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Cesar Augusto M. de AlencarCesar Augusto M. de AlencarCesar Augusto M. de AlencarCesar Augusto M. de Alencar
A A A A ccccaricatura daaricatura daaricatura daaricatura da philosophaphilosophaphilosophaphilosopha
Ou de como Aristfanes Ou de como Aristfanes Ou de como Aristfanes Ou de como Aristfanes encenaencenaencenaencena um um um um SSSScrates prcrates prcrates prcrates pr----socrticosocrticosocrticosocrtico
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Dezembro de 2013
A caricatura da philosopha
Ou de como Aristfanes encena um Scrates pr-socrtico
Cesar Augusto M. de Alencar
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa
de Ps-Graduao em Lgica e Metafsica, PPGLM,
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo
de Mestre em Filosofia.
Orientador(es): Carolina de Melo Bomfim Arajo e Maria de Ftima Sousa e Silva
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Dezembro de 2013
A caricatura da A caricatura da A caricatura da A caricatura da philosophaphilosophaphilosophaphilosopha
Ou de como Aristfanes Ou de como Aristfanes Ou de como Aristfanes Ou de como Aristfanes encenaencenaencenaencena um Scrates pr um Scrates pr um Scrates pr um Scrates pr----socrticosocrticosocrticosocrtico
Cesar Augusto Mathias de Alencar
DISSERTAO SUBMETIDA AO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LGICA
E METAFSICA (PPGLM) DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO,
COMO PARTE DOS REQUISITOS NECESSRIOS OBTENO DO TTULO DE
MESTRE EM FILOSOFIA.
Examinada por:
________________________________________________ Profa. Dra. Carolina de Melo Bomfim Arajo
(orientadora UFRJ)
________________________________________________ Profa. Dra. Maria de Ftima Sousa e Silva
(co-orientadora Universidade de Coimbra)
________________________________________________ Prof. Dr. Olimar Flores Jnior
(UFMG)
________________________________________________ Profa. Dra. Lusa Severo Buarque de Hollanda
(PUC-RJ)
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
DEZEMBRO DE 2013
ALENCAR, C. A. M.
A caricatura da philosopha, ou de como Aristfanes encena um Scrates pr-
socrtico/ Cesar Augusto Mathias de Alencar. Rio de Janeiro: PPGLM/UFRJ,
2013.
XXII, 132 p. 210: il.; 29,7 cm.
Orientador(es): Carolina de Melo Bomfim Arajo e Maria de Ftima Sousa e
Silva
Dissertao (mestrado) UFRJ/ IFCS/ PPLM, 2013.
Referncias Bibliogrficas: p. 198-210.
1. Filosofia Antiga. 2. Scrates. 3. Aristfanes. 4. Comdia Nuvens. I. Arajo,
Carolina de Melo Bomfim. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, IFCS,
PPGLM. III. A caricatura da philosopha, ou de como Aristfanes encena um
Scrates pr-socrtico.
ResumoResumoResumoResumo
Tendo em vista o estado atual do problema de Scrates, ou seja, sobre a melhor forma de lidar com as fontes do socratismo, o presente estudo almeja apresentar a necessidade de pr o testemunho da comdia de Aristfanes, sobretudo em Nuvens, como ponto de partida no apenas para uma possvel resoluo do problema, mas tambm para a prpria compreenso daqueles testemunhos que tradicionalmente so tidos por fidedignos, ou que oferecem ao estudioso as maiores possibilidades para reconstruir o que foi a filosofia de Scrates. Nesse sentido, a investigao deve compor-se de duas partes: a primeira, na qual se far por trazer o problema de Scrates, seus impasses e suas novas elaboraes, para que se perceba de que modo a comdia de Aristfanes se apresenta margem dos impasses e no centro destas novas elaboraes; a segunda, quando a comdia de Aristfanes nos ocupar propriamente, quer seja em vista de melhor compreend-la em suas intenes, quer seja pela anlise da pea que aqui mais nos importa, Nuvens, a fim de identificar na caracterizao de Scrates as provveis e verossmeis intenes que a presidiram. No parece difcil perceber, ao final, que em Nuvens temos uma crtica do poeta plis e aos seus vcios, como se v em outras comdias, e uma crtica a Scrates, centrada sobretudo na forma injusta e equivocada pela qual seu ensino poderia ser apreendido, em decorrncia de sua pouca preocupao poltica. Sendo uma crtica, evidente, no poderamos tomar a caricatura de Scrates como em flagrante desacordo com sua figura histrica: ao contrrio, a prpria comdia que garante uma decisiva apreenso inicial de quem teria sido Scrates e do que foi sua filosofia.
Palavras-chave: Filosofia Antiga. Scrates. Aristfanes. Comdia Nuvens.
AbstractAbstractAbstractAbstract
Given the current state of the problem of Socrates, i.e., on how best to deal with the sources of the Socraticism, this study aims to present the need to put the testimony of Aristophanes comedy, especially in Clouds, as a starting point not only for a possible resolution of the problem, but also to the very understanding of those testimonies which are traditionally regarded as being reliable, or that offer the student the greatest opportunity to rebuild what was the philosophy of Socrates. In this sense, the investigation must consist of two parts: the first, in which it will bring to the problem of Socrates, their predicaments and their new elaborations, so that we know how the Aristophanes comedy presents the margin of impasses and in the center of these new elaborations; the second, when the Aristophanes comedy properly occupy us, whether in order to better understand it in their intentions, either by analysis of the play that matters most here, Clouds, in order to identify the characterization of Socrates probable and credible intentions that have presided. It's not difficult to realize in the end that we have Clouds in a review of the poet to the polis and its vices, as seen in other comedies, and a critique of Socrates, focusing particularly on unfair and wrong for which their teaching could be seized, due to their lack of political concern. As a critique, it is evident, could not take the caricature of Socrates and in flagrant violation of their historical figure: instead, it is the comedy that guarantees a decisive initial apprehension of those who would have been Socrates and what was his philosophy.
Keywords: Ancient Philosophy. Socrates. Aristophanes. Comedy Clouds.
AGRADECIMENTOSAGRADECIMENTOSAGRADECIMENTOSAGRADECIMENTOS
Meus mais sinceros agradecimentos Carolina Arajo e Maria de Ftima, pela amizade e a sempre presente
orientao deste trabalho, e tambm pela pacincia em lidar com o meu lento processo de gestao. Dedico a vocs esta
minha concepo, vinda luz em meio ao Pensatrio. Agradeo ainda ao Olimar Flores e Lusa Buarque, pela leitura cuidadosa e pelos comentrios valiosos como seus
autores. Tambm agradeo aos amigos do caminho, pelos adorveis encontros e a paciente audio que tiveram com relao aos
meus interesseiros estudos sobre Scrates. Tambm UFRJ e ao Capes, pela bolsa importante ao meu projeto, ainda que prejudicada pela instabilidade do auxlio.
Um cordial agradecimento ainda s caridosas almas do mundo virtual, sem as quais jamais poderia ter tido acesso s
obras fundamentais para meu estudo, em terras desrticas intelectualmente como as desse nosso Brasil.
E last but not least, agradeo em especial minha famlia; Raquel, pela companhia na dor e no amor; Jlia, minha
pequena fonte de inspirao; e ao sobrevivente, por me dar a chance de uma segunda navegao.
. Todos vocs, de algum modo, so parte desse ciclo que se fecha.
Cabe a ele encontrar a verdade. Mas de que modo? Incerteza grave, todas as vezes em que o esprito se sente
ultrapassado por si mesmo; quando ele, o pesquisador, ao mesmo tempo a regio obscura que deve pesquisar e onde toda a sua bagagem no lhe servir para nada. Procurar?
No apenas: criar. Est diante de algo que ainda no existe e que s ele pode tornar real, e depois fazer entrar na sua luz.
Marcel Proust, No caminho de Swann.
SUMRIOSUMRIOSUMRIOSUMRIO PRLOGO ________ 11 ATO I. O problema metodolgico da lida com as fontes do socratismo ________ 16 Captulo 1 Scrates e as fontes antigas ________ 16
1. O fato da condenao de Scrates e o contexto da Guerra em Atenas 2. O ato da acusao contra Scrates e seu carter poltico 3. A resposta dos socrticos e a razo de ser da condenao 4. A questo socrtica da lida com as fontes
Captulo 2 O problema das fontes em geral ________ 32
Tpico I. O impasse ctico da crtica moderna: status quaestionis ________ 32 5. A situao das fontes e a busca pela melhor forma de lidar com elas 6. Dorion e a crtica ctica: o problema de Scrates infundado 7. A metodologia de Gigon e seus impasses quanto ao Scrates histrico 8. Kahn, Havelock e ainda o ceticismo
Tpico II. A historicidade das fontes e a reprise do problema de Scrates _____ 46 9. O trato desejvel com o fenmeno histrico do socratismo 10. As indicaes de Taylor sobre uma considerao das fontes 11. A reflexo de Vilhena sobre os lgoi sokratiko 12. A condio histrica dos lgoi sokratiko 13. Para alm do ceticismo: a metodologia histrica de Vilhena
Tpico III. Novo ponto de partida: a holistic solution do problema de Scrates _59 14. A proposta de Montuori
Captulo 3 Aristfanes como fonte: o objeto deste trabalho ________ 62
15. A comdia e sua condio de base para a investigao socrtica 16. Dover e o descrdito com relao caricatura de Scrates 17. Crtica ao descrdito de Dover: Waerdt e Nuvens 18. A necessidade do estudo de Aristfanes
ATO 2. Scrates pela comdia de Aristfanes ________ 74 Captulo 1 Aristfanes e a Comdia ________ 74
19. Acarnenses e a tnica dominante da potica de Aristfanes 20. Cavaleiros e a crtica por trs da providncia salvadora 21. Consideraes sobre o contexto poltico-cultural da Atenas da poca a
partir das duas peas analisadas: o teor crtico em Nuvens e Vespas 22. Vespas e a reflexo sobre o papel do lgos com relao ao hbito e
natureza 23. Sntese de alguns traos da potica de Aristfanes a partir das trs peas
Captulo 2 A caracterizao de Scrates em Nuvens a filosofia pela comdia __ 114
24. A teoria da persona literria de Diskin Clay Tpico I. Unidade na multiplicidade de perspectivas: o poeta e as personas ___ 115
25. As trs perspectivas sobre Scrates em Nuvens: a perspectiva (a) 26. Uma digresso sobre as elaboraes acerca do lgos pelos homens de
estudo 27. O tipo do sofista pela comdia 28. A perspectiva (b) do discipulado 29. As distines entre (a) e (b) e a crtica de Aristfanes plis
Tpico II. O ensino de Scrates ________ 138 30. As bases fisiolgicas da sopha de Scrates 31. A sabedoria das coisas divinas 32. Dialtica socrtica e a prova da inexistncia de Zeus 33. A garantia do bom resultado do ensino pelo coro de deusas: Scrates
educador Tpico III. Foi o ensino de Scrates corruptor? ________ 160
34. O interldio ao ensino: a parbase. 35. De volta cena: o fracasso da educao de Estrepsades 36. O dilogo de pai e filho e a sabedoria de Scrates 37. O ensino de Fidpides: os dois Lgoi 38. As consequncias da injustia
XODO ________ 183 APNDICE (Snteses das peas analisadas) ________ 189
Bibliografia Consultada ________ 198
11
PRLOGO
Pois assim na verdade, atenienses. Onde quer que um homem ocupe o lugar que lhe parece melhor, a
deve ele permanecer e arriscar-se sem pensar na morte ou no que quer que seja.
Plato, Apologia.
Nunca demais iniciar um estudo sobre o pensamento antigo tendo em vista a, por
vezes incmoda, questo sobre o seu valor para os dias atuais. Mas se antes a tomava assim
mesmo, como incmoda, hoje percebo que ela no seno ausente de sentido, mostrando-
se como um modo de aventar o preconceito sempre latente de que o contemporneo de
maior valor porque nos diz respeito mais propriamente, porque fala a nossa lngua. Nada
mais enganoso que pensar o nosso tempo como mais esclarecido, ou como que suspenso no
ar, sem tradio e histria, sem os fatos e as ideias que, se poderia dizer, desembocaram no
atual estado de coisas. A qualquer homem dedicado ao estudo com seriedade, uma pergunta
acerca do sentido e do valor das investigaes sobre nossa tradio e histria soaria como
se fosse preciso justificar a importncia de se estudar a gua para entender a vida martima.
Soaria despropositada, para dizer o mnimo.
Se a gua o ambiente no qual a vida martima se desenvolve, que lhe abrange e lhe
antecede, a ns, brasileiros, a matriz de nossa cultura ocidental, por intermdio de Portugal,
juntamente com a africana e a indgena, nos abrange e nos antecede, constituindo, por esse
motivo, nossa prpria forma de existir. No possvel, portanto, realizarmos com proveito
algo como a Filosofia sem que se remonte s suas origens. Um olhar que se volta para os
gregos est inevitavelmente implicado no tipo de investigao que almeja compreender a
origem e os fundamentos de aspectos da cultura ocidental pois entre eles foram criados e
recriados modos de vida e de viver cuja influncia sobre os mais diversos povos inegvel:
povos que poderiam ser tomados, segundo Jaeger, como helenocntricos1.
Ao que parece, porm, s nos filiamos a esta tradio por pura excentricidade. No
difcil perceber, apesar de toda a reserva que se deve ter por abstraes sociais, que somos
um povo que padece de falta de memria, sem um interesse vvido e reverente em sabermos
1 Cf. JAEGER, Paidia, p. 5
12 Cesar A. M. de Alencar
de que maneira viemos parar aqui. O Quaresma de Lima Barreto talvez o smbolo potico
mais eloquente dessa nossa ausncia: vexado que foi por ser homem dado aos livros sem ter
diploma, um pedantismo naquele tempo e ainda hoje, procurou de todas as formas reunir e
apreender a tradio e a histria que constitua nosso pas, a despeito daquele povo que no
guardava as tradies de trinta anos passados. Seu relatrio no poderia ser outro: entre
ns tudo inconsistente, provisrio, no dura2. Um homem assim, to preocupado com o
que o restante da sociedade considera sem valor justamente por nenhum valor lhe tributar,
s poderia mesmo terminar mal.
Tambm a Histria da Filosofia em sua origem marcada por igual incompreenso.
Mas j aqui no falamos de Brasil. Os gregos podiam ser tudo menos povo sem memria.
O fato ocorrido com aquele que considerado o pai da filosofia, a condenao e morte de
Scrates, nos deixa perceber, contudo, que a ignorncia e a falta de apreo pelo saber, antes
de dizer respeito memria, podem ser causas letais da intolerncia. A situao na qual tem
origem a Filosofia caracterizada por certa intolerncia da plis com relao ao modo de
vida do filsofo, quase sempre parte dos seus interesses ou, quando ele se v interessado,
para prestar-lhes um servio de pouco agrado: sua crtica e seu julgamento, sob a gide de
princpios que a transcendem sendo ignorados, por isso, por quem no est colocado em
sua busca constantemente. Aquele que buscou o bom juzo sobre si e sobre a plis terminou
condenado em juzo.
Mas, convenhamos, no primeira vista que os homens de estudo, e o filsofo em
especial, se veem condenados sob a tica da intolerncia. O filsofo, tal como o Quaresma
de Barreto, um tipo deveras ridculo, e quem o ouve falar de incio sente antes compaixo
que averso. No poucas vezes, Scrates foi retratado exatamente dessa forma, e ele mesmo
posto, pela voz de Plato em Repblica, a examinar a natureza e a condio do filsofo na
cidade: para ele, seu pensamento no demoraria em ser tido, aos olhos da maioria, de risvel
(473c) em algo a provocar indignao (501e). Sabendo de sua condio, Scrates no podia
seno procurar eliminar ao mximo os traos ridculos em seu lgos na Apologia de Plato,
fosse ao pontuar sua falta de trato com os modos judiciais (17b), fosse pelas lamrias por
comizerao, comuns aos rus em defesa, e que faziam de Atenas, pela absolvio desses
homens, verdadeiro alvo do ridculo (35b).
2 BARRETO, Triste fim de Policarpo Quaresma, I, 1-2
A caricatura da philosopha 13
Mesmo assim, ou talvez por esse motivo, sua condenao foi inevitvel. Ao tomar a
iniciativa de afastar-se do ridculo, ele no pde seno transparecer averso. A linguagem
altiva que Xenofonte atestara em sua Apologia (I, 1) trouxe aos seus ouvintes a impresso
de que no s estava o filsofo parte da cidade, como tambm era incapaz de temer o que
quer que fosse, mesmo a morte. Por no conhecerem as razes de ser de tal comportamento,
de sua altivez e coragem, os juzes no puderam seno rememorar na pea de Aristfanes
quais teriam sido aquelas motivaes que desconheciam. E Scrates o sabia: ele mesmo
procurou evidenciar os efeitos de Nuvens a pea em que ele tomado como um sofista
que investiga os cus, nega os deuses tradicionais e ensina a causa mais fraca ser mais forte
(Plato, Apologia, 18b) sobre a acusao ressente, inferindo da comdia o que s muito
grosseiramente poderia ser dito sobre sua atividade investigativa. Mas toda a explicao
oferecida na Apologia de Plato no poderia mudar a opinio daqueles que do valor ao que
menos importa, preterindo o saber da Filosofia nascente. Se pelas bandas de c, denuncia
Barreto, das aes intolerantes no esto livres os homens de estudo, sobretudo o filsofo,
nenhum estudo de Filosofia tem uma abrangncia existencial significativa sem levar em
conta a morte que lhe d sentido.
No se encontra em Nuvens de Aristfanes seno a mais antiga caracterizao, dada
por caricatura, da filosofia ou da philosopha, que Scrates iniciara3. Por esse motivo, sua
considerao deve ocupar aquele que almeja compreender no s o pensamento socrtico,
mas tambm a forma pela qual a comdia, que exerce por sua poesia ao mesmo tempo uma
representao e uma crtica, ps em cena o modo de vida filosfico, perigosamente parte
das preocupaes com a plis. na comdia, em Aristfanes especialmente, que se tem de
ir buscar a denncia poltica que se levanta contra o filsofo, naquelas consequncias ditas
injustas que sua prpria condio encerraria. Antes das pinturas criadas pelos socrticos,
a poesia que j nos deixa entrever o Scrates que ser condenado um Scrates, por assim
dizer, pr-socrtico.
3 Usaremos aqui Filosofia como meno ao campo de saber instituicional das nossas cincias humanas, e filosofia como o tipo de saber que se atribui origem a Scrates e que se desenvolveu entre os gregos a partir do mestre de Plato. A palavra em grego philosopha, quando utilizada, diz respeito exatamente a esta ltima, com a ressalva de que a presena do termo em grego faz marcar seu carter originrio nos crculos socrticos; ver em seguida, Ato I.
14 Cesar A. M. de Alencar
Nosso objetivo est, pois, em oferecer uma base inicial de estudos sobre Scrates na
Histria da Filosofia, aventando o carter originrio do tipo de saber e do modo de vida que
o mestre de Plato realizou. Tendo em vista o problema de Scrates acerca da melhor lida
com as fontes de sua filosofia e a forma como pretendemos orientar-lhe uma resposta,
ser preciso dividir nosso trabalho em duas partes.
Na primeira parte, pretendo resgatar o debate realizado em torno ao problema das
fontes de Scrates, de maneira a perceber seus desdobramentos mais recentes em duas
posturas bsicas: a do ceticismo de Kahn e Dorion em relao ao conhecimento que se pode
ter do Scrates histrico; e aquela outra, cuja inteno est em buscar as bases histricas do
pensamento socrtico a partir das fontes, na qual os scholars mais destacados so Vilhena e
Montuori. Ao avaliar a postura ctica, chegaremos concluso de que ela no s se
contradiz, mas tambm abre o caminho para a prpria investigao histrica da segunda
postura. Nesse sentido, a primeira parte deste estudo encerrar com a certeza de que o
caminho a ser trilhado pelo investigador da filosofia de Scrates tem de partir da
considerao histrica de uma lida com as fontes, no sem antes constatar duas coisas: (a) o
fato da condenao de Scrates, mencionado acima, ser o ponto de apoio que nos permite
lidar historicamente com fontes to distintas; (b) o dilogo que Plato estabeleceu com
Aristfanes, a partir do fato da condenao de Scrates, nos apresenta um caminho profcuo
para se perceber o que significou filosoficamente o socratismo.
A segunda parte desta dissertao trabalhar ento a comdia de Aristfanes, a fim
de analis-la a partir do duplo aspecto levantado pela postura histrica: a de que preciso,
para compreender as intenes de um autor em relao a Scrates, realizar uma anlise de
sua obra enquanto tal, a fim de obter uma compreenso de sua viso de mundo, para depois
relacion-la ao tipo de caracterizao que este mesmo autor fez da figura e do pensamento
de Scrates. O procedimento utilizado para obter as caractersticas da produo potica de
Aristfanes e o lugar da caricatura de Scrates em sua obra nos levar tambm a uma tarefa
dupla: para se entender a potica de Nuvens, ser feita uma anlise prvia das trs peas que
lhe esto mais prximas e que, acredito, podem nos oferecer os elementos tanto da inteno
quanto da composio do comedigrafo; feito isso, o segundo momento, propriamente da
anlise de Nuvens, nos permitir aferir toda a sua significao ao caricaturar a philosopha,
a partir de possveis dilogos com os socrticos, sobretudo Plato.
A caricatura da philosopha 15
Vale dizer que no se trata de procurar um mnimo denominador comum, ou aquilo
que haveria de concordncia entre as duas fontes, pois a concordncia, j dizia Vilhena, no
garantia de que haja alguma realidade histrica para alm. Ao contrrio, aquilo que est
de certa forma para alm das fontes o que fundamenta a discusso entre elas, e sem a qual
elas mesmas, enquanto expresses textuais, nada significariam tal como a multiplicidade
de concepes acerca da justia no impedem a busca pelo seu fundamento, antes a pe
mesmo como problema frente ao exerccio filosfico. No se trata de derivar do Scrates de
Aristfanes o que est em Plato ou vice-versa, mas de ver o que havia permitido ao poeta
tecer suas crticas ao filho de Sofronisco, sendo depois justificado pelos escritos socrticos
pois que Scrates ele mesmo nada deixou exceto o impacto de sua personalidade. Trata-
se de averiguar a condio, ainda que primeira vista paradoxal, frente qual a literatura
sobre Scrates nos lana, na medida em que pouco duvidoso que Scrates seja algo
mais ou algo menos do que estas excrescncias e pontos de vista unilaterais nos dizem a
seu respeito4. O maior dos paradoxos socrticos est justamente em que, para ns, Scrates
e a literatura socrtica confundem-se numa s. Se formos alm, veremos que esse paradoxo
est inevitavelmente na origem da prpria filosofia e para ele, a comdia um escape
digno de nota.
Nota de traduo: todas as tradues de outros idiomas aqui apresentadas so de minha
autoria; as do grego sero indicadas tanto sua procedncia quanto a situao em que optei
por modific-las.
4 VILHENA, O Problema de Scrates, p. 118
16 Cesar A. M. de Alencar
ATO I
O problema metodolgico da lida com as fontes do socratismo
CAPTULO I
Scrates e as fontes antigas
atrs/das sobras da realidade/vai surgindo a lucidez.../
Morre-se mais de uma vez/a culpa uma eternidade:/ dura pouco a mocidade/dura bem mais o que fez.
Bruno Tolentino, A balada do crcere.
Scrates ainda permanece, para a Histria da Filosofia, uma espcie de enigma sem
soluo, daquelas questes em que muito se diz e pouco se tem por certo, mas ao qual todo
filsofo deveria retornar vez ou outra, visto ter sido ele tradicionalmente considerado como
sendo o modelo do filosofar5: embora enigmtico, h de persistir como o paradegma6 mais
elevado de introduo Filosofia o que j nos constrangeria ao apelo de, compreendendo
sua poca e o modo como se estabeleceu perante ela, entendermos ns mesmos e o lugar
que nos cabe enquanto filsofos, nesta ou em qualquer sociedade. Isso porque se a tradio
que lhe confere o ttulo de pai da filosofia estiver correta e acredito estar, no sentido de
5 ADORNO oferece, neste ponto, uma sntese do que estou a tomar como tradio: Complexo e difcil o estudo dos vrios modos como ao longo dos sculos, mais do que se interpretou, se evocou Scrates, como o nome Scrates (aquilo que pouco a pouco se foi entendendo por socratismo) foi retomado ao sabor dos tempos, das exigncias, das interrogaes, das situaes polticas, constituindo assim, por um lado, diferentes modos de pensar, por outro lado, particularmente em pocas de crise, um smbolo, o smbolo do prprio filosofar, entendido como conscincia crtica de si; em Scrates, p. 135. A certa unanimidade entre os scholars acerca da importncia de Scrates como paradigma do filosofar ressoa, como em muitas anlises disponveis sobre o filsofo, tambm nas palavras do editor do recente The Cambridge Companion to Socrates (2011), DONALD MORRISON, p. xiii: Socrates is the patron saint of philosophy. Although he was preceded by certain philosophical poets and surrounded by some learned sophists, he was the first real philosopher. If you wish to know What is philosophy? one good answer is that philosophy is what Socrates did and what he started. Ver ainda a exposio sistemtica que VILHENA fez desta longa tradio, em suas duas obras mais importantes sobre Scrates: O problema de Scrates, p. 28-105; Socrate et la legende platonicienne, cap. 1; e as pginas de MONTUORI sobre a decisiva e importante relao que se estabeleceu, desde a morte do filsofo, entre Scrates e o exerccio da filosofia: Cf. o artigo Il problema Socrate nella storia della cultura occidentale, in The Socratic Problem, p. 10-74, sobretudo p. 71ss. 6 J os gregos haviam entendido a fora do paradegma, do modelo, na forma de educao (paidea) de seus cidados, entendimento que pode ser encontrado na poesia de HOMERO (em que, por exemplo, o paradigma de Orestes indicado por Atena a Telmaco, na Odissia, v. 295-302). No de admirar que XENOFONTE, ao justificar a m reputao de Scrates, fundamentasse sua condio na prtica imitativa dos que estavam sempre ao seu lado, j que o seu comportamento levava os que com ele conviviam a confiarem que, imitando-o, poderiam vir a ser como ele, Memorveis, I, 2, 4. Esta ser, por sinal, uma das justificativas que Scrates dar em sua defesa para a m fama que granjeou, segundo PLATO, Apologia, 23b-e.
A caricatura da philosopha 17
que philosopha, enquanto termo que designa o tipo de saber distinto da sopha concebida
at ento, surge somente nos meios socrticos, como bem atestado por trabalhos recentes7
e se levarmos em conta ter sido o filho de Sofronisco, nas palavras de Dorion8, o primeiro e
mais clebre mrtir desse novo tipo de saber, condenado pela plis ateniense a beber a
cicuta, por haver praticado um ensino que afrontava as instituies polticas e religiosas, tal
como a poesia as defendeu no clamor de Meleto, ento o exerccio de avaliar no que
consistiu esse novo tipo de saber deveria ocupar os nossos maiores esforos, sobretudo
porque a investigao sobre a origem da Filosofia no parece estar dissociada da inevitvel
colocao de sua prtica como problema.
No entanto, nada temos do prprio Scrates que nos possa dizer, ou dar-nos alguma
noo do que foi de fato sua filosofia. No h um texto em que Scrates tenha mostrado no
que consistiu sua atividade. Se queremos sab-lo, a busca se inicia a partir das fontes que se
propuseram a descrev-la por meio da sua caracterizao, por assim dizer, tanto sob a tica
da acusao, como na comdia, preservada em certos fragmentos e mais decisivamente em
Nuvens de Aristfanes, e como no discurso retrico de Polcrates, do qual no possumos
seno menes indiretas; quanto sob o olhar dos que o tinham por modelo, no s em
matria de filosofia mas de vida, tendncia perceptvel nas obras de Plato e Xenofonte, as
duas mais ricas de contedo9. A tradio da Filosofia, por sua vez, ao tomar Scrates por
modelo do filsofo, filiou-se aos que lhe elogiavam, mais que todos a Plato, e o fez por
nenhum motivo seno por se situar ao lado daquele saber de certo modo contraposto ao da
poesia e ao da retrica. Mas negar a existncia ou validade dos testemunhos contrapostos
filosofia nada entender sobre a validade e o sentido do que Scrates fez por iniciar.
No abandonemos, pois, fonte alguma. Se so Aristfanes e Plato e Xenofonte que
nos falam diretamente com mais riqueza de detalhes sobre Scrates; e se somos capazes de
perceber algumas contradies e oposies de opinies entre eles, mas tambm similitudes
7 preciso notar as importantes contribuies de BURKERT, Platon oder Pythagoras? Zum Ursprung des Wortes Philosophie, in Hermes 88, p. 159-177, 1960; como tambm de HADOT, O que a filosofia antiga? p. 27-68; alm de ROSSETTI, Introduo filosofia antiga, p. 31-40; e FREDE, Phylosophy, in The greek pursuit of knowledge, p. 1-17. Analisei o tema em um trabalho anterior, em que chego s mesmas concluses: cf. ALENCAR, Scrates e a origem da filosofia. Monografia (Graduao em Filosofia), Instituto de Filosofia e Cincias Sociais UFRJ, 2010. 8 DORION, Compreender Scrates, p. 9 9 No nos ser possvel avaliar aqui a excelente contribuio de GIANNANTONI, em sua compilao dos testemunhos sobre Scrates oriundos dos demais comedigrafos e dos socrticos ditos menores; ver Socratis et Socraticorum Reliquiae. Naples, 1990.
18 Cesar A. M. de Alencar
nos retratos desenhados; e se constatamos, por fim, que eles no falam de Scrates seno a
partir de sua prpria viso deveramos ento perguntar: em que medida podemos hoje
saber qual foi propriamente a filosofia que Scrates iniciou? Haveria uma possibilidade de
compreend-la de modo a podermos abarcar as muitas contradies e similitudes que as
fontes apresentam quando cotejadas? Em outras palavras, h algo, por assim dizer, comum
a cada uma das fontes, no no sentido da concordncia de opinies, mas na constatao de
fatos, de feitos10 que nos levem a alcanar alguma certeza para alm das verses que as
perspectivas dos autores nos impem, e que nos deixem medir at onde vai seu autor na
atribuio que faz do que diz ser socrtico?
1. O fato da condenao de Scrates e o contexto da Guerra em Atenas
De certo sobre Scrates, como se disse11, temos apenas que ele foi condenado pela
Atenas de seu tempo. Em outras palavras, encontramos de comum entre as fontes o fato da
sua condenao12. Contudo, se quisermos conhecer-lhes a motivao, ficamos novamente a
cargo dos testemunhos ao menos da forma com que interpretavam os termos da graph
apresentada ao tribunal em 399 a.C. e que se pode reproduzir, sem variaes significativas
entre as poucas transcries que dela dispomos, tal como est em Digenes Larcio (Vidas,
II, 5, 40 traduo de Kury, com modificaes)13:
T1. : , , : . .
10 Utilizaremos aqui o sentido mais elementar da palavra fato, do latim factum, particpio passado de facere, fazer, a fim de dizer o que feito, como sinnimo de realidade exterior ao homem e de fenmeno. 11 MONTUORI, The problem of Socrates, p. 421. Para o autor, tal certeza deve ser encarada como a holistic solution do problema de Scrates; ver 14. 12 Aristfanes a exceo que confirma a regra: alm de encenar um tipo de condenao de Scrates, Plato mesmo o insere entre os comedigrafos que produziram uma imagem vexatria do filho de Sofronisco; ver em seguida, 3. Cabe pontuar a concluso de VILHENA sobre o que seria fato histrico, a fim de trazer luz a impropriedade de se atribuir Histria mera criao subjetiva: assim, esta categoria , num sentido, subjetiva, e simultaneamente, noutro sentido, objetiva; O problema de Scrates, p. 123-26. 13 Interessante notar que DIGENES parece haver testificado esta declarao em algum meio material ainda conservado, e que estaria, alm disso, em conformidade com a obra de Favorinos, de quem Larcio extraiu a citao. Para TAYLOR, no entanto, esta apresentao, que tambm aparece em Xenofonte, menos confivel em relao a que se v, em ordem inversa, no texto de PLATO (Apologia, 24b), pela falta de fidelidade de Favorinos e porque embora the offences against cultus were primarily specified as the chief legal ground for procedure, a ordem apresentada por Plato fora in the order in which they were actually dealt with by Socrates; cf. Varia Socratica, p. 5-6. A meu ver, a primazia da acusao religiosa se faz perceptvel em ambos os casos, de maneira que importa-nos encontrar no que consistiu a asbeia socrtica, independente da ordem de exposio.
A caricatura da philosopha 19
Esta acusao e declarao jurada por Mletos, filho de Mletos de Pitos, contra Scrates, filho de Sofronisco de Alopece: Scrates culpado de recusar-se a honrar os deuses que a cidade honra, e de introduzir divindades novas, sendo tambm culpado por corromper a juventude. A pena a morte.
Sem recorrer, de incio, aos pareceres que se seguiram com o intuito de interpretar-
lhe as razes, a graph parece mostrar que esteve em questo certa influncia degradante
de Scrates sobre a juventude ateniense, que constrangera a democracia recm restaurada a
perceber o quo perigoso seria deix-lo realizar-se em meio plis. Mas no que consistia
esta sua influncia degradante? O termo traduz impresses diversas, como a de
fazer perecer ou desaparecer, devastar, alterar negativamente, sentidos que aparecem na
poesia e que parecem ter em comum a noo de degradao fsica que ser depois tida em
conta nos tratados aristotlicos, com o par gerao-corrupo14. O prprio termo latino
usado neste caso, corrumpere, que d ideia de rompimento e decomposio, traz qualquer
coisa de muito prxima ao que, em contexto moral, aludia Tucdides a partir das alteraes
crescentes no sentido das palavras, entrevistas pelo historiador poca das tormentas da
Guerra, e que tornavam, por exemplo, situaes outrora corajosas em sintomas de covardia,
e a lei divina, que antes legitimava as aes da plis, via-se transgredida ():
em outras palavras, Tucdides apontava para certa degradao e corrupo moral e das leis
durante a Grande Guerra, um quadro que s fez piorar15.
Contudo, essa corrupo moral e religiosa fora apenas um dos aspectos culturais
observados pelo historiador na Atenas da ltima metade do V sculo. Desde o caso de
traio de dois dos mais brilhantes Helenos de seu tempo, Pausnias e Temstocles16 ,
sucessivas mudanas de lado permearam os anos de guerra, e afrontas polticas contra a
democracia, orientadas por partidrios da oligarquia conhecidos pelo sugestivo nome de
(no sentido de grupo ou sociedade de conspiradores, conjuradores, que juram
em comum), suscitaram no homem ateniense uma sensao dupla de insegurana e revolta.
Destas afrontas, mais significativo talvez tenha sido o episdio da profanao dos Mistrios
14 Para o sentido que aparece na poesia, ver, por exemplo, EURPIDES, Medeia, v. 226; 1055; Hiplito, v. 376; 389; SFOCLES, Antgona, v. 1229; Electra, v. 306; sobretudo dipo Rei, v. 438, que tem sentido prximo terminologia tcnica peripattica: cf. ARISTTELES, Metafsica, I, 3, 983b6; Fsica, III, 5, 204b33; Gerao e Corrupo, I, 1, 314a 15 TUCDIDES, Histria da Guerra do Peloponeso, III, 84, 4-8. Para o sentido corruptor e degradante, ver JAEGER, Paidia, p. 389-90; GUTHRIE, Os Sofistas, p. 91. 16 TUCDIDES, Histria da Guerra do Peloponeso, I, 128-138.
20 Cesar A. M. de Alencar
e das esttuas de Hermes, ao qual estava ligado o nome de Alcibades e em relao a que se
encontra a primeira meno de Tucdides aos ditos grupos conspiratrios, e decorrente
sensao de desconfiana que rondava o imprio: de fato ou encontrava um desconhecido
com o qual poderia falar, ou ento um conhecido no qual no podia confiar (
, Histria da Guerra do Peloponeso, VIII, 66
traduo de Fernandes e Granwehr). No difcil imaginar a revolta sentida em Atenas ao
ver safar-se um traidor como Alcibades: no se demorou a conden-lo morte aps ter se
exilado junto aos espartanos17.
Aps a derrota na batalha de Egosptamos, a assembleia ateniense viu-se ela mesma
frente ao temor do que poderiam fazer os vitoriosos: sob o poder de Lisandro e sua filiao
ao partido oligrquico, dir Aristteles, viu-se a democracia intimidada a votar em favor do
governo tirnico dos Trinta18. Com isso, garantia Esparta seu domnio sobre uma Atenas
decomposta e fragilizada, por meio do medo e da represso que espalharam aps o perodo
em que seu poder fora consolidado, e at que a resistncia democrtica o retomasse um ano
depois, embora no com o mesmo esprito. inegvel o valor honroso atribudo ao governo
de restaurao por Aristteles, no que fez questo de acentuar o carter digno pelo qual
trataram os dissidentes, apagando toda lembrana de ofensas passadas, ao entender que
precisavam tomar essa iniciativa no sentido de reconquistarem harmonia19. A anistia ento
promulgada evitava incriminar os participantes no levante oligrquico, mas toda esta sua
magnanimidade tinha limites: tornara-se, de certo modo, motivo de desonra para algum o
fato de ter ficado na cidade durante o governo tirnico, e uma nova tentativa de levante em
401 a. C. mostra ser, este o parecer de Stone, o fato que daria a explicao mais razovel
para a relativa intolerncia em relao aos discursos socrticos em meio juventude, deste
modo se constituindo na atmosfera mesmo que o levou morte20.
Diante disso, ao tomarmos apenas os termos da graph e o contexto em que surgiu
como parmetro para uma sua primeira interpretao, podemos constatar que a democracia
recm restaurada, em permanente viglia frente possibilidade de qualquer novo levante,
percebeu na figura de Scrates certa ameaa manuteno harmnica de seu governo, e no
17 TUCDIDES, Histria da Guerra do Peloponeso, VI, 60-61. 18 ARISTTELES, Constituio de Atenas, 34. 19 ARISTTELES, Constituio de Atenas, 40 20 Cf. STONE, O julgamento de Scrates, p. 171-190, sobretudo p. 190.
A caricatura da philosopha 21
que possvel depreender da letra acusatria, esta ameaa adviria de sua influncia sobre a
juventude ateniense. No sendo possvel acusar Scrates por quaisquer ligaes polticas
que pudessem haver dele com partidrios antidemocrticos, em decorrncia da anistia,
cabia lanar contra o 21 o revs da influncia sobre os que lhe frequentavam e
que se pautava, no que nos faz crer a graph, em dada asbeia socrtica. clara a relao
entre a acusao religiosa e a de apelo moral sobre os jovens, de tal maneira que ela nos
deixa com a suspeita de que Meleto estivesse direcionando a condenao de impiedade
como aparente, para encobrir outra, mais fundamental, de seus influxos antidemocrticos.
o que ficamos sabendo at aqui, com certa razoabilidade.
2. O ato da acusao contra Scrates e seu carter poltico
H, entretanto, alguma verdade nessa acusao dupla? possvel que o poeta, ao
dar voz s inconformidades polticas de um Anito, que com Lcon e Meleto compunha o
coro de acusao, tivesse incorrido em profunda injustia quando levantou a voz contra a
piedade socrtica? Caberia mesmo perguntar, que espcie de influncia poderia ter um tal
pensador, maltrapilho e tagarela, sobre os jovens kalo kagatho de Atenas, a fim de lhes
subverter valores morais e religiosos? Que espcie de asbeia estaria sendo considerada,
para que ela pudesse fazer jus legtima condenao poltica?
Se os exemplos de crtica aos deuses, como se v na poesia teatral, por exemplo, ao
que parece no inflamavam o povo contra os poetas22, na verdade, no estaria esta afronta
ao tipo de postura mpia de Scrates reverberando algo dos traos pitagricos que se v
Plato atribuir ao velho Scrates, e que foi para Taylor e Burnet23 o ponto central que torna
inteligvel a graph? Ou estaria ela como que pondo em destaque, ao lado da alegao
poltica de que falamos, a constatao em juzo do quanto o pensador estava afastado dos
21 Cf. XENOFONTE, Banquete, VI, 6: a ti que chamam o pensador ( )? Seria pior se me chamassem o que no pensa (). Neste passo, Filipo, o interlocutor de Scrates, est a ressoar a caricatura cmica que Aristfanes e Ampsias lhe haviam feito, ele que era mesmo o comediante ali presente; cf. Banquete, I, 11. 22 TAYLOR argumenta que os mitos homricos e hesidicos jamais foram considerados de fide na cultura grega, de modo que as sensveis alteraes ou bowdlerise dos poetas subsequentes e cientistas jnicos no eram tomados, stricto sensu, como mpios. Isso porque a religio grega no se constitua essencialmente de dogmas, mas de cultos, the practice of the proper rules of giving and receiving between God and man; cf. Varia Socratica, p. 16. Para uma opinio sobre a decisiva investigao sobre os rituais a par dos mitos, ver BURKERT, A religio grega na poca clssica e arcaica, p. 23-24. Ver ainda a proposta da investigao que fez ADRADOS, sobre as origens do teatro nos rituais: Fiesta, comedia y tragedia, p. 13-18 23 Cf. TAYLOR, Varia Socratica, p. 1-39; BURNET, Thales to Plato, 146, p. 189-191.
22 Cesar A. M. de Alencar
problemas da plis, quer esta ausncia se expressasse em forma de descaso com os
acontecimentos recentes da vida ateniense, quer na recusa de ter em grande conta os deuses
oficiais da cidade derrotada, e assim prestar-lhes culto? No seria a graph, no fundo, um
libelo de Atenas contra aquele que dela se aparta, exatamente como o havia representado a
comdia, vinte e quatro anos antes?
No entanto, como sab-lo? Que comportamento e opinies havia Scrates assumido
ou anunciado, que levara os seus a vert-lo ao Hades? No fundo, a pergunta fundamental
seria: quem foi Scrates? A plis o tinha, sobretudo a partir da comdia, na conta de um
dentre os professores que se intitulavam sophists, nova vaga de mestres a ensinar novas
matrias e valores; e pelo vigor exemplar do professor, a maioria dos cidados mediu seu
ensino a partir do comportamento de seus alunos. Mais ainda, das inferncias que se tem
feito para reconstituir o teor do texto de Polcrates24, cujo propsito estava em afirmar o
bem realizado pela cidade ao condenar Scrates, a fora de fatos e evidncias que seguiram
de perto a condenao deixaram o orador com uma razovel certeza da justia de tal
veredicto: Scrates mereceu a morte. Razovel, diria ele, pois que espcie de sophists
no deveria ser condenado por educar homens como Crtias e Crmides, ambos partcipes
da tirania que deps a democracia ateniense, e Alcibades, maior das decepes polticas de
Atenas? Nesse caso, o carter sobejamente poltico da graph contra Scrates desponta
como importante perspectiva para se entend-la: ela resulta do modo de se fazer ver a fora
poltica do governo democrtico, em prevenir o cidado comum de acabar desencaminhado
pela verborreia amplamente difundida poca e da qual Scrates parecia ter sido, aos olhos
da comdia, o representante mais insolente25. A penalidade contra Scrates no podia negar
o teor poltico que lhe inspirava, determinado pelo temor democrtico de um novo levante
contra seu poder, e que, sem dvidas, atribuiu ao ensino socrtico o germe da sua derrocada
pelas mos dos Trinta Tiranos recm depostos. Na luta pelo poder, o filsofo pagou com a
vida.
Mas ento, de que maneira se deveria entender a kategora de asbeia, face a tais
aspectos polticos, pelo que dizem seus detratores? Se para Aristfanes26 a ofensa contra os
deuses da plis se situa nos vituprios atestas frutos do contedo veiculado pelo mestre do
24 CHROUST, Policrates kategora Sokrtous in MONTUORI, The Socratic Problem, p. 327-334 25 Sobretudo em Nuvens, de ARISTFANES, mas tambm em Aves, v. 1280-84; 1553-56; e Rs, v. 1491-99. 26 ARISTFANES, Nuvens, v. 367: ; Zeus no existe!
A caricatura da philosopha 23
Pensatrio, que ligao haveria entre tal ofensa e a posio poltica de Scrates? De fato, o
aspecto poltico da graph s poderia estar muito remotamente denunciado na comdia, no
que ela ganha seus contornos, como vimos, pelo contexto que ronda os anos de 399 a. C.
por isso que, aos olhos de Polcrates27, as evidncias para uma abordagem direta do
libelo que o condenou, a fim de ressaltar a corrupo da juventude por meio de seu ensino,
esto como que resumidas em trs pontos fundamentais: seus ensinamentos ameaavam (1)
as instituies democrticas de Atenas, (2) os princpios bsicos da piedade e da reverncia
naturais, e por fim (3) as prprias fundaes da sociedade humana. Em outras palavras, as
alegaes de impiedade em relao a Scrates pautam-se no contedo de seu ensino, que
de modo exemplar foi seguido pela juventude ateniense, para enorme prejuzo democrtico
e humano. Transparece, no discurso do retrico, a forma pela qual se deve ter entendido as
implicaes polticas e religiosas do ensino de Scrates sem que nos seja preciso, em um
primeiro momento, como Taylor e Burnet haviam feito, perscrutar indcios de pitagorismo
na vida de Scrates como fundamento daquela kategora.
Contudo, o fato apenas da condenao de Scrates, os meandros e as sutilezas de
cunho poltico e religioso que o constituem, no nos interessa seno inserido na tradio da
Filosofia, que lhe confere importncia enquanto um ponto significativo para a origem e o
desenvolvimento desta forma de saber. porque Scrates teria dado incio a um tipo de
saber que veio a se chamar filosofia, pelo qual chegou morte, que para ns se torna digno
de estudar em que sentido o ensino praticado por Scrates afrontou o governo democrtico,
que tipo de influncia havia ele exercido, e se de fato ele estava em uma nova concepo da
vida religiosa e uma nova educao dela decorrente, parte das leis da cidade, como faz
suspeitar a graph e os libelos da poesia cmica e da retrica.
E com isso j no podemos seguir isentos. Se em si os termos da kategora no nos
oferecem meios razoveis para compreendermos o fato da morte de Scrates pela filosofia,
e parte desta significao possvel se encontra na perspectiva dos que o haviam criticado,
continuamente posto fora de dvida ter sido o impacto da condenao de Scrates o que
gerou boa parte das obras socrticas os lgoi sokratiko, como nomeou Aristteles cujo
objetivo fundamental estava em demonstrar, percebe-se nos diferentes modos pelos quais se
realizou, o injusto daquela condenao impetrada contra o filsofo, evidentemente sob a
27 Cf. CHROUST, Policrates kategora Sokrtous in MONTUORI, The Socratic Problem, p. 333-334
24 Cesar A. M. de Alencar
tica daqueles que se punham ao lado da estima pela filosofia, mostrando os limites e os
equvocos quer da poesia, quer da retrica.
Era o incio do socratismo.
3. A resposta dos socrticos e a razo de ser da condenao
Observemos, assim, os socrticos Plato e Xenofonte, naquilo que se propem a
relatar sobre o fato da morte de Scrates e suas possveis razes. Em primeiro lugar, ambos
procuraram de algum modo entender por que razo Scrates no s recusou livrar-se das
acusaes, como pareceu entender que o momento era decisivo para mostrar seu valor
plis. Como nos diz Plato, ele sequer ps-se a redigir uma defesa, e abdicou de contraditar
as leis da cidade que o condenou, decidindo no participar da sugesto de companheiros
desejosos por arrancar-lhe da priso28. Por que razo havia agido dessa forma? O prprio
dilogo nos responde: Nunca fui de me deixar persuadir seno pelo lgos que me parecer
o melhor pelo raciocnio 29. Naquela situao, via Scrates o melhor para si, o que levou
Xenofonte a concluir: seu interesse estava em morrer, pois para ele a morte era j uma
escolha melhor que a vida 30. Se a morte no momento lhe fora melhor, ele, que nunca
recusou em vida buscar o melhor, manteve-se fiel ao seu lgos e caminhou com altivez para
o fim31. A lenda estava assim construda sua morte envolvia o pthos da prpria vida
filosfica: a necessidade de se vincular lgos e bos, mesmo que isto encerre sua prpria
morte.
No por acaso, o carter de Scrates que mais se destaca a quem lhe entreveja a
partir dos testemunhos. Sua lenda , no fim das contas, paradigma do homem 32,
em todas as acepes do termo, sem abandonar de todo o aspecto risvel que lhe emerge e
do qual se vale a comdia to fortemente para faz-lo subir ao palco. Entretanto, mesmo os
poetas cmicos no podiam negar a fora de sua personalidade. Diz Aristfanes (Nuvens, v.
360):
28 Esse o contexto descrito pelo dilogo de PLATO Crton, sobretudo 44e-46b. Tambm XENOFONTE menciona o caso, em Apologia de Scrates, 24. 29 ; Crton, 44b (traduo de Santos, com a manuteno do termo grego) 30 ; XENOFONTE, Apologia de Scrates, 1. (traduo de Pinheiro) 31 Tambm PLATO fez por acentuar o carter irresoluto da postura de Scrates: Apologia, 30c. 32 Um dos dois tipos de homem inevitavelmente imitados pela poesia; Cf. ARISTTELES, Potica, 1448a
A caricatura da philosopha 25
T2. , , , , . Pois no atenderamos nenhum dentre os atuais meteorosofistas, com exceo de Prdico: este, devido a sua sabedoria e inteligncia; a ti, pelo modo como te pavoneias por essas ruas, a olhar de vis, andando descalo, porque suportas males sem conta e, enfim, te mostras a ns com ares de solenidade.
Concorda Xenofonte com essa represenao, quando fez questo de mostrar quanto
havia de reputado em seu carter33. Plato resgata mesmo o texto de Aristfanes pela fala
de Alcibades no Banquete (221b), de modo a rememorar os feitos e o carter de Scrates
durante a batalha em Potideia. Para Alcibades, um homem assim no poderia seno torn-
lo melhor (218d)34, e a relao entre os dois fora to conhecida que no s havia oferecido
certa projeo ao jovem kals kagaths em seu incio na vida poltica, como ainda pareceu
estar entre as motivaes polticas da posterior condenao de Scrates35. Em Alcibades, a
influncia socrtica parecia corruptora: ele que havia procurado o melhor para si e para os
homens, no pde conter a natureza invulnervel filosofia do jovem poltico. De fato, era
a busca em tornar a do homem melhor a maneira pela qual definira Scrates sua
atividade perante seus acusadores. Diz ele, na Apologia de Plato (traduo de Santos):
T3a. . Nada mais fao do que andar pelas ruas a persuadir-vos, jovens ou velhos, a cuidares mais da alma que do corpo e das riquezas, de modo a que vos torneis homens excelentes. (30a) T3b. , , . Como disse, tentei persuadir-vos cada um de vs a no cuidar de si ou das suas coisas, mas cuidar antes do que em cada um de vs melhor e mais sensato; (30c)
33 XENOFONTE, Memorveis, I, 2, 1-2. Ver ainda, sua Apologia de Scrates, II, 16 34 A mim, com efeito, nada me mais digno de respeito do que o tornar-me eu o melhor possvel, e para isso creio que nenhum auxiliar me mais importante do que tu, , traduo de Souza. 35 Para indcios sobre a relao amorosa de Scrates e Alcibades e a violncia com que este tratava outros de seus amantes, sobretudo Anito, ver PLUTARCO, Vida de Alcibades, 4-5
26 Cesar A. M. de Alencar
O cuidado de si a que alude Scrates em Apologia , em suma, um cuidado com a
. Suspeito mesmo que o seu filosfico se sustente em uma viso particular da
, enquanto sede da personalidade do eu ou da conscincia, a que uma comunicao de
Burnet h muito estabeleceu como ponto essencial da filosofia socrtica, a mais importante
de suas contribuies Histria da Filosofia, sendo nisto seguido de perto por Taylor,
Cornford e Dodds, para citar alguns36. De fato, a fora do do filho de Sofronisco,
tambm o tipo de cuidado que aventava, causavam espanto ao homem comum e aos seus
no se fez compreensvel de todo por que um homem justo e virtuoso deveria ceder diante
de morte to injusta. Neste caso, a resposta de Scrates ressoa, em Xenofonte, memorvel:
Preferias tu ento, Apolodoro, ver-me morrer com justia a sem justia? ( ,
, ; Apologia
de Scrates, 28 traduo de Pinheiro).
Se Xenofonte estiver certo na alegao que faz, de que Scrates de fato desejou sua
morte, Nietzsche tinha razo em concluir (Crepsculo dos dolos, II, 12): Scrates queria
morrer: no Atenas, mas ele deu a si veneno, ele forou Atenas ao veneno. A firme
convico de Scrates em direo morte apresentou constantemente nos estudos sobre ele
essa mesma interpretao suicida. O objetivo de Nietzsche, porm, era outro, estava em
denunciar o mito naquilo que nele havia de mais pernicioso para a histria do ocidente: o
seu excesso de racionalidade, que fez o pensamento europeu mergulhar na obscuridade de
uma poca de luzes, ao determinar a razo como um valor superior aos instintos37. Contra
isso se volta a argumentao nietzschiana mas por que deveramos ouvir apelos racionais
ao irracional? O texto de Xenofonte, ao contrrio, fundamenta-se na tentativa de mostrar a
razo do fim escolhido por Scrates, assentada em sua resoluo sobre a melhor vida, que
sempre apresentada como certo saber nem muito nem pouco, um saber que nada sabe,
como dizia a Apologia platnica quer dizer, no h qualquer coisa de uma racionalidade
consciente, para ficarmos na terminologia nietzschiana, que conhece seus limites e que de
nenhum modo poderia aventar saber mais do que pode? Por isso mesmo, as razes para o
36 BURNET, The Socratic Doctrine of The Soul, 1916; cf. ainda TAYLOR, El pensamiento de Scrates, p. 110; CORNFORD, Antes e depois de Scrates, p. 43-48; DODDS, Os gregos e o irracional, p. 211. 37 Quem se der conta com clareza de como depois de Scrates, o mistagogo da cincia, uma escola de filsofos sucede a outra, qual onda aps onda, de como uma universalidade jamais pressentida da avidez de saber [...] quem tiver tudo isso presente, junto com a assombrosamente alta pirmide do saber hodierno, no poder deixar de enxergar em Scrates um ponto de inflexo e um vrtice da assim chamada histria universal; NIETZSCHE, O Nascimento da Tragdia, 15.
A caricatura da philosopha 27
destino aceito por Scrates possuem carter antagnico na considerao feita de um lado
pelo socrtico, de outro pelo filsofo alemo: no que Xenofonte afirmou serem provas da
fora do seu esprito, propriamente dignas de imitao porque pautadas em uma vida
filosfica, via Nietzsche um apelo racional para livrar-se da vida, ele que apenas esteve
doente por longo tempo. Era Scrates, contudo, quem trazia sintomas de doena?
Deixemos de lado a sade do Sr. Nietzsche e voltemos aos socrticos. Se o interesse
de Xenofonte estava em demonstrar a injustia daquela condenao, a partir do fato de para
ele Scrates ser um exemplo juventude muito antes que influncia corruptora, Plato, no
entanto, se props a refletir sobre o carter trgico, qui por vezes cmico38, da atuao de
Scrates na plis, quase no desejo de fazer ver o inevitvel de sua condenao. No pareceu
interessar tanto a Plato os motivos que Scrates havia dado para aproveitar o kairs de sua
condenao, mas se deteve o discpulo em ressaltar o inevitvel daquele momento, como
uma espcie de corolrio intrnseco ao filosofar socrtico. E com isso, Plato no apenas
nos apresenta um entendimento e uma problematizao da atividade exercida por Scrates,
como ainda se pe segundo um enfoque mais amplo para a compreenso da sua filosofia,
distinto daquele pretendido por Xenofonte e suscitado por Nietzsche: no seu desejo de
morte que deve nortear em ltimo caso aquele que deseja entender a filosofia socrtica, mas
que espcie de atividade essa que ele realizou, e de que modo ela encontrou ou tentou
encontrar seu lugar na plis, j que dela decorre em ltimo caso qualquer desejo que tenha
o filsofo em morrer. No de se estranhar que seja em Plato que o estudo sobre Scrates
aporte com maiores chances de evitar um naufrgio.
Quando, diz Scrates na voz de Plato, em Apologia, o damon orientou-lhe a no
participar da poltica da cidade e, ele acredita, o fez com razo (31e-32a), porque a prtica
da filosofia, daquele que busca o melhor, ope-se multido e aquele que a ela se ope
motivo de escrnio, e no sobreviver muito tempo ao menor sinal de mudana em seus
humores, quando riso e escrnio passarem a ser levados a srio. Haveria, pois, um paradoxo
no exerccio filosfico: a busca pela vida melhor, como ele o fez por meio da prtica
pblica da busca e do exame ( , 23b), deveria ser exercida, antes, em
privado, ou estaria fadada ao fracasso. Se Plato est a fazer Scrates dizer que em
38 Uso aqui trgico e cmico no sentido que essas palavras tm hoje, quer dizer, no sentido de algo terrvel ou que causa temor, e de algo risvel ou ridculo.
28 Cesar A. M. de Alencar
privado que se deveria realizar a filosofia, por que razo Scrates procedia publicamente?
Sabia ele dos riscos que corria ou esse parecer deve ser creditado a Plato, no a Scrates?
No parece ser Plato quem est a refletir, nas palavras de Scrates em Repblica, sobre o
perigo da prtica pblica da filosofia? No estaria assentindo, ainda, que o filsofo
formado por si e que nada deve a ningum pode ter uma disposio natural em no
participar nos assuntos da plis39? Tais palavras seriam a justificativa para o isolamento da
vida poltica ateniense que Plato assumiu como prtica sua aps a morte do mestre, ou so
elas opinies alimentadas pelo prprio Scrates? Mas se Scrates no tivesse cincia dos
perigos a que estava sujeito, no seria muito propriamente, segundo Xenofonte, um
louco40? No estaria ignorando algo essencial ao que lhe foi mais importante na vida, a
condio da prtica que chamou de filosfica?
Qual fosse a razo oferecida por Scrates para sua atividade pblica no parece ter
convencido Plato: a uma alma sensivelmente poltica como a de Plato, a frustrao com o
governo de Atenas pela condenao do mestre veio a se transformar em exlio voluntrio,
que a Academia por fim coroou41. Mesmo Xenofonte, ao defender a prtica socrtica dos
que a caluniavam, dizendo ser ela incapaz de conduzir os jovens , no fez mais que
confirmar a revolta geral contra sua ocupao, que Scrates pela voz de Plato confessa
como sendo a origem das calnias e da fama que granjeou. Diriam os juzes: se tu nada
fizesses de extravagante e no fosses diferente das outras pessoas, como que tal fama e
rumor se espalhariam? 42. No parece provvel que Scrates ignorasse o perigo a que
estava exposto, e suas consideraes sobre a sopha, na ressonncia que provocou em seus
discpulos, nos conduzem a questionar que tipo de ideal o motivou, naquela firmeza de
carter, no trpos que at seus detratores fizeram questo de descrever.
39 Para a reflexo sobre o papel pblico da dialtica, PLATO, Repblica, 538c-539d; Sobre a formao do filsofo, idem, 520b. STRAUSS se aproxima dessa imagem platnica ao interpretar a ascenso da caverna luz do sol como representao de que o filosofar significa ascender do dogma pblico at ao conhecimento essencialmente privado; Direito Natural e Histria, p. 13. 40 Entre os loucos h aqueles que no veem perigo no que perigoso e os que temem at o que no temvel , ; cf. XENOFONTE. Memorveis, I, 1, 14. (traduo de Pinheiro) 41 PLATO, Carta VII, 325a-c. 42 XENOFONTE, Memorveis, I, 4, 1; PLATO, Apologia, 20c
A caricatura da philosopha 29
4. A questo socrtica da lida com as fontes
Mas j agora esses poucos indcios nos levam ao centro da questo socrtica, que
poderia ser formulada da seguinte forma: no que consistiu a atividade de Scrates para t-
lo levado morte por atuar publicamente em Atenas, e antes, de que maneira podemos ter
algum conhecimento dela, visto que nada temos do prprio Scrates acerca de si? Se o que
temos uma vasta literatura cujo objetivo, ao que parece, estava tanto em projetar uma
compreenso adequada do que foi o legado da persona e da filosofia de Scrates, quanto
reivindicar, entre os autores, maior legitimidade para sua compreenso, a investigao da
atividade socrtica ter de decorrer, necessariamente, de seus intrpretes: h que adivinhar
a causa a partir dos efeitos que provocou, ou antes, nas palavras de Vilhena: se no nos
possvel partir de Scrates para o socratismo, h ento que partir do socratismo para
Scrates 43.
Estaremos, todavia, como que a caminhar em terras pouco firmes se nos ativermos
to-somente literatura dos socrticos para compreendermos a condenao do pensamento
de Scrates, porque estaramos assim fundados em apenas um lado da questo. Seja Plato
ou Xenofonte, sejam quaisquer dos demais socrticos, os autores dos lgoi sokratiko so
partes interessadas no julgamento da figura socrtica como sendo modelar ao filsofo, por
se colocarem tais autores sob a tica da philosopha ou de sua estima. A frase nietzschiana
em tributo a Schopenhauer facilmente teria sido dita pelos socrticos: estimo tanto mais
um filsofo quanto mais ele est em condies de servir como exemplo 44. H que se
avaliar, no entanto, o outro lado da condenao, ver com olhos no filosficos a atividade
socrtica, a fim de podermos compreend-la naquilo mesmo que a identifica.
Se o olhar de Plato parece a muitos o mais abrangente possvel sobre a filosofia
socrtica, j na antiguidade os leitores de seus Dilogos tiveram que se ater com aquelas
dificuldades que at hoje nos perturbam: que se pode dizer neles ser propriamente socrtico
ou propriamente platnico? A questo, bem formulada por Schleiermacher45, parte da viso
de que em tudo o que pertence a Plato h qualquer coisa de Scrates, e em tudo que
pertence a Scrates h qualquer coisa de Plato. E essa mesmo a origem de toda nossa
dificuldade! Alm disso, o que dizer de Xenofonte? Seria possvel apreender uma filosofia
43 VILHENA, Plato, Aristfanes e o Scrates Histrico, apndice [D], pp. 121 44 NIETZSCHE, Consideraes Intempestivas III, 3. 45 SCHLEIERMACHER, On the worth of Socrates as a philosopher, p. cliii.
30 Cesar A. M. de Alencar
de Scrates a partir de seus escritos sobre Scrates, sem inevitavelmente relacion-los a
seus demais escritos o que nos deixaria com muitas suspeitas da caracterizao que fez46?
No seramos bastante ingnuos se admitssemos, com ambos os autores, e apenas a partir
deles, que Scrates foi de fato um homem injustamente condenado, e que por esse motivo
digno de ser rememorado, para ver-se livre de tal injustia? Faz sentido buscar um olhar
diferente daquele apresentado pelos socrticos.
Se o texto de Polcrates se perdeu, um feliz destino nos preservou o testemunho de
Aristfanes que, falando a partir da viso do poeta e da poesia, faz julgar o socratismo antes
dos socrticos. Podendo ser reunido ao lado do primeiro, entre o nmero dos que criticaram
duramente o ensinamento socrtico, Aristfanes ressoava em suas peas, principalmente
Nuvens, uma caricatura do filho de Sofronisco que, para nossa surpresa, expressa a mesma
impresso que por vezes possvel encontrar em Plato com relao sopha de Scrates
(importante notar que no h na comdia o uso da palavra philsophos para se dirigir a
Scrates, mas sophs e sophists) como sendo mal entendida pela plis. Entretanto, esta m
compreenso apontada na poesia poderia nos levar a identificar, como Scrates na voz de
Plato fez por referir47, os ecos projetados sobre a concepo dos que o condenaram em 399
a.C., vinte e quatro anos depois de encenada a comdia? possvel que uma pea tenha
influenciado o fato da resoluo contra Scrates tanto tempo depois? Ao que se v, Plato48
entendia a poesia, mais ainda o teatro, como tendo o poder de moldar certos caracteres que
se imprimiam na do pblico, e a imagem caricatural de si mesmo, naquela educao
ministrada ao velho rstico e a seu filho, encenada por Aristfanes em Nuvens, construda
sob a alegao de que o ensino do mestre de um Pensatrio de almas sbias (
, v. 94) inspirava-se em duras teses contra os deuses da plis. A
asbeia de Scrates faz as vtimas de seu mtodo educativo corromperem-se, exatamente
como seu ensino tinha sido entendido pelo poeta Meleto ao tempo de sua condenao.
H ainda um dado muitas vezes pouco explorado pelos estudiosos: pode-se entrever,
na persona que o poeta ps em cena, a aparncia ressonante do modo de vida espartano, de
maneira que Aristfanes, ao fazer Scrates subir ao palco, levara o cidado atencioso a
46 Cf. a anlise que faz DORION em Xenophons Socrates, in A Companion to Socrates, p. 93-109. 47 Para o filsofo, so as acusaes da comdia, sobretudo as de Aristfanes, que desembocaram da graph de 399 a. C.; cf. PLATO, Apologia, 19c. 48 PLATO, Repblica, 378e.
A caricatura da philosopha 31
perceber a ligao que poderia estar grosseiramente latente entre aquele mestre sofista e a
plis inimiga de Atenas durante os anos da grande Guerra49. E no havia tambm muito de
comum entre Fidpides e Alcibades? No seria difcil imaginar, ao menor sinal dos males
polticos dessa educao, que a plis se apegaria quela viso to bem encenada de um
vilo que deve ter sua escola e sua vida penalizadas50.
O que tudo isso nos faz concluir? As fontes, sejam elas contra ou a favor morte de
Scrates, nos deixam com a impresso de que este fato o ncleo a partir do qual devemos
compreend-las. Polcrates, pelo que se viu, toma as dores da cidade de Atenas, justificando
como ato exemplar a condenao de um homem como Scrates. J os socrticos Plato e
Xenofonte, ao tecerem suas consideraes, nos fazem ver o injusto da graph impetrada
contra o philsophos por no lhes haver mesmo entendido a philosopha. Mas o destino nos
preservou Aristfanes, que parece criticar Scrates em traos bem prximos aos do panfleto
de Polcrates, e com o qual Plato, alm de faz-lo entrar na discusso a partir do seu valor
educativo sobre os juzes que condenaram Scrates, aproxima sua justificativa acerca dos
percalos inerentes prtica filosfica, de maneira a mostrar aquela condenao religiosa
por meio da latente, porque subentendida, acusao poltica. Mas no seria problemtico
tomar assim as fontes primrias, sem qualquer recurso metodolgico para melhor sermos
capazes de verific-las em conjunto? possvel pr em p de igualdade uma comdia, cujo
fim ltimo provocar o riso e vencer a disputa frente ao pblico ajuizado, e um discurso de
defesa, como o que nos legou Plato, e que supostamente se ergue com a inteno de fazer
de minha boca, pelo contrrio, ouvireis s a verdade (
; Plato, Apologia, 17b traduo de Santos)? Que fazer, pois, para melhor
lidar com todas essas fontes segundo o que sabemos e podemos saber sobre o fato da morte
de Scrates?
49 do prprio ARISTFANES uma posterior identificao, mais literal, em Aves, v. 1281-84. Voltaremos a esse ponto na segunda parte deste estudo. 50 MONTUORI chega a identificar, na esteira de outros estudos j realizados, a figura de Alcibades com a de Fidpides, algo bastante provvel de ser feito por qualquer ateniense ao ver encenada Nuvens; cf. Socrate tra Nuvole prime e Nuvole seconde, in The Socratic Problem, p. 336-7.
32 Cesar A. M. de Alencar
CAPTULO II
O problema das fontes em geral
bvio que uma imagem, pelo prprio fato de ser uma imagem, nunca se identifica com o objeto refletido. Mas a determinao da natureza do espelho, do grau da sua curvatura, no ajudar a conhecer melhor a
possibilidade de distinguir o original de que a imagem a reproduo, a cpia, e tambm a conhecer de certo modo o prprio original?
Magalhes-Vilhena, O problema de Scrates.
Tpico I O impasse ctico da crtica moderna: status quaestionis
5. A situao das fontes e a busca pela melhor forma de lidar com elas
A questo sobre a relao entre Scrates e a origem da dita filosofia, contraposta ao
saber potico e sofstico, se desdobra numa investigao dos efeitos causados pelo tipo de
saber que dizia possuir, e que parece ter sido o motivo de sua condenao morte ou seja,
numa avaliao acerca da importncia que teve o socratismo, em um primeiro momento,
para aqueles que o tomaram como efetivamente culpado, e em um segundo momento, para
os que o tiveram como mestre e lhe defenderam a honra. Em outras palavras, posta nesses
termos, a investigao esbarra em uma exigncia dupla: seria preciso, de incio, estabelecer
o que foi propriamente este saber de Scrates, para ento podermos avaliar seus efeitos,
seja sobre os que lhe acusaram, seja sobre os que lhe tomaram a defesa.
No entanto, no nos possvel obter to facilmente o primeiro desses termos: quem
tenha entrado em contato com a dita filosofia de Scrates foi capaz de perceber que no
h uma filosofia no sentido estrito de um texto escrito de Scrates: o filsofo nada
escreveu, e sobre ele dispomos apenas de testemunhos, diretos ou no, da vida que teve e
do pensamento que manifestou. Testemunhos que no fim nos deixam ver o que seus autores
pretendiam mostrar ser sua viso sobre o filho de Sofronisco. Com isso, a dupla exigncia
precisa ser reduzida, metodologicamente, nica que nos sobra: na verdade, a partir dos
efeitos da prxis socrtica que podemos entrever o que teria sido sua dita sopha. Isso
porque Scrates aparece a ns, desde o incio e para sempre, parte de si prprio como
fruto de um conflito ou um jogo textual entre autores, cujo pretexto, seno o de resgatar ou
de conservar seus ensinamentos, evidencia claramente um interesse agonstico em que cada
A caricatura da philosopha 33
um se situa, no seu entender, como a melhor fonte de compreenso do exerccio socrtico,
de maneira que, antes de esperarmos encontrar o Scrates real, o que teremos, unicamente,
o Scrates que emerge das posturas unilaterais daqueles que o personificaram. no agn
entre socrticos e no socrticos, e mesmo dos socrticos entre si, que se pode dizer ter
origem o socratismo51, e de onde devemos partir para almejar alguma compreenso de sua
filosofia.
Levando este problema em considerao, deveramos perguntar: possvel verificar
sobre tais bases o pensamento que Scrates teve? -nos possvel medir o valor filosfico
que a tradio lhe atribui, valor este inclusive para ns hoje? o que a Histria da Filosofia
e dentro dela, nosso estudo deveria se preocupar em responder. Sobre isto, porm,
constata-se rapidamente, nada se apresentou em definitivo. E por que razo? H os que
consideraram ser tal indefinio consequncia do carter aparentemente contraditrio das
fontes que nos falam de Scrates, de forma a fazer surgir a dvida, por exemplo, se foi
Scrates um dentre os sofistas, como em Aristfanes, ou um antissofista, como em Plato.
Digo aparentemente porque tal caracterizao em ambos os autores problemtica, muitas
vezes imprecisa, e apesar das discrepncias no se pode negar, com certa seriedade, que
ambos estejam se referindo em ltimo caso ao Scrates que conheceram.
Muitos disseram estar o problema, assim, no trpos de Scrates, deveras difcil de
captar, e que seria propriamente a causa daquela diversidade de verses multiplicadas sobre
ele j na antiguidade. A razo de ser do constante interesse que Scrates provocou ao longo
dos sculos parece encontrar-se, antes de tudo, em sua personalidade enigmtica: na relao
entre o manifesto e o velado, entre o humano e o divino, geratriz de um espanto prximo ao
que Plato apresentava como origem da disposio filosfica, e em cuja experincia Colli
identificou, com sagacidade, a presena do esprito religioso52. Ainda que verdade, no
fundo o mistrio da personalidade de Scrates no deveria nos encerrar no impasse da lida
com as fontes. H que distinguir o Scrates real, aquele que viveu e atuou em Atenas, que
foi alvo da caricatura de Aristfanes e com o qual travaram relaes Plato e os demais
socrticos; daquele outro, dito histrico, o nico possvel de ser por ns apreendido, a partir
das ressonncias que temos de sua atuao. Estas j lhe referiam certa estranheza de
51 Esta foi a grande virada interpretativa operada por VILHENA; cf. O Problema de Scrates, p. 116-118 52 PLATO, Teeteto, 155d; COLLI, O nascimento da filosofia, p. 41-49
34 Cesar A. M. de Alencar
persona atpica, atpica, que est constantemente bem documentada e que parece repercutir
um esforo, por parte dos seus, de o tentarem entender para alm desta estranheza53. Se nos
falta a pessoa real, a quem possamos mesmo remeter os discursos que se lhe referem, nossa
investigao se realizar indiretamente, a partir do que foi escrito, no esforo de proceder
pelo caminho necessariamente inverso ao percorrido pelas suas representaes histricas.
Deveramos aceitar, na falta para ns do Scrates real, que sua atopa nos deve
provocar, tanto quanto provocou os seus, tentativa de entrev-lo sempre de um melhor
ngulo, a partir e para alm das verses e dos discursos de que dispomos. Isso porque tais
escritos nos legaram as mais diversas concluses sobre o Scrates tal como ele foi, s vezes
opostas, confusas at. A ns, por nos faltar o homem, cabe to-somente adivinhar como o
que ele foi e pensou fez por influenciar seus concidados. Se o alvorecer do enigma se d,
defende Colli, quando o objeto do pensamento certamente no expresso pelo som das
palavras, mas est para alm dos textos, nosso propsito em investigar o tipo de vnculo
que h entre a figura de Scrates e o paradigma do que chamamos filosofia se v instigado
pela ausncia incmoda do prprio Scrates enquanto figura real e sua presena enquanto
persona histrica: no resta seno o Scrates histrico54, por trs e para alm dos textos.
No a pessoa humana impossvel mesmo de podermos abranger por quaisquer vises ou
discursos que tenhamos? O que dizer no caso de personalidades complexas, como Scrates,
cuja complexidade se agrava porque no lhe temos seno o reflexo que produziu? A atopa
que deixou impressa nos que a testemunharam , no fim, um problema secundrio: antes de
nos impedir, deve nos levar, com diligncia, a pr a descoberto os traos caractersticos dos
discursos e de seus autores, naquilo que nos fazem ver de Scrates a partir de si mesmos.
6. Dorion e a crtica ctica: o problema de Scrates infundado
Dado ento o problema de Scrates acerca da melhor metodologia de lida com as
fontes de sua vida, e que para ns representa, primordialmente, a essncia do seu enigma
53 Por exemplo: PLATO, Fedro, 230c-d, Fdon, 58e; mas, sobretudo, Banquete, 215d-e; Alcibades, 106a; ARISTFANES, Nuvens, v. 102-104, 359-363; XENOFONTE, Banquete, II, 19. Ver ainda VILHENA, O problema de Scrates, p. 107, n.3 54 A expresso Scrates histrico ser usada neste estudo contraposta ao Scrates real, que para ns desde sempre inacessvel, como dito, com o intuito de expressar o que, a partir dos testemunhos, se nos apresenta enquanto condio de possibilidade de se falar sobre Scrates como uma vida e uma filosofia para alm dos textos que dele nos falam. Esta distino entre o Scrates real e o Scrates histrico ficar mais clara nos prximos pargrafos.
A caricatura da philosopha 35
faz-se legtimo comear nosso percurso a partir da seguinte indagao: de que modo se
deve proceder a uma aproximao segura com a persona de Scrates retratada nos diversos
discursos? possvel perceber que a questo socrtica, como o disse Montuori, a ecoar os
estudos de Gigon, antes de tudo um problema de mtodo55: conquanto a ausncia de
qualquer escrito seu, o mais importante na investigao sobre Scrates saber de que
maneira podemos utilizar as fontes disponveis, a ver que tipo de vida elas trazem luz, e
qual sua credibilidade para nossa compreenso das razes de sua condenao pela cidade.
Poder-se-ia traar as origens modernas56 da questo socrtica, como fez Dorion em
seu artigo recente (The Rise and Fall of the Socratic Problem, 2011), pelos aspectos gerais
e pela clarificao exemplar que Schleiermacher lhe ofereceu, no incio do sculo XIX, em
que pesa sua regra de ouro para a melhor lida com as fontes. Segundo Schleiermacher, esta
regra seria mesmo o nico mtodo seguro capaz de permitir a reconstruo do contedo do
socratismo, e com isso, seu valor histrico e filosfico. Sua anlise estabelece, em primeiro
lugar, a contradio latente entre o Scrates de Xenofonte e o de Plato, para em seguida
constatar que Plato, com algumas excees57, no pretendia se passar por fiel historiador
de Scrates; ao que Xenofonte, mesmo em se apresentando como narrador mais desejvel
pelo seu ponto de vista de historiador, faz intervir a constatao de que Scrates no s
pode mas deve ter sido mais do que dele nos disse haja vista no ser possvel entendermos
sua condenao pela perspectiva de um homem quase inofensivo ao governo democrtico,
tal como Xenofonte fez por descrev-lo.
Sem aprofundar-se na questo assim colocada, que lhe fora objeto de anlise parcial
em outro artigo58, e mesmo sem ater-se questo do valor filosfico do socratismo a partir
da possibilidade genuna de alcan-lo por meio das fontes, mas atendo-se desde o incio na
negao dessa possibilidade, Dorion procede, na exposio crtica que faz do mtodo de
55 [...] respinge lo scetticismo di Gigon circa lo stesso porsi e sussistere del problema socratico, opponendo ad esso la fondata fiducia di un rilancio dello stesso problema in quanto problema di metodo storico. MONTUORI, Socrate. Un problema storico, in The Socratic Problem, p. 421. 56 Diz-se modernas, pois possvel que existisse, ao contrrio do que DORION afirma em seu artigo citado em seguida, certo debate em torno ao legado do Scrates histrico, sobrevivente nos discursos dos socrticos, j na antiguidade desde Aristteles, e que o prprio Aristteles talvez tivesse sido o primeiro a se debater com ele; Cf. VILHENA, O problema de Scrates, p. 114, n. 1 57 Para SCHLEIERMACHER, o texto da Apologia e algumas passagens dos dilogos, sobretudo o discurso de Alcibades no Banquete, parecem escapar a esta premissa; Cf. The Worth of Socrates as a Philosopher, p. cxxxvii 58 Anlise esta que se realiza a partir do ponto de vista de uma reabilitao do testemunho de Xenofonte; Cf. DORION, Xenophons Socrates, in A Companion to Socrates, p. 93-109
36 Cesar A. M. de Alencar
Schleiermacher, a uma avaliao das razes que teriam levado o estudioso alemo a preterir
os escritos de Xenofonte e a encontrar em Plato a dimenso mais filosfica de Scrates.
Transcreve assim o princpio de investigao, a regra de ouro proposta por Schleiermacher,
na pergunta hoje tornada clebre59:
O nico mtodo seguro parece ser perguntar: O que pode ter sido Scrates, para alm do que Xenofonte descreve, que no contradiga os traos de carter e as mximas que este nitidamente afirma como sendo de Scrates; e o que ele deve ter sido, para dar a Plato o direito e a ocasio de apresent-lo como o faz em seus dilogos?
A sucesso dos estudos que percorreram este trajeto revela, dir Dorion, muito mais
dificuldades que a possibilidade aventada de resolver o que se propunha (2011, p. 4). Tanto
verdade que o ceticismo que fez emergir, quase um sculo depois, na incmoda obra de
Jol60 em que se afirmou, nas palavras de Dorion, a descoberta da natureza ficcional
dos logo sokratiko (2011, p. 7) tomado enquanto desfecho agonizante da prpria
questo socrtica: o problema socrtico parece desesperadamente privado dos
documentos a partir dos quais os elementos de sua soluo poderiam emergir e a chave
do enigma ser encontrada (2011, p. 9). Isso porque no se pode encontrar quaisquer
vestgios de historicidade em discursos que se realizam, acima de tudo, como fico.
Aquele que parecia ser o mtodo mais seguro para Schleiermacher acabou por resultar, a
Dorion, num emaranhado difcil de deix-lo sobreviver.
em suas investigaes sobre o Scrates autntico e o Scrates de Xenofonte
(1893) que a questo da ficcionalidade se evidencia com todo prejuzo ao parecer de
Xenofonte: Jol conclui, e na sua esteira Dorion, que as mesmas ideias expressas por
Scrates esto ali presentes onde Scrates no est. Mas ao contrrio do que pretender
Dorion ao analisar o testemunho de Xenofonte, a contribuio de Jol foi determinante para
59 The only safe method seems to be, to inquire: what may Socrates have been, over and above what Xenophon has described, whithout however contradicting the stokes of character, and the pratical maxims, which Xenophon distinctly delivers as those of Socrates: and what must he have been, to give Plato a right, and an inducement, to exhibit him as he has done in his dialogues? DORION, The Rise and Fall of the Socratic Problem, p. 4. VILHENA j havia oferecido sua avaliao deste texto, ressaltando o trabalho de Schleiermacher como decisivo no apenas para estabelecer uma relao investigativa para as fontes socrticas, mas principalmente para a delimitao do mrito de Scrates como filsofo; O problema de Scrates, p. 180-181. A obra de Schleiermacher tambm foi avaliada em outros trabalhos de DORION A lorigine de La question socratique et de la critique Du tmoignage de Xnophon: lctude de Schleiermarcher sur Socrate (1815). Dionysius 19 (2001), p. 51-74; Compreender Scrates (traduo de seu Socrate, de 2004), p. 19-22 60 JOL, Der logos sokratikos, AGP (1895-1896): p. 466-483
A caricatura da philosopha 37
impor, como diz Vilhena61, a necessidade de uma crtica vigorosa a Xenofonte, face aos
exageros que se v ao tomar Xenofonte enquanto fonte mais confivel para o conhecimento
de Scrates. Alm do mais, Jol contribuiu para desviar o foco do problema central, o do
valor histrico deste testemunho: ao condenar como fico os logo sokratiko a partir do
que se constata em Xenofonte, o scholar alemo no s problematiza a intencionalidade do
historiador antigo como fonte, mas exagera suas consideraes a todos os socrticos. Mas
seria Xenofonte um bom parmetro de avaliao dos lgoi sokratiko, j que ele filho
tardio deste gnero de escrita?62 Desse exagero seguiro concluses como as de Duprel e
Gigon, que fazem o parecer de Xenofonte respingar sobre toda a literatura socrtica63, e so
elas que daro o ensejo para as investigaes de Burnet e Taylor64.
Dorion, entretanto, ir mais longe. O ponto de vista defendido pelo canadense o
abandono da questo socrtica como um falso problema, haja vista o carter inegavelmente
ficcional dos lgoi sokratiko encerrar toda a investigao sobre o filsofo no mais na
estril avaliao da possvel historicidade dos testemunhos que temos sobre Scrates, mas
naquela maior liberdade que o mtodo exegtico (a dita comparative exegesis) proporciona,
tendo em vista exatamente a possibilidade que os autores dos testemunhos tiveram em criar
cada um seu Scrates. Ao procurar entender os ditos temas socrticos (socratic themes)
luz no de uma concordncia ou discordncia entre as fontes na busca pela autenticidade
de certo autor acerca do tratamento que ofereceu ao tema, revelia dos demais, e que
conduziu, por exemplo, ao desprezo de Xenofonte em Schleiermacher como fonte digna de
crdito filosfico mas da conservao de todas elas, cujo valor passa a estar na respectiva
importncia que possuem para o tratamento desses temas, a anlise que se dar filosofia
de Scrates torna-se no mais a busca pela possibilidade de se alcanar tal filosofia; antes, o
estudioso deve submeter as fontes a uma interpretao que procure encontrar as convices
ideolgicas prprias ao seu autor, em relao ao modo como aqueles temas socrticos
61 VILHENA, O problema de Scrates, p. 169 62 VILHENA, O problema de Scrates, p. 171; cf. ainda, p. 223-227 e, sobretudo, p. 234, n. 1 63 Cf. DUPREL, La Legende Socratique et les sources de Platon, 1922; GIGON, Sokrate, 1947. Alm de Dorion, KAHN um exemplo moderno desse exagero a partir de Xenofonte, como veremos frente. 64 VILHENA, O problema de Scrates, p. 211. Conhece-se bem a tese polmica da dupla de escoceses que, embora independentes, fora formulada sob a mesma inspirao: nas palavras de Vilhena, Taylor e Burnet, identificando o Scrates platnico com o Scrates histrico, foram mais longe ainda... Para os dois investigadores escoceses... uma grande parte do que habitualmente se considera como platnico deve caber a Scrates. Idem, p. 392.
38 Cesar A. M. de Alencar
haviam sido por ele trabalhados. Este sim, dir Dorion, o nico modo de se interpretar
adequadamente o socratismo (2011, p. 19).
Esta proposta interpretativa, que apresenta uma nova lida com as fontes, advm do
estudo de Gigon que, segundo Dorion, nos leva a concluir: o problema socrtico obstrui
um claro entendimento histrico da eficincia das diferentes representaes de Scrates na
histria da filosofia (2011, p. 21). Concordamos absolutamente, conquanto tendo em vista
posturas diferentes. Ainda assim, o programa exegtico proposto por Gigon de um valor
considervel aos estudos que venham a se realizar sobre Scrates, podendo ser resumido na
seguinte tarefa trplice, segundo o artigo de Dorion:
(1) deve-se analisar, independentemente, cada lgos sokrtikos conservado, a fim de proceder rec