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CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA
FACULDADE DE DIREITO DE CURITIBA
LARISSA DUDA HUTNER
A MULHER E O UNIVERSO JURÍDICO EM O MERCADOR DE VENEZA DE SHAKESPEARE
CURITIBA 2019
LARISSA DUDA HUTNER
A MULHER E O UNIVERSO JURÍDICO EM O MERCADOR DE VENEZA DE SHAKESPEARE
CURITIBA 2019
Monografia apresentada como requisito parcial
para obtenção do grau de Bacharel em Direito, do
Centro Universitário Curitiba.
Orientador: Marcelo Bueno Mendes
LARISSA DUDA HUTNER
A MULHER E O UNIVERSO JURÍDICO EM O MERCADOR DE VENEZA DE SHAKESPEARE
Monografia aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito do Centro Universitário Curitiba, pela Banca Examinadora formadas
pelos professores:
Orientador:______________________
________________________
Prof. Membro da Banca
Curitiba, de de 2019
AGRADECIMENTOS
Ao término de um trabalho, uma longa caminhada se fez, muitas pessoas foram contatadas e, neste momento, são lembradas com gratidão.
Marcelo Bueno Mendes, ao aceitar a orientação, tornou-se para mim, não só
Mestre, mas também amigo, com quem pude contar em todos os momentos de dificuldade. E, acima de tudo, me apoiou em escrever sobre Direito e Teatro,
me incentivando a desenvolver este trabalho, que foi realizado com muito entusiasmo.
Aos familiares, amigos, colegas e todos que me incentivaram e me apoiaram
no desenvolvimento deste trabalho.
Aos companheiros de Teatro, artistas, professores, atores e diretores que volta e meia me ajudaram com dicas e opiniões que me permitiram o
aprofundamento de algumas questões envolvidas na presente monografia.
RESUMO
O presente trabalho objetiva demonstrar os principais aspectos jurídicos constantes nas obras de autoria do dramaturgo inglês William Shakespeare, bem como mostrar o que as suas obras nos ensinam a respeito do direito das mulheres. Com isso, será abordado a respeito do feminismo ao longo da história, bem como personagens femininas marcantes na literatura e situações envolvendo institutos jurídicos. Além disso, será apresentada uma breve biografia a respeito de Shakespeare, sua vida, suas principais peças, sua relação com o Teatro e como ele é reconhecido e lembrado até os dias de hoje através de representações e releituras de suas obras de tragédia, comédia e dramas históricos. Por fim, será demonstrado o que a peça O mercador de Veneza nos conta e nos traz como objeto de estudo para o direito, institutos jurídicos como julgamentos, testamento contendo exigências peculiares, cláusula contratual abusiva, dentre outros elementos que nos permitem refletir a respeito do Direito e da figura feminina. Palavras-chave: Aspectos Jurídicos. Direito das Mulheres. Feminismo. William Shakespeare. O Mercador de Veneza. Teatro. Literatura.
ABSTRACT
This monograph has objective to demonstrate the main legal aspects contained in the books of authorship of the English playwright William Shakespeare, as well as show what your writings teach us about women‟s rights. With this, it will be approached about feminism throughout history, as well as prominent female characters in the literature and situations involving legal institutes. In addition, it will be presented a brief biography of Shakespeare, his life, his main plays, his relationship with the Theater and how he is recognized and remembered to this day through representations and re-readings of his works of tragedy, comedy and historical dramas. Finally, it will be demonstrated what the play The Merchant of Venice tells us and brings us as object of study for Law, legal institutes like judgments, testament containing peculiar requirements, abusive contractual clause, among other elements that allow us to reflect on the Law and the female figure. Keywords: Legal aspects. Women‟s rights. Feminism. William Shakespeare. The Merchant of Venice. Theater. Literature.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO..................................................................................................7
2 O DIREITO E A PRESENÇA DA FIGURA FEMININA EM
SHAKESPEARE..................................................................................................9
2.1 O FEMINISMO NAS MAIS DIVERSAS CONCEPÇÕES...............................9
2.2 A LITERATURA, SHAKESPEARE, O FEMININO E O DIREITO................16
3 O DRAMATURGO WILLIAM SHAKESPEARE.............................................27
3.1 A VIDA, OS LAÇOS FAMILIARES E A ÉPOCA DO BARDO INGLÊS
...........................................................................................................................27
3.2 SHAKESPEARE E O TEATRO...................................................................30
3.2.1 As comédias.............................................................................................30
3.2.2 As tragédias..............................................................................................32
3.2.3 Os dramas históricos................................................................................33
3.2.4 O teatro elisabetano.................................................................................35
3.3 AS DARK PLAYS E OS SONETOS............................................................40
3.4 A POSTERIDADE DE WILLIAM SHAKESPEARE......................................46
4 O MERCADOR DE VENEZA – O RACIOCÍNIO JURÍDICO DESENVOLVIDO
POR UMA MULHER.........................................................................................50
4.1 OS PRINCIPAIS ASPECTOS JURÍDICOS PRESENTES NA PEÇA O
MERCADOR DE VENEZA, DE WILLIAM SHAKESPEARE..............................50
4.1.1 O julgamento dos porta-jóias....................................................................51
4.1.2 O julgamento de Antônio..........................................................................53
4.1.3 O julgamento dos anéis............................................................................62
4.2 PÓRCIA COMO REFERÊNCIA PARA O DIREITO....................................63
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................66
REFERÊNCIAS.................................................................................................69
7
1 INTRODUÇÃO
Se pararmos para procurar obras literárias que envolvam o mundo do
Direito, podemos verificar que muitas delas trazem tramas envolvendo um jogo
de argumentação baseado na criatividade do autor. E, sem dúvidas, uma
grande referência literária é o dramaturgo inglês William Shakespeare. Ele
aborda em suas peças não apenas o universo jurídico e seus institutos, tais
como contratos estipulados com cláusulas abusivas e garantias que colocam
em risco a própria vida, ou testamentos absurdos, casamentos arranjados,
entre outros aspectos. Além disso, Shakespeare coloca em questão o
sobrenatural e o psicológico de seus personagens, especialmente em suas
tragédias, como em Hamlet.
Shakespeare foi um escritor, ator e poeta que trouxe diversas obras
envolvendo tramas capazes de fazer o leitor refletir e questionar a respeito dos
acontecimentos abordados, os quais, na maioria de suas obras, causa certo
impacto. O dramaturgo inglês era dotado de tamanha capacidade para reunir
em suas obras diversas situações que exigiam um conhecimento específico,
especialmente nas obras envolvendo os institutos relativos à área jurídica. Isso
mesmo em uma época muito antiga, durante o reinado de Elizabeth I, onde
esse conhecimento não era facilmente adquirido e o acesso à informação era
bastante delimitado.
Além disso, conforme será visto adiante, Shakespeare traz uma
contribuição significativa para o direito das mulheres. Em uma época onde a
sociedade era patriarcal e as mulheres não detinham autonomia, nem voz, e
eram condicionadas a cuidar do lar, não podendo trabalhar e sequer atuar, uma
vez que os papéis femininos no período elisabetano eram interpretados apenas
por homens, Shakespeare inclui mesmo assim uma força interior em suas
personagens femininas, capaz de contrariar todas as regras estipuladas para
restringir a liberdade das mulheres.
Dentre as personagens femininas de Shakespeare, a mais astuta, que
será estudada ao longo desta monografia, é Pórcia em O mercador de Veneza.
A obra, além de trazer uma série de acontecimentos que envolvem o âmbito
8
jurídico, traz a personagem feminina disfarçada de advogado durante o
julgamento de seu amigo, a qual consegue enganar todos os envolvidos, que
pensam se tratar do doutor Baltasar, e salvar o julgado de sofrer as
consequências da penalidade imposta por conta de uma quebra contratual.
Tudo isso ocorre por conta das incríveis habilidades de argumentação trazidas
por Pórcia, que mesmo sendo barrada pela sociedade, comete a ousadia de se
vestir em trajes masculinos e colocar em prática suas incríveis habilidades
presentes em seu interior.
Conforme será visto adiante ao longo dos capítulos, será abordado o
feminismo, seu contexto histórico e as principais obras de Shakespeare que
envolvem os institutos do direito, muitos deles sendo comparados com o Direito
brasileiro, e o direito das mulheres, através da abordagem de suas
personagens femininas que sempre tinham algo a dizer.
Ademais, será estudada a vida do dramaturgo e como se deu sua
relação com o Teatro na época elisabetana, bem como a cronologia de suas
obras e os principais aspectos presentes em suas tragédias, comédias e
dramas históricos. Além disso, quais foram as demais contribuições do
dramaturgo, como os Sonetos, e a posteridade de Shakespeare, que até hoje é
muito citado e estudado, mesmo depois de mais de 400 anos em que sua
figura surgiu.
A finalidade deste trabalho é tratar da obra O mercador de Veneza, a
qual reúne o Direito e sua aplicação, bem como o papel feminino como
fundamental para a resolução do conflito e a capacidade de raciocínio jurídico
de uma mulher em uma época patriarcal. Ademais, por meio dessa análise,
verificar como pode ser utilizada a Arte de modo geral e obras literárias para as
ciências humanas, em especial para o Direito. As principais contribuições que a
Arte pode trazer para um jurista, são o objetivo desta monografia.
9
2 O DIREITO E A PRESENÇA DA FIGURA FEMININA EM SHAKESPEARE
2.1 O FEMINISMO NAS MAIS DIVERSAS CONCEPÇÕES
Antes de mais nada, primeiramente é importante ressaltar que durante
muitos anos até os dias de hoje as mulheres vêm lutando para conquistar sua
autonomia, seu poder de escolha profissional, sexual, política e sua igualdade
salarial, de modo que cada vez mais a mulher conquista seu espaço e não
mais é condicionada e obrigada a seguir normas e padrões anteriormente
definidos e impostos por uma sociedade masculina. Os direitos até então
conquistados pelas mulheres se deram em razão de diversos movimentos
feministas ocorridos ao longo da história, e o feminismo vêm se desenvolvendo
a cada dia. Por conta disso, vale estudar neste capítulo, antes de abordar
aspectos da literatura, o que é o feminismo e quais as suas conquistas e
consequências sociais decorrentes desse movimento.
Um período de razoável importância para o feminismo foi o do
Liberalismo no século XIX, pelo qual as mulheres reivindicaram direitos
baseados nos ideias de liberdade, igualdade e fraternidade, decorrentes das
revoluções burguesas nos Estados Unidos e na França. Durante esse período,
surgiram teorias importantes de filósofos como Locke, Rosseau e Bentham, e
foram conquistados os direitos de igualdade entre os homens perante a lei,
sendo todos portadores dos mesmos direitos. As mulheres então tinham como
principal questão a ser discutida o sufrágio. Além disso, as mulheres também
buscavam desde então discutir questões de direito de propriedade, reforma do
casamento e liberdade sexual. No entanto, as feministas eram incentivadas
pela teoria democrática a conquistar primeiramente o direito ao voto, para
facilitar suas próximas conquistas, de modo mais prático e mais correto.1
1 NYE, Andrea, Teoria feminista e as filosofias do homem, 1995, 1ª edição, Editora Record,
Rosa dos Tempos p. 18-19.
10
Afinal, com a concessão do sufrágio, as mulheres ganhariam
consequentemente aptidão para votar em favor da legislação que corrigiria as
injustiças perante elas presentes na sociedade. Porém haviam muitas
contradições à lógica feminista presentes nas conjecturas de precursores da
teoria democrática. Por se tratar de uma época em que os homens eram
considerados chefes de família, o lugar da mulher era no lar, conforme visão
tradicional. Por conta disso, as mulheres sofriam uma série de restrições,
inclusive em seu comportamento, visto que eram consideradas “recatadas e
castas”, devendo se portar sempre respeitando essas “virtudes femininas”.
Portanto, as mulheres estavam sempre sujeitas a autoridade masculina.2
Ademais, nesse período surgiram duas grandes feministas que refletiram
sobre a revolução, argumentando que se a mesma fosse adequadamente
utilizada, poderia exigir uma mudança radical em relação às atitudes daqueles
homens que não viam nenhuma “utilidade” no êxito feminino. Essas mulheres
foram Mary Wollstonecraft e Harriet Taylor.3
Wollstonecraft argumentava que as mulheres não foram educadas para
votar, tendo em vista que eram comandadas pelos homens e, portanto, não
detinham da racionalidade necessária para tanto, exigida por uma sociedade
democrática. Logo, concluiu que uma vez afastados os pressupostos egoístas
masculinos, não poderia mais ocorrer situações de resistência à inclusão das
mulheres como membros plenamente atuantes da sociedade.4
Harriet Taylor e John Stuart Mill, por sua vez, foram precursores do
feminismo liberal, o qual detinha como principais argumentos que “as mulheres
deveriam ser dotadas de todos os privilégios políticos, inclusive o voto e o
direito de concorrer a cargos públicos.” Além disso, a mulher também poderia
ter o direito de escolha de uma educação necessária para adquirir uma
profissão futuramente ao invés de simplesmente se casar e pertencer ao lar.
Esses argumentos foram construídos com base em alguns princípios
2 Ibdem, p. 19-20.
3 Ibdem, p. 22.
4 Ibdem, p. 26.
11
utilitaristas, como o sufrágio e aumento da produtividade em decorrência da
liberdade de escolha, visando o bem estar de todos.5
A respeito desses princípios utilitaristas e da teoria do feminismo liberal
de Taylor e Mill, Andrea Nye traz a seguinte reflexão:
A Declaração da Independência afirma que “Todos os homens são criados iguais”. Evidentemente, os argumentos de Bentham se aplicam. As mulheres têm interesses, padecem sofrimentos, desfrutam prazer. E em que base não seriam elas o melhor juiz de como esses interesses devam ser atendidos? O único argumento possível contra a inclusão das mulheres é o mais simples: porque não são homens. Todavia, trata-se, argumentava Taylor, de um “subterfúgio desonesto ou ignorante”. Que outras possíveis razões poderiam ser apresentadas para a exclusão das mulheres? Que as mulheres são fisicamente mais fracas?... Mas as instituições modernas não dependem de força física; e certamente não é preciso força para votar. A força do costume? Não é um argumento muito convincente quando tão completas mudanças sociais já ocorreram. (NYE, 1995, P. 30)
Por sua vez, Thomas Wentworth Higginson defendia os direitos das
mulheres, ao mesmo tempo em que defendia a instituição do casamento,
afirmando que o sufrágio não necessariamente implicaria no abandono por
parte das mulheres dos seus papéis de mãe, dona-de-casa e esposa. Para ele,
a maternidade, por exemplo é algo em que a mulher tem essencialmente o
dever em fazer parte. Portanto, por conta dessas diferenças entre homens e
mulheres, é que as mulheres devem votar, segundo Higginson, e que “o
sufrágio não perturbará a estrutura social.”6
Portanto, de acordo com Andrea Nye, “o feminismo liberal exige que
sejam garantidos à mulher os direitos do homem, mas não é necessário propor
um altruísmo ou uma passividade femininos essencialistas para enxergar as
limitações de tal realização.”7
Em meados do século XIX, surgiu também o feminismo influenciado pelo
socialismo, o qual era caracterizado pela mulher trabalhadora. Nesse período
foram surgindo novas oportunidades de trabalho para mulheres, como
secretárias ou datilógrafas. Muitas mulheres também passaram a trabalhar em
indústrias, porém eram submetidas a salários baixos, más condições de
5 Ibdem, p. 27-28.
6 Ibdem, p. 34.
7 Ibdem, p. 42.
12
trabalho e miséria. Não eram, portanto, dotadas das mesmas vantagens das
feministas liberais e buscavam como melhoria da sua situação uma
organização de trabalhadores, através do combate à essência do capitalismo,
que consistia na exploração de uma classe por outra.8
Ademais, havia uma questão discutida pelo feminismo socialista que era
do tratamento da burguesia para com a mulher como posse e objeto ou ainda
“instrumento de produção.” Portanto, para os socialistas não bastava apenas a
reforma legal e a igualdade discutida pelo feminismo liberal para combater esse
tratamento, mas também uma revolução socialista e a consequente eliminação
do capitalismo e da exploração da classe trabalhadora, de modo que as
mulheres não precisassem recorrer ao casamento como meio de subsistência,
tendo em vista que o seu trabalho não era valorizado e não eram dotadas do
direito de propriedade, sendo este algo exclusivo dos homens.9
Outro ponto em relação as mulheres na concepção do socialismo é a
respeito da sua liberdade de escolha sexual, de modo que “finalmente, com o
socialismo, será possível a união romântica por amor.” Logo, a mulher passa a
se tornar alguém independente, auto-confiante e livre. E essa liberdade, de
acordo com o feminismo socialista, deve significar uma liberdade para amar, e
não somente para escolher através do voto. “O direito ao amor é mais vital para
a sua emancipação do que o direito ao voto.”10
Nesse sentido, a anarquista norte-americana Goldman defendia que o
amor deve ser completamente livre, sem restrições, limitações. O amor,
segundo ela, não deve ser sacrificado a qualquer autoridade.11
Posteriormente, após as terríveis atrocidades ocorridas em decorrência
da Segunda Guerra Mundial, como o nazismo, por volta do século XX Simone
de Beauvoir refletiu sobre as condições da existência feminina. Em sua obra O
8 Ibdem, p. 53-54.
9 Ibdem, p. 57-58.
10 Ibdem, p. 64, 68 e 69.
11 Ibdem, p. 69.
13
segundo sexo, ela começou a trabalhar em uma análise sobre a situação das
mulheres, trazendo portanto o feminismo existencialista.12
Após a guerra, as mulheres adquiriram mais força em seu
posicionamento, uma vez que a igualdade jurídica finalmente foi amplamente
conquistada, de modo que as mulheres já votavam, podiam ter propriedade,
adquiriram igualdade jurídica também no casamento e já poderiam ser
consideradas como membros atuantes na sociedade civil. Além disso, muitas
mulheres foram recrutadas para o esforço físico exigido pela guerra, tendo
enfrentado trabalhos forçados e serviços que até então eram executados
apenas pelos homens. Os laços afetivos e econômicos das famílias acabaram
sendo prejudicados pela guerra, uma vez que a mulher não era mais vista
daquela forma tradicional anteriormente estipulada, como esposa, mãe e dona-
de-casa.13
Segundo Andrea Nye, o existencialismo de Beauvoir era uma “tentativa
de situar a dinâmica de uma opressão que não era específica do socialismo
nem do capitalismo.” Iniciou-se com a indagação de que os verdadeiros
inimigos das feministas encontravam-se dentro de suas próprias mentes, como
os bloqueios preconceituosos, e temores como impedimentos de se viver uma
vida plena.14 A respeito das teorias de Beauvoir, Nye traz a seguinte
abordagem:
Primeiramente, Beauvoir expôs as ilusões nas quais o marxismo se baseava. Não há absolutos: não há uma sociedade sem classes última que terminará com os conflitos humanos e não há uma classe universal absolutamente infalível. Tais absolutos só podem levar à ditadura e ao totalitarismo. Os exemplos vêm prontamente de Beauvoir: os judeus sacrificados à raça pura ariana absoluta; os camponeses siberianos esmagados pela sobrevivência do comunismo; crianças japonesas sacrificadas em favor de um apoteótico fim de guerra. A cada vez, a absoluta justiça de uma meta justificou uma ação que, na melhor das hipóteses, era moralmente ambígua, e na pior, um mal horripilante. (NYE, 1995, p. 98)
Logo, Beauvoir traz uma crítica ao marxismo, com relação a sua falta de
subjetividade. Para ela, as pessoas não podem ser tratadas como objetos, uma
vez que precisam ser compreendidas. E a subjetividade comporta a condição
12
Ibdem, p. 96. 13
Ibdem, p. 97. 14
Ibdem, p. 97-98.
14
de ser humano. Portanto, um Estado comunista desumanizado pode abrir
margem para o totalitarismo, e o ser humano não pode ser completamente
suprimido, visto que por trás pode sempre haver a possibilidade de revolta e
reação violenta e repressiva por parte do Estado. Logo, as palavras
“emancipação” e “libertação” só poderiam ter algum significado a partir do
momento em que a subjetividade fosse levada em consideração.15
Partindo desse pressuposto, Beauvoir afirma que a base ideológica para
uma renovada luta da mulher não se encontrava na economia, nem na política
mas sim na filosofia. Portanto, o existencialismo, na concepção de Simone de
Beauvoir preencheria as lacunas da teoria socialista, de modo que trataria de
indivíduos humanos, tratando deles como subjetivos, ao contrário do socialismo
que anteriormente tratava de “coletividades mudas”. De acordo com o
feminismo existencialista, a opressão das mulheres poderia ser estudada, bem
como a sua emancipação.16
O antídoto é óbvio. A mulher deve rebelar-se, deve inverter os papéis, deve afirmar-se contra o opressor. Quando ela faz isso, o opressor torna-se a “coisa” que bloqueia a liberdade, e ela o sujeito, recusando os limites impostos pelo homem, aventurando-se ao céu que já não é a sede das idéias transcedentais, masculinas e femininas. A mulher liberada funde-se na luz da transcendência, aprende a ser “l‟Homme”. Além do mais, só ela pode dar esse passo no sentido da libertação. Com essa linguagem inspiradora, Beauvoir conclamava as mulheres a tomar as iniciativas anteriormente reservadas aos homens. (NYE, 1995, P. 109)
Nesse sentido, o feminismo de Beauvoir consiste basicamente na noção
de igualdade e semelhança entre todos os seres humanos, sendo homens ou
mulheres. E a mulher pode adquirir uma reciprocidade com base em seu status
humano, e não ser apenas considerada como um objeto ou alguém sem
autonomia para tomar suas próprias decisões. O que separa, portanto,
Beauvoir tanto do conservadorismo e proteção do papel das mulheres, quanto
das feministas radicais que defendem o separatismo, são duas questões: para
ela não há especificidade feminina; e os modelos masculinos não devem ser
rejeitados.17
15
Ibdem, p. 100-101. 16
Ibdem, p. 101-102. 17
Ibdem, p. 114.
15
Entretanto, Beauvoir é criticada por Elisabeth Huguenin em A mulher em
busca de sua alma, no sentido da igualdade entre masculino e feminino.
Segundo Huguenin, ao igualar-se ao homem, a mulher se torna masculinizada,
e isso implica na perda de sua feminilidade, tornando-se uma mulher mais fria
e competitiva e reduzindo o amor e o sexo a uma devassidão. De acordo com
essas “falhas femininas” descritas por Huguenin, as mesmas implicam na crise
moderna, e por conta disso casamentos são desfeitos, há uma ruptura dos
valores espirituais e morais e crianças são descuidadas.18
Por outro lado, o feminismo radical preza pelo separatismo. As
feministas radicais em sua teoria afirmam que o homem é considerado um
opressor e até mesmo um agressor que busca obter vantagem da fragilidade
das mulheres, e por isso muitas mulheres são estupradas e até mesmo
submetidas a diversas formas de tortura pelos homens. Portanto, as feministas
radicais defendiam uma separação total entre homens e mulheres.19
Freud, por outro lado, argumenta que a família, embora assumindo
diversas formas, é sempre patriarcal, de modo que baseada na norma da figura
do pai. Com relação às mulheres, Freud as traz como essenciais e que
possuem um valor, de modo que, por intermédio delas, é que são construídas
as relações sociais e alianças entre os homens. Caso contrário, poderia ser
instaurada uma anarquia entre os homens.20
Todas as teorias acima mencionadas, trazem algo significativo e
relevante para o direito das mulheres, embora muitas sejam divergentes. A
respeito disso, Andrea Nye afirma, refletindo sobre cada forma de feminismo
acima tratada, como compreender cada vez mais esse movimento e colocá-lo
em prática:
Se o patriarcado teve um começo histórico, pode também ter um fim histórico. Isso não quer dizer que a ação feminista baseada nas filosofias do liberalismo, marxismo, existencialismo, psicanálise e teoria linguística foi ou é inútil: não se pode facilmente vagar sem sofrimento e sem esforço fora da teia do nosso mundo e começar a tecer um novo; essa fuga só pode ser fracasso. Em cada época, o centro, o nervo do poder só é obtido por uma meticulosa separação de peça por peça até que o mecanismo da opressão seja finalmente
18
Ibdem, p. 116. 19
Ibdem, p. 126-127. 20
Ibdem, p. 164.
16
entendido. Não há outro meio de obter essa compreensão, a não ser experimentando a teoria e as ações dos homens e depois julgando os resultados feministas. Não só a história do feminismo ilustra esse processo, mas cada um de nós também – mulheres e homens – à medida que remexemos as camadas do entendimento, destacando os fios que constituem a identidade num mundo masculino. (NYE, 1995, P. 271)
Por outro lado, Cristina Nehring, embora afirme em sua obra Em defesa
do amor – Resgatando o romance no século XXI, que o feminismo tenha
trazido muitas coisas boas para a humanidade, como o direito de ser
ambiciosa, política e “sexualmente brincalhona”, ela também traz uma crítica,
no sentido de que, além do feminismo não ter trazido para a humanidade,
inclusive contribuiu para destruir o direito da mulher de ser romântica.21
Todas as outras portas permanecem abertas. Podemos concorrer para a presidência ou ficar no berçário; caçar companheiros sexuais ou planejar uma família. A única coisa que não podemos fazer é amar. E, no entanto, isso é o que dá vitalidade e sentido às outras empreitadas. O amor é a música que faz os outros passos que damos na vida fluírem; é a música que permite aos nossos movimentos normalmente experimentais ganharem coerência. Ele é a ponte entre o sexo e a maternidade – mas, mais importante, é o céu sobre essas atividades. Ele é, ao mesmo tempo, a cola e o deus. (NEHRING, 2012, P. 261)
Logo, através do feminismo é possível verificar um posicionamento das
mulheres ao longo da história em busca da ruptura de um papel pré-definido
pela sociedade. Tais movimentos contribuíram para uma reflexão a respeito da
autonomia de vontade das mulheres e suas principais conquistas, como por
exemplo o direito de votar e sua liberdade de escolha em outras esferas.
2.2 A LITERATURA, SHAKESPEARE, O FEMININO E O DIREITO
Existem diversas obras da literatura que de alguma forma colocam a
sociedade a discutir a respeito do direito das mulheres (o direito ao voto, o
direito de se casarem com quem escolhessem, o direito a uma profissão, entre
outros) e tratam a respeito da autonomia e voz ativa das mulheres em uma
21
NEHRING, Cristina, 2012, Em defesa do amor – Resgatando o romance no século XXI, 1ª edição, Best Seller, tradução de Fátima Santos, p. 261.
17
época onde o mundo era dominado pelos homens. Nora Helmer22 e a escolha
de deixar o lar, o marido e os filhos fazendo parte de uma família
extremamente patriarcal; a Noiva23 que decidiu abandonar o noivo no dia de
seu casamento para fugir com Leonardo, o homem que amava; Julieta
Capuleto24, que contraria a vontade do pai e decide se casar secretamente com
Romeu Montecchio, sendo este sobrenome odiado por sua família.
José Roberto de Castro Neves menciona em sua obra Medida por
medida – O Direito em Shakespeare que “dos 1.277 personagens com fala de
Shakespeare, apenas 157 deles eram mulheres. Essas personagens femininas
tinham algo a dizer.”25 E realmente tinham, pois dramaturgo inglês William
Shakespeare foi um escritor que trouxe várias abordagens interessantes sobre
as mulheres em suas obras. Os traços feministas e a personalidade forte de
Catarina (A megera domada), a determinação de contrariar a vontade do
próprio pai na escolha dos maridos e a ousadia de fugir, presentes em Hérmia
(Sonho de uma noite de verão) e Julieta (Romeu e Julieta), o disfarce na figura
masculina para conquistar seus objetivos, como fez Rosalinda (Como gostais?)
e Pórcia mancomunada com Nerissa (O mercador de Veneza).
Mas e o que tratam as peças de Shakespeare a respeito do Direito em
si?
Segundo Kenji Yoshino, quando analisa a peça Otelo, as peças de
Shakespeare compreendem tanto descobertas sobrenaturais de fatos quanto
descobertas humanas.26 Em Otelo, a peça aproxima duas formas de
descoberta humana dos fatos, sendo uma delas representada pelos nobres
venezianos, de maneira coletiva e racional, conduzindo a um veredictum, isto é
uma declaração verdadeira, e outra representada pelo próprio Otelo
22
IBSEN, Henrik, Uma casa de bonecas, 1879. 23
LORCA, Federico García, Bodas de sangue, 1932. 24
SHAKESPEARE, William, Romeu e Julieta, 1591-1595. 25
NEVES, José Roberto de Castro, 2016, Medida por medida – O Direito em Shakespeare, 5ª edição revista e ampliada, Edições de Janeiro, p. 60. 26
YOSHINO, Kenji, 2014, Mil vezes mais justo – O que as peças de Shakespeare nos ensinam sobre a justiça, 1ª edição, WMF Martins Fontes, p.98.
18
(personagem principal), de maneira isolada e apaixonada, conduzindo a um
erro trágico.27
Por outro lado, José Roberto de Castro Neves parte da análise de que a
questão principal presente na peça Otelo gira em torno da prova, do julgamento
sem maiores investigações e da apreciação dos fatos pelas aparências.28
Desdêmona, a mulher de Otelo, foi acusada injustamente de cometer adultério
e o mouro, apenas com uma prova (o lenço fornecido por Iago), conclui pela
deslealdade de sua esposa sem dar a ela a oportunidade de se defender e
consequentemente opta por matá-la. Logo, o autor conclui que sem
“contraditório, tudo é possível”, motivo pelo qual é fundamental fornecer a
oportunidade de defesa ao acusado.29
Em Hamlet, outra peça trágica escrita por William Shakespeare, o
príncipe da Dinamarca, cujo nome compõe o título da peça, vê o fantasma de
seu pai, o qual lhe informa que foi morto pelo seu próprio tio Cláudio quando
descansava em seu jardim. Cláudio usurpou o trono do irmão e ainda se casou
com a rainha Gertrudes. Porém Hamlet decide esperar o momento certo para
vingar a morte do pai e fazer justiça, só que ele demora muito tempo para fazer
cumprir a vontade do fantasma. Por quê isso?
De acordo com Kenji Yoshino, essa protelação de Hamlet para matar
Cláudio decorre de “um compromisso intelectual com a justiça perfeita.”30
Ainda, Yoshino afirma que no decorrer da trama, são dois os momentos em
que Hamlet vem a postergar sua vingança: primeiramente quando providencia
a encenação da peça-dentro-da-peça intitulada A ratoeira, com o objetivo de
convencer a si mesmo se Cláudio é realmente o culpado pela morte de seu pai,
partindo da análise das reações do novo rei ao assistir a peça, cujo enredo
trata do assassinato do antigo rei; posteriormente, a segunda protelação diz
respeito à desistência de Hamlet em matar seu tio Cláudio, quando este
27
Ibdem, p. 107. 28
NEVES, José Roberto de Castro, 2016, Medida por medida – O Direito em Shakespeare, 5ª edição revista e ampliada, Edições de Janeiro, p. 303. 29
Ibdem, p. 311-312. 30
YOSHINO, Kenji, 2014, Mil vezes mais justo – O que as peças de Shakespeare nos ensinam sobre a justiça, 1ª edição, WMF Martins Fontes, p.201.
19
encontra-se rezando na capela. Esta última protelação, segundo Yoshino, é a
mais curta e significativa.31
No que tange ao adiamento da execução planejada por Hamlet num
segundo momento, a justificativa de Hamlet é que se alguém é morto enquanto
está pedindo o perdão divino, essa pessoa vai diretamente para o céu, após
sua morte. Logo, Hamlet não deseja apenas a morte do assassino de seu pai,
mas sim que a alma dele seja remetida ao inferno. Diante disso, Kenji Yoshino
faz um comparativo de Hamlet com Otelo, afirmando que os personagens
principais das duas tragédias são opostos, visto que Otelo incentiva
Desdêmona a recorrer a uma oração antes de morrer, demonstrando que não
deseja “lhe matar a alma.”32
As consequências dessa procrastinação de Hamlet são absolutamente
trágicas, visto que o resultado é a morte de oito pessoas, incluindo a do próprio
príncipe. Nesse sentido, Yoshino novamente traz um comparativo entre Hamlet
e Otelo:
Existe uma máxima entre a crítica shakesperiana que diz que, se Otelo e Hamlet tivessem trocado de peça, nenhuma teria sido uma tragédia. Hamlet, o homem da reflexão, teria percebido as intenções de Iago. Otelo, o homem da ação, teria matado Cláudio no primeiro ato. (YOSHINO, 2014, p. 213)
Ainda no que tange ao conceito de justiça em Hamlet, verifica-se que o
príncipe da Dinamarca transcende os modelos de justiça de Aristóteles e
Ulpiano, sendo “o tratamento de cada um na medida de suas desigualdades” e
“dar a cada um aquilo que é seu”, respectivamente, visando atingir um conceito
“mais altruísta”, de acordo com José Roberto de Castro Neves, sendo este: “a
bondade é a medida da justiça, seguindo um modelo cristão”.33
Outra peça de Shakespeare que podemos fazer um comparativo com o
Direito brasileiro é Rei Lear. Nesta, Lear decide deixar todos os seus bens para
suas três filhas: Goneril, Regane e Cordélia. Isto mediante uma prova de amor
31
Ibdem, p. 205. 32
Ibdem, p. 217. 33
NEVES, José Roberto de Castro, 2016, Medida por medida – O Direito em Shakespeare, 5ª edição revista e ampliada, Edições de Janeiro, p. 253.
20
de cada uma. Goneril, a mais velha, e Regane fazem o uso de palavras de
bajulação, pouco convincentes, visando primordialmente em seu interior
receber a parte que cabe a cada uma por direito. Cordélia, a mais nova, decide
não fazer parte do jogo das irmãs e diz simplesmente “nada tenho a dizer”,
ferindo o ego de Lear, que não enxerga a verdadeira intenção da filha. Embora
a postura de Cordélia tenha sido afrontosa perante Lear, esta foi a filha que lhe
demonstrou mais amor e afeto, pouco se importando com a sua parte da
herança.
No entanto, tomado pela vaidade e mau julgamento, Lear decide
deserdar Cordélia, deixando seus bens para as outras duas filhas somente.
Essa postura do monarca resulta em consequências trágicas. Nesse sentido, o
art. 548 do Código Civil Brasileiro determina que é nula a doação na qual o
doador transfere todos os seus bens, ficando sem meios de subsistência.34
Ademais, no Direito brasileiro contemporâneo, os pais possuem a obrigação de
deixar uma parte de seu patrimônio para os herdeiros considerados como
necessários, sendo estes cônjuge, pais e filhos. Ou seja, há uma proibição de
deserdação dos filhos pela nossa legislação, salvo casos extremos. Verifica-se
portanto, que isso não ocorre em Rei Lear.35
Nota-se ainda que Shakespeare mais uma vez trata de uma
personagem feminina com firmeza e sagacidade. Cordélia percebeu as
artimanhas de suas irmãs e não quis entrar no jogo delas. E para tanto, estava
disposta a contrariar o desejo do pai para expressar sua sinceridade da forma
que julgou ser mais conveniente e assim o fez.
Partimos para uma breve análise de outra peça: A megera domada.
José Roberto de Castro Neves ressalta a recusa expressa de Catarina de se
casar com o brutamonte Petruchio, ignorada por seu pai Baptista, que assente
em entregar a mão de sua filha ao pretendente. Segundo Castro Neves,
atualmente não se cogita mais a possibilidade de um casamento ser celebrado
sem a manifestação livre de vontade dos nubentes. Logo, os pais não podem
34
Ibdem, p. 343. 35
Ibdem, p. 350-351.
21
mais interferir na escolha dos maridos para suas filhas, inclusive não podem
decidir pelas filhas se estas devem ou não se casar.36
Catarina é uma das personagens femininas mais marcantes de
Shakespeare, por conta de sua personalidade forte, indelicadeza e seus traços
feministas em uma época em que a sociedade era extremamente machista.
Catarina não queria ser submissa. No entanto, após o casamento com
Petruchio, ela profere o seguinte discurso perante seus familiares,
surpreendendo a todos:
Teu marido é teu senhor, tua vida, teu guardião, tua cabeça, teu soberano; é quem cuida de ti, quem se ocupa de teu bem-estar. É ele quem submete seu corpo aos trabalhos rudes, tanto na terra como no mar. De noite, vela no meio da tempestade; de dia, no meio do frio, enquanto tu dormes calidamente em casa, segura e salva. Só implora de ti o tributo do amor, da doce e fiel obediência: paga bem pequena para tão grande dívida. A mulher tem as mesmas obrigações em relação ao marido que um súdito em relação ao príncipe. E mostrando-se indomável, mal-humorada, intratável, desaforada e desobediente às suas legítimas ordens, não passa de uma rebelde, uma vil litigante, culpada do delito de traição para com seu senhor bem-amado. Causa-me vergonha ver as mulheres declararem, ingênuas, a guerra, quando deveriam implorar a paz; pretenderem o mando, a supremacia e o domínio, estando destinadas a servir, amar e obedecer.
37 (SHAKESPEARE, Ato V, Cena II)
Diante do discurso de Catarina, José Roberto de Castro Neves faz a
seguinte indagação: “teria Petruchio definitivamente „domado a megera‟ ou
apenas Catarina, inteligente e habilidosa, teria domado seu marido, com essas
palavras de submissão (mas carregadas de ironia e sarcasmo?)”38. Isso nos
leva a refletir se de fato Catarina tornou-se submissa ou manteve interiormente
sua personalidade rebelde.
Ainda a respeito dessa terrível prática do casamento arranjado, sem a
livre manifestação de vontade dos noivos, em Romeu e Julieta Shakespeare 36
Ibdem, p. 61-62. 37
“Thy husband is thy lord thy life, thy keeper, / Thy head, thy sovereign; one that cares for thee, / And for thy maintenance commits his body / To painful labour both by sea and land, / To watch the night in storms, the day in cold, / Whilst thou liest warm at home, secure and safe; / And craves no other tribute at thy hands But love, fair looks and true obedience; / Too little payment for so great a debt. / Such duty as the subject owes the prince / Even such a woman oweth to her husband; / And when she is froward, peevish, sullen, sour, / And not obedient to his honest will, / What is she but a foul contending rebel / And graceless traitor to her loving lord? / I am ashamed that women are so simple / To offer war where they should kneel for peace; / Or seek for rule, supremacy and sway, / When they are bound to serve, love and obey.” (Ato V, Cena 2) 38
NEVES, José Roberto de Castro, 2016, Medida por medida – O Direito em Shakespeare, 5ª edição revista e ampliada, Edições de Janeiro, p. 62-63.
22
retrata um amor proibido nascido em meio a duas famílias completamente
rivais. Romeu – um Montecchio – e Julieta – uma Capuleto – são dois jovens
(de aproximadamente 14 anos de idade) e se apaixonam perdidamente um
pelo outro, mas são impedidos de ficar juntos. O pai de Julieta promete a filha
em casamento a Páris, um jovem nobre e parente do príncipe. Este casamento
é visto pela mãe de Julieta como um negócio, e essa forma de reconhecer um
casamento era bastante aceitável na época de Shakespeare.39
No entanto, mesmo prometida a outro homem, Julieta decide lutar pelo
seu amor. Ela e Romeu decidem se unir em matrimônio às escondidas e quem
celebra essa união é Frei Lourenço, o qual posteriormente ajuda Julieta com
uma poção poderosa para levá-la a um sono profundo e capaz de modificar
sua própria aparência. Julieta bebe a poção e leva sua família a pensar que
está morta, mas isso tudo não passou de um plano para livrar-se do casamento
arranjado com Páris e ganhar tempo até que pudesse se reencontrar com seu
amado Romeu. Este último foi banido de Verona por resultar na morte de
Teobaldo, um Capuleto.
Contudo, o plano além de falhar, acaba em uma grande catástrofe.
Romeu não toma conhecimento da carta que lhe foi enviada explicando o plano
de sua amada antes de receber a notícia de que ela, Julieta, estava morta. O
jovem se desespera e decide adquirir um veneno mortal recorrendo a um
Boticário. Quando encontra Julieta, Romeu bebe do veneno que o leva a morte
em questão de segundos, pouco antes de sua amada despertar. Tomada pela
dor de perder Romeu, Julieta crava o punhal deste em seu próprio peito.
A morte de Romeu e Julieta promove tardiamente um acordo de paz
celebrado entre os Montecchio e os Capuleto. Shakespeare coloca uma grande
rivalidade em apenas dois nomes. Quando Julieta indaga “o que há em um
nome?”40 ela demonstra não se importar com o fato de Romeu ser um
Montecchio. Essa indagação de Julieta, muitas vezes, tem uma grande
39
Ibdem, p. 123. 40
“What‟s in a name?” (Ato II, Cena 2)
23
repercussão jurídica, visto que pode ser “irrelevante e ter a mais contundente
importância ao mesmo tempo”.41
Ademais, na peça o príncipe como representante do Estado, diz que a
consequência é a morte para aqueles que se envolverem em uma terrível
briga, dizendo portanto qual é a lei. Da mesma forma, aplica a lei determinando
que Romeu deve morrer por ter provocado a morte de Teobaldo. E por fim
reconhece as consequências adversas do litígio.42 Desempenha, portanto
funções relativas a defesa da ordem, funções de poder sobre Verona, funções
que remetem a um Estado de Direito.
Ainda, Shakespeare trata da questão contratual em duas peças: O
mercador de Veneza e Tudo está bem quando acaba bem. Em ambas, há a
presença forte de duas personagens femininas, Pórcia e Helena,
respectivamente. Todavia, quem é a responsável por celebrar diversos
contratos é Helena, na peça Tudo está bem quando acaba bem, considerada
uma plebeia. Primeiramente, Helena oferece ao rei sua própria vida em
garantia, caso o remédio que deu a este último não funcione para curar sua
enfermidade. Esse primeiro pacto com o rei é semelhante ao contrato pactuado
entre Antônio e Shylock, em O mercador de Veneza.43
No entanto, além dessa garantia estipulada por Helena, a mesma impõe
uma contraprestação, caso o remédio oferecido ao rei seja eficaz. Tal
contraprestação diz respeito ao seu interesse próprio de escolher o conde
Bertrand como seu marido. O rei aceita a condição imposta e
consequentemente, é curado. Visando cumprir o contratado e retribuir Helena,
o rei determina que seja feita a escolha, a qual foi a contragosto de Bertrand.
Essa atitude de Helena demonstra uma intenção de estabelecer uma relação
sinalagmática.44
Posteriormente, insatisfeito a ser forçado a se casar com Helena,
Bertrand não consuma o casamento e vai para a guerra na Itália, logo após a
41
NEVES, José Roberto de Castro, 2016, Medida por medida – O Direito em Shakespeare, 5ª edição revista e ampliada, Edições de Janeiro, p. 118. 42
Ibdem, p. 127. 43
Ibdem, p. 315. 44
Ibdem, p.315.
24
cerimônia. Em virtude de sua fuga, Bertrand estabelece a sua condição
contratual, estipulando através de uma carta que só será definitivamente
marido de Helena se esta lhe retirar o anel que sempre utiliza em seu dedo e
quando ela tiver um filho dele. Ambas as condições estipuladas por Bertrand
seriam consideradas nulas, do ponto de vista jurídico. Isso porquê verificam-se
como condições puramente potestativas, ao passo em que dependem
unicamente de uma das partes para serem concretizadas. “A eficácia do
negócio jurídico fica subordinada ao arbítrio de uma das partes”, no caso
Bertrand, que facilmente poderia impedir a realização do contrato.45
Entretanto, Helena indignada com as condições imputadas por seu
marido Bertrand, resolve ir atrás dele na Itália, deixando para trás a falsa
informação de que havia morrido. Ao chegar em seu destino, Helena descobre
que Bertrand estava tentando seduzir Diana, filha de uma viúva. Helena então
decide fazer outro pacto com Diana, a fim de adquirir o anel de Bertrand e
consumar seu casamento com o conde, trocando de lugar com ela no momento
oportuno. Diana aceita o acordo, desde que seja este financeiro, ou seja, Diana
também exige uma contraprestação. As duas condições suspensivas de
eficácia do contrato de casamento são, portanto, cumpridas.46
Há ainda uma quarta relação contratual ao final da peça. Ao retornar da
Itália após a guerra, Bertrand toma conhecimento da falsa notícia de que
Helena está morta e lamenta o ocorrido, repensando sua atitude em ter fugido
do casamento. Consequentemente, Diana exige se casar com Bertrand,
informando através de uma carta que o conde a seduziu e prometeu
casamento assim que ficasse viúvo. Em meio a toda essa confusão instaurada,
Helena ressurge e Bertrand se arrepende, jurando amor eterno à sua esposa.
Em meio a todas as relações contratuais, o único inadimplente é
Bertrand, visto que não cumpre suas obrigações com Helena, após o
casamento e se recusa a casar com Diana, desqualificando a credora e
45
Ibdem, p. 318. 46
Ibdem, p. 318-320.
25
negando a promessa. Bertrand é considerado, portanto, irresponsável por seu
comportamento reincidente, no descumprimento de duas obrigações.47
De acordo com o advogado José Roberto de Castro Neves, “em
Shakespeare e na vida, o cordeiro e o lobo sentam-se à mesma mesa. O lobo
se veste de cordeiro e o cordeiro tem os mesmos propósitos do lobo.” A
personagem que reflete essa mistura entre lobo e cordeiro é Helena, onde o
autor coloca perante ela o seguinte questionamento: “Seria ela um ser humano
bom e generoso, como tudo o que ela própria diz, ou uma pessoa
maquiavélica, alpinista social, uma enxadrista que se move sempre visando a
atingir seus objetivos?” Ainda, respondendo a esse próprio questionamento,
Castro Neves afirma que “seguramente, Helena tem um pouco dos dois.”48
Já O mercador de Veneza, além de trazer uma série de questões
relevantes ao universo jurídico, curiosamente possui a presença de uma
figura feminina no exercício da advocacia. Dentre vários fatos que ocorrem
durante a peça, os mais interessantes são a cláusula contratual de Shylock
estipulando como garantia uma libra da carne do fiador Antônio (semelhante
ao que fez Helena oferecendo sua própria vida em garantia em Tudo está
bem quando acaba bem), sendo considerada abusiva49; o disfarce de Pórcia
em um homem “doutor de direito” para fazer parte do julgamento de Antônio,
no qual ela desenvolve um raciocínio jurídico capaz de reverter a situação e
beneficiar o julgado. Ainda, as mulheres da peça demonstram autonomia
para contrariar a vontade de seus pais e escolherem os maridos de seu gosto
para se casar, como Jessica, filha do judeu Shylock, que fugiu com o cristão
Lorenzo contra a vontade de seu pai.
Pórcia, assim como Helena, utilizou diversas artimanhas para defender
seus interesses e se tornar esposa de Bassânio. Porém, diferentemente de
Bertrand, Bassânio corresponde ao amor de Pórcia. Esta última, através de
uma música, consegue direcionar Bassânio a fazer a escolha certa do baú de
chumbo, o qual continha seu retrato, sendo a regra deixada no testamento de
seu pai para o casamento da filha. Ademais, Pórcia se disfarça de um jurista e
47
Ibdem, p. 324. 48
Ibdem, p. 322-323. 49
Ibdem, p. 315.
26
sua comparsa Nerissa de escrivã, e juntas conseguem impedir que o judeu
Shylock execute a garantia do contrato e retire uma libra da carne de Antônio.
Como se não bastasse burlar a regra do testamento de seu pai e vestir-se em
trajes masculinos, Pórcia disfarçada ainda manipula Bassânio, fazendo-o retirar
o anel e descumprir a promessa que havia feito a ela antes do julgamento de
Antônio, de jamais se abster do objeto, o qual segundo Pórcia, era a prova do
amor dos dois.
Conforme visto brevemente sobre grandes personagens femininas, a
maioria das mulheres nas obras de Shakespeare são mulheres determinadas e
românticas. Nesse sentido, possuem o desejo de se envolver cada vez mais
com seus amados em uma paixão avassaladora. No entanto, apesar das peças
de Shakespeare tratarem a respeito do amor de diversas formas, quase todas
são consideradas frívolas, motivo pelo qual, segundo Cristina Nehring,
Shakespeare não foi um especialista em peças sobre o amor.50
Contudo, apesar disso, Shakespeare inspira Nehring quando esta trata a
respeito do amor como transgressão, em sua obra Em defesa do amor51:
É essa disposição, essa coragem para renunciar não só às regras inconvenientes, mas às convenientes também, que precisa ser redescoberta em nossos dias. Devemos transgredir nossos próprios medos – a estreiteza de nossas perspectivas, a modéstia de nossos desejos, a pequenez de nosso altruísmo. Porque, ao fim das contas, a transgressão – para Tristão e Isolda, para Romeu e Julieta e até mesmo para o Casanova local na esquina de nossa rua – é sempre uma oração pela transcendência. (NEHRING, 2012, p.107)
50
NEHRING, Cristina, 2012, Em defesa do amor – Resgatando o romance no século XXI, 1ª edição, Best Seller, tradução de Fátima Santos, p. 156-157. 51
NEHRING, Cristina, 2012, Em defesa do amor – Resgatando o romance no século XXI, 1ª edição, Best Seller, tradução de Fátima Santos, cap. Três, p. 107.
27
3 O DRAMATURGO WILLIAM SHAKESPEARE 3.1 A VIDA, OS LAÇOS FAMILIARES E A ÉPOCA DO BARDO INGLÊS
Antes de falar a respeito de Shakespeare, é interessante situar que a
obra de autoria do maior escritor de língua inglesa de todos os tempos surgiu
sob o reinado de Elizabeth I, a qual assumiu o trono no ano de 1558, aos 25
anos de idade. A rainha Elizabeth I regulamentou a profissão de ator e foi
também responsável pelo incentivo a criação de grupos teatrais utilizando,
inclusive, a encenação como arma política. Além disso, conforme será visto
adiante, Shakespeare representa em suas peças a Inglaterra do período
elisabetano, retratando aspectos como o crescimento econômico, expansão
territorial, florescimento de festas populares e intensa troca cultural entre a
corte, a classe média e a sociedade rural. Essa troca cultural encontra-se
presente inclusive na peça As alegres comadres de Windsor, escrita por
Shakespeare, na qual ocorre uma mistura de diferentes classes sociais.52
Insta salientar que Elizabeth, ao assumir o trono, assumia também “o
enorme peso de ser uma soberana jovem” em uma época considerada
machista e de um país com grandes débitos e problemas internos e externos.
52
RESENDE, Aimara da Cunha, 2006, Shakespeare e seu tempo: Entre Nobres e Aldeões, Revista Entre Livros, São Paulo, v. 2, p. 6-13, Duetto.
28
Além disso, Elizabeth I também escrevia poemas, era capacitada para ler e
escrever em seis idiomas fluentemente, e adorava dançar.53
Mas, quem foi William Shakespeare?
William Shakespeare nasceu em Stratford, na Inglaterra, e foi
“essencialmente um autor popular sem nunca deixar de ser um homem de seu
tempo”, segundo Bárbara Heliodora, sendo um precursor do teatro elisabetano
no período renascentista. Existe uma suposição de que sua data de
nascimento é 23 de abril de 1564, visto que o registro paroquial demonstra que
o dramaturgo foi batizado no dia 26 de abril do mesmo ano. Filho de John
Shakespeare e Mary Arden, os quais se casaram em 1557. Seu pai, John
Shakespeare, foi comerciante e artesão ao mesmo tempo e era católico.54
Na época do dramaturgo inglês, as crianças normalmente eram
encaminhadas para aprender as primeiras letras em uma pequena escola
denominada petty school e, posteriormente, passavam a estudar na grammar
school.55 Ainda sobre a maravilhosa escrita de Shakespeare, Bárbara
Heliodora faz a seguinte observação:
Um outro aspecto da atividade escolar pode ter sido de grande ajuda: em um caderno (chamado the commonplace book), o aluno devia anotar pensamentos e bons sentimentos, expressados de forma elegante e agradável, uma ótima preparação para um futuro escritor. E se os primeiros quatro anos eram dedicados quase unicamente ao aprendizado de latim, nos três últimos havia aulas de lógica e retórica, tudo igualmente positivo para estimular o talento de William. (HELIODORA, 2014, P. 15)
Shakespeare completou seus dezoito anos e, posteriormente, se casou
com Anne Hathaway, a qual era oito anos mais velha do que o dramaturgo. Em
1583, Shakespeare e Anne Hathaway tiveram sua primeira filha, Suzanna. Em
2 de fevereiro de 1585, nasceram como fruto da união de Shakespeare com
Hathaway dois gêmeos: Hamnet, um menino, e Judith, uma menina.56
53
Ibdem. 54
MOURTHÉ, Claude, 2007, 1ª edição, Shakespeare (Biografias), Lpm Pocket, p. 14-15. 55
HELIODORA, Bárbara. 2014, 1ª edição, Shakespeare: o que as peças contam: tudo o que você precisa saber para descobrir e amar a obra do maior dramaturgo de todos os tempos, Edições de Janeiro, p. 15. 56
MOURTHÉ, Claude, 2007, 1ª edição, Shakespeare (Biografias), Lpm Pocket, p. 16.
29
Existiram grandes perdas sofridas pelo dramaturgo inglês após seu
casamento, sendo a primeira delas em 1596, quando Shakespeare perde seu
filho Hamnet, ainda muito jovem. Por volta de 8 de setembro de 1601,
Shakespeare sofre com a morte do pai, e sua mãe vem a falecer em 9 de
setembro de 1608. Ainda, Shakespeare sofre a perda de seus irmãos mais
jovens, Gilbert, Richard e Edmund, este último também ator.57
Algo que Shakespeare prezava muito era pelo casamento bem sucedido
de suas duas filhas. Suzanna se casa em 1607 com o dr. John Hall, este
médico de Stratford. O casamento só não foi completamente bem sucedido por
conta de rumores de adultério que permeavam a noiva, incidente este que
levou Shakespeare a mover um processo contra o difamador. Já a jovem Judith
se casa no ano de 1616 com o filho de um dos velhos amigos do ex-prefeito de
Stratford, Thomas Quiney. Este último casamento não resultou em uma
completa satisfação para Shakespeare, visto que o dramaturgo veio descobrir
uma má conduta de seu genro ao engravidar uma moça chamada Margaret
Wheeler. Tal conduta levou o dramaturgo inglês posteriormente, a omitir
Quiney de seu testamento.58
Quanto ao seu próprio casamento, nota-se uma certa frieza presente na
união de Shakespeare com Anne Hathaway, apesar de a mesma ter durado
cerca de 34 anos. O dramaturgo passava a maior parte do tempo em Londres,a
cidade onde a arte e a cultura eram mais valorizadas, segundo Bárbara
Heliodora, enquanto sua esposa residia em Stratford, sendo evidente um certo
distanciamento entre o casal. Contudo, Shakespeare apesar de passar boa
parte do tempo em Londres, frequentemente voltava para a sua terra natal,
onde detinha como parte de seu patrimônio a propriedade de algumas terras de
razoável importância.59
Mas como era William Shakespeare fisicamente? Como era seu rosto e
suas feições? Existem poucos retratos do dramaturgo, e Mourthé menciona em
sua obra Shakespeare três retratos descrevendo suas características físicas. O
primeiro deles trata-se do Retrato Chandos, o qual mostra “um homem ainda
57
Ibdem, p. 16. 58
Ibdem, p. 17-18. 59
Ibdem, p. 17.
30
jovem, mas com o crânio já bastante desguarnecido, uma testa saliente, bigode
e barba estreitos, um brinco na orelha esquerda.”60
O segundo retrato mencionado por Mourthé trata-se de uma gravura
feita pelo escultor Martin Droeshout, esta retratando Shakespeare com “o
crânio ainda mais desguarnecido”, sem barba e brinco na orelha e com o traço
de um fino bigode sobre os lábios. Além disso, os traços predominantes neste
retrato são “olheiras sob os olhos, pálpebras mais pesadas, expressão um
tanto distante no olhar.” Há uma diferença quanto a idade de Shakespeare
entre esses dois retratos citados.
Por fim, temos o Retrato Flower, exposto na Royal Shakespeare
Company, pintado por Nicholas Hilliard e datado de 1588. Nele o dramaturgo
inglês usa um chapéu, “ornado de uma discreta pluma”, o que esconde sua
calvície. Também a cor da barba de Shakespeare assemelha-se ao ruivo.61
3.2 SHAKESPEARE E O TEATRO
3.2.1 As comédias
Durante sua juventude, Shakespeare adquiriu um grande interesse pelo
teatro e tentou ganhar vida como ator, tendo por volta de 1580 viajado para
Londres, esta considerada como uma “cidade teatral”. Além de representar
papéis no gênero comédia, Shakespeare também escreveu comédias, sendo
uma das primeiras produzida em dezembro de 1594 intitulada A comédia dos
erros.62
Podemos classificar as comédias escritas por William Shakespeare de
maneira cronológica, de modo que temos as comédias da fase inicial, também
conhecidas como “comédias românticas” (Os dois cavalheiros de Verona, A
60
Ibdem, p. 20. 61
Ibdem, p. 21 62
Ibdem, p. 23, 24, 25.
31
megera domada, A comédia dos erros, Trabalhos de amor perdidos, Sonho de
uma noite de verão, O mercador de Veneza, As alegres comadres de Windsor,
Muito barulho por nada, Como gostais e Noite de reis), da fase intermediária,
também conhecidas como “comédias sombrias” (Troilo e Créssida, Medida por
medida, e Tudo está bem quando termina bem) e da fase final, conhecidas
como “romances” (Péricles, Cimbeline, O conto de inverno, A tempestade e Os
dois primos nobres). Uma característica interessante presente em suas
comédias é que Shakespeare utilizava várias histórias ao mesmo tempo dentro
de uma única peça.63
As comédias de William Shakespeare:
Trabalhos de amor perdidos (1590-1592)
A comédia dos erros (1592-1594)
Os dois cavalheiros de Verona (1592-1594)
Sonho de uma noite de verão (1594-1596)
O mercador de Veneza (1594-1596)
A megera domada (1594-1597)
As alegres comadres de Windsor (1597-1600)
Muito barulho por nada (1598-1600)
Como gostais (1599-1600)
Noite de Reis (1599-1601)
Tudo está bem quando termina bem (1600-1604)
Medida por medida (1603-1604)
Peças Romanescas
Péricles, príncipe de Tito (1607-1608)
Cimbeline (1609-1610)
O conto do inverno (1610-1611)
A tempestade (1612-1613)
Os dois nobres parentes (1613)64
63
SANTOS, Marlene Soares dos, 2006, O cômico em Shakespeare: Rindo com o Bardo, Revista Entre Livros, São Paulo, v. 2, p. 68, Duetto. 64
Ibdem, p. 68-69.
32
Shakespeare tinha um sonho, e também vocação, de ser poeta. Claude
Mourthé faz uma referência aos versos da obra Vênus e Adônis, dizendo ser
impressionante a “expressão de um vivo sentimento da natureza quase
campestre”. Além disso ressalta que a originalidade desta obra reside no fato
de que Vênus, a protagonista mulher é a pretendente e que se encarrega de
fazer a corte a Adônis, por quem nutre uma desesperadora paixão. Já com a
obra A violação de Lucrécia, publicada no ano de 1594, ocorre uma inversão
dos papéis, tendo o homem como predador e a mulher como vítima. Outra
diferença muito interessante entre essas duas peças de autoria de
Shakespeare, é que a primeira, Vênus e Adônis, trata-se de uma comédia,
embora traga a morte de Adônis, e a segunda, A violação de Lucrécia, trata-se
de uma tragédia. Ambos os poemas são consideradas as primeiras obras
verdadeiramente impressas e assinadas apenas por Shakespeare.65
Com relação às personagens femininas de Shakespeare, temos duas
referências interessantes de dois autores que ressaltam a importância da figura
feminina nas comédias escritas pelo Bardo, sendo a primeira autora Linda
Bamber em sua obra Comic women tragic men, afirmando que “o universo da
comédia pertence às mulheres”, e o autor George Gordon em sua obra
Shakespearian comedy afirmou que “de todos os ângulos de abordagem da
comédia shakesperiana, o ângulo principal é, e deve ser, o da feminilidade”.
Ademais, a maioria das personagens femininas de Shakespeare pertencem ou
à aristocracia ou à burguesia.66
3.2.2 As tragédias
Por falar em tragédia, Shakespeare também escreveu Tito Andrônico,
peça esta que relata uma série de crimes e assassinatos, banha-se em
sangue, portanto. Ainda nesse mesmo contexto, temos também A tragédia de
65
MOURTHÉ, Claude, 2007, 1ª edição, Shakespeare (Biografias), Lpm Pocket, p. 31, 32, 35, 37,38. 66
SANTOS, Marlene Soares dos, 2006, O cômico em Shakespeare: Rindo com o Bardo, Revista Entre Livros, São Paulo, v. 2, p. 68, Duetto.
33
Ricardo III, também escrita pelo dramaturgo. Apesar de tratar a respeito de
fatos históricos e guerras em algumas de suas obras, Shakespeare era
considerado revolucionário apenas no palco como ator, não foi um escritor
combatente, polemista, nem provocador, segundo Claude Mourthé.67
As tragédias de William Shakespeare:
Tito Andrônico (1593-1594)
Romeu e Julieta (1594-1597)
Julio César (1598-1599)
Hamlet (1600-1601)
Tróilo e Créssida (1601-1603)
Otelo, o mouro de Veneza (1604-1605)
Rei Lear (1605-1606)
Macbeth (1605-1606)
Antônio e Cleópatra (1607-1608)
Tímon de Atenas (1607-1608)
Coriolano (1608-1610)68
Podemos verificar que grande parte das tragédias shakesperianas
abordam os aspectos mais complexos e terríveis da natureza humana, e com
isso Shakespeare traz uma espécie de enigma ao tratar de um “país
inexplorado” da mente humana, composto de dúvidas e incertezas e, e por isso
vazio de sentidos.69
Além disso, Shakespeare também aborda questões políticas em suas
obras, como em Macbeth por exemplo, considerando inclusive a própria política
como uma “forma moderna de tragédia”. Para Shakespeare, enquanto houver
ser humano, vida e sociedade, a política se desenvolverá como tragédia. Logo,
Shakespeare aborda em suas obras diversos conflitos dos indivíduos e das
sociedades.70
67
MOURTHÉ, Claude, 2007, 1ª edição, Shakespeare (Biografias), Lpm Pocket, p. 26-28. 68
TAMM, Carlos, 2006, Tragédias: Chama breve no breu, Revista Entre Livros, São Paulo, v. 2, p. 46-47, Duetto. 69
Ibdem, p. 52-53. 70
CHAIA, Miguel, 2006, Shakespeare e a política: O palco do poder, Revista Entre Livros, São Paulo, v. 2, p. 46-47, Duetto.
34
3.2.3 Os dramas históricos
Nos dramas históricos escritos por Shakespeare, o dramaturgo visa
discutir a figura do soberano num momento de transformações radicais que
afetavam a noção de realeza. Essa foi a maior grandeza presente nos dramas
históricos escritos pelo Bardo, visto que ele não buscou apenas representar
homens e mulheres do passado. Shakespeare aborda questões em seus
dramas históricos que nos levam a refletir sobre o papel do soberano, o que é
ser rei e quais são os seus atributos.71
Os dramas históricos de Shakespeare:
Henrique VI – 1ª, 2ª e 3ª partes (1590-1592);
Ricardo III (1593-1594)
A vida e a morte do rei João (1594-1596)
Ricardo II (1594-1596)
Eduardo III (1596)
Henrique IV – 1ª e 2ª partes (1597-1598)
Henrique V – (1598-1599)
Henrique VIII (1612-1613)
Peças romanas (tragédias)
Julio César (1598-1599)
Antônio e Cleópatra (1607-1608)
Coriolano (1608-1610)72
A primeira obra de drama histórico catalogada de William Shakespeare
foi Henrique VI, dividida em três partes, cuja peça estreou em Londres, por
volta do mês de março de 1592. Em junho, três meses após a estréia, ocorre
uma peste na Inglaterra e por conta disso, o teatro e todas as salas fecham
71
ROCHA, Roberto Ferreira da, 2006, Dramas Históricos: O soberano e seu papel, Revista Entre Livros, São Paulo, v. 2, p. 56, Duetto. 72
Ibdem, p. 60.
35
suas portas. Por esse motivo, Shakespeare com quase trinta anos, vivencia o
desemprego.73
Uma curiosidade a respeito dessa obra é que é mencionada a grande
referência feminina Joana d‟Arc. Na peça, ela é caracterizada por Shakespeare
de um modo diferente. Embora seja vista como uma jovem corajosa que leva
seu país a vitória e seja muito estimada, especialmente para as mulheres,
Shakespeare a via como um símbolo da pátria inimiga, que possuía “hábitos
condenáveis e conjurava demônios, se comportando como meretriz das frentes
francesas”. Isso se deu por conta do conflito histórico entre os franceses e os
ingleses.74
A respeito do papel do soberano discutido por Shakespeare, temos
também a obra Ricardo III que trata a respeito da corrupção do Estado pela
ambição desenfreada. Ricardo é o personagem que mais incorpora esses
valores corrompidos.75
Ademais, no que tange aos dramas históricos de William Shakespeare,
Roberto Ferreira da Rocha diz que “os fatos passados são dramatizados para
ajudar na compreensão do presente.” Logo, a história é utilizada como uma
espécie de instrumento para auxiliar na compreensão da política e refletir a
respeito, principalmente sobre o papel e a relevância da figura do soberano.76
Ainda, tratando de grandes personagens presentes nas obras de
Shakespeare, Mourthé faz a seguinte reflexão:
Do lado qualidade moral, que põe em destaque a inocência muitas vezes achincalhada, ferida ou mesmo aniquilada, como em Lucrécia, encontramos Julieta, Lady Ana, Desdêmona, Ofélia, Cordélia, Perdita. Do lado força de alma, paralelamente a algumas figuras muito negras como Ricardo III, Iago ou Lady Macbeth, cujo encontro com heróis irreprocháveis dá ensejo à explosão dramática, Shakespeare propõe algumas altas figuras que podem servir de exemplos universais: Henrique V, que se torna rei após uma juventude devassa junto a Falstaff, Shylock e a defesa de sua raça, a sincera limpidez de Otelo, a honestidade intelectual de Hamlet, a lealdade de Horácio, a sábia grandeza de Próspero. Contudo, em cada uma dessas figuras, ele saberá encontrar também a falha, o calcanhar de Aquiles, que torna o
73
MOURTHÉ, Claude, 2007, 1ª edição, Shakespeare (Biografias), Lpm Pocket, p. 30 – 31. 74
ROCHA, Roberto Ferreira da, 2006, Dramas Históricos: O soberano e seu papel, Revista Entre Livros, São Paulo, v. 2, p. 58-59, Duetto. 75
Ibdem, p. 61. 76
Ibdem, p. 63.
36
herói vulnerável e que lhe confere, por essa razão, sua humanidade. (MOURTHÉ, 2007, p. 41)
Logo, é perceptível que os dramas históricos, tragédias e comédias
escritas por Shakespeare, trazem personagens com as mais variadas
personalidades, e com aspectos sombrios normalmente. Nota-se que através
dessas “falhas” presentes em seus personagens, Shakespeare explora muito a
questão da humanidade.
3.3.4 O teatro elisabetano
Mas como era o teatro elisabetano, essa parte importante, no que tange
a história de Shakespeare? No início, se assemelhava mais a um “pátio de
albergue”, segundo Mourthé. Os espectadores ficavam nos balcões e nas
janelas, e o público popular costumava ficar em pé durante os espetáculos.
Posteriormente, esses espaços foram sendo adaptados, transformados a partir
de construções de madeira e barro amassado com palha, ou ainda de madeira
e um “conglomerado de seixos”, tal como o Swan Theatre, sendo recoberto de
gesso. O primeiro teatro feito desse material situa-se em Shoreditch e lá James
Burbage constrói em 1576 a The Theatre, sendo uma das primeiras salas
permanentes, acompanhada posteriormente pela sala The Curtain.77
Ademais, vale destacar que os espaços que marcaram para sempre a
história do teatro são o The Rose Theatre, The Swan Theatre e The Globe
Theatre, este último sendo utilizado com mais frequência desde o ano de 1594
pelos Chamberlain‟s Men, companhia da qual Shakespeare fazia parte. Ainda,
este teatro sofreu um terrível acidente em decorrência de um disparo de
mosquete ter incendiado o telhado de colmo durante a estreia da peça
Henrique VIII, tendo sido inteiramente queimado em 1613.78 Posteriormente,
com a vitória dos puritanos na Guerra Civil Inglesa (1642-1649), o espaço foi
fechado no ano de 1642. No entanto, em 1996, o mesmo foi reconstruído e
77
MOURTHÉ, Claude, 2007, 1ª edição, Shakespeare (Biografias), Lpm Pocket, p. 55-56. 78
Ibdem, p. 56-57.
37
reinaugurado por iniciativa do ator americano Sam Wanamaker, mantendo as
características originais através de pesquisas arqueológicas.79
No que tange ao Swan Theatre, foram feitos dois esboços desse
espaço, sendo um deles retomado pelo desenhista Arend Van Buchel e
legendado em latim, e também feito por Johannes de Witt, sendo o esboço
deste último uma fonte de inspiração para uma espécie de “retrato falado do
palco elisabetano” e ainda para a reconstituição de teatros epônimos em
Londres e também em Stratford.80
Partindo da famosa frase presente em Como gostais?, de autoria de
Shakespeare, “o mundo inteiro é um teatro”, Claude Mourthé indaga como um
teatro rudimentar naquela época poderia ser visto como um mundo inteiro,
abrangendo relatos históricos, fatores psicológicos e uma mistura de tragédias
e comédias ao mesmo tempo. Ainda questiona a representação de diversos
cenários peculiares inseridos nas peças do dramaturgo, como por exemplo o
balcão de Julieta, a cela de Frei Lourenço, ambas em Romeu e Julieta e a ilha
deserta habitada por Próspero, em A tempestade, todas essas sem a presença
de efeitos especiais e recursos de iluminação e sonoplastia sofisticados. A
partir dessa indagação, pode-se concluir que pela falta desses recursos os
espectadores faziam uso da própria imaginação durante as apresentações.81
Ademais, acima do palco do Globo foi inscrita a citação do poeta
Petrônio, “totus mundus agit histrionem”, frase esta que Shakespeare se refere
em Como gostais:82 “O mundo é um palco; os homens e as mulheres, meros
artistas, que entram nele e saem. Muitos papéis cada um tem no seu tempo;
sete atos, sete idades.” (SHAKESPEARE, ATO II)
Entretanto, mesmo com a aparente simplicidade das apresentações
teatrais e falta de recursos mais sofisticados no que tange à iluminação,
sonoplastia e cenário, os teatros se tornaram ambientes de entretenimento
bastante procurados pelos londrinos. Alfred Harbage estimou que havia uma
79
HARRIS, Peter James, 2006, O Teatro elizabetano: A alvorada do drama, Revista Entre Livros, São Paulo, v. 2, p. 28-29, Duetto. 80
MOURTHÉ, Claude, 2007, 1ª edição, Shakespeare (Biografias), Lpm Pocket, p. 57-58. 81
Ibdem, p. 58-59. 82
HARRIS, Peter James, 2006, O Teatro elizabetano: A alvorada do drama, Revista Entre Livros, São Paulo, v. 2, p. 32, Duetto.
38
média de 2.500 espectadores por dia em sua obra Shakespeare‟s audience,
em 1595.83
Outro detalhe interessante é a respeito do tempo de duração dos
espetáculos naquela época, que além de serem realizados no período da tarde,
sendo entre as quinze às dezoito horas, não havia intervalo e duravam cerca
de duas horas sem nenhuma interrupção. Todavia, somente A tempestade
dura o tempo exato da representação.84 Além disso, podemos inserir mais dois
aspectos interessantes a respeito das apresentações teatrais, sendo o primeiro
que os papéis femininos eram representados exclusivamente por homens e o
segundo que o sangue utilizado no teatro elisabetano era sangue de porco.85
Shakespeare era considerado um ator modesto no início de sua carreira
e, aos seus trinta anos, não tinha nenhuma filosofia e nem teoria no que se
refere ao teatro popular. O público que normalmente aparecia para assistir às
suas peças era a pequena burguesia francesa. No entanto, a particularidade
dos atores naquele tempo era utilizar do teatro como uma forma de
investimento financeiro, sendo que os próprios atores faziam o papel de
produtores. Diante disso, Shakespeare adquiriu a New Place, uma das mais
belas casas situada em Stratford, em virtude do teatro, dez anos após iniciar
sua carreira como ator.86
Ainda, Shakespeare foi designado para cuidar da receita das
representações de sua trupe em 1594. Posteriormente, em 1599, o número de
acionistas diminui para cinco, e aqui isso ocorreu em virtude da reconstrução
do The Globe Theatre, e Shakespeare recebe um quinto da metade das ações,
tornando-se coproprietário. Além disso, o dramaturgo passou a ser acionista
também do teatro de Blackfriers no ano de 1608.87
Com relação a questão da réplica de obras, que era muito frequente na
época de Shakespeare, o dramaturgo não se preocupou com isso, visto que
83
KOGUT, Vivien, 2006, Por que ler o clássico? Renascentista e Moderno, Revista Entre Livros, São Paulo, v. 2, p. 19, Duetto. 84
MOURTHÉ, Claude, 2007, 1ª edição, Shakespeare (Biografias), Lpm Pocket, p. 60. 85
Ibdem, p. 77-78. 86
Ibdem, p. 66-67. 87
Ibdem, p. 69.
39
não deixou nenhum manuscrito autografado, e as obras das quais mais se
interessou durante sua carreira como escritor foram suas obras poéticas.88
Nesse sentido, a respeito das obras teatrais do dramaturgo, Claude
Mourthé traz a seguinte visão de Shakespeare:
É que ele tinha consciência, esse homem de teatro, de que um texto é feito primeiramente para ser dito e representado. Ele não pensava, e esse é o seu grande mérito, nem em fazer uma obra literária, nem em figurar na história da literatura. Depois de algumas representações, o assunto estava encerrado. A peça agradara, ou desagradara, e passava-se a uma outra. Tal era a vida cotidiana do teatro nesse reino. (MOURTHÉ, 2007, P. 73)
Para o desenvolvimento de uma peça de teatro, os ensaios são
fundamentais. Diante de todos os aspectos vistos anteriormente, podemos
pensar na forma como fluíam os ensaios na trupe da qual William Shakespeare
fazia parte. A função de diretor não era muito presente, e o ator mais
experiente normalmente cuidava das marcações no palco, entradas e saídas,
além de determinar repetições de cenas, e nem sempre esse ator era o mais
antigo ou o destaque da peça. Às vezes essa função também estava incumbida
ao próprio autor. Contudo, apesar de escrever diversas obras, Shakespeare
raramente assumia essa responsabilidade, tendo em vista que era
extremamente exigente.89
Apesar de não exercer muito o papel de diretor na trupe, Shakespeare
designou papéis extremamente importantes diretamente para o ator Richard
Burbage, este filho mais novo de James Burbage. Richard assumiu os papéis
de maior destaque nas obras shakesperianas, como Hamlet, Ricardo III, Otelo,
Lear e Malvólio em Noite de Reis. Esse é um dos motivos que reflete a total
confiança que Shakespeare depositava em Richard. Outra pessoa de confiança
de Shakespeare foi Henry Cordell, um amigo e membro da trupe até 1625. Este
ficou encarregado da edição das obras completas após a morte do
dramaturgo.90
Quanto a James Burbage (1530-1597), acima citado, este também era
ator e um mestre marceneiro, tendo iniciado sua carreira aproximadamente no
88
Ibdem, p. 73. 89
Ibdem, p. 79. 90
Ibdem, p. 80-81.
40
ano de 1572 com o grupo do conde de Leicester. Ele também foi responsável
pela construção do espaço O Teatro (The Theatre), em meados de 1576.91
Um recurso trazido pelo dramaturgo nos momentos em que o
personagem queria exprimir para a platéia os seus “pensamentos mais
íntimos”, foi o solilóquio. Por meio deste último, o ator ficava mais próximo do
público, normalmente no centro do palco, e falava, mantendo constantemente o
contato visual com o público. O solilóquio, além de possibilitar o conhecimento
por parte da platéia do interior do personagem, permitia também o
desenvolvimento de uma espécie de cumplicidade, entre ator e platéia,
considerada como a base do efeito dramático.92
Mas, tendo em vista que Shakespeare residia mais fora de Stratford e
estava mais perto de sua trupe de teatro do que de sua família, afinal, onde
Shakespeare residia de fato? O dramaturgo teve vários domicílios, mas nunca
deixou seu endereço. É certo que nunca possuiu imóvel próprio em Londres,
vivendo em “moradia de aluguel, sem grande pompa, e o mais perto possível
dos locais onde são representadas suas peças.” Normalmente as casas
alugadas pelo dramaturgo situavam-se em Southwark, próximo ao Tâmisa.93
3.3 AS DARK PLAYS E OS SONETOS
Além de ser um homem amável, de ser taurino, se dedicar ao teatro por
amor, e ser dotado de uma excelente memória, o dramaturgo “é apaixonado
pelos bens deste mundo, mesmo o que é só aparência”, segundo Claude
Mourthé. Ademais, uma característica interessante a respeito do dramaturgo é
a forma como ele organizou a série dos Tudor, esta dotada por um grande
patriotismo. Podemos dizer, em razão de seu comportamento, que havia um
91
HARRIS, Peter James, 2006, O Teatro elizabetano: A alvorada do drama, Revista Entre Livros, São Paulo, v. 2, p. 27, Duetto. 92
KOGUT, Vivien, 2006, Por que ler o clássico? Renascentista e Moderno, Revista Entre Livros, São Paulo, v. 2, p. 19-20, Duetto. 93
MOURTHÉ, Claude, 2007, 1ª edição, Shakespeare (Biografias), Lpm Pocket, p. 74.
41
reflexo da época do Renascimento presente nas obras de Shakespeare.94
Nesse sentido, Mourthé traz mais uma reflexão:
Em um século, quantas descobertas geográficas; na cultura, quantos textos fundamentais, quantos cismas violentos na religião, quantas riquezas fundadoras. O gênio de Shakespeare é ter sabido dar conta de tudo isso por intermédio dessa gente vivaz, indisciplinada às vezes, com frequência portadora de um talento indiscutível e suscitante da admiração, que é a gente do teatro. (MOURTHÉ, 2007, P. 86)
Claude Mourthé menciona em seu livro Shakespeare, que há pelo
menos um personagem de esposa que talvez se relacione com Anne Hathaway
nas obras escritas pelo dramaturgo. E o autor faz uma comparação desta com
a personagem Catarina, protagonista da peça A megera domada. Mas quem foi
Anne Hathaway, a esposa de Shakespeare? Segundo Mourthé, ela detinha de
uma certa autoridade, visto que administrou sozinha a casa e cuidou dos filhos
enquanto Shakespeare trabalhava em Londres e, além disso, era uma mulher
do campo.95
E por falar em personagens femininas, existem algumas que são
extremamente fortes no teatro shakesperiano, alguns exemplos são Paulina em
Conto de inverno e Beatriz em Muito barulho por nada, as quais não se deixam
reprimir facilmente. Diante disso, pode-se afirmar que “Shakespeare poderia
ser visto como um grande adulador da feminidade”, de acordo com Mourthé.96
Contudo, assim como o dramaturgo traz mulheres com personalidades
fortes e um tanto duronas, como Catarina, ou dispostas a arriscar, tal como
Pórcia ao encarar o judeu Shylock no tribunal, Shakespeare também trabalha a
ingenuidade de várias personagens femininas em algumas obras. Temos como
exemplo, nesse sentido, Cordélia (Rei Lear), Miranda (A tempestade), Perdita
(Conto de inverno). Há ainda Ofélia, que se deixou levar pelas mentiras de
Hamlet e Desdêmona que acabou sendo morta sufocada pelo próprio marido
(Otelo). Julieta, apesar de sua ternura, não é tão ingênua quanto parece, visto
94
Ibdem, p. 82-86. 95
Ibdem, p. 88-89. 96
Ibdem, p. 90-91.
42
que também contraria a todos e pactua com Frei Lourenço um plano para
poder ficar ao lado de Romeu.97
No que tange a forma como Shakespeare trata do universo feminino em
suas obras, temos a visão trazida por Mourthé acerca do tema, quando analisa
brevemente a peça Romeu e Julieta: “A maneira como ele descreve as
emoções, as esperanças, as expectativas, de uma jovem que só aspira a ser
mulher é perfeita.”98
Outro fato interessante que ocorreu na vida do dramaturgo William
Shakespeare foi o convite que ele e sua trupe de teatro receberam para
participar do casamento do conde de Derby e de Elisabeth Vere, filha do conde
de Oxford, em 1595. A cerimônia ocorreu no Palácio de Greenwich, com a
presença da rainha e em meio a neve.99
Após esse evento, Shakespeare deixa sua imaginação fluir e põe no
papel a peça Sonho de uma noite de verão. Esta é uma comédia, alternada
com passagens dramáticas, danças e canções, e repleta de muita fantasia. Ela
que foi considerada um grande sucesso em vários outros casamentos nos
quais a trupe de teatro do dramaturgo inglês participou. Além disso, igualmente
foi um sucesso a apresentação no momento de sua reprise em público no
espaço Globe Theatre. Posteriormente, essa peça veio a encantar diversos
diretores de teatro, cineastas e compositores, como Mendelssohn e Benjamin
Britten. Ainda, uma das peculiaridades desta obra é o cenário, este idílico e
campestre, com a presença de bosques, campos de flores, tranquilidades dos
jardins, calor de verão. Elementos agradáveis da natureza e propícios aos
amores presentes na trama.100
Além das várias peças de teatro, o dramaturgo também é conhecido
pelos seus Sonetos, os quais foram publicados em 1609 por Thomas Thorpe.
Shakespeare utilizava para o seu teatro o decassílabo sem rima. Além disso,
97
Ibdem, p. 96. 98
Ibdem, p. 97. 99
Ibdem, p. 99. 100
Ibdem, p. 99-101.
43
no soneto elisabetano existem cinco acentuações por verso.101 Nesse sentido,
a respeito dos Sonetos, Mourthé faz a seguinte análise:
Os Sonetos, em número de 154, têm a particularidade de se distribuírem no tempo, em vez de se concentrarem em um único período, como cada uma das peças, excetuadas as reprises. O que permite vê-los como uma espécie de curriculum vitae de Shakespeare. Em todo caso, é a obra em que ele exprimiu mais livremente, embora de maneira muito labiríntica, seu ego, sua natureza profunda e seu talento inato, fundamental, de poeta. (MOURTHÉ, 2007, P. 112)
Ocorre que os sonetos diminuem de 154 para 146 na segunda edição
feita por Ben Jonson em 1640, tendo sido alguns deles riscados ou mesmo
censurados. Importante ressaltar também que há dois elementos particulares
presentes nos Sonetos de Shakespeare que devem ser considerados, sendo
eles a cronologia, de 1598 a 1609 ou 1610, e a inspiração.102 Ele também
afirma no prefácio da primeira edição da obra de Shakespeare em 1623 que
Shakespeare poderia ser considerado um gênio pelo fato de que “ele não era
de uma época somente, mas para toda a eternidade.”103
Por volta de seus quase quarenta anos de idade, William Shakespeare,
se interessando cada vez mais pela história da Antiguidade, escreve a peça
mais famosa e a que mais suscitou diversas interpretações. Hamlet trata-se de
uma tragédia repleta de melancolia e foi apresentada pela primeira vez em
1601 no Globe Theatre. Esta, assim como O Rei Lear e Macbeth, é
considerada uma peça com problemas. O protagonista da peça, cujo nome
compõe o título da obra, é marcado por uma série de medos, conforme traz
Mourthé: “medo diante do sangue – ele não se decide a matar –, medo diante
do amor – ele foge de Ofélia –, medo diante da morte quando estremece à
visão do crânio de um bufão que encantou sua juventude.”104
Mourthé também questiona quais elementos profundamente pessoais da
vida do dramaturgo podem ter sido inseridos em Hamlet. Diante disso, faz uma
breve comparação com o fato de seu próprio filho possuir o nome Hamnet, este
101
Ibdem, p. 112-113. 102
Ibdem, p. 114-115. 103
HARRIS, Peter James, 2006, O Teatro elizabetano: A alvorada do drama, Revista Entre Livros, São Paulo, v. 2, p. 33, Duetto. 104
MOURTHÉ, Claude, 2007, 1ª edição, Shakespeare (Biografias), Lpm Pocket, p. 139, 140, 145.
44
muito semelhante ao título da obra. De seus três filhos, Hamnet foi o preferido
de Shakespeare, e por esse motivo o dramaturgo nutria uma afeição muito
especial pelo filho.105
Posteriormente, a partir do ano de 1603, Shakespeare e sua Companhia
são promovidos e nomeados “Comediantes do Rei” por Jaime VI da Escócia,
este tendo sucedido ao reinado de Elizabeth por filiação normal, tendo esse
reinado durado até 1625. Como forma de agradecimento pela promoção de sua
trupe e pelo título adquirido de “fidalgo da Câmara”, Shakespeare oferece ao
rei a peça intitulada A tragédia de Macbeth, na qual a trama se passa
igualmente na Escócia. Essa última peça é marcada pelo sobrenatural e existe
a presença de feiticeiras, as quais aparecem de improviso. Já quanto aos
animais vivos e cavalos, estes eram raros no teatro e muitas vezes apareciam
na forma de objetos como “gualdrapa” ou “vassoura com saia e cestos”,
manipulados pelos próprios atores como verdadeiros cavaleiros.106
Algo que podemos questionar quanto a peça intitulada Macbeth, tragédia
de autoria de Shakespeare, é se o dramaturgo era ou não supersticioso pelo
fato de inserir elementos sobrenaturais nessa obra. Diante disso, Claude
Mourthé afirma que “Shakespeare pode ser considerado supersticioso como
todo mundo, poderíamos dizer”. E com isso explica como esses elementos
podem ser atraentes para a nossa imaginação, fazendo uma breve
comparação com o atual sucesso de Harry Potter, constituído por inúmeros
feiticeiros e feiticeiras seguindo tradições, estudando em uma escola repleta de
magia. Ademais, compara também esse interesse sobrenatural com a festa de
Halloween, importada da França. Trata, ainda da questão da fantasmagoria
como popular, normalmente verificada sob a forma de comédia.107
Com relação ao sobrenatural, e às peças como Ricardo III, Henrique VI
e Hamlet, semelhantes a Macbeth, Mourthé faz a seguinte reflexão:
É precisamente graças ao sobrenatural, à utilização que faz dele, e graças a sua lucidez, como também à sua indulgência ante aqueles ou aquelas com os quais se confronta, que Shakespeare ultrapassa essa problemática. Alguns quiseram ver, nessa empatia que lhe era
105
Ibdem, p. 156. 106
Ibdem, p. 164, 166. 107
Ibdem, p. 169, 170.
45
simplesmente natural, uma manifestação de seu espírito cristão. É possível: ele nunca quis renunciar, como dissemos, à sua fé original, à de seu pai. Tendo permanecido católico, casou-se e foi enterrado na igreja, onde todos os seus filhos foram batizados. Mas isso sem estreiteza de espírito, em uma benevolente consideração do universo, material ou espiritual, do qual a fé, afinal, faz parte. (MOURTHÉ, 2007, P. 176)
Shakespeare procurava inserir sempre novidades em seus versos, os
quais eram escritos de forma natural, espontânea e fluida, marcada pela
originalidade. Por outro lado, o dramaturgo também era estimulado pela
concorrência. Porém ele não se preocupou com o fato de suas obras serem
marcantes e que faria parte dos autores mais reconhecidos e apreciados em
uma época futura, tampouco com a impressão que faria perdurar suas obras.
Trata-se de uma “bela lição de humildade”, de acordo com Mourthé.108
Ademais, como criador o dramaturgo inglês tinha como finalidade não
somente agradar ao público através da busca de uma ideia nova para suas
obras e um novo tema a ser discutido, mas também “penetrar mais em
profundidade, sempre mais perto de uma verdade imanente, as bases da
referida condição humana.”109
Após escrever Hamlet, Otelo, O rei Lear e Macbeth, todas consideradas
dark plays, Shakespeare por volta de 1613 entrou em uma espécie de
aposentadoria, e talvez tivesse a impressão ou até mesmo a satisfação de ter
dito tudo, ou pelo menos dito o suficiente. Além disso, Shakespeare acabou se
afastando de Londres, e isso se deu por diversas razões, não apenas
profissionais, mas também por um certo cansaço do dramaturgo. Nesse tempo,
Shakespeare já passava a maior parte do tempo em Stratford.110
Outro fator que podemos associar a esse afastamento de Shakespeare,
é o nascimento de sua neta Elizabeth no ano de 1608, filha de Suzanna. O
dramaturgo em sua terra, além de estar junto da neta, também moveu alguns
processos e escreveu Coriolano, peça esta considerada política.
108
Ibdem, p. 179, 180. 109
Ibdem, p. 183. 110
Ibdem, p. 190, 191.
46
Posteriormente, ou talvez simultaneamente, Shakespeare cria a obra Tímon de
Atenas.111
Nesse sentido, Mourthé traz em seu Shakespeare que mesmo com essa
retirada, esse afastamento do dramaturgo, o mesmo produziu Conto de
inverno, antes de A tempestade, a qual traz uma espécie de “reconciliação” de
William Shakespeare consigo mesmo. O texto foi escrito no verão, mais
precisamente em agosto do ano de 1610. O título da obra “adquire um valor
simbólico, o da renovação.”112
Com relação às duas últimas obras acima citadas, Claude Mourthé
compara alguns acontecimentos da vida de Shakespeare com cenas presentes
nessas obras. Ao descobrir a acusação grave de adultério feita contra sua filha
Suzanna, o dramaturgo identifica o caluniador e move um processo contra ele,
inocentando a filha, tal como ocorreu com a personagem Hermíone em Conto
de inverno. Ainda, Mourthé compara a afeição entre Shakespeare e Judith com
a ligação entre Próspero e sua filha Miranda em A tempestade.113
Posteriormente, em 23 de abril de 1616, aos cinquenta e dois anos de
idade, William Shakespeare vem a falecer tomado anteriormente por uma forte
febre. A respeito desse acontecimento, diz Mourthé:
Na máscara mortuária, realizada quase imediatamente a pedido da mulher, um patologista identificou um tumor facial ósseo que pode ter tido consequências irreversíveis. Nada diz que Shakespeare não conhecia essas consequências, nem que tinha morrido delas. (MOURTHÉ, 2007, P. 206)
O dramaturgo foi sepultado na igreja da Santa Trindade, em Stratford.
Em sua lápide constam as seguintes palavras: “amaldiçoado seja quem mexer
nos meus ossos.” Existem rumores de que foram escritas pelo próprio bardo.
Houve uma época em que sua obra foi desvalorizada, durante o século XVIII e
início do século XIX, sendo posteriormente resgatada por meio de adaptações
111
Ibdem, p. 191, 193, 195. 112
Ibdem, p. 197, 198. 113
Ibdem, p. 203.
47
e valorizada pelos românticos até se tornar uma grande referência no período
da modernidade.114
2.4 A POSTERIDADE DE WILLIAM SHAKESPEARE
Com relação a posteridade de Shakespeare, esse grande dramaturgo
inglês e grande referência para o Teatro e a Literatura, temos alguns
acontecimentos que se destacam com o passar dos anos. O primeiro deles é a
Royal Shakespeare Company, um espaço considerado uma “espécie de
viveiro”, segundo Mourthé, que surgiu aproximadamente por volta de 1961 sob
direção de Peter Hall, trazendo grandes intérpretes de Shakespeare, como
Laurence Olivier, Vivian Leigh e John Gielgud.115
Ainda, temos a inauguração do Shakespeare Memorial Theatre em
1879, com uma representação da peça Muito barulho por nada. Em 1986,
temos o Swan Theatre, espaço este que reproduz de maneira fiel o teatro
elisabetano. Outro espaço antigo, que surgiu em meados de 1818, situado na
própria Londres, é o Old Vic Theatre, o qual teve uma renovação por parte da
atriz britânica Lilian Baylis no ano de 1914 e posteriormente se tornou o
National Theatre em 1963, sob direção de Laurence Olivier.116
A França, no plano teatral, partiu para algumas adaptações para seu
próprio agrado das obras de Shakespeare e o precursor dessas adaptações foi
Voltaire. Laplace, Le Tourneur e Ducis também fizeram traduções arriscadas. A
respeito disso, aborda Mourthé:
Esses precursores, se podemos chamá-los assim, não hesitam, fora os inúmeros falsos sentidos e contrassensos detectados em suas pseudotraduções, em afrancesar o nome dos personagens, o que muitos fizeram a seguir, em particular François-Victor Hugo, e mesmo em mudar a conclusão da peça quando ela não lhes agrada, ou quando pensam que não agradará ao público francês. É assim que Desdêmona, em um desses tradutores que deve ter se compadecido
114
KOGUT, Vivien, 2006, Por que ler o clássico? Renascentista e Moderno, Revista Entre Livros, São Paulo, v. 2, p. 23, Duetto. 115
MOURTHÉ, Claude, 2007, 1ª edição, Shakespeare (Biografias), Lpm Pocket, p. 207. 116
Ibdem, p. 208.
48
dela, tem a vida salva; em outro, ao contrário, ela se apunhala em vez de ser sufocada sob um travesseiro. (MOURTHÉ, 2007, P. 210)
E por falar em François-Victor Hugo, este dedicou-se a tradução dos
Sonetos de Shakespeare, assim como de outras obras poéticas em versos
livres e vários apócrifos. Além disso, ele se dedicou a uma biografia do
dramaturgo inglês, a qual foi publicada no ano de 1864. Outro tradutor de
destaque é André Marcowicz, o qual traduziu as obras Hamlet e Macbeth, e
também é considerado um especialista em Dostoiévski.117
No que tange a direção teatral, o italiano Carmelo Bene se destaca em
sua encenação de Romeu e Julieta, a qual foi criada na cidade toscana de
Prato em 1976 e representada em Paris no Festival de Outono ocorrido em
1977. Nesse mesmo ano, o alemão Heiner Müller se destaca com a
representação de Hamlet-Máquina. Alguns anos antes, em 1973, Edward
Bond traz uma representação carregada em cenas de horror de Rei Lear.118
Interessante é ressaltar também a grande influência das obras de
William Shakespeare para o âmbito do cinema, tendo mais de trezentas
adaptações, sendo 41 apenas para Hamlet. Dentre todos os filmes, podemos
destacar a versão de 1967 de A megera domada com os atores Elizabeth
Taylor e Richard Burton e a produção de Hamlet com Mel Gibson, Glenn Close
e Alan Bates.119
Outro nome que se destaca no que tange a posteridade de Shakespeare
é o Orson Welles. Cineasta, que começou no teatro como cenógrafo e foi
responsável por montar em Nova York uma representação de Júlio César e um
Macbeth interpretado por uma trupe de negros. Welles, segundo Mourthé,
“sabia melhor do que ninguém que os temas de Shakespeare são inesgotáveis:
uma mina da qual não cessam de ser tiradas, uma após outra, todas as
pepitas.”120
117
Ibdem, p. 211, 212. 118
Ibdem, p. 214, 215, 216. 119
Ibdem, p. 216, 217. 120
Ibdem, p. 219, 220.
49
Mourthé diz o seguinte: “Como acontece quase sempre com
Shakespeare, todas as portas continuam abertas.”121
Não há dúvidas de que, até os dias atuais, William Shakespeare ainda
permanece vivo e é uma grande influência para o universo teatral. Suas obras
permanecem sendo adaptadas e trazidas aos palcos. Finalizando esta breve
biografia, Bárbara Heliodora ressalta o talento deste grande dramaturgo inglês:
Não houve sinal razoável que sugerisse, ainda que levemente, que o filho de John e Mary Shakespeare viesse a ser o maior autor dramático de todos os tempos. Gosto de acreditar que ele foi alçado a essa condição de forma muito justa, especialmente por causa do grande caso de amor com a humanidade vivido ao longo de toda a vida. Em todas as suas peças Shakespeare explora o potencial humano que o fascina, e pelo qual cultiva curiosidade inesgotável. Nas ações dos homens Shakespeare encontrava sua essência, e por isso mesmo seu talento encontrou a melhor expressão na forma dramática. (HELIODORA, 2014, P. 29-30)
Antes de estudar mais a fundo o papel feminino e os principais aspectos
jurídicos presentes em O mercador de Veneza, temos como exemplo da
posteridade de Shakespeare a peça de teatro “O mundo é um palco”,
desenvolvida pela Cena IV Shakespeare Cia, em parceria com o Instituto
Shakespeare Brasil. Na peça são mostradas várias cenas esparsas de diversas
peças de autoria do dramaturgo inglês, costuradas pela figura de três Bobos. A
companhia buscou trazer Shakespeare como sendo também atual, apesar de
ter surgido há mais de 400 anos. Buscando mostrar essa atualidade, os atores
mesclaram elementos do vestuário correspondente ao período elisabetano com
elementos utilizados nos dias atuais, como pode ser visto na imagem abaixo:
121
Ibdem, p. 221
50
Pórcia e Nerissa utilizando vestidos, óculos escuros e coturnos em “O mundo é um palco”, peça apresentada no dia 01/04/2019 em Praça Osório, no Festival de Teatro de Curitiba, pela Cena IV Shakespeare Cia.
4 O MERCADOR DE VENEZA – O RACIOCÍNIO JURÍDICO DESENVOLVIDO POR UMA MULHER
51
4.1 OS PRINCIPAIS ASPECTOS JURÍDICOS PRESENTES NA PEÇA O MERCADOR DE VENEZA, DE WILLIAM SHAKESPEARE
Segundo José Roberto de Castro Neves, a peça de teatro O mercador
de Veneza, uma das grandes comédias escritas por William Shakespeare, é
uma peça de “forte apelo jurídico”.122
Bárbara Heliodora relata que ao escrever O mercador de Veneza,
William Shakespeare faz uso de “duas situações de contos de fadas”: a
primeira refere-se a uma escolha que deve ser feita entre três opções e a
segunda refere-se a um compromisso inadmissível, o qual firma-se confiando
em que o momento de cumpri-lo não favorecerá a má consequência. Além
disso, é a primeira vez que o dramaturgo inglês utiliza a prosa em tom sério e
em momento significativo.123
Primeiramente, é importante situar que a peça traz três documentos
jurídicos muito importantes: o testamento do pai de Pórcia, a nota promissória
assinada por Shylock e Antônio e registrada em cartório, e o contrato nupcial
celebrado entre Pórcia e Bassânio. O curioso é que Pórcia – uma mulher, e a
personagem feminina de maior destaque na peça – utiliza de todos esses
instrumentos para defender seus próprios interesses.124 Tudo isso em uma
época em que a mulher não detinha autonomia para exercer funções
profissionais, como a advocacia por exemplo. Conforme visto no capítulo
anterior, inclusive no Teatro os papéis femininos eram representados
exclusivamente por homens.
Kenji Yoshino, ao analisar a obra O mercador de Veneza, diz que apesar
da maior parte dos comentaristas enxergarem um único julgamento, que é o
julgamento presente no quarto ato da peça em um tribunal, ele vê a presença
de três julgamentos ao todo. O primeiro deles é o julgamento dos três porta-
jóias, de ouro prata e chumbo, de que Bassânio precisa passar para ganhar a
122
NEVES, José Roberto de Castro, 2016, Medida por medida: O Direito em Shakespeare, 5ª edição revista e ampliada, Edições de Janeiro, p. 129. 123
HELIODORA, Bárbara. 2014, 1ª edição, Shakespeare: o que as peças contam: tudo o que você precisa saber para descobrir e amar a obra do maior dramaturgo de todos os tempos, Edições de Janeiro, p. 118. 124
YOSHINO, Kenji, 2014, Mil vezes mais justo – O que as peças de Shakespeare nos ensinam sobre a justiça, 1ª edição, WMF Martins Fontes, p. 34.
52
mão de Pórcia, conforme exigência do testamento do pai da rica herdeira.
Bassânio precisa fazer uma escolha, porém Pórcia sem permissão para
divulgar o baú correto, induz Bassânio sutilmente a escolher o porta-jóia de
chumbo. Já o segundo julgamento é o da promissória de carne humana
celebrada entre Antônio e Shylock, no qual Pórcia aparece travestida do
advogado Baltasar. Por fim, o terceiro julgamento é o dos anéis, no qual Pórcia,
ainda disfarçada, exige o anel de Bassânio, testando a própria fidelidade de
seu marido.125
4.1.1 O julgamento dos porta-jóias
Inicialmente, no contexto da peça, Pórcia é uma rica herdeira que vive
em Belmonte e precisa se casar. Bassânio, por sua vez, não detém muitas
posses, mas deseja a mão de Pórcia, uma vez que nutre por ela uma afeição.
Porém, Bassânio precisa se deslocar de Veneza para Belmonte, e para tanto
solicita o auxílio de seu amigo Antônio, um mercador.
Por outro lado, em Belmonte, nota-se que o pai de Pórcia em seu
testamento trata sua própria filha como mercadoria, segundo Yoshino. Esse
tipo de controle dos pais sobre as filhas, e esse costume de escolher maridos
para elas era muito comum na Inglaterra, assim como Shakespeare descreve
em Sonho de uma noite de verão e Tímon de Atenas. Mas em O mercador de
Veneza, o pai de Pórcia transforma a própria filha no prêmio de uma “loteria”.
126
Basicamente, a regra do testamento consiste em uma espécie de jogo
em que, para ganhar a mão de Pórcia, o pretendente precisa fazer uma
escolha entre três porta-jóias, sendo o primeiro de ouro, o segundo de prata e o
terceiro de chumbo. Somente um deles contém o retrato de Pórcia, e o
pretendente que acertar a escolha e encontrar o retrato, posteriormente pode
se casar com a rica herdeira de Belmonte.
125
Ibdem, p. 34-35. 126
Ibdem, p. 36.
53
Ocorre que, além de impor condições aos pretendentes para adquirir a
mão de sua filha, o testamento do falecido pai de Pórcia também contém
alguns juramentos aos participantes, antes de fazerem a escolha do porta-jóia
correto, e o primeiro deles é “nunca revelar aos outros a escolha feita”, o
segundo é “partir imediatamente se fracassar” e o terceiro, de acordo com
Yoshino o mais oneroso, é “nunca em toda a vida pedir em casamento dama
alguma.”127 Ainda, com relação a este primeiro julgamento, Kenji Yoshino faz
algumas considerações relevantes:
O julgamento dos três porta-jóias vem da Gesta Romanorum, uma coletânea anônima de histórias medievais. Como Freud reconhece no ensaio sobre O mercador, conhecemos esses julgamentos de diversas fontes, entre elas a mitologia grega (as três deusas julgadas por Páris), os contos de fadas (as três irmãs julgadas pelo príncipe, em „Cinderela‟), e mesmo na obra posterior de Shakespeare (as três filhas julgadas por Lear). Parte do prazer dessas histórias está em sua inexorabilidade. A escolha certa é sempre a última – a deusa que fala por último, a empregada encarregada de lavar a louça no canto, a filha que não irá bajular. É seu próprio código – o código da história – que influencia a comédia de Shakespeare de trama mais deliciosa. (YOSHINO, 2014, P. 36)
Logo, em O mercador de Veneza, existem três pretendentes disputando
a mão de Pórcia: o príncipe do Marrocos, que escolhe o porta-jóia de ouro, o
príncipe de Aragão, que escolhe o porta-jóia de prata, e Bassânio, que escolhe
o porta-jóia de chumbo. O porta-jóia de ouro contém uma caveira, e o porta-jóia
de prata contém a figura de um bobo. Portanto, o porta-jóia de chumbo, mesmo
com sua aparência menos atraente é o que contém o retrato de Pórcia.
Nota-se que Bassânio não é nenhum príncipe, e acaba escolhendo o
porta-jóia mais inferior externamente, porém o correto. No entanto, Bassânio
não escolhe o porta-jóia de chumbo sem uma pequena ajuda de Pórcia, a qual
entoa uma canção durante a escolha do terceiro pretendente, canção esta que
nenhum outro pretendente chega a ouvir. O conteúdo da canção sugere qual é
a escolha certa. Além disso, Pórcia traz vários outros indícios durante a peça
que demonstram que está disposta a “trapacear”, dando a entender que “sua
paixão não será governada pelo braço morto da lei”, conforme descreve
127
Ibdem, p. 36.
54
Yoshino.128 A respeito dessa postura afrontosa de Pórcia, é considerável a
seguinte visão do autor citado:
Eu também não culpo Pórcia por trapacear. Seu pai a deixou numa posição insuportavelmente vulnerável. Como veremos ao longo de toda a obra de Shakespeare, as mulheres precisam usar de astúcia para ter influência. É esse o fascínio de uma Rosalinda, uma Viola ou uma Pórcia. No entanto, diferentemente de Rosalinda ou Viola, a astúcia de Pórcia é especificamente aquela utilizada pelos advogados. Como ela própria admite, seu desafio é realizar sua própria „vontade‟ sem violar os termos da „vontade‟ expressa por seu pai. Ela encontra uma solução engenhosa – obedece à letra da lei que diz que ela não pode contar a um pretendente a resposta certa, mas utiliza de seus dons de retórica (na canção e nos discursos que faz a Bassânio) para fazer tudo o que não seja isso. Ao agir assim, ela viola o espírito da lei. Mas a lei de seu pai é tão draconiana que Pórcia tem minha simpatia. (YOSHINO, 2014, P. 40-41)
4.1.2 O julgamento de Antônio
Antes de viajar para Belmonte ao encontro de Pórcia, Bassânio precisou
fazer um empréstimo e para isso recorreu ao amigo Antônio, o mercador de
Veneza. Ocorre que, naquele momento, Antônio não tinha o dinheiro suficiente
para emprestar a Bassânio, visto que investiu toda a sua riqueza em seus
navios mercantes e, por conta disso, Bassânio acabou solicitando ao judeu
Shylock, o qual vive dos juros que recebe como remuneração dos empréstimos
e é desprezado por Antônio. Porém, mesmo assim, Shylock empresta o
dinheiro a Bassânio, e Antônio acaba se tornando o fiador. Esse empréstimo,
segundo José Roberto de Castro Neves, é “estritamente uma transação
comercial”.129
Contudo, para conceder o empréstimo, Shylock exige uma garantia e
com isso, caso o dinheiro não seja restituído ao judeu no prazo estipulado, o
fiador Antônio se compromete a entregar uma libra de sua carne como
penalidade, cerca de aproximadamente 450 gramas, sendo esta cortada de
qualquer parte do corpo dele e sob escolha do judeu. Logo, Antônio oferece
seu próprio corpo como garantia da obrigação. Nesse negócio, Shylock não
128
Ibdem, p. 38, 39, 40. 129
NEVES, José Roberto de Castro, 2016, Medida por medida: O Direito em Shakespeare, 5ª edição revista e ampliada, Edições de Janeiro, p. 129, 130, 134.
55
cobra juros e o advogado José Roberto de Castro Neves indaga se o judeu
tomou essa postura para humilhar Antônio.130 Ainda, reflete o autor sobre essa
estranha negociação entre as partes:
A lição, nesse particular, é a seguinte: é muito difícil capturar com clareza a intenção das partes num negócio, se essa intenção não se encontra claramente registrada. Depois de celebrado o negócio, o documento ganha autonomia. Uma parte pode alegar que o desejo dos contratantes, quando firmaram o acordo, era esse ou aquele, enquanto a outra parte defenderá que havia um propósito distinto. A indefinição prejudicará a uma das partes e, talvez, a ambas. (NEVES, 2016, P. 135)
Antônio aceita a condição de Shylock porque tem certeza de que
conseguirá quitar o empréstimo no prazo pactuado. No entanto, isso não
acontece, e as embarcações do mercador se perdem em alto mar, levando
este a perder o prazo. Com isso, Shylock cobra a libra da carne de Antônio e a
notícia chega rapidamente a Belmonte. Ao tomar conhecimento da notícia,
Bassânio retorna para Veneza na esperança de poder, de alguma forma,
ajudar seu amigo.
Esse acontecimento nos leva ao segundo e principal julgamento da
peça. E isso se inicia com o fato de Shylock levar a questão ao Doge de
Veneza, já que Antônio resiste e tenta fazer uma renegociação com o judeu, a
qual não foi bem sucedida.
Vale dizer que uma libra de carne humana não tem valor algum, mas
mesmo assim Shylock atribui seu próprio valor, com uma finalidade de saciar
uma espécie de “vingança pessoal”, visto que nutre um antigo ódio por Antônio.
Nesse sentido, de acordo com Kenji Yoshino, “Shylock reveste a carne de
Antônio com aquilo que um advogado contratual chamaria de „valor
idiossincrático‟, ou que um leigo chamaria de „valor sentimental‟.”131
Durante o julgamento, Shylock utiliza da lei como instrumento de
vingança, fazendo parte de uma minoria odiada por ser judeu e não cristão. E
ao verificar o inadimplemento de Antônio, o judeu faz uma espécie de
associação da sanção do contrato à legitimidade do Estado. Segundo Yoshino,
130
Ibdem, p. 134. 131
YOSHINO, Kenji, 2014, Mil vezes mais justo – O que as peças de Shakespeare nos ensinam sobre a justiça, 1ª edição, WMF Martins Fontes, p. 42.
56
Shylock expõe corretamente como funciona o Direito na Inglaterra de
Shakespeare, no qual não havia praticamente nada que tivesse o poder de se
contrapor a uma nota promissória autenticada. Porém, quando estava
escrevendo O mercador de Veneza, William Shakespeare estava em uma
época em que o rigor das promissórias estava sendo desafiado vigorosamente
e de uma forma bem-sucedida.132
Mas, embora Shylock esteja ansioso para executar a garantia do
contrato, o judeu acaba sendo surpreendido durante o julgamento. Pórcia, a
rica herdeira e já esposa de Bassânio, acaba se infiltrando no tribunal
disfarçada de “doutor em Direito” Baltasar, juntamente com sua dama de
companhia Nerissa, esta última disfarçada de escrivão de Baltasar.
Antes de iniciar sua condução do processo, Pórcia fica em dúvida entre
quem é o mercador e quem é o judeu, mesmo com a obviedade de se localizar
o judeu, visto que os judeus utilizam trajes muito peculiares, como por exemplo
a gabardina vermelha. Portanto, provavelmente Shylock estava trajado dessa
forma. Logo, de acordo com o advogado Dr. José Roberto de Castro Neves, o
questionamento de Pórcia visava apenas “dar a falsa impressão de
imparcialidade.”133
Pórcia, travestida de Baltasar, decide examinar a nota promissória
discutida em juízo, e não chega a contestar a validade da mesma, mas
questiona a sua execução. E após fazer uma análise, Pórcia acaba declarando,
para a surpresa de todos, que legalmente Shylock tem direito à sua libra de
carne e apresenta ao judeu três alternativas, sendo a primeira a anulação do
contrato resultante no perdão da dívida, ou a indenização financeira, por onde
receberia a totalidade do empréstimo em espécie acrescida de juros, e por fim
o cumprimento preciso do contrato, adquirindo a libra de carne exigida.134
Diante da postura de Pórcia, disfarçada como o jurista Baltasar, José
Roberto de Castro Neves considera sua atuação como de um amicus curiae,
132
Ibdem, p. 44-45. 133
NEVES, José Roberto de Castro, 2016, Medida por medida: O Direito em Shakespeare, 5ª edição revista e ampliada, Edições de Janeiro, p. 146. 134
YOSHINO, Kenji, 2014, Mil vezes mais justo – O que as peças de Shakespeare nos ensinam sobre a justiça, 1ª edição, WMF Martins Fontes, p. 45-46.
57
ou “amigo da corte”, oferecendo seus conselhos no decorrer da controvérsia.
Isso inclusive era muito comum na Inglaterra.135 A respeito das três soluções
trazidas por Pórcia, reflete Yoshino:
As três soluções que Pórcia apresenta a Shylock correspondem aos três porta-joias apresentados a seus pretendentes. Mercê, ou perdão do débito, é semelhante ao porta-joias de chumbo. Ela pede à pessoa que o escolhe que dê sem esperar recompensa. A indenização financeira corresponde ao porta-joias de prata, cuja inscrição fala em merecimento. Shylock mereceria o principal e, pode-se argumentar, uma quantia referente aos juros. Por fim, o cumprimento preciso do contrato – solução extraordinária que exige que uma das partes cumpra escrupulosamente o contrato – corresponde ao porta-joias de ouro, cuja inscrição fala em desejo. Shylock deseja a libra de carne. (YOSHINO, 2014, P. 46)
Como Shylock rapidamente rejeita a primeira solução proposta por
Pórcia, esta tenta convencer o judeu a aceitar a indenização financeira, pela
qual Bassânio propõe efetuar o pagamento de 9 mil ducados para saldar a
indenização, o que resulta em 3 mil ducados da dívida somados a 6 mil
somente para a finalidade de obter a renúncia por parte de Shylock ao direito à
libra de carne.136 Entretanto, mais uma vez o judeu recusa a proposta e exige
sua libra de carne.
É importante frizar que antes de apresentar as três soluções do caso ao
judeu, Pórcia tenta convencer Shylock a ter compaixão de Antônio:
Pórcia – O judeu deve mostrar-se misericordioso.
Shylock – Em virtude de que obrigação? Dizei-me.
Pórcia – A graça do perdão não é forçada;
Desce dos céus como
Uma chuva fina sobre o solo:
Abençoada duplamente,
Abençoa a quem dá e a quem recebe.
É mais forte que a força:
Ela fortalece o soberano melhor que uma coroa,
O cetro mostra-se temporal,
135
NEVES, José Roberto de Castro, 2016, Medida por medida: O Direito em Shakespeare, 5ª edição revista e ampliada, Edições de Janeiro, p. 145. 136
YOSHINO, Kenji, 2014, Mil vezes mais justo – O que as peças de Shakespeare nos ensinam sobre a justiça, 1ª edição, WMF Martins Fontes, p. 48.
58
Atributo de orgulho e majestade,
Onde assenta o temor devido aos reis.
Mas o perdão supera essa imponência:
É um atributo que pertence a Deus,
E o terreno poder se faz divino quando
A piedade curva-se à justiça.137
(SHAKESPEARE, ATO IV, CENA I)
Há nesse argumento de Pórcia uma aplicação do princípio da equidade,
algo muito comum no sistema da commom law, presente na Inglaterra. E um
julgamento por equidade, segundo José Roberto de Castro Neves, busca se
aproximar ao máximo da justiça, diferente de um julgamento exclusivo baseado
na aplicação das leis ao caso concreto.138
A respeito da exigência de Shylock em obter sua libra de carne, mesmo
com as tentativas de Pórcia de convencê-lo a perdoar a dívida ou aceitar a
indenização, José Roberto de Castro Neves entende que se um direito é
exigido com excesso, e consequentemente com prejuízo desnecessário,
configura-se um abuso, resultando na quebra de um dos deveres jurídicos
fundamentais. Ademais, esse ato de recusar a receber o pagamento em dobro
“revela a falta de um interesse legítimo, e portanto, digno de tutela”.139
Por sua vez, Pórcia então determina que Shylock execute a garantia e
nesse momento indaga se o judeu providenciou um cirurgião para estancar o
sangramento de Antônio, e Shylock acaba fazendo uma interpretação literal do
contrato, alegando que não há previsão contratual que conceda ao fiador o
direito a um cirurgião. Dessa forma, Pórcia aproveita a situação e utiliza a
mesma forma literal de interpretação do contrato contra o judeu, alegando que
137
“Portia – Then must the Jew be merciful Shylock – On what compulsion must I? Tell me that. Portia – The quality of mercy is not strain‟d, / It droppeth as the gentle rain from heaven / Upon the place beneath: it is twice blest; / It blesseth him that gives and him that takes: / „Tis mightiest in the mightiest: it becomes / The throned monarch better than his crown; / His sceptre shows the force of temporal power, / The attribute to awe and majesty, / Wherein doth sit the dread and fear of kings; / But mercy is above this sceptred sway; / It is enthroned in the hearts of kings, / It is an attribute to God himself; / And earthly power doth then show likest God‟s / When mercy seasons justice.” (Ato IV, Cena I) 138
NEVES, José Roberto de Castro, 2016, Medida por medida: O Direito em Shakespeare, 5ª edição revista e ampliada, Edições de Janeiro, p. 148. 139
Ibdem, p. 143,149.
59
também não há nenhuma previsão contratual a respeito de retirada de sangue
de Antônio, mas tão somente uma libra de carne.140
Percebendo que foi pego de surpresa, Shylock tenta reverter a situação
e opta por exigir a indenização financeira no lugar da libra de carne. No
entanto, Pórcia imediatamente o interrompe, alegando a perda do direito do
judeu por ter expressamente recusado a proposta em juízo num momento
anterior. Como se não bastasse salvar Antônio da execução da garantia e
deixar Shylock sem a vantagem econômica pleiteada, Pórcia ainda invoca uma
espécie de “Estatuto do Estrangeiro”, determinando que pelas leis de Veneza,
o sujeito estrangeiro que atentar contra a vida de um cidadão, será penalizado
com a perda da própria vida e de suas propriedades.141
Pórcia – Está escrito, nas leis de Veneza que, se ficar provado que um estrangeiro, através de manobras diretas ou indiretas, atentar contra a vida de um cidadão, a pessoa ameaçada ficará com a metade dos bens do culpado; a outra metade irá para a caixa privada do Estado, e a vida do ofensor ficará entregue à mercê do doge que terá voz soberana.
142 (SHAKESPEARE, ATO IV, CENA I)
A respeito da argumentação de Pórcia ao impedir Shylock de reclamar o
direito a indenização após ter manifestado a recusa em juízo, verifica-se em
seu discurso a aplicação de um conceito conhecido como “Estoppel”, advindo
do Direito inglês. Portanto, uma vez que Shylock previamente recusou um
direito, tendo se manifestado dessa forma, ficou impedido de reclamar o
mesmo direito posteriormente, a fim de se impedir a instauração de uma
conduta contraditória.143
Logo, graças aos argumentos inusitados trazidos por Pórcia, a situação
reverte contra Shylock, e a vida de Antônio é salva. Porém, visando poupar
igualmente a vida do judeu, o doge e Antônio estabelecem a condição de
Shylock se converter ao Cristianismo e deixar sua propriedade para a filha
140
YOSHINO, Kenji, 2014, Mil vezes mais justo – O que as peças de Shakespeare nos ensinam sobre a justiça, 1ª edição, WMF Martins Fontes, p. 48-49. 141
Ibdem, p. 49, 50, 51. 142
“It is enacted in the laws of Venice, / If it be proved against an alien / That by direct or indirect attempts / He seek the life of any citizen, / The party „gainst the which he doth contrive / Shall seize one half his goods; the other half / Comes to the privy coffer of the state; / And the offender‟s life lies in the mercy / Of the duke only, „gainst all other voice.” (Ato IV, Cena I) 143
NEVES, José Roberto de Castro, 2016, Medida por medida: O Direito em Shakespeare, 5ª edição revista e ampliada, Edições de Janeiro, p. 151.
60
Jéssica, a qual o judeu repudiou pela fuga dela com o cristão Lorenzo.144
Ambas as condições podem ser consideradas abusivas, tal como a cláusula
contratual pleiteando a libra de carne, visto que Shylock é forçado a perder sua
própria identidade, sendo obrigado a abrir mão de sua religião.145
Pórcia, no papel de julgador, portanto, cria uma acusação sem a
oportunidade de defesa. Shylock acaba ficando encurralado e sem saída.
Ainda, o nosso ordenamento jurídico prevê que uma pessoa não pode ser
privada de todos os seus bens, devendo ficar com pelo menos o mínimo
necessário para a sua subsistência, para que possa viver com dignidade.146
Logo, a retirada dos bens de Shylock também pode ser considerada um abuso
de certa forma.
Nesse sentido, a respeito da astúcia e das incríveis habilidades de
persuasão de Pórcia, reflete Kenji Yoshino:
Onde Pórcia descobre um esquema tão engenhoso que leva Shylock a se enforcar com a própria corda? Creio que ela o herdou do pai, recriando uma regulamentação da lei que, ao fazer dela seu objeto sacrificial, gravou-a de maneira extremamente indelével em sua psique. O pai de Pórcia criou um julgamento em que a menos atraente das três opções continha a resposta certa. Ele garantiu que, uma vez que os indivíduos estivessem no local da decisão, qualquer escolha que fizessem traria enormes consequências. Por fim, o pai de Pórcia era absolutamente implacável com quem escolhia errado. Todos esses elementos estão presentes novamente no julgamento da nota promissória da libra de carne. (YOSHINO, 2014, P. 51)
Por outro lado, José Roberto de Castro Neves traz uma análise um tanto
sombria da personagem:
De início há certa ironia na passagem em que Pórcia fala de misericórdia, pois, a rigor, ela não apresenta compaixão por Shylock. As palavras, embora belas, são apenas palavras, pois o resultado que espera o judeu lhe será desfavorável. A eloquência serve de disfarce. As palavras são de ouro, mas o conteúdo é de chumbo – exatamente como a urna de ouro que continha a caveira. (NEVES, 2016, P. 153)
Ademais, o advogado em sua análise da obra O mercador de Veneza,
afirma que Pórcia como julgadora não é nada imparcial, visto que sua
144
YOSHINO, Kenji, 2014, Mil vezes mais justo – O que as peças de Shakespeare nos ensinam sobre a justiça, 1ª edição, WMF Martins Fontes, p. 51. 145
NEVES, José Roberto de Castro, 2016, Medida por medida: O Direito em Shakespeare, 5ª edição revista e ampliada, Edições de Janeiro, p. 152. 146
Ibdem, p. 152, 153.
61
verdadeira identidade foi ocultada durante o julgamento. Dessa forma, Pórcia é
considerada suspeita para julgar o caso de Shylock, visto que possui interesse
em ajudar Antônio, pelo fato dele ser amigo de Bassânio, este que se torna seu
esposo ao longo da peça.147
Neves ainda diz que “o Direito não alberga os atos orientados por
motivos fúteis.” E na peça verifica-se claramente um abuso de direito por parte
de Shylock, visto que o judeu prefere executar a garantia e adquirir a sua libra
de carne do que receber o pagamento da dívida em dobro. Trata-se de uma
emulação. Shylock quer executar a garantia para saciar seu desejo de
vingança.148
Nesse sentido, reflete o advogado Dr. José Roberto de Castro Neves a
respeito do abuso de direito:
O ordenamento jurídico alberga e protege os direitos quando direcionados a um fim legítimo. Não se deve valer de um direito para prejudicar alguém ou para atingir uma finalidade contrária à lei. O abuso de direito consistirá nesse uso antissocial de um poder jurídico. A parte, vítima do abuso, poderá denunciar e legitimamente resistir à investida de quem se vale de um direito de forma desmesurada. (NEVES, 2016, P. 155)
Ademais, verifica-se em Shylock um apego ao formalismo da letra da lei,
e inicialmente ele utiliza a lei a seu favor, afirmando que a garantia deve ser
executada, tendo em vista que o contrato não foi cumprido conforme pactuado
entre as partes. Por conta dessa fé que possui na lei, Shylock pode ser
considerado como o maior servidor da modernidade, como representante da
crença no mundo moderno levada ao extremo, segundo Paulo Ghiraldelli Jr.
Logo, mesmo quando a lei é utilizada contra ele, Shylock simplesmente cede
às novas deliberações sem reclamar. A crença na lei permanece, e por isso, o
judeu continua convicto de que “lei é lei”.149
Pórcia com suas incríveis habilidades de retórica, ainda utiliza as
mesmas contra seu próprio marido Bassânio. Ainda em Belmonte, com o intuito
de sacramentar a união do casal, Pórcia oferece a Bassânio seu anel e solicita
147
Ibdem, p. 153. 148
Ibdem, p. 155. 149
GHIRALDELLI JR, Paulo, 2006, Imaginário do Bardo: O fundador da modernidade, Revista Entre Livros, São Paulo, v. 2, p. 89, Duetto.
62
como condição de que o amado nunca se separe do mesmo. Bassânio então
promete guardar o anel e Nerissa, dama de companhia de Pórcia, igualmente
entrega a Graciano, seu amado, um anel impondo a mesma condição a ele.
Porém Bassânio e Graciano são “maridos volúveis”, de acordo com Kenji
Yoshino.150 E durante o julgamento de Shylock e Antônio, acabam fazendo
comentários que não agradam suas esposas:
Bassânio - Antônio, desposei uma pessoa que me é tão cara quanto a própria vida. Mas essa vida, a esposa, o mundo inteiro são por mim avaliados ainda em menos do que tua existência. Conformara-me em perder todos, em sacrificá-los a este demônio, só para salvá-lo.
151
(SHAKESPEARE, ATO IV, CENA I)
Pórcia que, embora disfarçada, encontra-se presente no julgamento, fica
imediatamente insatisfeita com o comentário de Bassânio e rebate, dizendo:
“Não ficara muito agradecida vossa esposa, / se acaso aqui estivesse, para
ouvir essa oferta.” (Ato IV, Cena I).152
Graciano, por sua vez, acompanha Bassânio: “Amo deveras minha
mulher; / mas desejara que ela no céu se achasse, para que pudesse / impetrar
junto a algum poder celeste que demovesse este judeu canino.” (Ato IV, Cena
I).153 Mas Nerissa, tão indignada quanto Pórcia, também manifesta sua
insatisfação com o comentário do marido: “Foi bom dizerdes isso em sua
ausência, / pois, de outro modo, o lar ficara inquieto.” (Ato IV, Cena I).154
Kenji Yoshino, ao analisar esses comentários, trata do tema como uma
“falta de percepção romântica masculina” trazida por Shakespeare. Bassânio e
Graciano põem em dúvida seu amor para com Pórcia e Nerissa,
150
YOSHINO, Kenji, 2014, Mil vezes mais justo – O que as peças de Shakespeare nos ensinam sobre a justiça, 1ª edição, WMF Martins Fontes, p. 52. 151
“Bassanio – Antonio, I am married to a wife / Who is a dear to me as life itself; / But life itself, my wife, and all the world, / Are not with me esteemed above your life: / I would lose all, ay, sacrifice them all / Here to this devil, to deliver you.” (Ato IV, Cena I) 152
“Portia – Your wife would give you little thanks for that, / If she were by, to hear you make the offer.” (Ato IV, Cena I) 153
“Gratiano – I have a wife, whom, I protest, I love: / I would she were in heaven, so she could / Entreat some power to change this currish Jew.” (Ato IV, Cena I) 154
“Nerissa – Tis well you offer it behind her back; / Or else the wish would make a troubled house.” (Ato IV, Cena I)
63
respectivamente.155 Por conta disso, ocorre por fim o terceiro julgamento da
peça.
4.1.3 O julgamento dos anéis
Posteriormente, após o julgamento de Shylock e visando dar uma “lição”
em seu marido, Pórcia, ainda disfarçada como Baltasar, exije como uma
espécie de contraprestação pelo salvamento de Antônio o anel de Bassânio.
Essa conduta ousada de Pórcia testa a própria fidelidade do marido, que
inicialmente não quer lhe entregar o anel justamente para não descumprir a
promessa que fizera em Belmonte para a sua amada. Contudo, Pórcia utiliza
de argumentos capazes de mudar o pensamento de Bassânio. A esse respeito,
trata Yoshino:
Pórcia remove retoricamente o anel da esfera privada. Ela enfatiza que „muitos homens‟ utilizam o valor sentimental como uma desculpa para salvar seus bens do mercado público. Ela também ressalta os aspectos „irracionais‟ do valor sentimental dizendo que somente uma „tola‟ condenaria a transação. Além do mais, assim como Shylock, ela apresenta a transação em termos de pegar ou largar, não permitindo a discussão que revelaria as falhas em seu argumento (...) (YOSHINO, 2014, P.53, 54)
Com toda a lábia de Pórcia, Bassânio é convencido a lhe entregar o
anel, juntamente com Antônio que também o convence. Ademais, Graciano
também entrega seu anel a Nerissa, a qual mais uma vez repete o
comportamento de Pórcia.
Contudo, ao retornar a Belmonte para encontrar a esposa
posteriormente, Bassânio é recebido com uma série de questionamentos de
Pórcia, que se mostra, já em sua real aparência como mulher, insatisfeita com
a entrega do anel para o “advogado Baltasar”. Da mesma forma, Graciano é
questionado por Nerissa.
Além dos anéis que representam a união de Pórcia e Bassânio, bem
como de Graciano com Nerissa, há ainda um terceiro anel envolvido na trama.
155
YOSHINO, Kenji, 2014, Mil vezes mais justo – O que as peças de Shakespeare nos ensinam sobre a justiça, 1ª edição, WMF Martins Fontes, p. 53.
64
Esse terceiro anel pertence a Shylock e trata-se de um anel de turquesa.
Jéssica, a filha de Shylock também trocou o anel do pai por um macaco. O anel
também tinha um valor sentimental para Shylock, tendo o judeu recebido o
objeto como presente. A troca feita por Jéssica, portanto, desagrada
extremamente o pai.
Nesse sentido, mais uma vez Kenji Yoshino compara os três anéis aos
três porta-jóias envolvidos na peça:
Os três anéis também lembram os três porta-jóias. Como o porta-jóias de chumbo, o anel de Shylock representa o amor, pelo qual ele está disposto a dar e arriscar tudo o que tem – por mais que essa abundância seja representada como uma „floresta de macacos‟. Em comparação, os anéis de Bassânio e de Graciano são como os porta-jóias de ouro e de prata (no quinto ato ficamos sabendo que o anel de Graciano é feito de ouro). Pórcia reivindica o anel de Bassânio com argumentos familiares provenientes do desejo e do merecimento (...) (YOSHINO, 2014, P. 55)
A respeito da trama do anel, José Roberto de Castro Neves diz que há
uma questão contratual envolvida, visto que a essência da promessa de
Bassânio era em jamais retirar o anel do dedo. Porém o jovem Bassânio não
cumpre sua promessa, tendo falhado em sua obrigação, do ponto de vista
objetivo.156
Ainda, de acordo com Neves a atitude de Pórcia ao exigir o anel de
Bassânio também é abusiva, uma vez que ela tinha consciência de que o
marido não poderia cumprir o solicitado. Logo, Pórcia sabia que Bassânio
perdera o anel por um motivo a que ela mesma deu causa. Ela contribuiu de
forma direta para retirar o anel de Bassânio e mesmo assim omitiu o fato.157 Ela
só revela a verdade muito depois.
4.2 PÓRCIA COMO UMA REFERÊNCIA PARA O DIREITO
156
NEVES, José Roberto de Castro, 2016, Medida por medida: O Direito em Shakespeare, 5ª edição revista e ampliada, Edições de Janeiro, p. 163. 157
Ibdem, p. 164.
65
Em O mercador de Veneza o que parece não é. De acordo com Neves,
tanto a escolha da urna quanto o julgamento e a promessa do anél estão
relacionadas com a aparência. Prova disso é a urna correta ser a de chumbo, a
menos valiosa. Além disso, o advogado é uma fraude e ao exigir o anel, Pórcia
sabe exatamente quais as circunstâncias que levaram Bassânio a lhe entregar
o objeto.158
Ademais, vale destacar as seguintes colocações de José Roberto de
Castro Neves e de Kenji Yoshino a respeito de Pórcia:
Do ponto de vista jurídico, Pórcia é a grande vilã da história. Cabe a ela, menina mimada e preconceituosa, distorcer todas as tramas: ela frauda o processo de escolha das urnas, quando, no momento em que Bassânio faz a sua escolha, manda executar uma música cuja rima indica a escolha de chumbo. Depois, ela se disfarça de advogado. Inicialmente, mostra-se favorável à Shylock no julgamento, mas tudo não passa de um estratagema: acaba por impor uma severa pena ao judeu e protege seus amigos. Pórcia engana até o doge de Veneza, retirando do tribunal a qualidade de um foro onde a lei prevalece, para legitimar sua vingança. É um ato de usurpação gravíssimo (que, a rigor, ocorre sempre que um julgador está mal intencionado). Por fim, Pórcia, por meio de um ardil, retira o anel de Bassânio para, em seguida, constrangê-lo pelo descumprimento da promessa de manter o anel.” (NEVES, 2016, P. 165)
Quando refletimos sobre os três julgamentos conduzidos por Pórcia, sua habilidade retórica deveria nos deixar apreensivos. Shylock é o único que se aproxima dela. Sua eloquência é suficientemente grande para que ele consiga enganar Antônio e Bassânio, fazendo-os aceitar a abjeta nota promissória da libra de carne. Mas Shylock é derrotado no terreno jurídico de maneira decisiva por Pórcia, na célebre cena do julgamento. No início admiro Pórcia porque só ela é capaz de deter Shylock; quando a peça termina, eu me pergunto quem é capaz de deter Pórcia. (YOSHINO, 2014, P 57)
Yoshino também associa a habilidade retórica de Pórcia aos primeiros
advogados, considerados os sofistas da Antiguidade.159
Apesar de Pórcia receber várias críticas por sua imparcialidade, e por
suas condutas dotadas de um certo abuso de direito, Pórcia por muitos séculos
foi apresentada como símbolo de um bom advogado, segundo Kenji Yoshino.
Inclusive na Inglaterra a primeira escola com o ensino de Direito voltado para
158
Ibdem, p. 164. 159
YOSHINO, Kenji, 2014, Mil vezes mais justo – O que as peças de Shakespeare nos ensinam sobre a justiça, 1ª edição, WMF Martins Fontes, p. 57.
66
mulheres recebeu o nome de Escola de Direito de Pórcia, tornando-se
posteriormente uma Faculdade de Direito.160
Segundo o advogado José Roberto de Castro Neves, Shakespeare
coloca a lei no centro do problema em O mercador de Veneza. E a principal
discussão nesse sentido é a incidência da equidade.161 Logo, Neves traz a
seguinte reflexão mais uma vez envolvendo a questão da equidade:
Caso, em O Mercador de Veneza, o tribunal aplicasse a norma, sem o tempero da equidade, Shylock receberia a libra de carne de Antônio, que, em decorrência, poderia ter morrido. Shylock, como responsável pela morte de Antônio, também sofreria a pena capital e perderia seu patrimônio. Seriam duas mortes. A dura lei traria uma consequência radical. (NEVES, 2016, P. 166)
Como se pode notar, a partir de uma obra literária é possível extrair
diversas situações e elementos envolvendo não apenas o universo jurídico,
mas também um leque de interpretações e análises dos mais variados pontos
de vista. E O mercador de Veneza é uma obra que se destaca por conter um
montante de argumentações, aplicações do Direito e julgamentos que podem
auxiliar um jurista a pensar o Direito, se aventurar na Literatura e desenvolver
sua capacidade de interpretação e raciocínio.
160
Ibdem, p. 56. 161
NEVES, José Roberto de Castro, 2016, Medida por medida: O Direito em Shakespeare, 5ª edição revista e ampliada, Edições de Janeiro, p. 166.
67
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio do estudo da obra O mercardor de Veneza, de William
Shakespeare, foi possível perceber, através desta monografia, que a obra do
dramaturgo inglês escrita há mais de 400 anos, nos traz abordagens
interessantes a respeito do universo jurídico, mesmo em uma época totalmente
distinta dos dias de hoje. Através da análise dos julgamentos ocorridos na
peça, foram extraídos diversos argumentos que nos possibilitam refletir até
mesmo de onde Shakespeare retirou tamanha habilidade para abordar
aspectos tais como a aplicação da interpretação literal do contrato, bem como
de institutos oriundos do direito que exigem certos conhecimentos a respeito da
aplicação dos mesmos em um caso concreto.
Inicialmente, foi perceptível as formas de luta e resistência das mulheres
em meio a um mundo machista. O feminismo foi mencionado no primeiro
capítulo com o intuito de descrever brevemente como se deram os principais
movimentos feministas, tais como o feminismo liberal, o feminismo socialista e
o feminismo existencialista ao longo da história. Também foram citadas outras
visões, como por exemplo o ponto de vista de Freud e a Psicanálise.
Logo, a partir do estudo dos movimentos feministas, foi possível
perceber que a mulher antigamente era vista como alguém que deveria
pertencer exclusivamente ao lar, cuidar das tarefas domésticas e dos filhos,
enquanto o homem se aperfeiçoava no estudo e no trabalho. E com o
feminismo, as mulheres passaram a questionar o seu papel, reivindicando
direitos e lutando para conquistar a liberdade feminina.
Com isso, a Literatura nos traz diversas obras em que se encontram
presentes personagens femininas que demonstram essa vontade de ir além do
que era exigido pela sociedade. E, seguindo seus próprios corações, afrontam
as imposições feitas e agem de acordo com suas próprias vontades. Nora
Helmer, em Casa de bonecas de Henrik Ibsen, por exemplo, opta por
abandonar o lar, o marido e os filhos quando percebe que durante toda a sua
vida foi tratada como um objeto, uma boneca que foi condicionada a cuidar do
lar sem nenhuma autonomia sobre si mesma, e que por conta de tomar uma
68
atitude contrária ao desejo de seu marido no passado, mas para salvá-lo, foi
repudiada por tal feito.
Shakespeare, por sua vez, trabalhou em suas obras a figura feminina de
modo semelhante. Conforme citado no primeiro capítulo, o dramaturgo inglês
criou diversas personagens femininas dotadas de astúcia e com essa mesma
vontade de ir além e seguir seus próprios desejos. Julieta Capuleto, Catarina e
Pórcia, por exemplo, são três personagens diferentes, porém com a mesma
força. Julieta, doce, ingênua, jovem e romântica, luta contra o casamento
arranjado para se casar por amor. Catarina defende seus ideais feministas e
seu ponto de vista. E Pórcia, de maneira engenhosa, utiliza diversas situações
a seu favor, para satisfazer seus próprios interesses.
Além da figura feminina, é possível perceber que o Direito também
encontra-se fortemente presente nas obras shakesperianas. No primeiro
capítulo foram trazidos alguns aspectos do universo jurídico presentes em
Hamlet, Otelo, Rei Lear, Tudo está bem quando termina bem, entre outras.
Esses aspectos nos levam a refletir e até mesmo fazer uma comparação com o
Direito brasileiro, de modo que as obras literárias podem contribuir para uma
boa capacidade de raciocínio, interpretação, argumentação e criatividade de
um jurista.
No segundo capítulo, por sua vez, foi preparada uma biografia de
William Shakespeare, tendo sido relatado o período elisabetano, os
acontecimentos mais marcantes na vida do dramaturgo, bem como sua relação
com o Teatro e as suas principais obras. Através desse capítulo, o objetivo foi
conhecer melhor esse mestre da literatura inglesa e as suas contribuições para
as ciências humanas, em especial para o universo jurídico.
Por fim, no terceiro capítulo, foi construída uma análise da obra O
mercador de Veneza de maneira mais densa, de modo que foram analisados
os principais aspectos jurídicos envolvidos no decorrer da peça, e como se deu
o principal julgamento que ocorre quando o judeu Shylock exige a execução da
garantia contratual que estipula uma libra de carne humana. Pórcia, uma
mulher, após ousar em se disfarçar de jurista, utilizando trajes masculinos,
aplica suas incríveis habilidades de retórica e consegue impedir a execução da
69
garantia do contrato, além de reverter a situação de Shylock e condená-lo a
perda dos bens. Além disso, Pórcia burla a regra exigida no testamento de seu
pai para se casar com Bassânio, e posteriormente testa a fidelidade do próprio
marido fazendo o mesmo retirar o anel dado de presente por ela.
Por conta das atitudes de Pórcia durante a peça, a personagem feminina
mais astuta de Shakespeare poderia ser uma excelente advogada, tendo em
vista a sua capacidade de questionar, suas habilidades de argumentação e sua
lábia. Shakespeare mostra que a mulher também pode desenvolver a mesma
capacidade de raciocínio que o homem. Porém, a interferência de Pórcia no
julgamento somente foi possível principalmente porque ela estava disfarçada
como homem.
Através dos estudos feitos na presente monografia, podemos extrair
como principal conclusão que o direito das mulheres deve ser respeitado e
refletido, especialmente nos dias atuais, bem como que a Literatura, o Teatro e
a Arte em geral podem contribuir para o desenvolvimento de profissionais mais
cultos, críticos, humanistas e criativos. Logo, existem diversas questões
envolvendo o âmbito jurídico inseridas não somente em O mercador de
Veneza, mas também em várias obras de autoria de William Shakespeare.
Curioso e interessante é como a Arte pode ser uma ponte de ligação para
ciências como o Direito, levando o leitor a refletir determinadas situações. Além
do prazer de se ler uma obra literária, podemos ir muito além, analisando cada
aspecto e cada personagem envolvido na trama, e através dessa análise,
aplicar entendimentos ao nosso cotidiano.
70
REFERÊNCIAS
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TAMM, Carlos. Tragédias: Chama breve no breu. Revista Entre Clássicos William Shakespeare nº 2 Entre Livros. São Paulo, nº 2, ISBN 8599535-10-2, Duetto, p. 34-53, Fevereiro, 2006.
YOSHINO, Kenji, 2014, Mil Vezes Mais Justo – O que as peças de Shakespeare nos ensinam sobre a justiça, 1ª edição, WMF Martins Fontes.