Römer.

Durante o período de apelação um companheiro seu de direita, E. Geiss distribuiu panfletos

na sala de audiência afirmando que o diário era uma grande fraude, e ambos foram

condenados.

Com tantas dúvidas sobre a veracidade do diário, foi convidado para examinar o tipo

de papel e os tipos de tinta usados nos manuscritos do diário de Anne, o Laboratório

Criminal Alemão, o Bundeskriminalamt (BKA). Os resultados mostraram que os papéis e a

tinta em questão tinham sido usados durante a guerra e por alguns anos depois.

Consideravelmente o BKA concluiu que “as últimas correções feitas nas folhas soltas do

diário foram escritas em caneta esferográfica azul, verde e preta”. Analisando as

descobertas do BKA, ficou impossível considerá-las corretas já que não foram mencionados

o local exato, a natureza e extensão dessas supostas correções. Durante o caso de Stielau,

vinte anos antes, os especialistas em manuscritos já tinha dito que todo o trabalho havia

sido escrito por Anne Frank. O relatório do BKA apontou ter muitos erros no seu veredicto.

Em 1980 a revista alemã Der Spiegel publicou um artigo segundo as conclusões do relatório

do BKA. A mensagem do artigo era: “este questionamento sobre a autenticidade do

documento vai continuar”. E isto causou uma enorme perturbação no país e fora dele.

Em agosto de 1980 Otto Frank morreu. Os manuscritos de sua filha foram deixados

para a Alemanha que entregou os documentos para o Instituto de Documentação de Guerra

dos Países Baixos (RIOD - Rijksinstituut voor Oorlogsdocumentatie). Otto Frank nomeou a

Fundação Anne Frank na Basiléia como sendo a herdeira do copyright do diário. O RIOD

decidiu publicar todo ODAF em uma versão detalhada, em parte como resposta para os

contínuos ataques a respeito da autenticidade do diário.

Devido aos constantes ataques sobre a autenticidade do diário, o "Gerechtelijk

Laboratorium" em Rijswijk foi convidado a conduzir um extensivo exame dos manuscritos de

Anne considerando sua letra e outros aspectos técnicos. O BKA foi convidado pelo

"Gerechtelijk Laboratorium" a indicar onde eles haviam encontrado tinta de caneta esférica

sendo que nesse momento o BKA foi incapaz de apontar uma só correção desse tipo. Em

1986, o diário completo de Anne Frank e os resultados positivos dessa pesquisa de

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laboratório foram publicados com o título “De dagboeken van Anne Frank” (“O Diário de

Anne Frank”) e sua autenticidade foi definitivamente comprovada.

1.2 – Quem foi Anne Frank

A história de Anne começa na Alemanha nos anos 20. Filha de Otto Frank e Edith

Holländer. No dia 12 de junho de 1929, nasceu Annelise Frank. Em 1933, com a subida ao

poder de Adolf Hitler, a família Frank decidiu mudar-se para a relativamente segura

Amsterdam, na Holanda. Então, no verão Edith, Margot e Anne foram morar com a avó

materna Holländer, em Aachen, enquanto Otto partiu para Amsterdam para organizar as

coisas antes de se mudarem. Em fevereiro de 1934, Anne mudou-se para Amsterdam e

nesse mesmo ano ingressou na escola Montessori.

Mesmo com muitos membros do Partido Nazista presentes em seu território, a

Holanda tratava seus judeus refugiados muito bem e os Frank se sentiram seguros

juntamente com seus vizinhos judeus. Além disso, Anne e Margot tinham muitas amizades,

incluindo Nanny Blitz, Laureen Nussbaum, Hanneli Goslar e Jacqueline Van Maarsen. De

acordo com que Anne escreveu em seu diário mais tarde, as coisas não eram mais as

mesmas para os judeus:

Depois de maio de 1940 os bons tempos foram poucos e muito espaçados: primeiro veio a guerra, depois a capitulação, e em seguida a chegada dos alemães, e foi então que começaram os problemas para os judeus. Nossa liberdade foi seriamente restringida com uma série de decretos anti-semitas: os judeus deveriam usar uma estrela amarela; os judeus eram proibidos de andar nos bondes; os judeus eram proibidos de andar de carros, mesmo que fossem carros deles; os judeus deveriam fazer suas compras entre três e cinco horas da tarde; os judeus só deveriam freqüentar barbearias e salões de beleza de proprietários judeus; os judeus eram proibidos de sair às ruas entre oito da noite e seis da manhã; os judeus eram proibidos de comparecer a teatros, cinemas ou qualquer outra forma de diversão; os judeus eram proibidos de freqüentar piscinas, quadras de tênis, campos de hóquei ou qualquer outro campo de atletismo; os judeus eram proibidos de ficar em seus jardins ou nos de seus amigos depois das oito da noite; os judeus eram proibidos de visitar casas de cristãos; os judeus deveriam freqüentar escolas judias etc. Você não podia fazer isso ou aquilo, mas a vida continuava (FRANK, p.p.17-18).

Anne sempre foi comunicativa e tinha o sonho de ser uma mulher independente, uma

grande escritora ou jornalista. Ao ouvir que seu diário poderia ser publicado, quando estava

escondida no Anexo Secreto, percebeu que teria oportunidade para realizar seu sonho.

Então, começou a reescrevê-lo, criando nomes fictícios para os moradores do anexo e até

mesmo para ela. Anne mantinha uma postura questionadora, em seu diário encontramos

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perguntas sobre relacionamento e problemas femininos, referentes ao comportamento de

cada morador do anexo, como agiam e o que ela pensava sobre eles.

Antes de ir para o Anexo Secreto, Anne e Margot eram amigas de Betty Ann Wagner

dos Estados Unidos, com quem se correspondiam por cartas, porém, nunca chegaram a se

conhecer. Devido a esse hábito de escrever para os outros, ao ir para o esconderijo, Anne

sentiu uma grande necessidade de se corresponder, mas como não podia fazê-lo, criou uma

amiga fictícia, a quem deu o nome de Kitty, para quem contou e testemunhou todo o seu

legado. Este breve histórico do diário ajudará a ter uma compreensão maior do próximo

capítulo, onde abordarei a ideologia por traz do diário e o por quê há tantas versões do

mesmo.

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Capítulo II

“O Diário de Anne Frank” Moldado pela Ideologia

“Há muito tempo você sabe que o meu maior desejo é ser jornalista, e mais tarde uma escritora famosa. Teremos que esperar para ver se essas grandes ilusões (ou desilusões) irão se cumprir, mas até agora não sinto falta de assunto. De qualquer modo, depois da guerra eu gostaria de publicar um livro chamado O Anexo Secreto. Resta ver se conseguirei, mas meu diário pode servir de base”.

(Anne Frank, 11 de maio de 1944).

Neste capítulo falarei sobre a ideologia que está por trás de ODAF. Mas antes,

apresento pelo menos duas definições de ideologia, segundo Coulthard e Coulthard (1991)

e Eagleton (1994). A obra pesquisada para embasar o tópico ideologia é “Translation,

Rewriting and the Manipulation of Literary Fame“ de A. Lefevere (1992). Neste livro o autor

discute o fator ideológico sempre presente em tudo aquilo em que se escreve consciente ou

inconscientemente. No entanto, o foco dessa pesquisa centralizar-se-á nos fatores

patronagem, reecritura (sendo a mais poderosa de todas a tradução) e a tradução à luz

desses fatores ideológicos por trás de toda a reescritura, seja ela adaptação, editoração ou

tradução, crítica, historiografia ou antologização.

No caso de ODAF, a própria personagem Anne Frank ao imaginar que o seu diário

pudesse ser publicado algum dia, passa a reescrever, a fazer uma reescritura do diário. A

pergunta inicial que surge é: que postura Anne Frank passa a ter depois de imaginar que o

seu diário poderia ser publicado? Ela passa do papel de uma simples menina escrevendo o

seu dia a dia em seu diário, com palavras simples sem nenhuma pretensão literária à

personagem e autora Anne Frank. Já não é mais um simples diário, e sim uma obra literária

que retrata um pouco da Segunda Guerra Mundial. Relatando assim, aspectos históricos,

psicológicos, aspectos profundamente emocionais da personagem, e mais do que isso, por

trás de toda essa reescritura dessa agora então autora, nós temos aqui a ideologia

controlando o dizer de Anne Frank. Ela não diz com mais naturalidade, mas transforma o

seu dizer agora em algo que se coloca diante da possibilidade de alguém vir a ler. Alguma

coisa passa a dizer para ela o que pode dizer e o que não pode dizer, como ela deve dizer e

como não. São estes os aspectos que serão abordados neste capítulo, então em primeiro

lugar deveríamos perguntar: O que é ideologia?

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2.1 – O que é Ideologia?

Como mencionei anteriormente eu trarei aqui duas breves definições do que seja

ideologia e justificarei o porquê da escolha de Coulthard e Coulthard e de Eagleton. A de

Eagleton justifica-se porque ele escreve sobre a questão literária, a ideologia da

personagem presente nos textos literários; a de Coulthard e Coulthard justifica-se, pois ele

dá uma definição da ideologia como sendo uma vigia da sociedade, mostrando que ela é

que dita as regras, pensamentos e idéias. Segundo Coulthard e Coulthard (1991, p.48)

“ideologia é aquele conjunto de idéias, valores e normas que indicam e prescrevem aos

membros da sociedade o que devem pensar, valorizar, sentir e fazer e como devem pensar,

valorizar, sentir e fazer”. Esta definição mostra que a ideologia é um tipo de vigia da alma

humana, controlando o que as pessoas devem ou não dizer, pensar e agir. Dessa forma, a

sociedade é controlada por algo invisível, porém existente que está em todos os lugares,

mas ninguém sabe o que realmente é. Mesmo Anne Frank na sua juventude já percebia tal

vigilância, justamente talvez, pelo momento histórico em que estava passando, a Segunda

Guerra Mundial escondida e com medo de que ela e sua família e amigos viessem a serem

descobertos. Nos comportamentos descritos no diário percebemos fortemente a questão da

vigilância, do controle que a ideologia vigente exercera sobre a vida das pessoas do

esconderijo.

Eagleton outro filósofo, vê a ideologia como:

(...) a maneira pela qual aquilo que dizemos e no que acreditamos se relaciona com a estrutura do poder e com as relações de poder da sociedade em que vivemos. Considera a ideologia como sendo – mais que as crenças, que têm razões profundas, muitas vezes inconscientes – os modos de sentir, avaliar, perceber e acreditar, que se relacionam de alguma forma com a manutenção e a reprodução do poder social (Eagleton apud. Nascimento, p.9).

Tendo essa visão, podemos perceber que Anne Frank as sentia inconscientemente.

Ao escrever em seu diário sobre o pensamento machista da época, dos problemas

femininos, sua sexualidade e ao falar sobre o relacionamento de seus pais, não estava

pensando em publicar isso. No entanto, ao ver a possibilidade disso acontecer, começou a

reescrever o seu diário de forma mais amena de modo que não se envergonhasse do que

estava escrevendo.

Régis Debray, filósofo, concentra-se muito na sensibilidade e no visual de tudo

principalmente da arte. Segundo Debary a ideologia é o que nos faz ver o mundo e, ao

mesmo tempo, nos torna cegos a seu respeito (Debray apud. Nascimento, p.9). Com esta

frase podemos ver o que aconteceu com ODAF, pois ele foi publicado; o mundo leu o diário,

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mas a ideologia nos cegou, impedindo-nos de ver o que ele realmente foi, omitindo e

mutilando a obra. As definições discutidas acima sobre ideologia realmente ratificam o que

aconteceu com a postura de Anne Frank a partir do momento em que ela se imaginou

autora do diário, vislumbrando a possibilidade de publicação, pois, a partir daí que ela

começou a escrever de forma mais romantizada o diário, inventou nomes fictícios para todos

os membros do que ela literalmente chamou de “Anexo Secreto”, inclusive para a própria

família e a si mesma.

A ideologia rege os meios literários da seguinte forma: Ela é o principal patrão, pois é

ela que dita as regras, costumes, pensamentos e idéias. As Editoras são conduzidas pela

ideologia, ditando assim, a poética e estilos da ideologia vigente para a obra literária,

comandando também a reescrita e a tradução. Numa tentativa de uma relação inconsciente

da ideologia com todos os tipos de reescritura, esboçamos a seguinte figura, buscando

esclarecer como o sistema literário é regido e a seguir, explicarei dois grandes fatores

ideológicos que influenciaram ODAF, a Patronagem e a Reescrita.

Figura 1

2.1.1 – Reescritura

Lefevere, na sua obra utiliza o termo reescritura como uma denominação geral de

toda a tradução, a qual segundo ele é reescritura do texto “original”. Pode-se dizer, nesse

sentido, que as diversas formas de reescritura existentes, entre as quais, além da tradução,

Ideologia Patronagem Reescrita

Crítica Editoração Antologização Historiografia

Tradução

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a antologização, a crítica, além de outras, sofrem efeitos de manipulações ideologicamente

cometidas. Ao mesmo tempo em que as reescrituras podem apresentar novos conceitos,

novos gêneros, novos mecanismos, podem também reprimir inovações de qualquer ordem.

Assim, os reescritores manipulam os originais aos quais têm acesso com o objetivo de

fazerem com que esses originais se ajustem ou não às correntes poetológicas e ideológicas

dominantes da sua época (LEFEVERE, 1992, p.8).

Em ODAF, foco da pesquisa em tela, a ideologia manifesta-se de duas formas: a

auto-editoração feita pela própria Anne Frank e a tradução. A Auto-editoração ocorreu

quando Anne Frank viu a possibilidade de publicar o seu diário após a guerra, começando

então a reescrevê-lo. Cortou partes que não gostaria que fossem publicadas, pois eram de

caráter muito pessoal; acrescentou outras partes, porém infelizmente, não conseguiu

terminar de reescrevê-lo. A autora do diário começou a reescrever seus encontros com

Peter de forma mais romântica, como podemos ver em (LEFEVERE, 1992, p.60), “Conforme

eu sentei de frente, perto do pé dele”2 em 14 de fevereiro de 1944 ela reescreveu o mesmo

assim: “ Eu ... fui e sentei em uma almofada no chão, coloquei meus braços em volta dos

meus joelhos dobrados e o olhei atentamente”3. Porém Otto Frank, ao publicar o diário optou

por colocar os nomes fictícios dados por Anne Frank para os membros do anexo, por

questão de ética e para salvaguardar o nome das famílias. São eles: Auguste van Pels

(Petronella van Daan), Hermann van Pels (Hermann van Daan), Peter van Pels (Peter van

Daan) e Fritz Pfeffer (Alfred Dussel).

Houve também várias outras reescrituras do diário, ou melhor, traduções. A tradução,

como já escrevi nas páginas iniciais é uma das formas poderosas de reescritura. A primeira

reescritura foi de Otto Frank, que traduziu o diário do holandês para o alemão; a terceira foi

de Anneliese Schütz, que traduziu uma versão que Otto Frank fizera do diário do holandês

para alemão. Posteriormente foram surgindo outras traduções, mas baseadas na reescritura

da própria Anne Frank. Da versão do holandês, surgiram outras o francês, o inglês entre

outras. Assim, parece não haver dúvidas de que através da reescritura podemos subverter

ou manipular o texto “original”4. Podemos perceber que é inevitável que a cada reescritura

que é feita de um mesmo texto, este vai se perdendo aos poucos até ser mudado por

completo.

2 “As I set almost in front of his feet” 3 “I ... went and sat on a cushion on the floor, put my arms around my bent knees and looked at him attentively” 4 Para ARROJO, 1997 p.23, ”(...) o próprio significado do ”original” não é fixo ou estável depende do contexto em que ele ocorre.” , ou seja, as rescrituras posteriores tentam reproduzir o que Anne Frank viveu, porém não vivemos no mesmo momento histórico e não temos a mesma visão ideológica vigente da época. Em seu livro ARROJO fala que nos dias de hoje com as teorias pós-modernas de tradução, acredita-se que nada do se escreve é original, pois você se baseou-se em idéias dos outros para escrever a sua.

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2.1.2 – Patronagem

A patronagem pode ser entendida como o poder exercido por pessoas e instituições

(partidos políticos, editores, jornais, revistas, televisão, etc.), que determinam o que pode e o

que não pode ser escrito ou reescrito em termos de literatura. Os chamados patronos se

preocupam com a ideologia da literatura, o que ela poderá levar ao público que não vai

contra os princípios da sociedade, ao invés de se deterem em sua poética; tentam regular a

relação entre o sistema literário e os outros sistemas que, juntos, formam a sociedade e a

cultura. Se não conseguem controlar a escrita, buscam, ao menos, controlar os órgãos

responsáveis pela sua distribuição: academias, censores, revistas críticas e

estabelecimentos de ensino (LEFEVERE, 1992, p.15). Segundo Lefevere, “a aceitação da

patronagem implica no fato de que escritores e reescritores trabalhem dentro dos

parâmetros estabelecidos por seus patrocinadores e que estejam dispostos a legitimarem e

sejam capazes de fazê-lo tanto em relação ao status quanto ao poder daqueles

patrocinadores” (1992, p.18). Segundo o autor, a patronagem consiste de três componentes

que interagem entre si: ideológico, econômico e status. Para Lefevere, o componente

ideológico age como o elemento limitador na escolha e no desenvolvimento tanto da forma

quanto do assunto (1992, p.16), e foi isto que aconteceu com ODAF, quando Otto Frank

recorreu a uma editora holandesa para publicar a primeira versão do diário (que ele mesmo

fizera), o editor simplesmente não podia publicar tantas “ofensas” ao povo alemão, pois não

havia muito tempo do término da guerra e a ideologia nazista ainda era a dominante; logo,

ele só publicaria o material se fossem feitas mudanças no diário (1992, p.61), para não

comprometer a ideologia dominante. Para ver o manuscrito de sua filha publicado, Otto

Frank se curvou às exigências da patronagem.

Quanto ao componente econômico, ele se refere à remuneração que os patronos

pagam aos seus escritores e reescritores, para estes fazerem cortes e mudanças em algum

texto que há uma forte ideologia. Já o componente de status significa que a aceitação da

patronagem leva à integração do escritor ou tradutor a determinado grupo e ao estilo de

vida. Existem dois tipos de patronagem:a não-diferenciada e a diferenciada. A patronagem é

não-diferenciada quando os três componentes (ideológico, econômico, status) são

administrados pelo o mesmo patrão, como tem sido o caso da maioria dos sistemas

literários do passado, a qual poderia prender o (a) escritor (a), dando-lhe uma pensão, que é

o caso dos estados de totalitarismo contemporâneo, aonde toda a opinião o patrão leva. Já

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a patronagem diferenciada, é a qual um ou dois desses componentes, ou até mesmo todos

eles, são dispensados por indivíduos ou instituições distintos.

Ao se publicar uma obra não condizente com a ideologia vigente, o preço a ser pago

por esse patrocínio é a imposição de limites, restrição ao original chegando até a

manipulação do conteúdo. Vemos isso de forma bem explícita na época da ditadura no

Brasil, onde só poderiam ser lidos ou estudados livros que o governo aprovava. Muitas

vezes pensamos que a literatura está imune a qualquer tipo de interferência, mas esta pode

entrar muitas vezes em choque com o sistema de patronagem que é maior e que domina o

sistema literário, que é movido pela ideologia, e esta se propensou a ser usada no presente.

Em ODAF, após pesquisa e leitura, podemos perceber que muitas coisas foram

cortadas, omitidas e modificadas nas primeiras versões do diário. Isto nos mostra que nunca

podemos ter certeza da história por trás de cada obra. Anne Frank ao escrever o seu diário

se tornou a autora Anne Frank, conhecida no mundo todo por ser uma testemunha ocular do

que os judeus passaram na Segunda Guerra Mundial, deixando o seu relato eternizado na

forma de um diário, independente das modificações que possa ter sofrido.

2.2 – A Ideologia na Tradução

Após ver alguns fatores ideológicos que influenciaram ODAF, na sua versão inicial,

veremos também como a ideologia opera no processo de tradução. A tradução é uma

atividade intelectual lingüística cultural e social que inevitavelmente nunca é neutra e é

sempre atravessada pela ideologia. O tradutor tem que saber que a matéria prima da

tradução é moldada pela ideologia, percebendo que a estrutura lingüística tem variáveis

sociais, históricas, ideológicas que juntas determinam o significado do texto. Todavia há

duas relações entre a linguagem/ ideologia que vão se encontrar e confrontar e no meio

disso, o tradutor realiza o seu trabalho numa atitude de busca e constante avaliação. A

primeira é o confronto entre o tradutor e a obra original. Isso acontece quando o tradutor

aceita traduzir textos que não condizem com o que ele acredita, como por exemplo, uma

obra que fosse dirigida para as mulheres e um homem a traduzisse. A ideologia da obra

“original” se veria atravessada pelas convicções do tradutor. Podemos imaginar facilmente o

conflito ideológico de um homem ao traduzir textos para mulheres.

A segunda é o conflito entre a ideologia e a cultura de uma comunidade lingüística

que diverge parcial ou totalmente da de outra comunidade lingüística para a qual uma obra

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deve ser traduzida. Pois quando as culturas são totalmente diferentes o tradutor tem que

achar uma brecha para fazer o seu trabalho e isso é um desafio para este profissional; ele

tem que estar consciente da carga ideológica presente nas opções formais de uma outra

língua. Deve-se atentar também para o valor ideológico da escolha lexical em campos

semânticos que divergem nas várias línguas. Os processos de lexicalização são indicadores

ideológicos; uma super-lexicalização indica a importância daquele conceito para uma

determinada cultura. E todas essas informações não podem ser negligenciadas na tradução.

Infelizmente muitas dessas ideologias foram negligenciadas em ODAF. A principio,

por seu pai, que começou a traduzir todo o diário do holandês para o alemão. Neste

material, Otto Frank omitiu várias coisas que Anne Frank mencionava sobre sua

sexualidade, sobre o casamento de seus pais e sobre outros membros do Anexo Secreto,

sendo uma das maiores omissões, quando Anne Frank escreve sobre a emancipação da

mulher. Feitos esses cortes, Otto Frank resolveu contratar sua amiga Anneliese Schütz, que

era jornalista e que imigrou para Holanda fugindo dos Nazistas, para fazer uma melhor

tradução do diário, uma vez que ele tinha dificuldades com o holandês. E foi baseada na

versão de Otto Frank que Schütz começou o seu trabalho. Otto Frank achava que a

tradução de Schütz era certa, mas que ela estava velha demais para isso, pois usava

expressões antigas e não gírias como Anne Frank usaria, além de confundir expressões

alemãs com as expressões holandesas.

SCHÜTZ, citada por LEFEVERE (1992, p.65), mostra várias modificações nas

traduções dela, como: “worried” [preocupada], que se tornou “restless” [impaciente];

“seemingly” [aparentemente] se tornou “really” [realmente]; “there’s the rub” [aqui está o

problema], se tornou “I fell as if I’m buttoned up” [eu me sinto como se eu estivesse

abotoada]; “such idiots” [como idiotas], se tornou “such lazy people” [como pessoas

preguiçosas]; “rotten” [podre], se tornou “reddish” [avermelhado]; “the whole kit and

caboodle” [todo o mundo], se tornou “rat’s nest” [ninho de rato]; “I was about to explode” [eu

estava a ponto de explodir] foi transformado em “I would have loved to have jumped into her

face” [eu teria adorado ter pulado na cara dela]; neste ultimo caso “explodir” e “pular” têm o

mesmo significado em alemão e em holandês, porém Schütz optou pelo homônimo que não

se encaixa no contexto. Vemos que a tradução de Schütz ilustra o fato de que as editoras

raramente se importam com a qualidade da tradução ou de qualquer manuscrito que

queiram vender. Porém, o mais famoso erro de Schütz foi a seguinte frase: “there is no

greater enmity in the world than between Germans and Jews” [não há maior inimizade no

mundo do que entre alemães e judeus], que foi traduzido como “there is no greater enmity in

this world between these Germans and the Jews” [não há maior inimizade no mundo entre

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estes alemães e judeus]. Otto Frank discutiu com Schütz sobre esta frase e eles chegaram à

conclusão de que “estes alemães” corresponde aproximadamente ao que Anne Frank queria

dizer. Estes são apenas alguns dos erros de tradução entre muitos, que foram cortados

baseados em uma ideologia da época. Nas próprias palavras de Schütz, entendemos bem o

processo ideológico dominando: “um livro que você quer vender bem na Alemanha... não

deveria conter nenhum insulto direto aos alemães” (PAAPE, apud. LEFEVERE, 1992, p.66).

Nas traduções de Schütz houve constante alteração nas descrições diretas sobre os

alemães no diário, pois isso, poderia ser considerado como insulto. Como resultado, o dever

dos judeus não somente na Holanda, mas em toda a Europa era que eles fizessem o

holocausto parecer que não foi tão cruel do que realmente o foi, mesmo matando milhões de

pessoas que em sua maioria eram judeus.

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Capítulo III

Uma Proposta de Aplicação Interdisciplinar de “O Diário de Anne Frank”

“Estou terrivelmente ocupada. Ontem comecei a traduzir um capítulo de La Belle Nivernaise e a escrever palavras do vocabulário. Em seguida trabalhei num problema medonho de matemática e traduzi três páginas de gramática francesa. Hoje é gramática francesa e história. Simplesmente me recuso a fazer aquela matemática horrorosa todos os dias”.

(Anne Frank, 14 de outubro de 1942).

Neste capítulo faço uma proposta de abordagem interdisciplinar de ODAF para o

Ensino Médio, abrangendo disciplinas como História, Língua Portuguesa e Língua Inglesa,

embora este leque possa ser ampliado. O objetivo desta proposta é explicar alguns meios

de aplicação nestas disciplinas, para a partir de uma leitura condizente de ODAF, abordar

temas como a Segunda Guerra Mundial, gêneros textuais (diários, cartas), problemas

presentes nas traduções, que poderão ser detectados a partir de cotejamentos entre

fragmentos de inglês e português. A estratégia de comparação, além de ser uma boa

oportunidade de se trabalhar questões de língua inglesa, também abre possibilidades

múltiplas de sensibilizar os estudantes quanto à ideologia por trás de todo o processo de

leitura e constituição do significado, ao se explicar como fatores diversos, muitas vezes não

considerados nas leituras podem ser úteis no processo de ensino e aprendizado no Ensino

Médio. A escolha de alunos do Ensino Médio justifica-se porque a faixa etária dos alunos se

assemelha à da jovem Anne Frank, o que possibilita um interesse maior pelos assuntos

tratados devido à aproximação etária entre os alunos e Anne Frank.

Deste modo, pode-se dar a oportunidade aos alunos de conhecerem aspectos

históricos, sentimentais, relacionamentos e as preocupações da adolescente Anne Frank.

As atividades sugeridas aqui, também podem ser usadas para incentivar a escrita em língua

inglesa, e língua portuguesa por meio do gênero textual cartas ou diários; Segundo a minha

ótica, é uma forma de motivar os alunos a escreverem cartas entre si, produzir o próprio

diário, ou por meio de correspondências com adolescentes de outros países via messenger,

skype, entre outros, despertando o interesse pela cultura do outro, sendo este um aspecto

importante para o ensino de Língua Estrangeira (LE). Entretanto, antes de focalizar mais

especificamente as disciplinas propostas para aplicação do “Diário”, trago algumas

considerações sobre interdisciplinaridade.

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3.1 – O que é Interdisciplinaridade?

A interdisciplinaridade é um meio em que os profissionais do ensino podem interligar

uma ou mais disciplinas. Porém, muitos pensam que ao fazê-lo as disciplinas perderiam o

seu foco; mas este não é realmente um problema, o importante é que as disciplinas sejam

desenvolvidas em todo o seu potencial para que possa ser articulada com outras (disciplinas

e conhecimentos) que, ligados em cadeia formariam um anel completo de conhecimento.

Segundo Lück (1994, p.64), a interdisciplinaridade é:

(...) o processo que envolve a integração e engajamento de educadores, num trabalho conjunto, de integração das disciplinas do currículo escolar entre si e com a realidade, de modo a superar a fragmentação do ensino, objetivando a formação integral dos alunos, a fim de que possam exercer criticamente a cidadania, mediante uma visão global do mundo e serem capazes de enfrentar os problemas complexos, amplos e globais da realidade atual.

As resistências que se observa quanto à interdisciplinaridade não é um problema só

da atualidade, mas em séculos passados já houve tentativas importantes, de desfragmentar

o conhecimento. Como exemplo, Platão tenha sido um dos primeiros intelectuais a colocar a

necessidade de uma ciência unificada, propondo que esta tarefa fosse desempenhada pela

filosofia. Na Antigüidade, a escola de Alexandria foi o centro de pesquisa e ensino de caráter

neoplatônico, pode ser considerada a instituição mais antiga a assumir um compromisso

com a integração do conhecimento (aritmética, mecânica, gramática, medicina, geografia,

música, astronomia, etc.) a partir de uma visão filosófico-religiosa (Santomé, 1998, p.46).

Através desses registros podemos perceber que há muitos séculos há pensamentos sobre a

integração entre as disciplinas, formando assim, seres pensantes sobre todos os assuntos e

não conhecedores de apenas um único assunto, sem poder integrá-los.

Outra importante hierarquização de níveis de colaboração e integração entre

disciplinas é a proposta por Jean Piaget (1975), para ele há diferença entre os níveis de

integração, o qual divide entre:

• Multidisciplinaridade: O nível inferior de integração. Ocorre quando, para

solucionar um problema, busca-se informação e ajuda em várias disciplinas, sem que

tal interação contribua para modificá-las ou enriquecê-las. Esta costuma ser a

primeira fase da constituição de equipes de trabalho interdisciplinar, porém não

implica em que necessariamente seja preciso passar a níveis de maior cooperação;

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• Interdisciplinaridade: Segundo nível de associação entre disciplinas, em que a

cooperação entre várias disciplinas provoca intercâmbios reais, isto é, existe

verdadeira reciprocidade nos intercâmbios e, conseqüentemente, enriquecimentos

mútuos;

• Transdisciplinaridade: É a etapa superior de integração. Trata-se da construção de

um sistema total, sem fronteiras sólidas entre as disciplinas, ou seja, de uma teoria

geral de sistemas ou de estruturas, que inclua estruturas operacionais, estruturas de

regulamentação e sistemas probabilísticos, e que una estas diversas possibilidades

por meio de transformações reguladas e definidas.

Ao considerar a aplicação da proposta no Ensino Médio, uma definição de

interdisciplinaridade que é pertinente, é a dos Parâmetros Curriculares Nacionais do

Ensino Médio (PCNEM)5 que é a seguinte:

Na perspectiva escolar, a interdisciplinaridade não tem a pretensão de criar novas disciplinas ou saberes, mas de utilizar os conhecimentos de várias disciplinas para resolver um problema concreto ou compreender um determinado fenômeno sob diferentes pontos de vista. Em suma, a interdisciplinaridade tem uma função instrumental. Trata-se de recorrer a um saber diretamente útil e utilizável para responder às questões e aos problemas sociais contemporâneos.

Partindo do pressuposto interdisciplinaridade, vemos a dificuldade de se implantar

tais projetos em uma escola. Para Fazenda (2001, p.17), “no projeto interdisciplinar não se

ensina nem se aprende: vive-se, exerce-se, mas essa responsabilidade está imbuída do

envolvimento – envolvimento que diz respeito ao projeto em si, às pessoas e às instituições

a ele pertencentes”.

Segundo Santomé, (p.65) para desenvolver qualquer trabalho interdisciplinar, é

preciso definir a questão, determinar conceitos necessários para todas as disciplinas

envolvidas, usando modelos mais relevantes, tradições e bibliografia. É necessário também,

desenvolver um marco integrador como questões a serem pesquisadas, especificando os

estudos e pesquisas a serem desenvolvidos, resolvendo os problemas entre as diferentes

disciplinas implicadas, ao se trabalhar com um vocabulário comum e em equipe, mantendo

a comunicação através de técnicas integradoras (encontros e interações freqüentes).

Podemos observar que o que caracteriza a atitude interdisciplinar é a ousadia da

busca, da pesquisa: é a transformação da insegurança num exercício de pensar, num

construir (Fazenda, 2001, p.18). Em um projeto interdisciplinar, comumente podemos 5 Retirado do site: http:// /www.pedagogiaemfoco.pro.br/epcn.htm acessado em 09/10/2005.

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encontrar inúmeras barreiras, seja de ordem pessoal, material e/ ou institucional. Entretanto,

estas barreiras podem ser derrubadas pelo desejo de criar, de inovar e de ir além, o que

pode perdurar na vida toda de um estudante. Após trazer considerações sobre

interdisciplinaridade, apresento abaixo a proposta de ensino interdisciplinar, apontando as

disciplinas envolvidas e o que pode ser trabalhado em cada uma delas, a partir de ODAF.

3.2 – Aplicação Interdisciplinar de “O Diário de Anne Frank” na disciplina de História

Nesta disciplina o professor poderá propor com mais profundidade um estudo dos

aspectos envolvendo a Segunda Guerra Mundial, ao abordar os acontecimentos que

levaram à eclosão do conflito, a política de Adolf Hitler, a política internacional das ditaduras

entre Japão, Itália e Alemanha. Como foram as operações militares, a ofensiva alemã

depois de dominar a Polônia nos seguintes países: Dinamarca, Holanda, Bélgica, Noruega e

França. A Entrada da Itália na Guerra, a resistência Européia e a entrada da URSS e dos

Estados Unidos. A Expansão da Guerra que ocorreu entre 1942 a 1945 e o fim da Guerra,

citando também o ocorrido em Pearl Habor e como conseqüência a bomba atômica em

Hiroshima e Nagasaki.

O professor pode enfatizar e discutir os horrores praticados sobre a questão do

genocídio, falando dos tipos de mortes, dos campos de extermínio, dos lugares onde os

campos de concentração se localizavam, das leis contras os judeus, etc. E tudo isso a partir

de ODAF, pois nele se vê registrado na linguagem sincera de uma adolescente, o que foi na

prática aquilo que só conhecemos e, sob a ótica da ideologia, por meio de documentários e

da história. Depoimentos de sobreviventes podem ser mostrados aos alunos, o que, com

certeza despertará o interesse deles sobre o assunto, vindo os mesmos a querer estudá-lo

de forma dinâmica e interativa.

3.3 – Aplicação Interdisciplinar de “O Diário de Anne Frank” na disciplina de Língua Portuguesa

O Diário oferece também a oportunidade para que os professores de Língua

Portuguesa abordem aspectos ligado à temática tão atual e pertinente dos gêneros textuais.

Marcuschi (2003, p.4) ao tentar definir e explicar o que são os gêneros, diz:

Textos orais ou escritos materializados em situações comunicativas recorrentes. Os gêneros textuais são os textos que encontramos em nossa vida diária com padrões sócio-comunicativos característicos

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definidos por sua composição, objetivos enunciativos e estilo concretamente realizados por forças históricas, sociais, institucionais e tecnológicas.

Percebe-se a partir da citação do autor que os gêneros constituem uma listagem

aberta, são entidades empíricas em situações comunicativas e se expressam em

designações tais como: sermão, carta comercial, carta pessoal, romance, bilhete,

reportagem jornalística, aula expositiva, notícia jornalística, horóscopo, receita culinária, bula

de remédio, lista de compras, cardápio de restaurante, resenha, edital de concurso, piada,

conversação espontânea, conferência, e-mail, bate-papo por computador, aulas virtuais e

assim por diante. Como tal, os gêneros são formas textuais escritas ou orais bastante

estáveis, histórica e socialmente situadas.

Com isso o professor de língua portuguesa pode utilizar o diário mostrando o estilo

das cartas que Anne escrevia à amiga imaginária Kitty: cartas descritivas e românticas.

Como estamos em uma era moderna, o professor também pode falar sobre a linguagem

utilizada nos e-mails, incentivando os estudantes a escreverem seus próprios diários. Há

também espaço de o professor mostrar as diferenças entre cartas formais e como elas são

escritas quando exigidas a uma empresa ou um superior. Ao propor este tipo de tarefa, os

alunos têm possibilidades de trabalhar mais com a escrita e com a leitura de ODAF.

O professor pode também mostrar como a ideologia influencia uma obra literária,

usando como exemplo ODAF; ele pode pedir aos alunos que leiam o diário, para depois

discutirem juntos como a obra foi manipulada e mutilada pela ideologia vigente da época,

mostrando dessa forma, que por trás de toda a literatura há a patronagem6 que dita as

regras, citando os exemplos de vários autores, os quais tiveram suas obras publicadas

muito tempo depois, por serem consideradas perversas para a sociedade; como exemplo,

trago o autor holandês Willem Godschalk van Focquenbroch7 do século XVII.

6 Patronagem, segundo Lefervere (1992, p.15) pode ser entendida como o poder exercido por pessoas e instituições, que determinam o que será permitido ou não ser lido, escrito ou reescrito em termos de literatura. 7 Focquenbroch, nasceu em Amsterdam em 1640. Foi poeta, dramaturgo, foi quem introduziu o estilo burlesco à literatura holandesa seguindo o exemplo do poeta francês Scarron. Ele obteve sucesso literário após a sua morte até meados do séc. XVIII. Focquenbroch não obteve sucesso em sua época, pois sua ideologia não condizia com a ideologia da época, a sociedade não aceitava o seu estilo inovador e era considera um dos poetas mais incapazes da época por ter uma vida muito boemia.

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3.4 – Aplicação Interdisciplinar de “O Diário de Anne Frank” na disciplina de Língua Inglesa

Nesta disciplina, o professor de Língua Inglesa poderá trabalhar com a escrita em

cartas, dando assim, um desenvolvimento maior na escrita dos alunos. A história do diário,

também pode ser recontada em inglês (partes), seria interessante que o professor

selecionasse trechos da obra que mostram discrepâncias provocadas pela ideologia atuante

no momento da tradução, levando assim o senso crítico dos alunos quanto às traduções que

temos por aí e o quanto elas não são nada ingênuas como se pensa. Levá-los a considerar

a alta porcentagem de tradução no Brasil que segundo pesquisas chegam a quase 75%. Há

também o filme “O Diário de Anne Frank” de 1959 que pode ser mostrado para os alunos

para praticarem Listening além de conhecerem a história do diário de forma mais interativa.

O professor de Língua Inglesa pode também propor aos alunos que se

correspondam com adolescentes de outros países, via Messenger, skype e e-mail. O

professor pode mostrar no documentário que Anne Frank se correspondia com uma menina

dos EUA; no esconderijo ela sentiu muita falta disso e como não podia mais fazê-lo inventou

uma amiga imaginária – a Kitty. Com essas atividades é comum que questões culturais

venham à tona, o que permitirão ao professor trabalhar e discutir as diferenças culturais

entre Brasil e outros países. Estas experiências podem se tornar inesquecíveis,

enriquecedoras, mas tudo vai depender da criatividade de bom senso do professor.

3.5 – Aplicação Interdisciplinar de “O Diário de Anne Frank” quanto aos Temas Transversais

Segundo os PCNs8, os temas transversais dizem respeito a conteúdos de caráter

social, que devem ser incluídos no currículo do Ensino Médio, de forma “transversal”; ou

seja, não como uma área de conhecimento específico, mas como conteúdo a ser ministrado

no interior das várias áreas estabelecidas. Mesmo que um determinado tema possa ser

mais pertinente a uma área do que a outra, o fator decisivo do seu grau de inserção em

dada área de conhecimento, poderá depender, pelo menos inicialmente, da afinidade e

preparação que o professor tenha em relação ao mesmo. Os temas transversais dividem-se

entre os seguintes assuntos: ética, pluralidade cultural, meio ambiente, saúde, orientação

sexual e temas locais. Para se trabalhar com ODAF, sugiro utilizar temas como ética, saúde,

orientação sexual e relacionamentos.

8 Retirado do site: http://www.bibvirt.futuro.usp.br/textos/humanas/educacao/pcns/fundamental/transversais.html obtido em 9/10/05.

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3.5.1 “O Diário de Anne Frank” quanto à Ética

A ética de ODAF diz respeito às reflexões sobre as condutas humanas. Para

usá-la, o professor pode colocar em questão como Anne Frank se portava diante da

sociedade e de sua família; como ela se relacionava com a mãe e com os outros

membros do “Anexo Secreto”. Isto poderá levar os alunos a refletirem sobre a própria

vida e se questionarem como agem em relação à sociedade, à família, aos amigos e

aos outros. Aqui entra o aspecto relacionamentos, não só entre pessoas

desconhecidas, mas no caso de Anne Frank, entre pessoas de sexos opostos (ela e

Peter), e sempre bem visto entre os adolescentes da faixa etária de Anne Frank, a

abordagem desse tema em sala de aula.

3.5.2 “O Diário de Anne Frank” quanto à Saúde

Falar de saúde implica, entre várias outras causas (ibidem.) levar em conta,

por exemplo, a qualidade do ar que se respira, estilos de vida pessoa, saneamento

básico, hábitos alimentícios, etc. Ao usar este tema transversal, o professor pode

propor uma abordagem de como eram as condições alimentícias, as de higiene, a

ventilação, os relacionamentos de Anne Frank e seus companheiros no “Anexo

Secreto”.

3.5.3 “O Diário de Anne Frank” quanto à Orientação Sexual

A Orientação Sexual na escola deve ser entendida como um processo de

intervenção pedagógica que tem como objetivo transmitir informações e

problematizar questões relacionadas à sexualidade, incluindo posturas, crenças,

tabus e valores a ela associados. O professor quando for usar este tema transversal

pode mostrar trechos de ODAF, nos quais Anne Frank faz várias menções quanto a

sua sexualidade, suas dúvidas e sobre o que Anne tinha conhecimento, mostrando

aos alunos que é comum ter dúvidas quanto ao assunto, e qual a visão que a

sociedade da época tinha em relação a isso.

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Considerações Finais

Este trabalho visou conduzir o leitor ao conhecimento dos fatos históricos que

ocorreram em ODAF após o período da Segunda Guerra Mundial. Mesmo com a queda do

poder nazista, a ideologia vigente da época era ainda predominante neste período. Como

conseqüência desse fator e da ética relacionada aos seus conceitos sobre sexualidade e

relacionamento familiar, o próprio pai de Anne Frank modificou o seu diário cortando trechos

importantíssimos referentes ao convívio familiar; o diário foi reescrito diversas vezes, o que

mostrou a tradução como a principal forma de reescritura passa por mudanças constantes e

no caso de ODAF, essas alterações foram motivadas por abordar assuntos polêmicos para

a época e criticar o comportamento nazista.

Através da análise de ODAF, pude perceber na prática, que a ideologia está

presente constantemente em nossa vida e atua de forma inflexível principalmente nas obras

literárias, e muitas vezes não nos damos conta de como ela age de forma direta em nosso

dia-a-dia, nos influenciando em pontos relevantes e nos levando a agir de forma

inconsciente. Tendo a ideologia como um dos temas principais, o propósito da pesquisa foi

dar uma breve idéia de como este fator atua em nossa vida sem nos darmos conta. A

análise de ODAF mostrou claramente o papel decisivo da ideologia; foi apenas uma entre

muitas outras obras que foram modificadas, mutiladas e omitidas devido ao contexto

ideológico da época. Isto prova que é preciso levar em consideração que há sempre alguém

ou alguma forma de poder maior que impede ou impõe regras, escolhendo o que deve ou

não ser reescrito (traduzido), publicado.

A própria Anne Frank, pelos relatos do diário, já tinha consciência disso, pois ao ouvir

em transmissão de rádio que os diários de guerra poderiam ser publicados, de imediato

passou a ter postura de autora, reescrevendo ela mesma o diário, segundo a poética

vigente, a fim de buscar a realização de seu sonho adolescente de se tornar escritora. A

partir deste momento, Anne começa a fazer uma reescritura de seu diário, cortando trechos

que não gostaria que fossem publicados, por serem de caráter extremamente pessoal.

A discussão do segundo capítulo da tradução feita por Schütz, a pedido de Otto

Frank, por não dominar a língua holandesa; mostrou que a princípio ela não foi aceita por

Otto Frank, pois empregava expressões antigas que Anne Frank jamais as usaria. No

entanto, a tradução de Schütz foi direcionada ao público que ainda tinha uma ideologia

conservadora. Isto nos permitiu perceber no texto várias distorções de sentido, naqueles

que Anne Frank se referia aos alemães e ao comportamento deles que poderia chocar as

pessoas, no contexto pós-guerra.

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Outra questão fortemente observada na pesquisa foi a patronagem, um dos sistemas

que é movido pela ideologia vigente. Otto Frank sentiu de perto o efeito desse sitema,

quando desejou publicar o diário da filha, pela primeira vez; porém, não pode fazê-lo, devido

aos constantes insultos aos alemães praticados pela autora, pois era ainda a primeira

versão que fora feita do diário. Posteriormente, esta foi modificada por Schütz como foi

comentado acima.

O que se pôde depreender a partir da experiência tradutória na Alemanha, se pode

aplicar também ao Brasil, pois não sabemos quais das grandes obras passaram por este

mesmo problema, o da ideologia vigente atuando, mutilando e omitindo partes importantes

de uma obra. Quantas grandes obras e best sellers tiveram partes omitidas por fatores

ideológicos? Somente um estudo mais a fundo deste tema poderá nos revelar quais outras

obras foram influenciadas pela ideologia. Por tanto, cabe aos tradutores saberem que

sempre há este fator invisível em nossa sociedade e vida, que age sem nos darmos conta.

Ao propor a aplicação interdisciplinar de ODAF, nas disciplinas de História, Língua

Portuguesa e de Língua Inglesa, fui motivada a usar outras obras de caráter semelhante,

não só nas disciplinas como em qualquer obra: a abordagem dos temas transversais me

possibilitou levantar questões importantes para a formação do caráter do ser humano, como

é o caso dos temas transversais, levando assim a reflexão do aluno.

Porém, ao concluir o capítulo onde sugiro a interdisciplinaridade na sala de aula,

pude perceber que este tema é muito mais abrangente, transformando assim a

interdisciplinaridade em transdisciplinaridade. Podemos abrir esse leque e usá-lo também

nas disciplinas como, Geografia, na qual o professor pode mostrar quais foram os países

sob o domínio da Alemanha, a geografia da Europa, mostrando os países pelos quais os

soldados alemães passaram; na Química, o professor pode mostrar os tipos de gases

usados nas câmaras de gás dos Campos de Concentração; na Matemática, pode ensinar

proporção, ao mostrar o número de pessoas na Europa antes da guerra e pós-guerra; na

Biologia, pode apresentar os avanços da medicina feitos na época com experiências em

judeus; e Religião, o professor pode fazer uma comparação entre as crenças dos judeus nos

tempos bíblicos e as dos judeus da atualidade.

Paralela à proposta interdisciplinar, abordei os temas transversais como a ética,

saúde, orientação sexual e relacionamentos. Entretanto, ativeram-se em minha mente

possibilidades de usar quanto à ética, de como Anne se portava diante a sociedade da

época e de sua família, como ela se relacionava com a mãe e com os demais membros do

“Anexo Secreto”, trabalhando ainda o aspecto de relacionamento de Anne Frank com o sexo

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oposto e entre as pessoas. Vimos que também se pode usar os temas transversais de

saúde, ao abordar as formas de saneamento básico, hábitos alimentícios, a ventilação do

esconderijo. Quanto à orientação sexual, mostrar que dúvidas são comuns nesta faixa

etária, falado que Anne escrevera muito sobre a sua sexualidade.

Esta pesquisa buscou mostrar o que a ideologia fez em ODAF, tornando-o

completamente outro, sendo controlado por todos os lados da ideologia vigente da época.

Outro objetivo foi também incentivar os professores do Ensino Médio a trabalharem juntos

em projetos interdisciplinares e transdisciplinares, formando assim cidadãos completos, não

em um determinado assunto, mas num todo.

No contexto do trabalho não tive a intenção de esgotar as questões abordadas neste

presente trabalho. No entanto, penso que este tema, por ser muito relevante, merece

pesquisas posteriores, não somente em ODAF, mas também em outras obras literárias que

passaram pelo mesmo processo de mutilação, omissão e modificação. O mesmo se dá com

a interdisciplinaridade, pois se trata de um tema atual e merecedor de nossa atenção,

trabalhando não somente uma disciplina, mas todas em conjunto.

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