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CENTRO UNIVERSITÁRIO FLUMINENSE - UNIFLU FACULDADE DE DIREITO DE CAMPOS CURSO DE MESTRADO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E PROCESSO A REPRESSÃO AO TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES COMO FORMA DE CONTROLE SOCIAL TIAGO ABUD DA FONSECA CAMPOS DOS GOYTACAZES- RJ 2006

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CENTRO UNIVERSITÁRIO FLUMINENSE - UNIFLU

FACULDADE DE DIREITO DE CAMPOS

CURSO DE MESTRADO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E PROCESSO

A REPRESSÃO AO TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES COMO FORMA

DE CONTROLE SOCIAL

TIAGO ABUD DA FONSECA

CAMPOS DOS GOYTACAZES- RJ

2006

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A REPRESSÃO AO TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES COMO FORMA

DE CONTROLE SOCIAL

TIAGO ABUD DA FONSECA

Dissertação submetida ao corpo Docente

do Programa de Pós-Graduação em

Direito da Faculdade de Direito de

Campos, como requisito necessário à

obtenção do Grau de Mestre em Direito –

Área de concentração Políticas Públicas e

Processo sob a orientação do Professor

Dr. João Ricardo Dornelles.

CAMPOS DOS GOYTACAZES – RJ

2006

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A REPRESSÃO AO TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES COMO FORMA

DE CONTROLE SOCIAL

TIAGO ABUD DA FONSECA

Dissertação submetida ao corpo Docente do Programa de Pós-Graduação em

Direito da Faculdade de Direito de Campos, como parte dos requisitos necessários

para a obtenção do Grau de Mestre em Direito – Área de concentração Políticas

Públicas e Processo .

Aprovada por

Dr. JOÃO RICARDO DORNELLES – Orientador

Dr. ESTER KOSOVSKI

Dr. ROGÉRIO DUTRA SOARES

CAMPOS DOS GOYTACAZES

2006

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DEDICATÓRIA

Aos meus pais, Décio e Janete, pelo amor incondicional e entrega constante. À Ana Luiza, pela compreensão, suporte e conforto nos momentos mais angustiantes desta jornada. A todos aqueles que direita ou indiretamente, com sugestões, críticas e auxílio, ajudaram a terminar esta etapa do meu projeto de vida.

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AGRADECIMENTOS

Aos colegas Defensores Públicos e a todos os meus estagiários, que na luta incessante do cotidiano ainda não perderam a ternura e a esperança e continuam a acreditar que é possível a construção de uma sociedade justa e isonômica. Ao Centro de Estudos Jurídicos da Defensoria Pública Geral do Estado, na pessoa do seu diretor, Dr. José Paulo T. de M. Sarmento, que através da bolsa de estudos a mim concedida tornou viável o sonho do mestrado. Ao Prof. João Ricardo Dornelles, pela inestimável e incansável ajuda e orientação.

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EPÍGRAFE

Acontece para as pessoas, incluindo também os juristas, quando da condenação, alguma coisa de análogo àquilo que ocorre quando um homem morre: o pronunciamento da condenação, com o aparato que todos conhecem, mais ou menos, é uma espécie de funeral; terminada a cerimônia, depois que o acusado sai das jaulas e o recebem em custódia os policiais, recomeça para cada um de nós a vida cotidiana e, pouco a pouco, não se pensa mais no morto. Sob um certo aspecto, pode-se assemelhar a penitenciária a um cemitério; mas se esquece de que o condenado é um sepultado vivo.

Francesco Carnelutti.

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RESUMO O projeto apresentado visa debater a questão de fundo da repressão ao tráfico ilícito de entorpecentes, qual seja, o controle social exercido pelo Estado com a prisão de jovens pobres, moradores de áreas carentes, analfabetos e sem oportunidades no mercado de trabalho. Nesse sentido, é preciso questionar o mito da repressão ao tráfico de entorpecentes como modo de combate ao crime, demonstrando que este discurso na prática esvazia-se quando a maioria da massa carcerária, especificamente no projeto em estudo referente a Casa de Custódia Dalton Castro, situado em Campos dos Goytacazes, constitui-se de jovens alijados das oportunidades sociais pelo próprio Estado. Palavras-chave: tráfico ilícito de entorpecentes; controle social; pobreza.

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ABSTRACT

The presented project strives to discuss the background of the repression to illicit drug dealing, that is, the social control exercised by the State with the imprisonment of young poor people, living at needy areas, illiterate and with no opportunities for work. In this sense, one must question the myth of the repression to drug dealing as a way to fight crime, showing that this discourse actually becomes empty when most of the convicts specifically in the current project, referring to the Dalton Castro Prison, situated in Campos dos Goytacazes, is composed of young people disregarded of social opportunities by the very State. Key-words: repression to illicit drug; social control; poor people.

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SUMÁRIO

RESUMO 07

ABSTRACT 08

INTRODUÇÃO 10

CAPÍTULO 1 - CRIMINOLOGIA: DA ESCOLA CLÁSSICA DE ONTEM A TEORIA CRÍTICA DE HOJE: UMA LEITURA DO SISTEMA PUNITIVO 12 CAPÍTULO 2 – O CONTROLE DO TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES PELO PODER EXECUTIVO: REFLEXO DA POLÍTICA INTERVENCIONISTA NORTE-AMERICANA. 52 CAPÍTULO 3 – REFLEXOS DO MOVIMENTO DE LEI E ORDEM NO BRASIL – O TRATAMENTO DISPENSADO PELO LEGISLATIVO AO TRAFICANTE E AO CONSUMIDOR DE ENTORPECENTES. 71 CAPÍTULO 4 – O PODER JUDICIÁRIO E O TRAFICANTE DE DROGAS COMO INIMIGO 97 CAPÍTULO 5 – ESTUDO DO CASO: A CIDADE DE CAMPOS DOS GOYTACAZES 119 CONCLUSÃO 149 REFERÊNCIAS 152

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INTRODUÇÃO

A experiência da labuta diária nos fóruns da vida trouxe a impressão

de que a clientela do sistema penitenciário é formada por excluídos das

oportunidades sociais. Quando o tema é a repressão ao tráfico ilícito de

entorpecentes a regra é presenciar no banco dos réus o negro, pobre, sem estudo,

alijado do mercado de trabalho, para quem a mão de ferro da repressão estatal é

implacável.

Diante de tal cenário, busca-se no presente trabalho analisar se tal

quadro é real e a razão pela qual tal fenômeno ocorre. Para tanto, no capítulo I da

obra em cotejo almeja-se analisar as diversas escolas da crimininologia e a

ideologia que marca o sistema punitivo, bem como as funções da exercidas pelo

encarceramento.

No capítulo seguinte parte-se para a análise do surgimento e expansão

da política de internacionalização do modelo repressivo em relação às drogas,

analisando a política americana em tema de entorpecentes, já que os Estados

Unidos acabam por ditar a política internacional através de acordos internacionais e

por intermédio do apoio dos organismos internacionais, colmatando por destacar a

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fase atual e a política neoliberal de controle com os reflexos deste modelo repressivo

no Brasil e a importação do movimento de tolerância zero.

No capítulo III pretende-se demonstrar a influência do Movimento da

Lei e da Ordem na legislação brasileira relacionada ao tráfico ilícito de

entorpecentes, seja pela evolução da legislação brasileira sobre o tema, que ainda

não trouxe critério objetivo para distinguir o traficante de entorpecentes do

consumidor de entorpecentes, apesar da aberrante distinção de tratamento

dispensado aos dois tipos penais.

Em seguida, já no capítulo IV do trabalho, será analisado o tratamento

dispensado pelo Poder Judiciário ao tráfico ilícito de entorpecentes.

Na seqüência, buscar-se-á comprovar, através de pesquisa na cidade

de Campos dos Goyacazes, que como conseqüência do tratamento dado ao tema

pelas três funções(ou Poderes) do Estado, sem exceção, o resultado é o controle

social da classe pobre, servindo o direito penal como opressor daqueles a quem o

Estado nunca deu voz ou vez.

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CAPÍTULO 1 - CRIMINOLOGIA: DA ESCOLA CLÁSSICA DE ONTEM A TEORIA

CRÍTICA DE HOJE: UMA LEITURA DO SISTEMA PUNITIVO

O presente capítulo tem por escopo analisar as diversas escolas da

crimininologia e a ideologia que marca o sistema punitivo.

Na primeira parte busca-se, portanto, traçar as características do

pensamento clássico da criminologia e da escola positiva para, ao final, alinhar os

pontos divergentes entre e os pontos convergentes que acabam por formar a

Ideologia da Defesa Social que irá influenciar a legislação de vários países, inclusive

no caso brasileiro.

Já no passo seguinte, pretende-se analisar as chamadas escolas

sociológicas da criminologia, que representam o marco de uma virada no

pensamento criminológico, a começar pela escola de Chicago, com o pensamento

da teoria ecológica, para galgar as teorias estrural-funcionalista e da anomia, bem

como a teoria das subculturas criminais. Ainda neste passo analisa-se as teorias do

labbeling approach e crítica, apontando as divergências em relação ao pensamento

das escolas clássica e positiva da criminologia.

Na seqüência, aborda-se, após estabelecer um paralelo entre os

princípios da chamada Ideologia da Defesa Social e as novas concepções da nova

criminologia que acaba por refutar tais princípios, a ideologia que o sistema punitivo

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e o mito da prisão carregam consigo, colmatando por analisar as funções da

exercidas pelo encarceramento.

1.1 - A escola clássica e a escola positiva

Inicialmente, antes de fazer a abordagem sobre as escolas acima

epigrafadas é necessário delimitar o conceito de criminologia. Segundo o escólio de

Newton Fernandes e Valter Fernandes1, a criminologia

é a ciência que estuda o fenômeno criminal, a vítima, as determinantes endógenas e exógenas, que isola ou cumulativamente atuam sobre a pessoa e a conduta do delinqüente, e os meios laborterapêuticos ou pedagógicos de reintegrá-lo ao grupamento social.

Por outro lado, é imprescindível destacar, desde então, quais são os

objetos da criminologia, quais sejam, o delito, o criminoso, a vítima e o controle

social. O presente trabalho tem por escopo, a partir da análise das escolas

criminológicas, enfocar a forma como é realizado o controle social na sociedade

atual e a ideologia emprenhada no sistema punitivo. Por controle social pode-se

entender “o conjunto de mecanismos e sanções sociais que pretendem submeter o

indivíduo aos modelos e normas comunitários.”2

Na vida em comunidade, duas são as formas de controle social:

informal, ou seja, aquele realizado pelas próprias instituições da sociedade civil,

como a família, a escola, a igreja, etc. e o formal, realizado pela atuação das

agências de controle do Estado, pelo seu aparelho político(polícia, ministério público,

judiciário, etc.). É o direito penal, portanto, a última esfera do controle formal do

Estado.

1 FERNANDES, Newton e FERNANDES, Valter. Criminologia Integrada. 2ª ed. rev, atul. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p.27. 2 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2004, p.56.

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O desafio do presente trabalho, portanto, é demonstrar através do

estudo das escolas criminológicas a forma como este controle social é realizado

pelas instâncias formais de controle na atualidade, bem como o ranço ideológico que

tais práticas carregam, inclusive através da utilização do direito penal para tanto.

A escola clássica como a pioneira da criminologia tem o seu

desenvolvimento no final do século XVIII e início do século XIX através da pena de

autores como Jeremy Bentham(Inglaterra), Fuerbach(Alemanha) e Cesare

Beccaria(Itália). Já a criminologia positivista, vista como primeira fase da criminologia

como ciência autônoma, desenvolve-se entre o final do século XIX e início do século

XX, tendo como precursores na escola sociológica francesa Gabriel Tarde, na

Alemanha Franz von Liszt e na Itália Cesare Lombroso, Enrico Ferri e Raffaele

Garofalo3.

João Farias Junior traça quadro paralelo entre as duas escolas,

anotando os princípios norteadores de cada uma delas4. Enquanto a escola clássica

trata o delito como uma entidade jurídica, que deve estar contido na lei promulgada

e tornada pública para que todos sintam a ameaça da pena, também inserida na lei,

a escola positiva trata o delito como fato humano e social, ou seja, um fenômeno

natural produzido por causas biológicas, físicas e sociais.

Por outro lado, a escola clássica observa o criminoso como um

componente indistinto na sociedade, igual a qualquer ser humano, sem diferença de

caráter, temperamento, estigmas hereditários ou outra circunstância. Já a escola

positiva enxerga variedades tipológicas entre os delinqüentes, distinguindo-os dos

3 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica ao Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 3ª ed., Rio de Janeiro, Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002, p.32. 4 FARIAS JUNIOR, João. Manual de Criminologia. Curitiba, Editora Universitária Champagnat, 1990, p.10.

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homens normais. Logo, para esta escola, os criminosos são considerados anormais,

diferentes dos homens normais por seus estados psíquicos e biológicos. Com efeito,

para a escola clássica o homem não é impelido ao crime por fatores de ordem física,

social, ambiental ou biológica, afastando-se, portanto, os fatores criminógenos. Em

suma, defendem os clássicos que o homem é dotado de livre-arbítrio, o que equivale

a dizer que todo ser humano é provido de inteligência e consciência livres para

escolher entre o bem e o mal e se se torna criminoso é porque quer, fruto da sua

própria vontade. Em contrapartida, a escola positiva defende que o homem é voltado

para o crime impulsionado por fatores geradores do comportamento criminoso, não

possuindo vontade e inteligência autônomas para a escolha do caminho do bem,

sendo influenciado pelos fatores acima alinhavados.

Assim é que, para a escola clássica a responsabilidade penal advém

da responsabilidade moral, que brota da imputabilidade moral e, em conseqüência,

do livre-arbítrio. Em sentido diverso, para a escola positiva a responsabilidade penal

surge do fato do homem viver em sociedade, sendo, portanto sujeito de direitos e

deveres.

No que toca a pena, a escola clássica entende que um mal tem que

ser pago com outro mal, de modo que a sanção é aflitiva, retributiva, intimidativa e

reparatória, devendo a pena ser proporcional a gravidade do crime. Já para a escola

positiva, a pena é uma reação social ao crime, uma vez que o homem convive em

sociedade. Logo, se este mesmo homem perturba a ordem social, o condomínio

social reage e se defende com a pena contra o criminoso, sendo a gravidade da

pena determinada pelo grau de temibilidade e periculosidade do criminoso.

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O foco da escola clássica, portanto, é o delito, preocupando-se com a

legalidade e a justiça. O juiz deve ser a boca da lei, como expressão desta. É do

próprio Cesare Beccaria5 o seguinte liceu:

Advém, ainda, dos preceitos firmados precedentemente, que os julgadores dos crimes não podem ter o direito de interpretar as leis, pelas próprias razões de não serem legisladores. (...) Não há nada mais perigoso do que o axioma comum de que é necessário consultar o espírito da lei. Adotar esse axioma é quebrar todos os diques e deixar que as leis voguem à torrente das opiniões.(...) Sendo as leis penais cumpridas à letra, qualquer cidadão poderá calcular exatamente os inconvenientes de uma ação reprovável; e isso é útil, pois esse conhecimento poderá fazer com que se desvie do crime.

Em sentido diverso, para a escola positiva o enfoque é dado ao

criminoso, buscando auferir quais os fatores levaram ao crime e o estado perigoso

em que se encontra o criminoso. Por sua vez, deve o juiz individualizar a pena

levando-se em consideração a periculosidade do criminoso.

Há reminiscências da escola positiva no Código Penal brasileiro de

1940. Sem pretender ser exaustivo, tem-se a redação do artigo 59 do mencionado

estatuto, quando dispõe sobre os critérios elencados pelo juiz para fixar a pena-

base, estabelece a primazia dos antecedentes, da conduta social e da personalidade

do agente sobre outros vetores, o que nada mais é do que a observância da

periculosidade do criminoso alardeado pela escola positiva, em notória utilização do

direito penal do autor.

Maíra Rocha Machado6 destaca a utilização da expressão “criminoso”

em artigos no Código Penal(artigos 115, 155, §2º, 171, §1º, 180, §5º, 287, 348, §2º e

349) - em primazia nos artigos da parte especial, porquanto a parte geral de tal

estatuto foi modificada em 1984 pela lei 7209 - como resquício da escola positiva no

direito penal.

5 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. trad. Torrieri Guimarães, Hemus, 11ª ed., p. 16/18. 6 MACHADO, Maíra Rocha. A pessoa-objeto da intervenção penal: primeiras notas sobre a recepção da criminologia positivista no Brasil. Revista Direito GV, v.1, n.1, maio 2005, p.79/90.

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Segundo Lélio Braga Calhau7, o enfoque dado pela escola positiva

acabou por servir à classe dominante da época:

De fato, o modelo proposto pelos juristas que se aliaram ao movimento positivista respondia às necessidades da burguesia no final do século XIX. Esta havia se apoiado inicialmente em um Direito Penal Liberal que lhe havia permitido neutralizar a nobreza, limitando, através de um órgão legítimo, seu poder arbitrário. Agora, com o estabelecimento definitivo da nova ordem burguesa, era necessário encontrar outros recursos penais que assegurassem a superveniência da nova ordem social. A burguesia se sentia ameaçada não mais pela nobreza e seu poder arbitrário, senão pelas “classes perigosas”, ou seja, pelas classes menos favorecidas que levavam dentro de si o germe da degeneração e o crime. As idéias penais e criminológicas dos positivistas coincidem com esta preocupação central das novas classes privilegiadas e lhes proporcionam um instrumento prático e teórico para afugentar o perigo que para a estabilidade social representavam os despojados.

Em suma, o que aponta o autor acima citado é o uso direito penal,

servindo à elite em detrimento dos menos favorecidos. Equivale a dizer, que a

utilização do direito penal serviu de base à sociedade do final do século XIX como

forma de controle social, que para isso utilizou-se do critério de criminoso como ser

anormal, ou seja, de critério biológico. Sendo anormal o criminoso, em contraposição

ao homem normal, o remédio, então, era segregá-lo, evitando-se problema para a

classe dominadora.

Mas não só ele. Com relação ainda a escola positiva, Yasmin Maria

Rodrigues Madeira da Costa8 informa que os delírios biologistas avançaram mundo

afora por conta de múltiplos interesses neocolonialistas. Cita no Brasil as idéias de

Nina Rodrigues, pioneiro da criminologia nesta terra, que advogava a superioridade

de uma raça em detrimento de raças inferiores, como os índios, negros e mestiços,

ou seja, encampava a adoção de um critério biológico para pregar a supremacia de

poucos em detrimento de muitos. Tal ensinamento foi seguido no período pós-

7 CALHAU, Lélio Braga. Cesare Lombroso: criminologia e a escola positiva de direito penal. Revista Sínteses de Direito Penal e Processual Penal, Ano IV, nº23, dez-jan 2004, p.157. 8 MADEIRA DA COSTA, Yasmin Maria Rodrigues. O significado ideológico do sistema punitivo brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2005, p.72/73.

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abolicionista, pela elite de médicos e advogados, alçando um povo estigmatizado

por uma inferioridade inscrita no código de raça.

Por pertinente, merecem ênfase os apontamentos de Zaffaroni9 no

mesmo sentido:

Até anos muito recentes, o discurso criminológico latino-americano nasceu e se manteve estritamente vinculado ao positivismo criminológico, particularmente italiano, sendo seus vínculos ideológicos genocidas muito mais estremecedores do que os do próprio discurso jurídico. O fundador da criminologia argentina(fazendo referência a José Ingenieros), confrontado durante uma de suas viagens à Europa com os habitantes de Cabo Verde, ao mesmo tempo que afirmava que estes eram “farrapos de carne humana” mais próximos dos antropóides do que do homem, defendia a escravidão como instituição tutelar, submergindo o exercício dos direitos civis ao prévio alcance de um grau suficiente de evolução biológica. Enquanto isso, seu colega brasileiro(fazendo referência a Nina Rodrigues) afirmava na Bahia – de acordo com a linha de psiquiatria racista francesa de Monreal- que os mulatos eram desequilibrados morais e que a responsabilidade penal deste grupo deveria ser diminuída ou excluída conforme os postulados do discurso penal tradicional, o que, em outros termos, classificava a maior parte da população brasileira como em “estado perigoso”.

Não é à toa que, malgrado as distinções de concepção nupercitadas

entre as escolas clássica e positiva, ressalta Alessandro Baratta10 que ambas

apresentam um modelo na qual a ciência jurídica e a concepção geral do homem e

da sociedade estão estreitamente ligadas: uma ideologia da defesa social.

Imperioso acentuar que o referido autor utiliza o termo ideologia no

sentido de falsa consciência que legitima instituições sociais atribuindo-lhes funções

ideais diversa das realmente exercidas11. Aponta, ainda, que a ideologia da defesa

social foi herdada pela escola positiva da escola clássica, servindo de arcabouço

para a evolução da sociedade burguesa e de sustentáculo para a passagem do

estado liberal clássico ao estado social.

9 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. trad. Vânia Romano Pedrosa, Amir Lopez da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p.42/43. 10 BARATTA, Alessando. Op. cit., p.41. 11 Ibidem, p.240, nota nº2 ao capítulo II.

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Pela importância das escolas e pela influência exercida sobre o direito

penal, mister referir-se aos princípios da ideologia da defesa social12: 1) princípio da

legitimidade, segundo o qual o Estado está legitimado a reprimir a criminalidade por

ser expressão da sociedade, através das instâncias formais de controle, que por sua

vez, interpretam a legítima reação social no sentido de reprovar e condenar o

comportamento desviante individual, reafirmando as normas e valores sociais; 2)

princípio do bem e do mal, onde a sociedade encarna o papel do bem contra o delito

que é representa o mal, sendo o delinqüente o elemento negativo e disfuncional do

sistema social; 3) princípio da culpabilidade, pelo qual o crime é expressão de uma

atitude reprovável, porque em afronta aos valores e normas sociais13; 4) princípio da

finalidade(prevenção), que vislumbra na pena não apenas o fim retributivo, mas

também preventivo, já que deve criar no criminoso o receio da prática do

comportamento desviante; 5) princípio da igualdade, que idealiza a igualdade de

todos perante a lei, já que a reação penal se aplica de modo isonômico a todos os

autores de delitos; 6) princípio do interesse social e do delito natural, segundo qual

os interesses protegidos pelo direito penal são comuns a toda sociedade(delito

natural) e apenas uma pequena parte dos delitos representa a violação de

determinados arranjos políticos e econômicos, sendo punidos em função da

supremacia(ainda que momentânea) destes(delitos artificiais).

12 BARATTA, Alessando. Op. cit., p.42. 13 Para a escola clássica este princípio é dotado de um significado de desvalor, de condenação moral, porque o indivíduo detentor de livre-arbítrio enveredou-se para a seara delitiva, o lado do mal. Ao revés, para a escola positiva, tal princípio revela a periculosidade do criminoso, como reflexo dos fatores criminógenos que o influenciam.

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1.2 – As escolas sociológicas

As teorias sociológicas representaram a virada no pensamento

criminológico, vez que abandonaram o conceito de defesa social, deslocando o foco

da análise do fenômeno criminal do sujeito criminalizado para o sistema penal e os

processos de criminalização que dele fazem parte e mais em geral para todo o

sistema da reação do desvio.

1.2.1 – A escola de Chicago e a teoria ecológica

Nos Estados Unidos, na segunda metade do século XIX, ocorreram

mudanças sociais com a consolidação da burguesia industrial, financeira e

comercial, e a expansão da classe média e trabalhadora, orquestrada pelo grande

fluxo imigratório e migratório para as cidades.

A título de exemplo, a cidade de Chicago que em 1840 possuía uma

população de 4.470 habitantes passa a ter mais de dois milhões de habitantes em

1920. A cidade era um entroncamento de linhas ferroviárias que seguiam para o

oeste, o que fez com que se transformasse em grande centro comercial do meio-

oeste dos Estados Unidos14. É nesta cidade, junto ao Departamento de Sociologia

da Universidade de Chicago que surge a chamada Escola de Chicago, onde se

desenvolvem teorias e estudos sociológicos. Convém sinalizar que, como acentuado

por Antonio García-Pablos de Molina, não é correto apontar a Escola de Chicago

como sinônima da teoria ecológica. Embora tenha sido o berço da teoria, a Escola

de Chicago “é mais que uma teoria da criminalidade, mais que uma escola

14 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Importância e atualidade da Escola de Chicago. Discursos Sediciosos. Crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 2000, p.150/151.

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sociológica: constitui, na verdade, o germe e o crisol das mais relevantes

concepções da Sociologia Criminal.”15

Enquanto os clássicos utilizavam em suas pesquisas o método lógico-

dedutivo e os positivistas o método experimental, a Escola de Chicago trabalhou

com análise de campo, com os inquéritos sociais, que eram realizados através de

interrogatório a um grupo determinado de pessoas, sobre os aspectos buscados

pelo pesquisador. Trabalhou, ainda, com os estudos biográficos de casos

individuais, ou seja, com investigações empíricas.

A teoria ecológica tem como idéia central, de acordo com o que aponta

Shecaira16, o fato de que a cidade tem sua feição própria calcada nos processos

vitais das pessoas que a compõem, possuindo uma ordem moral decorrente das

manifestações culturais de seus habitantes, não se constituindo apenas do espaço

físico. Por isto, para se entender a aplicação da teoria ecológica é preciso se ater a

idéia de desorganização social e a identificar as áreas de delinqüência.

A tese da escola ecológica17 é da existência de um paralelo entre a

criação dos novos centros urbanos e da criminalidade urbana. Os grandes centros

urbanos produziriam a delinqüência, com a existência de zonas onde a criminalidade

se concentra. Segundo a Escola de Chicago, há nas grandes áreas urbanas

determinado espaço, já socialmente delimitado, próximo do centro dos negócios,

deteriorados pelas péssimas condições de vida e infra-estrutura, onde reside a

classe social miserável, onde existem as taxas de criminalidade mais altas. De

acordo com a idéia da citada teoria, os grandes centros urbanos se desenvolvem por

círculos concêntricos, a partir da criação de anéis, que se proliferam da área central

15 GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio e GOMES, Luiz Flávio. Criminologia. 4ª ed. São Paulo: RT, p.342, nota de rodapé nº 13. 16 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Op.cit., p.154/162. 17 GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio e GOMES, Luiz Flávio. Op. cit., p.343/344.

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em direção as zonas mais afastadas. Na área central, estaria a zona comercial. Na

segunda área, estaria a zona de transição entre o centro e as zonas residenciais.

Nesta área há uma mobilidade muito grande, porque a população sempre estará

disposta a mudar de local, porque esta área é afetada pelo barulho, mau cheiro das

indústrias, pela criação de guetos, etc. Por ser uma área depreciada, este local

serve de morada para pessoas de baixa renda. Pela mobilidade da população, pela

inexistência de vínculos, o que gera a debilidade do controle formal, nestas áreas há

uma predisposição a ocorrência de crimes. A terceira área, composta por pessoas

que fugiram da área de transição e de pessoas que necessitam de estar próximas

do local de trabalho, é uma zona de moradia de trabalhadores pobres. A quarta área

concentra pessoas da classe média. A quinta área, afastada do centro da cidade, é

composta por pessoas que compõem a classe alta, que ficam distantes do seu local

de trabalho e se dispõem a gastar até o local do trabalho em torno de uma hora para

o deslocamento18.

Com efeito, a teoria ecológica explica o efeito criminógeno dos grandes

centros urbanos com base na desorganização do tecido social, esgarçado pela

carência do controle social, em decorrência da deteriorização dos órgãos de controle

informal, a modificação das relações interpessoais tornando-as superficiais, a

mobilidade e a perda da identidade do local de residência (vizinhança), a crise dos

valores familiares e a superpopulação.

Se por um lado se reconhece o mérito da falada escola, no que atina a

política criminal, vez que a trabalha com a idéia prioritária de prevenção no lugar de

repressão, cujo foco é a comunidade local, ou seja, os organismos de controle

informal da criminalidade, bem como na utilização do método empírico para o seu

18 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Op.cit., p.151.

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estudo, de outra parte impende ponderar os equívocos de sua visão simplificada:

pela simples leitura, pode-se detectar que a escola ecológica liga as áreas

deterioradas com a pobreza e a criminalidade, o que pode levar a crer que nas áreas

nobres não ocorrem delitos, bem como que ricos não praticam crimes; outro

equívoco é relacionar o cometimento de crimes em determinadas áreas com a

autoria dos mesmos aos moradores da localidade; não explica também a teoria

ecológica as condutas criminosas praticadas fora das áreas de transição; ainda se

desencontra quando prioriza na análise do crime sob o aspecto ecológico, apenas,

esquecendo que o homem é capaz de discernir e escolher o seu caminho,

minimizando o efeito individual na eclosão do crime.

1.2.2 – A Teoria estrutural-funcional e da anomia

Outra teoria deve ser analisada: a Teoria Estrutural-Funcional do

Desvio e da Anomia. Como dito alhures, se as escolas sociológicas representam

uma virada sociológica no estudo da criminologia, a teoria em apreço põe em dúvida

o princípio do bem e do mal, revendo criticamente a orientação biopsicológica do

delinqüente.

São afirmações da presente teoria as seguintes: as causas do desvio

não devem ser buscadas nos fatores bioantropológicos, naturais ou mesmo em

uma situação patológica da estrutura social; o desvio deve ser encarado como

fenômeno normal de toda estrutura social; o fenômeno do desvio somente é

negativo para a existência e desenvolvimento da estrutura social quando

ultrapassados determinados limites, onde se segue um estado de desorganização

no qual todo o sistema de regras de conduta perde valor, enquanto um novo sistema

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ainda não se afirmou, sendo esta a situação de anomia. Caso contrário, dentro dos

seus limites funcionais, o comportamento desviante é um fator necessário e útil para

o equilíbrio e o desenvolvimento sócio-cultural19.

Emile Durkheim20 em suas obras Da divisão do trabalho social(1893) e

O suicídio(1897) critica duramente o caráter patológico dado ao crime, já que

apontava para o fato de desconhecer uma sociedade sem criminalidade. Destarte, o

reconhecimento do crime como doença era o mesmo que afirmar que a patologia

não era algo acidental, mas sim essencial ao ser vivo. Defendeu, portanto, que havia

confusão entre a fisiologia da vida social e a sua patologia. Somente as formas

anormais do desvio, como o crescimento escabroso podem ser considerados

patológicos. Do contrário, é parte integrante de uma sociedade normal e saudável.

Mas segundo a idéia sufragada pelo autor acima apontado, em que

consiste a normalidade e a funcionalidade do delito para o grupo social?

A uma, quando o delito estimula a reação social sustenta a

conformidade às normas. A duas, a reação reguladora do fenômeno provoca

alterações em outros setores normativos, tornando possível a transformação e a

renovação social. Aliás, o crime muitas vezes não só abre caminhos para mudanças

como antecipa mesmo o conteúdo de tal transformação, exercendo um papel direto

no desenvolvimento moral de uma sociedade.

Em decorrência disso, Durkhein não enxerga o criminoso como um ser

anti-social, mas como agente regulador da vida social(visão funcionalista do delito).

Como corolário, sustentou, em dissonância com as concepções naturalistas e

positivistas, como causa da criminalidade fatores intrínsecos ao sistema sócio-

econômico do capitalismo, baseado em uma divisão de trabalho muito mais

19 BARATTA, Alessando. Op. cit., p.59. 20 DURKHEIM, Emile apud BARATTA, Alessandro. Op. cit., p.59/62.

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diferenciada e coercitiva, com o nivelamento dos indivíduos e as crises sociais e

econômicas que isso traz consigo. Trabalha o fenômeno da anomia, que caracteriza

a transformação da estrutura sócio-econômica, não apenas na crise, porque os

esforços dedicados ao sucesso econômico são frustrados, mas em momentos de

expansão imprevista, porque a rapidez com que o sucesso econômico pode ser

conseguido coloca em crise o equilíbrio entre o fim e os modelos de

comportamentos adequados àquele, colacionando a idéia de crise de falta e crise de

sobra.

Em 1938, Robert Merton21 retorna a idéia de anomia em sua obra

Social theory and social structure, interpretando o desvio também como produto da

estrutura social absolutamente normal, como o comportamento conforme as regras.

Isto significa que além do efeito repressivo possui um efeito estimulante sobre o

comportamento individual e os mecanismos de transmissão entre a estrutura social

e as motivações do comportamento conforme e do comportamento desviante são da

mesma natureza. O modelo proposto consiste em apontar o desvio como uma

possível contradição entre a estrutura social e a cultura. A cultura estabelece metas,

que constituem as motivações fundamentais do comportamento humano. A cultura

também estipula comportamentos institucionalizados(comportamento padronizados,

standart) que resguardam as modalidades e os meios legítimos para atingir as

metas. A estrutura sócio-econômica oferece, em graus diversos, aos indivíduos a

possibilidade de acesso às modalidades e aos meios legítimos para alcançar as

metas. A desproporção que pode existir entre os fins culturalmente reconhecidos

como válidos e os meios legítimos à disposição do indivíduo está na origem dos

comportamentos desviantes, que não deixa de ser normal, salvo se atingir o nível

21 MERTON, Robert apud BARATTA, Alessandro. Op. cit., p.62/67.

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crítico da anomia, que para Merton significa a crise da estrutura cultural, com

divergência entre as normas e os fins culturais, por um lado, e por outro a as

possibilidades socialmente estruturadas de agir consoante com as normas e os fins

culturais.

Defende, ainda, que a estrutura social não permite que todos ajam,

concomitantemente, conforme os valores e às normas, variando segundo a posição

que os indivíduos ocupam na sociedade. Por isso, surgem comportamentos distintos

– conformistas ou desviantes- que classificou como os cinco modelos de adequação

individual, quais sejam: 1) conformidade, que é a resposta positiva aos fins e aos

meios institucionais, só existindo sociedade se a conformidade for a atitude típica

que nela é encontrada; 2) inovação, que é a adesão aos fins culturais, sem respeito

aos meios institucionalizados, sendo entendido como o comportamento criminoso

típico; 3) ritualismo, que se traduz no respeito formal aos meios, sem a busca pelos

fins culturais; 4) apatia, negação tanto dos fins culturais, quanto dos meios

institucionais; 5) rebelião, que é considerada não a simples negação dos fins e dos

meios, mas a afirmação de fins alternativos, mediante meios alternativos.

Assaz importante mencionar, que o citado autor conclui que tanto para

se tornar criminoso, como para atingir os graus mais elevados da pirâmide social

não são decisivas as características biopsicológicas dos indivíduos, mas a

pertinência a um ou outro setor da sociedade. Finaliza por justificar a criminalidade

do colarinho branco porque a classe dos homens de negócio adere e personifica o

fim social dominante na sociedade norte-americana, que é o sucesso econômico

sem ter interiorizado as normas institucionais, através das quais são determinadas

as modalidades e os meios para a obtenção dos fins culturais, o que acaba por

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provocar um verdadeiro vale-tudo par alcançar a meta do sucesso econômico,

terminando pelos fins justificar os meios.

Alessandro Baratta22 impõe crítica ao pensamento de Merton, dizendo

que este último teve que acentuar no colarinho branco a falta de interiorização das

normas institucionais em detrimento da limitada possibilidade de acesso aos meios

legítimos para a obtenção do fim cultural, que é o sucesso econômico. Este último

elemento que constitui a variável principal do desvio inovador das classes mais

desfavorecidas, não tem a mesma função de explicar a criminalidade do colarinho

branco, por se tratar de indivíduos das classes mais abastadas. Defende que é uma

visão superficial fazer da criminalidade das camadas privilegiadas um mero

problema de socialização e interiorização de normas, sendo a criminalidade do

colarinho branco um corpo estranho na Teoria de Merton.

E arremata Baratta23:

Em realidade, estas teorias têm uma função ideológica estabilizadora, no sentido que possuem, sobretudo, o efeito de legitimar cientificamente e, dessa maneira, de consolidar a imagem tradicional da criminalidade, como própria do comportamento e do status típico das classes pobres na sociedade, e o correspondente recrutamento da “população criminosa” destas classes.

1.2.3 – A teoria das subculturas criminais

No passo seguinte, merece destaque a Teoria das Subculturas

Criminais. Discorre novamente Baratta24, que tanto a teoria funcionalista e a teoria

das subculturas criminais não se excluem por completo, mas são compatíveis,

embora a primeira tenha buscado estudar a vinculação funcional do comportamento

desviante em cotejo com a estrutura social, ao passo que a segunda visa estudar

22 BARATTA, Alessandro. Op. cit., p.66/67. 23 Ibidem, p.67. 24 Ibidem, p.69/71.

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como a subcultura criminal se comunica aos jovens, enfatizando o problema

estrutural da origem dos modelos subcultural de comportamento que são

interligados.

Antonio García-Pablos de Molina25 no estudo desta teoria descreve

que a mesma nasceu na década de 1950, como resposta ao problema que criado

pelas minorias marginalizadas e embora a teoria guardasse relação com a temática

da delinqüência juvenil acabou por se tornar uma explicação generalizada para o

fenômeno da conduta desviada. Prossegue o autor em testilha aduzindo que tal

teoria repousa em três idéias fundamentais, a saber: de um lado, o caráter pluralista

da ordem social, representada por um novelo de grupos e subgrupos, cada um deles

possuindo seu código de valores, que não necessariamente são coincidentes com

os valores majoritários e oficiais, que derruba aquela idéia da ordem social una

oferecida pela criminologia tradicional; de outra banda a cobertura normativa da

conduta desviada, o que equivale a afirmar que a conduta desviada não é produto

da desorganização do tecido social como sustentava a teoria ecológica, mas sim de

outros sistemas de normas e de valores diversos(os subculturais); por derradeiro, o

último traço é a semelhança estrutural entre o comportamento regular e irregular,

porque ambos são definidos pelos sistemas de normas oficiais e subculturais, o que

em última análise significa afirmar que a pessoa reflete com sua conduta o que

aceitou e interiorizou em relação a cultura ou subculturas a que pertence,

independente de ser delinqüente ou não. Observa, portanto, o delito como fruto de

uma organização social distinta, de códigos de valores próprios ou ambivalentes aos

da sociedade oficial, ou seja, dos valores de cada subculturas. O delito, porém, não

25 GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio e GOMES, Luiz Flávio. Op. cit., p. 363/365.

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é decorrência da desorganização social(teoria ecológica) ou da carência

normativa(teoria da anomia).

Juarez Cirino dos Santos26 cita Edwin Sutherland e sua teoria sobre o

comportamento criminoso como sendo uma conjugação da existência de normas

culturais(criminais ou não) e da transmissão das mesmas em uma sociedade de

pluralismo normativo, onde cada um assimila ditas normas de uma maneira.

Em síntese, o pensamento de Sutherland27 é no sentido de que uma

pessoa torna-se criminosa ou não pelo grau de freqüência e intensidade de suas

relações com os dois tipos de comportamento (criminosos ou não), a que chama de

associação diferencial. Este autor critica a generalização do comportamento humano

com base em condições econômicas, psicopatológicas ou sociopatológicas pelas

seguintes razões: porque estas generalizações se baseiam em uma falsa amostra

da criminalidade, já que pela criminalidade oficial e tradicional a criminalidade do

colarinho branco é quase que inteiramente desconhecida; porque não explicam a

criminalidade dos endinheirados; bem como não consolidam uma teoria geral sobre

a criminalidade, fazendo somente em relação as classes menos favorecidas.

A teoria das subculturas criminais nega o princípio da culpabilidade das

teorias da defesa social. Não existe, como afirmava a criminologia clássica, um único

sistema integrado de normas. Ao revés, existem sim vários grupos e várias

sociedades dentro de uma sociedade, existindo valores distintos e normas

específicas nos diversos grupos sociais. Os mecanismos de interação e de

aprendizagem nos grupos são absorvidos pelos indivíduos do grupo, o que

determina o comportamento em concurso com os valores regados pelo direito e pela

26 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. As raízes do crime: um estudo sobre as estruturas e as instituições da violência. Rio de Janeiro, 1984, Ed. Forense, p.38. 27 SUTHERLAND apud BARATTA, Alessandro. Op. cit., p.71/72.

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moral oficial. Desta forma, somente de maneira aparente pode a pessoa escolher o

sistema de valores aos quais adere, porquanto as condições sociais, estruturas e

mecanismos de comunicação e de aprendizagem determinam que o indivíduo

pertença a este ou aquele grupo, com a transmissão de modelos de comportamento,

valores, normas e técnicas, mesmo ilegítimos.

Disso tudo se extrai, segundo a lição de Alessandro Baratta28, a larga

contribuição das teorias sociológicas para relativizar a ideologia do discurso penal

tradicional:

Tanto a teoria funcionalista da anomia, quanto a teoria das subculturas criminais contribuíram, de modo particular, para esta relativização do sistema de valores e de regras sancionadas pelo direito penal, em oposição à ideologia jurídica tradicional, que tende a reconhecer nele uma espécie de mínimo ético, ligado às exigências fundamentais da vida da sociedade e, freqüentemente, aos princípios de toda convivência humana. A teoria da anomia põe em relevo o caráter normal, não patológico, do desvio, e a sua função em face da estrutura social. A teoria das subculturas criminais mostra que os mecanismos de aprendizagem e de interiorização de regras e modelos de comportamento, que estão na base da delinqüência, e em particular, das carreiras criminais, não diferem dos mecanismos de socialização através dos quais se explica o comportamento normal. Mostra, também, que diante da influência destes mecanismos de socialização, o peso específico da escolha individual ou da determinação da vontade, como também o dos caracteres (naturais) da personalidade, é muito relativo. Deste último ponto de vista, a teoria das subculturas constitui não só uma negação de toda teoria normativa e ética da culpabilidade, mas uma negação do próprio princípio de culpabilidade, ou responsabilidade ética individual, como base do sistema penal.

1.2.4 - Labelling approach

A próxima teoria a ser observada é o labelling approach, também

designada de teoria do etiquetamento, interacionista ou da reação social. Após a 2ª

Guerra Mundial, os Estados Unidos são catapultados à condição de grande potência

mundial, estando em pleno desenvolvimento o Estado do Bem-Estar Social, o que

acaba por mascarar as fissuras internas vividas na sociedade americana. A década

28 BARATTA, Alessandro. Op. cit., p.76.

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de 60 é marcada no plano externo pela divisão mundial entre blocos: capitalista

versus socialista, delimitando o cenário da chamada Guerra Fria. Já no plano

interno, os norte-americanos se deparam com a luta das minorias negras por

igualdade, a luta pelo fim da discriminação sexual, o engajamento dos movimentos

estudantis na reivindicação pelos direitos civis29. É neste efervescente cenário, que

surge a teoria em foco.

Desde logo se afirma que três daqueles princípios tradicionais da

Escola da Defesa Social são refutados pelo labelling approach.

O princípio da igualdade, base do direito penal, que idealiza a

igualdade de todos perante a lei, já que a reação penal se aplica de modo isonômico

a todos os autores de delitos é severamente questionado porque segundo o labelling

approach o desvio e a criminalidade não são entidades ontológicas preconcebidas,

mas, ao revés, uma pecha atribuída a determinados sujeitos através dos

mecanismos oficiais e não-oficiais de seleção. Em outras palavras, a criminalidade

marca o indivíduo, como um status social, através da etiqueta de criminoso, sendo

certo que as chances de se tornar um etiquetado são desigualmente distribuídas na

sociedade por aqueles que detêm o poder30.

E por que para a teoria em voga o delito não é uma entidade

ontológica preconcebida? Porque o labelling approach defende que a criminalidade

é manifestação da maioria(e não de uma minoria como é defendido pelas escolas

tradicionais), por incluir em seus números as infrações não perseguidas, a cifra

29 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia..., p.371/374. 30 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão da segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. 2ª Ed. Porto Alegre: ed. Livraria do Advogado, 2003, p.201/203.

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negra e a delinqüência do colarinho branco. Neste sentido, os apontamentos de Lola

Aniyar de Castro31:

Mas nenhuma investigação científica deste tipo que se considere séria pode adiantar generalizações sobre uma mostra que não é representativa da população delitiva total. E não é representativa, porquanto os inúmeros estudos feitos para estimar a delinqüência oculta e para definir e fundamentar conceito de crime do “colarinho branco” demonstram quão pouco é significativo o universo do estudo da criminologia tradicional. Por isso pode-se dizer que os fantasmas ameaçadores da seriedade científica da velha criminologia são a relatividade do delito, a cifra negra da delinqüência e o crime do “colarinho branco”.

Com efeito, está na própria relatividade do delito, citada acima por Lola

Aniyar de Castro, a negação de outro princípio da criminologia tradicional, qual seja,

o princípio do interesse social e do delito natural. Este princípio concebe que os

interesses protegidos pelo direito penal são comuns a toda sociedade(delito natural)

e apenas uma pequena parte dos delitos representa a violação de determinados

arranjos políticos e econômicos, sendo punidos em função da supremacia(ainda que

momentânea) deste grupo de poder. Entretanto, a teoria do etiquetamento confronta

tal idéia através da localização das variáveis do processo de definição nas relações

de poder e nos grupos sociais, tomando em conta a estratificação social e os

conflitos de interesse. Há, segundo a teoria em testilha, não apenas uma desigual

distribuição do status de criminoso, mas também uma desigual distribuição entre os

grupos sociais das pessoas que podem ditar o que é criminalidade. Assim, aqueles

que detêm este poder, o fazem em prestígio a ideologia do grupo ao qual pertencem

e não em nome dos interesses fundamentais para uma determinada sociedade ou

para toda a sociedade. Como conseqüência, aquele aspecto político dos delitos

artificiais(diagnosticado pela Defesa Social) é estendido a todos os delitos, como

31 CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da reação social. trad. Ester Kosovski. Rio de Janeiro. Ed. Forense, 1983, p.63.

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resultado do fenômeno total da criminalidade, como realidade social não

preconcebida mas criada através dos processos de criminalização.

Não é por oura razão que Lola Aniyar de Castro32 chega à conclusão

de que

o delito, pois, é nada mais do que um ponto de vista sobre o anti-social que logrou impor-se sobre outros pontos de vista, em dado momento e lugar. Assim, sobre a base da relatividade do delito, que nada mais é do que uma forma derivada das variações da reação social(o que confirmaria os postulados básicos da chamada Criminologia da Reação Social), pode-se afirmar que não há diferenças entre os delinqüentes e os não-delinqüentes. Se em um determinado tempo ou lugar permite-se o homicídio, o adultério, a homossexualidade, etc., e em outro não, é claro que a pessoa desse outro lugar não há de ser diferente daquela que o pratica em um determinado país onde estas condutas são lícitas.

Faz-se a ressalva, neste caso, que a distinção entre os criminosos está

na vontade daqueles que detêm o poder em criminalizar e etiquetar determinado

contingente.

Por último, o princípio da finalidade(prevenção), que vislumbra na pena

não apenas o fim retributivo, mas também preventivo, já que deve criar no criminoso

o receio da prática do comportamento desviante é também questionado na medida

em que as instituições totais não reeducam, muito menos ressocializam, ao

contrário, geram sanções estigmatizantes.

Vera Regina Pereira de Andrade33 traça como matrizes teóricas da

teoria da reação social o interacionismo simbólico, que supera as concepções

antropológicas e sociológicas ao defender que não é possível conceber a natureza

humana como dados imutáveis, sendo resultado do processo de envolvimento,

comunicação e interação social e na etnometodologia, segundo a qual a sociedade

não é uma realidade que se conheça no plano objetivo, mas o produto de

construção social, que nasce do processo de definição e tipificação por parte dos

32 CASTRO, Lola Aniyar de. Op. cit., p.65. 33 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Op. cit.203/213.

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indivíduos pertencentes a grupos sociais distintos, motivo pelo qual o estudo da

realidade social toca o estudo do processo de criminalização.

Como visto alhueres, para esta escola o desvio e a criminalidade não

podem ser vistos como uma qualidade intrínseca da conduta, que já floresça

criminosa, mas uma etiqueta atribuída a determinados sujeitos por complexos

processos formais e informais de definição(que atribuem a conduta o caráter

criminoso) e de seleção(que rotulam um autor de criminoso). Por conseguinte, o

estudo da criminalidade é, em verdade, o estudo dos processos de criminalização e

dos criminalizados. O crime e a criminalidade, portanto, não são objetos, mas

produto da reação social(por isso não possuem natureza ontológica) e o controle

social, através das agências de controle criam a natureza criminal de uma conduta

ao rotulá-las desta maneira. E assim é feito de maneira desigual e seletiva pelo

controle social.

A teoria em apreço muda o foco de interesse das causas do crime para

a reação criminal da conduta desviada e para o sistema penal, como conjunto

articulado de processos de definição e de seleção e para o impacto que produz o

etiquetamento na identidade do desviante (tal teoria passa a questionar ao invés de

“quem é o criminoso?” ou “por que o criminoso comete crime?”, “quem é definido

como desviante?” “por que definem alguns indivíduos como desviantes?”, “que

efeitos decorrem da rotulação” e “quem define quem?”).

Três são os níveis explicativos do labelling approach: 1) a investigação

do processo de definição da conduta desviada(criminalização primária), que leva ao

problema da distribuição do poder social desta definição(ou de quem detém o poder

em maior ou menor escala); 2) a investigação do processo de atribuição do status

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criminal(processo de criminalização secundária); 3) a investigação do impacto da

atribuição do status de criminoso na identidade do desviante(desvio secundário).

Ademais, a teoria do etiquetamento recusa o monismo cultural e do

modelo de consenso como explicativos das normas penais, o que correspondia a um

postulado da Criminologia positiva. Defende que as normas penais são decorrentes

de um pluralismo, sendo que seu processo de criação não deriva de um amplo

consenso social nem é guiado pela efetiva tutela dos interesses gerais, mas sim

representam as relações de poder existentes.

Por outro lado, vale registrar que sob o ângulo do processo de

criminalização seletiva, o sistema penal representa a continuação de segmentos,

que se iniciam do legislador até os órgãos de persecução das agências de

controle(incluindo aqui até mesmo os órgãos de fiscalização do cumprimento da

pena mesmo em liberdade), sendo fundamental visualizar o sistema penal incluído

em toda a mecânica de controle e seleção, que surge desde os processos gerais de

etiquetamento do controle social informal. O sistema penal é espécie, cujo gênero é

o sistema geral de controle e seleção.

1.2.5 - Teoria crítica

Por último, restam alguns comentários sobre a Teoria Crítica. Também

denominada de teoria radical ou nova criminologia, dita teoria surge na década de

1970.

Sustentando ser o delito um fenômeno dependente do modo de

produção capitalista e escorando-se, portanto, no pensamento marxista, a teoria

crítica argumenta a incapacidade das teorias do consenso de conceberem o

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fenômeno criminal em sua totalidade34. O foco do marxismo em relação à

criminalidade é a crítica ao funcionalismo do pensamento criminal, já que a lei penal

nada mais é do que uma estrutura que depende do sistema de produção. O direito,

longe de ser uma ciência como pensam os funcionalistas é uma ideologia, que

somente será entendida através da análise sistêmica denominada método histórico-

dialético. Não há que se falar em livre-arbítrio, pois o homem está submetido a um

vetor econômico que é mais forte que ele, que acaba por produzir a criminalidade

como fenômeno global.

Tracejando um paralelo entre a teoria funcional(Émile Durkheim) e a

base do pensamento da teoria crítica(Karl Marx), William J. Chambliss35 chega aos

seguintes pontos divergentes: 1) para Marx, como sociedade sadia é aquela livre de

conflito de classes, o crime reflete um estado temporário de um processo histórico

de mudança, diverso da concepção de Durkheim que o entende como um

ingrediente para todas as sociedades sadias; 2) para a teoria funcionalista, a maior

conseqüência do crime é estabelecer e preservar os limites morais da comunidade,

enquanto que para o marxismo a contribuição é a estabilidade econômica

temporária em um sistema econômico intrinsecamente instável, já que retira do

mercado de trabalho uma parte supérflua da população, reduzindo a competição

entre trabalhadores, cria diversas frentes de trabalho, etc. e também contribui para a

estabilidade política pela legitimação do monopólio do Estado sobre a violência e

justificando o controle político legal das massas; 3) a teoria funcional defende que os

atos são criminosos porque ofendem a moralidade do povo, enquanto a teoria crítica

advoga que os atos são criminosos porque é do interesse da classe dominante

34 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia..., p. 330/335. 35 CHAMBLISS, William J. A economia política do crime: um estudo comparativo da Nigéria e Estados Unidos, in Criminologia Crítica. TAYLOR, Ian, WALTON, Paul e YOUNG, Jock. (trad). Juarez Cirino dos Santos e Sérgio Tancredo. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1980, p.204/207.

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assim defini-los; 4) para a teoria funcionalista as pessoas são rotuladas criminosas

porque seu comportamento foi além dos limites de tolerância da consciência da

comunidade, enquanto que para a outra teoria as pessoas são rotuladas criminosas

porque assim as definindo, serve-se aos interesses da classe dominante; 5) para a

primeira teoria as pessoas das classes mais baixas são mais propensas a serem

presas porque cometem mais crimes, enquanto que para a segunda estas pessoas

são rotuladas criminosas e as da burguesia não porque o controle desta classe

sobre os meios de produção lhes dá o controle do Estado assim como da aplicação

da lei; 6) para os funcionalistas o crime é uma constante na sociedade, precisando

todas as sociedades de produzir o crime, enquanto que para os críticos o crime varia

de sociedade para sociedade de acordo com cada estrutura econômica e política; 7)

para a teoria funcional à medida que as sociedades se tornam mais especializadas

na divisão do trabalho cada vez mais as leis vão refletir disputas contratuais e as leis

penais vão se tornar cada vez menos significantes, ao passo que para os críticos à

medida que as sociedades capitalistas se industrializem, a divisão entre as classes

sociais vai crescendo e as leis penais vão, progressivamente, tendo que ser

aprovadas e aplicadas para manter uma estabilidade temporária, encobrindo

confrontações violentas entre as classes sociais; 8) para a primeira teoria as

sociedades socialista e capitalista deveriam ter a mesma quantidade de crimes,

onde elas têm índices comparáveis de industrialização e burocratização, enquanto

que para a segunda aquelas sociedades devem ter índices significativamente

diferentes de crimes; já que o conflito de classes será menor nas sociedades

socialistas a quantidade de crimes será menor; 9) defendem os funcionalistas que o

crime faz as pessoas mais conscientes dos interesses que têm em comum, ao

tempo que para os críticos definir certas pessoas como criminosas permite um

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controle maior sobre o proletariado; 10) para a teoria funcional o crime estabelece

um vínculo mais firme e estabelece uma maior solidariedade entre os membros da

comunidade e para a teoria crítica o crime orienta a hostilidade do oprimido para

longe dos opressores e em direção à sua própria classe.

Duas são as contraposições da teoria crítica à velha escola positiva da

criminologia: a uma, o deslocamento do enfoque para as condições objetivas,

estruturais e funcionais, que estão na origem do fenômeno do desvio, em detrimento

do enfoque biopsicológico; a duas, o interesse não pelas causas do desvio criminal,

mas para os mecanismos através dos quais são criados e aplicadas as definições de

desvio e de criminalidade e realizados os processos de criminalização. O enfoque

macrossociológico se contrapõe ao enfoque biopsicológico, razão pela qual não há

mais a concepção do desvio e da criminalidade como realidade ontológica

preexistente à reação social e institucional, mas sim como um status atribuído a

determinados indivíduos mediante a seleção dos bens protegidos e dos

comportamentos descritos nos tipos penais e a seleção dos indivíduos

estigmatizados entre aqueles indivíduos que realizam infração a norma penal. A

criminalidade é, portanto, concebida como um bem negativo, distribuída de maneira

desigual consoante a hierarquia dos interesses fixada no sistema sócio-econômico

e a desigualdade social entre os indivíduos36.

Por isso, a principal crítica desta teoria ao direito penal – concebido

como sistema dinâmico de funções – é o mito da igualdade, já que como se nota a)

o direito penal não defende todos e somente os bens essenciais; b) a lei penal não é

igual para todos, sendo o status de criminoso distribuído de modo desigual aos

indivíduos; c) o grau efetivo de tutela e a distribuição do status de criminoso é

36 BARATTA, Alessandro. Op. cit., p.160/161.

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independente da danosidade social das condutas e da gravidade das infrações à lei,

no sentido de que estas não constituem a principal variante da reação criminalizante

e da sua intensidade37.

A desigualdade é cristalina se obtemperada as chances de serem

definidos e controlados como desviantes. Os mecanismos do processo de

criminalização se agregam(nexo funcional) a lei de desenvolvimento da formação

econômica para dar ao caráter fragmentário do direito penal o conteúdo de objeto de

controle. O direito penal tende a privilegiar os interesses das malhas dominantes e

imunizar do processo de criminalização os indivíduos a ela pertencentes, tendendo a

dirigir o processo de criminalização dos desvios típicos das classes subalternas.

Portanto, as maiores chances de ser absorvido para fazer parte da população

criminosa são daquele indivíduo da classe mais baixa da população. A posição no

mercado de trabalho(hoje, muitos deles no mercado informal), a falta de estudo e o

desamparo familiar, que são indicadores para a criminalidade na criminologia

positivista e para algumas escolas liberais, revelam ser, sobretudo, a base sobre a

qual o status de criminoso é atribuído com malhas finas38.

Ocorre que, passados alguns anos, a teoria crítica é coroada com a

aparição de três tendências: o neo-realismo de esquerda, a teoria do direito penal

mínimo e o abolicionismo.

Ariosvaldo de Campos Pires e Sheila Jorge Selim de Sales39

comentam os movimentos de política criminal da atualidade e acerca do neo-

realismo de esquerda apontam que surgiu na década de 80 nos EUA e na Inglaterra

37 BARATTA, Alessandro. Op. cit ,p.162. 38 Ibidem, p.164/165. 39 PIRES, Ariosvaldo de Campos e SALES, Sheila Jorge Selim de. Alguns movimentos político-criminais da atualidade. RBCCRIM, ano 11, nº42, janeiro-março-2003, ed. Revista dos Tribunais, p.295/306.

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em contraposição ao neo-realismo de direita, designando-se de realista para

diferenciar do idealismo da criminologia radial americana. Propondo estudar a

vítima, o agressor, o comportamento delinqüencial e a reação social

conjuntamente(que era feito de maneira separada pela criminologia emergente), o

neo-realismo de esquerda não nega que a causa do crime é a injustiça social, sendo

mera conseqüência. Contudo, advoga que a as condições econômicas não podem

ser consideradas a única influência no fenômeno criminal, já que a criminalidade se

manifesta também nas classes sociais mais altas, perfilando ao seu lado outros

fatores como a competitividade, o machismo, o consumismo e o crescente desejo

por bens materiais, o individualismo, etc. Apresenta propostas para a efetivação do

controle penal com a redução do controle penal e extensão a outras esferas, a

reinserção dos delinqüentes na comunidade, por meio de medidas alternativas à

pena privativa de liberdade, uma política lastreada em programas de combate à

marginalidade e promoção da justiça, manutenção da prisão para os casos

extremos, quando a liberdade do indivíduo põe em risco a sociedade e a adoção da

prisão de fim de semana, por permitir ao condenado a conservação do trabalho e de

suas relações sociais.

A crítica que se opõe ao neo-realismo de esquerda está no fato de ter

retomado o exame das causas do crime, como a escola positiva, sendo o realismo

uma nova concepção da realidade ontológica, deixando de lado os processos

normativos de criminalização. Em derradeira análise se critica ainda a proposta de

considerar o crime com o resultante de causas imutáveis e constantes.

Também comentada pelos autores retrocitados, outra corrente surgida

no seio da teoria crítica é o minimalismo, onde os seus representantes analisam as

causas dos delitos, mas defendem que devem ser incluídos em seu estudo o

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processo de definição do crime e os fundamentos estruturais. O pontapé inicial desta

corrente de pensamento é a crítica a teoria do labelling approach com o objetivo de

elaborar uma teoria materialista do crime e procurar formas de controle através de

uma concepção marxista. Postulam a redução do sistema penal(com perspectiva de

aboli-lo), indicando algumas propostas: a transformação da sociedade mediante uma

política criminal alternativa que realize mudanças sociais e institucionais, com a

superação do tradicional modelo de produção capitalista; a deflagração nas

proibições penais com propostas de descriminalização( os crimes de bagatela

devem ser abolidos, em particular as contravenções e os crimes punidos com pena

de multa, isolada ou alternativamente; com esteio no princípio da ofensividade,

devem ser descriminalizados todos os crimes onde não seja nítida a separação

entre direito e moral, como a embriaguez, o porte para uso próprio de entorpecente,

os crimes de perigo abstrato e presumido; alguns crimes contra o patrimônio em

virtude da disponibilidade do bem jurídico ofendido, como no caso do furto; alguns

crimes contra a moralidade pública, contra a família, a segurança do Estado,

estendendo e reforçando a tutela de outros bens supra-individuais como a

segurança do trabalho, a saúde, crimes contra o ambiente, a criminalização

específica da tortura); as penas privativas de liberdade devem ser reduzidas a dez

anos, por norma constitucional a curto prazo e a um tempo menor, a médio prazo;

abolição da pena pecuniária, que por ser impessoal pode ser quitada por outra

pessoa e é desproporcional, porque se encontra abaixo do limite que justifica a

aplicação de pena; criação de um sistema de penas alternativas.

Por último, a terceira tendência dentro da teoria crítica é o

abolicionismo40, significando a supressão dos crimes, das penas, dos presídios e

40 Embora sua inserção na teoria crítica e qualificação sejam discutidas. PIRES, Ariosvaldo de

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também do próprio sistema penal moderno, substituindo-o por um sistema

alternativo de tratamento para o conflito entre agressor-vítima.

Várias são as matrizes ideológicas e filosóficas: o anarquismo, o

marxismo e a liberal/cristã.

Abeberando-se dos apontamentos de Shecaira41, cita-se que pela ótica

anarquista a celeuma reside na perda da liberdade e autonomia do indivíduo por

força do Estado. Logo, o sistema penal é visto como uma das instituições que

catequizam o mundo do homem, impedindo a felicidade plena. A dominação a que

está submetia as classes sociais poderia ser corrigida pela libertação em referência

ao papel exercido pelo Estado. Reproduzirá, portanto, a abolição do Estado, sendo o

sistema punitivo prescindível.

O enfoque marxista entende o sistema penal com instrumento de

opressão e como o modo de esconder os conflitos sociais, partindo do conceito de

alienação que leva as classes anitéticas a terem um pensamento que levam a idéia

de colaboração entre elas. Mudando esta concepção, o que levaria ao socialismo,

produziria mais justiça social e liberdade, já que as decisões sociais seriam tomadas

coletivamente, o que reduziria o controle social na maioria.

A matriz liberal/cristã, em oposição a anomia, cria um sistema

eunômico, onde os homens se ocupariam da própria contenda. De outra banda, o

conceito de pena é criticado pela imposição de aflição desnecessária que impõe aos

autores do delito, que merece reparos limitadores.

Em síntese, convém apontar as razões elencadas pelos abolicionistas

para a abolição do sistema penal42. A uma, porque a sociedade já existe sem direito

Campos e SALES, Sheila Jorge Selim de. Op. cit., p. 303. 41 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. Op. Cit., p. 346/354. 42 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. Op. Cit., p. 346/354.

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penal, considerando que a altíssima cifra negra da criminalidade é resolvida fora da

justiça criminal. A duas, pois o sistema penal é anômico, o que significa afirmar que

as normas do sistema não cumprem a sua função esperada, já que deveriam evitar

o cometimento de delitos e não o fazem. A três, porquanto anômico, ainda assim o

sistema penal é seletivo e estigmatiza, ou seja, o universo de criminosos é criado

não por aquelas pessoas que têm problemas com a lei por praticarem crimes, mas

porque o controle social formal é discricionário. A quatro, porque o sistema é

burocrata, com cada instituição voltada para si própria, o que significa dizer que as

agências de controle formal não trabalham como se fossem um sistema, mas cada

uma de per si, isoladamente. A cinco, porque o sistema punitivo parte de uma falsa

concepção da sociedade, já que na lógica iluminista a sociedade é um todo

harmônico, quando em verdade é um conflito permanente entre as pessoas. A seis,

porque o sistema concebe o homem como o inimigo central, o que é inconcebível já

que esta “guerra” permanece eternamente. A sete, porque se a tática é de “guerra”,

o sistema punitivo se opõe a estrutura da sociedade civil(a idéia é a de que se o

homem é o criminoso-inimigo a ser vencido não lhe é dado conhecer as regras do

sistema penal). A oito, pois a vítima não interessa ao sistema penal, ocupando um

lugar secundário, quando muito, já que ao sistema interessa muito mais buscar um

culpado para demonstrar a sua força. A nove, porque o sistema penal impõe uma

dor inútil ao condenado e sua família, que não se presta a atingir o seu objetivo

declarado que é ressocializá-lo. A dez, pois a pena, em especial a de prisão, é

ilegítima. É ilegítima porque é um ato de violência do Estado, que não intimida nem

o condenado nem a sociedade, muito menos cumpre a sua finalidade.

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1.3 – Uma leitura do sistema punitivo

Com a virada das páginas do tempo, as novas escolas da criminologia

pulverizaram todos aqueles princípios trazidos pelas velhas escolas que terminaram

por construir a Ideologia da Defesa Social.

O princípio do bem e do mal, onde a sociedade encarna o papel do

bem contra o delito que representa o mal, sendo o delinqüente o elemento negativo

e disfuncional do sistema social foi afrontado pelas teorias funcionalistas, que

defenderam que o crime é um elemento normal, embora indesejável(para os

seguidores desta teoria, porque para os críticos quem cria o crime é o sistema), da

vida social.

De outra parte, o princípio da culpabilidade, pelo qual o crime é

expressão de uma atitude reprovável, porque em afronta aos valores e normas

sociais foi negado pelas teorias das subculturas criminais, que pregavam que dentro

de uma sociedade havia várias outras sociedades, grupos e subculturas, cada qual

com os seus valores aprendidos pelos indivíduos através do processo de

socialização e que o Direito Penal dava primazia a certos valores em decorrência da

supremacia de um grupo social sobre os outros.

A teoria da reação social nega outro princípio: o princípio do interesse

social e do delito natural, que vislumbra que os interesses protegidos pelo direito

penal são comuns a toda sociedade(delito natural) e apenas uma pequena parte dos

delitos representa a violação de determinados arranjos políticos e econômicos,

sendo punidos em função da supremacia(ainda que momentânea) deste grupo de

poder, no que é confrontado pela teoria do etiquetamento através da localização das

variáveis do processo de definição nas relações de poder e nos grupos sociais,

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tomando em conta a estratificação social e os conflitos de interesse, não apenas

uma desigual distribuição do status de criminoso, mas também uma desigual

distribuição entre os grupos sociais das pessoas que podem ditar o que é

criminalidade. Lê-se, portanto, que aqueles que detêm este poder, o fazem em

prestígio a ideologia do grupo ao qual pertencem sendo o aspecto político dos

delitos artificiais(diagnosticado pela Defesa Social) estendidos a todos os delitos,

como resultado do fenômeno total da criminalidade, como realidade social não

preconcebida mas criada através dos processos de criminalização.

O princípio da finalidade da pena é questionado também pela teoria do

etiquetamento na medida em que as instituições totais não reeducam, muito menos

ressocializam, ao contrário, geram sanções estigmatizantes.

O princípio/mito da igualdade é derrubado tanto pelos seguidores do

labbeling approach como pela teoria crítica, já que a lei penal não é igual para todos,

sendo o status de criminoso distribuído de modo desigual aos indivíduos por aqueles

que detêm o poder de escolher o quê/quem criminalizar.

O princípio da legitimidade, que segundo prega Saulo Tarso

Rodrigues43 - com arrimo em Baratta – teve sua oposição nas teorias psicanalíticas,

capitaneadas por Freud, que defendia que os membros da sociedade punem com o

intuito de descarregarem a sua agressividade e frustração, em verdade ganhou

resistência na teoria crítica.

A falácia da escola positiva de que o Estado está legitimado a reprimir

a criminalidade por ser expressão da sociedade, através das instâncias formais de

controle, que por sua vez, interpretam a legítima reação social no sentido de

43 RODRIGUES, Saulo Tarso. Criminologia – a política criminal alternativa e os princípios de direito penal mínimo de Alessandro Baratta: na busca da (re) legitimação do sistema. São Paulo. Ômega Editora, 2003, p.118.

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reprovar e condenar o comportamento desviante individual, reafirmando as normas e

valores sociais é destroçada a partir do momento em que a teoria crítica enxerga o

processo de criminalização como um status atribuído a determinados indivíduos

mediante a seleção dos bens protegidos e dos comportamentos descritos nos tipos

penais e a seleção dos indivíduos estigmatizados entre aqueles indivíduos que

realizam infração a norma penal. Em detrimento da demagogia da “reafirmação de

normas e valores”, a escola crítica vislumbra a criminalidade como um bem negativo,

distribuída de maneira desigual consoante a hierarquia dos interesses fixada no

sistema sócio-econômico e a desigualdade social entre os indivíduos.

Diante desse quadro e das razões expostas pelos abolicionistas para

eliminação do sistema penal, até mesmo para aqueles que não comungam de tal

entendimento, resta uma pergunta a responder: qual é a função hoje do sistema

penal?

Loïc Wacquant44 dissertando sobre a prisão nos Estados Unidos

aponta a atrofia do Estado Social e a passagem para o Estado Penal, onde em 1975

o número de detentos era de 380.000 e em 1998 cerca de dois milhões de pessoas

estavam encarceradas.

Embora não se possa comparar a experiência norte-americana com a

realidade brasileira, seja porque não se recorda do estado do bem-estar social no

Brasil, razão pela qual não há que se falar em passagem para o Estado Penal, quer

porque no Brasil segundo o último censo penitenciário de 1997 não passavam de

170.000 pessoas o número de encarcerados, fato é que a realidade brasileira dá

conta de que a prisão foi idealizada para pobre.

44 WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. trad. André Telles. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed., 2001, p. 80/81.

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Gizlene Neder45 aponta que desde o período pós-abolicionista no

Brasil (1890-1891 e década de 1920) as estratégias formais de controle na cidade

do Rio de Janeiro estavam armadas para garantir a exclusão dos trabalhadores

pobres e negros que eram apartados da cidade, de maneira que a cidade

quilombada, formada pelos trabalhadores de baixa renda, desempregados e negros

vivia encurralada nos morros cariocas. Após a abolição como imaginar a cidadania

em uma sociedade formada por ex-escravos de origem africana e indígena, se o

paradigma era o biológico da escola positivista? Por conta disso, foi preciso

fortalecer a agências formais de controle.

Alba Zaluar46 destaca que a dominação pode se expressar através da

construção da imagem do dominado pelo dominador, sendo uma das técnicas

repressivas a estigmatização de quem se quer reprimir. Acrescenta que o espelho

que se constrói no Brasil é o do pobre, criminoso, perigoso, pela prisão por

vadiagem dos trabalhadores sem carteira de trabalho assinada, pela morte dos

“bandidos” nas comunidades pobres da cidade, pela recusa do patrão ao emprego

do cidadão quando descobre que este reside em favela.

Vera Malaguti Batista47 traça o diagnóstico entre o tratamento dado aos

filhos da classe alta e aos filhos da classe pobre em tema de drogas. O filho do rico

quando se envolve com drogas é o coitado que precisa do tratamento médico,

enquanto que o filho do pobre é o estereótipo lombrosiano de criminoso, negro,

pobre, funkeiro, morador de favela, para quem está guardado o tratamento penal

das instâncias formais de controle.

45 NEDER, Gizlene. Controle social e cidadania no Rio de Janeiro. In Violência & Cidadania. Porto Alegre, 1994, Sérgio Antonio Fabris Ed., p.35-40. 46 ZALUAR, Alba. Condomínio do diabo: as classes populares urbanas e a lógica do “ferro” e do fumo. In Crime, Violência e Poder. (org.) Paulo Sérgio Pinheiro, p. 275. 47 BATISTA, Vera Malaguti de Souza Weglinski. Drogas e criminalização da juventude pobre no Rio de Janeiro. Discursos sediciosos – crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro. 1996, p. 233/240.

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Os ex-escravos de ontem e os jovens pobres favelados de hoje. Em

comum ao perfil/etiqueta do criminoso do período pós-abolicionista ao criminoso

atual está a lógica da economia de mercado: aqueles que não possuem ocupação

lícita declarada, que não são detentores de carteira de trabalho assinada, que não

estão inseridos no mercado formal de trabalho são os mesmos denominados de

perigosos, para os quais o sistema punitivo e o direito penal estão a funcionar.

Merece destaque a ênfase conferida ao tema por Maria Lúcia Karam48

quando destaca que

a posição precária no mercado de trabalho, as deficiências da socialização familiar, o baixo nível de escolaridade, presentes entre os que ocupam uma posição inferior na sociedade, são, não como se costuma apontar, causas da criminalidade, mas sim características desfavoráveis, que, identificando seus portadores com o estereótipo do criminoso, terão influência determinante naquele processo de seleção dos que vão desempenhar o papel de criminosos. No caso de crimes relativos a drogas, o peso negativo destas características aparece claramente, inclusive no que se refere à distinção entre consumidor e traficante.

Logicamente que a expressão “funcionar” utilizada acima há que se

entendida dentro do contexto. Se está se falando de “sistema” punitivo, este deve

ser visto fazendo parte de um todo, que funciona como processo de criminalização

hoje da juventude pobre, através do etiquetamento de desviante. Basta que se atue

com as instâncias oficiais de controle para se conhecer a história de um menino

pobre, morador de favela, que foi preso injustamente sob a pecha de traficante.

Com efeito, afastando a neutralidade do direito, sobretudo a do direito

penal, Tonny Platt49 sintetiza:

Sob a definição legal de crime, as soluções são primariamente destinadas a controlar as vítimas da exploração (pobres, terceiro mundo, jovens, mulheres) que, como uma conseqüência da sua opressão, são canalizados através do sistema de justiça criminal.

48 KARAM, Maria Lúcia. De crimes, penas e fantasias. Niterói. Luam Ed., 1991, p.58 49 PLATT, Tony. Perspectivas para uma criminologia radical nos EUA. In Criminologia Crítica. TAYLOR, Ian, WALTON, Paul e YOUNG, Jock. (trad). Juarez Cirino dos Santos e Sérgio Tancredo. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1980, p.126.

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Roy Murillo Rodriguez50 atenta para o fato de que é muito possível que

um estudo sobre o tipo de pessoas que está na prisão em decorrência de delitos

relacionados ao tráfico de drogas concluirá que a aplicação da política atual sobre

drogas está associada de forma direta com a discriminação de certos setores

sociais, sobretudo pelas características estruturais de um sistema penal que é

altamente seletivo e sustentador/legitimador de relações econômicas e sociais.

A razão para isso? A função real exercida pelo sistema penal que se

difere da função declarada. Nos manuais de direito penal, a prisão ostenta a função

de prevenção geral (o fim intimidativo da pena que se dirige a todos os destinatários

da norma) e prevenção especial( que visa o autor do crime, extraindo-o do meio

social, impedindo- o de delinqüir e visando ressocializá-lo), ou seja, aquelas funções

defendidas pela Ideologia da Defesa Social.

Ocorre que estas não são as funções reais do sistema punitivo.

Thomas Mathiessen51 aponta quais são as funções reais do encarceramento: 1)

depurativa: uma sociedade pós-industrial, que está intimamente ligada aos

conceitos de produtividade e eficiência deve zelar por tais valores, desvencilhando-

se dos improdutivos, seja porque a existência dos ineficientes cria a ineficiência do

sistema de produção, seja porque no imaginário popular faz presente a idéia de

ineficiência do sistema. Daí a razão para a internação ser a forma utilizada para

liberar-se do ineficiente (seja em asilos, seja em manicômios, seja em prisões); 2)

redução de impotência: não basta a internação, sendo preciso garantir o silêncio

para que não se ouça falar mais dos improdutivos, motivo pelo qual são colocados

em instituições fechadas; 3) diversiva: a privação da liberdade daquele que foi

50 RODRIGUEZ, Roy Murillo. La política antidrogas y sus efectos em América Latina. Ciências Penales, ano 8, nº 11, julio. 1996. p. 58. 51 MATHIESSEN, Thomas apud SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia..., p. 354/356.

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enclausurado dá visibilidade à criminalidade descalça, encobertando efetivamente

as condutas da classe social mais abastada que são, de fato, lesivas a vida em

sociedade; 4) simbólica: é com a entrada no cárcere que se inicia o processo de

estiquetagem, de estigmatização. Uma das funções da pena é carimbar o

criminalizável a ponto de reduzi-lo à impotência; 5) demonstrar a ação: a prisão

gera a sensação para a sociedade que aqueles que detêm o poder estão cumprindo

com o seu papel de reprimir o recrudescimento da criminalidade, já que o ergástulo

é a demonstração de que algo está sendo feito.

E ainda se está a afirmar que o sistema punitivo não funciona?

Funciona e muito bem, atingindo as suas funções reais, que é a manutenção do

poder da classe dominante, com isso carimbando os pobres com o rótulo atual de

criminoso/traficante. Pior do que a ferro e fogo, pois aqui as chagas ficam na alma.

Como se constata, se pretendeu demonstrar com o estudo das escolas

criminológicas os traços de afinidade entre a teoria clássica e a teoria positiva da

criminologia, certificando-se que ambas, apesar das divergências, formavam a

Ideologia da Defesa Social, que serviu de base de apoio a construção do direito

burguês.

Com o avanço do tempo, essas teorias foram largamente criticadas

pelas teorias sociológicas da criminalidade que surgiram no século XX e todos

aqueles princípios que garantiam a Ideologia da Defesa Social foram derrubados a

partir da nova abordagem criminológica.

A criminologia, ao invés de estudar o crime e o criminoso, passa a se

preocupar com os processos de criminalização e a relação entre aqueles que detêm

o poder e os excluídos.

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51

Em conseqüência, o que se denota é que através dos processos de

criminalização o que se faz é o encarceramento da miséria. A desigualdade é

cristalina comparada as chances de serem definidos e controlados como desviantes.

Os mecanismos do processo de criminalização se agregam a lei de desenvolvimento

da formação econômica para dar ao caráter fragmentário do direito penal o conteúdo

de objeto de controle. O direito penal tende a privilegiar os interesses das malhas

dominantes e imunizar do processo de criminalização os indivíduos a ela

pertencentes, tendendo a dirigir o processo de criminalização dos desvios típicos

das classes subalternas. Portanto, as maiores chances de ser absorvido para fazer

parte da população criminosa é daquele indivíduo da classe mais baixa da

população. A posição no mercado de trabalho(hoje, muitos deles no mercado

informal), a falta de estudo e o desamparo familiar, que são indicadores para a

criminalidade na criminologia positivista e para algumas escolas liberais, revelam

ser, sobretudo, a base sobre a qual o status de criminoso é atribuído com malhas

finas.

Logo, como conseqüência não há a divisão entre o bem e o mal e a

prisão passa a buscar não as suas funções declaradas – de prevenção geral e

especial – mais sim funções reais, que acabam por traduzir o etiquetamento da

classe menos favorecida com o estigma de criminoso.

Portanto, o mito de que o sistema punitivo não funciona é derrubado,

porquanto, em verdade, tal sistema busca a manutenção do poder pela classe

dominante, através do direito penal, como função não declarada, mas real.

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CAP 2 – O CONTROLE DO TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES PELO

PODER EXECUTIVO: REFLEXO DA POLÍTICA INTERVENCIONISTA NORTE-

AMERICANA

Neste capítulo partir-se-á para a análise do surgimento e expansão da

política de internacionalização do modelo repressivo em relação às drogas,

analisando a política americana em tema de entorpecentes, já que os Estados

Unidos acabam por ditar a política internacional através de acordos internacionais e

através do apoio dos organismos internacionais. A partir daí buscar-se-á destacar a

fase atual e a política neoliberal de controle com os reflexos deste modelo repressivo

no Brasil e a importação do movimento de tolerância zero.

2.1 - A internacionalização do modelo repressivo em relação às drogas

Na busca pela retrospectiva da internacionalização deste modelo

repressivo em relação às drogas, tomando por base expansão do modelo norte-

americano, Leonardo Sicca52 faz referência a Lei Harisson de 1914 (Harisson Act)

que fixava pena de multa de 2 mil dólares e/ou prisão de cinco anos para

distribuidores que não registrassem suas transações ou fornecessem drogas para

52 SICCA, Leonardo. Funções manifestas e latentes da política de war on drugs. Drogas: aspectos penais e criminológicos. coord. Miguel Reale Júnior. Rio de Janeiro, Ed. Forense, 2005, p.9/23.

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uso não médicos. Naquele momento da história, a criminalização do uso e comércio

de drogas surge como uma ação preventiva porque na virada do século XIX para o

século XX as substâncias entorpecentes ou psicoativas (como éter, cocaína,

morfina) começaram a difundir-se através do uso médico, eis que foram descobertos

como anestésicos em cirurgias e no tratamento de ex-combatentes de guerra.

Também no plano comercial, algumas substâncias compunham a fórmula de elixires

e tônicos comercializados livremente.

Surge do uso terapêutico da droga o primeiro contingente de viciados,

já que a circulação era livre e seu potencial viciante desconhecido. Tal lei, portanto,

surge para estabelecer a ilegalidade do uso e fiscalizar a área médica, já que o

usuário obtinha a droga por este meio, vindo a alçar dependentes e profissionais na

condição de clandestinidade.

Como conseqüência da repressão divulgada, movimentos sociais

moralistas que lutavam pela proibição das bebidas alcoólicas alcançaram seu

objetivo com a promulgação da Lei Seca em 1919.

Rosa Del Omo53 busca as divergências - e muitas vezes contradições

– dos discursos sobre drogas em quatro décadas para demonstrar que a finalidade

da falácia é criar estereótipos para dramatizar e demonizar o problema, escondendo

o alcance e as repercussões econômicas e políticas escondidas no discurso único

de caráter universal, atemporal e a-histórico que contribui para a consolidação do

poder das transnacionais que movimentam o negócio.

A autora detalha como característica do discurso da década de

cinqüenta que o universo da droga era visualizado como o universo misterioso,

próprio dos grupos marginais que consumiam heroína ou maconha. Havia o

53 OLMO, Rosa del. A face oculta da droga. trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro, Revan, 1990, p. 77/79.

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predomínio do discurso jurídico e do estereótipo moral que ligava as drogas ao

perigo, o consumo ao sexo e o tráfico a Máfia(Cosa Nostra), mas sem relação com

volume de produção.

Com a chegada do consumo aos jovens de classe média, em especial

de drogas alucinógenas, a década de sessenta assiste a alteração do discurso,

passando a droga a ser sinônimo de dependência, concebendo-se um discurso

médico-jurídico, onde a droga é vista como um vírus. Daí surge o discurso do

consumidor-doente e do traficante-delinqüente(a etiqueta do doente e do criminoso).

Entretanto, ainda nesta década a droga(maconha, em especial) é vista como inimigo

contra a ordem interna.

Na década de setenta aparece a epidemia da heroína, até como

conseqüência da caça à maconha, sendo que foi qualificada pelo presidente Nixon

como inimigo público não econômico, criando então o estereótipo político-criminoso.

Há um duplo inimigo, externo e interno. No final da década de setenta entra no

mercado norte-americano, com o declínio da heroína no pós-guerra Vietnã e com a

instalação de sua indústria na América Latina, a cocaína.

A década de oitenta chega com um discurso jurídico transacional que

internacionaliza o controle das drogas, porque é prioridade se impedir que as drogas

cheguem do exterior. Objetiva-se controlar o tráfico e a subversão que pode se

originar da crise econômica e do problema da dívida, razão pela qual o foco da

repressão é a América Latina, estabelecendo-se a guerra contra as drogas. O

inimigo é externo, tratando agora a droga como um problema de segurança

nacional.

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Cristiano Maronna54 destaca, em primeiro lugar, que é Richard Nixon

em 1973 que declara guerra às drogas, oportunidade na qual a guerra ao

comunismo perdera fôlego e a guerra ao terror ainda incubaria por quase trinta anos.

As drogas substituíram, portanto, o comunismo no papel de inimigo público. Depois,

assevera que a globalização deste modelo repressivo, chamado também de

proibicionismo, é contemporâneo a expansão do poder militar/industrial dos EUA e

com o desaparecimento dos limites entre conflitos internos e externos, entre ações

públicas e a guerra.

Não é difícil, portanto, visualizar que há fatores outros que interessam

ao governo norte-americano quando se trata da política antidrogas. Daí porque Rosa

Del Olmo55 alerta que o discurso sobre a droga (a sua face oculta) esconde os

aspectos econômicos e políticos do continente americano que impedem a solução

do problema e que levam milhares de habitantes deste mesmo continente a fazer

parte do tráfico de drogas em seus diversos níveis.

Roy Murillo Rodriguez56 comentando sobre a política antidrogas e seus

efeitos na América Latina, destaca a relação dos Estados Unidos com a América,

onde, apesar dos norte-americanos terem quase uma epidemia de consumo de

entorpecentes classificam o problema das drogas como um fenômeno externo, que

nasce nos países produtores e naqueles que servem de ponte para o transporte, ou

seja, os países latino-americanos. Salienta também que a política norte-americana

pretende erradicar o consumo e o tráfico, combatendo a todo custo a oferta,

apresentando o narcotráfico como o mal perverso, a praga contra a humanidade ou

54 MARONNA, Cristiano. Proibicionismo ou morte. Drogas: aspectos penais e criminológicos. coord. Miguel Reale Júnior, Rio de Janeiro, 2005, Ed. Forense, p.53/63. 55 OLMO, Rosa del. op.cit. 56 RODRIGUEZ, Roy Murillo. La política antidrogas y sus efectos em América Latina. Ciencias Penales, ano 8, nº 11, julio. 1996. p. 55/56.

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um câncer para a estabilidade política e econômica latino-americana. Mas, para

tanto, vale-se o governo norte-americano da dependência econômica dos países

latino-americanos, condicionando o plano de reativação e desenvolvimento regional

a aprovação de uma série de leis anti-narcóticos e a ativa participação na sua guerra

contra as drogas, que foi fomentada no governo Reagan em 1982, após ter sido

declarada no governo Nixon. Daí porque as leis em tema de entorpecentes não

representam a realidade sócio-econômica e cultural dos países latinos, vez que

impostas goela abaixo pelo nosso “vizinho amigo”.

Prossegue o citado autor aduzindo que se nota no discurso norte-

americano que a preocupação com o problema do consumo de drogas não é

primazia, já que há na razão deste discurso uma série de motivações políticas e

econômicas. Por um lado, a política antidrogas tem sido utilizada como instrumento

de dominação e neocolonização, pois permite o controle político de contraculturas e

é um meio de se sustentar as relações de poder da política internacional, ao ponto

de se fazer ameaças de intervenção militar em países como Bolívia e Colômbia,

como se decidiu pela invasão do Panamá, sob o pretexto de “luta contra as drogas”,

ao arrepio de um dos primados dos direitos fundamentais, qual seja, o respeito a

soberania nacional. Acresça-se a este aspecto o econômico, uma vez que há uma

fuga de capitais que se convertem para o negócio do narcotráfico. Só isso justifica a

contradição entre o discurso norte-americano e a prática. Segundo o autor, a

realidade demonstra que a CIA e o FBI se envolveram no tráfico de drogas no

conflito Irã-Contras para, em troca de certos favores, os narcotraficantes fornecerem

armas aos Contras. Por fim arremata que somente a existência de tais interesses

justifica a acentuação do método repressivo na luta contra as drogas, especialmente

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quando o Estado que a promove já teve resultado extremamente negativo com

política semelhante, com a chamada “Lei Seca” na década de 1920.

Com efeito, sobre a contradição do discurso americano, José Arbex

Junior57 sintetizou:

A própria Agência Central de Informações(CIA) e a Agência de Repressão às Drogas(DEA), em aberta contradição com a retórica oficial contra as drogas, negociaram com narcotraficantes sempre que isso lhes foi conveniente. Isso já havia acontecido na Guerra do Vietnã, nos anos 60-70, e voltou a acontecer nos anos 80, para financiar suas atividades se sabotagem contra o governo sandinista da Nicarágua.

De qualquer modo, mesmo contraditória, a retórica oficial contra as

drogas influenciaram as diretrizes de Tratados Internacionais. Novamente é de

Leonardo Sicca58 o apontamento sobre os marcos do estabelecimento e reforço do

modelo proibicionista: Convenção Única sobre Estupefacientes (1961), Convenção

sobre Substâncias Psicotrópicas (1971), Convenção das Nações Unidas contra o

Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas (1988).

A última, conhecida como “Convenção de Viena”, consagrou o war on

drugs como política de controle do uso e difusão das drogas ilícitas, pois os

trabalhos da Convenção tiveram por base de que os tratados anteriores teriam

falhado porque a resposta punitiva era fraca e existiam muitas lacunas nas

legislações nacionais.

Merecem destaque, portanto, as principais características da política

disseminada a partir da “Convenção de Viena”: a primeira é o núcleo do modelo que

é a proibição e repressão; a segunda, a preocupação de tratar a droga como

questão uniforme, buscando a obtenção de um consenso entre os governos; a

terceira, o interesse na harmonização legislativa (o que se constata com a tipificação

57 ARBEX JUNIOR, José. Narcotráfico: um jogo de poder nas Américas. São Pulo, 1993, Moderna, p. 12. 58 SICCA, Leonardo. op. cit.

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do crime de tráfico de entorpecentes, com fórmulas vagas e abertas, termos

imprecisos e amplos) e a quarta, a visão reducionista do problema, ocultando-se a

complexidade da indústria das drogas ilícitas, bem como a diversidade de atores que

se apresentam no processo de produção, circulação, difusão e consumo, o que

termina por restringir um problema econômico, social e geopolítico a um caso de

controle penal.

Salo de Carvalho59 enfatiza importantes pontos na Convenção de

Viena que denotam o seu colorido alarmista e beligerante. Já na exposição de

motivos a Convenção menciona em “grave ameaça à saúde e o bem-estar dos seres

humanos” e aos “efeitos nefastos sobre as bases econômicas, culturais e políticas

da sociedade” e também em “crescente expansão do trafico ilícito de entorpecentes

e de substâncias psicotrópicas”. O tráfico é visto como um associado das

organizações criminosas internacionais sendo visto como fonte de ameaça a

estabilidade, a segurança e a soberania dos Estados, já que minam as economias

lícitas. A ONU muda a ênfase do discurso atestando que antes a cooperação

internacional em tema de fiscalização de entorpecentes era uma expressão de

solidariedade e se converte em questão de defesa própria. Portanto, a Convenção

de Viena tem por objetivo a erradicação do tráfico ilícito de entorpecentes com base

em ação coordenada no nível da cooperação internacional já que é responsabilidade

de todos os Estados, tendo como instrumento a intensificação dos meios jurídicos

efetivos para cooperação internacional em matéria penal suprimir as atividades

criminosas do tráfico ilícito.

59 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: do discurso oficial às razões de descriminalização. Rio de Janeiro, 1997, Luam, p.161/179.

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Como citado por Leonardo Sicca60, em junho de 1998, ocorreu em

Nova Iorque o Período Especial de Sessões sobre o Problema Mundial das Drogas

da Assembléia Geral da ONU, com intuito de reavaliar os resultados da aplicação

das três Convenções onde se estabeleceu o prazo de dez anos para erradicação do

cultivo ilícito, repetindo-se, de certa forma, a política fracassada da Convenção de

Viena, sem se discutir qualquer proposta de revisão do modelo proibicionista.

A pergunta que deve ser respondida é qual o intuito de se prorrogar

uma fracassada política contra as drogas. A guerra pela guerra acaba por servir para

manter e gerir conflitos que sustentem a respectiva indústria de controle.

O pior são as conseqüências devastadoras desta política. De plano, já

se destaca a ofensa a princípios constitucionais e legais consagrados, porque tudo

está justificado pela guerra. Na guerra não se tem direitos...

Não bastasse isso, Leonardo Sicca61 cita as funções declaradas desta

política e as funções ocultas, as quais chama de funções latentes da guerra contra

as drogas.

As funções declaradas seriam as seguintes: dirimir e eliminar a difusão

de substâncias entorpecentes no mundo por meio de medidas que ataquem oferta e

demanda; no campo normativo, proclama-se a tutela da saúde pública; quanto a

atração do aparelho repressivo a finalidade declarada é aquela que os penalistas

classificam como prevenção geral, entendidas nas vertentes de dissuasão e

intimidação da vontade ante à ameaça do rigor da lei penal.

Em contrapartida, as funções ocultas, aquelas que efetivamente

justificam a manutenção do modelo proibicionista, seriam as seguintes: 1)

possibilidade de aumento do poder de controle e urgência que pode ser constatado

60 SICCA, Leonardo. op. cit. 61 Ibidem.

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pela permissão para aprovação de inúmeras leis e aceitação de políticas que

violentam direitos fundamentais e garantias legais, bem como a interferência no

último campo da soberania estatal que é direito de punir; depois, como adaptação

daquelas funções reais do cárcere citadas por Thomas Mathiessen, colacionadas no

capítulo I, são citadas mais três outras funções ocultas da guerra contra as drogas,

quais sejam: 2) redução à impotência, que visa reduzir ao silêncio da prisão ou à

coação do processo penal aqueles que representam o problema, no caso, viciados,

dependentes e traficantes (acrescenta o autor), a fim de que a sociedade possa

cobrir essa mazela com um véu e evitar que se manifeste como denunciação de sua

fraqueza; 3) diversiva e simbólica, que busca desviar o foco e esconder as fontes

geradoras do problema. Função obtida por um meio do estigma imposto pela prisão,

que serve para “marcar os indivíduos” e manter um grupo de detidos para ressaltar

sua “eficiência”. Assim o sistema penal é usado contra os autores de pequenos

crimes, viciados ou somente “laranjas”, para desviar a atenção das ações mais

socialmente perigosas ou aquelas cometidas por indivíduos ou grupos de interesses

que dispõem de grande poder; 4) aparelhar a ação estatal, punindo como política

institucional de lei e de ordem de modo que a imposição do castigo penal nunca é

vista como suplício individual, mas como realidade institucional de consecução do

objetivo de guerra às drogas.

Não é à toa que Alessandro Baratta62 observa que o raio de ação do

sistema punitivo na administração de uma pequena população criminal serve para

afastar da consciência coletiva o problema político de um número sem-vezes maior

de infrações que não levam a punição. Alerta ainda para a seletividade da

integração penal sobre as infrações relacionadas a entorpecentes que demonstra o

62 BARATTA, Alessandro. Fundamentos ideológicos da atual política criminal sobre drogas. Só Socialmente..., org. Odair Dias Gonçalves e Francisco Inácio Bastos, Rio de Janeiro, 1992, p. 45/46.

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caráter simbólico da intervenção penal, relacionado não só as variáveis relativas a

origem social da pequena parte de infratores perseguidos, mas também ao

problema estrutural, já que o sistema punitivo não consegue efetivamente proteger

os bens jurídicos e diminuir as infrações, desempenhando apenas funções

simbólicas, como a confirmação da validade das normas, nada obstante que a

maioria das infrações sejam imunes à criminalização e a proteção de bens jurídicos

que não ocorre na realidade. Prossegue afirmando que o caráter simbólico da

intervenção punitiva, que é feita por intermédio dos sacrifícios de bodes expiatórios,

corresponde às características da estrutura tecnocrática do poder em nosso meio

social, que impõe a transformação do cidadão de ator político em espectador de um

espetáculo de poder.

Adiante, arremata63:

Não é certamente uma casualidade o fato de que a guerra contra a droga constitua hoje em dia talvez o melhor instrumento de que dispõem os Estados Unidos para legitimar sua hegemonia. Os Estados Unidos são, de fato, o país que mais tem pressionado no sentido da internacionalização repressiva dirigida contra determinadas drogas. Esta política, como é sabido, tem proporcionado aos Estados Unidos ocasiões que lhes é possível penetrar e controlar os demais países a nível planetário. Parece que no afã de impor sua liderança no âmbito da “nova ordem internacional” o problema da droga vem ocupar o lugar até agora preenchido pela existência do chamado “socialismo real” enquanto representação simbólica do “império do mal”. A existência imaginária deste império contra o qual os Estados Unidos lutariam como um novo São Jorge contra o dragão permite encobrir, através da imagem salvadora de seu poder imperial, o peso dos interesses econômicos e geopolíticos desse país na ordem internacional.

Kai Ambos64 em artigo sobre as tentativas de controle das drogas na

Colômbia, Peru e Bolívia quando trata da classe social atingida pela malha fina

policial em tema de entorpecentes afirma que, malgrado não existam estatísticas no

âmbito dos delitos de drogas, se pode comprovar pelas visitas ao cárcere que a

maior parte dos reclusos é proveniente de estratos oficiais inferiores, o que, segundo

63 BARATTA, Alessandro. Fundamentos ideológicos da atual política criminal sobre drogas . Op. Cit.. 64 AMBOS, Kai. Acerca de los intentos de control de las drogas em Colômbia, Peru y Bolívia. Cuadernos de política criminal nº53. Madrid, 1994, Edersa, p.656.

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o autor, permite supor que a repressão penal e policial em tema de drogas ilícitas

traz consigo uma discriminação das camadas inferiores. Até mesmo quanto aos

cargos ocupados na hierarquia do tráfico são de pequena monta, o que têm em

comum a fácil substituição por um exército de desocupados e subempregados da

América Latina, cuja persecução penal deixa incólume as estruturas da organização

do tráfico de entorpecentes. A repressão dirigida majoritariamente contra este grupo

de pessoas, como predomina nos três países, se revela inadequada para reprimir o

tráfico de entorpecentes.

2.2 – A fase atual: a política neoliberal de controle

A Estratégia Nacional de Controle de Drogas dos EUA, em seu projeto

para os anos de 1998 até 2007, propõe a comparação da droga com o câncer em

substituição a imagem bélica, já que as guerras terminam e o câncer, por enquanto,

não.

Noutros termos, há uma mudança de paradigma na atualidade em

tema de combate às drogas. Entretanto, o modelo proibicionista possui um fim em si

mesmo. É o ambiente favorável para aprovação de medidas de exceção, por meio

de uma legislação de urgência que justifique a perseguição de grupos étnicos e de

imigrantes. Reduz o controle em relação aos direitos humanos. Incrementa os

poderes dos juizes, promotores, procuradores, polícia e exército. Enseja vantagens

na área diplomática e acesso a recursos financeiros para operações encobertas. Por

outro lado, a proibição gera um substantivo aumento do preço das drogas ilícitas que

favorece a acumulação de capital. Cria uma linha divisória entre a classe excluída(os

homens maus), que é aquela que o braço armado do Estado persegue para reprimir

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e aplicar o direito penal e o encarceramento, e a classe dominante, que detém o

poder e dirige a ideologia das políticas de segurança pública(os homens bons).

Com efeito, Zygmunt Bauman65 analisa, com base em dados, que a

repressão total subiu assustadoramente na década de 1980 para 1990 no Reino

Unido, bem como o número daqueles que militam com esta indústria, o mesmo

acontecendo com a população de ociosos. Em sentido contrário, o Estado concedeu

benefícios em número bastante inferior do que aquele necessário. Como cresceu o

número de excluídos da vida econômica e social, a população convive com um

sentimento de insegurança.

A lógica do mercado era a lógica do trabalho. O normal era o trabalho

e o transgressor o desempregado, que efetivamente era visto como um exército de

mão–de-obra temporária, que deveria ser preparado para ser reintegrado ao

trabalho. Atualmente, racionalizar é cortar custos e isto significa cada vez menos

emprego, só que agora não mais um desemprego temporário. O Estado do bem-

estar era concebido com instrumento para reabilitar os temporariamente inaptos e

estimular os que estavam aptos a se esforçar mais, protegendo-os do medo de

perder a aptidão no meio do processo. O estado do bem-estar não era visto como

caridade, mas como um direito do cidadão, uma rede de proteção, uma forma de

seguro coletivo.

A indústria que propiciava trabalho, segurança e subsistência para a

maioria da população arcava com os custos da mão-de-obra deixada para trás para

torná-la empregável. Hoje, como um crescente setor da população nunca mais

voltará ao mercado de trabalho, os gastos com esse conglomerado passa a ser visto

65 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. trad. Mauro Gama e Cláudia Matinelli Gama. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, p.49/61.

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como custo que o Estado não mais tem condições de arcar. A previdência social,

antes de um direito do cidadão, transforma-se no estado dos incapazes e

imprevidentes.

Não há mais razão para arcar com os custos dos desocupados,

inexistindo seguro coletivo contra os riscos. A tarefa de lidar com os riscos foi

privatizada.

Concomitante ao Estado do bem-estar a salvação não surge mais da

sociedade(do Estado assistencial), inexistindo órgãos coletivos e conjuntos

encarregados da ordem societária global, sendo certo que a responsabilidade pela

situação humana foi privatizada e os investimentos e métodos de responsabilidade

foram desregulamentados.

No estágio atual, efetivamente o que regula os papéis do Estado é o

individualismo do mercado de consumo. Sob este espectro, o mercado cada vez

mais seduz e a medida do consumo é a medida de uma vida bem sucedida e de

decência humana. Os que à época do Estado do bem-estar eram alijados do

mercado de trabalho, dispunham de um meio coletivo para a busca do reingresso

em tal mercado. No Estado moderno, com a responsabilidade pela situação humana

sendo individual, os excluídos do jogo, os consumidores falhos tornaram-se os

perigosos e a prisão foi colocada no lugar das instituições do Estado do bem-estar.

No ano de 1994, nos EUA, 2802 pessoas aguardavam pela execução

nas prisões americanas, sendo a maioria esmagadora proveniente da classe baixa,

do imenso e crescente depósito onde se armazenam os fracassados e rejeitados

pela sociedade consumidora.

A realidade de privatização das prisões chega ao ápice de se pregar a

doação compulsória de órgãos daqueles executados. Chega-se, portanto, ao novo

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papel dos povos, antes vistos como exército de mão-de-obra de reserva, no estágio

atual servem de peças sobressalentes para o conserto de outros humanos.

O Estado moderno, portanto, opta pela tendência universal da radical

liberdade de mercado ao progressivo desmantelamento do estado de bem-estar,

com tendência de incriminar a pobreza, como própria encarnação do pecado por

estar fora do mercado de consumo.

João Ricardo W. Dornelles66 aponta para as características deste

modelo de política criminal neoliberal, a saber: 1) os interesses dos grandes

conglomerados econômicos se confundem com os interesses do próprio Estado; 2)

a receita para o combate a criminalidade descalça é uma ação altamente repressiva

e autoritária; 3) é um modelo que coloca como suspeitos, desviantes e perigosas as

pessoas de contato com os indiciados; 4) é um modelo que articula ações penais de

repressão e direta com ações privadas de vigilância, controle e repressão; 5)

estímulo a extensão e a diversificação das sanções penais e extrapenais; 6) é um

modelo que se transforma de política criminal em política de segurança pública;

prevalecem os fins puramente repressivos, visando demonstrar a efetividade do

sistema.

Este modelo de controle social neoliberal gera respostas estatais

conservadoras e antidemocráticas, que o próprio João Ricardo W. Dornelles67

aponta: o reequipamento da polícia, fortalecendo a repressão na guerra contra o

crime(com a utilização destas expressões bélicas); construção de novas prisões e

mais delitos sancionados com penas mais graves; programas de “lei e ordem” como

cruzada contra o crime, equiparando pequenos traficantes de grandes traficantes,

66 DORNELLES. João Ricardo Wanderley. Conflito e segurança: entre pombos e falcões. Rio de Janeiro, 2003, ed. Lúmen Júris, p.41 67 Op. cit., p. 33/35.

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consumidores eventuais e consumidores sociais, buscando espalhar um clima de

terror na população; crescente número de mortos de supostos delinqüentes em

suposto conflito com a polícia; verificação de uma tendência ao armamento

particular como forma de proteção pessoal e de defesa do patrimônio privado,

representando uma perda de confiança nas instituições repressivas; incremento das

políticas de encarceramento68; crescimento de empresas de segurança privada; a

veiculação de propostas de privatização do sistema penitenciário.

2.3 – Reflexos do modelo repressivo no Brasil

Salo de Carvalho69 destaca este processo de militarização no debate

sobre drogas no convênio firmado entre Governo do Rio de Janeiro, Governo

Federal e as Forças Armadas em 1994-95 com o fim de eliminar o tráfico de drogas

dos morros do Rio de Janeiro chamado de Operação Rio.

O plano da Operação Rio envolvia as seguintes etapas: ação

psicológica (demonstração de força através do policiamento ostensivo em toda a

cidade), ‘controle’ das vias de acesso ao Estado, investidas (ações incertas em

locais conhecidos como pontos de venda de droga), cerco (isolamento de favelas) e

entrega das áreas pacificadas para o Estado.

O fracasso de tal operação foi nítido já que não poderia mesmo pôr fim

ao tráfico ilícito de entorpecentes uma vez que não é um problema geográfico do Rio

de Janeiro, ocorrendo ainda uma série de lesões a direitos fundamentais. O autor

cita algumas destas ofensas como detenção de pessoas sem documento, busca e

68 A prisão transformou-se em espetáculo. Rotineiramente se tem visto nos meios de comunicação, independente do crime que se está imputando ao indiciado, o cidadão algemado em frente as câmeras como um troféu na mão daqueles que efetivaram a prisão. O indiciado e a vítima passam a ser estatística, como se os conflitos humanos se resolvessem em números. 69 CARVALHO, Salo de. Op. cit., p. 167/175.

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apreensão com mandados genéricos ou com datas retroativas, já que algumas

operações foram realizadas sem mandados, revistas humilhantes nos moradores.

Com fim do governo Brizola – Nilo Batista e com a posse do sucessor,

Marcelo Alencar, aponta o autor para a reformulação do modelo de segurança

pública no Rio de Janeiro com a utilização de técnicas militares em ação de guerra

para combater a criminalidade, citando, a guisa de exemplo, o Plano Emergencial de

Combate ao Crime Organizado no Rio de Janeiro entre o Governo do Estado do Rio

de Janeiro e o Ministério da Justiça, com assunção ao Comando da Secretaria de

Segurança Pública do General Milton Cerqueira e com a cessão de armas pesadas

do exército às polícias militares.

Sob o prisma econômico, destaca o autor, se percebe que a guerra

deflagrada contra as drogas tem função de esconder os desequilíbrios e conflitos

entre classes, determinando legitimidade para imposição de legislação seletivas, que

originam a violência institucional, bem como encobre o impacto econômico e social

que as drogas produzem nas relações internacionais, trabalhando em perspectiva

oposta ao regime legal ao Estado Democrático de Direito que tenta florescer na

América Latina no período pós-ditadura.

Cristiano Maronna70 aponta também para os reflexos desta política de

repressão sobre drogas em atos praticados pelo poder executivo. No Brasil, o

Gabinete de Segurança Internacional da Presidência da República e a Secretaria

Nacional Anti-drogas usurparam, através da MP 1669/98, a atribuição da Polícia

Federal atribuída pela CF/88, bem como verbas e poder do Ministério da Justiça.

A política brasileira de drogas alinha-se a repressão intolerante e

mantém com os EUA diversos programas e convênios: o PROERD, através do qual

70 CARVALHO, Salo de. Op. cit., p. 53/63.

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policias fardados visitam escolas para inculcar nos alunos a alusão a guerra contra

as drogas; o Projeto Sivam, que foi vencida a licitação por empresa americana em

contingências obscuras que envolviam grampo telefônico, suspeitas de tráfico de

influência que culminou com a exoneração de um assessor direto do presidente da

República; sistema de controle de satélite que busca identificar plantações de

entorpecentes e aviões usados pelo tráfico; Lei do Abate (aprovação no governo

FHC e regulamentada no governo Lula), que permite a derrubada de aeronaves

suspeitas de transportar droga (que alguns acusam de ferir a proibição da pena de

morte) e a tentativa de implantação do modelo de justiça terapêutica, onde todo

usuário é um doente que precisa de tratamento involuntário ou prisão.

O programa do então candidato Lula nas eleições presidenciais de

2002 menciona a necessidade de reformular a “fracassada” política de drogas de

Fernando Henrique Cardoso. Lula, inclusive, firmara manifesto apresentado à

Sessão Especial da ONU de 1998, junto com políticos, intelectuais e artistas,

segundo o qual a guerra contra as drogas causa mais danos que a droga

propriamente, agravando a arbitrariedade e corrupção. Contudo, o que se nota é um

continuísmo entre a política atual e a do antecessor.

Classificando como uma estranha parceira o dueto Brasil-Estados

Unidos, Jorge da Silva71 informa que os yanques vêm reformulando o seu esforço

para programas de prevenção e de conscientização da juventude, aduzindo que a

guerra deflagrada contra as drogas não inclui hoje a violenta repressão interna

outrora praticada. O norte da política na atualidade direciona-se a evitar que as

drogas sejam produzidas fora e que, ainda se produzidas, estas drogas não

cheguem aos usuários norte-americanos. Já que o Brasil não produz cocaína,

71 DA SILVA, Jorge. Segurança pública e polícia: criminologia aplicada. Rio de Janeiro. Forense, 2003, p. 513/516.

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competiu-lhe nesta equação antidroga a repressão local e o empenho em interceptar

a droga em sua rota para os Estados Unidos. Em razão disso, o problema brasileiro

acaba não sendo o consumo de sua própria juventude por drogas, o que levaria os

recursos e o rumo da política antidrogas brasileira para a prevenção, mas sem

atender as pretensões norte-americanas. A política antidrogas daqui é a extensão da

política de lá e para lá. Não fosse assim, não faz o menor sentido que as

autoridades brasileiras comemorem entusiasticamente as freqüentes apreensões de

droga em vias de sair do Brasil, sem demonstrar o mesmo entusiasmo quando a

apreensão se dá na entrada da droga no país para ser consumida nesta plaga.

Estranha também o autor que os brasileiros não protestem diante do fato dos

Estados Unidos engajarem o Brasil na “guerra contra as drogas” para que as

mesmas não cheguem até a eles e não façam o mesmo para evitar a chegada aqui

dos fuzis AR-15 fabricados no norte da América. No compasso, arremata o autor72:

Definitivamente, a solução não é simples. Nos Estados Unidos, a questão é saber se os meios usados se justificam, como ter mais de 5,5 milhões de cidadãos sob uma forma ou outra de supervisão do sistema penal, e seguir sendo a sociedade com maior taxa de homicídios entre os países avançados. No Brasil, é saber se vale a pena continuar com a fantasia do paraíso abaixo do céu, com a cabeça enterrada na areia para não encarar a realidade de uma ordem social profundamente injusta, conflituosa e violenta. Que o lado bom da fantasia, seja transformado num projeto político nacional a partir do qual se invista no que o Brasil talvez tenha de melhor, o seu capital humano, com educação de qualidade para todo o povo. Pra iniciar poder-se-ia retomar o ano de 1500 e recomeçar a contar a história, escoimando-a das inverdades e dos não-acontecidos, e incorporando na narrativa os não-ditos e a opinião daqueles a que nunca se deu voz.

A guisa de remate, o que se pretende demonstrar é que este modelo

de transacionalização da metáfora bélica no trato das drogas acarreta mazelas muito

mais graves do que a própria substância tida por ilícita. Em verdade, quando se

busca o controle das drogas declarando-as inimigo público e, para tanto, utiliza-se

do uso de estratégias beligerantes para o seu combate, o fim encoberto em tal

72 DA SILVA, Jorge , p.516.

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prática está a depor contra a sua utilização por algumas razões: primeiro, porque o

público atingido pela teia da repressão e do uso do direito da força são os excluídos

das oportunidades sociais e da cidadania, demonstrando, às escâncaras, que tal

discurso em verdade significa uma forma de controle social daquela parcela da

sociedade, alvo das instituições totais; em segundo, porquanto tal standart

desemboca na inflação legislativa do arrocho, buscando-se o direito penal como

panacéia para todos os males; em terceiro, pois a imposição da repressão acarreta

o efeito colateral devastador da violação de direitos, já que a máxima é de que na

guerra vale tudo para aniquilar o inimigo; em quarto, porque o modelo proibicionista

agrada aos interesses internacionais(políticos, econômicos e territoriais), em

detrimento da adoção de medidas preventivas na órbita interna dos países, o que

fulmina por agravar o problema.

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CAP 3 – REFLEXOS DO MOVIMENTO DE LEI E ORDEM NO BRASIL: O

TRATAMENTO DISPENSADO PELO PODER LEGISLATIVO AO TRAFICANTE E

AO CONSUMIDOR DE ENTORPECENTE

No primeiro capítulo, as escolas da criminologia foram abordadas de

modo que foi possível trazer ao final a teoria crítica com suas vertentes.

Propositadamente não se teceu comentários sobre o Movimento da Lei e da Ordem,

porquanto não pode ser considerado uma escola da criminologia.

Contudo, quando se pretende estudar a legislação brasileira em tema

de entorpecentes, bem como se faz quando se pretende analisar todo o movimento

legislativo no âmbito do direito penal na pós-modernidade, é preciso fazer um exame

de um dos movimentos político-criminais da atualidade, qual seja, o Movimento da

Lei e da Ordem.

Segundo Ariosvaldo de Campos Pires e Sheila Jorge Selim de Sales73

este movimento conservador, também chamado de neo-realismo de direita, teve

como representantes Van den Haag, Freda Adler e Edward Benfild, e surge na

década de 80 nos Estados Unidos e na Inglaterra como estratégias políticas para as

campanhas eleitorais de Ronald Reagan e Margareth Tatcher.

73 PIRES, Ariosvaldo de Campos e outra, Op. cit., p. 298/300.

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Em resumo, o núcleo das idéias do Movimento da Lei e da Ordem

reside no temor da classe trabalhadora manipulado pela mídia e pelos políticos,

sobre a idéia de criminalidade. O discurso alia de um lado, o pânico e a sensação de

insegurança da população e do outro lado, a falsa impressão de que há um

tratamento benéfico para os criminosos.

Como conseqüência, tal movimento defende a idéia de que o direito

penal é panacéia para todos os males, adotando a crença de que a questão da

violência se resolve com penas mais rígidas, aumento daquelas já existentes e

criação de novos tipos penais, enrijecimento da execução penal, ampliação das

hipóteses de prisão processual e engessamento das funções do juiz, tolhendo a sua

discricionariedade na fixação e execução da pena.

Ledo engano! Mas não é difícil entender, portanto, a razão pela qual

Ronald Reagan leva a efeito a guerra contra as drogas, impulsionando a

militarização da questão do combate as drogas, estabelecida por Richard Nixon em

1973, como já visto no capítulo anterior.

Crítico veemente da onda da lei e da ordem, Alberto Silva Franco74,

que antecipa o surgimento deste movimento para a década de setenta, aponta o seu

equívoco para o fato de se apoiar em premissas falsas. De início, porque não é mais

possível concordar com a afirmação de que o comportamento delitivo constitui o mal

e a sociedade o bem. De se dizer que a ordem social é pluralista, conflituosa,

antagônica, não monolítica, nem consensual, o que equivale a afirmar que não dá

para enxergar dois segmentos estanques do bem e do mal, até porque a realidade

mostra que há cada vez mais pessoas normais(lê-se, não excluídos) como

transgressoras de normas. Noutros termos, o delito pode ser visto em qualquer

74 FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos: anotações sistemáticas à lei 8072/90. São Paulo, 2000, 4ª ed., Editora Revista dos Tribunais, p.78/86.

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esfera da mesma sociedade, independente da classe social, o que se difere do

modelo etiquetado de delinqüente pendurado nas pessoas da classe mais baixa, o

que é, em verdade, uma atividade de seleção das instituições oficiais de controle

social.

A partir do momento que se observa o delito como uma conduta

comum no seio social, embora indesejada, o caminho a ser trilhado é estabelecer

metas não para extirpá-lo, mas para reduzir seus níveis a índices aceitáveis.

Outra premissa falsa que se baseia o movimento da lei e ordem para

difundir o medo é reduzir o conceito de violência, fazendo-o sinônimo de

criminalidade. Há inúmeras formas de violência na sociedade brasileira, por

exemplo, que não são criminalizadas. Traduzir violência como criminalidade faz a

população acreditar que para aqueles que cometem crimes e geram a violência(o

que é errado porque o crime não é a única fonte da violência), a melhor solução é o

endurecimento do sistema de penas e de punições.

Fato é que como dito pelo próprio Alberto Silva Franco75, “o Movimento

da Lei e da Ordem depositou seus ovos de serpente no texto constitucional e gestou

a categoria do crime hediondo.” Indo mais adiante, além de criar a figura do crime

hediondo, equiparando-a aos crimes de terrorismo, de tráfico ilícito de entorpecentes

e da tortura, declarando os mesmos insuscetíveis de graça, anistia e fiança. Foi a

senha para enrijecimento no tratamento das questões referentes aos crimes, penas,

processo penal e execução penal no ordenamento jurídico brasileiro.

Impõe-se afirmar que na temática sobre entorpecentes a legislação foi

endurecida antes da Constituição da República de 1988, já como fruto da política

beligerante e do proibicionismo mundial neste tema – lembre-se que as Convenções

75 FRANCO, Alberto Silva, Op. cit., p. 86.

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Internacionais sobre entorpecentes ocorreram em 1961, 1971 e 1988,

respectivamente, como visto no capítulo anterior - mas a atualidade mostra que é

possível enrijecer ainda mais. É possível piorar.

A conseqüência da absorção na legislação brasileira deste Movimento

da Lei e da Ordem é notada por Gevan Almeida76, que assim descreve:

Destarte, passamos a conviver com algumas leis que representam um verdadeiro retrocesso no que tange aos direitos e garantias individuais, verdadeira concessão aos postulados no movimento da law and order, que defende medidas drásticas no combate à criminalidade, como, por exemplo, penas severas, que deverão ser cumpridas em regime fechado, proibição de liberdade provisória e o desprezo de certos direitos e garantias processuais. (...) Trata-se de um direito penal simbólico, que não resolve o problema da criminalidade e que serve apenas para dar uma satisfação à opinião pública e à imprensa, que, às vezes com razão, outras vezes por puro sensacionalismo, clama por providências da parte do governo que possam conter a onda de crimes violentos que tanto pavor e intranqüilidade trazem à população das grandes cidades.

3.1 – A EVOLUÇÃO LEGISLATIVA SOBRE ENTORPECENTES NO BRASIL

Vicente Greco Filho77 traça a evolução da legislação no Brasil sobre

entorpecente. Cita como primeiro diploma legal a mencionar sobre o tema as

Ordenações Filipinas, no seu artigo 89 que proibia que se tivesse em casa

rosalgar78, vedando a sua venda, nem qualquer outro material venenoso. Portanto, a

preocupação do legislador não era com a droga que se consumia, mas com a

substância venenosa que se vendia e utilizava para destruir ratos ou qualquer outra

substância venenosa equiparada.

76 ALMEIDA, Gevan. Modernos movimentos de política criminal e seus reflexos na legislação brasileira. 2ª ed., Rio de Janeiro, 2004, Editora Lumen Jurus, p. 97/98. 77 GRECO FILHO, Vicente. Tóxicos: prevenção-repressão: comentários à Lei nº6368/76 de 21-10-1976. 11ª ed., 1996, São Paulo, Saraiva, p.39/43. 78 Rosalgar é a designação vulgar do óxido de arsênio, empregado para destruir os ratos. LELLO, José e LELLO, Edgard. Dicionário prático ilustrado. Vol. II, Porto, 1962. Lello e irmãos editores, p. 1095.

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Menciona, também, que o Código Criminal do Império não tratou da

matéria, mas sim o Regulamento, de 29 de setembro de 1851, quando faz referência

sobre a polícia sanitária e da venda de substâncias medicinais e medicamentos.

No passo seguinte, toca no Código Criminal de 1890 que considera

crime a conduta de expor à venda ou ministrar substâncias venenosas sem legítima

autorização e sem as formalidades previstas nos regulamentos sanitários. Acaba por

concluir que este dispositivo legal isolado não foi capaz de coibir a toxicomania em

São Paulo que, a partir de 1914, viraria, à semelhança de Paris do século anterior,

“um clube de toxicômanos”79.

Uma seqüência de decretos tentaria reprimir(veja-se, por pertinente,

que a palavra repressão não é utilizada aleatoriamente) a situação acima

mencionada, a saber: Decreto nº4294, de 6 de julho de 1921(que teve por base a

Convenção de Haia), Decreto 15683, Decreto nº 14969 de 3 de setembro de 1921,

Decreto nº 20930, de janeiro de 1932, Decreto 2953, de agosto de 1938.

Pelo decreto nº 3114, de 13 de março, foi criada a Comissão Nacional

de Fiscalização de Entorpecentes, cujas atribuições seriam estudar e estabelecer as

normas gerais sobre fiscalização e repressão no tema de entorpecentes. Do trabalho

desta Comissão surge o Decreto-lei nº 891 de 25 de novembro de 1938, que em

matéria penal, seguindo a Convenção de Genebra de 1936, colaciona o rol de

substâncias entorpecentes, a restrição de sua produção, comércio e consumo, além

de tratar da interdição civil e internação dos toxicômanos.

O artigo 281 do Código Penal de 1940 alterou a parte penal do Decreto

nº 891/38.

79 GRECO FILHO, Vicente. Op. cit. p. 39

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Dispunha o artigo 281 do Código Penal80:

Importar ou exportar, vender ou expor à venda, fornecer, ainda que a título gratuito, transportar, trazer consigo, ter em depósito, guardar, ministrar ou, de qualquer maneira, entregar a consumo substância entorpecente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena – reclusão, de um a cinco anos, e multa, de dos mil a dez mil cruzeiros.

Comentando o crime disposto no artigo 281 do Código Penal de 1940,

Nelson Hungria81 assim sintetizou:

A fórmula do art. 281 timbrou em ser minuciosamente casuística, para ainda rematar com uma cláusula genérica. Será difícil imaginar-se uma modalidade de ação, relacionada com o tráfico, comércio ou fornecimento de entorpecentes, que não esteja ali compreendida.

Na página seguinte, sobre o consumidor de entorpecentes, conclui o

citado autor:

Não é partícipe do crime, em hipótese alguma, a pessoa que usa ou a que é aplicado ou destinado à aplicação o entorpecente. Como indica a rubrica do artigo (“comércio clandestino ou facilitação do uso de entorpecente”), o crime é contribuir para o desastroso vício atual ou eventual de outrem(que a lei protege ainda que contra sua vontade). O viciado atual (já toxicômano ou simples intoxicado habitual) é um doente que precisa de tratamento, e não de punição(vejam-se os arts. 27 e segs. do dec.lei nº891). Quanto ao cliente ainda não viciado, não deixa de ser uma vítima do perigo de ser empolgado pelo vício, e não um criminoso.82

Nilo Batista83 faz uma distinção do tratamento inicial dado à questão do

tóxico com a política criminal atual. Divide como marco de 1914 até 1964, o que

chama de modelo sanitário, onde se extrai uma influência das sucessivas

convenções internacionais a começar pela Conferência de Haia em 1912, mas ainda

sim visualiza com nitidez uma concepção sanitária do controle do tráfico de

entorpecentes, com característica de se alimentar do desvio da droga de seu fluxo

autorizado, ou seja, onde a droga estava nas prateleiras das farmácias e as técnicas

80 BRASIL, Código Penal, 1940. 81 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Vol. IX. Arts. 250 a 361. Edição Revista Forense, p. 138. 82 Ibide,p.139. 83 BATISTA, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue. Revista Brasileira de Ciências Criminais nº 20, outubro-dezembro de 1997, p.129/146.

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higienistas e as barreiras alfandegárias são instrumentos utilizados para o controle

de epidemias e da política criminal sobre drogas. Do ano de 1964 em diante, após o

golpe de estado, o autor enxerga a alteração deste modelo para o bélico, com a lei

5726/71 inspirada na lei de segurança nacional vigente sob os “conselhos” da

política internacional sobre o tema. No ponto que chama de marcas da guerra, o

autor comenta as conseqüências desta mudança de modelo na legislação brasileira

com a conseqüência da criação de vários crimes de perigo abstrato e na tolerância a

violação de direitos fundamentais e do devido processo legal.

Este mesmo artigo 281 do estatuto repressivo é modificado em 04 de

novembro de 1964 pela lei 4451 para acrescentar o núcleo do tipo plantar.

Em 1964, quando no Brasil entra em vigor a Convenção Única sobre

Entorpecentes, o país encampa a lista sobre entorpecentes aprovada na referida

Convenção, por portaria, em 08 de maio de 1967.

A lei nº 572684, de 29 de outubro de 1971, trouxe uma disciplina única

para a questão dos entorpecentes, dispondo sobre prevenção e repressão ao tráfico

e consumo de substâncias entorpecentes (ou que causem dependência física ou

psíquica), dando nova redação ao tipo penal do artigo 281 do Código Penal e

modificando o rito processual para o julgamento de tal delito.

Tal diploma passou a estabelecer a pena para o crime do artigo 281 do

Código Penal entre um ano a seis anos de reclusão, mais multa entre cinqüenta e

cem vezes o valor do maior salário vigente no país. Além de trazer dos parágrafos

primeiro ao quinto novos tipos penais relacionados à questão do comércio de

entorpecentes, tal estatuto criava no inciso III do §1º do artigo 281 do Código Penal

o crime de trazer consigo para uso próprio substância entorpecente e igualava a

84 Brasil. Lei 5726/71. Disponível em www.planalto.gov.br. Consulta em 14 de outubro de 2006.

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pena ao caput de tal dispositivo, ou seja, aquele que trazia consigo substância

entorpecente para uso próprio era punido com a mesma sanção daquele que

comercializava o entorpecente, ou seja, um a seis anos de reclusão mais a multa.

Dispunha, ainda, em seus artigos 9º, 10, 11 e 12 entre outras coisas que os viciados

em substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica,

que praticassem os crimes previstos no art. 281 e seus §§ do Código Penal, ficariam

sujeitos às medidas de recuperação estabelecidas por esta lei. Estabelecia que se o

juiz absolvesse o agente, reconhecendo que, em razão do vício, não possuía a

capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com

esse entendimento, ordenaria sua internação em estabelecimento hospitalar para

tratamento psiquiátrico pelo tempo necessário à sua recuperação, trazendo no artigo

11 a possibilidade de internação na hipótese de diminuição considerável da

capacidade de entendimento da ilicitude do fato ou de autodeterminação do agente

ou mesmo hipótese da pena ser atenuada. Se o agente fosse maior de 18 (dezoito)

e menor de 21 (vinte e um) anos, era obrigatória a substituição da pena por

internação em estabelecimento hospitalar.

Esta lei foi substituída pela Lei 6368 de 21 de outubro de 1976.

A lei 6368/76 separa em três blocos distintos a figura do traficante, do

usuário e do viciado em entorpecentes ou qualquer outra substância que cause

dependência física ou psíquica.

O artigo 12 da mencionada lei traz o tipo penal do crime de tráfico ilícito

de entorpecentes85, equiparando nos parágrafos primeiro e segundo condutas outras

85 Muito embora exista na doutrina quem sustente que o crime descrito no artigo 13 da lei 6368/76 é considerado crime de tráfico ilícito de entorpecentes, entendimento que já foi afastado pelos Tribunais Superiores em relação ao artigo 14 do mesmo diploma, advoga o autor que tal entendimento não é possível pela interpretação sistemática com o artigo 1º, III, n da lei 7960/89.

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tidas também como tráfico ilícito de entorpecentes com pena de reclusão de três a

quinze anos mais multa de 50(cinqüenta) a 360(trezentos e sessenta) dias-multa.

No artigo 16, a lei 6368/76 trata do consumidor de entorpecentes ou

substâncias que causam dependência física ou psíquica, tipificando como crime a

conduta de adquirir, guardar e trazer consigo qualquer substância proscrita para uso

próprio, estabelecendo no preceito secundário a pena de seis meses a dois anos

mais multa de 20(vinte) a 50(cinqüenta) dias multa.

Já no artigo 19 do mesmo diploma legal, as figuras do dependente e

daquele que ingere por caso fortuito ou força maior entorpecente ou outra

substância que cause dependência são lembradas, sendo certo que a norma prevê

que se tais agentes praticarem qualquer conduta prevista em lei como crime(e não

especificamente aquelas condutas descritas na lei regente) serão isentos de pena,

desde que inteiramente incapaz de prever o caráter ilícito do fato ou de guiar-se de

acordo com este entendimento, estabelecendo o parágrafo primeiro a semi-

imputabilidade.

Em linhas apertadas, estas eram as novidades trazidas pela lei

6368/76, quais sejam: o enrijecimento do tratamento dado ao traficante,

caracterizando, desse modo, a imposição do modelo repressivo, passando a pena

de reclusão que era fixada entre um e seis anos para o patamar de três a quinze

anos; traz uma exceção pluralística a teoria unitária prevista no artigo 29 do Código

Penal para o concurso de agentes quando tipifica como crime autônomo o delito

praticado pelo usuário de drogas; traz a possibilidade de aplicação da regra da

inimputabilidade e semi-imputabilidade do artigo 19 da lei 6368/76 para qualquer

crime praticado pelo viciado e não apenas para os crimes descritos na lei antidrogas.

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Em 1988, a Constituição da República em seu artigo 5º, no rol dos

direitos fundamentais, estabelece no inciso XLIII o seguinte(o tal “ovo de serpente” a

que se referia Silva Franco):

A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos na lei como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;

Resumindo, o Pacto Fundamental equipara os crimes de terrorismo,

tortura, tráfico ilícito de entorpecentes aos delitos hediondos, cabendo ao legislador

infraconstitucional estabelecer quais seriam os chamados crimes hediondos, desde

já vedando aos processados e condenados por tais delitos a fiança, a graça e a

anistia.

Em 26 de julho de 1990, assinada pelo então presidente Fernando

Collor de Mello, é publicada a lei que é o marco característico da absorção do

Movimento da Lei e da Ordem pelo legislador pátrio, a chamada lei de crimes

hediondos(Lei 8072/90).

No artigo 1º do referido diploma legal o legislador estampa o rol dos

crimes hediondos, para, a seguir, já no artigo subseqüente começar a proibir: para

os crimes hediondos e equiparados(aí incluído o tráfico ilícito de entorpecentes) fica

vedada a anistia, a graça e o indulto(ampliando o leque de vedações

constitucionais), a liberdade provisória com ou sem fiança(também alargando a

vedação constitucional), estabelece o regime integralmente fechado para o

cumprimento da pena pelo condenado86, o que equivale a afirmar que era impossível

a progressão de regime, impõe a regra do réu não poder apelar em liberdade, ao

86 Posteriormente, em 23 de fevereiro de 2006, a inconstitucionalidade desta norma que fixa o regime integralmente fechado para os crimes hediondos e equiparados é declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Habeas Corpus nº 82959.

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arrepio de direitos fundamentais, aumenta o limite de prazo para trinta dias na

hipótese de decreto de prisão temporária para os crimes hediondos e

assemelhados, fixa o lapso temporal de dois terços para o livramento condicional de

tais crimes, proibindo em caso de reincidência específica, estabelece novos limites

de pena para vários crimes, aumentando-os e fixa causa de aumento de pena para

os casos em que as vítimas estejam nas hipóteses de presunção de violência

previstas no Código Penal.

Curioso notar que, malgrado tal legislação tenha vindo reprimir os

crimes hediondos e equiparados, o legislador infraconstitucional ao alvedrio do

princípio da isonomia, de cunho constitucional, cria um diploma legal exclusivo para

o crime de tortura, a lei 9455, que entra em vigor em 08 de abril de 1997. Tal lei,

além de tipificar condutas criminosas, veio ofender a igualdade de tratamento dado

para os crimes hediondos e equiparados, ao estabelecer, via de regra, para o

torturador o regime inicial fechado(e não o integralmente fechado), a possibilidade

de liberdade provisória e de indulto.

Basta observar quem comete o crime de tortura e aqueles que

cometem o crime de tráfico ilícito de entorpecentes e demais crimes hediondos e

assemelhados para se constatar a seletividade do direito penal a justificar o

tratamento diferenciado. Em verdade, é a constatação de que a verborragia do

Movimento da Lei e da Ordem tem seu espaço para os privilégios e a simbologia da

aplicação do direito penal como remédio só encontra eco quando atinge a parcela

excluída da população.

No compasso do tempo, em 13 de julho de 2001 é publicada a lei

10259, que cria os juizados especiais federais criminais. O artigo 2º, parágrafo único,

da mencionada lei estabelece como infração penal de menor potencial ofensivo toda

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aquela cuja pena máxima não exceda a dois anos ou multa. A despeito do legislador

no artigo 20 da referida lei vedar a sua aplicação no âmbito da justiça estadual, a

jurisprudência, em apego ao princípio constitucional da isonomia, pacificou

entendimento no sentido de que não há espaço para dois conceitos de infração

penal de menor potencial ofensivo no mesmo ordenamento jurídico, sendo

inadmissível que se tivesse na área federal uma infração de menor potencial

ofensivo e no âmbito estadual outra definição. Nestes termos, passou a se

considerar infração penal de menor potencial ofensivo toda aquela que a pena

máxima não exorbitasse a dois anos ou multa, independente se em lei especial

havia procedimento especial previsto, revogando tacitamente o artigo 61 da lei

9099/95.

No tema em apreço tal consideração tem relevância porque o crime de

porte de substância entorpecente para uso próprio - cuja pena máxima é de dois

anos de detenção - passou a ser considerada infração penal de menor potencial

ofensivo, aplicando-se-lhe a lei 9099/95 com todas as suas conseqüências, inclusive

a impossibilidade de prisão em flagrante, o que é de suma importância para o

trabalho e será objeto do capítulo seguinte. Por ora, é imperioso ter assento que a

partir da entrada em vigor da lei 10259/01, em 12 de janeiro de 2002, não há mais

prisão em flagrante para o consumidor de entorpecente, sendo a conduta descrita no

tipo penal do artigo 16 da lei 6368/76 considerada infração penal de menor potencial

ofensivo.

Também em janeiro de 2002, a lei 10409 entra em vigor natimorta. Tal

diploma legal tinha a pretensão de dispor sobre a prevenção, o tratamento, a

fiscalização, o controle e a repressão à produção, ao uso, e ao tráfico de

entorpecentes. Todavia, o então Presidente da República, Fernando Henrique

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Cardoso, veta todo o capítulo III da susomencionada lei, que tratava dos crimes e

das penas. Mencionada lei mantinha a pena do crime de tráfico ilícito de

entorpecentes entre três e quinze anos de reclusão mais multa. Criava a figura

delitiva daquele que financiava o crime de tráfico ilícito de entorpecentes, com pena

entre oito e quinze anos de reclusão mais multa. Estipulava ainda a conduta do

crime de posse para consumo pessoal, trazendo a novidade no sentido de que a

pena para tal infração penal seria de prestação de serviços à comunidade,

internação ou tratamento em regime ambulatorial ou em estabelecimento hospitalar,

comparecimento de reeducação, suspensão temporária para conduzir qualquer tipo

de veículo, cassação de licença para dirigir veículos, cassação de licença para porte

de arma, multa e interdição judicial. Em suma, a pena para o consumidor de

entorpecentes não mais seria privativa de liberdade.

Todavia, como o capítulo III foi vetado, o entendimento jurisprudencial

predominante firmou-se no sentido de que tal lei apenas seria aplicada na parte

procedimental87, enquanto que a parte criminal permanecia inalterada, ditada pela lei

6368/76.

Muito embora não tenha entrado em vigor no período delimitado para o

enfoque do presente trabalho, não se pode deixar de cogitar sobre o novel estatuto

sobre drogas, a lei 11343/06, cuja vigência teve início em 08 de outubro de 2006.

87 Quando da entrada em vigor da lei 10409/2002 duas posições doutrinárias e jurisprudenciais surgiram. Uma, no sentido de que a lei não se aplicava nem mesmo na sua parte procedimental, já que o artigo 27 enfatizava que o procedimento seria aplicado aos crimes previstas naquela lei. Inexistentes os crimes, porquanto vetados, a lei não seria aplicada na sua parte procedimental, permanecendo, intacta, a aplicação da lei 6368/76, seja na parte penal como na parte procedimental. Outro entendimento, o que prevaleceu, é no sentido de que por trazer um procedimento com maior plenitude de defesa, deveria ser aplicada a parte procedimental da lei 10409/2002 e a parte material da lei 6368/76.

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Impõe frisar que com a entrada em vigor da lei 11343/06 saíram do

mundo jurídico tanto a lei 6368/76 como a lei 10409/02 por revogação expressa do

artigo 75 da nova lei.

A maior novidade trazida pela lei 11343/06 é a descarceirização da

conduta do consumidor de drogas. No ordenamento jurídico brasileiro não é mais

possível se falar, depois da entrada em vigor da lei 11343/06, em pena de prisão

para o consumidor de drogas. Aquela pena que era de detenção de seis meses a

dois anos mais multa passa, agora, de acordo com o artigo 28 da lei 11343/06 a ser

de advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade ou

medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo, podendo ser

aplicada cumulativa ou isoladamente(artigo 27). O prazo máximo da sanção imposta

é de cinco meses de acordo com o §2º do artigo 28 da lei em comento, sendo certo

que se o réu for reincidente a pena pode ser aplicada pelo prazo máximo de dez

meses(artigo 28, §3º).

Para que se garanta o cumprimento das penas, pode o juiz fazer a

admoestação verbal ou aplicar multa, segundo faculta o artigo 28, §6º, I e II da lei

11343/06. Lembre-se, por oportuno, que esta multa jamais pode se converter em

prisão pela nova redação dada ao artigo 51 do Código Penal pela lei 9268/96 e

também porque a nova lei de drogas não menciona em prisão para o consumidor.

Outro ponto de extrema relevância que deve ser tratado é o cultivo de

plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto

capaz de causar dependência. Na lei 6368/76, o artigo 12, §1º, II equiparava a

conduta daquele que plantava ao tráfico de entorpecentes. A questão era tão

polêmica que três eram as correntes de pensamento. Uns defendiam que a lei não

fazia qualquer distinção, sendo irrelevante a destinação do produto, devendo o

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agente responder pelo crime de tráfico ilícito de entorpecentes. Outros enquadravam

a conduta no artigo 16 da lei 6368/76, tendo em vista uma interpretação in bonan

partem (ocorre que não havia que se falar em analogia porque inexistia lacuna).

Uma terceira posição firmava-se no sentido de ser atípica a conduta, porquanto a

plantação para consumo próprio não estava descrita no tipo penal do artigo 12 ou do

artigo 16 da lei 6368/76. Com a lei 11343/06, aquele que planta para consumo

pessoal consumidor é, estando equiparado ao tipo penal do artigo 28 da lei em

comento.

O artigo 16 da lei 6368/76 trazia três núcleos do tipo, quais sejam,

adquirir, guardar ou trazer consigo. O artigo 28 da lei 11343/06 acrescenta mais

dois: ter em depósito e transportar. A tentativa que era de difícil visualização fica

mais evidente no verbo transportar. Contudo, não há qualquer diferença prática

porque a sanção acaba sendo a mesma, já que não tem que aplicar qualquer

redutor como no parágrafo único do artigo 14, inciso II do Código Penal por não se

tratar de pena de prisão.

Importante constatar que o legislador pátrio entendeu que o

consumidor de droga não é assunto de direito penal que se resolva com prisão, mas

muito mais de saúde pública. Fortuito concluir, portanto, que em relação ao

consumidor de drogas a lei 11343/06 tratou do tema de maneira mais branda. Trata-

se, em conclusão, de novatio legis in mellius, que deve retroagir para beneficiar o

agente. Noutros termos, a nova lei será aplicada mesmo a fatos ocorridos antes da

sua entrada em vigor.

Para se fazer justiça, a semente da descarceirização do consumidor de

drogas foi plantada por uma proposta do Confen, sob a gestão de Ester Kosovski,

confeccionado em 1992, onde lá já se dizia que

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A sede da questão pertinente ao uso de drogas não pode ser o direito penal. Muitos são os argumentos que demonstram o acerto desta afirmação, entre elas avulta o de que o direito penal não pode ter por objeto condutas estritamente privadas.(...) O CONFEN entende que o discurso aterrorizante e centrado na droga, e não na pessoa e suas motivações, tende a agravar o problema. Ele está atento às comprovações científicas dos malefícios causados pelas drogas lícitas ou ilícitas, mas centra seus esforços na figura humana do usuário, sem preconceitos, para que o problema possa ser encarado nas suas reais proporções. Mas a proposta de que o tratamento do uso de drogas não seja no âmbito do direito penal não significa, absolutamente, liberação do uso. O que se quer é que à infração seja de outra natureza que não penal, como hoje se contempla no art.16, da Lei 6368, de 1976. A infração, no caso, pode ser sanitária, ou administrativa.88

Em relação ao agente dependente ou que atua sob o efeito de

substância entorpecente, cuja ingestão foi proveniente de caso fortuito ou força

maior, a lei 11343/06 - em seus artigos 45 e 46 - reconheceu o mesmo tratamento

dispensado pela lei 6368/76.

Já em relação ao crime de tráfico ilícito de drogas, todo o

abrandamento trazido em relação ao consumidor de drogas fica esquecido, já que é

patente a finalidade repressiva da lei. Os tipos penais dispostos nos artigos 33 e §1º

cominam pena entre cinco e quinze anos de reclusão mais multa de quinhentos a mil

dias-multa.

Cria um tipo penal no artigo 36 relativo ao agente financiador do tráfico

ilícito de drogas cominado sanção que varia entre oito e vinte anos de reclusão

acrescida de multa entre mil e quinhentos e quatro mil dias-multa.

Com efeito, a situação se agrava ainda mais quando no artigo 40 da lei

11343/06 o legislador traz sete causas de aumento de pena variáveis entre um sexto

e dois terços. Não é exagero afirmar que dificilmente alguém responderá por crime

de tráfico ilícito de drogas sem uma das causas de aumento de pena.

88 Proposta para uma política nacional de drogas. Ministério da Justiça. Conselho Federal de Entorpecentes. Brasília. 1992. p. 13.

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Cristiano Ávila Maronna89 comentando o novo diploma legal sustenta

que

O novel diploma, como se vê, segue o ideário da war on drugs. Nem mesmo o colapso do sistema prisional arrefeceu o ímpeto punitivo do legislador pátrio, para quem a sensação de insegurança causada pelo crime(e muito especialmente pelo “problema” das drogas ilícitas) deve ser combatida com ordem, disciplina e punição sem quartel. Encarceramento em massa. Prisão processual obrigatória. Penas longas. Tolerância zero. O proibicionismo triunfou novamente e talvez seja uma das raras unanimidades planetárias, da direita à esquerda, do centro à periferia, da ditadura à democracia. Nesse contexto, a nova lei de drogas representa mais do mesmo: a opção pelo modelo proibicionista e sua política criminal bélica, com derramamento de sangue. No que tem de essencial, portanto, a Lei nº 11.343/06 é draconiana. O alardeado abrandamento do tratamento dado ao porte para consumo pessoal é, na verdade, uma cortina de fumaça com o objetivo de contrabalançar o agravamento da punição ao tráfico.

O artigo 44 do diploma legal examinado, em perfeita tradução do

movimento para o recrudescimento do trato das questões criminais, veda ao

condenado por tráfico ilícito de drogas a fiança, o sursis, a graça, a anistia, o indulto,

a liberdade provisória, a conversão da pena privativa de liberdade em restritiva de

direitos e estabelece o lapso temporal de dois terços para a concessão do

livramento condicional, vedando tal direito ao reincidente específico.

Não é por outra razão que Rogério F. Taffarello90 concluiu que

Importa, ora, deixar claro que os avanços da Lei nº 11.343/06 somente podem ser assim considerados sob a perspectiva da equivocada política criminal brasileira acerca do tema, excludente e ineficaz tal como o paradigma fundamental que inercialmente a conduz: o War on Drugs estadunidense, cuja principal conseqüência, além da marginalização social, tem sido exatamente o aumento do tráfico e mesmo do consumo de drogas em toda parte.(9) Como dito, as iniciativas liberalizantes trazidas pelo novo diploma, ainda que tímidas, são bem-vindas, sobretudo tendo-se em conta o atual contexto de irracionalidade legislativa e as dificuldades que se põem aos Estados nacionais, especialmente os periféricos, que tencionem buscar alternativas ao War on Drugs. Não se pode, porém, furtar-se a criticar a falta de esclarecimentos e/ou de coragem do legislador pátrio para abandonar um paradigma falho e perverso.

89 MARONNA, Cristiano Avilla. Nova lei de drogas: retrocesso travestido de avanço. Boletim IBCCrim nº 167. outubro. 2006, p. 4. 90 TAFFARELLO, Rogério F.. Nova política criminal de drogas : primeiras impressões. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.14, n.167, p. 2-3, out. 2006.

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Sem sobra de dúvidas a nova lei 11343/06 é melhor do que a

revogada lei 6368/76 no trato do tema do problema do consumidor de

entorpecentes, ainda que melhor teria sido optar pela descriminalização ao revés da

descarceirização. No que se refere à problemática do tráfico ilícito de drogas, a nova

lei é tenebrosa. Há uma manifestação clara do legislador no sentido de que

absorveu a idéia do Movimento da Lei e da Ordem e tem como remédio para todos

os males o direito penal. Mais que isto: o proibicionismo em tema de drogas fez com

que a pena mínima do tráfico ilícito de entorpecentes passasse a ser de cinco anos,

vedando-se toda a sorte de direitos no processo penal e na execução penal, salvo,

neste último caso, a progressão de regime. Diante da abissal distinção de

tratamento dado pelo legislador ao consumidor de drogas e ao traficante, pode-se

concluir que o novo estatuto trouxe a concepção de que a penitenciária é o lugar

para o lixo social que a sociedade pós-moderna e globalizada não conseguiu tragar,

cabendo ao direito penal o papel fundamental de controlar a massa pobre, já que,

via de regra, esta é a camada alvo da repressão estatal.

3.2 – A AUSÊNCIA DE CRITÉRIO OBJETIVO PARA TIPIFICAÇÃO DO CRIME DO

CONSUMIDOR E DO TRAFICANTE

A legislação sobre entorpecentes traz graves equívocos. A própria lei

11.343/06 é nova, mas os defeitos são velhos.

De início, se poderia mencionar que o legislador quando trata de

entorpecentes faz da exceção a regra, utilizando-se como tipos penais crimes de

perigo abstrato, punindo atos preparatórios como crimes autônomos, antecipando a

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punição e ofendendo o princípio da lesividade, como salientado por Maria Lucia

Karam91.

Poder-se-ia sustentar também a ofensa aberrante ao princípio da

proporcionalidade quando o legislador fixa a pena mínima do crime de tráfico ilícito

de drogas em cinco anos e para o crime do financiador a pena mínima de oito anos.

Ora, como é possível os crimes de roubo e extorsão, por exemplo, terem pena

menor do que o crime de tráfico de drogas? Como pode o homicida ter pena mínima

de seis anos, se a vida é o bem constitucionalmente mais valioso, e o financiador do

tráfico merecer sanção mínima de oito anos?

Aliás, neste sentido é a posição de Luciana Boiteux92, que além de

destacar a ofensa ao princípio constitucional da proporcionalidade avalia o abismo

existente entre a figura típica do consumidor de drogas e do traficante, “que atingirá

diretamente os pequenos traficantes selecionados pelo sistema para cumprirem

pena”.

Entrementes, para delimitar o tema se preferiu aqui focar a discussão

na distinção entre a tipificação da conduta do usuário de drogas e do traficante.

Como se subsume a conduta de alguém aos tipos penais do crime de tráfico ilícito

de entorpecentes e ao crime de posse para consumo pessoal?

Pois bem.

Anteriormente se disse que a lei 5726 de 29 de outubro de 19/71, que

deu nova redação ao revogado artigo 281 do Código Penal, igualava a sanção entre

91 KARAM, Maria Lucia. A lei nº 11.343/06 e os repetidos danos do proibicionismo. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.14, n.167, p. 6-7, out. 2006. 92 BOITEUX, Luciana. A nova lei antidrogas e aumento da pena do delito de tráfico de entorpecentes. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.14, n.167, p. 8-9, out. 2006.

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traficante e consumidor, qual seja, um ano a seis anos de reclusão, mais multa entre

cinqüenta e cem vezes o valor do maior salário vigente no país.

Já a lei 6368/76 inovou quando trouxe em artigos distintos (artigos 12 e

parágrafos e 16) as condutas típicas do traficante e do consumidor. O critério para

se distinguir o consumidor do traficante de drogas estava estabelecido no artigo 37

da revogada lei 6368/76.

Art. 37. Para efeito de caracterização dos crimes definidos nesta lei, a autoridade atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação criminosa, as circunstâncias da prisão, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.

No artigo 21, §2º da lei 10409/02 buscou o legislador o mesmo critério

para distinção:

§2º . Para determinar se a droga destinava-se a uso pessoal e formar sua convicção, no âmbito de sua competência, o juiz, ou a autoridade policial, considerará todas as circunstâncias e, se necessário, determinará a realização de dependência toxicológica e outras perícias.

A lei 11343/06 também deixa a critério do juiz a verificação se a droga

se destinava ao tráfico ou ao consumo pessoal, de acordo com o que dispõe o artigo

28, §2º da lei 11343/06.

§ 2o Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.

Este, portanto, desde o ano de 1976, é o critério utilizado pelo

legislador para auferir aquele que se amolda à conduta típica do tráfico ilícito de

entorpecentes e da posse para o consumo pessoal.

Em primeiro lugar, conveniente enfatizar que tal critério é um resquício

da escola positivista analisada no Capitulo I. Com efeito, a ênfase dada naquela

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oportunidade ao paradigma da defesa social estabelecida por tal escola também se

aplica aos dias atuais no campo das drogas.

Os manuais de direito penal que de dedicam ao tema, ainda que por

omissão, acabam acatando o critério trazido pelo legislador para a tipificação da

conduta delituosa em tema de entorpecentes sem maiores questionamentos93.

Todavia tal critério não resiste a uma análise de sua

constitucionalidade.

Quando o legislador determina ao magistrado que tipifique a conduta

da pessoa como traficante ou como consumidor de drogas levando em consideração

as circunstâncias pessoais e sociais, bem como os antecedentes do agente, está a

punir a pessoa pela conduta de vida e não pelo que efetivamente fez. Pune-se pelo

que a pessoa é não pelo que ela praticou.

Além disso, parece evidenciado que se se tomar por base o critério dos

antecedentes do acusado para tipificar sua conduta como traficante de drogas ou

como usuário se está punindo, ainda que indiretamente, mais gravemente uma

pessoa pelo que fez anteriormente, em nefasto bis in idem, além do que se a

punição decorre do que a pessoa é, não havendo lesão a bem jurídico protegido.

Afirma-se, portanto, que de uma só tacada o legislador fere

frontalmente o princípio da culpabilidade, da legalidade, da lesividade e a vedação

do bis in idem.

Reconhecendo no estágio atual da dogmática a aplicação da teoria

normativa da culpabilidade, para que haja reprovação de uma conduta é necessário

93 Por todos: MORAES, Alexandre de e SMANIO, Gianpaolo Poggio. Legislação penas especial. São Paulo, 2002, 6ª edição, Atlas. CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, volume 4: legislação penal especial. São Paulo, 2006, Editora Saraiva. JESUS, Damásio Evangelista de. Lei antitóxicos anotada. 5ª edição, São Paulo, 1999, Editora Saraiva.

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que o agente tenha a possibilidade e lhe seja exigível entender o caráter ilícito do

fato e de se guiar de acordo com este entendimento.

Zaffaroni e Pierangeli94 fazem a decomposição da teoria da

culpabilidade em duas vertentes: a primeira, no brocardo nullum crimen sine culpa,

no sentido de que não pode existir crime se não for ao menos culposo; de outra

parte, a reprovabilidade da conduta para que haja crime. O primeiro recai sobre o

juízo de tipicidade e o segundo na culpabilidade normativa.

Absorvendo a conceituação dos autores acima citados no sentido de

que o princípio da culpabilidade, na segunda vertente, apresenta-se como aquele

segundo o qual não há sanção sem conduta reprovável do homem, merece

destaque o fato de que quando se pune alguém pelo seu estilo de vida, quando se

reprova(e no caso da droga altera a tipificação delitual) não a sua conduta mas a

personalidade do homem, ferido está este princípio.

Mas não é só. Como decorrência do próprio Estado Democrático de

Direito, frise-se, que tem por base a lei, o princípio da legalidade é uma das balizas

do direto penal democrático. Não há crime sem lei que o defina. Portanto, como

decorrência do princípio da legalidade, o legislador prevê os crimes em tipos penais.

Por tal razão Francisco Munõz Conde95 avisa que o tipo no direito penal assume três

funções: a uma, a função de selecionar os comportamentos humanos que serão

tidos por ilícitos; a duas, a função de garantir a toda sociedade que somente aqueles

que praticarem a conduta prevista em lei como crime será punido; a três, uma

função motivadora, pela qual se espera do homem que não pratique a conduta tida

como delituosa.

94 ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 2ª edição, São Paulo, 1999, Editora Revista dos Tribunais, p. 605/608. 95 CONDE, Francisco Munõz. Teoria geral do delito. Tradução e notas por Juarez Tavares e Luiz Regis Prado. Porto Alegre, 1988, Editora Fabris, 1988.

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93

Daí porque se entende que quando o legislador deixa de fixar critérios

objetivos para a tipificação da conduta do usuário e do traficante de drogas e

considerando o abismo de tratamento entre ambos está ferido o princípio da

legalidade, já que deixa a critério do magistrado dizer se o agente violou aquela ou

esta norma ao revés de se fazer através da lei, como exigência do próprio princípio

estudado.

Por fim, resta aduzir que quando o legislador pune um estilo de vida ou

uma mácula pretérita no passado de alguém, passando ao largo do fato que a

pessoa efetivamente cometeu, está violado o princípio da ofensividade, já que o

legislador acaba por proteger não o bem jurídico, mas a sociedade (daí o paradigma

da defesa social da teoria positivista).

Segundo liceu de Luiz Flávio Gomes96 “as ações que não afetam

direitos de ninguém ou de terceiros não podem pertencer à esfera penal”. Noutros

termos, o que se está a afirmar é que não há crime sem violação a bem jurídico

penalmente tutelado de terceira pessoa.

O fato de o réu ser reincidente em nada deve interferir no juízo de valor

sobre a sua conduta, pena de se revolver ao direito penal do autor, como dito acima.

Infelizmente, não é isto que se observa no cotidiano forense, onde o reincidente

acaba por carregar infinitamente a pecha de criminoso, como se fosse ser humano

de segunda categoria e sua palavra de menos valia. Há decisões judiciais que

confirmam esta deplorável realidade, porta esta aberta pelo Poder Legislativo ao

Poder Judiciário quando não fixou critérios objetivos para a distinção entre os tipos

penais do consumidor e do traficante de drogas.

96 GOMES, Luiz Flávio. Princípio da ofensividade no direito penal. São Paulo, 2002, Editora Revista dos Tribunais, p.82.

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94

Inadmissível a desclassificação do delito de tráfico para o de uso de entorpecentes, quando emerge dos autos a certeza da prática do comércio ilegal do tóxico, sendo tal circunstância corroborada pela quantidade apreendida, forma de acondicionamento, local da prisão e ser o agente reincidente na mesma modalidade criminosa.97

Agente reincidente específico, pois já condenado, por sentença transitada em julgado em 16/04/99, pelo mesmo crime, em associação eventual. Desclassificação para o art. 16. Impossibilidade. O réu nem declarou, em seu interrogatório, que as substâncias se destinavam ao próprio uso e a quantidade das mesmas, aliadas à sua condição de reincidente, induzem, sem sombra de dúvida, que as mesmas se destinavam ao nefando comércio.98

Apelação criminal. Tráfico de entorpecentes em associação eventual. Desclassificação para uso próprio de entorpecente. Recurso ministerial requerendo a condenação do réu nas sanções do art. 12, da lei nº 6.368/76. Apelo defensivo visando a redução da pena. Apreensão de considerável quantidade de cannabis sativa l. - 14,5g - dentro das peças intimas do acusado. Desclassificação operada em face do lugar onde se encontrava o entorpecente e da ausência de apreensão de dinheiro. Irrelevância. Desistência expressa do exame de dependência anteriormente requerido. Inexigibilidade de prova da mercancia. Réu reincidente no mesmo tipo penal. Provimento do recurso ministerial. Conseqüente desprovimento do apelo defensivo.99

Não se pode olvidar que o denunciado já foi preso e condenado por tráfico de drogas (fls. 63), o que comprova e dá mais ênfase ao depoimento dos policiais, não merecendo seja acolhida a tese defensiva quanto à possível desclassificação.100

A abstração de tal critério e a ausência de um critério objetivo cedido

pelo legislador para que o juiz adeque a conduta ao tipo penal que se pretende

violado faz aparecer excrescências na jurisprudência. Não raras vezes depara-se

com julgados condenado o réu como traficante de drogas porque a sua condição

social não indicava que teria condições de adquirir determinada quantidade de

drogas.

Por exemplo, assim já decidiu o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro:

Réu pobre, sem condições econômicas para estocar tal quantidade para uso próprio. Finalidade de entrega a consumo alheio bem demonstrada.101

97 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO. Apelação criminal nº 1999.050.04820. DES. JOAQUIM MOUZINHO - Julgamento: 08/08/2000 - TERCEIRA CAMARA CRIMINAL 98 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO Apelação criminal nº 2003.050.01935. DES. SALIM JOSE CHALUB - Julgamento: 24/09/2003 - SEXTA CAMARA CRIMINAL 99 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO Apelação criminal nº 2003.050.02056. DES. MARIA HELENA SALCEDO - Julgamento: 30/03/2004 - PRIMEIRA CAMARA CRIMINAL 100TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO Ação penal nº 2003.004.005257-1. 5ª Vara Criminal da Comarca de São Gonçalo. 101TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO Apelação criminal nº 2003.050.01203. DES.

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Em poder do Apelante, por dentro da bermuda, foi arrecadado um saco plástico contendo 71 sacolés de cocaína e quatro tabletes de maconha, induvidosamente destinados ao tráfico, dadas as circunstâncias da prisão, a quantidade e a natureza da droga arrecadada e a precária condição econômica do Apelante, que se disse camelô. Prova segura102.

A prova é segura quanto no fato das 19g. de maconha, acondicionados em 21 trouxinhas, se destinarem ao comércio ilícito, tanto pelo local onde ocorreu a prisão, conhecido como "boca de fumo", como por sua quantidade e, considerando, ainda, a condição econômica do réu, que tinha R$ 12,00 em sua posse, acrescentando-se, outrossim, que 21 trouxinhas de maconha é um exagero para quem se diz usuário eventual de entorpecente103.

As circunstâncias da prisão, a quantidade, a forma de acondicionamento da cocaína apreendida, bem assim, o alto valor da droga para quem ostenta modesta situação econômica, indicam que o crime praticado não foi o de uso próprio, mas, de fato, a traficância.104

Em sentido contrário, também já decidiu o Tribunal de Justiça do Rio

de Janeiro, optando por desclassificar a imputação para o crime de posse de

substância entorpecente de réu que ostentava boa situação financeira.

Se a prova colhida nos autos não leva a inequívoca convicção da prática do tráfico pelo agente, in casu, por ser ínfima a quantidade do tóxico encontrada em seu poder e pelas condições sócio-econômicas em que vive, inexistindo ao menos indícios que indiquem ser ele traficante, admite-se sua fragilidade para embasar um juízo de reprovação pelo comércio ilegal de entorpecente. Se o agente admite o uso da droga, sendo a quantidade apreendida em seu poder compatível com essa versão, impõe-se a desclassificação do delito para o de uso de entorpecente, aplicando-se-lhe o sursis por ser ele primário e de bons antecedentes105.

Em resumo, o que se pretende atestar é que, para além da clara

manifestação do Movimento da Lei e da Ordem no tema das drogas, forçoso

reconhecer que a vulnerabilidade do critério fixado pelo legislador para tipificar a

conduta do traficante de drogas e do consumidor não só ofende princípios

MARIA HELENA SALCEDO - Julgamento: 26/08/2003 - PRIMEIRA CAMARA CRIMINAL 102 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO Apelação criminal nº 2002.050.00359. DES. FLAVIO MAGALHAES - Julgamento: 11/04/2002 - OITAVA CAMARA CRIMINAL 103 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO Apelação criminal nº 2000.050.02724. DES. MARCUS QUARESMA FERRAZ - Julgamento: 03/04/2001 - TERCEIRA CAMARA CRIMINAL 104 Apelação criminal nº 2004.050.05208. DES. MARLY MACEDONIO FRANCA - Julgamento: 15/02/2005 - QUARTA CAMARA CRIMINAL 105 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO. Apelação criminal nº 1996.050.01718. DES. JOAQUIM MOUZINHO - Julgamento: 25/02/1997 - TERCEIRA CAMARA CRIMINAL

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constitucionais como dá ensejo a aleatória e desigual tipificação delitual em razão da

condição econômica ostentada pelo réu, o que longe de afastar o que se vem

defendendo presta a confirmar que a parcela da população que está atrás das

grades por crime de tráfico de drogas – aqueles sem qualquer direito – fazem parte

da sua camada mais pobre, escancarando, vez por todas, a função seletiva do

direito penal de molde a servir ao controle social.

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CAP. 4 – O PODER JUDICIÁRIO E O TRAFICANTE DE DROGAS COMO INIMIGO

O presente capítulo tem por escopo analisar a aplicação da penas

restritivas de direitos em substituição às penas privativas de liberdade aos

condenados por crime de tráfico ilícito de entorpecentes.

Na parte inicial busca-se, portanto, traçar as características da

magistratura brasileira, em especial a magistratura fluminense, apontando que duas

vertentes doutrinárias e jurisprudenciais surgirão no debate do tema e o enfoque do

perfil dos juízes servirá para demonstrar que o Poder Judiciário fluminense adotará a

visão mais conservadora sobre o tema.

Já no passo seguinte, pretende-se analisar o chamado Direito Penal do

inimigo na concepção trazida por Günther Jakobs, dando ênfase aos seus conceitos

e em especial ao conceito crítico-denunciador, para destacar que o tráfico ilícito de

entorpecentes é considerado o inimigo social nº 1, o que faz com que a

jurisprudência restrinja direitos e garantias processuais aos processados por tal

crime.

Na seqüência, aborda-se, após estabelecer as duas correntes

doutrinárias sobre a possibilidade de aplicação da lei 9714/98 em se tratando de

crime de tráfico ilícito de entorpecente, a posição jurisprudencial adotada pelo

Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, destacando que tal opção tem por base a

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diferença de classe social dos magistrados e dos processados pelo crime de tráfico

ilícito de entorpecentes, bem como o exacerbado apego a letra fria da lei em

desprestígio aos valores que melhor se adequam ao sentido de Justiça.

4.1 - O perfil da magistratura fluminense como espelho da linha jurisprudencial

dominante

O esclarecimento inicial deve ser no sentido de qual a necessidade de

se tocar na magistratura quando se pretende discorrer sobre a possibilidade de

substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos no caso

específico de tráfico ilícito de entorpecentes.

Destaca-se, de início, que duas vertentes doutrinárias e

jurisprudenciais surgirão no debate do tema e o que se pretende apontar com o

enfoque do perfil da magistratura fluminense é que, não por acaso, o Poder

Judiciário fluminense adotará a visão mais conservadora.

Entretanto, antes é preciso tratar, ainda que brevemente, da distinção

do Poder Judiciário nos países da Common Law e da Civil Law. Mirjan R.

Damaska106 discorreu sobre tais diferenças apontando as seguintes características:

a tradição dos países da Civil Law é de traduzirem a justiça como a boca da lei,

sendo o juiz um instrumento da lei; exige o Poder Judiciário hierarquizado, onde o

juiz inferior, apesar de ser a porta de entrada para a prestação da tutela jurisdicional,

tem suas decisões sempre revistas; o papel do juiz é manter a vontade do

soberano, seja este o Rei ou o Parlamento; os juízes aceitam o pronunciamento da

lei, mesmo que injusta. Já nos países da Common Law a justiça tem por base a

106 DAMASKA. Mirjan R. The faces of Justice and State Authority, Yale University Presse, 1986, p.1/70.

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soberania da sociedade, que apenas abre mão de parte dela para ficar mais forte; a

justiça é paritária, onde a vontade que prevalece é a da sociedade; o papel da

justiça não é reveladora da vontade da lei, mas, ao revés, é pacificadora dos

conflitos em consonância com a vontade da sociedade, tendo por nascedouro os

ingleses que foram para a América do Norte em busca de uma terra livre, longe do

jugo do rei.

Mauro Cappelletti107 coloca em relevo algumas das principais

diferenças entre os sistemas da Civil Law e da Common Law, a saber: a) do ponto

de vista da estrutura e organização, as cortes superiores tradicionais dos países da

Civil Law são diferentes dos tribunais superiores da Common Law. No ápice do

sistema judiciário dos países da Civil Law existe uma dicotomia de cortes superiores,

autônomas: uma para matérias cíveis e penais e outra para matérias administrativas,

cada uma com grande número de juízes, o que faz com que cada uma destas

Cortes e até mesmo das seções dentro de um único Tribunal decida de maneira

independente e até mesmo contraditória, redundando no enfraquecimento da

autoridade dos Tribunais, dos juízes que o integram e da própria decisão, algo

inimaginável em países do sistema da Common Law, onde a autoridade os

Tribunais, juízes e decisão são infinitamente maiores; b) como segunda distinção

aponta para a impossibilidade dos países do sistema da Civil Law em excluir dos

Tribunais Superiores a apreciação de todos os recursos regularmente levados a seu

julgamento, escolhendo decidir apenas os que suscitam questões de maior

relevância e gravidade. Tal fato faz com que os Tribunais Superiores dos países da

Civil Law estejam assoberbados de recursos, comprometendo a qualidade e

coerência dos pronunciamentos, bem como a autoridade da jurisprudência daqueles

107 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores?. Trad. Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Sérgio Antonio Fabris Editor. Porto Alegre, 1993, p. 111/128.

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Tribunais; c) outra diferença reside no tipo de juiz que compõe os Tribunais. Na Civil

Law, o magistrado é um juiz de carreira, que escolheu a profissão ainda jovem e que

foi nomeado após aprovação em concurso público. Na Common Law, a nomeação

para juiz se constitui de uma escolha política, que premia uma personalidade de

destacado relevo. Tal dicotomia faz com que o juiz da Civil Law seja mais técnico e

aplique a lei de maneira mecânica, sendo menos inovador; d) uma quarta diferença

seria a falta, nos países da Civil Law, do vínculo aos precedentes judiciários108; e)

nos países da Civil Law o direito é identificado com a lei e a possibilidade de

aplicação de analogia, costume e princípios gerais é sempre autorizada por lei e na

hipótese de lacuna, enquanto que nos países da Common Law o direito que deriva

do Poder Legislativo é visto como fonte excepcional do direito, já que há sempre o

direito desenvolvido pelos próprios juízes, que disciplinarão as relações jurídicas das

partes (Common Law), o que segundo o citado autor acarreta uma maior autoridade

do juiz na Common Law.

O apego exacerbado ao tecnicismo levou Eros Roberto Grau109 a

concluir por três razões que o levam a temer os juízes. Afirma o autor que teme os

juízes em primeiro lugar porque os mesmos não têm consciência de sua função que

é produzir normas, conduzindo os juízes à tibieza - quando deixam perecer a força

normativa do direito - ou a ousadia - quando praticam a subversão dos textos.

Depois, afirma seu temor quanto aos juízes porque eles são escolhidos segundo

critérios que procuram apurar as suas habilidade e qualificação não para o exercício

da prudência, mas para o exercício de uma técnica, já que o direito é visto não como

uma praxis social, mas como direito posto pelo Estado. Com efeito, os juízes são

108 No Brasil, a Emenda Constitucional nº 45/2004 acrescentou o artigo 103-A na Constituição da República de 1988 para criar a chamada súmula vinculante. 109 GRAU, Eros Roberto. Quem tem medo dos juízes(na democracia)? Justiça e Democracia, nº 01. São Paulo, 1996, p.101/111.

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técnicos a serviço não da Justiça, mas de quem lhes dá emprego, qual seja, o

Estado, acabando por se transformarem em burocratas. Os juízes utilizam do

vocábulo direito para se referir ao modelo de direito moderno, produzido pelo

Estado, objeto a partir e em torno do qual os juristas desenvolvem uma atividade

técnica, cujo requisito de validade repousa na representação popular associada à

maioria legislativa, sendo os pressupostos que ancoram a sua legitimidade a

separação dos poderes e a vinculação do juiz à lei. Os juízes acabam, portanto,

como intérpretes da vontade do legislador, identificando o direito, enquanto direito

positivo, como sinônimo da lei. Não concebem, todavia, o direito como sistema de

princípios coercitivamente impostos a determinado grupo social por qualquer

organização social, investida de poder para tanto. Destarte, arremata o mencionado

autor, que quando cogita em direito, pensa em algo mais amplo do que visualizam

os juízes e esta é a última razão porque teme os juízes, pois, em regra, não

conhecem o direito.

Dalmo de Abreu Dallari110 afirma que o legalismo formalista praticado

por juízes deita suas raízes no início do século XIX quando se procurou coibir o

excesso do Estado, quando as revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII que

findaram com o absolutismo e culminaram com a Revolução Francesa que gerou no

campo do direito, entre outras inovações, o princípio da legalidade que significa a

limitação ao Poder Executivo de só fazer o que a lei determina, mas nos casos em

que devesse agir o estrito cumprimento da lei.

Aduz ainda o falado autor111, que já no século XIX, pela evolução da

jurisprudência da Suprema Corte norte-americana houve o reconhecimento de que a

letra fria da lei não pode prevalecer em detrimento da mudança do sentido das

110 DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo. 2002. 2ª ed. Editora Saraiva, p.98. 111 Ibidem.

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palavras, das circunstâncias sociais, dos costumes e da própria escala de valores

dos povos, influenciados por novas condições de vida e convivência.

Por fim, arremata lastimando e lembrando que este apego ao

formalismo fez vários juízes no Brasil aplicarem os eufemisticamente chamados atos

institucionais em detrimento à Constituição da República de 1967:

No direito brasileiro, tanto na produção teórica quanto na jurisprudência, verifica-se que foi estabelecido e se tornou predominante, apesar de brilhantes manifestações em sentido contrário de alguns teóricos e magistrados, o que se poderia denominar “culto da legislação”, reduzindo-se o direito à lei escrita e resistindo-se a todas as tentativas de atualização. É uma atitude de acomodação, conservadora ou mesmo reacionária, motivo de conflitos entre o direito inscrito na lei e a realidade social. De um lado, essa atitude dispensa o esforço de atualização dos conhecimentos teóricos, permitindo o uso de teorias e autores há longo tempo consagrados, habitualmente muito citados e transcritos para dar a impressão de que as afirmações e conclusões têm sólido embasamento “científico”. Além disso, procura-se com essa orientação justificar a falta de esforço ou de conhecimento para a interpretação da lei segundo as circunstâncias sociais num dado momento histórico. Por último, procura-se, com a aplicação automática e literal dos textos legais, reduzir a responsabilidade do aplicador por decisões que, muitas vezes, contêm injustiças evidentes. Sempre que essa atitude é questionada, usa-se a desculpa de que o juiz não é legislador, não lhe sedo permitido reescrever a lei no momento de aplicá-la, adicionando-se, ainda, que, se for admitida a interferência do juiz na fixação do sentido da lei, haverá uma lei diferente para cada juiz e assim o resultado será injusto, pois casos iguais serão julgados de maneiras diferentes.112

Em última abordagem, resta tocar especificamente na magistratura

fluminense. Recente pesquisa, em que através das características pessoais, sócio-

econômicas, culturais e políticas dos juízes recém egressos aos quadros da

magistratura do Estado do Rio de Janeiro se buscava testar a hipótese de uma

provável democratização da magistratura fluminense com o ingresso de outros

grupos sociais em uma carreira tradicionalmente reservada à elite nacional, Eliane

Botelho Junqueira, José Ribas Vieira e Maria Guadalupe Piragibe da Fonseca113

112 DALLARI, Dalmo de Abreu .Op. cit., p.98/99. 113 JUNQUEIRA, Eliane Botelho, VIEIRA, José Ribas, PIRAGIBE DA FONSECA, Maria Guadalupe. Juízes: retrato em preto e branco. Rio de Janeiro. 1997. Letra Capital, p. 85.

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analisaram as provas e entrevistaram os juízes aprovados nos concursos públicos

entre 1990 e 1992.

O elitismo da magistratura fluminense começa já na prova para

ingresso na carreira onde as questões de direito penal analisadas versam, quase

exclusivamente, acerca dos crimes de roubo e furto praticados pelos segmentos

menos favorecidos da população, rotulados de “marginais” em determinada prova de

direito civil do ano de 1990, aos quais são contrapostos os “cidadãos”.114

A pesquisa retromencionada alinhava que pelos dois indicadores

significativos utilizados, quais sejam, local de moradia e nível de escolaridade dos

pais, a magistratura fluminense tem recrutado os seus juízes principalmente “entre

as camadas médias da população e não apenas entre a elite social.”115 Sobre tal

dado, em entrevista ao jornal O Globo116, o magistrado Marcos Alcino Torres

sentenciou:

Comecei a trabalhar aos 17 anos, como auxiliar de escritório. Mas, antes de ser juiz, já tinha comprado uma casa para minha mãe. No Rio, noto que boa parte da categoria é oriunda de uma classe social mais privilegiada. Não acho isso bom. Se você nunca deveu dinheiro, nunca pegou empréstimo, nunca contou os trocados para a passagem, terá mais dificuldades de entender os problemas de um brasileiro comum.

Todavia, o recrutamento dos juízes fluminenses nas classes médias da

população não tem o condão de alterar a postura conservadora e elitista do Poder

Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Isso porque,

a seleção de segmentos sociais oriundos da classe média – e não da elite- não parece ter introduzido mudanças significativas no modo de pensar dos magistrados, como a princípio se poderia supor. Muito pelo contrário, a predominância de diagnósticos conjunturais sobre a crise do Poder Judiciário – relacionados, como visto, principalmente à melhoria das condições de trabalho da própria categoria do juízes – e a percepção do Poder Judiciário como uma instância voltada primordialmente para a resolução de conflitos de natureza individual apontam para a reprodução da postura conservadora dos magistrados fluminenses. Menos do que voltados para uma cultura jurídica democrático-participativa ou para uma

114 JUNQUEIRA, Eliane Botelho e outros. Op. cit., p.79. 115 Ibidem, p. 100. 116 NO ESPELHO, a imagem de uma justiça lenta. O Globo, Rio de Janeiro, 30 out. 2005, p.3/4

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cultura jurídica particular, os magistrados do Estado do Rio de Janeiro reproduzem a cultura jurídica democrático-liberal e a cultura jurídica dos profissionais, confirmando que, quando assumem funções tradicionalmente reservadas às elites sociais, as classes médias tendem a incorporar a visão de mundo do grupo com o qual pretendem se identificar.117

O magistrado fluminense que, inserido no sistema da Civil Law, é

apegado à literalidade da lei, é um tecnicista que beira a burocratização da função

jurisdicional, oriundo das classes médias da sociedade, mas que no exercício do

poder despacha e sentencia como elite, ainda enfrenta o engessamento da carreira

através da sedução da promoção por merecimento, onde o mérito está alinhado a

adaptação dos novos magistrados à cultura organizacional do Poder Judiciário, ao

próprio sentido de hierarquia, o que equivale a afirmar que para o juiz preocupado

com a carreira o limite é o entendimento jurisprudencial do Tribunal de Justiça, já

que é fundamental não ter as sentenças proferidas sistematicamente reformadas.118

Por todos estes aspectos, é que os autores da pesquisa119 concluem

no seguinte sentido:

Sem dúvida, a magistratura precisa mudar. E, sem dúvida, por diversos motivos, parece que os novos concursos realizados pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro não estão selecionado um magistrado capaz de criticamente repensar as instituições judiciais. Esta conclusão é particularmente importante por três motivos. Em primeiro lugar, porque adia a transformação do Poder Judiciário, agravando a crise decorrente da percepção de distanciamento existente na sociedade brasileira em relação a esta instância. Em segundo lugar, porque os magistrados selecionados neste fim de século XX estarão em atuação na primeira metade do próximo século. Ou seja, através do perfil dos novos magistrados se está definindo o perfil da magistratura nas próximas décadas. Por último, como a imagem sobre a Justiça e sobre os profissionais do direito transforma-se lentamente, muito tempo será necessário para que as mudanças futuramente introduzidas no Poder Judiciário sejam assimiladas pelo público. Pouco adianta, em termos de mudança da imagem da Justiça, a existência de alguns magistrados progressistas se a instituição continua distanciada da sociedade.

4.2 – O direito penal do inimigo e o tráfico ilícito de entorpecente como

inimigo

117 JUNQUEIRA, Eliane Botelho, e outros. Op. cit., p. 162. 118 Op. cit., p.164. 119 Op. cit., p. 165.

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Günther Jakobs120 ao idealizar o chamado Direito Penal do inimigo o

fez em contraposição do Direito Penal do cidadão. Segundo ele, a função manifesta

da pena no Direito Penal do cidadão é a contradição da conduta humana com a

norma. Já no Direito Penal do inimigo é a eliminação de um perigo, porquanto neste

último caso a expectativa de um comportamento pessoal é defraudada de maneira

duradoura, diminuindo a disposição de tratar o delinqüente com pessoa. A lei,

portanto, avança a punibilidade para o âmbito da preparação e a pena se dirige a

segurança frente a fatos futuros(crimes de perigo), não a sanção de fatos

cometidos(crimes de dano). Após a análise dos fatos ocorridos em 11 de setembro

de 2001, o autor conclui que o que se subentende a respeito de delinqüente

cotidiano, isto é, não trato como indivíduo perigoso, mas como pessoa que age

erroneamente, já passa a ser difícil no caso do autor por tendência, como é o

exemplo do terrorismo121 que afasta, por princípio, a legitimidade do ordenamento

jurídico e por isso persegue a destruição desta ordem. Portanto, o direito penal

conhece dois pilares em suas regulações: por um lado, o tratamento com o cidadão,

esperando-se até que se exteriorize sua conduta para reagir, com o fim de confirmar

a estrutura normativa da sociedade; em contrapartida, o tratamento com o inimigo,

que é interceptado já no estado prévio, a quem se combate por sua periculosidade.

As tendência contrárias presentes no direito material (contradição versus

neutralização de perigosos) encontram situações paralelas no direito processual,

onde as regras mais extremas do processo penal do inimigo se dirigem à eliminação

de riscos terroristas, onde a referência a incomunicabilidade dos presos é um

exemplo.

120 JAKOBS, Günther. MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. Org. e trad. André Luís Callegari, Nereu José Giacomolli. Porto Alegre. 2005. Livraria do Advogado editora, p. 21/50. 121 O autor trata também o tráfico ilícito de entorpecentes como inimigo. Op. cit., p. 35.

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Luís Greco122, sobre a concepção de Direito Penal do inimigo galgada

por Jaboks, aponta para uma controvérsia na literatura destacando a discussão em

dois marcos distintos. De 1985 até a virada do milênio, as primeiras respostas não

foram muito críticas, tendo várias manifestações positivas, que versavam ou sobre

os aspectos dogmáticos da distinção entre direito penal do inimigo e direito penal do

cidadão ou se limitavam a criticar aspectos secundários, como a falta de clareza e

até mesmo manifestações encampando a idéia e levando-a adiante. Após a virada

do milênio, enfatiza o nupercitado autor, que as manifestações mais recentes de

Günther Jakobs receberam críticas apaixonadas tendo como alvo principal das

críticas o suposto direito do estado de recusar aos seres humanos o status de

pessoa, significando, assim, o conceito de Direito Penal do inimigo uma volta a

idéias nacional-socialista a respeito da exclusão de determinados grupos.

Linhas adiante, prossegue o mencionado autor123 destacando a

necessidade de se fazer a distinção conceitual prévia para se buscar a finalidade do

chamado Direito Penal do inimigo. Pelo conceito descritivo é possível ver no Direito

Penal do inimigo um instrumento analítico para descrever com mais exatidão o

direito positivo, na medida em que algumas normas do ordenamento jurídico seriam

caracterizadas como Direito Penal do inimigo. Conclui o autor que um conceito

descritivo do Direito Penal do inimigo não parece possível, porque o termo “inimigo”

é carregado de valores, o que força tanto a ciência do direito penal bem como o

discurso cotidiano sobre os fenômenos do crime e da pena a valorarem, sendo

desnecessário enquanto não for explicado em que medida ele pode contribuir para

uma melhor compreensão do direito vigente se comparado a conceitos tradicionais.

122 GRECO, Luís. Sobre o chamado direito penal do inimigo. Revista Brasileira de Ciências Criminais nº 56, setembro-outubro 2005, p. 80/112. 123 Idem, ibidem.

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Pelo conceito legitimador-afirmativo se formularia uma teoria de seus pressupostos

de legitimidade e afirmaria que estão satisfeitos na atualidade, indicando que o

dispositivo tem que ser legitimado com base em pressupostos diversos daqueles

que valem para os dispositivos tradicionais do direito penal do cidadão.

Ao que parece, ainda que com nomenclatura diversa, esta é a posição

defendida por Jesús-Maria Silva Sanchez124 que aponta para o que seriam as duas

velocidades do direito penal. Uma primeira, representada pelo direito da prisão, onde

seriam mantidos rigidamente os princípios políticos-criminais clássicos, as regras de

imputação e os princípios referentes ao processo. Já numa segunda velocidade,

encontram-se os casos que não tratam de prisão, senão sanções privativas de

direitos ou pecuniárias, onde aqueles princípios poderiam experimentar uma

flexibilização proporcional a menor intensidade da sanção. O que o último autor

referido questiona é a existência de uma terceira velocidade, onde o direito penal da

prisão concorra com uma ampla relativização de garantias político-criminais, regras

de imputação e critérios processuais. Finda por atestar a existência da chamada

terceira velocidade no direito penal sócio-econômico e pela inevitabilidade em

alguns âmbitos excepcionais(criminalidade de Estado, terrorismo, criminalidade

organizada). Manifesta-se, ainda, no sentido de que este Direito Penal de terceira

velocidade não pode aparecer senão como abordagem de fatos emergenciais, uma

vez que é expressão de um “Direito de guerra”, através do qual a sociedade diante

da gravidade da situação excepcional de conflito renuncia de modo qualificado os

custos da liberdade de ação, sendo que a legitimidade de tal direito reside em

considerações de absoluta necessidade, subsidiariedade e eficácia, embora termine

124 SILVA SANCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trd. Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo. 2002. Editora Revista dos Tribunais, p. 148/151.

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por prever uma ilegítima estabilização e crescimento do chamado Direito Penal do

inimigo.

Retornando ao liceu de Luís Greco125, quanto ao conceito legitimador-

afirmativo afirma que tal é recusado porque traz uma idéia que leva a que se

anulem todos os limites absolutos do poder de punir, que é impreciso e que

apresenta um aspecto autoritário que não presta à ciência do direito penal.

Por último, alinhava uma postura crítico-denunciadora126 que ao se

referir ao direito penal do inimigo se almeja estigmatizá-lo como antiliberal e

contrária ao estado de direito, apontando, assim, para a necessidade de sua

reforma. Após demonstrar que esta última visão do Direito Penal do inimigo seria a

mais atraente, sobretudo quando se funda em críticas ao bem jurídico saúde pública

no direito penal de tóxicos, quando se revela que o que se busca aqui é condenar

modos de vida que não são seguidos pela maioria da sociedade, mormente quando

detecta que na Alemanha dois terços das ações penais desenvolvidas sobre tóxicos

atingem pequenos usuários e traficantes, conclui o autor que o conceito

denunciador-crítico de direito penal do inimigo pode ser recusado primeiro pela sua

dimensão excessivamente difamatória e emocional, que ultrapassa a crítica para o

caráter de quem opina, de modo que dificilmente pode ser empregado sem que com

isso se formule uma reprovação pessoal e moral ao defensor de determinada

opinião e, em segundo lugar, pela sua dispensabilidade, já que não seria

indispensável para se criticar o direito penal a elaboração de um direito penal do

inimigo.

A despeito da respeitável posição do autor acima mencionado acerca

da dispensabilidade do chamado Direito Penal do inimigo, na doutrina atual esta

125 GRECO, Luís. Op.cit., p. 102. 126 Ibidem.

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expressão majoritariamente aparece neste último sentido, qual seja, no contexto

crítico-denunciador.

Neste diapasão, Eduardo Demetrio Crespo127 comentando sobre o

debate acerca da legitimidade do Direito Penal, cujo cerne da discussão atual reside

nas propostas abolicionistas versus propostas reducionistas, aponta para a

possibilidade de surgimento de construções como o chamado Direito Penal do

inimigo, que pretende desalojar da categoria de cidadãos determinados sujeitos que

devem ser tratados como meras fontes de perigo, devendo os mesmo ser

neutralizados a qualquer preço. Tal Direito Penal do inimigo se caracterizaria por um

amplo adiantamento da punibilidade, pela adoção de uma perspectiva

fundamentalmente prospectiva, por um incremento notável das penas e supressão

de determinadas garantias processuais individuais. Termina por concluir o autor que

tal concepção não é somente teórica, mas, infelizmente, existe na legislação, dando

como exemplo o terrorismo e o tráfico de drogas, finalizando por entender que tal

direito não pode ser o direito penal característico de um Estado de Direito e que toda

vez que são fixados objetivos primordiais no combate a determinados grupos de

pessoas, abandona o princípio básico do direito penal do fato para manifestar-se na

tendência autoritária do direito penal do autor. Assim, mesmo que se pregue a

utilização de tal direito com base na eficácia e segurança está vedada na esfera

axiológica, porquanto a validade não se extrai da eficácia. Para o autor, o chamado

Direito Penal do inimigo é conseqüência do uso simbólico do direito penal, assim

compreendido aquele que persegue fins distintos da proteção de bens jurídicos no

marco constitucional e da própria crise do Estado de Direito.

127 CRESPO, Eduardo Demetrio. Do “direito penal liberal” ao “direito penal do inimigo”. Ciências Penais. Vol. I, fasc. I, São Paulo, jul-dez, 2004, p.9/37.

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Manuel Cancio Meliá128 na mesma toada revela que o Direito Penal do

inimigo jurídico-positivo vulnera o direito penal do fato, que se entende como aquele

princípio genuinamente liberal, de acordo com o qual devem ser excluídos da

responsabilidade jurídico-penal os meros pensamentos, isto é, rechaçando-se um

direito penal orientado na atitude interna do autor. A rigor, quando se fala em Direito

Penal do inimigo a regulação tem uma direção centrada na identificação de um

determinado grupo de sujeitos(os inimigos) mais que na definição de um fato.

No mesmo tom, Cornelius Prittwitz129 sobre o tema enxerga que o

direito penal do inimigo é fruto do direito penal do risco, que deve ser repudiado com

todas as forças, já que por trás deste conceito esconde-se na realidade a expansão

do direito penal e em conseqüência do poder do Estado em paralelo à redução

paulatina de liberdades civis. Sobre o direito penal do risco, o autor comenta que

longe de permanecer fragmentário o direito penal sofreu uma mutação para um

direito penal expansivo caracterizado por novos candidatos no círculo de direitos

(exemplificadamente, o ambiente, o mercado de capitais, a saúde da população), o

deslocamento mais para frente da fronteira entre comportamentos puníveis e não-

puníveis e a redução das exigências de censurabilidade, expressada na

transformação de lesão aos bens jurídicos em perigo aos bens jurídicos130.

No presente trabalho, esta também será a concepção adotada, pelas

seguintes razões:

128 JAKOBS, Günther. MELIÁ, Manuel Cancio. Op. cit. p. 80/81. 129 PRITTWITZ, Cornelius. O direito penal entre o Direito penal do risco e o direito penal do inimigo: tendências atuais em direito penal e política criminal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 47, março-abril, 2004, p.31/45. 130 De se notar que o crime de tráfico ilícito de entorpecentes (art.12 da lei 6368/76) é considerado crime de perigo presumido, o que equivale a dizer que o legislador se contenta com a simples exposição do bem jurídico saúde pública a exposição a perigo, não necessitando do dano para a ocorrência do delito, dispensando a lei, ainda, a prova do perigo, por força da presunção.

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A primeira, porque esta é a visão da magistratura fluminense no que

pertine ao tema. No único acórdão encontrado sobre o chamado Direito Penal do

inimigo, este foi visto de maneira crítica, quase jocosa, como sinônimo do direito

reacionário que afasta as garantias esculpidas pelo Estado Democrático de Direito,

uma antítese ao modelo garantista, como abaixo se transcreve:

Diante do direito de punir do Estado há limites inscritos na Carta Política e derivados que formam o modelo garantista no Estado Democrático de Direito, assim o Juiz penal não pode olvidar o ne bis in idem e o in dúbio pro reo, que vedam a corrente reacionária do denominado Direito Penal do inimigo.131

A segunda razão, pois no que se refere ao tráfico ilícito de

entorpecentes este é visto pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro como inimigo

social a ser derrotado no estágio atual de guerra. Não é incomum encontrar em

acórdãos do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro expressões que traduzem o

tráfico ilícito de entorpecentes como o câncer social. Por conseguinte, o terceiro

motivo, conseqüência deste tratamento dispensado ao traficante de entorpecentes

(em geral o pequeno traficante, o “avião”, o “vapor”, o “olheiro”, em suma, o menino

pobre favelado que foi absorvido pelo que para ele representa o paradigma de

ascensão social dentro do meio em que vive) é a repulsa a toda e qualquer forma de

aplicação discriminatória da lei. Em nome de uma falsa idéia de repressão, como se

fosse agente de segurança pública, o que faz a jurisprudência do Tribunal de Justiça

do Rio de Janeiro é afastar direitos, como se aquele que se envolve com o tráfico

ilícito de entorpecentes, o que acontece muitas das vezes por falta de opção de vida,

fosse cidadão de segunda categoria. Em acórdão emblemático, há a negação de

ordem de habeas corpus, afastando excesso de prazo para acusado de tráfico ilícito

de entorpecentes sob a seguinte argumentação:

131 Apelação Criminal 485/2003. Rel. Des. Álvaro Mayrink da Costa. Terceira Câmara Criminal. Disponível em: www.tj.rj.gov.br. Consulta em: 26.12.2005.

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HABEAS CORPUS. INSTRUÇÃO CRIMINAL JÁ ENCERRADA. SÚMULA 52 DO STJ. INEXISTÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO. Trata-se de segundo Writ impetrado pelo paciente, sendo o primeiro (HC nº 01155-04) teve a ordem denegada, por unanimidade, em sessão de julgamento realizada em 06/04/2004. Os co-réus do paciente, CLAUDIO HENRIQUE OLIVEIRA DA SILVA e outros, também impetraram Habeas Corpus nº 02516-04, o qual tiveram a ordem denegada, por unanimidade, em sessão de julgamento realizada em 08/06/04. Paciente preso pela prática do crime previsto no artigo 12 da Lei 6368/76 e artigo 16 da Lei 10826/03, alegando constrangimento perpetrado pelo Juízo de Direito da 38ª Vara Criminal da Capital. O paciente foi preso, juntamente com seus co-réus, em flagrante e denunciado pelo Ministério Público, porque em 17/02/04, em comunhão de ações e desígnios com outros elementos, 88 gramas de erva seca e picada (maconha), 55 munições marca CBC, calibre 762; 59 munições marca CBC, calibre 5.56, um fuzil FAL, calibre 7.62, devidamente municiado, com numeração suprimida, ostentando as inscrições "NB CV" e "PARMA CV RL". Foi também apreendido com seus comparsas no interior de um imóvel cerca de 196 gramas de maconha; 63 gramas de cocaína e 49 gramas de haxixe. Na mesma ocasião foi encontrado um revolver Taurus, calibre 38. As testemunhas do Ministério Público já foram ouvidas, e, em 24/06/04, foram ouvidas as testemunhas de defesa. É certo que temos vivenciado dias de pânico, sobressalto, intranqüilidade em conseqüência da atuação audaciosa das quadrilhas de traficantes que, atrevidamente, vão às ruas e submetem cidadãos de bem a toda sorte de constrangimentos e, impunes, retomam a seus redutos. Não se pode deixar de levar em consideração os termos da impetração, que revelem fatos graves, como demora no julgamento do paciente, que já foi sanada, estando o feito agora tramitando regularmente. Todavia, não há como se conceder a ordem requerida e deixar livres os pacientes, eis que, as circunstâncias em que ocorrera a prisão do paciente e seus co-réus, revela a insensatez de conceder-se tal mercê. Só um insano colocaria em liberdade o paciente, integrante que é, de um grupo preso com grande quantidade de substância entorpecente e armas (inclusive um fuzil FAL), sendo certo que a situação caótica a que chegamos em termos de insegurança, não permite a concessão de qualquer mercê a acusados de envolvimento com o tráfico de drogas, atividade criminosa violenta que tanta intranqüilidade traz à nossa cidade. Todavia, o feito começou a caminhar regularmente, tendo a audiência de Sumário de Culpa sido realizada no dia 24/06/04 último, ou seja, a instrução criminal encontra-se terminada, incidindo agora o teor da Súmula 52 do STJ. Pelas informações prestadas, o pequeno atraso no término da instrução criminal foi perfeitamente justificável, se enquadrando perfeitamente dentro do Princípio da Razoabilidade, não se justificando que se coloque nas ruas perigosos traficantes, porém, o alegado atraso já se encontra superado com o término da instrução criminal, estando o feito maduro para ser proferida sentença. O pequeno atraso no término da instrução criminal foi perfeitamente justificável, se enquadrando perfeitamente dentro do Princípio da Razoabilidade, Os autos retratam fatos gravíssimos tráfico de entorpecentes - crime assemelhado a hediondo. É o câncer da sociedade. O crime por definição, em torno do qual giram todos os outros crimes, tantos, o suficiente para manter a insegurança e temerosa toda uma Cidade, um Estado e o mesmo País. Portanto, verifica-se que a instrução criminal encerrou-se. Aplicável ao caso o teor do Enunciado 52 da Súmula do STJ. A prisão cautelar é perfeitamente legal, já que encerrada a instrução criminal, inexistindo o alegado constrangimento ilegal. ORDEM DENEGADA132

132TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO.Habeas corpus 3031/2004. Rel. Des. Gizelda Leitão. Segunda Câmara Criminal. Disponível em: www.tj.rj.gov.br. Consulta em: 26.12.2005.

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Curioso notar que a pena do homicídio qualificado varia entre doze e

trinta anos, enquanto que a pena do crime de tráfico ilícito de entorpecente tem seus

limites entre cinco e quinze anos e quanto ao crime doloso contra a vida não há

referência na jurisprudência analisada quanto a ser o “câncer social”, o “inimigo a ser

derrotado”.

No tópico seguinte, é neste universo, onde o demônio-traficante é

tratado como o inimigo social a ser derrotado na luta contra a criminalidade, que

será apreciado como decidem os juízes “bocas da lei” sobre a possibilidade de

substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos.

4.3 – O tráfico ilícito de entorpecentes, a (im)possibilidade de substituição

da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos e a jurisprudência do inimigo

A Constituição da República de 1988, no título II, onde pincela os

direitos e garantias fundamentais, estabelece no artigo 5º, XLVI o princípio da

individualização da pena, prevendo também a adoção, entre outras, das seguintes

penas: privação ou restrição da liberdade, perda de bens, multa, prestação social

alternativa e suspensão ou interdição de direitos.

O 8º Congresso da ONU, ocorrido em 14 de dezembro de 1990,

recomendou a adoção das regras mínimas para elaboração de medidas não-

privativas de liberdade, aprovada pela Resolução 45/110 da Assembléia Geral,

denominadas de Regras de Tóquio. Objetiva-se com as chamadas Regras de

Tóquio em primeiro lugar, reduzir a incidência da pena de prisão, depois, buscar

alternativas penais à pena privativa de liberdade, promover uma maior participação

da comunidade na administração da Justiça Penal e no tratamento do delinqüente,

estimulando no delinqüente o senso de responsabilidade com a sociedade para que

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se possa, enfim e verdadeiramente, ressocializá-lo evitando-se a reincidência133.

Busca-se, portanto, através de um novo modelo de Justiça Penal, com base no

reconhecido fracasso da pena de prisão, que não atinge os seus objetivos

declarados, seja de prevenção geral ou especial, dentro de um sistema

penitenciário, como o do Brasil, por exemplo, que dispensa maiores comentários

sobre a sua macabra realidade e falência, atingir através de medidas alternativas ao

enclausuramento os objetivos da sanção penal.

Por conta disso, o artigo 43 do Código Penal, cuja redação fora

alterada pela Lei 9714/98, estabelece as penas restritivas de direitos, quais sejam,

prestação pecuniária, perda de bens e valores, prestação de serviços à comunidade

ou entidades públicas, interdição temporária de direitos e limitação de fim de

semana. Tais sanções são autônomas e substituem as penas privativas de

liberdade, o que equivale a dizer que na sentença deve o magistrado estabelecer a

pena privativa de liberdade e, se preenchidos os requisitos do artigo 44 do Código

Penal, também alterado pela Lei 9714/98, substituí-la pelas penas restritivas de

direitos. Excepcionalmente, quando a legislação especial estabelecer, como na

hipótese do Código de Trânsito brasileiro(Lei 9503/97, artigo 292), pode o juiz aplicar

tanto pena privativa de liberdade, bem como pena restritiva de direitos.

A expressão utilizada, qual seja, penas restritivas de direitos, é

criticada por Cezar Roberto Bitencourt134 que atesta que das modalidades de penas

sob tal rubrica somente a interdição temporária de direitos é verdadeiramente

restritiva de direitos, enquanto que a prestação pecuniária e a perda de bens e

valores são de natureza pecuniária e a prestação de serviços à comunidade e a

133 GOMES, Luiz Flávio. Penas e medidas alternativas à prisão: doutrina e jurisprudência. 2ª ed. São Paulo. 2000. Editora Revista dos Tribunais, p. 23/37. 134 BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal: parte geral. 6ª ed., São Paulo. 2000. Editora Saraiva, p.437/438.

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limitação de fim de semana atinam à restrição da liberdade do apenado. De toda

sorte, no presente trabalho serão utilizadas como sinônimas as expressões pena

restritiva de direitos – por força de lei - e pena alternativa – usualmente utilizada no

jargão forense – para indicar as hipóteses de penas estabelecidas no artigo 43 do

Código Penal.

Especificamente em relação ao crime de tráfico ilícito de

entorpecentes, bem assim aos crimes hediondos e demais equiparados, o debate

doutrinário e jurisprudencial reside no fato da lei 8072/90, que estabeleceu os crimes

hediondos e as restrições legais, estipular no artigo 2º, §1º, que a pena para ditos

delitos deve ser cumprida em regime integralmente fechado.

Portanto, a lei 8072, do ano de 1990, determinou o cumprimento da

pena privativa de liberdade no regime integralmente fechado, enquanto que a lei

9714, do ano de 1998, possibilita a substituição da pena privativa de liberdade por

pena restritiva de direitos quando o réu preencher os requisitos elencados no artigo

44 do Código Penal, a saber, a pena fixada não for superior a quatro anos, o crime

não for cometido com violência ou grave ameaça contra pessoa(ou qualquer que

seja a pena se o crime for culposo), o réu não for reincidente específico em crime

doloso e a conduta social, a personalidade do agente, os motivos e as

circunstâncias indicarem que a substituição é suficiente.

Em tese, o réu condenado pelo crime de tráfico de entorpecentes - cuja

pena mínima definida no artigo 12 da lei 6368/76 é de três anos de reclusão - em

virtude de tal delito não ser praticado com violência ou grave ameaça à pessoa, se

preenchidos os requisitos subjetivos (aqueles do inciso III do artigo 44 do Código

Penal), pode ter a pena privativa de liberdade substituída pela pena restritiva de

direitos. A indagação a ser respondida no presente trabalho é como o juiz

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fluminense, oriundo das classes médias da sociedade, apegado às idéias elitistas,

tecnicista beirando as raias do burocrata e afeto a jurisprudência do Tribunal de

Justiça do Rio de Janeiro por questões umbilicalmente relacionadas à carreira

apreciará o tema, quando se está diante da aplicação das penas restritivas de

direitos em substituição a pena privativa de liberdade no caso específico do tráfico

de entorpecentes, declarado pelo discurso oficial como o “inimigo” social a ser

combatido.

A doutrina sobre o tema é vasta. A guisa de exemplo, no sentido da

impossibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de

direitos, Jorge Assaf Maluly135 prega que a substituição falada somente é possível

quando se tratar de crimes de menor gravidade como ditado na Exposição de

Motivos do projeto de lei nº 689, de 18/12/1996(que se transformou na lei 9714/98),

o que não é o caso do tráfico ilícito de entorpecentes, delito equiparado a crime

hediondo pelo poder constituinte originário. Ademais, prossegue o autor, a Lei de

Tóxicos é especial e, portanto, incide a vedação da parte final do artigo 12 do

Código Penal. Por fim, narra ser incompatível com a substituição da pena privativa

de liberdade por pena alternativa no caso do tráfico ilícito de entorpecentes porque a

Lei 8072/90 reserva aos traficantes a restrição de benefícios processuais e de outros

de natureza substitutiva, que vão até a execução da pena, não sendo válido concluir

em sentido contrário quando se fala da pena, já que há determinação para que seu

cumprimento se faça no regime integralmente fechado.

Já em sentido diametralmente oposto, Sérgio Salomão Shecaira e

Alceu Corrêa Junior136 advogam que

135 MALULY, Jorge Assaf. O crime de tráfico de entorpecentes e a aplicação das penas restritivas de direitos. Boletim IBCCrim nº 77. abr/1999. p. 5/6. 136 CORRÊA JUNIOR, Alceu e SHECAIRA, Sérgio Salomão. Teoria da pena: finalidades, direito

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A parte Geral do Código Penal deve ser aplicada à legislação extraordinária, ressalvada a existência de disposições em contrário, segundo determina o art. 12 do CP. Com efeito, inexiste óbice à substituição da pena privativa de liberdade nos crimes hediondos ou àqueles previstos na Lei de Tóxicos, desde que verificados os requisitos legais(art.44 do CP). O art.2º, §1º, da Lei 8072/90, que impõe o cumprimento da pena de prisão integralmente em regime fechado, não impede a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos, pois o regime fechado deve ser observado apenas se a pena privativa for efetivamente aplicada.

Alberto Silva Franco137, no mesmo tom, defende a possibilidade de

substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos apontando que

é mister que se observe que a Lei 9714/98 não é um diploma legal solto no espaço: constitui modificação expressa de texto do Código Penal e, portanto, está nele incorporado. Se até a vigência da Lei 9714/98 era impossível a aplicação de pena restritiva de direitos em relação a condenado com pena igual ou inferior a quatro anos, tal impossibilidade foi removida no tocante a qualquer delito, seja ele doloso ou culposo, desde que não tenha sido ele cometido com violência ou grave ameaça à pessoa. A nova norma penal, por força do art.12 do Código Penal, é aplicável a fatos regidos por lei especial, se esta não dispuser de modo diversos. Ora, nem a Lei 6368/76 nem a Lei 8072/90, que equiparou o tráfico ilícito de entorpecente aos crimes hediondos, vedaram, de forma explícita, a aplicação de pena substitutivas à privativa de liberdade. Logo, não há repelir o regramento da Lei 9714/98 que, por ser norma geral do Código Penal, regula, por falta de disposição em contrário, as leis penais especiais.

Logo, a questão que era controvertida na doutrina, no campo

jurisprudencial ganhou pacificação ao menos no Tribunal de Justiça do Estado do

Rio de Janeiro138 e a posição adotada foi aquela mais restritiva, julgando-se

impossível a substituição da pena privativa de liberdade pela pena restritiva de

direitos. Veja-se, por todos, acórdão que faz menção inclusive a pacificação do tema

no âmbito do Tribunal de Justiça com a Ementa nº 08/2001 das súmulas de

jurisprudência dominante daquele Tribunal:

positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo. 2002. Editora Revista dos Tribunais, p.232/233. 137 FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos: anotações sistemáticas à lei 8072/90. 4ª ed. São Paulo. 2000. Editora Revista dos Tribunais, p.155/156. 138 Não se desconhece que no Habeas Corpus nº 85894, o Min. Gilmar Mendes, em questão de ordem afetou a matéria ao pleno do Supremo Tribunal Federal para se discutir a possibilidade de substituição de pena no caso de tráfico de entorpecentes em 30/11/2005. Entretanto, tal decisão não interfere no presente trabalho cujo marco temporal é de 2000 até 2005. Disponível em: www.stf.gov.br. Consulta em: 26.12.2005.

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A pena aplicada nos casos de tráfico ilícito de entorpecentes, tem que ser cumprida, por expressa determinação legal, em regime integralmente fechado, demonstrando, assim, que a natureza gravosa da infração torna indispensável o encarceramento do autor deste crime, sendo evidente sua periculosidade. Forçoso concluir que seria demais incoerente o legislador vedar a possibilidade de progressão de regime fechado para o semi-aberto, ou aberto e permitir que desde o início, o apenado cumprisse a pena totalmente em liberdade, se o legislador proibiu o mais gravoso, que é a progressão de regime, com certeza proibiu o menos. As inovações legislativas não podem ser interpretadas de maneira literal e isolada, mas sim de maneira sistemática, sob pena de se adotar medidas que confrontam com o bom senso e a ratio legis. Doutrina e jurisprudência, já firmaram posição e, embora respeitável minoria, mantenha entendimento dissonante, prevalece à tese da impossibilidade da substituição da pena prisional por restritiva de direitos, no caso de condenação por tráfico de entorpecentes, destacando que o enunciado 08/2001 deste E. TJRJ, pacificou o tema nos julgamentos desta Corte. 139

Enfim, o que se pretendeu demonstrar foi que uma magistratura cujos

juízes são filhos de uma classe social média, mas com pensamento das classes

dominantes, onde a prioridade é a ascensão na carreira, onde o juiz é um autômato

na aplicação da lei, como se esta constituísse a verdade suprema, só podia estar

engessada por uma jurisprudência que trata o traficante, o outro da classe social

mais baixa, como o demônio a ser vencido na guerra contra a criminalidade. Como

conseqüência, se restringe direitos que são concedidos por lei, em uma

interpretação restritiva quando era possível um alargamento de interpretação para

entender revogada a lei 8072/90, no que respeita a possibilidade de substituição da

pena privativa de liberdade por restritiva de direitos140.

139 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO. Apelação Criminal 1358/2005. Rel. Des. Elisabeth Gregory. Sétima Câmara Criminal. Disponível em: www.tj.rj.gov.br. Consulta em: 26.12.2005. 140 Em 08 de outubro de 2006 entrou em vigor a lei 11.343/2006 que além de aumentar a pena para o crime de tráfico, como já visto no capítulo III, vedou expressamente a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. Desde já se adianta que duas correntes doutrinárias surgirão sobre o tema: uma defendendo a inconstitucionalidade do artigo da lei 44 da lei 11343/06, porque o legislador infraconstitucional acaba por tratar de maneira diferenciada crimes que a Constituição da República concedeu tratamento igual pela regra do artigo 5º, XLIII; outra, no sentido de que é possível o legislador infraconstitucional vedar tal aplicação em nome do princípio da especialidade. E qual será a posição que eles, os juízes conservadores, irão adotar?

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CAPÍTULO V – ESTUDO DE CASO: A CIDADE DE CAMPOS DOS GOYTACAZES

O embrião do trabalho desenvolvido nasceu na militância forense. O

autor como defensor público do estado do Rio de Janeiro vivenciou cotidianamente,

seja através do contato pessoal travado com os seus assistidos processados, nos

fóruns ou nas cadeias públicas, quer através do contato com as famílias dos

mesmos, seja através dos enredos desenvolvidos nos autos de prisão em flagrante,

nas denúncias e no corpo dos autos, a experiência de lidar com parcela miserável

da população.

Notou-se, rapidamente, que o banco dos réus das varas criminais é

local destinado a camada mais pobre da pirâmide social. No cotidiano se destacou

que tal fato muito se deve ao valor e a proteção exacerbada dada pelo direito penal

ao patrimônio, já que parte dos réus presos, sejam eles condenados ou não, bem

como do número de feitos em andamento se referem a crimes patrimoniais.

Contudo, também se começou a perceber que havia uma função não declarada,

porém real, do sistema punitivo sendo diuturnamente exercida pelos órgãos oficiais

de controle, qual seja, a prisão como função simbólica, onde a entrada no cárcere

inicia o processo de estiquetagem, carimbando o criminalizável e reduzindo-o à

impotência. Assim, os excluídos das oportunidades da vida social ficariam ainda

mais excluídos com a prisão.

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Muito desse processo de estigmatização se deve a repressão ao tráfico

ilícito de entorpecentes pelas instâncias oficiais de controle, que em sua maioria

esmagadora se presta a encarcerar jovens pobres de comunidades carentes,

aumentando ainda mais o abismo social existente entre o mundo dos incluídos e

excluídos. Por outro lado, a prisão dos jovens, pretos, pobres e fora da escola em

sua maioria, serve para demonstrar a sociedade que as instâncias oficiais estão

atuando no controle da violência, dando visibilidade a prisão.

O tráfico ilícito de entorpecentes, portanto, concomitantemente assume

o papel de inimigo público declarado e de responsável pela visibilidade das

instâncias oficiais de controle social.

O presente capítulo tem por objetivo enfatizar os números

pesquisados na cidade de Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro, entre os anos

de 2000 e 2005.

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística141,

Campos dos Goytacazes, município situado na região norte do Estado do Rio de

Janeiro, contava em 2005(pesquisa atualizada até 01 de julho de 2005) com

426.212 mil habitantes, possuindo área territorial de 4.032 km².

Campos dos Goytacazes foi durante muito tempo conhecida como a

terra da cana-de-açúcar, mas Hervé Salgado Rodrigues142 dá o tom do declínio,

imputando-o a fatores climáticos(permanente déficit de chuvas), ao desmatamento,

a erosão, a falta de políticas públicas tendentes a investir em irrigação, o que

obrigou usineiros e lavradores a tomarem empréstimo hipotecando suas

propriedades a instituições financeiras, que levaram, segundo a expressão do autor,

a agroindústria campista à agonia.

141 Disponível em www.ibge.gov.br. Consulta em 07/11/2006. 142 RODRIGUES, Hervé Salgado. Na taba dos goytacazes. Niterói. Imprensa oficial. 1988, p. 292/293.

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Depois veio a fase da “Cidade do Petróleo”, por conta de terem sido

encontrados na região vários poços petrolíferos. Campos dos Goytacazes recebe

hoje os royalties que, segundo a Agência Nacional do Petróleo143, somente no ano

de 2006, até o mês de outubro, atingiram a marca de R$ 336.087.523,98.

Poder-se-ia chegar à conclusão precipitada no sentido de que se trata

de uma cidade rica. Entrementes, em verdade, trata-se de um município rico com

uma população pobre, diante da péssima distribuição de renda, marca indelével do

cenário brasileiro como um todo.

Essa péssima distribuição de renda é notada na estatística da

criminalidade, como se buscará demonstrar em seguida.

5.1 - As etapas da pesquisa

O estudo de campo se dividiu em três pesquisas. Na primeira delas,

buscou-se através dos livros de distribuição do Cartório Distribuidor da Comarca de

Campos dos Goytacazes144 verificar, no período compreendido entre os anos 2000 e

2005, a quantidade de denúncias ou termos circunstanciados distribuídos para as

duas varas criminais da Comarca de Campos dos Goytacazes e para o Juizado

Especial Criminal com referência, exclusivamente, aos crimes de tráfico ilícito de

entorpecentes e posse de entorpecente para uso próprio.

No segundo momento foi realizada uma pesquisa nos livros de registro

de sentença das duas varas criminais da Comarca de Campos dos Goytacazes com

143 Disponível em www.anp.gov.br. Consulta em 07/11/2006. 144 De acordo com o artigo 132, a, III do Código de Organização e Divisão Judiciárias do Estado do

Rio de Janeiro, a Comarca de Campos dos Goytcazes conta com dois juízos criminais(1ª e 2ª Vara Criminal), além do Juizado Especial Criminal, criado posteriormente, após o advento da Constituição da República de 1988 e da lei 9099/95.

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o fim de se verificar o número de sentenças proferidas por ano na Comarca, a

quantidade de sentenças relacionadas aos crimes de tráfico e o percentual

equivalente ao geral, bem como o número de absolvições e desclassificações nas

hipóteses de crime de tráfico ilícito de entorpecentes. Buscou-se, ainda, atestar a

quantidade de sentenças onde penas privativas de liberdade foram substituídas por

penas restritivas de direitos nas condenações por infringência ao preceito primário

do artigo 12 da lei 6368/76.

Em derradeiro, buscou-se mapear o perfil do preso da Comarca de

Campos dos Goytacazes e, em especial, aquele encarcerado pelo crime de tráfico

ilícito de entorpecentes, razão pela qual foi feita entrevista com os internos da

desativada Casa de Custódia Dalton Castro, que aguardavam julgamento, e com os

presos já condenados da antiga Penitenciária Carlos Tinoco da Fonseca.

Por pertinente, cabe desde logo alinhavar as dificuldades relacionadas

à entrevista com o efetivo carcerário da Penitenciária Carlos Tinoco da Fonseca.

Presenciou-se toda sorte de obstáculos. Revistas intransigentes na pessoa

responsável pelas pesquisas, inclusive com a imposição da obrigação de ficar

despida. Agentes penitenciários, que faziam corpo-mole para levar os presos até a

entrevista, o que obstruiu imprimir maior celeridade e volume na entrevista. Por fim,

a desativação da penitenciária, com a transferência dos internos, o que impediu a

entrevista com todos eles, razão pela qual as informações obtidas em relação a um

terço do efetivo carcerário da Penitenciária Carlos Tinoco da Fonseca foram

extraídas das anotações constantes nos assentamentos da penitenciária ou do

cadastro da Vara de Execuções Penais, fator que deixou a pesquisa incompleta e

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não será utilizada no presente trabalho, pena de se basear em dados parciais e,

muitas vezes até inverídicos145.

Em 25 de agosto de 2006 foi inaugurado na cidade de Campos dos

Goytacazes o Presídio Carlos Tinoco da Fonseca, com capacidade para

768(setecentos e sessenta e oito) presos, entre condenados e processados que

aguardam julgamento, divididos em duas alas e 96(noventa e seis) celas, tendo

sido a Casa de Custódia Dalton Castro fechada para reformas e a antiga

Penitenciária Carlos Tinoco da Fonseca somente recebe os presos no regime semi-

aberto que gozam de algum tipo de benefício na execução penal como, por

exemplo, visita periódica a família e trabalho externo.

5.2 – A pesquisa

5.2.1 - Os livros de distribuição

Nos livros do Cartório Distribuidor da Comarca de Campos dos

Goytacazes foi feito o levantamento das denúncias e dos termos circunstanciados

distribuídos especificamente em relação aos crimes do artigo 12 e 16 da lei 6368/76.

145 Nas consultas realizadas nas fichas dos presos da Penitenciária Carlos Tinoco da Fonseca se

constatou que muitas (em sua maioria) das informações estavam incompletas e até mesmo com dados incorretos, razão pela qual não serão utilizadas para não macular a pesquisa.

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Tabela 1 – Inquéritos iniciados com auto de prisão em flagrante e

denúncias distribuídas para as duas varas criminais da Comarca de Campos dos

Goytacazes relativas aos crimes dos artigos 12 e 16 da lei 6368/76.

DISTRIBUIÇÃO POR

ANO

ARTIGO

12

ARTIGO

16

TOTAL POR ANO DE

DISTRIBUIÇÃO DOS

ARTS. 12 e 16

2000 33 122 155

2001 40 91 131

2002 68 179 247

2003 118 06 124

2004 136 09 145

2005 118 17 135

TOTAL 513 424 939

É preciso lembrar, até porque de vital importância para a análise das

tabelas, que a lei 10259 de 21 de julho de 2001, que entrou em vigor em 13 de

janeiro de 2002, como dito no capítulo III, passou a considerar infração penal de

menor potencial ofensivo toda aquela cuja pena máxima não ultrapassasse dois

anos ou multa. Isto significa afirmar que o crime de porte de substância entorpecente

para uso próprio, a partir de janeiro de 2002, passa a ser considerado infração penal

de menor potencial ofensivo, devendo ser julgado pelo Juizado Especial Criminal.

Decorre disso a importância de se analisar a tabela das distribuições

de termos circunstanciados para o Juizado Especial Criminal a partir do ano de 2002

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até o final do ano de 2005, com referência ao crime tipificado no artigo 16 da lei

6368/76.

Tabela 2 – Termos circunstanciados relativos ao crime do artigo da lei

6368/76 distribuídos para o Juizado Especial Criminal da Comarca de Campos dos

Goytacazes

ANO DISTRIBUIÇÃO

2002 252

2003 85

2004 100

2005 75

TOTAL 512

Uma terceira tabela concluirá, com o somatório das duas tabelas

anteriores, o número exato de distribuições de denúncias e termos circunstanciados

na Comarca de Campos dos Goytacazes entre 01 de janeiro de 2000 e 31 de

dezembro de 2005 e, no passo seguinte, analisar-se-á esta terceira tabela.

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Tabela 3 – Total de distribuições de denúncias e termos circunstanciados

na Comarca de Campos dos Goytacazes relativas aos crimes dos artigos 12 e 16 da

lei 6368/76 no período compreendido entre os anos de 2000 e 2005

DISTRIBUIÇÃO POR

ANO

ARTIGO

12

ARTIGO

16

TOTAL POR ANO DE

DISTRIBUIÇÃO DOS

ARTS. 12 e 16

2000 33 122 155

2001 40 91 131

2002 68 435 503

2003 118 91 209

2004 136 109 245

2005 118 92 210

TOTAL 513 940 1453

Para se tecer uma análise escorreita do que representam os números

da tabela acima é preciso fazer duas observações. Primeiro, propõe-se a

desconsideração do número referente à distribuição do ano de 2002, com relação à

distribuição de termos circunstanciados pelo crime de porte de entorpecente para

uso próprio. Quando da entrada em vigor da lei 10259/01, em janeiro de 2002, os

juízes das varas criminais determinaram a remessa dos autos referentes às

denúncias deflagradas por crime de posse de entorpecente para consumo pessoal

para o Juizado Especial Criminal, por entenderem tratar de competência com arrimo

constitucional, portanto, absoluta, motivo pelo qual declinaram da competência

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porque passaram a ser incompetentes, sendo esta a razão da enxurrada de

distribuições para o Juizado Especial Criminal no ano de 2002.

De outra banda, para a análise da tabela com olhar crítico merece

relevo a abissal distinção entre o tratamento dado ao traficante de entorpecentes e

ao consumidor de entorpecentes, já que no momento em que o crime praticado por

este último passa a ser considerado infração penal de menor potencial ofensivo, a lei

9099/95 determina em seu artigo 69 e parágrafo único que a autoridade policial

deverá lavrar termo circunstanciado e liberar o conduzido que for levado até à

delegacia de polícia e assumir o compromisso de comparecer em juízo quando

intimado. Trocando em miúdos, o crime do artigo 16 da lei 6368/76 até o advento da

lei 10259/01 gerava prisão em flagrante para o autor, ao passo que, agora, como é

considerado infração penal de menor potencial ofensivo, não redunda em prisão.

Tudo o que se escreveu nos quatro capítulos anteriores talvez comece

a ser provado agora.

Dividindo a tabela 3 ao meio e desconsiderando as distribuições no

ano de 2002 facilmente se constatará que quando tanto o tráfico ilícito de

entorpecentes e posse de entorpecentes para consumo pessoal geravam prisão

distribuía-se mais do dobro de denúncias pelo crime do artigo 16 da lei 6368/68 do

que pelo crime do consumidor.

Já a partir do ano de 2003 até o ano de 2005, quando o consumidor de

entorpecentes não pode mais ser preso em flagrante delito(agora, então, com a lei

11.343/06 nem se fala!), a lógica das distribuições se inverte ditadas pelas prisões

dos novos traficantes. Foram distribuídas mais denúncias pelo crime do artigo 12 da

lei 6368/76 para as varas criminais do que termos circunstanciados pelo crime do

artigo 16 da lei 6368/76 para o Juizado Especial Criminal. A prisão do traficante que

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representava a terça parte das prisões envolvendo drogas(entre traficantes e

usuários) do ano de 2000 até 2003 depois que o crime de posse de entorpecente

para uso próprio passa a ser considerado infração penal de menor potencial

ofensivo aumenta quase ao quádruplo e representa uma estatística superior a

cinqüenta por cento da distribuição comparando entre denúncias pelo crime de

tráfico e termos circunstanciados pelo delito tipificado no artigo 16 da lei 6368/76.

Não se quer crer que as pessoas envolvidas com o tráfico ilícito de

entorpecentes estejam pelejando por um mercado consumidor decadente,

invertendo a lei da oferta e da procura, onde há mais traficantes que usuários de

drogas.

O que se atesta, em verdade, é que a prisão do traficante de

entorpecentes passa a ser o espetáculo midiático de poder das agências formais de

controle para impressionar a população no sentido de que se está a reprimir a

violência. Mais: representa muitas vezes a transformação daquele que era

considerado consumidor de entorpecentes em traficante de drogas, porque pela

ótica dessas agências a prisão é o que interessa, a bem da estatística e em

detrimento da dignidade da pessoa, dando início as outras funções reais da prisão,

como o processo de estigmatização, a depuração, diversiva e a redução à

impotência.

5.2.2 - Os livros de sentença

Nos livros de sentença das duas varas criminais da Comarca de

Campos dos Goytacazes, o que se buscou foi a sondagem do número de sentenças

proferidas anualmente desde janeiro de 2000 até dezembro de 2006.

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Perquiriu-se, ainda, dentre o número de sentenças proferidas, o

quantitativo referente aos crimes envolvendo entorpecentes, tanto por infringência

ao preceito primário do artigo 12 ou 16 da lei 6368/76 em relação às sentenças

proferidas tocante aos demais crimes.

Para os crimes de tráfico ilícito de entorpecentes se averiguou também

o número de sentenças absolutórias, condenatórias e aquelas que desclassificavam

a imputação para o crime de posse para uso próprio. Especificamente em relação ao

crime de tráfico ilícito de entorpecentes se atestou na hipótese de condenação pelo

crime do artigo 12 da lei 6368/76(e não de desclassificação para o tipo penal do

artigo 16 da lei 6368/76) em quantas sentenças foi substituída a pena privativa de

liberdade por restritiva de direitos, aplicando-se ao crime de tráfico ilícito de

entorpecentes a substituição franqueada pelo artigo 44 do Código Penal.

Tabela 4 – As sentenças proferidas pelos dois juízos criminais da Comarca

de Campos dos Goytacazes entre janeiro de 2000 até dezembro de 2005.

Ano Sentenças

proferidas

Sentenças

proferidas –

art.12 da lei

6368/76

Sentenças

proferidas –

art.16, da lei

6368/76

Sentenças

proferidas –

outros crimes

2000 310 62 14 234

2001 241 33 9 199

2002 376 64 12 300

2003 287 80 1 206

2004 346 102 1 243

2005 284 102 2 180

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Sugere-se que os números apresentados na tabela acima sejam

cindidos em dois blocos, quais sejam, até o ano de 2002 e de 2003 em diante e

desta forma sejam analisados. Isto porque, como já destacado acima, no ano de

2002 entrou em vigor a lei 10259/03 e, portanto, alterou o conceito de infração penal

de menor potencial ofensivo, passando a ser considerar como tal o crime descrito no

artigo 16 da lei 6368/76, o que redundou, como já destacado acima, em vários

declínios e conflitos de competência entre os juízes das varas criminais comuns e do

Juizado Especial Criminal, o que acaba por refletir e mascarar o número de

sentenças realmente proferidas em relação ao crime de posse de substância

entorpecente para uso próprio.

Estabelecida a premissa anterior, merece relevo o fato do

aumento do número de sentenças proferidas do ano de 2002 em diante em relação

ao crime de tráfico ilícito de entorpecentes. Observe-se o salto de sessenta e quatro

sentenças proferidas pelos juízos das varas criminais no ano de 2002 para oitenta

no ano de 2003 e cento e dois nos dois anos seguintes, se comparada com as trinta

e três sentenças proferidas em 2001. Mesmo que se desconsidere o número de

trinta e três sentenças em 2001, que é pífio, até porque no ano de 2000 os dois

juízos criminais da Comarca de Campos dos Goytacazes já haviam proferido

sessenta e duas sentenças relacionadas ao crime de tráfico ilícito de entorpecentes,

mesmo assim, considerando o crescimento apenas a partir de 2003, é preciso

afirmar que houve um acréscimo de 25 %(vinte e cinco por cento) em relação ao ano

de 2002. Salta aos olhos tal aumento se for comparado o ano de 2002 com os anos

de 2004 e 2005, onde o número se sentenças referentes aos crimes de tráfico ilícito

de entorpecentes aumentou em aproximadamente 60% (sessenta por cento).

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Cabe argumentar, de outra parte, que se comparados os números das

sentenças proferidas com as sentenças relativas exclusivamente ao crime de tráfico

ilícito de entorpecentes aumentou a fatia do bolo ditada pelas condenações por este

crime. Em 2003, as condenações referentes ao crime de tráfico representavam

17,02 % do percentual global, ao passo que nos anos posteriores este percentual só

vai aumentando: em 2003 equivale a 27, 87%, em 2004 atinge 29,47 e em 2005

chega a 35, 91% do total de condenações.

Em suma, não há apenas o aumento das sentenças proferidas em

relação ao crime de tráfico ilícito de entorpecentes, o que poderia significar um

aumento na prolação de sentenças como um todo, mas ainda o aumento do

percentual no número total, o que sugere que o crime de tráfico ilícito de

entorpecentes passa a abocanhar uma maior parcela da agenda das varas

criminais.

Coincidentemente, tais números cresceram quando o crime de posse

de substância entorpecente passou a ser infração penal de menor potencial ofensivo

e a condução do consumidor de drogas até a delegacia de polícia não significava

mais prisão em flagrante.

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Tabela 5 – As sentenças relativas ao crime de tráfico de entorpecentes

proferidas pelos dois juízos criminais da Comarca de Campos dos Goytacazes entre

o ano de 2000 e 2005

Ano Sentenças

absolutórias

Sentenças

desclassificatórias

Sentenças

condenatórias

Pena de

prisão

substituída

por restritiva

de direitos

2000 19 09 34 0

2001 09 04 20 1

2002 24 10 30 0

2003 22 12 46 1

2004 34 08 60 8

2005 16 16 70 0

A tabela acima demonstra, em primeiro lugar, a recalcitrância do Poder

Judiciário em aplicar pena restritiva de diretos em substituição à pena de prisão para

os condenados por crime de tráfico ilícito de entorpecentes. Das duzentos e

sessenta sentenças condenatórias proferidas somente em dez houve a aplicação do

artigo 44 do Código Penal.

Depois, demonstra o aumento do número de sentenças absolutórias

proferidas nos anos de 2002, 2003 e 2004. Destaca-se, também, um número maior

de sentenças desclassificatórias do ano de 2001 até 2005.

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Tal constatação retrata que o aumento da repressão ao tráfico ilícito de

entorpecentes após o advento da lei 10259/01, que passa a considerar a posse para

uso próprio de droga como infração penal de menor potencial ofensivo, trouxe

também um conseqüente aumento no número de sentenças absolutórias e

desclassificações, o que significa afirmar que em nome do aumento da estatística de

prisão se prendeu mais pessoas, que posteriormente foram declaradas inocentes

por sentença e consumidores de drogas como se traficantes fossem.

5.2.3 - A entrevista

Como dito outrora, foi elaborada entrevista com os internos da Casa de

Custódia Dalton Crespo de Castro. Para a mencionada entrevista foi distribuído

questionário e os entrevistados respondiam as perguntas previamente formuladas

através da mediação de entrevistador. É preciso deixar consignado que o

entrevistador em momento algum obrigou os internos a responder os

questionamentos, sendo certo que estes eram chamados e vinham

espontaneamente. Depois, releva consignar que os entrevistados respondiam como

queriam às perguntas, não sendo imposto modelo de respostas.

Em síntese, foram elaboradas as seguintes perguntas: nome(que ficará

em sigilo), idade, escolaridade, cor, se trabalhava antes de ser preso e, em caso

afirmativo, a remuneração, se já tinha sido preso antes e, em caso afirmativo, por

qual crime.

Não se pode dizer que foi uma surpresa o resultado da pesquisa, pois

o dia-a-dia forense permitia o conhecimento da criminalização da pobreza. Porém, é

de curial importância deixar registrado que os índices constatados acabaram por

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alarmar o espírito do pesquisador e reforçar o ideal de que somente se viverá em um

país justo o dia em que as oportunidades sociais forem distribuídas igualitariamente

e o direito penal não for utilizado como espetáculo de poder, servindo de contributo a

confirmação destas desigualdades.

Veja-se, pois, o gráfico referente à idade dos internos.

Gráfico 1 – Idade dos internos da Casa de Custódia Dalton Castro em

percentual

Internos da Casa de Custódia Dalton Castro

Idade

2%

49% 27%

22%

18 a 24 anos - 171 internos

24 a 30 anos - 78 internos

30 a 50 anos - 96 internos

Mais de 50 anos - 7 internos

Dos trezentos e cinqüenta e dois internos entrevistas e pesquisados,

cento e setenta e um ou o equivalente a quarenta e nove por cento, está na faixa

dos dezoito até vinte e quatro anos. Acima de vinte e quatro anos e trinta anos,

setenta e oito internos, o que equivale a vinte e dois por cento do universo

pesquisado. Entre trinta e cinqüenta anos, noventa e seis internos e com mais de

cinqüenta anos, sete deles.

Tal número confirma que é o jovem o alvo da malha fina do direito

penal excludente.

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O segundo gráfico revela o grau de escolaridade dos entrevistados.

Gráfico 2 – Escolaridade dos internos da Casa de Custódia Dalton Castro

em percentual

Internos da Casa de Custódia Dalton Castro

Escolaridade

13%

14%

12%

35%

12%

6% 7% 1% 0%

Analfabeto - 43 internos

Fundamental Incompleto - 46 internos

Fundamental Completo - 41 internos

1º Grau Incompleto - 121 internos

1º Grau Completo - 39 internos

2º Grau Incompleto - 21 internos

2º Grau Completo - 23 internos

3º Grau Incompleto - 3 internos

3º Grau Completo - 0 internos

Das pessoas entrevistadas, em número de trezentos e cinqüenta e

duas, somente trezentos e trinta e sete responderam a este questionamento porque

assim desejaram, seja por vergonha, desconhecimento ou irresignação.

Entre os entrevistados que responderam quarenta e três são

analfabetos, porque nunca pisaram em uma escola ou porque até freqüentaram por

curto período, não sabendo ler nem escrever. Quarenta e seis não completaram o

ensino fundamental(básico) e doze possuem o ensino fundamental completo.

Agrega-se a tais dados o quantitativo de cento e vinte e um que não terminaram o 1º

grau.

Por uma soma rápida se depreende que 74%(setenta e quatro por

cento) não chegou a concluir o 1º grau.

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136

Do outro lado da tabela se observa que apenas três internos, ou,

1%(um por cento) tem nível universitário incompleto e nenhum interno possui o

terceiro grau completo.

Não se pode romanticamente acreditar que aqueles que estudam mais

não cometem delitos. Se é fato – é isto que se sustenta – que a oportunidade de se

freqüentar a escola retira os jovens da criminalidade, por outro diapasão não se

pode deixar de realçar o caráter seletivo do direito penal, atendendo a função

diversiva da prisão.

Gráfico 3 – Cor dos internos da Casa de Custódia Dalton Castro em

percentual

Internos da Casa de Custódia Dalton Castro

Cor

24%

76%

Brancos - 81 internos

Outros (pardos, mulatose negros) - 252 internos

No que atina a cor dos internos, esta pesquisa se mostrou a mais

curiosa. Primeiro, porque alguns internos se autodefiniram em tonalidades

pitorescas. Um é escurinho, o outro é negão, o outro é mulatinho e por aí vai.

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Depois, porque ficou patenteado que o preconceito racial no Brasil é uma marca tão

forte e estigmatizante que os próprios entrevistados demonstraram-se

preconceituosos.

Como quer que seja, somente 24%(vinte e quatro por cento) ou oitenta

e um internos se declararam brancos. Os outros tantos se definiram como pardos,

mulatos e negros, sendo certo que trezentos e trinta e três internos responderam a

este questionamento.

Gráfico 4 – Renda mensal dos internos da Casa de Custódia Dalton Castro

em percentual

Internos da Casa de Custódia Dalton Castro

Renda Mensal

11%

37%

25%

11%4%

12% Até R$200 - 34 internos

De R$201 a R$400 - 119 internos

De R$401 a R$600 - 78 internos

De R$601 a R$800 - 33 internos

De R$801 a R$1000 - 11 internos

Acima de R$1000 - 38 internos

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Gráfico 5 – Renda mensal em salários mínimos aproximados dos internos

da Casa de Custódia Dalton Castro em percentual

Internos da Casa de Custódia Dalton Castro

Renda Mensal (em salários-mínimos)

88%

12%

Até 3 salários-mínimos - 275 internos

Acima de 3 salários-mínimos - 38 internos

Os dois gráficos acima demonstram efetivamente a criminalização da

pobreza. Daqueles trezentos e trinta e três internos que se dispuseram a indicar

quanto percebiam mensalmente, 48% ( quarenta e oito por cento) entre

desempregados e empregados ganham até R$ 200,00(duzentos reais) mensais,

consoante o somatório dos dois primeiros indicadores do gráfico 4. Já no gráfico 5

fica evidente a seletividade do direito penal, quando se constata que duzentos e

setenta e cinco internos recebem até três salários mínimos, incluindo neste contexto

os desempregados.

Tal conclusão se agrava se for dado o devido destaque ao fato de que

na pesquisa, para evitar qualquer tipo de constrangimento aos entrevistados, não foi

questionado se o soldo recebido era proveniente de atividade lícita ou não.

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Considerando que alguns destas verbas podem vir de atividade ilícita é mais

alarmante ainda a exclusão social.

Gráfico 6 – Crime praticado(em tese)146 pelos internos da Casa de

Custódia Dalton Castro em percentual

Internos da Casa de Custódia Dalton Castro

Crime Praticado (em tese)

37%

36%

2%

10%

14% 1%

Tráfico ilícito de entorpecentes- 130 internosCrimes contra o patrimônio - 124 internosCrimes contra os costumes - 8 internosPorte de arma - 36 internos

Homicídios - 49 internos

Outros - 2 internos

Forçoso reconhecer que os crimes patrimoniais digladiam com o tráfico

ilícito de entorpecentes pela ponta da tabela. Ao revés de enfraquecer a constatação

de que o direito penal é excludente e seletivo e a prisão, diversiva, tal fato reforça o

alegado. Nada mais excludente do que a tutela do patrimônio significar 36%(trinta e

seis)por cento do universo de presos, ao que se soma os outros cento e trinta

presos, que equivalem a 37%(trinta e sete) por cento, processados por tráfico ilícito

de entorpecentes.

Causa perplexidade que o direito penal pátrio tipifique algumas

centenas de crimes - entre aqueles espalhados pelo Código Penal e por leis

146

Aqui se está tratando de crime em tese em respeito ao princípio constitucional da presunção de inocência, vez

que os entrevistados não foram julgados por sentença definitiva.

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extravagantes - e somente seis espécies de delitos figurem na lista daqueles que

redundem em prisão, com ênfase nos crimes contra o patrimônio e no crime de

tráfico ilícito de entorpecentes.

Gráfico 7 – Quantidade de internos da Casa de Custódia Dalton Castro

com prisão anterior

Internos da Casa de Custódia Dalton Castro

Prisão Anterior

47%

53%

Sim - 162 internos

Não - 184 internos

Em análise derradeira, resta o gráfico dos entrevistados que já tiveram

presos anteriormente antes da prisão atual. Dos trezentos e sessenta e quatro

internos que se dispuseram a responder tal indagação, cento e sessenta e dois

deles já tinham sido anteriormente, ou, o equivalente a quarenta e sete por cento.

Considerando a idade da maioria dos internos, tal fato é alarmante, porquanto se

destaca que a população carcerária da instituição analisada é composta de jovens

pobres, excluídos das oportunidades sociais e já ostentando a etiqueta de envolvido

com o sistema criminal por mais de uma vez.

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Facilmente e infelizmente se constata que a perspectiva para este

jovem quando egresso do sistema penitenciário será quase nula no mercado de

trabalho, acabando por fazer do crime sua vereda. O Estado que não fornece a

inclusão social e a dignidade é o mesmo que através do braço forte da repressão

punirá estes jovens, acabando o direito penal por atingir aquelas suas funções não

declaradas, porém latentes.

Este jovem acaba por ser parte de uma engrenagem de um sistema

que foi idealizada para não funcionar e a sua “função” é servir de número para esta

estatística da exclusão.

Passa-se, agora, ao exame dos dados específicos dos entrevistados

processados por crime de tráfico ilícito de entorpecentes.

Gráfico 8 – Idade dos internos da Casa de Custódia Dalton Castro que

respondem pelo crime de tráfico de entorpecente em percentual

Internos da Casa de Custódia Dalton Castro

(processados por tráfico ilícito de entorpecentes)

Idade

22%

27%

49%

2% 18 a 24 anos - 65 internos

24 a 30 anos - 28 internos

30 a 50 anos - 35 internos

Mais de 50 anos - 2 internos

Como destacado alhures(gráfico 6), são cento e trinta internos que no

momento da pesquisa estavam presos pelo crime de tráfico ilícito de entorpecentes.

Tanto no gráfico geral como neste ora colacionado o percentual dos internos na

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faixa etária até vinte e quatro anos é de quarenta e nove por cento(em verdade

neste gráfico, porquanto não foi feita a conta quebrada, mas pro aproximação, o

percentual é de cinqüenta por cento), enquanto que se somado a faixa etária até

trinta anos se chega ao patamar de setenta e um por cento(também em percentual

aproximado, porquanto o cálculo foi feito sem a utilização de decimais).

Gráfico 9 – Escolaridade dos internos da Casa de Custódia Dalton Castro

que respondem por tráfico ilícito de entorpecentes em percentual

Internos da Casa de Custódia Dalton Castro

(processados por tráfico ilícito de entorpecentes)

Escolaridade

15%

13%

16%30%

12%

7%6% 0%1%

Analfabeto - 17 internos

Fundamental Incompleto - 14 internos

Fundamental Completo - 18 internos

1º Grau Incompleto - 33 internos

1º Grau Completo - 13 internos

2º Grau Incompleto - 8 internos

2º Grau Completo - 7 internos

3º Grau Incompleto - 1 interno

3º Grau Completo - 0 internos

Como se nota do gráfico acima, dos cento e trinta envolvidos com o

tráfico ilícito de entorpecentes dezessete são analfabetos, quatorze estudaram, mas

não completaram o ensino fundamental, dezoito completaram o ensino fundamental

e trinta e três têm o primeiro grau incompleto, o que equivale a setenta e quatro por

cento dos presos, em patamar idêntico ao do número global de internos.

Do outro lado da tabela, apenas um dos internos chegou a freqüentar

os bancos universitários, mas não completou o terceiro grau.

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Gráfico 10 – Cor dos internos da Casa de Custódia Dalton Castro presos

acusados de tráfico ilícito de entorpecentes em percentual

Internos da Casa de Custódia Dalton Castro

(processados por tráfico ilícito de entorpecentes)

Cor

23%

77%

Brancos - 29 internos

Outros (pardos, mulatose negros) - 96 internos

Dos cento e trinta, somente cento e vinte e cinco quiseram responder a

esta pergunta e os números não destoam do percentual geral. Enquanto no geral o

número de brancos atinge vinte e quatro por cento do número total, em relação aos

internos acusados da prática de tráfico ilícito de entorpecentes este percentual

chega a vinte e três por cento aproximadamente.

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Gráfico 11 – Renda mensal dos internos da Casa de Custódia Dalton

Castro presos acusado de tráfico ilícito de entorpecentes em percentual

Internos da Casa de Custódia Dalton Castro

(processados por tráfico ilícito de entorpecentes)

Renda Mensal

10%

46%22%

10%2% 10% Até R$200 - 12 internos

De R$201 a R$400 - 56 internos

De R$401 a R$600 - 27 internos

De R$601 a R$800 - 13 internos

De R$801 a R$1000 - 3 internos

Acima de R$1000 - 13 internos

Gráfico 12 – Renda mensal em salários mínimos aproximados dos internos

da Casa de Custódia Dalton Castro acusados de tráfico de entorpecentes em

percentual

Internos da Casa de Custódia Dalton Castro

(processados por tráfico ilícito de entorpecentes)

Renda Mensal (em salários-mínimos)

90%

10%

Até 3 salários-mínimos - 111 internos

Acima de 3 salários-mínimos- 13 internos

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A constatação da criminalização da pobreza se faz aqui também.

Consoante gráfico 12 somente dez por centos dos internos processados por tráfico

de entorpecentes ganhavam, quando em liberdade, mais de três salários-mínimos.

Dez por cento ganha menos de duzentos reais, aí incluídos os desempregados, ao

passo que quarenta e seis por centos aufere até quatrocentos reais, que é menos

que um salário mínimo e meio, que à época da entrevista era de R$

350,00(trezentos e cinqüenta reais). Em suma, mais da metade dos entrevistados

estão na faixa que aufere menos de R$ 400,00(quatrocentos reais) mensais.

Gráfico 13 – Quantidade de internos da Casa de Custódia Dalton Castro

que respondem a ação penal por tráfico de entorpecentes com prisão anterior

Internos da Casa de Custódia Dalton Castro

(processados por tráfico ilícito de entorpecentes)

Prisão Anterior

51%

49%Sim - 66 internos

Não - 64 internos

Dos cento e trinta entrevistados, sessenta e seis deles já haviam sido

presos anteriormente, atingindo percentual de cinqüenta e um por cento. Destaca-

se, portanto, que segundo os números, a etiquetagem do preso por tráfico ilícito de

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entorpecentes e a repressão a este crime é maior do que em relação aos demais, já

que o percentual de custodiados que foram presos anteriormente naquele universo

de todos os entrevistados(gráfico 7) é menor do que em relação ao crime de tráfico

ilícito de entorpecentes.

5.3 - Os condenados por pena alternativa e a inserção social

Com base nos livros de sentença das varas criminais da Comarca de

Campos dos Goytacazes, chegou-se ao nome dos dez processados que, uma vez

condenados por tráfico ilícito de entorpecentes, tiveram suas penas privativas de

liberdade substituída por pena restritiva de direitos entre os anos de 2000 e

2005(tabela 5).

Com o nome dos internos, se pesquisou junto ao Cartório Distribuidor

da Comarca de Campos dos Goytacazes e junto ao cadastro informatizado de

presos da Secretaria de Administração Penitenciária, na Casa de Custódia Dalton

Castro, quantos destes voltaram a ser presos pelo cometimento, ao menos em tese,

de infração penal.

O resultado foi que dos dez condenados, apenas três foram presos

novamente. Desse número algumas conclusões podem ser extraídas.

Em primeiro lugar que, enquanto aqueles que estão presos por tráfico

ilícito de entorpecentes, cinqüenta e um por cento já estiveram presos

anteriormente(gráfico 13), dos processados-condenados pelo mesmo delito que

tiveram sua pena privativa de liberdade substituída por pena restritiva de direitos

somente três deles retornaram para o cárcere, ou seja, o equivalente a trinta por

cento.

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Noutros termos, enquanto a prisão flagrantemente não promove a

inserção social, a pena restritiva de direitos frusta em menor proporção esta

finalidade.

Por isso causa estranheza que a lógica referente ao crime de tráfico

ilícito de entorpecentes seja a prisão, adotando-se um modelo repressor,

absorvendo-se goela abaixo o modelo importado/imposto em convenções

internacionais, que ecoa nas políticas públicas adotadas pelo Poder Executivo e com

o recrudescimento do tratamento pelo Poder Legislativo ao traficante de

entorpecentes.

Por outro lado, se lastima a resistência do Poder Judiciário em aplicar a

pena restritiva de direitos em substituição a pena privativa de liberdade, quando a

rigor, a primeira é mais adequada aos fins declarados da sanção criminal.

Em pesquisa recente realizada pela Associação dos Magistrados

Brasileiros147, dos juízes entrevistados 53,5% responderam que são totalmente

favoráveis ao aumento da pena mínima para o tráfico de drogas, ao passo que

23,3% disseram ser favoráveis a este tipo de medida, o que é lamentável.

Posta a questão, somente se visualiza o apego incessante à pena

privativa de liberdade para os condenados pelo crime de tráfico ilícito de

entorpecentes se efetivamente as razões para adotá-la residirem nas funções

ocultas/latentes do encarceramento.

Só para mostrar aos outros quase pretos (e são quase todos pretos) E aos quase brancos pobres como pretos Como é que pretos, pobres e mulatos E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados148.

147

Mais rigor com a corrupção. O Globo. 16 de novembro de 2006. p. 3. 148

Gil, Gilberto e Veloso, Caetano. Haiti. Letra de Caetano Veloso. Disponível em

www.consciencia.net/2003/09/06/haiti.html. Consulta em 16/11/2006.

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CONCLUSÃO

O tráfico ilícito de entorpecentes ocupa lugar de destaque no cenário

moderno, bastando para tanto ler os jornais ou presenciar a rotina de uma vara

criminal para se perceber esta realidade pulsando. Não se pretende com dita

afirmação fazer apologia a tal crime, muito menos afirmar que o lugar de destaque

advém de práticas saudáveis. Entrementes, não se pode deixar de destacar

algumas conclusões que se cristalizaram com o presente estudo.

1- A prisão muito embora tenha suas funções declaradas de prevenção

geral e especial acaba por atingir funções ocultas, tais como a depurativa, a

redução de impotência, a diversiva, a simbólica e a demonstração da ação.

2- O Poder Executivo quando absorve o modelo imposto pelos Estados

Unidos e pelos pactos internacionais no combate ao tráfico ilícito de entorpecentes

acaba por importar um modelo de controle cuja referência é a guerra.

3- Por sua vez o Poder Legislativo acaba por tratar com extremada

severidade o tráfico ilícito de entorpecentes, como se o direito penal fosse a cura de

todos os males, restringindo direitos dos processados seja porque aumenta penas,

quer porque os restringe no curso do processo de conhecimento e na execução

penal.

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4- A metáfora bélica do Poder Executivo e o enrijecimento do

tratamento dado ao traficante pelo legislador encontra ampla ressonância no Poder

Judiciário, formado na sua maioria por magistrados egressos do topo da pirâmide

social. Este magistrado que enxerga o traficante como o outro, como o inimigo, é

incapaz de interpretar a lei de maneira mais benéfica e humanizada para os sem-

chance. Ao traficante – câncer social - somente resta a pena de prisão, embora o

artigo 44 do Código Penal não vede expressamente a aplicação de pena restritiva de

direitos para este delito(antes da vigência da nova lei 11343/06, que somente veio

para demonstrar escancaradamente o intuito do legislador em dar tratamento duro

ao traficante). Na dúvida, não há razão para não se aplicar a interpretação mais

rígida possível...

5- Se as três funções do Estado (executiva, legislativa e judicante)

entendem que a política bélica e excludente é a melhor solução para o tráfico de

entorpecentes não pode ser outro o retrato da realidade carcerária que não a

exclusão. São os pobres, sem estudo, desempregados ou trabalhadores do mercado

informal mal remunerados e negros que freqüentam o banco dos réus e as prisões,

como demonstra a realidade da cidade de Campos dos Goytacazes e da Casa de

Custódia Dalton Castro.

6- Enquanto a prisão se presta para tentar encobrir a ineficiência do

Estado na adoção de políticas de segurança pública eficazes e inclusivas, visando

demonstrar a sociedade que com a repressão ao tráfico de entorpecentes as

agências oficiais de controle estão funcionando, este mesmo Estado acaba por

adotar o meio menos eficaz de socialização do condenado. Se a pena restritiva de

direitos atinge em maior proporção o objetivo de socialização do processado, uma

vez que quando houve aplicação de pena substitutiva percentual menor de réus

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voltou a ser preso comparando-se com a pena de prisão, não faz sentido que o

Estado adote, em manifesta contradição, a pena de prisão como regra para reprimir

o tráfico ilícito de entorpecentes, ressalvada a hipótese, como se sustenta, de que

neste modelo excludente, a prisão é um fim em si mesmo.

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