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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06 Olhos da Inocência - Nina Beaumont Sapphire Magic Sincera inocência... ou enganadora ilusão? O conde austríaco Ferdinand von Berg era um homem cético. Havia participado de batalhas sangrentas, testemunhando muitas carnificinas, e guardava no coração as cicatrizes dos caprichos de varias mulheres. Ao conhecer a linda e ingênua Arabella Douglas, desejou muito acreditar em sua pureza. Contudo, aprendera havia muito tempo a nunca confiar, a jamais ter esperanças... 1

Ch 006 nina beaumont olhos da inocência

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06

Olhos da Inocência - Nina BeaumontSapphire Magic

Sincera inocência... ou enganadora ilusão?O conde austríaco Ferdinand von Berg era um homem

cético. Havia participado de batalhas sangrentas, testemunhando muitas carnificinas, e guardava no

coração as cicatrizes dos caprichos de varias mulheres. Ao conhecer a linda e ingênua Arabella Douglas, desejou muito acreditar em sua pureza. Contudo,

aprendera havia muito tempo a nunca confiar, a jamais ter esperanças...

Arabella Douglas não suportava as vaidades e intrigas da aristocracia vienense, mas ao ver o conde, atraente

e severo, logo descobriu que ele era o único homem que merecia seu amor e por quem estava realmente se

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06

apaixonando! Como agir para vencer a desconfiança de Ferdinand e lhe provar a sinceridade de seus

sentimentos?

Disponibilização do livro: Nutri.Rosangela

Digitalização: Polyana

Revisão: Caroll WillowsVon Berg

1. Sapphire Magic (1991) Olhos da Inocência - Clássicos Históricos 6

2. Promises to Keep (1992)

3. Tapestry of Fate (1994) Rapsódia russa

4. Tapestry of Dreams (1995) Anjo Proibido - Clássicos Históricos 65

"Vá para o inferno, Arabella!"

— Eu jamais a desposarei. Mas se me provocar o suficiente, farei amor com você.

Por um momento, Arabella não conseguiu falar, pois o ar ficou preso em sua garganta. Esse era o fogo da paixão que ela havia apenas vislumbrado à margem do rio. Sentiu o sangue correr mais quente em suas veias, a excitação a pulsar dentro de si, antevendo o que seria experimentar aquele desejo quando, enfim, fosse liberado.

— Até onde? — ela perguntou.

— O quê? — A voz de Nando soava rouca.

— Até onde terei de provocá-lo? — Sua respiração ofegante a fazia parecer sem fôlego.

A pressão dos dedos ao redor do pulso de Arabella foi afrouxando até tornar-se uma carícia, o polegar de Nando passou a deslizar sobre a pele macia de seu braço, sentindo o pulsar do sangue nas veias.

— Não muito, Arabella. Não muito... ,

Copyright © 1991 by Nina Gcitler

Publicado originalmente em 1991 pela Harlcquin Books, Toronto, Canadá.

Todos os direitos reservados, inclusive o direito de reprodução total ou parcial, sob qualquer forma.

Esta edição é publicada por acordo com a Harlcquin Enterprises B.V.

Todos os personagens desta obra, salvo os históricos, são fictícios. Qualquer outra semelhança com pessoas vivas ou mortas terá sido mera coincidência.

Tradução: Cecília Florence Borges Rizzo

Copyright para a língua portuguesa; 1993

EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.

Al. Ministro Rocha Azevedo, 346 — CEP 01410-901

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06Sào Paulo — SP — Brasil - Caixa Postal 9442

SERVIÇO DE ATENDIMENTO AO ASSINANTE

Telefone: (011) 851-31 11 Cartas para: "Central de Atendimento" Alameda Ministro Rocha Azevedo. 346, 4e andar . CEP 01410-901 — São Paulo — SP

Esta obra foi composta na Editora Nova Cultural Ltda.

Impressão e acabamento: Grálkn Círculo

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06

CAPÍTULO I

Viena, Áustria, 1814

Tão logo abriu os olhos, Arabella afastou o alcochoado e abandonou a cama. Em poucos instan-tes, depois de abrir as cortinas, escancarava a janela. A primeira lufada de ar frio, que o sol de setembro ainda não conseguira esquentar, invadiu o quarto trazendo um leve cheiro de fumaça e de pão saído do forno. Com as mãos apoiadas nos batentes, Arabella içou o corpo até conseguir debruçar-se no peitoril. Virando o rosto para cima, respirou fundo.

Apenas uma nesga do céu azul podia ser vista acima das casas estreitas e de vários andares. Mas que azul profundo! Jamais em lugar algum da Inglaterra, o céu recebera pinceladas dessa inacreditável tonalidade anil. Tratava-se de algo lindo, uma verdadeira proclamação ao mundo abaixo.

— Viena — murmurou Arabella.

O nome continuava a ter o mesmo encanto e doçura de duas semanas atrás, da primeira manhã em que se debruçara nessa janela. Aliás, a palavra tinha sabor tão doce quanto a confeitaria pela qual a cidade se tornara famosa. Nem o fato de já haver descoberto aspectos menos atraentes de Viena diminuía o prazer da aventurazinha que a enchia de expectativa ao despertar de manhã.

Ainda era cedo e os ruídos, que chegavam até sua janela no terceiro andar, tornavam-se distintos na quietude matinal. Sorrindo, Arabella fechou os olhos para absorver melhor os sons e deixá-los formar um quadro na mente.

Uma canção assobiada, sinal convencionado, chamou a atenção de Arabella levando-a a debruçar-se mais ainda a fim de olhar para a pequena praça abaixo.

O rapaz de cabelos claros, aprendiz de padeiro, estava lá colocando, na carroça, uma cesta larga repleta de pães dos mais variados tipos. Ele olhou para cima e sorriu. Enquanto acenava disfarçadamente para Arabella, verificava se o patrão, rápido em esbofetear-lhe as orelhas, não estava por perto.

Arabella retribuiu a saudação sem se importar com a aparência pouco convencionai dada pela camisola de cambraia branca e pela trança dos cabelos já bem desfeita e caída sobre um dos ombros. Com olhar vivo, observou os pãezinhos a fim de escolher o que desejava saborear no café da manhã.

O rapaz, com gestos rápidos, foi apontando de um em um e olhando para cima a fim de se inteirar de sua escolha. Quando indicou o recheado de passas, ela acenou afirmativamente. Depressa, Arabella colocou uma moeda na bolsinha de veludo azul, amarrou a ponta de um rolo de barbante nas alças e começou a baixá-la.

No espaço de um minuto, o pãozinho ocupava o lugar da moeda e ela reenrolava o barbante encerrando a transação de maneira satisfatória para ambos os lados.

Atrás de Arabella, a porta rangeu ao ser aberta, seguindo-se uma exclamação de surpresa, o tilintar de louça numa bandeja e a voz de sua criada.

— Mon Dieul Afaste-se dessa janela. Arabella! Vai acabar caindo lá embaixo! — exclamou Jeanne ao puxá-la para dentro pela camisola.

Já abria a boca para dirigir a reprimenda devida, mas foi impedida por um abraço de Arabella que. logo depois, lhe oferecia um pedaço do pãozinho doce.

— Já tomou seu café, Jeanne? — indagou com um sorriso matreiro.

— Precisa fazer isso todas as manhãs? Não pode esperar até eu lhe trazer a bandeja? Se lady Castlereagh descobrir a louquinha que você é, vai despachá-la de volta para Londres no mesmo instante e lavar as mãos.

Num gesto afetuoso, Arabella apertou-lhe a bochecha gorducha.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06— Você não me engana, sua velha fingida. Caso eu me tomasse a moça maneirosa e dócil, na

qual todos se esforçam em me moldar há dezenove anos, você seria a primeira a detestar a mudança. Jeanne desistiu de resistir a seu sorriso e retribuiu o abraço.

— Eh, bem. No que me diz respeito, pode continuar com essa brincadeira de manhã. Mas tome cuidado para não despencar lá para baixo — advertiu a criada sacudindo o indicador.

— Não se preocupe — respondeu Arabella ao tomar um gole do chocolate quente.

Estava em pé junto à mesinha, pois a mente agitada com os planos para esse dia, tolhia-lhe a paciência impedindo-a de se sentar e alimentar-se com calma. Embora ainda fosse bem cedo, não tinha tempo a perder. As horas do dia não eram suficientes para as atividades traçadas.

Como em todas as manhãs e antes de sair de casa, Arabella bateu na porta da saleta de lady Castlereagh.

— Vai nos acompanhar hoje no passeio pela cidade, lady Castlereagh? — perguntou estremecendo intimamente por agir com dissimulação, porém recusando-se a se sentir culpada.

Durante as últimas cinco semanas passadas em Antuérpia, Bruxelas, Paris e agora em Viena, Arabella aprendera a querer bem a boa senhora. Por isso mesmo e além de detestar qualquer tipo de decepção, não gostava de enganá-la. Todavia e apesar da personalidade afável de lady Castlereagh não recomendá-la como pessoa severa e nem casamenteira como o pai teria preferido, Arabella hesitava em revelar-lhe que, em vez de passar horas mirando a arte e a arquitetura de Viena, ocupava-se trabalhando em um orfanato paupérrimo.

— Hoje não, minha querida, mas não se prenda por mim. Pode ir passear desde que vá acompanhada por Jeanne. — respondeu lady Castlereagh.

Pouco depois e após atravessar a praça St. Peter, Arabella e Jeanne apressaram o passo pela Graben, deixando para trás a coluna barroca erguida em comemoração ao fim da Peste Negra. Não pararam diante das vitrines elegantes, protegidas por toldos coloridos, nem para admirar o esplendor gótico de St. Stephan.

Caminhando de braços dados pelo emaranhado de ruas e vielas, logo chegaram ao seu destino, um prédio mal conservado, localizado numa rua escura, próxima à muralha ao longo do rio. Ali, a proteção da cidade tinha um aspecto sombrio e ameaçador bem diferente de sua continuação junto ao palácio imperial, o Hofburg.

Naquela parte, os vienenses influentes a tinham transformado numa passarela aprazível para seus passeios.

Enquanto subiam os degraus de acesso a porta, Arabella imaginou se Jeanne compreendia o quanto ela necessitava dessas horas passadas no orfanato. As crianças famintas de afeto a ajudavam a enfrentar a frivolidade de suas atividades sociais.

No início da tarde, quando retomavam à praça St. Peter, o sol brilhante as convidava a um passo vagaroso. Resolveram voltar pelo caminho mais longo e passear pela superfície da muralha.

As paredes de pedra tinham servido bem seu propósito durante os séculos em que Viena se via ameaçada por ataques consecutivos dos turcos e dos povos guerreiros das planícies orientais. Mas agora, elas não constituíam mais um ponto essencial de defesa da cidade e suas passagens largas eram o lugar para se exibir um novo vestido ou namorado.

Os caminhos, semeados por árvores, vegetação decorativa e bancos coloridos, exerciam grande atração. Percebendo que Jeanne começava a arrastar os pés, Arabella sugeriu:

— Vamos sentar um pouco?

A criada lhe dirigiu um olhar de gratidão, sabendo que sua energia ilimitada não teria escolhido esse momento para descansar.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06Muitas das partes largas das muralhas tinham cafés aninhados entre o verde das plantas, com

mesas não só na parte interna como também nos terraços. O banco onde se sentavam oferecia a visão perfeita deles e Arabella aspirou fundo ao sentir o cheiro delicioso de café recém-torrado e de leite aromatizado com amêndoas. Músicos caminhavam entre as mesas e até Jeanne, afetada pelo hipnotismo dos violinos e acordeões, começou a balançar um pouco o corpo sob o efeito da melodia.

Alegria emanava das pessoas elegantes, mas não do tipo barulhento e levemente artificial detectado por Arabella em Paris. Ali, ela era mais leve e espontânea. Sentiu uma forte vontade de rir. alto para expressar o prazer provocado pelo ambiente descontraído.

Ao fim de alguns minutos, Arabella não conseguiu manter-se sentada e elas retornaram a caminhada. Logo adiante de uma curva, a muralha oferecia uma vista linda da cidade de um dos lados e, do outro, um café convidativo. Arabella decidiu que estava na hora de tomarem alguma coisa. Tratava-se de recompensa bem merecida depois da longa caminhada.

Jeanne, percebendo-lhe a expressão de expectativa, advertiu com voz baixa, mas enérgica:

— Não se atreva a entrar ali sozinha.

A vontade de Arabella deu lugar à determinação.

— Há várias senhoras desacompanhadas sentadas às mesas — argumentou.

— Há várias mulheres desacompanhadas, sem dúvida — rebateu Jeanne. — Eu não apostaria um vintém furado quanto a serem senhoras.

— Deixe de ser implicante, Jeanne. Ninguém nos conhece e eu só quero tomar algo refrescante. Não pretendo chamar a atenção sobre mim mesma.

Numa atitude de inflexibilidade, a criada puxou as pontas do xale e cruzou os braços sobre o peito generoso. Enquanto lhe bloqueava o caminho, enchia os pulmões de ar, disposta a refutar todo e qualquer novo argumento.

Porém Arabella não insistiu, desarmando Jeanne com um sorriso cândido. Passou a mão sob seu cotovelo, como se fosse to-mar-lhe o braço, mas pôs-se a fazer-lhe cócegas sobre suas costelas bem acolchoadas de gordura. Mal reprimindo um grito de surpresa e embora os olhos ainda mantivessem expressão severa, Jeanne não conteve um risinho divertido. Suspirando, acabou cedendo e deixando Arabella conduzi-la por entre os vasos de plantas à entrada do terraço.

O conde Ferdinand Berg apoiava-se no balcão que se estendia ao longo do café. Os dedos esguios, onde só se via um anel de ouro e lápis-lazúli, com o brasão da família, brincavam com o copo alto de Einspãnner, o café aromatizado e adoçado com uma colher de creme batido. A bebida estava quase intacta. Um observador descuidado classificaria sua atitude de preguiçosa, mas alguém mais perspicaz notaria a tensão nos movimentos das mãos e a inquietação expressa nos olhos cinzentos.

Ele estava entediado. E como sempre que se encontrava nesse estado, o conde Berg irritava-se. Porém a vida o tinha forçado, há muito tempo, a adquirir disciplina e a disfarçar tais emoções indesejáveis. Portanto, ninguém se dava conta delas, nem mesmo o jovem amigo, o conde Hugo Lemdorf, encostado ao balcão a seu lado.

Com apenas atenção parcial, Berg ouvia os comentários entusiasmados e um tanto imaturos sobre as mulheres presentes e que Hugo insistia em lhe confidenciar. Não sentia o mínimo interesse pela farta beleza feminina que o rodeava. Os olhos cinzentos, com expressão fria, percorriam o ambiente que o fazia desejar estar em qualquer outro lugar, menos ali.

Após nove anos no Exército Imperial Austríaco, passados quase todos em guerras incessantes, o conde Berg se encontrava de volta a Viena. A última campanha em que lutara tinha terminado seis meses atrás e ele esperava não ter mais de retornar ao campo de batalha. Apesar disso, ainda não se sentia um homem livre. Há quatro meses, vinha se debatendo nessa cidade tentando convencer o general

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06príncipe Schwarzenberg, seu comandante, a lhe conceder baixa. Só então, poderia ir cuidar das propriedades espalhadas pela Estíria, Boémia e Hungria. Entretanto, o príncipe insistia em sua presença, como representante de uma das famílias mais antigas e nobres da Áustria, no congresso a ser realizado em Viena, nesse mês de setembro, para tratar da rearrumação da Europa após a queda de Napoleão.

Uma onda de descontentamento o dominou. Sua vida estava cheia de atividades sociais vazias que o exasperavam com suas intrigas e flertes cansativos. No exército, pelo menos, a vida tinha aspecto previsível, pois a brutalidade e crueldade eram executadas aberta e honestamente. Um homem sabia, ao certo, quem eram seus inimigos. Berg havia sempre considerado ser mais fácil proteger a retaguarda nos campos de batalha do que nos salões de Viena.

Ansiava por estar em casa contemplando os campos intermináveis e as florestas das propriedades dos Berg. Rodeado pelo ruído de conversas animadas, ele almejava o silencio quebrado apenas pelo canto de um pássaro ou o ciciar de uma foice. Sufocado por nuvens de perfume francês, desejava sentir o aroma puro dos pinheirais e do feno recém-cortado. Queria muitíssimo sentir-se inteiro novamente, após anos durante os quais se fragmentara entre as batalhas no campo e nas dos bordeis. Elas os tinham deixado vazio e cético.

De repente, Berg empertigou-se como se dedos invisíveis o puxassem pela gola da túnica, imaculadamente branca, do uniforme militar.

Jamais fora capaz de determinar a primeira coisa que notou nela. Talvez fosse a altura. Apesar da distância entre ambos e do chapeuzinho azul usado por ela. sabia que o topo de sua cabeça deveria alcançar-lhe o queixo.

Ela estava um pouco além dos vasos de plantas que marcavam a entrada do café, os lábios cheios curvados num sorriso matreiro. Este refietia-se na vivacidade dos olhos. Então, uma amostra da voz da moça chegou-lhe aos ouvidos, Era como o roçar delicado do veludo na pele nua. Um arrepio percorreu-lhe a espinha.

— Uma pequena aposta, Nando, meu amigo? A moça do chapeuzinho azul é francesa ou inglesa?

A voz de Hugo penetrou a consciência de Nando e ele percebeu que a moça, a quem observava, era o alvo das especulações do amigo. Os olhos de Berg não esconderam o aborrecimento contra si mesmo pela onda de fascínio sentida.

— Por que não me conta. Hugo? — sugeriu em voz morosa. — Afinal é você quem estuda as beldades de nossa cidade com perseverança imbatível.

Bem humorado, Hugo ignorou o sarcasmo de Nando.

— O seu francês é impecável e ela se veste com extrema elegância. Mas a roupa da companheira está bem fora de moda. Sei de fonte segura que só as inglesas usam espartilho hoje em dia.

Nando riu de maneira um tanto seca.

— Hugo, se você empregasse a mesma seriedade dedicada à moda feminina ao estudo da estratégia militar, daria um general formidável!

Ele próprio não dava a mínima importância ao que as mulheres usavam. Afinal, as sedas, cetins, jóias e perfumes não passavam de artimanhas utilizadas por elas com o intuito de ganhar acesso à cama de um homem. De preferencia de um que pudesse dispor de fortuna e poder a par de destreza no quarto, refletiu Nando com humor cáustico.

Viu a moça sentar-se a uma mesa e pôr a mão no braço da companheira. O sorriso já não era matreiro, mas revelador de uma meiguice genuína, impossível de ser fingida. Nando não reprimiria um riso cético se alguém lhe dissesse que os lábios sob o bigode loiro e sedoso, haviam suavizado a expressão enquanto ele se perdia, novamente, na magia daquele sorriso.

— Ou ela é inglesa com uma costureira francesa, ou é emigrante francesa que acaba de deixar o 7

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06exílio na Inglaterra — continuou Hugo com jeito de grande autoridade no assunto. — A segunda hipótese é mais provável, A elegância e pose tão naturais só podem ser francesas — concluiu com ar sonhador.

— Santo Deus, Hugo, você não consegue escolher um assunto melhor? — explodiu Nando. — Precisa insistir em falar bobagens?

O riso em uma das mesas próximas estancou diante do desabafo feito em alto e bom som. Atónito, Hugo entreabriu os lábios. Que fim teria levado a voz melodiosa de barítono usada por Nando para disfarçar os comentários exasperados? Ouvi-lo expressar-se naquele tom alto, exceto no campo de batalha, era algo novo.

— Desculpe, Nando. Não era minha intenção irritá-lo — disse cm voz consternada.

O conde Berg foi tomado pelo remorso. A culpa não cabia ao pobre Hugo, Não tinha o direito de usar o amigo como pára-raios só porque a moça tinha tocado numa fonte de ternura há tanto tempo enterrada e esquecida em seu íntimo. Por uma fração de segundo, cruzou-lhe a mente a ideia de que desejava revitalizá-la. Mas preteria não analisar o sentimento agora.

Você está sendo um perfeito idiota, criticou-se Nando. O fato dela ser linda o lembra de que, há tempo demais, você não aprecia uma mulher.

Apesar da admoestação, o olhar de Nando dirigiu-se mais uma vez por um segundo apenas, para a moça a fim de beber-lhe o sorriso como a terra seca absorvia a menor gota de chuva. Em seguida, colocou a mão no ombro de Hugo com a intenção de levá-lo embora dali. Antes porém de expressar a vontade, ouviu um pedaço de conversa vindo de uma mesa ao lado.

— A moça de azul lá. Ouvi dizer...

Nando imobilizou-se como se houvesse criado raízes no chão e fez algo que teria considerado abominável caso estivesse refletindo bem. Disfarçadamente, prestou atenção.

— Trata-se de Arabella Douglas. Pertence a uma família amiga dos Castlereagh. Talvez seja uma parenta pobre, pois não tem título. Por enquanto.

A voz de mulher indicava firmeza, sinal de que ela se dera ao trabalho de verificar os fatos.

— É encantadora — comentou o companheiro tentando, sem muito sucesso, disfarçar o entusiasmo.

A mulher soltou uma exclamação de desdém.

— Com toda a certeza, está à caça de um marido. Afinal, há mais homens solteiros e com títulos de nobreza em Viena agora do que em qualquer outra cidade europeia.

— Alguém me contou que ela passa todas as manhãs em um orfanato — aparteou uma outra voz feminina. — Podem imaginar uma pessoa fazendo isso de bom grado?

— Essas inglesas e suas atitudes farisaicas! — comentou a primeira mulher. — Se tal história é verdadeira, a mocinha, provavelmente, pensa poder impressionar um homem bem intencionado com sua caridade. Por que ela deveria ser melhor do que nós outras? — indagou com um riso maldoso.

Ao ouvi-lo, Nando deu-se conta do que fazia. Virou-se para Hugo e disse:

— Vamos embora. Já estamos aqui como dois idiotas há tempo demais. Preciso de exercício.

Sem se importar em haver apenas provado o café, ele largou umas moedas no balcão e afastou-se. Mas ao sair, os passos tornaram-se vagarosos como se ele não conseguisse controlá-los.

A moça do chapeuzinho azul olhou para além dos ombros da companheira e, por um instante, o fitou. Azuis, notou Nando. Mas que tonalidade extraordinária de azul! Como as safiras mais preciosas e

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06escuras, com uma incandescência escondida que se transformaria de acordo com a luz. Havia magia naqueles olhos. Magia que se insinuaria no sangue de um homem enfraquecen-do-o.

— Aonde vamos, Nando?

A voz de Hugo o fez retomar à realidade do terraço banhado de sol e Nando lembrou-se de quanto engano podia esconder-se sob a proteçâo da beleza. Mesmo assim, foi-lhe difícil arrancar os olhos da profundeza sedutora dos azuis.

— A qualquer lugar — resmungou.

Em atenção a Jeanne, Arabella escolheu uma mesa parcialmente escondida por uma treliça. Pouco depois, agradecia ao garçom pelos copos de leite gelado com sabor de amêndoa. Devagar, começou a descalçar as luvas.

Alertada por uma sensação curiosa e impossível de se descrever, Arabella ergueu a cabeça e vislumbrou os olhos mais extraordinários que já tinha visto. Cinzentos. Mas não da tonalidade de um pombo dócil. Não. esses olhos eram do cinzento inflexível e intenso de nuvens de granizo. Então, algo derreteu-lhes o gelo. Não chegava a ser,um sorriso, porem alguma coisa faiscante que atingiu-a bem no íntimo, onde jamais fora tocada, atiçando chamas cuja existência ela ignorava.

Tão repentinamente como havia recuado, a expressão gelada retornou e Arabella viu o oficial virar-se depressa, afastando-se pelo caminho arenoso. As botas pretas e enfeitadas com borlas, abaixo da calça justa e vermelha, chegavam a levantar poeira. Banindo todo e qualquer outro pensamento da mente, ela o seguiu com o olhar até perdê-lo de vista.

CAPÍTULO II

— Você é Arabella Douglas?

A indagação feita quase em tom de desafio levou Arabella a pedir licença ao cavalheiro idoso com quem conversava e virar-se.

— Sou, sim — respondeu ao deparar-se com uma jovem de cabelos loiros.

Arabella submeteu-se à observação indisfarçável e permitiu-se fazer o mesmo. Apesar da expressão aristocrática, achou a moça atraente e simpática.

— Muito bem. Você me aprova? — indagou após alguns segundos.

— Acho que sim. Sou Lulu Thiirheim e, como deve ter percebido, minha franqueza é famosa.

— Prazer em conhecê-la — cumprimentou Arabella. Já tinha ouvido o nome e sabia que as três irmãs Thurheim eram bem conhecidas na sociedade. — Considero a franqueza um hábito muito agradável, embora raro. Portanto, se você esclarecer qual é o seu critério para analisar as pessoas, talvez eu possa ajudá-la a decidir se me aprova, ou não — sugeriu sem conseguir reprimir um sorriso diante do olhar surpreso de Lulu von Thurheim.

— Bem, gostaria de saber se você não passa de uma fraude — Confusa, Arabella levou a mão ao peito,

— Esta querendo saber se sou, de fato, Arabella Douglas ou uma impostora?!

— Não. Quanto a sua identidade, acredito não existir dúvidas. Mas há um ponto a seu respeito sobre o qual as opiniões se dividem. Você é realmente a boa samaritana a ponto de gastar seu tempo num orfanato miserável, ou encontrou uma maneira inteligente de tocar sua trombeta e deixar o resto de nós com fama de filisteus?

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Page 10: Ch 006 nina beaumont olhos da inocência

Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06— Não me diga que as pessoas sabem disso! — exclamou Arabella.

— Minha cara, há mais espiões em Viena do que pulgas no pêlo de um cachorro de rua. Nada permanece em segredo por muito tempo nesta cidade. Você tencionava praticar, às escondidas, esse seu passatempo? Por que, pelo amor de Deus?

Antes de responder, Arabella respirou fundo.

— Essa atividade foi a primeira razão para motivar minha vinda a Viena. Meu pai concluiu que o meu "bom trabalho des-concertante", como ele o classifica, estava me atrapalhando na tarefa de arranjar o marido ideal. Por isso, convenceu lady Cas-tlereagh a me trazer para cá onde, espera, alguém o livre da responsabilidade para comigo.

Lulu riu.

— Conheço bem o problema. Mas agora que atingi a idade madura dos vinte e seis anos, meu pai conformou-se com a ideia de continuar pagando as contas de minha costureira pelo resto da vida. Portanto, vivo em paz, de um modo geral, para afiar minha língua em todo mundo como bem entender. Tenho o pressentimento, Arabella, de que nós duas vamos nos dar muito bem — concluiu ao tomar-lhe o braço..

Juntas, encaminharam-se à sala de música onde alguém dedilhava o piano. Peto jeito, Lulu conhecia todas as pessoas e tinha algo a dizer a respeito de cada uma.

Arabella ouvia os comentários com interesse relativo. Logo sua atenção começava a vagar. A lembrança dos olhos cinzentos persistia em sua mente desde aquele momento no café, ocorrido vários dias atrás. Tratava-se de uma experiência nova e não muito agradável ter um homem ocupando-lhe o pensamento sem cessar. Mas o instante, em que o gelo no olhar do oficial loiro tinha dado lugar ao fogo e as chamas a atingido, continuava a afetá-la como um ser vivo.

Cada oficial, no uniforme branco e vermelho do exército austríaco, apontado por Lulu, Arabella observava com expressão ávida, à procura dos olhos cinzentos de gelo e fogo. Finalmente, Lulu indagou:

— Está procurando alguém em particular?

Por um segundo, Arabella pensou em negar, mas decidiu-se pela meia verdade ao dar de ombros. Lulu riu.

— É mesmo? Nesse caso, vou esperá-la, amanhã, à porta do salão de baile principal de Hofburg. Lá, todos os homens uniformizados estarão sem máscaras.

Arabella sentiu uma onda de excitação ao entrar no salão de baile, vermelho e dourado, em companhia dos Castlereagh.

A aproximação ao palácio imperial tinha sido vagarosa, pois as ruas adjacentes estavam coalhadas de carruagens. No interior do palácio, a movimentação continuava intensa. Já havia concluído ser impossível encontrar Lulu von Thurheim no meio de tal multidão quando uma silhueta esguia, com a fantasia de dominó e máscara, tocou-lhe o braço.

Feitas as apresentações, os Castlereagh a deixaram entregue aos cuidados de Lulu.

Apesar das meias-máscaras usadas pela maioria das mulheres, Lulu reconhecia cada uma merecedora de menção. Quando a abertura oficial do baile teve início, com o ritual imponente da polonaise, Arabella já compartilhava do espírito dos comentários irreverentes da nova amiga.

A longa fila de dançarinos vinha encabeçada pelo czar Alexander e pela imperatriz da Áustria.

— Combinação estranha de parceiros — murmurou Lulu. De fato, pensou Arabella. O Czar de Todas as Rússias era alto, loiro e já bem gordo enquanto a imperatriz, cuja cabeleira escura mal chegava ao cotovelo de Alexander, mostrava-se tão emaciada que as faces carregadas de rouge davam-lhe um aspecto grotesco.

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Page 11: Ch 006 nina beaumont olhos da inocência

Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06A polonoise era interminável e, a fim de passar o tempo até que o baile geral começasse,

Arabella e Lulu esgueiraram-se por entre as pessoas, indo de salão a salão, todos feericamente ilu-minados e repletos de convidados. Quando a amiga parou para conversar com alguém, Arabella passou a uma saleta ao lado, grata por encontrar um aposento menos cheio e poder respirar um ar relativamente mais fresco.

Botas pretas reluzentes e uma nesga de vermelho a fizeram levantar a cabeça depressa. A silhueta, de ombros largos sob a túnica alva, parou à janela e Arabella ficou imóvel. O oficial virou-se de lado para falar com alguém, dando-lhe uma visão do perfil escultural. Sem se dar conta, ela prendeu a respiração. Ao soltá-la pelos lábios entreabertos, o ar saiu num ritmo irregular.

Alheia à imobilidade desacostumada, ao coração disparado e à respiração ofegante, Arabella ficou à espera de que ele se virasse de frente.

De repente, sentiu a mão de Lulu no braço. Mantendo o olhar nas costas do homem à janela e sem se importar em ser indiscreta, perguntou:

— Você o conhece? Lulu sorriu.

— Então é ele? Conheço, sim. Devo apresentá-lo? Arabella desprezou a indagação.

— Os olhos dele. São cinzentos?

— São — respondeu Lulu ao fitá-la com perspicácia. Novo disparo do coração deixou Arabella sem fala.

— Talvez fosse um grande favor se eu não o apresentasse. Arabella arregalou os olhos até o azul escuro não passar de uma moldura às pupilas dilatadas. Sabia que as palavras da amiga deveriam deixá-la apreensiva, mas apenas temia que o oficial desaparecesse sem lhe dar a oportunidade de ver seus olhos outra vez.

— Nando provoca esse efeito nas mulheres. Felizmente, fui afetada numa fase tenra da vida, quando a recuperação era mais fácil.

Nando. Por um momento, Arabella saboreou o nome em silêncio.

— Você o conhece há muito tempo? — quis saber.

— A vida inteira. Nossas famílias têm propriedades vizinhas na Boémia e nós sempre passávamos parte do verão lá. Nando quebrou a perna nas férias quando tinha doze anos. Fazer-lhe companhia, enquanto não podia andar, foi fatal ao meu coração. Eu estava com oito anos. Mesmo naquela época, o encanto de Nando já era imenso.

Lulu relanceou o olhar pela amiga e deu-lhe um tapinha no braço.

— Você está bem?

O toque trouxe Arabella de volta à saleta. Estava fazendo papel de boba, refletiu ao levantar o queixo em desafio aos sentimentos. Não lhe importava ser indiscreta, porém de jeito nenhum se comportaria como uma desmiolada por causa dos olhos de um homem, apesar de serem lindíssimos.

Diante da janela, Nando mantinha o olhar nas sombras da noite, forçando-se a esquecer o ambiente à volta. Os risos, as vozes, o ar carregado com o odor excessivo de velas e perfume o exasperavam.

Estava cansado. Não se tratava da fadiga gratificante sentida no final de um dia de cavalgada intensa. Era a saturação exaustiva provocada por dias consecutivos de obrigações sociais entediantes e por noites de insónia atormentadas pelas visões daqueles olhos de um azul incrivelmente escuro e cheios de promessas delicadas. Nando fez uma careta e mais uma vez tentou se convencer de que promessas desse tipo jamais eram cumpridas. Tal lição, ele havia aprendido através de dura experiência há muito tempo. Entretanto, semicerrou as pálpebras com ar sonhador.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06Mas os olhos abriram-se depressa ao ouvir um murmúrio aveludado as costas. Afastando-se um

pouco para o lado. focalizou a atenção no reflexo na janela. Conseguiu distinguir dois rostos parcialmente mascarados. Firmou a vista e fez um esforço para reconhecê-los. Após alguns segundos, uma sombra de sorriso ergueu-lhe o canto dos lábios. Aquela boca bem delineada, acima do queixo voluntarioso, só podia pertencer à velha amiga, a condessa Lulu Thurheim. Desviou os olhos para a sua companheira. De repente, o tédio e o desânimo desapareciam dando lugar a uma expectativa estonteante. Todos os seus instintos reavivaram-se.

Descruzando os braços, virou-se da janela e em três passos largos, percorreu o espaço que os separava. Nando curvou-se sobre a mão de Lulu ao mesmo tempo em que batia os calcanhares num gesto exagerado.

— Meus respeitos, condessa — cumprimentou.

Com o leque, Lulu tocou a gola alta e engomada da túnica do uniforme a rigor. As varetas de madrepérola estalaram de encontro ao galão dourado e enroscaram-se em mechas dos cabelos da cor do mel dourado. Enquanto Nando endireitava o busto, ela puxava os fios longos.

— O que é isso? Você parece um frade dominicano francês com esses cabelos compridos! Ou será que, depois de tanto tempo na cavalaria, você resolveu cultivar uma crina igual a dos cavalos? — demandou Lulu. Nando sorriu-lhe.

— Não seja impertinente. Sou uma das poucas pessoas que sabe seu nome verdadeiro. Não se esqueça.

Lulu franziu o nariz à menção de seu detestável primeiro nome, Ludovika. A respeito dele, tinha suportado muita provocação por parte de Nando e do irmão.

— Antipático como sempre, percebo — comentou, mas deu de ombros. — Nando, posso apresentá-lo a...

Calou-se vendo que suas palavras não eram ouvidas pelos companheiros. Deu um passo para trás e observou-os, porém eles fitavam-se tão embevecidos que nem lhe perceberam o movimento. Com uma leve ponta de inveja, Lulu afastou-se.

Ali estavam os olhos que ela vinha procurando em todos os rostos de oficiais. O cinzento tempestuoso e gélido à luz do sol adquiria um brilho prateado sob o reflexo das velas.

O calor estava neles, como lembrava-se muito bem, aquecendo-lhe a pele. Arabella queria protestar contra a liberdade com que eles lhe perscrutavam as feições, escondidas apenas em parte pela meia-máscara de seda branca. Eles detectariam a ansiedade, a agitação, tudo que as regras determinavam ficar escondido sob a aparência de um comportamento controlado. Porém, ela não tentou disfarçar. Emocionada, aceitava o olhar que lhe percorria a pele com morosidade quase insuportável. O olhar que, em si mesmo, constituía uma carícia.

O calor tornou-se inebriante e começou a espalhar um langor por seu corpo como se Nando a tocasse. Ergueu o queixo desafiando todas as emoções novas e estranhas que a dominavam.

Ali estavam os olhos que vinham lhe perturbando o sono. As velas no lustre de cristal acima lançavam reflexos dourados nas profundezas cor de safira, cujo ardor pedra preciosa alguma poderia exibir. Pela força do hábito, Nando imaginou quanto desse fervor seria real, mas afastou a indagação ao dar-se conta do quão pouco desejava a resposta. Deixou o olhar percorrer-lhe o rosto bem devagar, absorvendo a frescura de sua pele. Mal dominava a tentação de remover a máscara de seda a fim de tocar-lhe a face, certamente tão macia quanto o cetim. Seus lábios estavam entreabertos numa expressão de surpresa. Ao descer o olhar para o pescoço esguio, ele vislumbrou uma veia latejando, proclamando-lhe a agitação. Porém ela não fazia nada para disfarçar a reação. Ao contrário. Num gesto de desafio, ergueu bem o queixo, permitindo que a luz das velas lhe iluminasse o pescoço.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06Ao notar a ingenuidade com que ela se mostrava vulnerável, Nando se enterneceu, mas resolveu

resistir. Jovem ainda, ela não deveria ter prática na arte de sedução, disse a si mesmo. Lastimável não estar ele à caça da inocência.

Mas então, ela sorriu e o brilho da expressão foi como um raio de sol empanando a artificialidade do ambiente. Não lhe era possível desprezar esse momento. Ainda não.

CAPÍTULO III

Meu nome é Arabella Douglas. — Eu sei — respondeu Nando fitando-a por um longo tempo antes de se lembrar das boas maneiras e curvar-se sobre sua mão, parando os lábios, aos cinco centí-metros estipulados pela etiqueta, acima dos dedos enluvados.

Ele sentiu a fragância de lírio do vale emanada através da luva de cetim branco e imaginou se o resto de seu corpo teria o mesmo perfume. A simples ideia provocou-lhe uma reação física.

— Você sabe? Como assim? — perguntou Arabcella, admirada.

— Alguém no café mencionou seu nome.

Nando sorriu deliciado com sua maneira de expressar surpresa arregalando os olhos, embora uma voz íntima negasse a autenticidade da atitude. Deu de ombros e acrescentou:

— Viena é como uma grande vila. Todo mundo se inteira da vida de todo mundo.

— Nesse caso, devo ser uma exceção. Ignoro tudo a seu respeito. Nem mesmo sei seu nome completo.

— Lulu não lhe contou? — perguntou.

— Todo, não. — Sorriu. — Apenas Nando.

Mais uma vez, ele se sentiu perdido no sorriso oferecido com tanta liberdade. Com alguma dificuldade, protegeu-se com a habitual disciplina férrea.

— Ferdinand von Berg.

— Ah, Ferdinand! Tem um som muito altivo e severo. — Arabella apertou os lábios numa expressão marota. — Espero que ninguém o chame assim.

Nando reprimiu a lembrança do pai severo que não o tratava pelo apelido.

— Não. Não mais. :

Arabella viu os olhos cinzentos sombrearem-se e lamentou as palavras petulantes. Crispou as mãos para dominar a vontade de tocá-los e afastar a tristeza deles. Em vez disso, virou-se à procura de Lulu, porém a amiga havia desaparecido. Sem dar importância ao fato, dirigiu-se a Nando.

— Com certeza, Lulu se cansou de esperar que parássemos de nos fitar.

O comentário espontâneo tomou Nando de surpresa e ele foi incapaz de disfarçar a reação. Praga de moça! pensou. Não contava com essa atitude. Aliás, não sabia com o que contava, mas não haveria de ser com essa franqueza desarmante, essa inocência. Por um momento, a mente desconfiada refletiu até que ponto ela usava tal honestidade para alcançar seus propósitos sinuosos de mulher. Mas Arabella continuava a sorrir e Nando viu-se oferecendo-lhe o braço num convite para dançar.

Dançaram a primeira música e, em seguida, a segunda e a terceira sem necessidade de novos convites e aceitação. A troca mínima de palavras permitia que aquele encontro inicial se limitasse ao

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06descobrimento do puramente sensorial. De maneira sutil, a novidade provocava-lhes a excitação das terminações nervosas.

O contato de mãos enluvadas. O roçar de seda em lã. O odor ténue de couro e tabaco. A pureza sedutora da fragância de lírio do vale.

Arabella sentia o sangue agitar-se. O latejar da veia na base do pescoço multiplicava-se, a cadência convergindo a um ponto profundo de seu ser.

O corpo de Nando vibrava sob a sensação imaginária caso colasse os lábios na pele sedosa de seu pescoço. E havia a boca, exuberante e úmída como morangos amadurecidos ao sol, dona de um sorriso encantador. Tomado por uma ponta de desespero, tentou se convencer de que não desejava nem a excitação, nem o encanto meigo oferecidos por Arabella.

Influenciada pela maneira natural e precisa dos movimentos de Nando, ela o observava fascinada. Admirava-lhe a disciplina, o controle, o sorriso distante que quase nunca atingia o prateado dos olhos.

Por um instante, uma chama passou por eles, mas vencedor, o gelo retornou depressa. Por enquanto, disse Arabella a si própria. Levada pelo idealismo romântico da imaginação de seus dezenove anos, estava certa de que seu calor conseguiria derreter o gelo. Todo ele.

— Alguma coisa errada? — perguntou baixinho ao vê-lo arquear as sobrancelhas.

— Não — Nando respondeu com o sorriso distante. — Deveria haver?

Arabella deu de ombros e sorriu-lhe.

— Não sei. Você parece descontente.

Nando absorveu o sorriso. Havia algo tão firme e confiante nele que chegava à duvidar se Arabella era, de fato, inocente e pura como tinha imaginado no início. A ideia provocou-lhe nova onda de excitação.

— Não, não estou descontente. — Os dedos de Nando fecharam-se sobre os de Arabella e, por um segundo, ele esqueceu haver negado desejá-la. — Estou muito satisfeito.

A certa altura, encontraram-se próximos a um arranjo de laranjeiras plantadas em vasos e Nando conduziu Arabella para fora da pista de dança. De repente, sentia vontade de ouvir-lhe a voz, de saborear seu sorriso sem a interferência dos movimentos graciosos de seu corpo.

— Está gostando de Viena? — perguntou enquanto abriam caminho entre os convidados, em direção à sala onde o bufe era servido.

— Muitíssimo. Acho a cidade adorável.

— Não a considera aborrecida em comparação ao brilho de Londres?

Sem conter a surpresa, Arabella o fitou ao repetir:

— Brilho?!

Para ela, Londres não passava de um lugar sombrio onde sua existência seguia os rumos determinados pelo pai indiferente e pela mãe que vivia em algum lugar remoto das próprias lembranças. Em Viena, sentia-se livre pela primeira vez na vida.

— Não sei quanto a brilho, mas acho Viena muito mais fascinante.

Nando não podia acreditar que alguém tivesse essa opinião sobre a cidade classificada por ele como um ninho de intrigas.

— Fale sobre você mesma — pediu ele ao continuarem a caminhar. — Estou em desvantagem, 14

Page 15: Ch 006 nina beaumont olhos da inocência

Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06pois não sei nada a seu respeito, exceto o nome. Aposto como Lulu encheu-lhe os ouvidos com histórias sobre minha vida de dissipações.

Deliberadamente, Nando não mencionou o que tinha ouvido sobre Arabella no café. Queria saber quanto tempo ela levaria para revelar as atividades caritativas.

— Lamento, mas Lulu foi omissa. Eu nem sabia seu nome completo até você me contar há pouco, lembre-se. Não ignoro, entretanto, que você costumava passar o verão na Boémia onde quebrou a perna quando tinha doze anos.

Nando fitou-a com expressão tão vazia que ela se sentiu tentada a prosseguir e lhe contar como Lulu havia se referido a seu encanto. A tempo, mordeu o lábio, pois a ideia espalhava o rubor pelas faces e pelo pescoço.

— Você ainda vai? Passar o verão na Boémia, quero dizer. — Confusa com o calor no rosto, Arabella pronunciou as palavras um pouco depressa demais. Nando, por seu lado, refletiu se seu constrangimento era verdadeiro ou se, há muito, ela havia reunido todas as informações pertinentes a seu respeito e, agora, fazia um jogo inteligente. Porém ao responder-lhe, a voz era suave e continha uma ponta de saudosismo pela férias distantes e despreocupadas.

— Infelizmente não, há muito tempo.

— O que passou a fazer? Exceto tomar parte em batalhas com valentia? — acrescentou ela ao apontar, com o leque, para a medalha Cruz de Maria Theresia, a condecoração austríaca mais alta, presa no peito de Nando.

Ele franziu a testa numa tentativa de apagar a lembrança de como havia ganho a medalha. Como, com seiscentos homens, ele tinha mantido a distância quatro mil franceses na batalha de Leipzig. Mas a que preço?

Arabella viu outra vez as sombras nublarem os olhos de Nando e as marcas à volta da boca aprofundarem-se com a recordação dolorosa. Aflita, arrependeu-se das palavras despreocupadas. Ele detestava tudo aquilo, percebeu com um lampejo de intuição. Detestava não só a guerra como também a animação indiferente desse baile.

— Lamento muito — murmurou.

A mágoa nos olhos prateados de Nando deu lugar à perplexidade.

— Eu o recordei de algo que você preferia esquecer — explicou Arabelle.

Calado, Nando retraiu-se da solidariedade oferecida por seu olhar.

Em silêncio, desapercebidos da impressão marcante que provocavam nas pessoas, cujos olhares e murmúrios os acompanhavam, eles continuaram a abrir caminho entre os convidados.

— Você dá a impressão de que não aprecia nada disto. Por que está aqui? — Arabella fez um gesto circular com o leque.

Nando parou e virou-se um pouco para seu lado. Mais uma vez, via-se tomado pela magia dos olhos cor de safira. Teria sido enfeitiçado por eles?, indagou-se.

— Eu procurava por você.

As palavras saídas por vontade própria o tomaram de surpresa. Por uma fração de segundo, chegou a desejar que apenas as houvesse pensado, mas a expressão de Arabella provou-lhe a inutilidade da esperança. Embora soubesse ter falado a verdade, sentia-se traído, exposto. Resignado, preparou-se para um comentário insinuante e sugestivo.

Porém não havia triunfo na voz ou no olhar de Arabella. Nem mesmo o sorriso cativante.

— Eu sei. Também estava. Desde aquela tarde no café. — Para si mesma, acrescentou: Talvez eu

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06o estivesse procurando a vida inteira.

Nando sacudiu a cabeça e curvou os lábios num sorriso cético.

— Diga uma coisa, Arabella. Todas as inglesas são assim tão diretas?

O coração de Arabella disparou. A expressão de Nando a afetava como uma droga poderosa. Premiada pela necessidade de escapar de uma situação sobre a qual começava a perder o controle, assumiu ar sereno e desviou o olhar.

— Essa é a sua maneira delicada de me dizer que fui indiscreta? Com um movimento do pulso, abriu o leque è pôs-se a abaná-lo enquanto recomeçavam a andar.

— Indiscreta? Talvez honesta seja um adjetivo melhor.

— Tem razão. Sempre tive dificuldade em mentir.

— Nesse caso, você terá problemas em se equilibrar no piso escorregadio da sociedade vienense. As intrigas a devorarão viva a não ser que se defenda com as mesmas armas — disse ele em tom seco.

Sem dúvida, Nando caçoava dela. porém sentia-se grata, pois a intensidade do rodopio emocional havia abrandado.

— É isso que você faz? Luta com as mesmas armas? — demandou ela.

Nando admirou-lhe a presteza do raciocínio!

— Não preciso mais. Eu me retirei do jogo.

— Pois eu ainda nem entrei nele. — Arabella ergueu o queixo. — Portanto, deverei me arranjar muito bem.

Havia um grupo de pessoas junto ao pé da escadaria e Arabella viu que elas rodeavam um homem alto, de cabelos loiros encaracolados e dragonas douradas, muito largas, na túnica azul do uniforme. Ao virar-se em sua direção, ela reconheceu o czar Alexander da Rússia. Ele ria para uma mulher pendurada em seu braço, uma loira pequenina, exibindo um vestido de gaze, quase transparente, em vez de fantasia. De repente, um homem de cabelos escuros, bigode exagerado e retorcido nas pontas, separou-se do grupo e veio em direção contrária à deles.

O indivíduo não se desviou para deixá-los passar e teriam colidido se Nando não parasse a tempo.

A mão larga caiu no ombro de Nando e ela registrou as chispas de antipatia nos olhos cinzentos antes de a máscara de cortesia gélida cobrir-lhe o semblante. O homem de cabelos escuros usava o uniforme branco e azul do exército russo, mas ao falar, seu francês era impecável.

— Encontramo-nos novamente, conde Berg — disse com jovialidade forçada. — Deve me apresentar a sua parceira. Sua boa sorte, em se ver acompanhado das mulheres mais adoráveis de uma festa, persiste.

Arabella podia sentir não só a tensão crescente de Nando como também o antagonismo entre os dois homens. Apressou-se em falar antes que Nando dissesse alguma coisa.

— Deve respeitar a máscara, monsieur.

— Posso, então, me apresentar?

— Caso deseje — concordou Arabella com um leve dar de ombros.

— Príncipe Nikita Volkonsky, ajudante-de-ordens de Sua Majestade Imperial Czar Alexander de Todas as Rússias, a seu serviço. — Fez uma pausa como se esperasse pelo efeito das palavras:

Depois, acrescentou dissimuladarncnte: — Agora vai me contar seu nome?

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06Arabella sorriu com uma ponta de petulância.

— Não.

Naturalmente, ela sabia quem era o príncipe e até o tinha reconhecido, embora só após ter-lhe ouvido o nome. Afinal, ele havia sido o embaixador do czar em Londres. Lá, o príncipe gozava a fama de libertino, provocando grandes comentários sobre suas escapadclas amorosas.

— Não? Eh, bien. Serei então obrigado a valsar com a senhorita até sua cabeça rodopiar e nào deixá-la guardar um único segredo de mim. — Sem desviar o olhar de seu rosto, perguntou: — Você permite, Berg?

Nando sabia que não havia jeito de impedir o príncipe russo de dançar com Arabella sem provocar uma cena.

— Permito, Volkonsky. Exceto se a jovem não concordar. Arubella não sentia a mínima vontade de deixar a companhia de Nando, porém não ignorava ser muito indelicado recusar um convite para dançar sem ter um bom motivo. Assentiu com um gesto de cabeça enquanto dizia:

— Apenas se eu voltar para o lado do conde Berg após uma dança.

Volkonsky franziu as sobrancelhas escuras.

— Mon Dieu, que constância! Você fez uma conquista e tanto, Berg! Obviamente, meu esforço não terá muito sucesso.

Arabella mal tinha transferido a mão do braço de Nando para o de Volkonsky quando se viu sumariamente afastada.

— Conte-me, ma beíle clame masquée, quem é a senhorita — demandou o russo tão logo a conduzia habilmente pela pista de dança.

— Não vou contar.

— Tem certeza?

A pressão dos dedos em sua cintura aumentou um pouco e, instintivamente, Arabella retraiu-se.

— Absoluta. Uma dama tem o direito de recusar qualquer coisa a um cavalheiro. Pelo menos lá, de onde venho.

Volkonsky afastou um pouco a cabeça atraente, de cabelos escuros, e sorriu, os dentes alvos destacando-se no rosto moreno.

— Então, a senhorita deve ser inglesa. Só uma poderia ser tão abominávelmente teimosa.

A mão dele moveu-se em direção às fitas da máscara.

— Será que não nos conhecemos em Londres? — sugeriu ele. Num gesto rápido, Arabella deu-lhe uma pancadinha leve na mão com o leque.

— Esse prazer me foi negado até agora — redarguiu ela em tom áspero.

Os olhos de Volkonsky, negros e de expressão dura, semicerraram-se um pouco e o sorriso alargou-se cheio de expectativa.

— A gatinha tem garras. Tanto melhor.

— Não se regozije antes da hora, príncipe.

— Aceita beber algo comigo? — perguntou ele, novamente manciroso quando a valsa terminou.

— Prometi ir ao bufe com o conde Berg príncipe, e gosto de lembrar minhas promessas. E vossa alteza, lembra-se das suas?

Volkonsky contraiu os lábios num esgar feroz e inclinou-se ligeiramente.17

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06— Sem dúvida, mademoiselle, jamais esqueço as minhas.

Nando fervia de raiva ao ver Volkonsky conduzir Arabella à pista de dança. E a irritação não era dirigida apenas ao príncipe russo, mas a si próprio também. Como aquela menina tinha conseguido envolve-lo tão depressa em sua teia de fascínio? Como havia penetrado através das defesas dele com tanta facilidade?

— Ora, ora, o meu amigo não está com ar muito satisfeito. Nando virou-se depressa e, ao ver o sorriso malicioso de Lulu von Thurheim, advertiu bravo:

— Não se atreva a dizer mais nada!

Com movimentos bruscos, ele cruzou os braços sobre o peito. Já séria, Lulu bateu de leve com o leque na face enquanto o fitava com expressão imperturbável. Impaciente, Nando demandou:

— Muito bem, do que se trata? Diga logo, pois não me dará sossego enquanto não o fizer.

— Gostaria que não se mostrasse tão bravo e carrancudo, Nando. Você tem uma audiência.

Com o olhar, Lulu indicou o grupo ao pé da escadaria. Os homens continuavam a conversar animadamente, mas a loira pendurada no braço do czar fitava Nando diretamente. os olhos míopes semicerrados em concentração, os lábios carnudos apertados com força. ,

Abalando uma praga, Nando encarou a princesa Katharina Bagnition. Sabia de antemão o grau de malícia revelado por seus límpidos olhos azul-esverdeados. Não a via há muito tempo e sentiu-se gratificado ao constatar que sua beleza alva e dourada começava a esmaecer.

Ficava perplexo com o fato de haver tido, um dia, o mau gosto de se apaixonar pela princesa, cujos vestidos de gaze e decotes generosos lhe tinham conquistado a alcunha de "anjo nu". Mas naquela época, ele era jovem, ingénuo e acreditava cm promessas murmuradas com meiguice. A mágoa infligida pela princesa há muito tinha se dissipado, mas a desconfiança contra as mulheres semeada em seu coração por ela, permanecia tão forte quanto oito anos atrás. Para ser justo com Katharina, Nando admitia que outras mulheres haviam reforçado tal convicção.

Deliberadamcnte. Nando virou-se sem indicar tê-la reconhecido.

— E então, Lulu, não vai me contar tudo sobre a srta. Arabella Douglas?

— Você não lhe perguntou? 0 que aconteceu com sua língua desembaraçada, meu amigo? Esqueceu de usá-la tão distraído estava admirando a moça? — provocou Lulu, embora falasse em tom compreensivo.

— Perguntei, claro, porém ela não me contou nada — explicou Nando dando-se conta de que, apesar de todas as oportunidades oferecidas, Arabella não tinha falado sobre si mesma.

— Ela veio a Viena com lorde e lady Castlereagh. Segundo deduzi, seu desinteresse pelos bons partidos de Londres deixou-lhe o pai desanimado e ele a mandou para cá na esperança de que encontrasse um bom marido. — Lulu sorriu. — Não seria conveniente se você, amanhã, fosse fazer uma visita à delegação inglesa na praça St. Peter?

Nando expirou o ar bem devagar e a fitou.

— Não tenho a mínima intenção de fazer tal coisa. Como deveria saber, minha cara Lulu, não estou à procura de uma esposa.

Não havia lugar para uma em sua vida, refletiu zangado. Ela a controlaria e o tornaria vulnerável. Há muito tempo, tinha jurado nunca mais deixar uma mulher enfraquecê-lo. Entretanto, a carência por essa moça conhecida há apenas uma hora era tão elementar e vital que lhe tirava o fôlego.

— Faça como entender — disse Lulu sentindo-se satisfeita por Arabella ter conseguido vencer as defesas de Nando tão completamente.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06— Pois farei mesmo!

Quando Arabella se aproximou apoiada no braço de Volkonsky, o semblante impassível de Nando era uma verdadeira máscara de gelo. Mas ao ver-lhe um dos músculos da face tremer, ela percebeu que a indiferença exibida não era sincera.

— Foi uma experiência altamente instrutiva, príncipe — declarou Arabella com expressão condescendente ao largar-lhe o braço e postar-se ao lado de Nando.

Volkonsky riu e curvou-se.

— Ao que tudo indica, suas tátícas são superiores, conde Berg. A frieza austríaca alcança mais êxito do que o fogo russo. — Sorriu com desdém. — As vezes.

— De fato. Uma questão de compatibilidade, talvez. Os ingleses também são conhecidos por sua frieza — disse Nando em tom de indiferença.

Avaliador, o olhar de Volkonsky observou Arabella notando-lhe os olhos faiscantes e as faces rubras.

— Generalização não muito válida, meu caro Berg. Até que ponto vai sua experiência com inglesas?

Nando afastou-se um pouco do príncipe russo, a linguagem do corpo respondendo, sem querer, à provocação grosseira.

Arabella observava os dois homens. Embora perversamente fascinada e lisonjeada, sentia repulsa pela maneira com que eles se posicionavam feito dois galos de briga. De repente, desejou se afastar de ambos. Cada um, a sua maneira, ameaçava-lhe a paz de espírito. Volkonsky com a impertinência. Nando com o encanto que a deixava tão vulnerável.

Localizando Lulu a poucos passos de distância, conversando com o simpático e gorducho príncipe de Ligne, resolveu fazer uma retirada tática. Com expressão imperiosa, olhou de um homem para o outro.

— Vou deixá-los entregues a sua pequena discussão, messieurs. Não se dêem ao trabalho de me informar quem foi o vencedor.

Afastando a fantasia de dominó para evitar que ela roçasse na calça de pelica branca de Volkonsky, Arabella afastou-se lamentando não ter olhos atrás da cabeça.

CAPÍTULO IV

Um perfeito idiota!, repreendeu-se Nando ao acompanhar Arabella com o olhar. Sua atitude seria um prato cheio para as más línguas saborear, além de fornecer aos informantes material suficiente para os relatórios que o príncipe Mettemich e seu ministro de polícia, o barão Hager, leriam no café da manhã do dia seguinte. Entretanto, uma grande ansiedade o impedia de se privar de admirá-la.

Observou Arabella conversando com o velho príncipe de Ligne. Este fez-lhe um gesto de cabeça como se o informasse ser indelicado não ir cumprimentá-lo. Atendeu-o prontamente.

Amabilidades foram trocadas e, então, alguém veio em busca do príncipe. Lulu também, de repente, desaparecia e Arabella e Nando viram-se novamente a sós.

Ao notar a satisfação divertida amenizar as feições de Nando, a raiva de Arabella, sentida momentos atrás, transformou-se em apenas uma lembrança ténue.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06— Você agiu com muita elegância, sabe? — comentou ele. Arabella dirigiu-lhe seu melhor olhar

de orgulho.

— Otimo. Eu sempre desejei executar uma retirada elegante. Mas mesmo enquanto falava, começou a rir. Ouvindo-lhe a risada desinibida, Nando viu-se na iminência de acreditar na ingenuidade de seu encanto.

— Eu o perdoarei se dançar mais uma valsa comigo — prometeu ela.

— Você me perdoara? Pelo quê?

Levado pela força do hábito, Nando voltava a se empertigar.

— Por me fazer passar por tola. Como acha que me senti com você e aquele papagaio de príncipe russo discutindo por minha causa?

Nando conseguiu disfarçar a surpresa e imaginou que tipo raro de mulher seria Arabella caso não apreciasse, de fato, ser disputada por dois homens. Concluiu que ela estava mentindo, embora de maneira encantadora. Mesmo assim, ofereceu-lhe o braço.

Mal chegaram a pista de dança, a música parou. A orquestra tocou uns acordes anunciando a meia-noite, momento para as damas retirar as máscaras.

Nando manteve-se imóvel observando Arabella que, sem desviar o olhar do seu, levava as mãos aos cordéis de seda. Os movimentos eram suaves e sensuais como se ela estivesse removendo muito mais do que a máscara.

A respiração de Nando prendeu-se na garganta. Arabella era adorável, reconheceu ao beber-lhe a beleza como um homem sedento ao alcançar a água de um oásis no deserto. Ele a desejava. Desde o primeiro instante, desejava-a, mas só agora percebia com que intensidade.

— Muito bem. Não vai pedir o favor de guardar a máscara como lembrança? — perguntou Arabella, impaciente.

Os lábios de Nando contraíram-se por causa não só da sugestão como também do constrangimento de Arabella ao dar-se conta do que havia dito.

— Quer que eu peça?

Arabella o fitou. A qualquer outro homem responderia com um dar de ombros. Qualquer outro homem não aceitaria o convite revelador e feito sem o mínimo tato.

— Quero — murmurou ela.

— Posso guardá-la?

Nando estendeu a mão para pegar a máscara e os dedos de ambos tocaram-se. Por um momento, permaneceram juntos exacerbando-lhes a sensualidade. Apenas Nando reconheceu a corrente que os percorria e sentiu o perigo. Enquanto Arabella desejava prolongar a experiência desconhecida, ele retraía-se de maneira abrupta como se escapasse de uma fonte repentina de calor. Amassando a máscara de seda entre os dedos, enfiou-a no punho da túnica branca.

Acompanhado por um criado com o uniforme de cossaco, o príncipe Voikonsky foi visitar Arabella no dia seguinte. Com uma curvatura exagerada, ele lhe entregou um buque de flores exóticas, mas sem perfume algum.

— Espero não ter lhe causado aborrecimento algum ontem, srta. Douglas — disse ele em tom adulador.

Obedecendo um gesto imperioso de Arabella, sentou-se numa cadeira a sua frente. Sob a luminosidade do início da tarde, os olhos negros não mostravam malícia.

— Fique descansado, príncipe, vossa graça não me molestou. Na pior das hipóteses, provocou 20

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06constrangimento a si próprio — afirmou Arabella com um sorriso condescendente.

Volkonsky tornou a sentir a humilhação infligida pelo riso caçoísta da princesa Katharina Bagration dirigido a ele quando voltava a se juntar ao grupo ao pé da escadaria, na véspera à noite.

— Foi a sua beleza que me levou a perder a cabeça, mademoiselle.

Inclinou-se para a frente e tomou-lhe a mão levando-a aos cinco centímetros protocolares dos lábios.

Educadamente, Arabella ouviu os elogios efusivos enquanto o pensamento desviava-se para Nando.

Um olhar para o relógio informou Nando ainda haver algum tempo, disponível antes de sair para a entrevista com o chanceler príncipe Mettemich. Abriu mais as folhas da janela e sentou-se no peitoril. O som de um realejo, vindo da esquina, chegou até ele. A melodia falhava como se o tocador descansasse o braço antes de impulsionar a manivela para cima. A música refletia fielmente seu estado de espírito, considerou Nando ao apertar os olhos com a ponta dos dedos. Seria ele incapaz de tirar a moça da cabeça?

A imagem apresentada por Arabella, com o queixo erguido, os olhos cor de safira faiscando, provocava-lhe a memória. Nando sorriu apesar do aborrecimento consigo mesmo. Ela havia feito um excelente trabalho em reduzir Volkonsky e ele à condição de meninos brigando por causa de um brinquedo.

Imaginava se a srta. Douglas se dava conta da comoção que havia provocado. Ele tinha visto a princesa Katharina Bagration, com sua voz de meninínha, reproduzir a cena para o divertimento de sua corte de seguidores submissos. A representação não continha apenas malícia dirigida a ele e Volkonsky, mas também uma boa dose de inveja pela inglesa mais jovem e linda.

A porta abriu-se para dar passagem a seu criado pessoal e Nando virou a cabeça.

— Em sua opinião, Franz, o que o príncipe Mettemich quer de mim?

A um estranho, a indagação poderia parecer imprópria para ser feita por um aristocrata a seu serviçal. Porém Franz não era um doméstico comum.

Os dois homens tinham crescido juntos nas propriedades dos Berg. Depois de Nando ter salvado o menino mais velho de uma queda numa fenda de rio congelado, haviam ficado inseparáveis. Quando o velho conde Berg decretara que Nando tomasse o lugar, no exército, do irmão falecido, Franz, que não deveria ser outra coisa além de um camponês de vida calma, tinha se alistado também para servir o amigo e senhor como ordenança.

— Talvez uma missão diplomática, meu senhor. Nando expressou a dúvida através de um resmungo.

— O príncipe não goza da simpatia da nobreza austríaca. Pode estar precisando de sua ajuda — Franz sugeriu ainda.

— Impossível! Mettemich domina o imperador e este a todos nós. Do que mais necessita ele? Além disso, por que pediria justamente a minha ajuda?

Franz deu de ombros. Mesmo após oito anos, lembrava-se muito bem do semblante do patrão ao voltar dos aposentos da princesa Katharina Bagration. Era o de um homem mais velho e experiente. Impotente, tinha visto, naquela noite, o conde embriagar-se numa busca vã do esquecimento. Ouvira-lhe as palavras embargadas, através das quais tentava extravasar a dor da alma. Dor por haver encontrado a mulher, a quem amava com a paixão de seus vinte e dois anos, nos braços do esperto chanceler príncipe Mettemich.

— Não passo de um camponês. Quem sou eu para entender um diplomata cuja mente tem mais

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06curvas do que um regato nas montanhas?

Nando riu com a analogia de Franz e levantou-se para vestir a túnica que ele lhe estendia.

— Tem razão. Curvas de um riacho e a escuridão de uma fossa negra.

Ao sair do palácio, Nando encontrou um ar ameno, sem o vento frio que, habitualmente, soprava das montanhas nessa época do ano. Sentindo necessidade de caminhar, dispensou a carruagem.

Embora negasse, caso fosse interrogado, continuava a sentir a inquietação que o levara a procurar o ar frio de outubro na noite anterior. Mas este não abatera o calor de seu sangue, nem o corpo receptivo da jovem viúva, cujos aposentos ele procurava de vez em quando, tinha exterminado o desejo que, furiosamente. o castigava. De volta à rua, pouco depois de uma hora, Nando havia constatado que a agitação do sangue não tinha diminuído. O ato físico não aliviara a enorme carência.

Se fosse honesto consigo mesmo. Nando admitiria que o tumulto íntimo tinha pouco a ver com o desejo sentido. Na verdade, era provocado pela pureza de Arabella, sua simplicidade que, apesar de negá-las com veemência, ele ambicionava.

Apesar de um tanto menos perceptível nessa tarde ensolarada, o desejo ainda o fustigava. Considerando-se leviano, Nando sacudiu a cabeça e apressou o passo.

O príncipe Clemens Mcttcmich levantou-se da cadeira atrás da escrivaninha e aproximou-se para cumprimentar o visitante.

— Amabilidade sua ter vindo me ver, apesar do pedido feito a última hora, conde Berg. Muito obrigado.

O sotaque do chanceler ainda enfatizava a pronúncia áspera das vogais e a entonação precisa de sua Alemanha nativa.

Nando murmurou as cortesias de praxe e, com olhar de aço, fez um balanço da aparência do diplomata. O rosto aristocrático, de ossatura delicada, tinha mais rugas do que oito anos atrás, porém além disso, nada havia mudado. Até os olhos claros, de cor indeterminada e reveladores apenas do que Mettcmich desejava mostrar ao mundo, continuavam inalterados.

Ele conduziu o conde a uma poltrona de brocado, porém Nando preferiu outra. Na primeira, receberia o reflexo do sol nos olhos, ficando em posição de desvantagem.

— Sobre o que deseja conversar comigo? - demandou. Um sorriso arqueou os lábios finos de Meuemich.

— Vossa excelência prefere ir direto ao assunto, percebo.

— Sou um homem simples, príncipe. Ao oposto de muitos outros, não gosto de subterfúgios e equívocos.

As palavras foram ditas em tom cordial, mas Mctternich detectou a animosidade sob a indiferença. Também não lhe passou despercebida a inflexibilidade disfarçada pelo suave dialeto aus-tríaco.

A conversa nao ia ser fácil, refletiu. Havia contado com a hostilidade, embora esperasse que a passagem do tempo tivesse abrandado a inimizade do homem mais jovem. Paciência. Seus planos não davam margem a considerações pessoais.

— Como disse, é um homem simples. Por isso mesmo, talvez desconheça certas exigências da diplomacia, especialmente nestes tempos difíceis.

Metternich daria tudo para evitar isso, porém não tinha escolha. Os ingleses estavam sendo irritantemente espertos e os relatórios recebidos, sobre os acontecimentos no baile da véspera, indicavam

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06que esta oportunidade era boa demais para ser desprezada.

Nando não disse nada. Encostou-se bem na poltrona, esforçando-se a relaxar os músculos e manter a expressão de desinteresse. A mente tentava decifrar o que a víbora desejava dele.

— É do interesse de sua majestade imperial e do país que procedamos com a maior presteza. Precisamos nos preparar para, qualquer eventualidade. Para tanto, temos de obter o máximo possível de informações.

Nando continuou impassível, embora tivesse vontade de desmanchar, com murros bem localizados, aquela fachada de afabilidade falsa.

— Nessa diligência, precisamos de sua colaboração — prosseguiu Metternich incluindo-se no círculo interno do imperador e da pátria.

Nando ainda conseguiu se manter calado. Percebia agora qual era o jogo. Não ignorava que tanto Metternich como o barão Hager tinham uma intrincada rede de espiões agindo em todos os ângulos da sociedade. Aparentemente, queriam que ele se juntasse a suas fileiras. O fato de o chanceler julgá-lo capaz de tanta vilania, provocou-lhe nojo. Mas esperaria, decidiu. Deixaria a serpente contorcer-se mais um pouco antes de dar-lhe o golpe com a palavra apropriadamente cáustica.

Metternich limpou a garganta e aguardou.

O silêncio tornou-se opressivo. Com a passagem de cada segundo, Nando relaxava mais e a frustração do homem sentado à frente crescia.

— Eh, bien — começou o chanceler finalmente. — Vejo a necessidade de ser franco. Precisamos de certas informações que apenas vossa excelência poderá nos obter. Ontem à noite, meu caro conde, foi visto ao lado de uma dama que, possivelmente, poderá nos fornecer as informações necessárias e urgentes. Talvez um pouco de persuasão de sua parte.

Nando fitou-o com olhar inflexível. O homem não podia estar insinuando o absurdo que pensava.

— Nossas tentativas para penetrar na delegação inglesa tem falhado estranhamente. Quem sabe se a sua ajuda...

Metternich terminou a sentença com um floreado elegante da mão.

De repente, a disciplina e o autocontrole de Nando desapareceram. A fúria sentida devia espelhar-se em seu semblante, porém ele não se importava. Esse verme, com a pretensão de se considerar homem, ousava planejar uma aproximação, embora indireta, com Arabella, criatura jovem, pura e necessitada de proteção. Não parou para pensar na desconfiança sobre sua inocência. Engolfado pela explosão, ele jamais seria capaz de, mais tarde, reconstituir a sequência das emoções, ou a sua natureza.

— Como se atreve a tanto? — demandou levantando-se. Nando mantinha as mãos caídas junto ao corpo. Pagaria um bom preço para tê-las empunhando uma pistola, a uns cinco metros de distância, e mirar aqueles olhos pálidos por sobre seu cano, Metternich pôs-se em pé também.

— Não lhe pedi nada desonroso, conde.

— Apenas para seduzir uma jovem ingénua a fim de conseguir suas malditas informações!

— A fim de servir o mesmo país de cujo exército vossa excelência usa o uniforme para lutar no campo de batalha — disse o príncipe em tom conciliatório.

— Pelo menos no campo de batalha, as linhas são claras e definidas.

— Lamento, conde, mas não existem limitações no campo da diplomacia.

— Não mesmo, calculo. Para os diplomatas, o mundo não passa de um tabuleiro de xadrez e sacrifício algum é grande demais para se conquistar a vitória.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06— Sem dúvida, conde. Tudo o que conta no fim é evitar o cheque-mate ao rei.

— Sem dúvida, príncipe Metternich — arremedou Nando. — Nesse caso, talvez vossa graça devesse requisitar a colaboração da duquesa de Sagan. Ouvi dizer que lorde Charles Stewart e sir Frederic Lamb, ambos com maior acesso a informações do que a sita. Douglas, passam uma quantidade desmedida de tempo no palácio Palm.

Um faiscar rápido e controlado nos olhos desbotados do diplomata, ao ouvir a insinuação sobre a infidelidade da amante, foi a única recompensa tida por Nando. Achou-a suficiente. Sem um único gesto de cordialidade, dirigiu-se à porta para ir embora. Já tinha a mão na maçaneta quando a voz de Metternich o imobilizou.

— É uma pena, conde Berg, que não tenha aceitado incumbência tão prazerosa. Alguém colherá os frutos que o vossa excelência semeou.

Ao se virar, Nando sentiu o coração acelerar as batidas, mas manteve o autodomínio e o tom de voz mostrou-se calmo.

— Eu o aconselho com muito empenho, príncipe, a mudar seus planos.

— Está me ameaçando? — encolerizou-se o diplomata.

— De forma alguma, príncipe. Estou apenas lhe oferecendo um bem intencionado conselho.

— Pois eu também tenho um para lhe dar, meu caro conde Berg. Como herói dos campos de batalha, sua falta de senso de dever aos interesses da coroa pode ser perdoada neste caso. Mas não tente obstruir o caminho daqueles que prestam serviços inquestionavelmente.

— Minha consciência foi sempre o juiz supremo de minhas decisões em assuntos dessa natureza, príncipe Metternich. Não pretendo mudar, agora, minha maneira de agir.

Nando dirigiu um olhar frio ao homem menor do outro lado do aposento inundado pelo sol da tarde. Em seguida, saiu e fechou a porta sem fazer ruído.

Muitas horas depois, após o pôr do sol, Nando desmontou no pátio do palácio Berg. Feito um louco, havia cavalgado durante horas numa tentativa de eliminar o gosto amargo deixado na boca pela conversa com Metternich. Também desejava apagar da mente as imagens de Arabella.

Mas o sangue ainda queimava nas veias e o desejo por ela persistia.

CAPÍTULO V

Os dias encurtavam-se na segunda quinzena de outubro e geadas já se formavam durante a noite, mas as tardes ensolaradas continuavam tépidas.

Descontente, Arabella terminou a carta para a mãe. Não se atrevera a mencionar nada além de trivialidades tais como festas e a mudança dos aposentos exíguos para o luxuoso palácio Dietrichstein, na praça Minoriten. Gostaria de ter coragem para escrever sobre seu trabalho no orfanato e a respeito do conde Fer-dinand Bcrg, dois tópicos tão importantes para ela.

Distraiu-se com os pensamentos. Desde o baile em Hofburg, só vira Nando à distância. Nas festas, ele não a havia procurado para trocar umas poucas palavras ou convidá-la para dançar. Na verdade, agia como se os momentos mágicos compartilhados por ambos não houvessem existido.

A princípio, tinha chegado à conclusão de que Nando não estava interessado em sua pessoa. Mas com o passar dos dias, começava a perceber o quanto estava enganada, fato mais inquietante ainda.

Ele a observava. Várias vezes, o tinha visto segui-la com o olhar através de um salão repleto de pessoas. Numa única ocasião, os olhos de ambos se encontraram. Ela conversava com o príncipe Nikita

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06Volkonsky e, ao virar-se de lado, fora surpreendida pelo olhar ardente que lhe era dirigido por Nando. Fitaram-se por alguns segundos e até ele conseguir recolocar a máscara de frieza nos olhos cinzentos, mas não tinha se aproximado para cumprimentá-la. A expectativa frustrada a deixara quase louca.

— O mensageiro está esperando lá embaixo, Arabella. Suas cartas estão prontas?

Ignorando-lhe a indagação, Arabella virou-se para a criada e perguntou:

— Você nunca quis ser homem, Jeanne?

— Homem? Que idéia é essa! sim, queria ser um quando era pequena e até a primeira vez em que seu pai a mandou para a casa da avó.

Arabella esboçou um sorriso. Lembrava-se bem de sua primeira estadia em Surrey. Durante aquele período, tinha descoberto que, apesar de ser menina, podia fazer muitas coisas tais como subir em árvores, ou correr pelo estábulo em companhia dos rapazinhos de sua idade. Então, havia prometido a si mesma jamais permitir seu sexo de interpor-se à realização da vontade.

Baixou as pálpebras a fim de não revelar a Jeanne a ideia que começava a tomar forma na mente. Iria atrás do que queria, decidiu com firmeza. O conde Ferdinand Berg.

Lulu fitou Arabella.

— Ou muito me engano, ou Nando ainda não voltou a procurá-la.

— Você está certa.

— Meu Deus, como esse homem é teimoso! Sabe, ele a vigia como um gavião. A você e a qualquer homem com quem esteja conversando.

— Eu sei e estou resolvida a fazer algo a esse respeito.

— Muito bem. Quais são seus planos? — Lulu quis saber. Fitaram-se e Lulu detectou um misto de rebeldia e determinação no olhar de Arabella. A amargura de Nando seria capaz de resistir ao imenso prazer da jovem inglesa pela vida? Para o bem dele, esperava que não.

— Sabe se Nando costuma cavalgar regulannente? — perguntou Arabella.

— Claro. Durante a manhã, com toda a certeza — informou Lulu rindo.

Arabella riu também, aliviada porque a espera terminava.

Ao observá-la, Lulu sentiu, outra vez, uma ponta de inveja dessa criatura vibrante.

Ser apenas uma observadora da vida jamais bastaria a Arabella. Ela teria de saboreá-la diretamente. Inteirinha.

Incapaz de adiar uma resolução tomada, na manhã seguinte,

Arabella entrou na igreja de St. Anna, que ficava em diagonal ao palácio Berg, Só então, percebeu estar apavorada. Porém não podia se lembrar de algo a que tivesse dado tanta importância. Talvez não houvesse, mesmo. Ansiosa, ficou à espera.

No momento em que o sino acima de sua cabeça marcava um quarto de hora, ela ouviu o estalo metálico da trave de ferro, seguido pelo ranger das dobradiças das pesadas portas do outro lado.

Arabella saiu e desceu os degraus baixos, mas parou no último.

Sultão estava tão ansioso por um galope quanto ele, percebeu Nando. Nesses últimos dias, apenas durante as horas passadas na sela do garanhão, não sentia tanto a tensão provocada pela imagem de Arabella, marcada a ferro em brasa em sua mente.

Levantou o rosto para melhor apreciar o vento soprado por entre as casas. O movimento de algo

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06azul à direita chamou-lhe a atenção e Nando virou a cabeça para ver do que se tratava.

Ereta e imóvel, Arabella estava na escadaria da igreja, o vento esvoaçando-lhe a capa azul. Fitaram-se, mas nenhum dos dois fez qualquer movimento.

Nando sentiu a sensação de algo semelhante a alívio percorrer-lhe as veias, porém o conforto passou logo sendo substituído pela noção de perigo.

Não havia sorrisos, nem reconhecimento. Era como se os dois tivessem tomado a decisão de ignorar todos as atitudes sociais.

Com uma calma que estava longe de sentir, Nando encaminhou a montaria até a frente da igreja.

Arabella observava-o se aproximar. O fogo derretera o gelo dos olhos cinzentos, porém não havia uma expressão receptiva, nem meiguice em seu semblante. Mesmo assim, ela foi tomada por uma alegria revitalizante ao vê-lo chegar bem perto. Imaginou se Nando também a sentia.

— Eu temia que você fingisse não me ver — disse ela. Nando não resistiu ao candor de seu sorriso. Tirou o chapéu de duas pontas e colocou-o sob o braço.

— Como eu, nas últimas semanas, venho dando a impressão de ignorá-la? Na verdade, é só aparentemente e você sabe disso — afirmou ele com uma leve expressão de arrependimento.

— Desconfio, até certo ponto, mas não sei seus motivos— admitiu Arabella.

Nando desprezou a indagação implícita.

— O que está fazendo aqui? — demandou.

Ela havia ensaiado umas poucas palavras, porém achava enganador dizer qualquer coisa que não sentisse realmente.

— Eu ia lhe perguntar se poderia cavalgar uma de suas montarias, mas isso não passava de desculpa. Na verdade, eu queria vê-lo e perguntar por que vem me evitando — confessou.

Perplexo com seu exemplo de integridade, ele sacudiu a cabeça.

— Lulu não a advertiu sobre mim?

Ela assentiu com um gesto de cabeça, mas em seguida, ergueu bem o queixo.

Nando viu o perigo nos olhos cor de safira, a temeridade característica da juventude. Na mente, declincaram-se todas as razões pelas quais deveria afastar Arabella de sua vida antes que fosse tarde demais. Ele não tinha nada para lhe dar, exceto sofrimento. O prazer limitado que poderiam proporcionar um ao outro, contaria muito pouco no decorrer do tempo.

— Não tenho nada para lhe oferecer, Arabella.

O olhar sombrio de Nando destruiu um pouco da alegria e da confiança sentidas por Arabella. Porém a esperança persistia.

— Nem mesmo um passeio a cavalo? — perguntou ela. Seus olhos eram tão límpidos. O sorriso tão espontâneo. Nando queria-lhe a impulsividade, o entusiasmo. Uma pequena amostra, propôs a si mesmo. Bem pequena.

— Você gostaria de me acompanhar amanhã quando eu for cavalgar? — capitulou ele.

— Muitíssimo — respondeu Arabella para, em seguida, rir sem inibição. — Mas só se for, de fato, um bom galope e não um trote calmo e civilizado ao longo do caminho principal do Prater. Amanhã, então?

Inquieto, ele reprimiu a alegria que ameaçava transbordar. Em tom seco, confirmou:

— Certo.

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Page 27: Ch 006 nina beaumont olhos da inocência

Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06Arabella afastou-se depressa, seguida pelo olhar de Nando. Quando já ia virar a esquina, uma

silhueta envolta em preto saiu do vão de uma porta.

Nando ficou tenso. A reação levou a montaria a bater as patas nos paralelepípedos e o barulho chamou a atenção do estranho que, depois de lançar um olhar por sobre o ombro, pôs-se a andar mais depressa.

— Maldito porco! Maldito Mcttcrnich! — praguejou Nando. Temendo que o diplomata cumprisse a ameaça de colocar um sedutor mal intencionado no caminho de Arabella, ele a tinha vigiado atentamente nas últimas semanas. Mas não havia esperado por esse tipo de atitude furtiva.

— Maldição! — praguejou novamente e, dessa vez, irritado com Arabella.

Detestava esse sentimento de proteção, de achar-se responsável por sua inocência e segurança porque isso o deixava vulnerável.

Ao cavalgarem em direção ao portão mais próximo da cidade, Arabella e Nando trocaram pouquíssimas palavras. Saíram para o Glacis que se alongava por quase um quilómetro entre o centro da cidade e a periferia.

— O que acha de cavalgar por aqui? — perguntou Nando.

Sem grande entusiasmo, Arabella percorreu o olhar pelas alamedas bem cuidadas, por onde trafegavam carruagens e cavaleiros. Um trote animado seria o máximo que poderiam executar ali.

— Pensei que houvesse me prometido algo menos calmo e civilizado — reclamou ao inclinar a cabeça para o lado e fitar Nando.

— Não prometi nada. Você determinou — lembrou-lhe ele.

— E então?

— Se fizer questão, podemos cavalgar ao longo do rio. Mas será um passeio incómodo. Lá não existem trilhas, apenas mato e até brejos — avisou Nando.

— Está pondo em dúvida minha habilidade de equitação?

— Não, não é isso. Trata-se de um lugar socialmente inaceitável para uma jovem de boa reputação ir cavalgar. Ainda mais sem uma dama de companhia — acrescentou ele mexendo-se inquieto na sela.

— Entendo. Por acaso você não se sente constrangido por eu tê-lo forçado a me trazer? — perguntou Arabella.

— Não, nem um pouco. Caso me conhecesse melhor, saberia que já passei da idade de me deixar levar pela vontade das mulheres, a não ser que corresponda à minha — explicou em voz áspera

Sem se importar com a rispidez, Arabella persistiu:

— Então por quê...

— Vamos indo? — interrompeu ele.

Não pretendia responder a pergunta que Arabella, com certeza, lhe faria. Como explicar as razões pelas quais a vinha evitando há tantas semanas?

Ao mesmo tempo, ambos viraram a montaria para a esquerda e tomaram a direção do rio, cavalgando num silencio apreciativo da companhia mútua.

Ao atravessarem o rio, a brisa transformou-se em vento e Arabella ergueu o rosto a fim de senti-lo melhor.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06Num impulso de entusiasmo, ela estalou o chicote na anca da montaria. Riu alto com o prazer

provocado pelo aumento da velocidade, mas o galope foi curto pois logo atingia a vegetação densa e pantanosa. As faces estavam afogueadas pelo efeito da corrida. Com firmeza, puxou as rédeas da montaria e virou-se para trás.

— O que pensa estar fazendo? — demandou Nando, furioso, ao alcançá-la poucos segundos depois.

— Vencendo seu passo de lesma — respondeu Arabella com uma careta.

— Maldição! Achei que seu cavalo tinha disparado e você, perdido o controle — respondeu ele sem ter ainda dominado o medo sentido ao ver a montaria de Arabella ultrapassar Sultão.

— Sinto muito. Não foi minha intenção assustá-lo — disse ela, arrependida.

O tom sincero de Arabella comoveu Nando. Os músculos retesados relaxaram e ele acomodou-se melhor na sela.

— Sou eu quem sente muito por haver duvidado de sua habilidade de amazona — afirmou sorrindo.

Arabella deixou Nando tomar a dianteira e logo eles percorriam um mundo maravilhoso de vegetação agreste, muito diferente da que marginava a parte superior do Prater. Prosseguiram, durante algum tempo, num passo vagaroso a fim de Arabella apreciar as cercanias. Finalmente, ele indagou:

— Está pronta para o galope planejado?

— Ah, claro!

— Pois então, vamos.

Nando virou um pouco o garanhão a fim de dar espaço suficiente às duas montarias.

— Espere um segundo — pediu Arabella.

— O que foi agora?

Em vez de responder, ela afrouxou o laço do chapeuzinho ao pescoço empurrando-o para as costas. Em seguida, tirou os grampos dos cabelos que, soltos, caíram-lhe pelos ombros.

— Muito bem, o que está esperando? — perguntou ela com uma risada cristalina.

Por uma fração de segundo, Nando a fitou extasiado. Seria Arabella real ou uma fada da floresta? indagou-se. Os reflexos do sol davam uma tonalidade azulada aos cabelos negros, cujas pontas começavam a encaracolar com a umidade do ar. Sentiria uma textura sedosa caso enfiasse as mãos entre eles? Nando praguejou mentalmente ao mesmo tempo em que tocava as esporas nas ilhargas de Sultão.

As águas do rio espraiavam-se na areia da margem e os ruídos dos habitantes da mata pantanosa os envolvia. Era uma sinfonia serena que deveria ter um efeito tranquilizante, porém servia apenas para acentuar a tensão existente em ambos.

Sentados num tronco próximo ao rio, Arabella tentava se concentrar no controle da respiração. A euforia sentida não era somente aquela provocada sempre pelo prazer de um galope. Existia uma expectativa aguda, excitante, jamais experimentada antes. Era ela que lhe deixava a respiração ofegante.

Distraído, Nando tinha os olhos fixos na vegetação rasteira e Arabella, aproveitando a oportunidade, pôs-se a observá-lo. Uma cicatriz longa e irregular marcava-lhe o lado do rosto desde a testa até o queixo. Clara e Usa, devia ser antiga, porém ela teve vontade de tocá-la.

Nando sentiu os olhos de Arabella queimando-lhe a face como brasas. De repente, seus dedos tocavam-lhe a velha cicatriz no lado do rosto, mas ele manteve-se imóvel. Ocorreu-lhe que agia como uma animal selvagem e sem defesa. Fingia-se de morto.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06— Lamento. Foi há muito tempo? — Arabella perguntou.

— A cicatriz?. Nove anos vai fazer em dezembro. Foi na minha primeira batalha e, embora já fosse oficial, era mais inexperiente do que um recruta. — Não conseguiu reprimir um arrepio provocado pela lembrança. — Fazia frio. Muito, muito frio.

Arabella estremeceu ao visualizar a imagem de Nando pros-trado no chão em pleno inverno. Sem querer, rodeou-lhe o queixo com uma das mãos.

Num movimento brusco, Nando afastou-se e segurou-lhe o pulso com tanta indelicadeza que ela não conteve uma exclamação de surpresa.

— O que se passa com você? — indagou ele. Frustrada, Arabella sacudiu a cabeça.

— Sua tola!

Sentindo-se sufocado, Nando respirou fundo. O perfume de lírío do vale e de pele morna o envolveu. O contato sedoso dos dedos em seu queixo o atraía.

A raiva desapareceu do semblante de Nando quando ele fitou os olhos cor de safira. Por Deus, quanta ternura naquele azul profundo! O suficiente para apagar todos os anos de indiferença e frieza, toda a mágoa e recordações penosas que o afligiam em noites de insónia. Apanhou-se desejando usufruir dessa ternura.

Arabella viu a raiva ceder e a chama familiar reacendeu em seu íntimo. Com a mão livre, soltou os dedos de Nando de seu pulso e, em seguida, tomou-lhe o rosto entre as duas, estimulando-o a receber o carinho pelo qual ele ansiava tanto.

Mais uma vez, Nando imobilizou-se sob seu toque. Por um segundo, parou de respirar. Mas então, mexeu-se. Inclinou-se para Arabella, puxou-a de encontro a si, prensando-lhe os lábios com força.

Por um momento, a violência a deixou sem reação, porém a chama acendida por ele crepitou dominadora. Levou as mãos do rosto para os cabelos de Nando e entreabriu os lábios a sua voracidade, dando mais do que ele estava preparado para receber.

A língua de Nando mostrava-se acariciante e Arabella deixou escapar um ruído abafado da garganta. Era de puro prazer e de receptividade.

O gemido penetrou uma parte da mente de Nando que ainda raciocinava um pouco. Imaginando tê-la machucado, afastou-se atemorizado. Mas os dedos de Arabella prenderam-se com mais força nos cabelos. Por um instante, permaneceram com as testas encostadas, os lábios muito próximos, as respirações ofegantes misturando-se.

— Não se afaste, Nando. Por favor.

— Sabe o que está fazendo? — sussurrou ele.

— Sei, sim. Pedindo que me beije outra vez — respondeu.

Devagar. Nando tomou-lhe a boca. Dessa vez. controlou-se para explorar seus lábios com delicadeza da língua. Doce. Arabella tinha um sabor tão doce!

Instintivamente, ela abriu-se para o beijo. Nando provou a parte macia e interna de seus lábios antes de explorar mais além. A língua de Arabella não recuou ao sentir a dele e, percebendo a vantagem, Nando enrodilhou-as com pressão crescente.

Arabella entregou-se completamcnte à carícia. Seu último pensamento lúcido foi imaginar se sonhava. Achava-se num mundo onde apenas existiam sensações. Os dedos absorviam a textura dos cabelos, o olfato, o odor de Nando, a boca, o seu sabor. A pele toda excitava-se espalhando um langor perigoso pelo corpo inteiro.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06Ela começou a retribuir a pressão da língua de Nando com a sua. Logo, a suavidade e delicadeza

desapareciam enquanto eles duelavam num espiral de prazer.

Nando escorregou as mãos dos ombros e, ao encontrar as curvas deliciosas dos seios de Arabella, recobrou-se do estado de euforia sensual em que havia se perdido. Dando-se conta de como tinha ido longe demais, abandonou-lhe a boca. Num esforço para subir à tona do mar de sensações onde se afogava, abriu os olhos.

Arabella aconchegava-se na curva de seus braços, com os lábios entreabertos, as faces afogueadas, a respiração curta e rápida. Viu-a erguer as pálpebras e o calor mortiço em seus olhos au-mentou-lhe a excitação contida a custo.

Virgem alguma poderia reagir com tal intensidade, ser tão licenciosa, refletiu Nando. Quase se sentiu agradecido pelo anel de gelo que lhe apertava o coração, expulsando a ternura. Mas o sangue continuava a latejar quente nas veias. Arabella era igualzinha a todas as outras mulheres e, por isso, ele a possuiria, disse a si mesmo. Só então, ele ficaria satisfeito e livre de sua atração.

Arabella viu a prata incandescente dos olhos de Nando transformar-se em gelo. O arrepio ao longo de sua espinha já não era de sensualidade, mas de medo. Havia sido honesta e, mais uma vez ia pagar caro por isso.

— Você sempre castiga as pessoas por sua honestidade? — perguntou com a voz ainda trémula pelo efeito do beijo.

Nando a encarou.

— O que quer dizer?

— Fui sincera com você e agora estou sendo punida. Por quê? Faz isso por gosto? — perguntou em tom triste.

— Não faço a mínima ideia do que você esteja falando — Nando respondeu e virou-se para o rio.

Poderia Arabella perceber o quanto ele a queria e como o desejo o deixava vulnerável? Seria ela capaz de intuir como essa fraqueza o atemorizava, pois tinha as cicatrizes para provar a natureza instável dos sentimentos das mulheres, mesmo quando elas os classificavam de amor?

— Jovenzinhas de reputação impecável não reagem desta forma ao serem beijadas, não é? — provocou ela premida pela tensão. — Elas enrubescem, suspiram e desmaiam. Imagine se jamais se atrevem a mostrar prazer. Ou não era prazer o que você queria proporcionar?

Num movimento brusco, Nando virou-se e agarrou-a pelos ombros.

— Não me provoque, sua feiticeira de cabelos negros! Segurando-a com grosseria proposital, assaltou-lhe a boca.

Queria puni-la por ler seus pensamentos, por provocar-lhe o desejo. Queria castigá-la por parecer diferente das outras quando ele tinha certeza do contrário.

Mas a sua passividade sob ele, onde antes a vida pulsava, livrou Nando da loucura momentânea. Soltou a boca de Arabella e aconchegou-lhe o rosto ao peito. Porém suas mãos o empurraram e ele teve de largá-la.

Contudo, Arabella não se apartou como ele esperava. Encostou a testa em seu queixo e espalmou as mãos na frente da túnica.

— Não vou mentir a você, Nando. Já fui beijada antes, mas nunca senti o que a sua boca me proporcionou. Não peço que acredite em mim agora. Com o tempo, você descobrirá que falo a verdade.

Nando inclinou-se para trás e a fitou. Os lábios, que ele havia irritado com o beijo rude,

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06curvavam-se num sorriso meigo, no qual desejava tanto acreditar. Ele a tinha castigado pelos pecados de outras mulheres. A vergonha pela atitude o deixou arrasado.

— Desculpe muitíssimo, Arabella.

Ela o silenciou com os dedos em seus lábios.

— Ninguém deve se desculpar por exceder-se levado pelo sofrimento. Nem mais uma palavra agora — disse ela com sinceridade, mas ainda ressentida.

Levantaram-se, limparam a poeira da roupa e, em silêncio, dirigiram-se aos cavalos. Nando ajudou-a a montar e quando a fitou, sorria.

— Prometo um comportamento muito melhor amanhã durante: a nossa cavalgada.

— Sinto muito, mas tenho outros planos — disse Arabella.

— O seu orfanato? Ela arregalou os olhos.

— Como sabe?!

Diante da demonstração de surpresa, Nando não conteve o desapontamento.

— Viena inteira já sabe que você representa o papel de dama generosa em algum orfanato da cidade.

Arabella baixou as pálpebras para que ele não visse sua expressão magoada. Então, era assim que Nando interpretava seu trabalho?

— Qualquer dia, vá comigo verificar por si mesmo.— Nando a fitou por um longo tempo. Sob a meiguice nos olhos azuis havia uma determinação que o desafiava. Seria Arabella uma ingénua ou uma sedutora? questionou-se. Não importava. Ele não podia confiar cm nenhuma das duas.

CAPÍTULO VI

Se o entendi bem, você não foi capaz de segui-los? — perguntou o príncipe Ni-kita Volkonsky numa voz enganadoramente suave.

— Foi impossível, alteza. Eles se afastaram das trilhas para carruagens. Mesmo se eu estivesse a cavalo, não poderia tê-los seguido sem ser notado — disse o homem de rosto encovado e capa preta.

Estalando as juntas dos dedos, Volkonsky olhou pela janela.

— Estou lhe pagando uma soma exorbitante para obter o que desejo. Não vou aceitar desculpa alguma!

O tom suave tinha sido substituído pelo ríspido.

— Mas alteza...

Volkonsky o silenciou com um gesto brusco da mão. Irritado, caminhou até a janela. Vinha acompanhando os passos da srta. Douglas há duas semanas e ainda não tinha conseguido apanhá-la num aposento vazio por uns poucos minutos. Entretanto, surgia Berg e a levava para cavalgar num lugar tão ermo que não fora possível segui-los. Ridículo! Não toleraria isso!

Virou-se com os polegares enfiados no cinto.

— Quero saber exatamente aonde a moça vai, com quem se encontra e o que faz. Não aceitarei

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06desculpas da próxima vez. Estamos entendidos?

O pomo-de-adão subiu e desceu no pescoço do homem enquanto ele sacudia a cabeça e se curvava numa atitude obsequiosa. Mantendo a posição, saiu da sala de costas.

Arabella acabava de se vestir para ir ao orfanato quando um lacaio veio avisá-la de que um cavalheiro a aguardava no saíão.

Instantes depois, descia a escada correndo mal lembrando-se nos últimos degraus, de assumir passos mais maneirosos.

Para credito seu, conseguiu disfarçar o desapontamento ao ver o príncipe Volkonsky à porta do salão. Desde o baile de máscaras no palácio Hofburg, ele a vinha acumulando de atenções. Embora Arabelia tivesse consciência do aspecto atraente do príncipe, não conseguia esqucecr-lhe o sorriso cruel quando estivera entre ele e Nando.

— Bom dia, príncipe Volkonsky— cumprimentou.

— A senhorita está cada dia mais encantadora!

Os olhos negros percorreram-lhe as feições bem devagar antes de se curva-se tomar sua mão. Em vez de parar aos centímetros, convencionais, Volkonsky a beijou. Ela recuou, mas o príncipe estava preparado para tal reação e não a soltou. Endireitou-se com um sorriso insolente nos lábios sensuais e pôs-se a afagar as costas de sua mão com o polegar.

Irritada consigo mesma por se deixar apanhar por Volkonsky, Arabella forçou-se a relaxar e a assumir expressão de indiferença.

— Posso ter minha mão de volta?

— Claro. Mil perdões, srta. Douglas. Por acaso daria o prazer de me acompanhar num passeio de carruagem?

— Sinto muito, príncipe, mas não posso. Já estava de saída — respondeu Arabella aliviada por não precisar mentir.

— Vai ao orfanato? — indagou ele com uma ponta de desapontamento.

Arabella suspirou. Não adiantava negar um fato que, aparentemente, Viena inteira conhecia.

— Vou, sim.

— Posso então acompanhá-la até lá, já que não é possível gozar de sua companhia de outra forma?

Percebendo que Volkonsky não desistiria com argumentação alguma, ela aquiesceu com um gesto de cabeça.

Nando não havia dormido bem. O fato de a falta de sono ter sido provocada por lembranças de Arabella o irritava mais do que a própria insónia. Finalmente, tinha se levantado e ido à janela para observar o amanhecer. Talvez o espetáculo lhe acalmasse o estado nervoso.

Arabella era lindíssima e ele a desejava com tal intensidade que chegava a doer. Porém fora a mágoa, vista em seus olhos cor de safira, a razão para impedi-lo de dormir. Mágoa provocada por cie.

Precisava se desculpar, considerou Nando furioso consigo mesmo. Mas não tinha de se criticar com muita severidade. Afinal, ela não era diferente das outras mulheres conhecidas. Com toda a certeza, tão falsa e traiçoeira. Apenas, representava melhor. Durante o acinzentado da madrugada, Nando tentava

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06consolidar as convicções. Mas apanhava-se desejando que a pureza e o encanto de Arabella fossem verdadeiros. Nesse caso, talvez ele pudesse voltar a acreditar na beleza da vida., A certa altura, enquanto admirava o horizonte tornar-se cor-de-rosa, sentiu uma ponta de esperança.

Mas quando a claridade reinou absoluta, o bem senso retomou. Nando foi cuidar dos afazeres habituais, convencido de que as imagens causadoras da insónia tinham se dissipado com as trevas. Entretanto, no meio de uma reunião com o administrador das propriedades na Estíria, ele se levantou abrupto e mandou selar a montaria.

Maldição! Precisava pedir as tais desculpas logo. Só então, acalmaria a consciência e poderia voltar a cuidar dos negócios em paz.

Como não encontrasse Arabella em casa, cavalgou até as muralhas junto ao rio onde, sabia, ficava o orfanato em que ela passava algumas horas.

Uma menina, magricela e de olhos arregalados, indicou-lhe um corredor longo e escuro. Na outra ponta, havia uma janela dando para o pátio, por onde ele olhou.

A primeira coisa vista por Nando foi a silhueta do príncipe Volkonsky, com o uniforme azul e branco, encostada a uma parede. Raivoso, Nando advertiu-se de que não deveria ter esperado outra coisa. Praguejou e quase virou as costas. Quase. Mas então, viu Arabella.

Ela estava sentada em um canto ensolarado do pátio, rodeada por crianças de idades variadas. Todas a fitavam com ar de adoração e encanto como se não tivessem certeza de que ela fosse real ou uma visão capaz de desaparecer no instante seguinte. Um garotinho de uns dois anos agarrava-se a sua saia enquanto ela trançava os cabelos de uma menina.

Nando permaneceu à janela por um longo tempo observando o que se passava no pátio. Viu como Arabella tinha um sorriso e um gesto carinhoso para todas as crianças. Notou a insistência de Voikonsky de se aproximar dela, apenas para ser dispensado com negativas. Percebeu o carinho de Arabella ao abraçar cada criança por sua vez, no momento de se despedir para ir embora.

Na rua, Nando montou em Sultão sentindo-se um verdadeiro idiota. Um tanto afastado, ninguém do pequeno grupo o notou ao deixar o orfanato. Arabella andava depressa, apoiada no braço de Jeanne, e Voikonsky caminhava a um passo atrás com expressão de aborrecimento.

Quando a carruagem começou a se afastar, um cavaleiro saiu de uma viela transversal e, num trote vagaroso, acompanhou o veículo de Voikonsky. Nando sentiu um arrepio de medo ao longo da espinha. Então, estava certo no outro dia. Alguém vinha seguindo os passos de Arabella, concluiu ao tocar Sultão com as esporas.

— Aceita ir cavalgar comigo agora de manhã?

As palavras surpreenderam Arabella ao entrar no salão. De má vontade, tinha descido quando o lacaio a avisara da chegada de um visitante. Estava certa de tratar-se de Voikonsky outra vez. Mas ao ver Nando, apressou o passo com um sorriso de satisfação.

— Aceita? — insistiu ele.

Arabella tinha planejado ir ao orfanato, porém ao fitar os olhos cinzentos de Nando, notou a promessa de um sorriso. Só podia responder afirmativamente.

Cavalgaram até o tronco onde haviam se sentado dois dias antes.

— Fui visitá-la ontem, mas não a encontrei em casa.

— Eu tinha ido...

— Ao orfanato — completou Nando.

Arabella o encarou com expressão interrogativa, mas permaneceu em silêncio esperando que ele terminasse.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06— Senti necessidade de me desculpar com você pelo meu comportamento antes de ontem —

confessou ele com uma certa dificuldade.

— Eu lhe disse...

— Por Deus, eu sei o que me disse! Mas a expressão de seus olhos me tirou o sono. — Horrorizado com a admissão, Nando fez uma pausa. — E agora, me encontro na posição desgraçada de precisar pedir mais desculpas. Desta vez, por tê-la chamado de dama generosa.

— Como assim? Não estou entendendo.

— Eu a observei. Fiquei à janela que dá para o pátio, no fim do corredor lá no orfanato. Vi você com as crianças, brincando com elas e dispensando-lhes o maior carinho. Eu tinha imaginado que você apenas fingia cultivar a filantropia.

— O que estou fazendo é assim tão estranho? — perguntou Arabella.

— Sim. Quer dizer, não. Uma das primeiras lições ensinadas por minha mãe foi sobre a necessidade de se ajudar os menos afortunados. Ela sempre o fazia. Mas um exército de criados a acompanhava em suas missões caritativas e ela pouco tinha a ver com a distribuição direta dos bens. Acho que minha mãe teria ficado horrorizada caso se visse forçada a tocar em algum de seus protegidos.

— Não tenho bens para distribuir — disse Arabella espalmando as mãos no ar. — Conto apenas com a minha pessoa.

Como se houvesse sido picado por um inseto, Nando levantou-se depressa do tronco onde se sentavam. Se continuasse a seu lado, seria incapaz de tomar Arabella entre os braços. Ela não podia ser tão altruísta. Impossível, refletiu exasperado consigo mesmo por se sentir comovido. Tudo não passava de fingimento. Tinha de ser.

Arabella ergueu o rosto e o fitou, notando-lhe o semblante carregado. Imaginava por que suas palavras o tinham irritado. Numa tentativa para acalmá-lo, sorriu e bateu no tronco a seu lado para que voltasse a se sentar.

— Fale mais sobre sua mãe, Nando.

Ele ignorou o convite continuando em pé, mas deixou-se levar pela suavidade agradável de sua voz. Sem querer, começou a falar.

— A minha lembrança é de uma criatura retraída, triste e abatida. Pessoas que a conheceram na juventude descreviam sua vivacidade e alegria de então. Diziam que estava sempre rindo e rodeada por amigos.

Por um momento, Arabella imaginou se Nando também não teria sido assim.

— Qual foi a razão da mudança? — perguntou.

— O casamento com meu pai — respondeu Nando com franqueza. — Ele era um homem mal humorado, frio. Suas palavras constituíam ordens irrevogáveis, sempre visando obrigações e deveres. Em sua vida, não havia lugar para atividades mais amenas e descontraídas. Enterrou a si mesmo e a minha mãe num lugar distante de nossas propriedades no campo e ela... — Nando não pensava na mãe há muito tempo e sentiu um nó na garganta ao falar nela. — Bem, ela acabou definhando.

Arabella tinha vontade de acariciá-lo, compartilhar de sua tristeza, mas temia que Nando rejeitasse a solidariedade.

— Meu pai faleceu poucos meses após minha mãe — contou ele em tom suave e sem inflexão. — Na verdade, ele nunca mais deu valor à vida depois que Karl foi morto.

— Karl?!

— Meu irmão. Era o primogénito, um filho excelente. Caçador exímio, soldado nato. Nasceu

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06para cumprir a obrigação sem questionar. Foi morto em Ulm no ano de 1805. Coube, então, a mim continuar a bendita tradição dos Berg. Dois meses depois, eu me encontrava em Austerlitz. Bem, o resto da história você conhece. |

Nando observou Arabella. Sentada, ela mantinha as mãos crispadas no colo, seus olhos brilhavam úmidos e os dentes alvos mordiam o lábio inferior. Que impulso o forçara a lhe contar tudo aquilo? indagou-se. Havia se referido a um assunto sobre o qual não pensava há anos. Coisas jamais reveladas a pessoa alguma.

Que maneira mais ridícula de agir, pensou Nando virando-se de costas para Arabella. Expor mágoas antigas e secretas a uma pessoa em quem confiava apenas porque a vira abraçar crianças num orfanato.

Foi a expressão atónita, vista no semblante de Nando antes de ele se virar, que levou Arabella a tomar uma atitude. A história que acabada de ouvir tinha lhe causado um certo estímulo, mas não por uma questão de curiosidade satisfeita. A intuição lhe dizia que ela não costumava ser revelada com frequência a outras pessoas. Porém logo em seguida, Nando havia se afastado. Não podia permitir que lhe virasse as costas com aquele olhar confuso. Levantou-se depressa e segurou seu braço com ambas as mãos, forçando-o a encará-la.

— Não se atreva a se afastar de mim como se estivesse horrorizado por haver me mostrado uma faceta de sua alma. Tristeza é uma reação humana, bem como a necessidade de compartilhá-la com alguém. Não se deve temer ou envergonhar-se disso. Você não compreende?

A repreensão de Arabella tirou Nando do reino sombrio das recordações e ele conscientizou-se de sua pessoa. Viu os olhos de um azul profundo, tão grandes em seu rosto alvo, as narinas ligeiramente trémulas de emoção, os lábios entreabertos. Ao admirar-lhe as feições, ele mais sentiu do que ouviu a mudança de sua respiração. Uma veia tomou vida em seu pescoço e as mãos apertaram-lhe um pouco o braço para, em seguida, cair ao longo do corpo.

Nando ergueu as dele e rodeou-lhe o rosto.

— Isto, eu compreendo — murmurou de encontro a seus lábios. Tomou-lhe a boca, mas Arabella reagiu segurando-o pelos pulsos. Sua intenção era empurrá-lo, mas quando a agressividade foi subs-tituída por uma sensualidade carinhosa, suas mãos o prenderam em vez de rechaçá-lo.

Nando sorveu-lhe a doçura. Arabella era como um tóxico, pensou atordoado. Se permitisse sua entrada em seu sangue, jamais se veria livre dela. Mesmo assim, deixou que sua natureza vibrante, sensível e generosa o inundasse como um bálsamo reconfortante.

O relinchar manso de um dos cavalos e o estalar de galhos secos invadiram-lhes a privacidade. Alerta no mesmo instante, Nando empurrou Arabella a suas costas e seguiu em direção ao barulho.

Sem entender o que acontecia, ela começou a acompanhá-lo.

— Fique onde está — murmurou Nando ao continuar rumo à orla da mata.

Porém o tropel de uma montaria indicava que o intruso do idílio já havia partido.

Era preciso explicar as suspeitas a Arabella, pensou Nando. Recomendar-lhe para ser cuidadosa e observadora. Mas quando voltou a seu encontro, ela lhe estendia os braços e sorria. Dominado pela ânsia de beijá-la, esqueceu-se de tudo o mais.

CAPÍTULO VII35

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06

Arabella mudou o chicotinho de cavalgar da mão direita para a esquerda a fim de massagear os músculos tensos na base do pescoço às costas.

— Algo errado, Arabella?

A voz de Nando caracterizava-se pelo mesmo interesse atencioso, embora impessoal, demonstrado desde o último passeio a cavalo há uma semana.

Arabella ergueu a cabeça e fitou-o. Ia negar, porém de repente, extravasou os sentimentos.

— Não aguento mais essa sua cordialidade indiferente! Ela vai acabar me levando à loucura!

Pronto, estava dito. Agora esperava que o gelo dominasse o olhar amistoso de Nando. Todavia, não se encontrava preparada para seu riso baixo e triste.

— Você é corajosa, Arabella. Muito mais do que eu. Ela não se deu ao trabalho de disfarçar a surpresa.

— Nós... Eu — corrigiu-se ele — venho insinuando algo que não sou. capaz de enfrentar. Dessa forma, tenho sido muitíssimo injusto com você.

Arabella o fitava com tanta ternura e franqueza que as palavras quase morreram nos lábios de Nando. Tudo estaria terminado quando elas fossem pronunciadas. E então, não seria mais dele o prazer dúbio de se atormentar com sua proximidade, sua voz aveludada, seu perfume. Ignorava quando havia desistido da intenção de seduzir Arabella. Talvez nunca houvesse, de fato, alimentado tal ideia.

Lembrava-se bem de como se sentira com ela aconchegada entre os braços. Teria sido há apenas uma semana? Tinha a impressão de que fora muitos anos atrás. Ela mostrara-se delicada, embora forte em sua meiguice. Na doçura de sua boca havia um travo de paixão. Deveria se contentar com as recordações, advertiu a si mesmo.

— Tenho me comportado como um pretendente, porém isso, jamais serei. Não posso.

Nunca imaginara ser tão difícil encarar o olhar de alguém. Experiente, preparou-se para uma explosão de protestos e de lágrimas, contudo ela não ocorreu. Em vez disso, os olhos cor de safira o bombardearam com faíscas violentas.

— O que andou fazendo? Por acaso, casou-se com uma camponesa durante uma de suas campanhas? — demandou ela.

A maneira brusca de falar velava a mágoa. Arabella não havia pensado em se casar com esse homem lindo, tão complicado, cheio de cicatrizes e amargura. Talvez inconscientemente, tivesse se proibido de alimentar sonho semelhante. Mas agora ao ouvi-lo, descobria o quanto o queria.

— Não. Eu jamais me casarei e, mesmo se o fizesse, não poderia ser com você. E tão jovem, Arabella, cheia de vida. Não tenho nada para lhe oferecer.

De repente, ele foi tomado por um cansaço insuportável. Arabella abriu a boca para falar, mas manteve-se calada. Percebeu que Nando estava convencido da verdade de suas palavras.

— Seria melhor se você encontrasse outra pessoa com quem cavalgar todos os dias. Alguém que possa lhe dar mais do que eu — sugeriu ele.

Arabella praguejou mentalmente. Maldito Nando por tentar tomar suas decisões e escapar dela só porque não se atrevia a agir de acordo com os sentimentos! Ergueu bem o queixo. — Quanta bondade de sua parte preocupar-se com meu bem-estar.

O tom orgulhoso de Arabella foi a fagulha necessária para incendiar os campos ressecados da mente de Nando. Num gesto agressivo, ele agarrou-lhe um dos pulsos.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06— Vá para o inferno, Arabella! Você não entendeu? Eu não me casarei com você! Jamais! Mas

se me pressionar o suficiente, eu lhe farei amor!

Por um momento. Arabella não conseguiu falar, pois sentia o sangue ferver e a excitação latejar em seu corpo.

— O quanto será o suficiente? — murmurou.

— O quê?! — perguntou Nando, incrédulo.

— O quanto será suficiente pressioná-lo?

A respiração curta de Arabella dava a impressão de que estava sem fôlego.

Os dedos de Nando afrouxaram e ele começou a acariciar seu pulso.

— Não muito, Arabella.

Ela sustentou seu olhar tempestuoso sabendo que o queria. Como amigo, marido, ou amante, caso não pudesse tê-lo de outra forma, admitiu, embora assustada com a ideia.

Entreabriu os lábios num convite inconsciente. Nando inclinou-se sobre ela chegando tão perto de sua boca que a respiração de ambos mesclava-se. Arabella teve á sensação de que ele lhe roçava os lábios, mas Nando apartou-se depressa.

Fechou os olhos para arregimentar forças. Depois, ela deu de ombros, esperançosa de demonstrar desinteresse com o gesto.

— Apesar de seu mau humor, eu já me acostumei a sua companhia para cavalgar e não preciso de outra. A não ser, claro, que você queira sugerir a de alguém como, talvez, o príncipe Volkonsky — provocou.

O coração de Nando trovejou de encontro as costeias. Teve vontade de sacudi-la pelos ombros.

— Tenha a santa paciência, Arabella! Você vai cavalgar comigo.

Um sorriso aflorou em seus lábios.

— Está bem — concordou ela num murmúrio.

Arabella andava de um lado para o outro no canto do quarto. Jeanne ressonava a sono solto e ela não desejava acordá-la.

O melhor era ir lá para baixo onde sempre deixavam uma lamparina acesa no vestíbulo.

Lembrou-se de apanhar o penhoar e, pé ante pé, saiu. Os degraus de mármore da escada estavam gelados e ela lamentou estar descalça. Por isso, desceu bem depressa. Iria ficar na biblioteca, decidiu.

No instante em que entrou no aposento, percebeu algo errado. A porta para a ala ocupada por lorde Castlereagh e seus auxiliares estava aberta. Através das outras, alinhadas pelo interior, ela podia ver uma luz ténue vinda da última sala.

Desconfiada, e na ponta dos pé, seguiu em frente. Quanto mais se aproximava do escritório de lorde Castlereagh, mais ouvia, com clareza, o abrir e fechar de gavetas e o farfalhar de papéis.

Continuou passo a passo. Não estava com medo, tentava se convencer. Por um instante, apoiou-se a uma escrivaninha, a mão sobre algo duro. O peso de papel de bronze deu-lhe uma certa segurança e Arabella resolveu levá-lo consigo.

Ao transpor a penúltima sala e alcançar a porta do escritório, viu uma silhueta inclinada sobre a escrivaninha, no outro lado do aposento, remexendo papéis. A luz de um candelabro iluminava o rosto do invasor. Era um lacaio, reconheceu Arabella. Um dos poucos contratados em Viena.

Com o peso de papel escondido sob uma das dobras do penhoar, ela deu mais uns passos e

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06resolveu que essa era uma oportunidade, tão boa quanto qualquer outra, para usar o alemão praticado com as crianças do orfanato. Com todas as outras pessoas, geralmente, falava francês.

— Was macht Du dal

A cabeça do homem levantou-se num movimento brusco enquanto as mãos firmavam-se nas bordas da escrivaninha, porém ele não respondeu o que fazia ali. Por um longo momento, permaneceu imóvel, a boca aberta de surpresa. Os olhos foram a primeira coisa que ele mexeu. Eles percorreram as janelas, hermeticamente fechadas para a noite, e a porta, cujo acesso Arabella bloqueava.

Bem devagar e ainda apoiado na escrivaninha, ergueu o corpo. Arabella deu um passo à frente. O homem baixou os olhos e vasculhou os papéis espalhados. Enfiou uma das mãos sob uma pilha deles.

— Nein.

A calma e o volume da própria voz empregados na ordem negativa surpreendeu Arabella.

O intruso puxou a mão de volta e ela, com a noção insensata de triunfo obscurecendo o bom senso, aproximou-se mais um pouco.

Subitamente, o lacaio explodiu em movimento. Rodeou a escrivaninha e correu rumo à porta. Em sua direção, viu Arabella. Algo brilhava na mão dele. Assustada, ela percebeu tratar-se de um punhal.

Por uma fração de segundo, Arabella ficou paralisada com o choque. Mas no momento seguinte, apertava o peso de papel entre os dedos. Levantou o braço e atirou o objeto de bronze contra o homem, já a uns dois .assos de distância.

A arma improvisada atingiu o rosto do intruso e o punhal caiu no chão. Durante um instante, cessaram movimentos e barulho.

Ao ver o homem levar a mão ao nariz esmigalhado, Arabella mordeu o lábio para abafar um grito. O sangue corria-lhe por entre os dedos. E então, com um gemido rouco, ele a empurrou para o lado a fim de alcançar a porta. Arabella caiu depois de bater a cabeça no braço de uma cadeira.

Atordoada, ela levantou-se e começou a correr pelas salas, aflita para impedir a fuga do lacaio. Mas quando chegou ao vestíbulo, a porta de entrada batia com estrondo.

Seria inútil segui-lo, refletiu Arabella. Não poderia faze-lo em roupas de dormir e descalça. Também acordar algum criado não adiantaria nada, pois até então, o homem já teria desaparecido no emaranhado de ruas à volta da praça Minoriten. Ofegante, apoiou o corpo na porta e fechou os olhos.

Os últimos momentos pareciam absurdos, irreais, parte de um pesadelo ou alucinação. Abriu os olhos imaginando se, talvez, não houvesse sonhado tudo. Aí então, viu a manga do penhoar branco, por onde o intruso a empurrara, toda suja de sangue.

Enquanto subia a escada, foi tomada por um tipo de euforia estranha e até riu alto ao pensar no que os Castlereagh diriam. Mas quando chegou ao apartamento deles, sua animação já era bem menor e pouco depois, sentada na saleta de lady Castlereagh, com um copo de conhaque entre as mãos, começou a tremer.

— Você foi muito corajosa, Arabella, mas nem um pouco ajuizada. Sabe, quando esse homem veio procurar emprego num momento tão propício, resolvemos não confiar nele e tomar, certas precauções. As cartas e documentos importantes, são guardados em segurança todas as noites — contou lorde Castlereagh.

— Nesse caso, machuquei o homem sem necessidade alguma — murmurou Arabella, arrependida.

— Ah, minha querida, não fique com peso na consciência — aconselhou ele alisando-lhe os cabelos. — Se a pessoa ferida fosse você, não acredito que o príncipe Metternich perdesse o sono.

— O príncipe Metternich? Será ele o responsável? Lorde Castlereagh sacudiu a cabeça.38

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06— Muito provavelmente. Viena fervilha com espiões e informantes, mas a grande maioria

trabalha para o príncipe Metternich e Hager, seu chefe de polícia.

No sarau da Embaixada Francesa, Arabella já não estava tão pálida e os acontecimentos da noite anterior tinham perdido o impacto inicial. Mesmo assim, mostrava-se nervosa e irritadiça ao conversar com Lulu.

— Bem, qual vai ser o seu próximo passo? — demandou a amiga abertamente.

— Ai, Lulu, não sei mais o que fazer. Não consigo sensibilizar Nando, penetrar em sua muralha de indiferença. Ele foi sempre assim?

— Por Deus, não! Quando penso naquelas férias, lembro-me dele sempre rindo. Nando nos deixava, minhas irmãs e eu, ir atrás dele e de Franz. Nós três nos divertíamos tanto com os dois — comentou, saudosa.

— Franz? Pensei que o irmão de Nando se chamasse Karl.

— Franz era filho de um dos arrendatários dos Berg na Estíria. Os dois não se separavam. Com o passar do tempo, Franz assumiu o papel de criado de Nando. Acho que, hoje em dia, ele é a única pessoa a gozar da confiança plena do amigo e patrão.

— Nando me falou sobre o irmão, de como o pai o forçou a tomar o lugar de Karl. Não chegou a confessar, mas deu a entender o quanto ainda se ressente disso. Ele odeia a brutalidade, a carnificina, tenho certeza — comentou.

— Então, ele revelou um tanto a você — disse Lulu com ar pensativo.

Arabella sorriu com expressão tristonha.

— Não acho que essa fosse a intenção dele. Talvez nem tenha se dado conta. Ah, Lulu, por que Nando permitiu que lhe fizessem isso?

— Trata-se de uma pergunta para ser feita a ele, mas não subestime o poder exercido pelo senso do dever, pela honra e pela família sobre um homem do caráter de Nando.

Lulu foi tomada por uma grande compaixão pela jovem amiga. Imaginou se Arabella tinha consciência de estar apaixonada por Nando, ou se tentava negar o fato a si mesma.

— Essa não é a história toda, certo? Não poderia ser a única razão pela qual Nando se fecha contra a aproximação das pessoas.

— Eu gostaria de lhe explicar, pois a questão é, mais ou menos, do conhecimento geral. Contudo, não acho correio. Pergunte a Nando. Afinal, o caso aconteceu com ele.

Calou-se ao ver o príncipe Metternich aproximar-se de ambas.

— Condessa Thurhcim. Meus cumprimentos. Esta encantadora esta noite.

Mettemich curvou-se e Lulu tomou conhecimento da saudação com um aceno discreto. Ela compartilhava da antipatia de grande parte da aristocracia pelo chanceler nascido na Alemanha. Isso sem falar nas razões pessoais para não gostar dele. Sem alternativa, viu-se forçada a apresentar Arabella.

— Srta. Douglas. É um prazer conhecê-la.

— O prazer é meu, príncipe Mettemich.

Apesar de Arabella inclinar um pouco a cabeça e sorrir, fitou-o com desconfiança, pois lembrava-se das palavras de lorde Castlereagh na noite anterior.

— Minha cara condessa Thurhcim, por acaso se importa se eu lhe roubar a companhia da srta. Douglas por alguns momentos? Acredito que nós dois tenhamos amigos comuns em Londres.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06— Será mesmo? — questionou Arabella.

Sentiu o contato leve da mão de Lulu no braço e considerou-o um aviso.

— Vamos continuar nossa conversa daqui a pouco, Lulu. Arablla acenou com a cabeça para a amiga e, com um sorriso amplo demais para ser sincero, virou-se a fim de colocar a mão no braço oferecido por Metternich.

Por um bom tempo, passearam pelos salões. O príncipe mantinha-se calado e Arabella começou a se preocupar com a situação. Voltava a sentir a aflição da véspera à noite e dessa manhã. Para disfarçá-la, resolveu quebrar o silêncio.

— Não acho que tenhamos amigos comuns em Londres, príncipe Metternich. Sobre o que vossa alteza deseja conversar comigo?

Arabella expressou-se em voz enérgica, temendo que ela tremesse caso falasse com displicência.

Metternich virou a cabeça de cabelos crespos e empoados para ela.

— Sempre se expressa abertamente, srta. Douglas?

— Pelo menos, me esforço.

— Interessante. Suas palavras me parecem tão diretas quanto seu alvo. A senhorita me custou os serviços de um agente excepcional por várias semanas. Isso atrapalhou meus planos.

Diante de tamanha franqueza, Arabella não conteve uma exclamação abafada.

— Vejo que hão esperava minha falta de sutileza. Em certas ocasiões, minha cara srta. Douglas, ela me é de grande utilidade.

Sem saber o que pensar, Arabella semicerrou os olhos.

— O que vossa graça quer de mim?

— Informações.

— Ficou louco?! — As palavras foram ditas antes de Arabella se lembrar de que falava com um dos homens mais poderosos da Europa. Tentou baixar o tom de voz. — Vossa graça pensa mesmo que eu...

Com um gesto elegante da mão, Metternich a interrompeu.

— Por favor, srta. Douglas, me ouça primeiro. Fui informado de que a senhorita não conta com muitos recursos financeiros. Posso pagá-la bem.

Como se tecesse comentários sobre o tempo, ele falava com a máxima naturalidade.

— Acredita que eu aceitaria seu dinheiro sujo?

— Entendo. A senhorita não pode ser comprada por ouro. Quem sabe não se vende a troco de qualquer outra coisa?

— Com licença, príncipe Metternich. Preciso urgentemente respirar ar fresco — declarou Arabella começando a se afastar.

— Talvez possa ser comprada pela segurança do conde Ferdinand Berg.

A voz suave e insidiosa a seguiu como uma serpente venenosa. Arabella parou duvidando ter ouvido bem. A pele arrepiava-se. Tinha de se afastar desse homem, mas retrocedeu para perto dele.

— O que vossa graça quer dizer?

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06— Não estou em condições de lhe falar sobre detalhes, mas posso adiantar o seguinte. O conde

Berg tomou parte em certas atividades que podem vir a denegrir sua reputação e carreira. Com uma certa persuasão, as autoridades responsáveis talvez ignorem a questão.

— Que atividades? O conde Berg jamais se envolveria em algo desonroso!

— Infelizmente, já disse, não tenho liberdade de explicar mais nada.

— Como posso saber se vossa graça está falando a verdade?

— Sua única saída é confiar em mim, não acha? — disse ele com um leve dar de ombros.

Incapaz de responder, Arabella tentou se controlar. De forma alguma revelaria o medo a essa criatura asquerosa.

— Posso contar com sua colaboração? — insistiu ele. Haveria de existir uma outra solução, considerou Arabella no auge do nervosismo. Se tivesse um pouco de tempo para refletir,,j talvez encontrasse a maneira certa de agir.

— Não quero tomar uma decisão agora. Preciso refletir primeiro.

Mettcmich sorriu.

— Terá algum tempo a seu dispor, srta. Douglas. Mas não muito.

Arabella virou-se e, empregando todo seu autocontrole para não correr, deixou o salão.

CAPÍTULO VIII

Enquanto esperava por Arabella, Nando palmilhava o tapete da sala de estar de um lado para o outro. Ele a tinha visto conversando com Metternich na véspera à noite. Havia constatado sua agitação e raiva, porém ela havia desaparecido do salão sem dar oportunidade de lhe falar.

— Desgraçada! — praguejou Nando.

Desde o primeiro olhar trocado com Arabella, havia tido a premonição do perigo representado por ela a sua paz de espírito, conquistada a duras penas. Lutara para manter-se longe, mas como um imã, ela o atraía com força irresistível todas as vezes em que tentava escapar.

Agora, sentia-se preso, reconheceu Nando consternado. Por culpa própria. Sua autodefesa via-se limitada pela preocupação com Arabella, além do senso de responsabilidade por sua segurança.

Apenas poucas semanas atrás, seus dias foram tranquilos, apesar do tédio cansativo. Agora, ele tinha os nervos à flor da pele. Irritadiço porque a intuição lhe dizia que Arabella corria perigo. Irascível porque o desejo por ela continuava a esquentar seu sangue. Impaciente porque começava a alimentar uma grande ternura por Arabella, não importava o quanto negasse. Essa reação afetiva acabaria por lhe bloquear o bom senso. Apertou o indicador e o polegar no topo do nariz na tentativa de eliminar uma dor de cabeça incipiente.

— Nando? Algo errado?

Num movimento brusco, ele levantou a cabeça. Sentiu a tentação de tomar Arabella nos braços para sacudi-la, ou dar-lhe um beijo, não tinha bem certeza. Ela estava pálida, com olheiras, o que lhe aumentou a raiva contra Mctlemieh. Ao falar, a voz áspera traiu os sentimentos.

— O que você estava conversando com Metternich ontem à noite? — demandou à espera de uma resposta leviana ou uma evasão inteligente do assunto.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06Porem os olhos de Arabella arregalaram-se sem malícia e mais uma vez, Nando achou difícil

manter as mãos longe dela.

— Depois conversamos. Só quando tivermos certeza de que ninguém vai nos interromper ou ouvir — respondeu Arabella.

Por consenso mútuo, cavalgaram para alem das muralhas da cidade, em direção aos arredores no sopé das colinas dos bosques de Viena.

Nenhum dos dois tentava conversar enquanto cavalgavam. A pele de Nando, nas mãos contraídas, estava esbranquiçada. Os pensamentos tumultuavam-lhe a mente. E Arabella, ao imaginava como levaria Nando a acreditar nela, sentia um desânimo sufocante.

Em qualquer outra ocasião, ela teria ficado encantada com a taverna onde pararam. Mas na situação do momento, Arabella mal notou o aspecto convidativo do lugar e nem prestou atenção, à nogueira frondosa, cujos galhos proporcionavam sombra sobre as mesas ao ar lívre.

Pouco depois e num gesto automático, Arabella segurou a asa da caneca de vinho colocada a sua frente. Podia perceber a impaciência mal contida de Nando. Não convinha adiar mais a conversa.

— Quero sua promessa de guardar segredo do que vou lhe contar. Tudo terá de ficar apenas entre nós dois.

Nando apertou os lábios.

— Por acaso me toma por língua de trapo?

Decidida a ignorar a pergunta, encarou o olhar de Nando.

— Quero dizer que, sob todos os aspectos, a história precisa ser mantida em sigilo por nós ambos. Você não poderá agir, tomar atitudes, baseado em minhas palavras.

— O que quer de mim? A promessa de não estrangular Mcttemieh durante o sono? Não desafiá-lo a um duelo? — provocou Nando com expressão sombria.

— Quero sua promessa de que este assunto morrerá aqui à mesa — insistiu Arabella.

Nando fitou seus olhos tão escuros e sérios. Viu-os encherem-se de lágrimas e admitiu que lhe daria a alma. caso ela a pedisse.

— Muito bem, prometo. Agora, fale — resmungou ele.

— Antes de ontem à noite, desci até a biblioteca onde encontrei um lacaio remexendo os papéis na escrivaninha de lorde Castlereagh — começou Arabclla.

— Naturalmente, você não o enfrentou, não ? — disse Nando.

— Bem, na verdade... — Arabella sorriu meio sem graça. — Quebrei o nariz do homem, eu acho.

Nando prensou a base das mãos na testa afim de impedi-las de agarrar Arabella e sacudi-la até seus dentes tilintar.

— Faz ideia da estupidez imensa cometida?

— Já me disseram isso várias vezes. Obrigada pela repetição.

— Foi sobre isso que Mettemich conversou com você? — indagou Nando tomado pela desconfiança.

— Acertou. De acordo com o príncipe, como provoquei o afastamento de um ótimo agente, deveria assumir o trabalho dele daqui em diante.

— O que ele lhe ofereceu?

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06Temendo suas próximas palavras, Nando sentiu um arrepio gelado ao longo da espinha.

— Uma quantia generosa e... a sua segurança.

— O quê? Explique melhor — exigiu Nando.

— Segundo Mettemich, você se envolveu em certas atividades que poderiam macular sua reputação e carreira. Se eu o ajudasse, isso seria convenientemente, ignorado.

— Ele mencionou a natureza das atividades?

A voz suave de Nando não revelava a fúria tempestuosa que começava a tomar vulto em seu íntimo.

— Ele garantiu não ter liberdade para revelar detalhes.

— Você acreditou nele?

— Não creio que você fosse capaz de qualquer atitude desonrosa, Nando. Mas quis lhe contar isso porque aquele homem é capaz de torcer algo inocente para conseguir seus propósitos — afirmou Arabella em voz calma.

— Tem certeza?

— Absoluta. Você é um homem íntegro, Nando. Eu sei. — Fitou-o bem dentro dos olhos, desejosa de dizer tantas coisas mais, porém ergueu bem o queixo e permitiu-se sorrir um pouco. Nando não conseguiu continuar fitando os olhos cor de safira.

tão cheios de expressão confiante. Incapaz de se manter sentado, levantou-sc c pôs-se a andar de um lado para o outro. Queria, e não ao mesmo tempo, saber o que ela ia fazer. Abrupto, virou-sc para Arabella.

— E então? O que vai fazer? — questionou-a.

— Como assim? — perguntou ela, perplexa.

— A respeito da proposta de Mctternich.

Ela começou a rir, mas o som morreu em sua garganta ao ver o semblante sombrio de Nando.

— O que você acha? — perguntou bem baixinho.

Nando aproximou-se mais e espalmou as mãos no topo da mesa.

— Seja o que for, quero deixar bem claro, que nós ambos estamos cientes de que sua decisão não tem nada a ver comigo.

Arabella encolheu-se como se tivesse sido estapeada. Apoiando as mãos na mesa, levantou-se.

— Como se atreve a aplicar sua maneira tortuosa e má de pensar em mim? — demandou.

Ereto, com os braços caídos ao longo do corpo, Nando recuou um passo. Tanto fúria como ressentimento estampavam-se abertamente nas feições de Arabella.

Havia sido paciente, refletiu ela ao rodear a mesa na impetuosidade instigada pela vingança. Tinha esperado e inventado desculpas para Nando todas as vezes em que ele se retraía ou a magoava com sua amargura. Mas esse insulto a sua integridade pessoal, não poderia ignorar.

Foi a imobilidade absoluta de Nando que lhe amenizou o ímpeto. Viu a resignação, a derrota nos ombros caídos, a tristeza nos olhos cinzentos. Tudo que lhe havia provocado indignação e ofendido, desapareceu para dar lugar a uma grande ternura. Chegou-se bem perto e, com as mãos erguidas, rodeou-lhe o rosto.

— Quem foi, Nando? Quem o magoou tanto a ponto de você, agora, só acreditar que tudo é mentira e traição?

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06— Não, por favor. Falar sobre isso não vai mudar nada — queixou-se ele.

Ela baixou as mãos ao peito de Nando.

— Eu disse que o considerava um homem íntegro e como tal, deve me informar a respeito dos fantasmas contra os quais estou, lutando.

— Arabella, eu já falei um sem número de vezes que nunca...

Nando calou-se e colocou os polegares sob suas mãos para iirá-las do peito, mas ao sentir o contato morno c macio de sua pele, imobilizou-os.

— Não pedi nada que não possa me dar, Nando. Não vai lhe custar muito me responder.

Ele sentia o peso da culpa pelas palavras grosseiras. Que mal haveria em humilhar-se um pouco? ponderou. Sem desviar o olhar do seu, ele concordou com um gesto de cabeça. Depois de afastar suas mãos, ele caminhou até a mureta de azulejos à volta do pátio.

Nando ouviu os passos de Arabella seguindo-o, contudo não se virou. Ao lembrar-se dos fatos, não conteve um arrepio de mal-estar.

— Eu tinha vinte e dois anos quando conheci a princesa Katharina Bagration. Sua beleza me fascinou. Os últimos oito anos não lhe foram muito favoráveis, mas naquela época, ela realmente lembrava um anjo. Pelo seu modo de agir, Katharina também gostou do que via, pois num piscar de olhos, passou a compaitilhar de minha cama. Atordoado, perdi o bom senso.

A voz suave de Nando adquiriu um tom de menosprezo.

— Fiquei completamente enfeitiçado por ela e passei a me comportar da maneira mais tola possível. Expus-me ao ridículo.

Firmou as mãos no topo da mureta e achou reconfortante o contato duro.

— Preferi ignorar o fato de que ela contava com uma esteira de amantes descartados, de São Petersburgo a Paris, vários filhos de pais diferentes, além de um marido. Achava melhor acreditar em suas promessas murmuradas ao meu ouvido. Para mim, foi um golpe de sorte o relacionamento ter sido breve e haver terminado de maneira abrupta quando a encontrei na cama com o nosso reverenciado príncipe Metternich.

Riu com sarcasmo e Arabella não conteve uma exclamação de choque.

— Lamento sobrecarregá-la com esta historinha sórdida. De qualquer forma, tal petisco para os maledicentes, divertiu a metade dos salões da Europa durante meses. Onde quer que eu fosse, ouvia comentários, insinuações e até, muitas vezes, perguntas francas. Depois de algum tempo, aprendi a rir da situação.

O ódio degladiou-se com a compaixão no coração de Arabella, porém por uns instantes, o ódio venceu.

— Foi assim que você aprendeu a avaliar todas as mulheres de forma idêntica?

. — Não, não. Foi preciso outra lição. Dessa vez, dada por uma jovem, muito fina, de ótima reputação.

Nando afastou-se da mureta e pôs-se a andar enquanto falava.

— Um pouco antes de os convites para o baile de nosso noivado serem enviados, a condessa Hohenstein decidiu ser mais conveniente casar-se com um dos Esterbazys. Afinal, a família possuía mais terras na Hungria do que o próprio imperador e podia traçar a estirpe até Adão.

Arabella sentiu um grande peso na alma. Sabia agora o que Nando procurava nela. Esperava que

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06dissesse ou fizesse algo para provar sua semelhança às outras mulheres. Entendia o significado daquele olhar desanimado que, algumas vezes, conseguira surpreender nele. Talvez tivesse de se contentar em ser apenas amiga dele. Mas tal ideia foi afastada antes mesmo de tomar forma definida.

— Muito bem. Está satisfeita? — perguntou Nando virando-se finalmente para Arabella.

— Eu estava pensando quando você me olharia de frente.

A meiguice em seus olhos persistia, porém as fagulhas pareciam iminentes. Ele tinha planejado desencorajá-la, mas não havia nada parecido com desilusão nas feições de Arabella.

— Como você consegue ter coragem de me confundir com essas mulheres desprezíveis? Se eu fosse homem, o desafiaria — afirmou ela em tom belicoso.

Sem querer, Nando começou a rir. Em instantes, as recordações deprimentes eram esquecidas e ele relaxava. A fragância de Arabella o inebriava, percebeu ao aconchegar as mãos em seu rosto.

Maravilhou-se com a espontaneidade e meiguice com que elá lhe oferecia a boca. Aceitou-a sem hesitação, racionalizando que se apossava de algo dado de graça. Num outro momento de maior lucidez, ele se criticaria por tirar vantagem da inocência de Arabella. Contudo nesse, após haver lhe exposto a alma e as magóas antigas, não havia como resistir ao bálsamo cicatrizante que ela lhe ofertava. Seria incapaz de admitir, mas necessitava tanto de carinho altruísta de Arabella quanto de sua paixão inexperiente.

Com um gemido inarticulado, aprofundou o beijo.

Arabella tinha sido beijada antes, mesmo por Nando, mas jamais sentido a excitação louca, o latejar desenfreado do sangue provocados por esse homem que lhe invadia a boca com tanta intimidade e mal contida violência. A audácia de Nando incendiava-lhe o corpo, porém era a ternura, sempre perceptível no contato físico, que conquistava seu coração.

Apesar de deixar Nando puxá-la para mais perto, Arabella sabia estar exibindo um comportamento impróprio a uma jovem de boa reputação. Mas nesses poucos momentos de proximidade, ao sentir-lhe a boca tão tentadora na sua, ela não conseguia se recriminar. Queria absorver, como uma esponja, esse contado, gravar bem todas as sensações a fim de lembrar-se de tudo para o resto da vida.

Nando afastou um pouco o rosto e observou Arabella, os olhos fechados, os lábios entreabertos e úmidos do beijo. Uma voz cética murmurou em sua mente: "Ela é igual a todas as outras, apenas mais bonita, desejável e esperta do que a maioria". Começou a se afastar, porém Arabella abriu os olhos e a voz foi esquecida.

Como seria, Nando apanhou-se conjeturando, se ele fosse o tipo de homem que pudesse aceitar uma mulher como Arabella, atrever-se a construir um futuro, uma vida a dois? Caiu em si e afastou os pensamentos proibidos.

Arabella notou as sombras invadir os olhos cinzentos. Ansiosa para prolongar um pouco mais esse momento, tocou-o no rosto e pediu:

— Me beije outra vez, Nando.

Quando ele curvou a cabeça para atendê-la, o mundo e as lembranças desapareceram.

Perto das onze horas, Arabella já tinha olhado para o relógio um sem fim de vezes e imaginado por que Nando ainda não havia aparecido no sarau. Acostumara-se a encontrá-lo e começava a sentir medo de que ele a estivesse evitando.

— Minha querida srta. Douglas. Está cada dia mais adorável!

— Obrigada, príncipe Volkonsky — agradeceu Arabella antes de se virar, pois reconhecia o dono da voz pelo forte perfume de âmbar-cinzento.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06, — Como sua sombra a desertou esta noite, posso ter o prazer de sua companhia?

Arabella esforçou-se para sorrir com gentileza, mas ao pôr a mão no braço de Volkonsky, avistou Nando. Depois, lhe explicaria que lorde Castlcreagh havia pedido a ela para tratar o príncipe com a maior atenção possível, pois os russos estavam lhe causando muito trabalho. Temia que Nando encontrasse uma desculpa para classificá-la em pé de igualdade com as mulheres que o tinham feito sofrer tanto.

Nando dizia a si mesmo que os salões, onde o embaixador prussiano recepcionava, eram um tanto pequenos para não estar sempre se deparando com Arabella, mas sabia estar mentindo. Na verdade, ele não cessava de procurá-la com o olhar. Despreparado para as reações que o assaltavam, via-a sorridente conversando com Volkonsky. A raiva ele podia entender, contudo, como aceitar esse sentimento imperioso de proteção? E bem no fundo, fervia um ciúme feroz e primitivo.

De repente, com a força de um maremoto, a fúria eclodiu. Ao ver Arabella e Volkonsky passarem a outro salão, Nando teve de lançar mão da disciplina férrea para não segui-los.

O orgulho enrijeceu os ombros eretos enquanto se virava para observar um jogo de uíste. E ficar à espera.

Demonstrar-se atenciosa com o príncipe Volkonsky estava sendo trabalhoso demais, considerou Arabella. Tentava sorrir com gentileza, mas já sentia os nervos à flor da pele. Se ele roçasse, mais uma vez, o bigode em sua orelha com a desculpa de murmurar lisonjas, não sabia se conseguiria reagir com boas maneiras.

— Gostaria de tomar alguma coisa, srta. Douglas?

— Ah, muitíssimo — respondeu Arabella aliviada.

Talvez a ida ao bufe lhe proporcionasse,a oportunidade de se livrar de Volkonsky.

Através de um impulso muito leve, Volkonsky fez Arabella passar por uma porta e, só quando esta se fechou com um clique claro da fechadura, ela percebeu que estavam num corredor deserto.

Arabella desconsiderou o sinal de alarme, pois afinal, havia uma sala repleta de pessoas do outro lado da porta sobre a qual, o príncipe se encostava.

— Acredito ser esta sua ideia de gracejo, príncipe Voíkonsky. Lamento não apreciar sua falta de gosto.

Continuando a bloquear o acesso à porta, Volkonsky não respondeu. Os olhos negros brilhavam.

— Deixe eu passar. — Arabella deu um passo cm direção a ele. — Deixe-me passar, estou lhe dizendo.

Estendeu o braço para empurrá-lo, mas ele a segurou pelo pulso.

— Minha cara srta. Douglas, vou ser bem generoso e proporcionar-lhe mais um pouco de minha companhia. Ou acha que já provocou ciúme suficiente no meu amigo Berg?

— Como se atreve a tanto? — perguntou Arabella ao retorcer o braço na tentativa de soltá-lo.

Porém o movimento serviu apenas para aproximá-la mais de Volkonsky que, tomando sua outra mão, a puxou para bem perto. Percebendo que o esforço não ajudaria em nada, exceto para levar os corpos de ambos a se roçarem, ela ficou completamente imóvel.

— Ah, assim está melhor! Ainda bem que resolveu ser mais sensata!

O príncipe curvou a cabeça, mas Arabella conseguiu virar a sua ao mesmo tempo em que lhe dava um pontapé na perna.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06— Ora, querida, nem um pouco mais sensata afinal.

Ágil, Volkonsky endireitou o corpo, mas sem soltar as mãos de Arabella. De repente, o sorriso desapareceu. Com gestos rápidos e eficientes, ele a manobrou de costas até uma outra porta entreaberta que escancarou com o ombro. Quanto mais ela lutava, mais aumentava a força em seus pulsos. Quando já ia gritar por socorro, Arabella viu-se empurrada para dentro de um cubículo escuro.

Sem se dar ao trabalho de fechar a porta, Volkonsky encostou-a na parede. Somente uma résua pálida de luz chegava do corredor, à alcova, porém os olhos negros do príncipe brilhavam como os de um gato ao baixar a cabeça em direção a sua.

Ao não ver Arabella em lugar algum, embora os Castlereagh já se preparassem para ir embora, Nando resolveu ir procurá-la. Maldizia-se pela fraqueza e, impaciente, pôs-se a percorrer os salões. Com ansiedade crescente, dava também pela falta de Volkonsky.

Quando entrou na sala de estar, Nando notou uma porta fechada no outro extremo e achou o, fato estranho, pois todas as outras estavam abertas para facilitar e circulação dos convidados.Resolveu investigar.

Mal a abriu e passou ao corredor, ouviu o som abafado de luta corporal. Ao reconhecer a voz de Arabella, teve a sensação de que o sangue esvaía-se da cabeça, tão grande foi o pavor sentido.

Mas o pânico não retardou seus movimentos. Correu em direção da voz e invadiu o cubículo.

Surpreso com o barulho às costas. Volkonsky soltou Arabella para, em seguida, virar-se. Nando a garrou-o pela túnica do uniforme russo e o empurrou para o lado. Embriagado pela luxúria, o príncipe perdeu o equilíbrio, não conseguindo evitar uma queda ridícula.

Arabella, largada tão repentinamente, começou a escorregar ao longo da parede em direção ao chão, mas não chegou a cair. A tempo, Nando a amparou pelos ombros, ajudando-a a endireitar-se. Nesse primeiro instante de alivio, ele se esqueceu não só do quanto estava bravo com Arabella como também ela era igual às outras mulheres, cheia de falsidade. Num misto de alívio, ternura e sentimento de culpa por não havê-la protegido, aconchegou-a entre os braços, uma das mãos afagando-lhe os cabelos em desalinho.

Quando ouviu o ruído de Volkonsky levantar-se do chão, encostou-a outra vez na parede e virou-se para enfrentar o russo.

— Você tem muita sorte, Volkonsky. Eu não quero escândalo, por isso sugiro que desapareça o mais depressa e discretamente possível.

Volkonsky manteve-se imóvel até Nando dar um passo ameaçador em sua direção. Com cuidado, endireitou a túnica.

— Você ganhou esta batalha, Berg. Mas e a guerra? Quem sabe? — Numa atitude insolente, curvou-se para Arabella. — Minhas profundas desculpas, mademoise. He, pela audácia.

Passando a mão pelos cabelos fartos e negros, Volkonsky foi embora.

O ruído dos passos do russo no corredor ainda podia ser ouvido quando Nando dirigiu-se a Arabella.

— Você não deveria se dedicar certos jogos, Arabella. se não está preparada para as consequências. — O tom de Nando era severo e o olhar gélido já não tinha o mínimo traço de ternura. — Se atreveu a flertar com um homem como Volkonsky. a culpa é somente sua por acabar neste cubículo a exemplo de uma criada qualquer.

Arabella o encarou. O que Nando queria dela? Esperava um comentário displicente? Um pedido de desculpa? Algum tipo de explicação? Pois não obteria nenhum deles. Determinada, levantou bem o queixo.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06— Tenho absoluta certeza, Nando, de que você está bem familiarizado com certos jogos e suas

consequências. — Afastou-se da parede e parou diante dele. — Obrigada por sua intervenção. Sou-lhe muito grata.

Com a cabeça erguida, Arabella deixou a alcova. Rezava para conter as lágrimas até chegar à privacidade segura do próprio quarto.

CAPÍTULO IX

Satisfeito porque o movimento da praça do mercado os impedia de cavalgar lado a lado, Nando dava-se ao prazer de apreciar, sem ser notado, o balançar gracioso de Arabella.

Que feitiçaria havia ela lhe feito?, indagou-se. Depois do incidente com Volkonsky, ele tinha jurado conservar-se afastado e não procurá-la mais. Todavia, a lembrança de seu porte orgulhoso, apesar da mágoa profunda estampada nos olhos cor de safira, tinha lhe roubado o resto da tranquilidade. Por isso, nessa manhã ele a havia procurado a fim de pedir desculpas pelas palavras ásperas de censura. A bem da verdade, não estava muito convencido de que ela não as houvesse merecido.

Nando não estava preparado para a aceitação simples de seu pedido de perdão. Tinha esperado um acesso raivoso, insultos ou, pelo menos, aquele olhar orgulhoso que Arabella sabia dar tão bem. Ao lhe contar isso, ela o fitara com incredulidade.

— Por que eu reagiria dessa forma? Voce me pediu desculpa, eu aceitei e, no que me diz respeito, ponto final.

— A maioria das mulheres procuraria explorar a situação para tirar vantagem — havia explicado Nando.

As sobrancelhas negras de Arabella arquearam-se enquanto ela se aproximava de Nando.

— A minha afirmativa poderá lhe causar um choque, conde Berg, mas eu não pertenço a tal maioria das mulheres. Eu sou eu, Arabella Douglas. *Versthr Du das?*

Antes de Nando responder se entendia, ou não, um sorriso cativante endireitava as sobrancelhas de Arabella.

— Muito bem. Quer mesmo a minha companhia para cavalgar hoje, ou devo ficar aborrecida com você outra vez? — tinha perguntado ela.

Afetado pela magia de seu sorriso, ele havia assentido com um gesto de cabeça. Se lhe houvesse sido possível, teria fugido para o próprio bem e o de Arabella. Ela era como a areia movediça, na qual Nando sentia-se afundar.

Absorvido com os pensamentos, Nando não tinha percebido o quanto ficara para trás. Uma pequena multidão de vendedores ambulantes, crianças e cachorros os separava. Só quando ouviu um grito agudo, acima do barulho à volta, e viu Arabella descer da montaria, deu-se conta de que não poderia alcançá-la tão depressa quanto desejava.

Nando praguejou alto contra as pessoas à frente que, assustadas com as palavras vociferadas, abriram caminho.

Em questão de instantes, desmontava junto à égua de Arabella. Virou-se a tempo de vê-la empurrar um homem, corpulento e rosto avermelhado, com uma das mãos enquanto a outra brandia o

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06chicotinho no ar.

— O que está fazendo? Não se atreva a bater nessa criança outra vez! — advertiu Arabella.

Apesar do sotaque carregado e de alguns erros, o seu alemão estava bem compreensivo. Nando viu o vermelho do rosto do indivíduo aprofundar-se e ele resmungar algo. Aproximou-se depressa pondo as mãos, uma nas costas e outra no braço de Arabella.

— O que se passa aqui? — demandou ele.

— Nando! Este monstro está espancado a menina — explicou ela ao desvencilhar-se e puxar a criança para junto de si.

Aliviado por ela ter respondido em francês, Nando dirigiu-se ao homem com quem começou a falar em tom baixo, embora severo.

Arabella ajoelhou-se em frente à menina e tirou um lenço do bolso, com o qual tentou limpar-lhe o rostinho sujo e marcado pelas lágrimas. Ficou revoltada ao ver as manchas vermelhas e largas provocadas pelos tapas recebidos.

Abraçada à menina alé os soluços diminuírem, sentiu-lhe a magreza extrema. Levantou-se e, sem tirar a mão de seus ombros, foi a uma carrocinha de frutas onde comprou maçãs. Pôs-lhe uma nas mãos e outras duas nos bolsos de seu avental esfarrapado.

Arabella não tentou conversar com ela, limitando-se a perguntar-lhe o nome.

— Poldi. Leopoldine — contou a menina com a boca cheia. Após devorar a maçã inteira, ela tirou do bolso e mordeu uma segunda. De soslaio, olhava para os dois homens e viu quando o recem-chegado passou algumas moedas ao outro, cuja expressão tornou-se menos carrancuda.

— Venha cá — chamou Nando com um aceno a Poldi. Numa obediência automática, a criança moveu-se, mas virou-se para trás dirigindo um olhar desconsolado para Arabella. Quando parou à frente de Nando, ele abaixou-se e sorriu enquanto lhe murmurava algo. Com a maçã esquecida na mão, ela o ouviu com atenção e ar sério.

Nando levantou-se e, de leve, empurrou-a para perto do homem que a tinha espancado. Resignada, ela não reclamou ao ser puxada pelo braço para longe dali. Umas três vezes, virou a cabeça para trás. Sua expressão demonstrava conformismo com a sorte, não exibia medo e sim curiosidade em relação às pessoas que a tinham ajudado.

Nando sentiu a mão de Arabella apertar-lhe o braço.

— O homem vai espancá-la outra vez? — perguntou apreensiva.

— Provavelmente. Por sua causa, não vai ser hoje, pois graças a você, o dia foi bem lucrativo. Mas em qualquer outra ocasião, ele repetirá o castigo. Homens desse tipo sempre atacam as pessoas mais fracas e sem defesa.

Nando fitou-a sem esconder a perplexidade.

— Você caiu sobre o fulano feito uma fera. O que a levou a interferir no comportamento dele?

O olhar de Arabella ainda acompanhava as duas silhuetas des-combinadas.

— Instinto, imagino. Ouvi o grito de Poldi e, quando dei por mim, tinha a manga do homem agarrada em minha mão.

Relanceou o olhar por Nando antes de apertar as pálpebras com força.

— Lamento muito tê-lo colocado numa situação desagradável. — Sem perceber o que fazia, Nando rodeou-lhe o rosto com as mãos.

— Jamais se desculpe por agir de maneira correta — murmurou ele em tom ansioso.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06A expressão triste de Arabella ao abrir os olhos e fitá-lo atingiu-o com o impacto de um murro no

estômago. Acariciou-lhe faces com os polegares enquanto perguntava:

— O que foi, Arabella?

Ela tornou a fechar os olhos e apoiou as mãos nos braços de Nando. Esquecia-se do sofrimento antigo, sentia apenas a firmeza dos braços, a respiração na pele e o aconchego das mãos dele no rosto. Sacudiu a cabeça de um lado para o outro, mais para intensificar o contato do que para negar qualquer coisa.

— Conte para mim.

— O incidente de agora há pouco me fez lembrar de uma das minhas muitas travessuras na infância. — Abriu os olhos e tentou sorrir. — Resolvi passar um dia inteiro disfarçada de mendiga. por um acaso da sorte, meu pai me descobriu e me deu uma sova com o chicote de cavalgar, bem no centro de Mayfair. Durante semanas, fiquei com marcas no corpo todo. Acho que, desde então, papai nunca mais me olhou, ou falou comigo com um pingo de interesse — terminou num sussurro quase imperceptível.

Havia se esquecido de como certas lembranças eram angustiantes.

Nando lutou contra a fúria inútil. Não tolerava a ideia de alguém levantar a mão para Arabella. Num gesto carinhoso, aninhou-a entre os braços.

Ela fechou os olhos e permitiu-se a passividade de ficar assim com a cabeça nos ombros de Nando, as mãos espalmadas sobre seu peito, respirando-lhe a fragância característica. Ah, ansiava por permanecer ali durante uma hora. Não, a vida inteira. Impossível existir algo mais gratificante.

E então, alguma coisa mudou. Arabella sentiu nas mãos a aceleração do coração de Nando, a tensão que refletia a sua própria. Relutante, abriu os olhos e ergueu o rosto.

— Sinto muito, mas estamos dando um espetáculo — disse ele baixinho.

Olhando à volta, Arabella constatou que, de fato, as pessoas tinham parado suas atividades para os observar sem a mínima cerimónia.

Mas em vez de soltá-la, Nando intensificou a pressão do abraço. Continuaram unidos por mais alguns segundos preciosos, antes de voltar para junto das montarias e recomeçar o passeio a cavalo.

Com medo do que pudesse ver, Arabella mantinha o olhar afastado do rosto de Nando. O instinto lhe dizia que ele também se dera conta daquele instante delicioso quando o sangue de ambos começara a se inflamar. Ela não queria ver o retraimento gélido, ou a acusação exacerbada, recebida à margem do rio e da qual não se esquecia. Preferia lembrar-se do contato acariciante das mãos de Nando em seu rosto.

Por quanto tempo ainda conseguiria fazer esse jogo horrível exigido por ele? indagou-se. Teria forças para continuar fingindo não querer mais do que umas horas de sua companhia agradável? Poderia esticar esse momentos, tão doces e amargos ao mesmo tempo, até o dia em que ele fosse embora de Viena?

Nando observava o rosto de Arabella, as faces coradas destacando-se na alvura da pele. Por Deus como a desejava! A disciplina férrea tinha controlado a carência do corpo nas últimas semanas, contudo, bastara ter Arabella entre, os braços por uns breves momentos para o esforço esfacelar-se. Pior ainda. O desejo mesclava-se a uma ternura que ele se negava a analisar. Sabia, entretanto, que a vontade física, apesar de intensa, jamais o levaria a possuir Arabella unicamente para satisfazer o próprio prazer. Ela não era igual às outras. Aí estava a grande dificuldade. Mas a sempre presente voz sombria na mente murmurou com maldade ela é sim.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06Praguejando, Nando tocou as esporas nos flancos do garanhão e acenou para Arabella

acompanhá-lo no galope.

CAPÍTULO X

Tinha sido difícil convencer Lulu a acompanhá-la ao acampamento cigano, admitiu Arabella ao descer a escada para a rua. Mesmo quando argumentara que não iria ao baile à fantasia, oferecido por Mettemich, execto se conseguisse roupas ciganas, a amiga tinha resistido.

— Pagarei a conta de sua costureira. Encomende a ela uma fantasia de bom gosto, apropriada.

— Ora, Lulu, não posso começar a depender financeiramente de meus amigos. Por favor, vá comigo. Se não for, irei sozinha. Não duvide — acrescentara forçando Lulu a ceder.

Sorriu com o sucesso obtido. Parou para deixar uma carruagem passar, mas o veículo, com a princesa Katharina Bagration debruçada à janelinha, parou a sua frente.

— Bonjour, mademoiselle Douglas. A senhorita parece muito satisfeita da vida hoje.

— Alteza — murmurou Arabella com um leve inclinar de cabeça.

Já não mais sorria e custava-lhe um grande esforço não ser grosseira. Lembrava-se do sofrimento infligido a Nando por ela.

— Posso lhe oferecer transporte para onde vai? Seria um prazer. Afinal, parece que temos muita coisa em comum.

— Não, obrigada, alteza. Prefiro andar. E, absolutamente, não temos nada em comum.

Após a insinuação de uma curvatura, ela se afastou da carruagem a passos rápidos.

Nikita Volkonsky puxou Katharina da janela pela parte posterior da sola.

— Eu nunca a considerei muito inteligente. Katya. Mas agora, tenho certeza de que é uma grande idiota!

Passando por sobre ela. Volkonsky espiou a rua a tempo de ver o informante contratado virar a esquina a uma certa distância atrás de Arabella. Finalmente, seu plano começava a ser executado. Satisfeito, virou-se para a companheira.

— Esperava, de fato, que a moça aceitasse seu convite quando o homem, por quem ela está babando, já esteve entre suas pernas?

O mal humor estampou-se no rosto ainda bonito da princesa.

— Talvez. Não entendo por que vocês todos ficam correndo atrás dessa cadelinha se existem outras mulheres — queixou-se ela.

— Quando as outras já se deitaram com a metade dos homens da Europa, correm o risco de perder o encanto — rebateu Volkonsky, sarcástico.

Mas pelo canto dos olhos, viu a expressão venenosa com que Kathanna o fitava. Dessa vez, tinha ido longe demais, reconheceu ele. Afinal, ainda precisaria de sua cooperação mesmo após ter a moça sob poder.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06Voltou a se inclinar para a frente e, com uma das mãos sobre os seios cobertos pelo tecido

vaporoso e alvo, começou a se justificar:

— Sabe como é, minha pombinha. Nós todos queremos experimentar algo novo. Você também. Concorda, amor?

Exasperada, ela esquivou-se do contato com Volkonsky.

— Engana-se. A bem da verdade, estou disposta a repetir algo. Quero saborear uma nova dose de Nando. Sabe, Niki, ele foi o melhor. O melhor por excelência! — Fitou-o com um sorriso maldoso. — Eu o aconselho a possuir a moça inglesa antes de Nando, Niki. Antes que ela descubra a diferença.

Ao ouvir essas palavras, Volkonsky foi tomado por um ódio intenso contra Katharina. mas disfarçou-o sob a expressão de arrogância.

— Pois estamos entendidos, Katya. De agora em diante, faça! o que eu disser. Quando eu já tiver aplacado meu apetite pela; feiticeira de cabelos negros, eu lhe servirei Berg numa bandeja.! O resto caberá a você.

Ao ver Katharina debruçada na janelinha da carruagem, Nando quase esporeou o garanhão para ir até lá e afastar Arabella.

Na véspera, ela havia lhe dito que. nessa manhã, iria fazer compras com Lulu. Contudo, Nando tinha acordado com um mau pressentimento e resolvido segui-la.

Mesmo após ver Arabella e Lulu partir na carruagem dos Thurheim, protegidas por um lacaio e o cocheiro, Nando continuou a sentir arrepios de medo.

Quando o veículo tomou a direção da alameda principal do parque Prater, lugar movimentado, ele sentiu um certo alívio e a tensão começou a ceder. Mas logo depois, o cocheiro rumava para uma estradinha deserta, paralela ao rio. Contrariado, Nando praguejou. O tal caminho só dava acesso à mata pantanosa e a uma clareira onde ciganos acampavam.

Havia quase o início da tal estrada, mas teve de diminuir a marcha da montaria a fim de ultrapassar uma carruagem acompanhada por um homem a cavalo.

De repente, uma voz familiar, às costas, o impediu de acelerar o passo do garanhão outra vez.

— Olá, Berg. Por que tanta pressa?

Nando parou e, virado na sela, bateu continência a seu comandante, o príncipe Schwarzenberg.

— Você não aparece em meu salão de audiências há várias semanas. Devo concluir que, afinal, está apreciando a vida em Viena? — indagou o príncipe bem humorado.

— De fato, alteza — respondeu Nando, constrangido.

— Cavalgue a nosso lado por uns minutos, Berg, e nos conte como vem se distraindo. Será um prazer.

O tom de Schwarzenberg não deixava dúvida quanto a expectativa de obter ali obediência semelhante à do campo de batalha.

Nando curvou-se com um último olhar para a estradinha. Lá estava a silhueta escura, vista antes, acompanhando a carruagem dos Thurheim a uma certa distância.

A mulher de Schwarzenberg debruçou-se à janelinha e sorriu para Nando.

— Poderá segui-la mais tarde — disse ela com um gesto em direção à estrada secundária. — Sabe, não estamos tão desinformados quanto meu marido quer levá-lo a crer. Mas por favor, faça-nos um pouco de companhia.

Nando praguejou mentalmente enquanto emparelhava Sultão à montaria do príncipe.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06Relutante, Arabella entregou o embrulho malfeito ao lacaio. O conteúdo, adquirido a troco de

umas paucas moedas e enrolado num trapo de limpeza duvidosa, era a compra mais interessante que já fizera na vida. Havia sido uma experiência fascinante barganhar com as ciganas. Por isso mesmo, lamentava separar-se do tesouro.

Alegre e sorridente, virou-se para Lulu:

— E agora? Ainda acha que eu deveria encomendar a fantasia, a uma simples costureira?

— Não seria tão colorida, sem dúvida, nem tão chamativa — respondeu Lulu ao arquear as sobrancelhas.

— Então o quê? — indagou Arabella. — Bem, em minha opinião, você vai provocar um terremoto social. Desconfio ainda que Nando terá algo a dizer sobre o assunto. Por acaso você não está planejando convencê-lo através de um grande impacto? — provocou.

— Não, de jeito nenhum! — garantiu Arabella. — Minha intenção foi economizar dinheiro e não usar uma das muitas fantasias habituais de camponesas das quais o baile estará repleto. Mas pensando bem, não seria nada mau se a conquista de Nando também entrasse na barganha.

As duas amigas encetaram a caminhada de volta à carruagem que ficara na estrada, atrás de uma curva.

Numa conversa animada, não prestaram muita atenção onde pisavam até Lulu enfiar o pé num buraco, torcer o tornozelo quase perder o equilíbrio.

— Lulu, o que aconteceu? — indagou Arabella amparando — Anton, corra aqui! — gritou chamando o lacaio, enquanto examinava o tornozelo machucado.

.— Estou bem, minha cara. Foi uma luxação leve — garanta Lulu ao tentar, em vão, dar um passo.

O lacaio já estava ao lado e Arabella tomou conta da situação.

— Anton, você vai carregar a condessa de volta à carruagem!

— Não será preciso — protestou Lulu.

— Fique quietinha e não discuta. Não vai conseguir andar com esse pé torcido. Anton, pode me devolver o pacote. Eu levarei.

Arabella não segurou com firmeza o embrulho malfeito e ele caiu desmanchando-se.

— Não perca tempo, Anton, eu cuido disso — ordenou ela vê-lo fazer menção de apanhar as peças do chão. — Leve a condessa depressa. Ela não pode continuar em pé.

Recriminando-se por convencer a amiga a acompanhá-la a esse lugar de acesso difícil, Arabella abaixou-se e refez o pacote. Com a ponta da tira de pano, que servia de barbante, improvisou uma alça para enfiar no braço a fim de ficar com as mãos livres.

Lulu e o lacaio já tinham desaparecido atrás da curva, quando ela recomeçou a caminhada.

Arabella só se deu conta do ruído de patas de cavalo quando o animal já a alcançava. Mal acabou de se virar para ver de quem se tratava, um cavaleiro de capa escura abaixou-se na sela, agarrou-a e içou para cima, colocando-a na frente da montaria.

Com a garganta contraída pelo medo, Arabella não conseguiu gritar por socorro. Na verdade, mal podia respirar. Mesmo assim, pôs-se a lutar com o sequestrador.

Atirada de bruços sobre o cavalo, ela retorceu-se para virar de lado a fim de soltar as mãos prensadas sob o corpo. A alça da tira que amarrava o embrulho continuava presa a um dos pulsos e, como verdadeira algema, tolhia-lhe os movimentos.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06

Mas quando ela enroscou numa fivela da sela e rompeu, sua mão ficou livre permitindo virar-se de lado. Sem se importar com a possibilidade de cair ao chão, entre as patas do cavalo, caso não se aquietasse, começou a esmurrar o homem.

— Desgraçada! Fique quieta! Não vou machucá-la, a não ser que me force.

Ele conseguiu agarrar um de seus pulsos e torcê-lo. A dor provocou um gemido alto de Arabella, porém apesar disso, levantou o cotovelo em diagonal e atingiu o estômago do homem, o golpe o apanhou de surpresa. Esbravejando de dor, ele largou-lhe, sem querer, o pulso. Mas não por muito tempo. Logo o indivíduo voltava a segurá-la com força.

De repente alguma coisa pontuda arranhou o pescoço de Arabella. Só podia ser o pesado broche de prata, usado para fechar ai capa, que se soltara constituindo uma nova fonte de perigo. Tentou alcançá-lo com a mão livre, mas o peso do corpo sobre o braço o mantinha num ângulo que a impossibilitava de tocar o broche.

A ponta afiada cutucava-lhe a garganta. Embora desesperada, teve um lampejo de inspiração. Escorregou um pouco para a frente, apenas o suficiente para as mãos terem acesso ao broche. E então, amoleceu completamente o corpo como se houvesse desmaiado. O homem resmungou satisfeito e soltou-a. Isso deu oportunidade a Arabella de escorregar mais um tanto pelas costas do cavalo.

Ciente de contar apenas com poucos segundos para executar seu plano, antes de o sequestrador chegar a campo aberto onde poderia galopar, ela deslizou o braço direito até o pescoço. Com um simples puxão, estava de posse do broche. Em seguida, ergueu o braço o máximo possível e cutucou o cavalo com o alfinete da jóia. Assustado, ele empinou. O homem praguejou, pois não tinham, praticamente saído do lugar. Dessa forma, não alcançariam o destino tão cedo.

Com a atenção dele desviada de sua pessoa, Arabella voltou a levantar o braço, tão alto quanto sua posição permitia, e cravou o alfinete na coxa do indivíduo.

Este rugiu com a dor inesperada e o cavalo, relinchando, empinou outra vez. Sabendo contar com apenas essa oportunidade, Arabella apertou o queixo de encontro ao peito e espalmou as mãos nas costas do animal para lhe servirem de alavanca. Deu um impulso e viu-se no ar, num salto mirabolante para longe.

O baque forte da queda tirou-lhe o fôlego, mas logo levantava-se, livrava-se da capa e, com as saias arrebanhadas para não tropeçar, corria em direçao à estradinha. O homem gritou-lhe alguma coisa que não entendeu e, no instante seguinte, viu Anton surgir de detrás da curva, vindo apressado a seu encontro.

— Frãulein — gritou ele. — A senhorita .está bem?

Arabella conseguiu apenas sacudir a cabeça numa resposta afirmativa. Prensou as costas da mão na boca, na tentativa inútil de acalmar os soluços nervosos, surgidos só depois de se encontrar a salvo.

O lacaio ajudou-a a se sentar num tronco caído e afastou-se para fazer um exame rápido das cercanias. Retomou com a capa. o embrulho e até o broche cujo alfinete tinha entortado.

Lulu soltou um grito alarmado ao ver Arabella.

— Mein Gott! O que aconteceu? Você está bem? Ai, meu Deus — repetiu. — Responda, Arabella!

— Daqui a um minutinho, Lulu. Eu prometo — murmuro Arabella num fio de voz.

Lulu enfiou mão sob o banco e pegou uma sacolinha de couro, da qual tirou uma garrafa e um copo pequeno. Depois de enche-lo, ofereceu-o a Arabella.

— Vamos, beba isto.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06Ao sentir o cheiro de conhaque, Arabella negou-se a obedecer. Mas, a amiga levou o copo a seus

lábios e a forçou a tomá-lo.

Engolindo depressa o líquido âmbar, estremeceu com o ardor que ele lhe provocava na boca, na garganta e no estômago. Porém devagar, começou a sentir um calor reconfortante espalhar-se pelo corpo. Arabella fechou os olhos e tentou acalmar a respiração. Numa voz trémula, comentou:

— Primeiro, o invasor do escritório de lorde Castlereagh e, agora, este sequestrador. Em ambos os casos, me livrei dos homens, mas depois tive de tomar essa bebida horrível que me queima por dentro. Caso tais incidentes continuem a se repetir, vou acabar alcoólatra.

— Talvez você deva tomar mais cuidado — aconselhou Lulu, resolvida a conversar sobre o assunto com Nando. Ele ia ficar furioso. — Você acha que foi o mesmo indivíduo do outro dia ou, quem sabe, um cigano do acampamento?

— Não, nenhum dos dois, eu penso. Com toda a certeza, trata-se apenas de uma coincidência.

Amparada por Lulu, Arabella começava a relaxar quando ouviram o tropel de um cavalo se aproximando. Assustada, encolheu-se no canto da carruagem. Mas com o ruído das patas da montaria cada vez mais perto, o medo transformou-se em raiva. Já por duas vezes, ela havia quase sido vítima e, por Deus, não correria o risco pela terceira.

— Maldição! Recuso a me deixar apanhar desprevenida novamente. Se eu fosse homem, esmigalharia esses atrevidos! — esbravejou ela.

Percorreu o olhar pelo interior do veículo à procura de uma arma. Ao ver a sacolinha de couro a seus pés. Arabella apanhou-a e apossou-se da garrafa de conhaque.

— Que vá para o inferno! Se ele se atrever a me atacar, eu lhe cortarei o rosto inteirinho — garantiu.

Segurando a garrafa pelo gargalo, bateu-a de encontro ao trinco de metal da porta. Êxito absoluto. Arabella fez uma careta ao sentir o conhaque escorrer por sua mão e formar uma poça no chão. O tropel estava bem perto. Inclinada para a frente, Arabella afastou Lulu que tentava detê-la. Com uma das mãos, segurou o trinco da porta e, com a outra, brandiu a garrafa no ar, preparada para recepcionar o atacante com um golpe do vidro grosso e cheio de pontas afiadas.

Quando finalmente conseguiu se desvencilhar da companhia dos Schwarzcnberg, Nando estava a ponto de explodir de tensão. Pela primeira vez, não questionava a atitude, nem o que a motivava. A necessidade de se certificar da segurança de Arabclla era premente demais. Nando não diminuiu a velocidade nem mesmo ao avistar a carruagem dos Thurheim surgir na distância, vindo em direção contrária a sua. Só quando chegava bem em frente, puxou as rédeas de Sultão ao mesmo tempo em que fazia um gesto para o cocheiro parar. Desmontou e abriu a porta do veículo.

Ao se deparar com uma garrafa quebrada, o instinto de sobrevivência o levou a segurar a mão que a empunhava, antes de saber de quem era. Arabella e Nando fitaram-se. Os dedos dele apertavam-lhe o pulso e sua mão segurava a garrafa pelo gargalo. Ela estava sem chapéu, o penteado desfeito, mais da metade dos cabelos negros caída sobre os ombros. Havia manchas de barro no rosto e um longo arranhão no pescoço. Tudo isso, Nando notou numa fração de segundo.

— Meu Deus, o que aconteceu, Arabella? Você está bem? — A voz de Nando tremia e o coração disparava. Os olhos de Arabella alargarám-se, as pupilas dilatadas, e ele aumentou a pressão dos dedos enquanto repetia:

— Você está bem?

— Estou — respondeu ela num sussurro. Desviou o olhar do rosto de Nando para a garrafa quebrada, mas voltou a fitá-lo. — Eu quase cortei seu rosto. Se você não tivesse impedido, eu o teria

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06estraçalhado.

— Mas você não me cortou. Pode largar a garrafa agora. — Arabella não ouviu. O fato de não ter ferido Nando, por questão de mero acaso, lhe provocava um choque tão intenso quanto o ataque sofrido minutos antes.

Devagar, ele soltou seus dedos da garrafa. Em seguida, atirou-a longe.

Nesse instante. Lulu pôs a cabeça no vão aberto da portinhola.

— Arabella sofreu uma tentativa de rapto, mas conseguiu escapar. Quando ouviu o tropel de Sultão, imaginou que o sequestrador voltava para uma nova tentativa.

O ódio surgido nos olhos de Nando refletiu-se na voz.

— Onde estava você, Lulu? E seus criados? O que as duas vieram fazer neste lugar ermo? Por certo não foram nem um pouco sensatas!

O tom raivoso de Nando teve a virtude de despertar Arabella do estupor em que se encontrava. Apressou-se em defender a amiga.

— A culpa não foi de Lulu. Fui eu quem quis vir aqui.

— Para quê? Não existe nada nesta área a não ser o acampamento dos ciganos mais adiante.

A voz áspera de Nando irritou Arabella.

— Eu tinha algo para fazer lá.

— O quê, com todos os diabos? Queria que lessem sua sorte? Ou lhe preparassem alguma poção? — indagou ele, bravo com a imprudência.

— Não é da sua conta. Você não é meu guardião, Nando.

— Um grande alívio a não ser, embora só Deus saiba o quanto você precisa de um.

Nando deu-se conta de ainda estar segurando o pulso de Arabella. Largou-o no mesmo instante.

— Por favor, me perdoem por tê-las aborrecido. Passem bem. Em questão de segundos, Nando estava montado e esporeava o garanhão.

Só quando não mais se ouvia o tropel de Sultão, Arabella mexeu-se. Com o corpo largado no banco, cobriu o rosto com as mãos e, oprimida por tudo que lhe acabava de acontecer, deu vazão às lágrimas.

CAPÍTULO XI

Ao rodopiar em frente ao espelho, Arabella observou a saia cigana, preta e vermelha, que lhe expunha os tornozelos e acentuava a curva dos quadris. Havia puxado bem os cordões à volta do decote a fim de franzi-lo e o deixar o mais modesto possível. Mesmo assim, a blusa branca e bordada colava-se a seu busto como uma peça íntima. Sentiu uma leve apreensão, mas sorriu para a imagem no espelho e jogou os cabelos ondulados para trás, presos apenas por uma estreita fita vermelha.

Sem dar atenção aos comentários ranzinzas de Jeanne, transferiu o lenço, o pó-de-arroz e algumas moedas da bolsinha de veludo branco, usada para ir aos bailes, para um dos bolsos espaçosos da saia. A criada aproximou-se, sacudindo a cabeça com ar de reprovação.

— Como pôde fazer isso? Sua mãe morreria do coração se a visse.

— Ora, Jeanne, não precisa ser tão dramática. Você sabe muito bem como restam poucas moedas 56

Page 57: Ch 006 nina beaumont olhos da inocência

Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06na minha caixa. O convite determinava fantasias do reino de Habsburg e, se não fosse esta roupa de cigana, eu não poderia ir.

Resmungando, Jeanne deu de ombros.

— Se algum homem a tratar com ousadia esta noite, será bem feito e culpa sua.

— Boa noite, Jeanne — despediu-se Arabella baixinho antes de sair e fechar a porta atrás-de si.

— Arabella? É você?

Arabella virou-se e viu uma mulher com máscara dourada, exibindo a vestimenta das camponesas da Alta Áustria.

— Naturalmente sou eu, Lulu. Afinal, você estava comigo quando comprei esta roupa.

— Eu só quis me certificar — disse Luju em tom seco. — Você já esteve com Nando?

Arabella sacudiu a cabeça. Não via Nando desde o dia do incidente perto o acampamento cigano. Imaginava se ele ainda se daria ao trabalho de procurá-la e conversar.

Lulu deu um passo em frente e tomou o braço da amiga.

— Otimo. Vou ficar a seu lado a fim de apreciar, de peito, a explosão.

— Nem sei se ele ainda fala comigo. Em caso afirmativo, duvido que se atreva a me censurar. Nando não tem esse direito.

Mesmo enquanto falava, seus olhos percorriam os convidados, o coração agitado por um misto de ansiedade e alegria.

— Ele não tem, é claro. Porém algo me diz que isso não vai pesar na balança.

Lulu apertou-lhe o braço de leve e virou-se para cumprimentar alguém a sua esquerda.

Arabella enfiou as mãos nos bolsos e sorriu satisfeita consigo mesma enquanto rodopiava a saia. Distraída, observava o mestre-de-cerimônias formar casais para uma quadrilha. De repente, a visão da pista de dança foi bloqueada.

— O que pensa estar fazendo?

Nando expressou-se com tanta fúria que Arabella teve vontade de gritar com ele, mas controlou-se.

— Estou tentando observar a pista de dança e monsieur está me impedindo — ironizou.

— Muito divertido. Arabella...

— Por favor, monsieur, não pronuncie nomes.

— Você ficou louca? Onde já se viu vestir uma fantasia dessa? E pensar que arriscou a vida por esses trapos indecentes!

Arabella arregalou os olhos atrás da máscara.

— Não há ciganos no reino de Habsburg, monsieur! — perguntou ela como se houvesse entendido mal a indagação.

— Sabe muito bem o que quero dizer. Sua fantasia é um, convite aberto para todos os homens deste baile!

Nando estava absolutamente furioso. Odiava a violência da reação e a incapacidade de disfarçá-la.

A satisfação de haver vencido a reserva de Nando não resistiu ao comportamento irascível dele. Arabella empertigou-se. Certas coisas não toleraria, nem da parte de Nando, nem na de ninguém.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06— Quanta bondade sua em se preocupar com a reputação de uma simples cigana — disse ela, em

voz morosa.

— Arabella... — começou Nando ao tentar tocá-la.

O gesto a fez perder a calma. Antes de pesar as palavras, Arabella o interrompeu:

— Você nào tem o mínimo direito sobre mim, Nando. Por isso, me deixe em paz!

Ele baixou a cabeça e a fitou. Os olhos cor de safira brilhavam desafiadoramente através dos orifícios da meia máscara. Os dentes, entretanto, mordiam o lábio inferior. Ela apresentava uma imagem de contrastes e Nando sentiu- algo enternecê-lo. Como tantas vezes antes, havia sido injusto com Arabella. Sua fantasia não era mais ousada do que muitas outras exibidas nessa noite. E que culpa tinha ela de possuir um corpo, lindo, realçado à perfeição pela seda colorida? Ou que seus cabelos ondulados, caídos às costas, convidassem as mãos de um homem a sentir-lhes a textura macia? Ou ainda, que seus movimentos graciosos prenunciassem outros, geradores de prazer? Nando sentiu o conhecido despertar da excitação física, reação que encobria uma carência muito mais profunda e vital. Perplexo, desviou o olhar.

De repente, alguém lhe bateu nas costas, num disfarce de cumprimento amigável, pois não controlava a força da mão.

— Ora, meu caro Berg! Você está sendo muitíssimo injusto ao esconder, de nós outros, uma cigana tão encantadora.

O olhar cobiçoso de Voikonsky mediu o corpo de Arabella, provocando-lhe um arrepio de repulsa.

Sem retirar a mão do ombro de Nando, Voikonsky continuou:

— Sabe, mademoiselle, os ciganos estão muito en vogue na Rússia.

— Os ciganos estão en vogue em todos os países, monsieur. — Ela se divertia com a prerrogativa oferecida pelo baile de máscaras que privava Voikonsky do título de nobreza.

Ele curvou-se, tomou-lhe a mão e a levou em direção aos lábios. Insolente, em vez do beijo protocolar à distância da ponta dos dedos, virou-a e deu outro no lado interno do pulso.

— Eles também oferecem jogo acessível. Aliás, como a senhorita parece já ter aprendido.

Arabella crispou os dedos e puxou a mão.

— Apenas as pessoas que se permitem a isso — disse ela.

— A senhorita sabe, com certeza, a que grupo pertence, mademoiselle!

— Voikonsky, eu o advirto... — Nando começou em tom ríspido ao tirar o príncipe russo da frente de Arabella.

Voikonsky virou-se devagar, a mão já no punho da espada.

— Você me adverte? Por favor, continue, meu caro Berg. Eu apreciaria muito uma razão para ir, bem cedo e com você, até a margem do rio.

Arabella sentiu o rosto empalidecer. Se os dois queriam brandir palavras ásperas e pavonear-se, muito bem, mas chegar ao ponto de insinuar um duelo era intolerável. Colocou-se entre ambos e os empurrou para lados opostos o quanto pôde. Já ia lhes dizer o que pensava sobre eles quando o príncipe Schwarzcnberg surgiu, ocupando o espaço entre os dois outros homens.

— Vai nos dar licença por um momento, mademoiselle. — Schwarzcnberg curvou-se. — Voikonsky.

Sem esperar resposta, ele tomou o braço de Nando e o levou embora.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06Com o coração disparado de medo, Arabella girou o corpo a tempo de escapar da mão estendida

de Voikonsky. Tinha de se manter a salvo dele, pensou desesperada. E também a Nando. Depressa, embrenhou-se entre os convidados à procura de Lulu que havia desaparecido.

Encontrou a amiga rindo divertida e um tanto afogueada com o exercício feito ao dançar uma quadrilha. Puxou-a pela manga.

— Preciso de sua ajuda — murmurou-lhe ao ouvido. Lulu pediu licença ao parceiro e acompanhou-a

— Espero que você tenha uma boa razão para isto. O conde Allendorf é um dos poucos homens, em Viena, que não tratam uma mulher inteligente como se ela fosse leprosa.

— Desculpe, Lulu, mas trata-se de algo urgente. Voikonsky fez alguns de seus comentários de mal gosto e Nando resolveu defender minha honra. O monstro russo instigou-o a continuar e insinuou a ida dos dois, de madrugada, até a beira do rio.

— Ai, não! O idiota tinha de escolher Voikonsky quando todos sabem que o segundo passatempo preferido do homem é o duelo. Isso sem falar que ele sempre atira para matar

— Lulu, você tem de encontrar Nando para mim! Preciso conversar com ele.

— Está falando sério? Conversar com o homem desejoso de defender a própria honra? Ou a sua?

— Por favor, Lulu. — A amiga suspirou.

— Onde está ele agora?

— O príncipe Schwarzenberg o afastou para longe de Volkonsky. Por favor, Lulu, diga a Nando que eu o espero ao pé da escada que sobe para a sala de jantar.

Após descer correndo a escada curva, Arabella recostou-se de encontro à parede para retomar o fôlego. Mas ficar parada só servia para aumentar-lhe a agitação, por isso pôs-se a andar de um lado para o outro.

E se Lulu não encontrasse Nando? Ou Schwarzenberg não o tivesse detido por tempo suficiente e ele se encontrado outra vez com Volkonsky? As indagações a deixavam aturdida.

— Você queria me ver, Arabella? — perguntou Nando ao segurá-la pelos ombros. — O que foi? Você está tremendo!

A voz não tinha a impaciência e a raiva temidas por Arabella.

— Você não vai brigar com Volkonsky, vai, Nando? Não vai deixar que ele o provoque a um duelo, não é? Diga que não. Por favor.

Os lábios de Nando curvaram-se num sorriso. Quando tinha sido a última vez que uma mulher, exceto a mãe, havia se preocupado com ele? Não podia se lembrar.

— Não se atreva a rir de mim. Vamos, responda!

Nando não o fez logo. Bem devagar, estendeu a mão e prendeu-lhe um caracol solto atrás da orelha. Deliciou-se com a textura sedosa. Sentiu a tentação de verificar se o resto dos cabelos também era tão macio.

— Isso teria grande importância? — perguntou com suavidade.

— Responda minha pergunta — exigiu ela, sem esconder a ansiedade.

— Ainda não marcamos um encontro. Provavelmente porque Schwarzenberg me manteve ocupado até Lulu me arrastar para longe dele.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06Arabella suspirou de alívio e relaxou os músculos tensos.

— Mas você não vai — insistiu. — Diga que não vai brigar com ele. Por favor.

A última palavra foi quase um movimento sem som de seus lábios, pois pela primeira vez, Arabella pôs nome na emoção constante e dominadora. Como não havia percebido antes que amava Nando?

Sentiu-se tão atordoada com a descoberta que precisou fechar os olhos. Estava assustada. Abriu-os logo e observou cada detalhe das feições de Nando. Era como se o estivesse vendo pela primeira vez. Lágrimas de emoção ameaçavam rolar pelas faces enquanto a sensação inicial de pânico e impotência dava lugar à alegria.

Subitamente, Nando foi dominado pela necessidade de ver-lhe o rosto. Com gestos nervosos, tentou desamarrar as fitas da máscara, cujas pontas mesclavam-se aos cabelos negros. Impaciente por não conseguir desfazer o laço. Tão logo a peça caiu ao chão, aconchegou o rosto de Arabella entre as mãos. A emoção, da qual ele fugia há tanto tempo, resplandecia nos olhos cor de safira e queimava-lhe a alma como uma flexa ao penetrar na carne. Cerrando as pálpebras para fugir da ternura perigosa, Nando encostou a testa na sua.

— Não, Arabella. Por favor, não — suplicou ele, cada palavra provocando dor física.

Estava faminto, entretanto, tinha de recusar o alimento doador de vida. Como seria, caso se atrevesse a transferir, para o próprio coração, o que via nos olhos de azul profundo? E acolhendo o sentimento, o saboreasse e o valorizasse para sempre? indagou-se.

Embora as palavras de Nando encenassem uma recusa, elas acariciaram a pele de Arabella, pois por um momento visionário, ela acreditou que constituíssem súplica e confissão.

Quase sem perceber, Nando começou a mexer os polegares na pele sedosa de seu queixo, subindo-os bem devagar até alcançar-lhe os lábios. Arabella os entreabriu, porém ele continuou a massagcá-los, ignorando o convite. Estavam tão perto um do outro que os polegares ocupavam o espaço entre as duas bocas, as unhas roçando o bigode de Nando. A respiração de Arabella refluía-lhe sobre os dedos, os lábios e ele sentiu o desejo irromper, agitando o sangue. Mesmo assim, continuou imóvel, apenas os dedos insistiam nas carícias leves. Arabella fechou os olhos e retesou os músculos. Por que Nando a torturava dessa forma? Não iria jamais beijá-la? Ergueu a ponta da língua a fim de umedecer o lábio superior e o polegar de Nando, sem querer, roçou o lado liso e orvalhado sob ela.

Ele imobilizou os polegares, pois o contato inesperado incitou o desejo pelo corpo inteiro. Afastou a cabeça para poder observar o rosto de Arabella. Os cílios longos e negros levantaram-se ex-pondo os olhos cor de safira. A ternura ainda estava lá, também o... Maldição! Ele não poria nome no sentimento que vislumbrava neles. Sentimento rodeado pelas chamas brilhantes, quentes, que crepitavam unicamente por ele.

Arabella fitou os olhos tempestuosos de Nando. Por intuição, via neles o reflexo da tormenta desencadeada dentro de si. Em toda a sua inocência, aceitou a tempestade como, após o momento inicial de pânico, tinha aceitado o amor.

Com a carência, o apetite característicos de seus dezenove anos, Arabella queria Nando. Queria tudo que ele pudesse lhe dar, mas nesse primeiro momento mágico, pensou que, muito ou pouco, ficaria satisfeita com seu quinhão.

Com os olhos presos nos dele, Arabella deslizou a ponta da língua, bem devagar, ao longo do polegar de Nando. Como o vidro se parte ao ser exposto a uma temperatura alta, o controle frágil, mantido por Nando sobre si mesmo, estilhaçou-se com o contato excitante em sua sutileza. Ele curvou a cabeça e, com um gemido rouco, juntou as bocas. Explorando, experimentando, a língua transpôs os lábios. E as chamas dentro dele aumentaram.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06Maravilhada com a sensação provocada pelas carícias de Nando, Arabella recebeu-o e, aos

poucos, começou a retribuí-las. Abraçou-o pela cintura, colando o corpo ao dele. Sentiu-lhe a rigidez da excitação como se não houvesse roupas, ou barreiras entre ambos e não se esquivou da nova sensação. Pelo contrário, em resposta e aceitação, entregou-se por completo ao beijo apaixonante.

Nando desceu as mãos de seu rosto e as colocou em suas costas a fim de estreitá-la mais ao corpo. Porém, o contato frio com a seda da fantasia, tão contrastante com o calor de sua pele, despertou-o da intoxicação dos sentidos. Aturdido, afastou-se.

Ele ainda a tocava nos ombros, mas Arabella sentia frio e desamparo sem a boca de Nando na sua, ou o corpo enrijecido de encontro a maciez do seu.

— Você não sabe o que está fazendo — protestou ele em voz rouca.

— Não sou boba, Nando — protestou Arabella.

— Não, você não é boba, minha doçura. Mas é muito jovem. Você precisa de um homem. E este não tem de ser, necessariamente, eu.

Nando viu a tristeza assomar nos olhos cor de safira, porém negou-a como também não reconhecia a sua própria.

— Além de jovem, você é forte e deve exercitar seu poder. Arabella soltou-se das mãos de Nando. Com muito cuidado — analisou as sensações e emoções dos últimos minutos, tão novas e avassaladoras. Teria aquele momento de clarividência, em que visualizara o coração de Nando, sido apenas uma miragem? Não, insistiu consigo mesma. Nada em sua vida fora tão real como aquele instante translúcido.

Sustentada pelo orgulho, ergueu bem o queixo e, com o otimismo da juventude, sorriu.

— Sim, talvez eu precise mesmo exercitar meu poder. — Depois de apanhar á máscara do chão, passou por Nando em direção à escada. Desejava muito permanecer ali e aninhar-se outra vez entre os braços dele. Contudo, sentia a necessidade de ambos em manter distância.

Arabella havia subido apenas alguns degraus quando parou e virou-se para Nando ainda lá embaixo.

— Prometa que não vai brigar com Volkonsky.

Nando levantou a cabeça e fitou os olhos cor de safira, um calor estonteante inundando-o. Apreciou a sensação e, dessa vez, recusou-se a questioná-la.

— Está bem, ma petite. Se isso significa tanto para você, eu prometo.

Arabella fitou as profundezas dos olhos cinzentos. Satisfeita por Nando ter sido sincero, acenou com a cabeça e subiu depressa o resto dos desraus.

CAPÍTULO XII

Após dois meses de festas, muitas das cem mil pessoas reunidas em Viena, com o propósito de participar do congresso, começavam a se cansar delas. Todavia, com o fim do mês de novembro se aproximando, ate os mais entediados animavam-se com os preparativos do Carousel, um torneio medieval a ser reencenado pela Escola Imperial de Hipismo.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06Nando detestava a ideia de se ver obrigado a tomar parte nele, pois o considerava exibicionismo

grosseiro. Mas odiava mais ainda o fato de a princesa Katharina Bagration ter sido designada como sua dama.

Irritado, ajustava a faixa de seda, com as cores de Katharina. A peça tinha chegado acompanhada de um bilhete que alem de perfumado em excesso, continha um convite sutil para a renovação do relacionamento de ambos.

Maldita! Repugnava-o usar algo tocado pôr ela. Franziu a testa. Precisava de um talismã para contrabalançar a sensação ruim e de sujeira provocada por ter sobre o peito o presente que ela lhe tinha dado.

O olhar percorreu a superfície da cómoda e descobriu a máscara branca que Arabella lhe tinha sugerido pedir, no primeiro encontro de ambos. Nando aceitara com a firme intenção de descartar-se dela depois, mas tinha acabado esquecendo. Apanhou-a e, sem se dar ao trabalho de analisar o capricho estranho, enfiou a máscara sob a faixa, deixando uma pequena ponta de fora para ter certeza de que continuava ali quando olhasse. Viu Franz observando-o com curiosidade indisfarçável. Constrangido, resmungou qualquer coisa, pegou o chapéu e saíu.

Distraída, Arabella ouvia os comentários de lady Castlereagh sobre as pessoas presentes. As vinte e quatro colunas à volta da Escola Imperial de Hipismo exibiam, cada uma, o brasão dos vinte e quatro jovens austríacos nobres que participavam do torneio. Arabella sorriu ao notar que se sentava bem do lado oposto da coluna com o emblema dos Berg uma pantera preta, com uma coroa dourada sobre um fundo vermelho e verde.

Os sinos da igreja de St. Michael, na vizinhança, começavam a bater oito horas quando soou a primeira fanfarra. Os portais abriram-se para dar passagem a vinte e quatro damas cobertas, da cabeça aos pés, por um pesado véu de bordas douradas.

Ao som de uma segunda, mais elaborada, a audiência levantou-se para ovacionar a realeza e, a um sinal do mestre-de-cerimônias, as damas retiraram os véus e saudaram os governantes. Nesse instante, um murmúrio percorreu a audiência.

Viena estava acostumada ao luxo, mas o espetáculo que se apresentava nesse momento era indescritível. As pedras preciosas, engastadas na profusão de broches, adereços, colares, tiaras e pulseiras, eram verdadeiramente deslumbrantes.

A vigorosa música militar teve início e Arabella, ao ver os cavaleiros aparecer, sentiu o coração acelerar as batidas. Lá estava Nando, a beleza austera realçada pela indumentária pomposa e enfeitada. Seu coração enterneceu-se por ele.

Em duas fileiras e em seus cavalos de batalha negros, os cavaleiros dirigiram-se ao palanque dos monarcas para lhes prestar homenagem. Em seguida, viraram as montarias num ângulo fechado e, em trote rápido, cruzaram o pátio parando diante da tribuna das damas para cumprimentá-las. Sorridentes, as vinte e quatro levantaram-se a fim de retribuir a saudação.

O olhar desinteressado de Nando percorreu o grupo, parando em Katharina. A visão de seu sorriso satisfeito, irritou-o. Sem pensar, ou avaliar as consequências, consciente apenas da necessidade de olhar para Arabella, Nando virou a cabeça para a esquerda, os olhos procurando-a na primeira fileira da galeria.

Lá estava ela. Uma onda de prazer o inundou. Os cabelos negros, quase azulados, eram o complemento perfeito para o vestido rosa pálido e não se via uma única jóia que pudesse desviar a

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06atenção de seu rosto adorável. O semblante estava sério, mas quando se fitaram, os olhos cor de safira inundaram-se de ternura.

Um orgulho possessivo o dominou por um momento. Minha, disse a si mesmo sem raciocinar. Minha.

Com o coração leve, Nando sorriu e acenou com a cabeça. Virou-se, então, para a tribuna e constatou que Katharina já não mais sorria. O seu olhar míope desviou-se dele para a galeria. Assim de longe, ela não poderia reconhecer ninguém, Nando sabia, mas haveria gente suficiente para apressar-se a informá-la. Arabella respirou fundo e sentiu o rubor espalhar-se na face. Porém manteve o queixo erguido, mesmo notando que as pessoas esticavam o pescoço para ver quem tinha sido o alvo da discreta saudação do conde Berg.

Embora o coração exultasse de alegria e batesse ecoando o barulho estrondoso das patas dos cavalos, ela continuou sentada com aparência calma. Meio distraída, admirou as montarias passarem de trote para galope macio e, depois, para a galopada. Foi então que o torneio começou realmente. Em controle absoluto de seus cavalos de guerra húngaros, os participantes executavam proezas extraordinárias sem diminuir a marcha.

Várias e perigosas demonstrações foram apresentadas, mas Arabella suspirou aliviada quando terminaram. O torneio encerrava-se com os jovens nobres dirigindo as montarias em complicadas manobras, ao som animado da música marcial.

Após um sem fim de confusões e tagarelices, convidados e participantes do torneio reúniram-se no palácio de Hofburg, ao lado da Escola Imperial de Hipismo, para cear.

— Como se atreveu a me humilhar daquela forma? — demandou Katharina tão logo se sentaram.

Nando dirigiu-lhe um olhar gélido e, incrédulo, indagou-se onde estava com a cabeça quando, um dia, amara essa mulher com loucura.

— E você, em nome do que só Deus sabe, conseguiu o lugar de minha parceira? — revidou ele em tom de desprezo. — O espetáculo já seria bem grotesco, para meu gosto, sem tê-la como minha dama.

— Foi muito simples. Bastou trocar uma palavrinha com o czar Alexander e ele, com o oficial Trautmannsdoif.

— Deve ser muito reconfortante contar com proteção tão poderosa depois desses anos todos. Caso contrário, corte alguma a receberia.

— Como se atreve? — sibilou Katharina, repetindo-se.

— Soma, minha cara. Estamos sendo observados e você não gostaria que as pessoas a considerassem aborrecida com um incidente tão sem importância, não é?

— Para quem você estava olhando? — perguntou ela, em tom petulante.

— Por que não indaga a seu amigo Mettemich?. Sem dúvida, os espiões dele têm tudo anotado.

Nando falou num tom moroso e deliberadamente desinteressado. Em seguida, apanhou o copo de cristal, com o delicioso vinho Tokay cor de âmbar, e sorveu um gole. Perdia assim o olhar de ódio puro dirigido-lhe pela princesa.

Haveria de fazê-lo pagar, jurou Katharina. Ela encontraria uma maneira de infligir-lhe sofrimento.

Embora Nando ignorasse a companhia de Katharina durante a ceia, não houve jeito de escapar da quadrilha de abertura do baile de gala, obrigado a dançar com ela. Terminada essa parte, a princesa firmou a mão em seu braço enquanto os pares dirigiam-se à periferia da pista de dança.

De maneira automática, Nando ajustou os passos a sua maneira trôpega de andar e bloqueou a 63

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06mente ao que se passava ao redor. Precisava de um momento de abstraçao a fim de acalmar a repulsa que o dominava. Apenas quando sentiu as unhas de Katharina apertar-lhe o braço, notou para onde se dirigiam. Aproximavam-se de Arabella.

— Ah, srta. Douglas — cumprimentou Katharina ao pôr-se bem em frente a Arabella.

Nando sentiu-a cambalear um pouco e percebeu que ela estava na ponta dos pés, numa tentativa inútil de minimizar o quanto era baixa em comparação à rival inglesa.

Com elegância impecável, Arabella inclinou a cabeça.

— Alteza.

Os olhos míopes de Katharina a percorreram da cabeça aos pés e de volta ao rosto antes de falar novamente.

— Quantas jóias lindíssimas aqui esta noite, não concorda?

— Sem dúvida, alteza.

— Declaro ter visto muito mais jóias aqui em Viena do que em Londres — disse a princesa russa com o habitual muxoxo de desdém.

O gatilho com que Arabella vinha mantendo a língua presa, destravou.

— Isso, de forma alguma, alteza, provoca surpresa. A Inglaterra tem sido a responsável pelos pagamentos das alianças durante estes anos todos — explicou Arabella observando o colar de diamantes e rubis imensos que quase escondiam o exagerado decote da outra. — Aparentemente, enquanto meu país investia dinheiro em canhões, os outros aliados o aplicavam em pedras preciosas.

Envaidecida como se houvesse recebido um elogio, Katharina sorriu e afagou o precioso colar.

— Ora, srta. Douglas, se eu soubesse que não tinha jóias para usar, teria lhe emprestado uma das minhas — murmurou.

— Obrigada, alteza, mas não seria necessário. Minha mãe sempre diz que apenas os quadros velhos e mal conservados precisam de moldura nova e chamativa.

O sorriso de Katharina desmantelou-se como uma escultura de manteiga exposta ao sol. Abriu a boca para responder, mas as palavras não lhe ocorreram. Fez nova tentativa, porém em vão. Ela há de me pagar, jurou. Farei a vagabunda me pagar Num movimento brusco, virou-se e foi embora arrastando Nando consigo.

Quando Nando, finalmente, conseguiu tirar Arabella para dançar sua primeira valsa, sentia-se esgotado de toda a energia. Era como se houvesse tomado parte numa grande batalha. Segurava-a um pouco mais perto do que o permitido pela etiqueta, na esperança de purificar-se do contato com Katharina.

Arabella riu com expressão matreira.

— Sabe, estou esperando a ira divina cair sobre mim a qualquer momento. Na última hora e meia, preguei mais mentiras do que em muitos anos juntos.

— Como assim?

— Perdi a conta do número de pessoas que me perguntaram se eu tinha sido o alvo da saudação do conde Berg quando ele deveria estar prestando atenção a sua dama. As minhas negativas tinham o toque adequado de indignação, mas depois daquela cena, todos saberão a verdade — explicou Arabella.

— Lamento ter sido tão indiscreto. Eu não aguentava olhar para Katharina nem mais um segundo 64

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06— desculpou-se Nando.

Observou-lhe o rosto o sorriso alegre e meigo, a expressão matreira nos olhos cor de safira tão tentadora. Por um momento, a ânsia de desejá-la de corpo e alma se tornou insuportável. Pela primeira vez. Nando quis lhe oferecer palavras, porém não tinha esse direito. Como lhe dizer que ela era a vela acesa na noite mais profunda e escura? O fogo em que sua alma enregelada se aquecia? O tesouro que ele não se atrevia a possuir? Como seria a vida se ele fosse o tipo de homem que pudesse almejar uma mulher como Arabella e planejar o futuro para ambos? indagou-se. Mas ele não passava de um idiota célico e indiferente, capaz de se apossar de tudo e dar apenas prazer físico em retorno, advertiu-se com crueldade.

Ao ver o semblante de Nando anuviar-se, o brilho desaparecer dos olhos cinzentos, o coração de Arabella confrangeu-se.

— Nando?

Mas a valsa chegava ao fim e ele executava a cortesia perfeita a sua frente.

De repente, Nando percebeu que precisava escapar depressa a fim de evitar mais revelações. Bastavam as já feitas. Tinha de desaparecer antes de Arabella se dar conta de como sua alma não passava de um desejo inóspito, ou de descobrir sua necessidade por um pouquinho de calor humano.

— Nando, converse comigo. Conte qual é o problema — pediu Arabella ao tentar acompanhar-lhe os passos rápidos.

Ele não lhe deu atenção. Um sem fim de emoções embaralharam-se em sua mente. Raiva, impaciência, medo de que Nando não aceitasse o que ela queria tanto oferecer. O amor que lhe dava a coragem e a confiança tão necessárias.

Cravou, sem piedade, os dedos no braço dele. Finalmente, Nando parou e virou-se sem esconder o ressentimento das feições atraentes.

— É essa a única maneira de obter sua atenção? Com dor? Ah, Nando, você não entende que eu não quero nada que não esteja em seu alcance me dar?

Ele sacudiu a cabeça e forçou-se a fitá-la bem dentro dos olhos.

— Mas não existe nada em meu alcance, Arabella — afirmou ele com expressão de desalento.

Arabella sentiu a confiança esvair-se. Até então, estava segura da existência, sob as barreiras erguidas por Nando, de uma fonte de sentimentos que preenchia só a ela. Mas se de fato havia, como ele podia fitá-la com tanta desolação nos olhos cinzentos? Antes de se dar conta do que acontecia, Nando a tinha levado até onde lady Castlereagh se sentava. Após uma curvatura e palavras formais, ele se foi.

CAPÍTULO XIII

O vento frio agitava a capa de Nando durante a caminhada ao palácio Schwarzcnberg. Ele havia dispensado a carruagem, mas o trajeto não chegava a ser suficientemente longo para satisfazer sua necessidade de exercício.

Não tinha dormido a noite inteira. Ao voltar do baile de madrugada, havia mandado selar Sultão e cavalgado durante horas numa tentativa de imprimir clareza e ordem aos pensamentos.

Nando estava acostumado a um tipo de vida cuja superfície congelada jamais se encrespava por motivo algum. Mas agora, um estranho desassossego jamais o abandonava. O tempo estava fora de eixo para ele. Ate os sonhos, com imagens de Arabella, eram desconjuntados. Tanta coisa tinha mudado no

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06período curto de dois meses.

Quando, cheio de relutância, voltara ao palácio, Franz o esperava no estábulo. O criado tinha nas mãos um envelope com o brasão do príncipe Schwarzcnber gravado no lacro vermelho. Havia chegado antes do amanhecer, dissera o criado ao entregá-lo. A mensagem lacónica continha, não um pedido delicado, mas uma ordem para ele ir ver o príncipe às onze horas. Agora, encontrava-se em posição de sentido, diante do comandante que, agitado, andava de um lado para o outro.

— Aparentemente, eu estava enganado ao acreditar que sua disciplina o qualificava para quaíquer missão — queixou-se Schwarzcnberg.

Nando fez um gesto rápido de cabeça.

— Com todo o meu respeito, alteza, há missões difíceis de se reconciliar com a honra de um homem, ou com a de um oficial de Exercito Imperial Austríaco.

O príncipe Schwarzenbcrg fitou Nando com um misto de má vontade e respeito.

— Expressou-se bem, major Berg, mas neste caso é irrelevante, imagino.

— Sim, alteza — respondeu Nando.

— Eu exijo que peça desculpas à princesa Katharina Bagration. Pessoalmente. De maneira digna de credito. Não quero saber desse assunto adquirindo proporções exageradas que venham a deflagrar um incidente diplomático. Tenho a sua promessa, major?

— Sim, alteza.

Nando curvou-se numa aquiescência relutante, a postura rígida revelando a Schvvarzcnberg o que queria saber.

O príncipe, visivelmente relaxado, dirigiu-se a uma mesa e serviu dois copos de conhaque.

— À vontade, Berg — disse ao entregar um deles a Nando descartando o tratamento formal. — Não me importo de comentar com você como esse negócio é viscoso. Só podemos nos sentir gratos peto fato de o czar Alexander não ter assistido ao Carousel ontem. Estremeço só de pensar no que aconteceria caso ele houvesse testemunhado você afrontar uma... uma senhora protegida dele. E com os próprios olhos! Seria prudente, eu acho, você se ausentar de Viena por certo tempo. Um encontro seu, mesmo social, com o czar Alcxander poderia ser muito desagradável.

Nando ficou tenso.

— Nossas divisões na Lombarda e na Toscana precisam de inspeção. Nada mais lógico do que eu confiar a tarefa a um dos meus oficiais de maior confiança — acrescentou Scriwarzenberg.

Nando sabia que o príncipe, sem se dar conta, lhe oferecia a oportunidade para fugir dos motivos da confusão na alma, mas apesar das boas razões, não desejava se ausentar da cidade. Todavia, gerações de disciplina severa falaram mais alto.

— Quando quer que eu parta, alteza?

— O mais depressa possível. Passe aqui ainda esta tarde a fim de apanhar umas cartas de que vai precisar.

Nando aquiesceu com a cabeça e dirigiu-se à porta. Após uma curvatura, foi embora.

A menina de plantão à porta do orfanato veio correndo a seu encontro no momento em que Arabella entrou no vestíbulo. A vaga expressão de ansiedade, que lhe marcava o rostinho desde a manhã, desapareceu, mas os olhos continuaram arregalados de animação.

— Ah, Frãulein, e tão boa para nós —articulou a criança.

— Obrigada, Anni, mas você não devia exagerar dessa forma — protestou Arabella sorrindo e ao

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06acariciar-lhe a face.

— Mas a senhorita é. Pois não nos mandou aquela cesta maravilhosa?

— Que cesta? — indagou Arabella.

— A que chegou hoje de manhã. É tão bonita! E enorme! O diretor chamou todos nós para ver. Ela tem bolachas, potes de geléia. Isso sem falar nos bombons de chocolate, o bastante para todos nós ganharmos um.

Arabella imaginou quem teria mandado a tal cesta. Devia tratar-se de alguém que queria agradá-la, pois poucas coisas lhe dariam tanto prazer como algo feito em benefício das crianças do orfanato. Voltou a sorrir, esperançosa de que tivesse sido Nando.

Fazendo uma nova carícia na menina, perguntou

— Por que não vamos juntas ver o que mais existe nessa cesta misteriosa, Anni?

— Não posso, Frãulein. Estou aqui de plantão. Vou ser castigada se sair do vestíbulo.

— Ora, vamos, Anni. Direi ao diretor que você foi comigo porque insisti.

Tomando-lhe a mão, Arabella seguiu pelo corredor em direção à sala onde as crianças passavam algumas horas à tarde.

Nando praguejou baixinho enquanto andava de um lado para o outro na saleta da princesa Katharina Bagration. De propósito, ela o fazia esperar.

Parou à janela a fim de observar o dia acinzentado de novembro. Dois meses atrás, ele teria se sentido grato pela oportunidade de sair de Viena. A missão o afastaria da vida social oca levada na capital. Mas agora, a apreensão aumentava a cada segundo com a perspectiva de deixar Arabella desprotegida.

Ficou tenso ao ouvir ruídos no aposento contíguo. Cruzou os braços sobre o peito e continuou virado para a janela. Percebeu quando a porta foi aberta, mas numa teimosia perversa, mantevose como estava. Afinal, o preço de um pedido de desculpas podia compensar mais uma indelicadeza.

Os segundos se alongaram. A porta foi fechada e a voz infantil de Katharina ecoou no ambiente.

— Nando! Que surpresa!

Numa morosidade insolente, Nando virou-se e permitiu que o olhar percorre-se Katharina, dos caracóis loiros até as sapatilhas, antes de se curvar.

— Alteza.

— Tanta formalidade entre velhos amigos. Na verdade, Nando...

Não terminou e virou-se meio de lado. Nando viu-lhe os dedos, em movimentos inquietos, enrolar a faixa na cintura e, depois, arrumar bibelôs de porcelana numa prateleira. Diante desse com-portamento tão pouco característico, ele a observou com atenção. Se não a conhecesse bem, diria que estava nervosa.

— Vim procurá-la para pedir desculpas, alteza, pelo meu comportamento de ontem, que poderia ser interpretado como um deslize qualquer. Mas como todas as pessoas em Viena sabem, e impossível insultar uma dama de sua reputação — acrescentou certo de que até a inteligência limitada de Katharina apanharia o sentido ofensivo das palavras, mas também que ela seria incapaz, de reagir sem se comprometer.

— Ah! Então, você veio por isso? — exclamou sem olhar para Nando.

Ele sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha. A suavidade entediada sumiu de sua voz.

— Por que acha que eu vim? — demandou.67

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06Katharina acariciou a gargantilha de pérolas e deu de ombros.

— Como eu deveria saber?

O gesto tinha sido espontâneo o suficiente, mas os olhos míopes vagavam pela saleta sem se fixar em Nando e a voz mostrava-se aguda demais.

Ela estava escondendo alguma coisa. Nando sentiu a primeira pontada de desconfiança e aproximou-se um pouco.

— Por que não, Katharina?

Deu outro passo, forçando-a a ficar de encontro ao encosto do sofá.

— Não seja aborrecido, Nando. Por que eu deveria saber suas razões para vir me ver? — insistiu ela.

A voz tornara-se mais esbaforida e Nando sentiu a suspeita crescer. Era imperativo descobrir o que ela estava escondendo, decidiu por intuição. Mudou de tática e deu um passo para trás.

— Eh, bien. Agora já sabe a razão de minha visita. Eu apenas obedeci ordens.

O controle de Katharina rompeu-se como uma corda de violino esticada ao máximo. Avançou sobre Nando brandindo o leque como se fosse uma arma.

— Maldito! Ontem, você estava se exibindo para aquela cadela inglesa, não é? Mais de vinte pessoas se deram ao trabalho de me contar isso.

Com facilidade, Nando escapou-lhe do alcance.

— Pois muito bem, seu desgraçado, não se preocupe. Essa foi a última vez que aquela bruxa de cabelos pretos levou vantagem sobre mim! — gritou fora de si.

Nando segurou os braços de Katharina e a sacudiu com violência. O olhar selvagem e fora de foco não demonstraram reação alguma.

— Ela acabou, aquela vagabunda estúpida e idiota! Eu lhe preparei uma boa cama e não há nada que você possa fazer. Nada, entendeu?

De repente, Katharina começou a rir às gargalhadas.

A veia na têmpora de Nando batia como um tambor enquanto ele deslizava as mãos para o pescoço de Katharina.

— O que você fez, sua maldita? — gritou ele voltando a sacudi-la. — Fale!

Sem interromper o riso nervoso, ela contou

— Veneno, mon ami. Nós russos temos muita prática no emprego do veneno.

— Como? Vamos, fale!

Nando via os dedos prensarem mais e mais a pele branca e flácida do pescoço de Katharina. Porém ele não sentia nada além de um grande medo pela segurança de Arabella. Com os olhos esbugalhados, a princesa tossiu engasgada, parando de rir. Mas tão logo os dedos afrouxaram, o riso histérico recomeçou.

Sem piedade, Nando a empurrou de encontro a parede. Sempre detestara a violência, mas no momento, estava na iminência de cometer um assassinato.

— Se você fez algum mal contra Arabella, nada, nem ninguém a salvará. — Ele respirava fundo e devagar. — Nem o czar, nem Metternich. Caso tenha lhe provocado algum dano, eu sentirei um grande prazer em matá-la. Pessoalmente. Bem devagar.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06Atirando-a longe, Nando saiu correndo da saleta. O último barulho ouvido foi o baque do corpo

de Katharina batendo em um móvel qualquer.

Houve um momento de silêncio quando Arabella entrou na sala ampla. Mas logo o burburinho de vozes infantis encheu o ar enquanto as crianças corriam para rodeá-la.

Depois de alguns minutos, um dos meninos mais velhos, conseguiu se fazer ouvir apesar do barulho.

— O diretor disse que, quando a senhorita chegasse, poderíamos receber alguma coisa da cesta.

As vozes emudeceram, pois todos queriam ouvir a resposta de Arabella.

— Naturalmente — concordou ela provocando um suspiro coletivo de alívio.

Alguém a tomou pela mão a fim de conduzi-la a um consolo sobre o qual estava a festejada cesta.

De fato era bem grande. E pesada também, verificou Arabella ao pegá-la pela alça e colocar no chão. Havia um sem fim de guloseimas além de duas caixas com os bombons de chocolate mencionados por Anni.

Depressa Arabella abriu alguns dos invólucros enquanto as crianças se enfileiravam, por tamanho, como estavam habituadas. Então, ela se aproximou para dar uma tortinha, recheada de creme, a cada uma delas.

Alguns minutos após ter deixado a saleta de Katharina, apressado, Nando subia os degraus de entrada da Embaixada da Inglaterra.

— Onde está a srta. Douglas, Rogers? Onde ficam seus aposentos? — indagou ele ao. mordomo.

— Ela não está. senhor.

— Aonde foi? Diga depressa!

— A srta. Douglas não costuma me informar aonde vai.

Nando fechou os olhos por um instante, lutando para manter o controle.

— Eu sei, Rogcrs. Mas eu preciso encontrá-la imediatamente.

Sabe se ela recebeu algo hoje? Um pacote, flores, alguma coisa, enfim?

— Não creio, senhor. — O mordomo olhou para o lacaio à porta à espera de confirmação. — Não, nada.

— A srta. Douglas estava sozinha quando saiu?

— Sim. senhor.

Ouviu-se um relógio bater duas horas. Arabella podia ter ido a vários lugares, refletiu Nando. mas num lampejo súbito, lembrou-se. O orfanato, claro. Lá era o lugar mais provável onde encontrá-la. Nando saiu correndo em direção à porta, mas antes de alcançá-la, parou e recomendou ao mordomo:

— Se chegar algo para a srta. Douglas. Rogers, esconda em lugar seguro. De forma alguma, entregue a ela. Entendeu?

Impressionado com a veemência de Nando. o homem concordou com um gesto de cabeça. Ainda estava no mesmo lugar quando o visitante saiu batendo a porta com estrondo.

— Minha cara Frãulein Douglas. Eu esperava que nos viesse ver hoje a fim de poder lhe agradecer o presente magnífico — disse o diretor do orfanato ao entrar na sala no momento em que Arabella terminava de distribuir as toninhas.

O rosto sempre sisudo do homem desmanchava-se em sorrisos.

— Lamento, mas está agradecendo à pessoa errada, Herr Weigelt. Eu não mandei a cesta. Deve 69

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06ter sido enviada por alguém que conhece meu interesse pelo orfanato — explicou Arabella.

Herr Weigelt abanou as mãos.

— Não importa. Estamos muito agradecidos. Foi muita consideração sua, desculpe, do doador em incluir uma garrafa de vinho. Tomei a liberdade de levá-la a meu escritório. Talvez a senhorita desse a honra de me acompanhar num copo.

— Com muito prazer. Espere um momentinho. — Virou-se para as crianças que ainda mantinham as toninhas intatas. — Comam já o doce, antes que ele esfarele ou caia por aí.

Esperou até ser obedecida. Sabia que se saísse antes, as crianças menores corriam o risco de perder a guloseima para as maiores e mais espertas.

Só então. Arabella acompanhou o diretor ao escritório.

Herr Weigelt ofereceu-lhe uma poltrona velha e desbotada. Depois de se sentar, ela o observou movimentar-se pelo aposento, tomando cuidado para não pisar no gordíssimo buldogue anão mas o cão não saía de perto do dono, seguindo-o a todo canto.

Falando sem parar, o diretor apanhou os copos, abriu a garrafa e fez uma encenação ao cheirar a rolha para confirmar a qualidade do vinho. Como uma coisa tão simples podia transfomar um homem azedo em outro bem humorado?conjeturou Arabella.

Finalmente, ele encheu os copos até a borda, deu-lhe um sentou-se a sua frente.

— Já que a senhorita se recusa a admitir sua generosidade, posso oferecer um brinde ao nosso benfeitor? — Inclinou-se para a frente e tocou seu copo com o dele. — Prostl

— Prostl —. ecoou Arabclla.

Sorridente e equilibrando o copo para não derramar o vinho, ela começou a levá-lo devagar aos lábios.

Não chegou a fazê-lo, pois o barulho de passos e vozes exaltadas no corredor interromperam a celebração. Resmungando Herr Weigelt levantou-se e pôs o copo na escrivaninha no instante em que a porta se abria com violência.

Antes de Arabella reconhecer Nando no homem que surgia, ele já a alcançava e, com um gesto brusco, dava-lhe um tapa no braço, fazendo o copo de vinho cair ao chão.

Seu grito ao sofrer o impacto foi tanto de surpresa como de raiva, mas não teve tempo para protestar, pois Nando a levantava da poltrona pelos ombros.

— Alguém comeu ou bebeu alguma coisa vinda naquela cesta? Vamos, responda.

O tom de Nando revelava tanta aflição que a raiva de Arabella desapareceu sendo substituída por um medo terrível.

— Tortinhas de creme. Todas as crianças comeram uma —murmurou ela.

— E você, comeu ou bebeu algo? — arquejou ele. Arabella sacudiu a cabeça.

— Não, não.

Mal acabava de pronunciar a negativa quando Nando saiu correndo do escritório puxando-a pela mão.

— O que está acontecendo, Nando? — indagou Arabella esforçando-se para acompanhar-lhe os passos.

— Depois, explico. Agora me !eve aonde as crianças estão. Pouco depois, irrompiam pela sala

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Page 71: Ch 006 nina beaumont olhos da inocência

Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06adentro- estacando bruscamente. Toda a movimentação parou e quarenta pares de olhos dirigiram-se para eles.

— Por acaso algum de você não está se sentindo bem? — perguntou Nando tentando falar em tom calmo.

Mas todas as crianças não sofriam de mal-estar algum. Depois de instruir os dois supervisores para relatar imediatamente qualquer irregularidade sob esse aspecto, Nando apanhou a cesta e virou-se para deixar a sala.

Da porta, Herr Weigeit os observava com a costumeira expressão mal humorada de volta.

— Posso lhe perguntar o que está acontecendo aqui? Acho que me deve uma explicação, excelência.

Nando acompanhou Arabella para fora da sala antes de responder. No corredor, ele pôs a cesta no chão e, só então, postou-se à frente do diretor.

— Antes de mais nada, preciso que o senhor me prometa ser discreto — começou ele, grato pela calma aparente dada pelo tom de voz enérgico.

Após chegar ao orfanato e enquanto procurava por Arabella, um funcionário tinha mencionado a cesta misteriosa. Quase entrara em pânico. Na verdade, continuava nervoso.

Herr Weigelt concordou com um gesto de cabeça.

— Certas informações, obtidas por acaso, me levam a suspeitar que haja algo envenenado na cesta.

Tanto Arabella como o diretor fizeram menção de falar, mas Nando os impediu ao erguer uma das mãos.

— Por favor, não me perguntem como fiquei sabendo. A minha palavra deve ser suficiente. Por que não continuamos a conversar em seu escritório, senhor?

Sem esconder a expressão de choque e incredulidade, Herr Weigelt sacudiu novamente a cabeça e os encaminhou pelo corredor. A porta do escritório, afastou-se para o lado, a fim de deixar Arabella e Nando entrar primeiro, e abriu-a com o braço esticado. Nando ficou tenso e passou logo à frente de Arabella. Porém o gesto brusco de levar a mão a boca e a exclamação abafada de surpresa, mostravam que ela também já tinha visto o corpo contorcido e inerte do buldogue, caído junto a uma poça de vinho no chão.

Ouviram um gemido rouco vindo de trás. No instante seguinte, o diretor passava por eles e ajoelhava-se junto ao cachorro. Murmurando palavras desconexas, começou a acariciar-lhe o pêlo. Com o olhar fixo na poça de vinho e no cão morto, Nando sentiu um calafrio. O vinho era o do copo que Arabella segurava e quase levara aos lábios se ele não lhe tivesse dado o tapa no braço. A visão do que teria acontecido, caso ele tivesse invadido a sala um minuto mais tarde, relampagueou na mente. Como se houvesse recebido um murro no diafragma, Nando não conseguiu respirar por alguns segundos.

Virou-se para Arabella. Antes de pronunciá-las, as palavras de conforto morreram em sua boca ao ver a compreensão estampar-se nos olhos cor de safira. Um segundo depois, com expressão vidrada, eles revelavam o choque sentido.

Ele fora ineficiente. A admissão do fato o encheu de desdém por si próprio. Não tinha conseguido evitar o atentado contra a vida de Arabella e nem poderia vingá-lo. Embora o ódio impotente o fustigasse sem piedade, o hábito de muitos anos fez Nando entrincheirar-se atrás da máscara de civilidade e desprendimento.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06— Você está bem, Arabella? Posso lhe providenciar alguma coisa?

Ela não respondeu. Um tremor forte começava a percorrer-lhe o corpo. Lutou para dominá-lo, pois caso cedesse à fraqueza, levaria um bom tempo para parar de tremer. Respirando fundo e devagar, foi se acalmando aos poucos. Só quando teve a certeza de que não sofreria um colapso, levantou os olhos para Nando.

Mas ao ver a expressão distante no olhar, ela se deu conta do quanto mais desejava além de uma indagação atenciosa sobre seu bem estar. Podia suportar tudo sozinha. Mas o que não daria, nesse momento, por um pouco de calor humano, de ternura, vindos de Nando? Por algumas das chamas dos olhos cinzentos ao cumprimentá-la na abertura do Cawusefl Por uma ponta do desespero estampado em suas feições ao bater-lhe no braço para derrubar o copo de vinho?

Arabella conservou-se imóvel. Mexeu apenas os lábios para falar, as palavras encerrando mais um convite do que uma súplica.

— Por favor, Nando me abrace.

Meio brusco, ele a aconchegou ao peito e enfiou os dedos entre seus cabelos na nuca a fim de erguer seu rosto para ele. Observou como os olhos cor de safira abriam-se imensos até ele se ver refletido nas pupilas negras. Nando sabia que agora, Arabella não via mais a realdade ao redor. Tinha olhos só para ele. Uma sensação curiosa de felicidade o invadiu antes de o desejo falar mais alto. Talvez ele não fosse tão ineficiente afinal, pensou. Quem sabe conseguiria, com as mãos e a boca, mostrar a Arabella o quanto ela estava viva e desperta.

Beijou-lhe a pele sedosa, os sentidos inebriados com seu sabor e perfume, porém a lembrança de como quase a perdera fustigou-o. Por pouco, Nando não gritou alto. Arabella o deixaria, e a Viena, qualquer dia desses, porém ele precisava saber que continuava em algum lugar deste mundo. Viva. Sorrindo.

Os acontecimentos da última meia hora recuaram na mente quando Arabella aninhou-se nos braços de Nando. Ele enchia seu campo de visão completamente. Sentia-lhe apenas as mãos e a boca, como se no universo existissem só os dois.

Instigado pelo desespero e pela falta de esperança, Nando tomou-lhe a boca. Não havia delicadeza no beijo. Transpondo os lábios, a língua alcançou a sua levando-a a uma dança primitiva de acasalamento. A pele de ambos queimava. Os corpos prensavam-se tanto que as batidas dos corações pareciam vir de um só. Apenas quando o ar já começava a lhes faltar, o beijo faminto parou. Mas eles continuaram com as bocas juntas, abertas como se precisassem tirar, um do outro, o ar vivificante. Com as palmas das mãos em ambos os lados de seu rosto, Nando murmurou-lhe o nome de encontro a seus lábios. Soou como uma prece. Talvez fosse.

Mais tarde, ignorando os soluços do ainda inconsolável Herr Weígelt, Nando iniciou uma busca meticulosa na cesta.

— O que está procurando? Acha que há outras coisas envenenadas? Quem fez isso? — Arabella quis saber.

Nando fez um gesto negativo com a cabeça. Ao levantar um pacote e passá-lo para a outra mão, algo caiu na escrivaninha com um tilintar metálico. Bastou um olhar ao objeto para identificá-lo como um dos brincos de ouro, cujo par ele havia presenteado Katharina muitos anos atrás. Apanhou-o e fechou a mão. O achado dava-lhe uma certa satisfação. Talvez ele não pudesse tomar uma atitude contra a princesa, porém o brinco o ajudaria a exercer pressão suficiente na desgraçada para impedi-la de repetir o atentado.

Durante o trajeto para o palácio Dictrichstein, eles mantiveram silencio. Só quando já se encontravam em segurança, Arabella sentada numa poltrona no salão e Nando caminhando a sua frente ele a informou.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06— Recebi ordens para inspecionar nossas tropas na Itália. Castigo pelo meu comportamento

ontem no torneio. Devia estar a caminho há horas.

Sentindo já a dor da solidão, Arabella perguntou.

— Quanto tempo vai ficar lá?

— Não sei. Semanas. — Nando parou a sua frente, abaixou-se e tomou-lhe as mãos na dele. — Promete que vai ser muito cuidadosa enquanto eu estiver fora? Não saía desacompanhada e quando ficar a sós com uma pessoa, observe-a bem.

— Não pode me dizer o que está acontecendo, Nando?

Ele gostaria de encontrar uma mentira convincente, mas os olhos límpidos de Arabella lhe diziam que ela não acreditaria. Devagar, tirou do bolso da túnica o brinco achado na cesta. Sem dizer uma palavra, abriu a mão.

Arabella fixou o olhar na jóia, um laço de onde pendia um sininho, o badalo em forma da letra "K". Não conseguiu desviá-lo até Nando tornar a fechar a mão. Só então, fítou-o.

— Ela está sob a proteção do czar, além de ser cidadã russa. Por isso, a polícia austríaca não poderá mexer um dedo sequer contra ela. Mas vou lhe fazer outra visita antes de deixar Viena, Katharina não é uma mulher corajosa e eu explicarei muito bem como pretendo agir caso qualquer coisa aconteça a você, ou a alguém de suas relações, enquanto eu estiver ausente.

Levantou-se para se despedir. Com as mãos de Arabella entre as dele, insistiu

— Promete que vai ser muito cuidadosa?

— Prometo.

Beijou-a na mão e murmurou:

— Adeus.

Já alcançava a porta quando Arabella deu-se conta de que ele ia embora sem lhe dar um bom beijo de despedida.

— Nando?

Ele parou olhando por sobre o ombro.

— Acha mesmo que vou permitir que me deixe assim? — perguntou ela ao estender-lhe as mãos.

Em poucos passos, ele retornava para tomá-la nos braços. Por uns instantes, permaneceram imóveis, mas então, Arabella ergueu o rosto oferecendo-lhe os lábios.

O desespero de uma hora atrás ainda persistia. Porém agora, Nando refreou a paixão, desejoso de proporcionar um momento de ternura através do qual Arabella se lembrasse dele. Escorregou a língua para sua boca e a explorou com morosidade provocativa. Ela gemeu de prazer e Nando gravou a reação para acompanhá-lo nas horas de solidão. Mas de repente, o ritmo mudou. Crepitantes, as chamas os envolveram lançando-os num turbilhão que os deixou ofegantes.

— Diga que vai sentir saudades de mim — murmurou Arabella com os lábios junto aos dele.

Nando estreitou-a mais para que ela pudesse sentir-lhe a excitação do corpo.

— Tem alguma dúvida disso, minha feiticeira?

— Volte depressa.

Nando fitou-a. Ele a desejava. Isso entendia, mas a ansiedade crescente, não.

Roçou os lábios de Arabella num último beijo.

— Pense em mim.73

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06Um segundo depois, não estava mais lá.

CAPÍTULO XIV

Os dias passavam com lentidão insuportável. Carteiros apareciam, mas nunca o que Arabella es-perava.

Ela começou a detestar a rotina diária de atividades sociais e até seu trabalho no orfanato não era mais tão gratifícante. Mais e mais, a lembrança da menina salva por ela e Nando de uma sova a perseguia. Porque recordava aquele dia com mais clareza do que outros? Indagava-se. Talvez porque Nando estivesse a seu lado e a houvesse abraçado com ternura incondicional. Mas não importava a razão. Numa fria manhã de dezembro, Arabella despertou decidida a ir procurar a criança.

Em menos de uma hora. ela convenceu a cozinheira a lhe dar uma cesta de alimentos preparados, pôs um chapeuzinho escuro e uma capa simples, contratou uma carruagem de aluguel e saiu à procura da menina. Depois de deixar a carruagem estacionada num canto da praça, atravessou o mercado parando várias vezes a fim de questionar vendedoras. Suspeitando de seu sotaque e aparência, muitas ficavam caladas. Fingiam não ter entendido. Mas mesmo as que respondiam, garantiam não saber nada a respeito de uma menina chamada Poldi. Passado algum tempo, Arabella continuava sem informação alguma.

Ao voltar da ponta extrema do mercado, ela viu um carrinho de maças e reconheceu a vendedora de quem tinha comprado frutas para Poldi.

— O que quer com ela? — demandou a mulher ao ser interrogada.

— A senhora a conhece? .

— Talvez sim, talvez não. Depende. Por que está procurando a menina?

— Estou procurando uma criadinha. Gostei de Poldi. A vendedora riu com desdém.

— A pestinha vai deixar a moça limpa. Roubará tudo que puder, Frãulein.

Semicerrou os olhos e calculou quantas moedas poderia arrancar da moça ali.

— Então, a senhora conhece Poldi. Eu lhe pagarei se me contar onde encontrá-la — disse Arabella como se lhe tivesse lido os pensamentos.

A mulher endireitou os ombros e abriu bem os olhos.

— Quanto?

Arabella deu-lhe uma moeda.

Depois de examinar o dinheiro, a vendedora o enfiou no bolso da saia sob o avental. Em seguida, cruzou os braços sobre o busto avantajado e fitou Arabella com olhar insolente.

— Talvez eu saiba. Talvez não.

Outra moeda trocou de mãos. Quando também já estava guardada, a mulher esticou o queixo em direçao à parte mais afastada do mercado.

— Na segunda viela depois da fonte. O sobrenome dela é Nagler. Mora com o padrasto. O nome dele é Baric e ele descarrega barris para uma cervejaria. Quer dizer, quando não está bêbado.

Aliviada por estar quase alcançando o objetivo, Arabella deu-lhe mais uma moeda e se afastou. Arabella retrocedeu um passo depois de virar a esquina. Além de estreita, a viela exalava mau cheiro

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06insuportável. Não havia calçamento e todo tipo de lixo imaginável acumulava-se pelos cantos.

Uma porta rangeu ao abrir-se, revelando a presença de uma mulher idosa e maltrapilha.

— Wo wohnt Baric?

— Baric? Onde mora? — repetiu a velha observando-a por um instante antes de apontar a uma porta do lado oposto a sua.

Arabella sentiu um arrepio descer da nuca ao longo da espinha. O barulho de passos arrastados a suas costas a fez virar-se depressa. Deu de frente com Poldi.

Surpresa, a menina recuou, mas ao faze-lo, a alça de um balde cheio de água escapou-lhe das mãos, esparramando o líquido sobre os pés de ambas. Frustrada, ela viu a água perder-se e o estrago feito nas sapatilhas de Arabella. O queixo começou a tremer numa demonstração de medo.

Sem se importar com a sujeira, Arabella ajoelhou-se e passou os braços à volta da criança. Esta, não resistindo ao gesto carinhoso, rompeu em lágrimas, mas continuou sendo abraçada até parar de soluçar. Só então e com um dos braços sobre os ombros da menina, Arabella levantou-se para acompanhá-la ao interior da moradia miserável. Nada visto antes a tinha preparado para o espetáculo que a aguardava. Quando entraram, algo desapareceu correndo, mas não a tempo de Arabella ver a cauda pelada de um rato passar por baixo de uma divisão de madeira. O chão era de terra batida. Num canto havia uma lareira, porém pelo aspecto, percebia-se que não era acesa há muito tempo. A mesa de tábua constituía a única peça do mobiliário, pois em lugar de cadeiras, usavam-se banis. Uma exclamação de choque e repugnância escapou dos lábios de Arabella. Sentiu Poldi retesar o corpo e puxar os ombros de sob seu braço.

— Por que veio me procurar? — demandou, dominada pela habitual desconfiança. — Eu não surrupiei o seu dinheiro, apesar de poder fazer isso muito bem. Nem o do oficial.

Arabella controlou o choque provocado pelas palavras atrevidas da menina e procurou uma razão plausível.

— Eu queria lhe trazer alguma coisa porque já é quase tempo de Natal.

Entregou-lhe a cesta, mas Poldi ficou imóvel, sem tirar os olhos do presente.

— Vamos, abra. É tudo para você — disse Arabella.

A menina relanceou o olhar ressabiado por Arabella. Mas quando percebeu que não seria castigada pela impaciência, abriu depressa a cesta. Bem em cima, havia um pastel de massa folheada, recheado com geléia. No mesmo instante e empurrando-o com as pontas dos dedos, Poldi enfiou o doce quase inteiro na boca. Ao sentir a mão de Arabella no ombro, levou um susto e assumiu ar de culpa enquanto limpava a boca com as costas da mão imunda.

— Mais devagar. Nao precisa ter tanta pressa. A cesta vai ficar aqui com você — explicou Arabella.

Os olhos da menina tomaram a se encher de lágrimas, mas com determinação, ela conseguiu contê-las. Arabella teve de refrear a vontade de abraçar Poldi novamente. A pobrezinha sabia enfrentar melhor castigos do que gestos de carinho.

Sob o brilho das lágrimas, seus olhos expressavam audácia e orgulho. Quanto tempo ainda resistiria assim?, imaginou Arabella. Ate quando os maus-tratos e a fome contínuos não colheriam seus fiai tos? Restariam muitos anos mais antes de ela começar a vagar pelas ruas, vendendo o corpo ou por escolha própria, ou forçada pelas circunstâncias?

De repente, Arabella percebeu a necessidade de tirar Poldi dali. Não fazia ideia de como faria isso, mas haveria de conseguir.

Tomando-lhe as mãos nas suas e, com ela a sua frente, sentou-se num barril.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06— Vou arranjar um outro luga-r para você morar, Poldi. Uma casa onde tenha sempre o que

comer e, talvez, aprenda uma profissão. O que acha da ideia?

Poldi não demonstrou reação alguma, nem no olhar, nem nas mãos largadas entre as de Arabella. Perplexa, esta lhe perguntou.

— Você mora aqui com alguém que não queira deixar? Sua mãe?

Poldi sacudiu a cabeça.

— Minha mãe morreu no inverno passado.

— Desde então, você mora aqui sozinha? — A menina voltou a sacudir a cabeça.

— Sozinha, não. Baric mora aqui. Quer dizer, às vezes aparece. Os ombros esqueléticos sacudiram-se com um tremor incontrolável.

— Você tem medo dele?

— Não! — respondeu Poldi depressa ao erguer bem o queixo, mas os olhos não conseguiram esconder o temor sentido.

Arabella apertou-lhe as mãozinhas.

— Virei buscá-la assim que puder —informou com um sorriso. A menina a fitou com olhar vago que poderia significar tanto incompreensão como incredulidade.

— Prometo.

Ainda fitando-a, Poldi não disse nada. Mas não havia um lugar para acolher Poldi, 0 diretor do ofanato, friamente atencioso desde o incidente da cesta de guloseimas, alegou não poder aceitar a menina, pois estaria quebrando regulamentos. Afinal, ela contava com o padrasto. Na residência das Thurheim, Arabella foi informada que três irmãs haviam saído e só voltariam à noite. Sabia, perfeitamente, que lady Castlereagh jamais permitiria a entrada da criança na embaixada da Inglaterra.

— Wohin, Frãulein? — indagou o cocheiro sem saber par onde seguir quando Arabella subiu novamente na carruagem. Tentando refletir, ela lhe fez um sinal para esperar. Tinha de encontrar uma solução. Fechou os olhos e, por um momento, vi o rosto pálido e sujo de Poldi, os olhos arregalados, tão cheio de descrença. Lembrou-se do antro imundo, mau cheiroso, do rato e do homem que poderia aparecer essa noite e maltratar a criança. Abriu os olhos e ordenou ao cocheiro.

— De volta ao Naschmarkt. Depressa.

O trajeto parecia interminável. O tempo tinha mudado e começava a cair uma chuvinha fina, além de ameaçar nevaer também, mas Arabella não se dava conta do frio. Pensava apenas na necessidade de ir buscar a menina o mais depressa possível. E Tão logo o veículo parou, desceu e arrebanhou as saias a firnas para facilitar os passos apressados. Já estava a poucos metros da casa quando ouviu um grito.

Em poucos segundos, agarrava o trinco de feiro. A porta abriu-se ao mesmo tempo em que o som de uma chicotada ecoava no lar, seguido de outro grito.

Parada à entrada, Arabella não conseguia ver mais do que sombras vagas no aposento escuro. Todo movimento havia cessado e o único barulho eram soluços baixos vindos do lado da lareira. Sabendo que contava, apenas com o elemento surpresa, Arabella correu para lá e ficou aliviada ao sentir a menina atirar-se a seu encontro.

Segurando-a pelo braço, tentou voltar depressa para a porta. De repente, o homem soltou um grito feroz e lançou-se em direção a ambas. Um barril atrapalhou a passagem de Arabella, porém com um pontapé, empurrou-o para longe. Em seguida, alcanço Poldi que, na confusão, havia se separado e

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06chegado à porta. Ouviram um estrondo vindo de trás delas, acompanhado palavrões vociferados. Tomando a mão de Poldi, Arabella puxou-a rumo à praça do mercado.

Poucos instantes depois, entre levantar e empurrar, ela conseguiu fazer Poldi subir na carruagem. Antes de entrar também, gaguejou ofegante.

— Cocheiro... depressa!

— Wohin, Frãulein? — perguntou ele.

— Para o centro da cidade — respondeu Arabella.

Ainda teve tempo de olhar à volta. Os poucos vendedores restantes estavam mais preocupados em guardar a mercadoria e fugir da chuva do que em prestar atenção à fuga das duas. De Baric, não havia sinal. Arabella suspirou aliviada. .

— Você está bem? Ele a machucou? — perguntou .a Poldí ao estender o lado da capa sobre seus ombros.?

— Não. Baric tentou me bater com uma tira de couro, mas só acertou meu braço umas duas vezes. Estava bêbado e não enxergava direito.

A menina falava com tanta naturalidade que Arabclla estremeceu.

O trajeto de volta não parecia tão longo quanto o da ida c boa parte já fora vencida, notou Arabella. O dia inteiro tinha agido por intuição, mas agora precisava de algo mais concreto. Forçou-se a refletir com clareza sobre as opções. Não precisou de muito tempo para reconhecer que só existia uma.

Suspirando, fechou os olhos e rezou pedindo a Deus que a governanta de Nando tivesse bom coração.

Consciente da aparência precária, Arabella ignorou o olhar de superioridade que o lacaio, de libré verde e branca dos Berg, lhe dirigia. Contudo, o homem empertigou-se ao ouvir seu nome. Um pouco depois, surgia uma mulher de porte avantajado e com um sorriso simpático de boas vindas.

— Kommen Sie, bitte — ela a convidou a entrar enquanto lançava um olhar de curiosidade à menina, porém não disse nada.

Um molho imenso de chaves, pendurado na cintura da governanta, tilintava enquanto ela as levava à cozinha enorme. O aposento oferecia calor e um cheiro agradável de ervas, que pendiam em maços na parede ao lado do fogão enorme,

— Por favor, sente-se — disse a governanta com um gesto para os bancos ao longo dos dois lados da sólida mesa de carvalho.

— Devo chamar alguém para cuidar da menina? — perguntou dirigindo-se a Poldi com ar de quem não gostava muito de ver alguém tão sujo em sua cozinha de limpeza impecável.

— Não precisa. Ela pode ficar aqui.

Num gesto casual, pôs o braço nos ombros de Poldi e a fez sentar-se a seu lado no banco.

Os olhos da mulher expressavam uma certa cautela, porém eram bondosos e Arabella resolveu ir direto ao assunto. Se a resposta fosse negativa, teria de procurar outra solução sem perda de tempo.

— Esta é Leopoldine Nagler e eu preciso de um lugar para ela ficar até encontrar-lhe um outro permanente. A mãe morreu e o padrasto a maltrata muito.

Rugas encresparam a testa da governanta. Não estava acostumada a enfrentar situações como essa.

— O conde Berg conhece esta criança e tenho certeza de que ele não ficará aborrecido se a 77

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06senhora cuidar dela por algum tempo. Quando ele voltar, conversaremos sobre uma solução definitiva — insistiu Arabella.

— Não sei, não. Se a senhora a tirou do padrasto sem autorização, ele poderá nos processar.

Arabella pôs a mão no braço da governanta.

— Por favor. Sob minha responsabilidade. Duvido que o homem vá dar queixa à polícia. Quando o conde Berg voltar, poderemos resolver qualquer problema surgido.

A governanta lembrou-se de Franz ter lhe contado haver sido a Srta. Douglas a moça quem fizera o conde Berg rir pela primeira, vez depois de muitos anos. Devagar, sacudiu a cabeça num gesto afirmativo, levando Arabella e Poldi a trocarem um sorriso.

Arabella não foi embora logo. Ficou até Poldi ser acomodada! num quartinho na ala dos criados. Depois de um bom banho, ai menina revelou ser bem bonitinha, com cabelos encaracolados,castanhos quase loiros, e pele alva onde se viam algumas sardas. Poldi tinha se mantido muito quieta e séria. Mas agora, sentada no meio da cama, saboreando uma xícara de leite quente e uma grossa fatia de pão com manteiga, sorria mais confiante. Os olhos brilhavam de vitalidade, pois ela começava a acreditar que estava em segurança. Sentada na beirada da cama, Arabella a observava, satisfeita com os resultados dos esforços desse dia.

— Quem é esse conde Berg? — perguntou Poldi entre duas mordidas.

— Um oficial do exército e amigo meu.

— Amigo? — Fitou Arabella com um ar de admiração estranha para sua idade. — Amante, quer dizer?

Arabella corou. Tinha se esquecido de que, em alemão, a palavra Freund poderia significar amigo ou amante.

— Não, ele não é meu amante. E quantos anos tem você para saber a diferença?

— Doze. O conde Berg é o oficial bonitão que também estava no mercado no outro dia?

— É, sim.

Poldi riu com expressão matreira.

— Então, talvez a senhorita desejasse que ele fosse. — Arabella sentiu uma onda de calor espalhar-se pelo corpo. As saudades de Nando tinham amenizado um pouco durante a busca da menina. Mas agora, retornavam mais fortes do que nunca. O que Nando diria quando descobrisse a criança abrigada na ala dos criados de seu palácio? Indagou-se. Ficaria irritado, bravo? Exigiria sua saída imediata? Lembrou-se de como ele havia se abaixado em frente a Poldi no mercado e lhe falado com suavidade. Nando não a desapontaria, tinha certeza. Afastando-o do pensamento, chegou mais perto da menina e segurou-lhe o queixo entre o polegar e o indicador.

— Aqui, Poldi, você não passará fome. Prometa que não me fará arrepender por tê-la trazido para cá.

Fitaram-se por um longo tempo, ambas lembrando-se do comentário de Poldi sobre não roubar seu dinheiro, ou o de Nando.

Com ar solene, Poldi sacudiu a cabeça e escorregou para debaixo do acolchoado.

CAPÍTULO XV

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06

O Natal chegou e foi embora quase sem festividades sociais, pois para os austríacos, incluindo a família imperial, a data era comemorada dentro do círculo íntimo do lar. Mesmo assim, quase toda a aristocracia compareceu aos salões da baronesa Fanny Arnstein. Ela havia importado uma tradição alemã para Viena e ocupado uma boa porção da sala de estar com um enorme pinheiro decorado com maçãs, nozes e velas.

Encostada na reentrância de uma das janelas, Arabella mantinha-se a parte das conversas e risadas. Com encantamento quase infantil e alheia á dois pares de olhos que a observavam, admirava as velas da árvore.

— Ela é adorável, Niki, não acha? — murmurou a princesa Katharina Bagration ao relancear o olhar pelo príncipe Volkonsky.

Com esforço supremo, mantinha o veneno fora da voz. Como ele não respondesse, comentou com um leve tom de malícia.

— Você está com a boca cheia d'água, mon cher. Já conseguiu possuí-la?

— Com todos os diabos, não! Sabe muito bem. Aliás, graças a você — respondeu ele sem desviar os olhos gananciosos de Arabella.

— Aconselho-o a usar melhor o tempo que lhe resta. — Depois do fracasso da armadilha do vinho envenenado, ela havia chegado à conclusão de que seria menos perigoso e mais compensador ajudar Volkonsky a se apossar de Arabella.Ainda mais após a maneira com que Nando a tinha ameaçado.

— O que você quer dizer?

— Recebi a informação, de fonte segura, que Nando estará de volta a Viena logo. Nós dois sabemos quais serão as suas chances então.

— Cale a boca, Katya.

Ela viu um músculo no queixo de Volkonsky tremer e resolveu pôr mais lenha na fogueira.

— Quem sabe se ela não vale tanto esforço. Virgens quase nunca merecem isso. — Cutucou-o com o cotovelo. — Mas você gostaria bem de possuí-la antes de Berg, não é?

Katharina passou o braço pelo de Volkonsky e levou-o a um canto mais sossegado da sala.

— Niki, meu amigo, talvez a sua feiticeira inglesa, de cabelos negros, não esteja preparada para apreciá-lo como deveria.

Volkonsky sentiu a excitação prensar-lhe as virilhas e imaginou se Katharina tinha razão. Poderia a sua habilidade, adquirida num sem fim de quartos e prostíbulos, de São Petcrsburgo a Paris, derreter a donzela de gelo, caso ela a experimentasse? Tratava-se de uma idéia enlouquecedora.

— Você precisaria raptá-la e dar-lhe uma lição objetiva, mon ami — sugeriu ela.

Volkonsky lançou-lhe um olhar de raiva.

— Pensa que não tentei? Mas este mundo está cheio de idiotas que conseguem sempre frustrar meus esforços.

— Entendo. Talvez eu possa ajudá-lo.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06— Como? Quando? — indagou Volkonsky agarrando-lhe o braço.

— Calma, Niki. Lembra-se de sua promessa?

— Que promessa? — indagou ele com olhar de incompreensão.

— Berg. Você me prometeu Berg — disse ela em tom áspero ao beliscar o ex-amante com força.

Volkonsky fez uma careta.

— Ah claro! Eu me lembro, Katya, minha doçura. Agora, me explique seu plano — demandou ele.

— Ouvi dizer, en passant, que a lady gorducha e o marido vão a Praga dentro de alguns dias e devem passar lá, pelo menos, uma semana. Se você for esperto, usará esta oportunidade para pegar o que deseja e devolvê-la apenas um pouco usada.

A agitação familiar do sangue, sentida quando ele caçava qualquer tipo de animal, alcançava o máximo aumentando a já exagerada vermelhidão do rosto de Volkonsky. Com olhar ansioso, procurou Arabella entre os convidados no salão.

Arabella examinou o penteado no espelho oval de mão e riu, Jeanne teria um ataque se pudesse vê-la. Mas essa noite, não estava com paciência suficiente para domar a rebelde cabeleira negra e fazer os elegantes caracóis presos à nuca. Em vez disso, tinha colocado vários pentezinhos pela cabeça e deixado os cabelos caídos pelos ombros abaixo. Poderia ter esperado por Nanette, a criada das Thurheim, mas a moça já estava ocupada demais ajudando as três condessas a tia, solteirona, a se vestirem para o baile oferecido pelo prínci Razumovsky. Arabella estava gostando bem de se ver livre, por uns dias dos cuidados exagerados da criada. Agora, que Jeanne já se restabelecia de uma inflamação pulmonar, não se sentia mais tão culpada por não estar cuidando dela. E ser hóspede de Lulu por uma semana e pouco, enquanto os Castlereagh estavam em Praga, dava-lhe a liberdade necessária para ir visitar Poldi mais vezes sem ter de dar explicações a ninguém.

Lulu apareceu à porta do quarto e chamou.

— Vamos embora? Konstantine está ansiosa para exibir o colar de pérolas e diamantes presenteado pelo príncipe Razumovsky no Natal. Se o príncipe continuar a lhe dar esse tipo de presente, ela acabará tendo o próprio peso em jóias quando se casarem.

Uma luxuosa carruagem, com o brasão da família Razumovsky, aguardava as cinco damas para levá-las ao baile. Um cavalariço, segurava a portinhola aberta enquanto mantinha um dos braços em posição adequada para ser usado como apoio pelas senhoras ao subir à carruagem. As Thurheim acomodaram-se a meio de exclamações e risos, Arabella, porém, sentiu um arrepio ao longo da espinha e, de repente, perdeu a vontade de se ver rodeada por luzes e alegria. O palácio Razumovsky tinha sido transformado num jardim encantador. Em todos os salões viam-se vasos de arbustos ornamentais, além de arranjos de flores exóticas das estufas do príncipe. Pela decoração primaveril, era difícil de se lembrar que o dia seguinte era o trinta e um de dezembro, pleno inverno. A se julgar pela luminosidade feérica, deveria haver milhares, de velas nos lustres de cristal e nos candelabros de ouro, prata, porcelana e bronze. A claridade dava vida à decoração, na qual se destacavam telas preciosas, de mestres antigos, e esculturas em mármore de Carrara branco, de Canova. O aquecimento acentuava a fragância das flores, os perfumes variados e outros odores. Arabella, não muito depois de haver chegado, já ansiava por um pouco do ar frio da noite de dezembro.

— Boa noite — murmurou uma voz aveludada bem atrás de seu ombro esquerdo. — O tom azul gelo de seu vestido é indicativo de seu estado de espírito esta noite, mademoisele.

Arabella virou-se e deu com os olhos negros do príncipe Volkonsky. Um frio estranho percorreu-lhe o corpo, porém ela riu a fim de disfarçar o mal-estar. Queria muito não ter prometido a lorde

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06Castlereagh tolerar as atenções do príncipe Nikita Volkonsky.

— Devo me considerar lisonjeada ou insultada, príncipe?

— Eu só tenho lisonjas para a senhorita, ma beile clame sans merci. E mademoiselle, o que tem para mim? — murmurou ele em tom íntimo ao levar a mão às costas de seu vestido sob os cabelos.

O sorriso de Arabella desapareceu. Se existia algo que a desagradava muito era a invasão de seu espaço pessoal sob o disfarce de elogios murmurados. Num movimento óbvio demais para ser ignorado, afastou-se do alcance dele.

— Essa foi uma pergunta para produzir efeito, príncipe, ou vossa alteza quer uma resposta?

— Apenas se a senhorita achar que vou gostar de ouvi-la — disse ele com um riso forçado e, sem lhe dar a oportunidade de protestar, colocou-lhe a mão no braço a fim de conduzi-la à pista de dança.

Era quase meia-noite quando a carruagem parou no pátio do palácio Berg. Por um momento e mesmo depois de a portinhola ter sido aberta, Nando continuou encolhido num canto. Quando finalmente se moveu, os músculos e ossos do corpo inteiro protestaram. Ele apanhou a espada, que havia tirado como única concessão ao conforto, e desceu. Respirando fundo o ar frio da noite, sentiu um prazer imenso em flexionar as pernas e os braços meio amortecidos pela longa viagem de três dias e duas noites. Apesar da hora avançada, Menzel, também criado de Nando, já estava a postos em poucos minutos.

— Por que não volta para a cama, Menzel? — sugeriu Nando ao começar a despir as roupas amassadas e sujas da viagem. — Qualquer novidade pode esperar ate amanhã.

— Naturalmente, excelência, mas há um convite para esta noite.

— Por favor, me poupe.

Sentado numa cadeira, Nando começou a tirar as botas. Ao mesmo tempo e sem querer, imaginou se Arabella não estaria lá. As mãos imobilizaram-se.

— Do que se trata?

— Um baile no palácio do príncipe Razumovsky — informou Menzel.

Razumovsky, refletiu Nando. Ele oferecia as festas mais esplendorosas de Viena. Naturalmente Arabella estaria lá. Havia pensado nela. Mais do que desejava. O suficiente para tirar-lhe o sono e levantar-se com o corpo pesado de desejo. O suficiente para fazê-lo ir para a cama sozinho durante essas três semanas. A centenas de quilómetros de distância, Nando tinha descoberto estar mais vulnerável a Arabella do que quando a tinha perto de si. Talvez por isso, ele tivesse resistido à tentação de lhe escrever, ciente de que todos os pensamentos, emoções e anseios indesejáveis encontrariam o caminho para a carta, roubando-lhe as últimas defesas.

Ele acabava de sacudir a água do banho dos cabelos e de se enrolar numa toalha de linho, aquecida por um tijolo quente, quando Franz entrou no quarto com uma bandeja de comida.

— Por Deus, Franz! — exclamou Nando. — Você está tão cansado quanto eu. Deixe isso para os outros.

Franz sorriu e continuou o trabalho. Colocou travessas com vários tipos de salsicha, fatias finas de carne de porco assada, pedaços de queijo e uma garrafa de vinho dourado numa mesa perto do aquecedor recoberto por ladrilhos pesados de porcelana vidrada.

Morto de fome, Nando pôs uma fatia de carne na boca, deliciando-se com o sabor realçado pela pimenta e cominho.

— Vá dormir, Franz, e mande alguém aqui que conheça meu guarda-roupa — instruiu Nando.

— Vossa excelência vai sair?

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Page 82: Ch 006 nina beaumont olhos da inocência

Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06— Vou ao baile de Razumovsky.

Franz não disse nada, mas passou para o quarto ao lado de onde chegou o barulho de abrir e fechar portas e gavetas. Nando vestiu um robe e encostou-se no batente da porta de comunicação.

— O que está acontecendo? Não vou ouvir um sermão sobre os méritos do descanso?

Franz pendurou uma camisa de cambraia no encosto de uma cadeira, os lábios arqueados com o início de um sorriso.

— Faça o que precisa.

Nando riu. O cansaço da viagem tinha desaparecido e ele se sentia mais jovem e vigoroso como nunca.

— Vá me buscar com a caleça lá pelas cinco horas. Iremos dar bom dia ao tio Johann e lhe fazer uma visita.

— Assim tão cedo?

— Quero estar de volta ao meio-dia para ir cavalgar. — Incapaz de refrear o largo sorriso, Franz virou-se de costas.

Numa atitude arrogante e possessiva, jamais manifestada antes, Volkonsky monopolizava a companhia de Arabella tão completamente que ela começava a ter a sensação de aprisionamento. Lá pelo meio da ceia, o joelho dele invadiu-lhe o espaço um pouco demais e Arabella perdeu a paciência.

— Talvez vossa alteza devesse pedir a nosso anfitrião para mudar o modelo de suas mesas para a próxima recepção. — Arabella dirigiu um olhar de desdém a Volkonsky. — Percebe-se que esta não oferece espaço suficiente para suas pernas.

Ela não tinha se dado ao trabalho de baixar o tom de voz e várias risadinhas abafadas soaram nas proximidades.

— Minhas profundas desculpas.

Volkonsky curvou-se para beijar-lhe a mão, mas na verdade, queria esconder a raiva sentida. Essa noite ela lhe pagaria. Pagaria em dobro por todas as vezes que lhe tinha infligido a língua mordaz.

Enquanto Volkonsky se curvava, Arabella sentiu um arrepio de expectativa, de prazer que nada tinha a ver com o contato úmido dos lábios de Volkonsky em sua mão. A vibração atrás no seu pescoço não cessava, mas aumentava como o toque delicado e constante numa corda afinada de violino. Devagar, Arabella virou a cabeça a fim de olhar por sobre o ombro e procurar a fonte dessa sensação. Encontrou Nando.

Nando foi tomado por uma onda de alegria irracional ao localizar Arabella. Apressado, percorreu a galena para ir ver se o mesmo sentimento se refletia em seus olhos. Mas então, parou tão de repente que teve de se apoiar num pilar para não perder o equilíbrio.

Observou Volkonsky escorregar a mão sob a palma da de Arabella e baixar a cabeça. Viu-a manter-se imóvel enquanto ele lhe tocava a mão com os lábios.

Sentiu o coração trovejar de encontro as costelas, mas em questão de segundos, a disciplina férrea prevaleceu. As pulsações diminuíram. Nando sentiu o aro gelado voltar a rodear-lhe a alma, todavia, ficou aliviado. Voltava a gozar de segurança. Então, Arabella virou-se e o fitou. Por um momento, seus lábios se entreabriram como se fosse falar, os olhos iluminaram-se lembrando o amanhecer e as emoções, que Nando empurrara para o fundo da alma, começaram a lutar para subir à tona. Mas com rapidez idêntica com que havia surgido, o brilho nos olhos cor de safira se apagou e Nando ponderou se, cansado como estava, não o tinha imaginado.

Fitaram-se por uma fiação de segundo e, então, Arabella virou a cabeça. Nando sabia que estava tudo terminado.

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CAPÍTULO XVI

Consciente de que andava numa corda sem rede por baixo, Arabella sabia não poder dar um passo em falso. Não conseguiria olhar para Nandoe ver outra vez aquela expressão glacial de indiferença, pois se desintegraria em milhares de fragmentos.

Ela não tentou refletir sobre o que tinha acontecido para Nando. fitá-la com desinteresse tão desumano e terrível. Isso ficaria para um momento de tristeza a sós, quando pudesse despir-se do or -gulho, a única coisa que ainda a mantinha ereta.

Seus pés moviam-se ao compasso da dança e ela concentrava-se em mais um minuto, mais uma valsa, mais uma hora que teria de sobreviver.

Tão absorvida estava na *aúvidade* inexorável que não se deu conta do olhar e do sinal trocados por Volkonsky e a princesa Bagration. Mas com o sexto sentido, percebia o calor que o olhar de Nando produzia-lhe na pele. O alívio inesperado produziu uma lassidão perigosa em seu corpo e anuviou-lhe a mente como uma droga poderosa. Distraída, concordou com a sugestão de Volkonsky para mandar vir sua capa a fim de saírem um pouco para respirar ar fresco.

— Nando, o que está fazendo aqui?

Sentindo-lhe a mão no braço, ele virou-se para Lulu e tentou gracejar.

— Como você, também recebi um convite.

— Quando você voltou? Está aqui há muito tempo? Já viu Arabella? Ela não está encantadora? — perguntou Lulu de um fôlego só, mas ao ver-lhe a expressão alheia, acrescentou: — O que aconteceu?

Nando voltou a olhar para a pista de dança quase vazia. Com todos os diabos, onde estava ela? Não podia mais vê-la. Lulu segurou-o pelo braço.

— Nando, o que aconteceu? Por favor, me conte.

— Não aconteceu nada, ma chère. Tudo está na mais perfeita ordem.

— Trata-se de Volkonsky, não é? — perguntou Lulu. — Você viu Arabella com ele e está com ciúmes.

Nando não disse nada.

— Ela não fez nada errado, Nando.

— Não sou cego.

— Mas não passa de um grande bobo — censurou ela, irritada e se afastou.

A princesa Katharina Bagration aproximou-se de tia Therese von Thurheim, que ajeitava as penas de pavão nos cabelos grisalhos.

— Posso perturbá-la por um instante, ma chère comtessel Tia Therese piscou um pouco ao reconhecer a loira a seu lado.

— Só queria lhe dizer que convenci sua encantadora hospedei a ser infiel à vossa excelência por uns dias.

— Nossa hóspede? Arabella? — indagou Therese von Thurheim sem esconder a surpresa.

— Isso mesmo. Ela concordou em me fazer companhia.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06A velha senhora lembrava-se claramente de Lulu haver dito que a princesa detestava Arabella.

Mas o sorriso mostrava-se tão simpático e sincero, a voz tão meiga que ela devia ter confundido os nomes das pessoas.

— Apenas quero avisá-la que vou levar Arabella comigo esta noite. Não precisa se preocupar. Ela estará em boas mãos.

Ainda um tanto confusa, tia Therese meneou a cabeça e viu a visão loira, toda de branco, afastar-se.

— O que houve? — perguntou Lulu ao aparecer nesse instante..

— Eu pensava que você... Devo ter me enganado- Ah, sei lá. Bem, a princesa veio avisar que Arabella vai passar uns dias com ela.

— O quê? O que mais ela disse? — indagou Lulu aflita.

— Ora, mais nada. Mas por quê... — A velha senhora não terminou, pois a sobrinha desaparecia de sua frente.

O príncipe Volkonsky ordenou a um lacaio para trazer as capas e, então, virou-se para Arabclla.

— Gostaria de se sentar enquanto esperamos? Vou mandar buscar algo para beber.

Arabella ignorou a cadeira oferecida como também a mão em suas costas, sob os cabelos. Sentia-se entorpecida. O corpo. A mente. Volkonsky sorriu enquanto a mão acariciava o veludo. A certeza de que esse corpo, cobiçado há tanto tempo, logo estaria a sua mercê, provocou-lhe uma onda feroz de desejo. Pôs um copo em sua mão e Arabella sorveu um longo gole. O leite aromatizado de amêndoa tinha um travo amargo e ela colocou o copo em uma mesinha ao lado.

Não fazia ideia do tempo passado até quando a capa foi posta sobre seus ombros. Os dedos esforçaram-se para encaixar o fecho e ela sacudiu a cabeça com a falta de jeito. Então, sem aviso algum, o mundo explodiu numa série de exclamações, vozes exaltadas e gritos. Antes de poder olhar à volta, Arabella viu-se sendo arrastada para fora e, sua última lembrança, foi o sorriso diabólico de Volkonsky com uma auréola alaranjada de chamas atrás dele.

Lulu apressou-se em voltar ao lugar onde havia deixado Nando poucos minutos atrás, porém não o encontrou lá. Passou a percorrer os salões à procura dele, temendo que algo errado acontecesse a Arabella. Finalmente, localizou-o. Atravessou o salão já quase vazio e segurou-lhe o braço.

— Graças a Deus eu o encontrei. Trata-se de Arabella. Ela... Nando a silenciou com olhar severo.

— Vá embora, Lulu, e me deixe em paz. Não estou mais interessado em Arabella.

Insistente, Lulu continuou a segurar-lhe o braço.

— Além de bobo, você é mentiroso. Preste atenção. A princesa Katharina Bagration disse à tia Therese que Arabella ia passar uns dias com ela e, por isso, a estava levando ao palácio Palm.

Ao ouvir essa informação, os cabelos na nuca de Nando arrepiaram-se. Sem dúvida Katharina não se atreveria a tanto. Confundindo seu silencio com indiferença, Lulu sacudiu-lhe o braço com impaciência ma contida.

— Não seja idiota, Nando. Raciocine!

De repente, um pandemônio explodiu à volta deles e uma voz estrondosa anunciou:

— Fogo! — Lulu empurrou Nando.

— Vá logo. Eu cuido de mim mesma.

Alarmado, Nando afastou-se correndo. Desviando-se de convidados e serviçais atarantados, desceu a escada de dois em dois degraus e atravessou o vestíbulo, onde segurou um dos lacaios pelo

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06colarinho.

— Você viu o príncipe Volkonsky? — Sim, excelência

— Onde? Quando?

— Ele saiu alguns minutos atrás.

— Sozinho?

— Não. Uma jovem ia com ele.

Praguejando, Nando largou-o e, aos empurrões, abriu caminho entre as pessoas junto à saída. Do lado de fora da porta, percorreu o olhar pela multidão aglomerada no pátio. A alameda estava atravancada de carruagens, cocheiros tentavam acalmar cavalos assustados e no gramado, silhuetas escuras corriam de um lado para o outro. Nando olhou para cima e viu que labaredas já saíam pelas janelas mais altas. O sino de uma igreja próxima começou a bater o toque de alarme. Nando correu pela margem da alameda, rumo à ma*, examinando os passageiros de cada. carruagem. Nada. Logo à frente, dois cavalos empinaram quando várias carroças da brigada de incêndio passaram pelo portão na maior velocidade permitida pelas circunstâncias. Um homem pôs a cabeça para fora da janelinha da carruagem, gritou algo e, sacudindo os punhos cerrados, virou o rosto para as carroças que subiam pelo gramado. Por uns segundos, os olhos dele fixaram-se nos de Nando. Ambos fitaram-se estarrecidos, os movimentos paralisados. Mas em seguida, explodiram em ação. Volkonsky esbravejou ordens ao cocheiro que, brandindo o chicote, impulsionou os cavalos nervosos através do portão. Nando saiu correndo ao encalço, mas chegou à ma* apenas a tempo de ver o veículo virar a esquina.

Determinado a conseguir uma caleça, ou um cavalo, já ia voltar ao portão quando ouviu a voz de Franz chamando-o.

Num pulo ágíl, subiu ao lado do criado e, antes de se sentar, a carruagem já estava em movimento.

— Volkonsky, aquele porco desgraçado, raptou Arabella — Gritou Nando para poder ser ouvido no barulho infernal.

Tinha certeza de ser essa a verdade. Vira a raiva misturada ao medo nos olhos de Volkonsky.

Já haviam dobrado a esquina, mas o caminho estava bloqueado por um grupo da cavalaria, incumbido de garantir passagem a uma patrulha policial. Esta, a pé, vinha munida de bastões grossos para manter os curiosos longe do fogo. Nando vociferou uma ordem e os soldados, após bater continência, afastaram policiais e curiosos do caminho da caleça. Quando o veículo entrou na ponte Franzens, tinham diminuído a distância entre a caleça e a carruagem a menos da largura do Danúbio. Mas um novo grupo de curiosos, atraído pelo brilho alaranjado no céu escuro, surgia á frente deles retardando-lhes a marcha.

Inclinado para a frente, Nando prensou as mãos nas coxas. Se, depois da ponte, Volkonsky virasse a direita, na direção do Prater e suas estradas pela mata pantanosa, seria necessário um exército para localizá-lo. Ao vê-lo tomar a esquerda, respirou aliviado.

As pessoas vindo em sentido contrário já não eram muitas e ele estalou o chicote no ar acima de suas cabeças. O som desagradável e a maneira das pessoas se espalharem praguejando o levou a fazer uma careta. Não gostava de violência, porém nesse momento, não podia perder tempo com delicadezas.

— Provavelmente, eles estão indo aos Bosques de Viena. Naquela área há um bom número de pousadas e fazendas — resmungou Nando mais para si mesmo enquanto disparavam pela Taborstrasse.

Por um momento, Nando permitiu-se reclinar no encosto de couro do banco, mas logo retomava a posição ereta. Ao relaxar um pouco a concentração, Arabella voltava a ocupar-lhe a mente. Estaria Volkonsky tocando agora? Teria as mãos enterradas em sua cabeleira negra? Os lábios lhe beijariam a pele sedosa? A boca? Nando apertou a mãos no cabo da espada enquanto era dominado pelo ódio.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06— Juro que o matarei! Se ele a tocar, juro que o matarei — repetiu.

Volkonsky segurou-se numa alça de couro a fim de se debruçar para fora e focalizar os olhos. Porem isso era impossível com sacolejar da carruagem. Tinha certeza de ser Berg quem o seguiu na caleça.

— Mais depressa! — gritou para o cocheiro.

Uma curva o empurrou de volta ao banco e Volkonsky olha para a jovem largada no canto como uma boneca de trapo. Sim capa tinha aberto e um dos ombros do vestido, caído pelo braço, expunha-lhe a pele sedosa. Volkonsky retorceu os lábios ao tocar Arabella no ombro. Ela estava fria e não dava o mínimo sinal de sentir o contato. Furioso, arrependeu-se por tê-la narcotizado. Se estivesse acordada, lutando e gritando, o manteria ocupado em vez de ficar pensando no maldito Berg que o seguia. Caso soubesse que um incêndio irromperia no palácio Razumovsky, não teria precisado do sedativo. Numa situação daquelas, o fato de sair carregando uma mulher aos gritos, dificilmente chamaria atenção. Disposto a não esperar mais, jogou-se para junto de Arabella. Seus cabelos tinham caído sobre o rosto e ele os enrolou em uma das mãos a fim de puxá-la para mais perto. Com a outra fechada sob o queixo, empurrou-lhe o rosto para cima, mas sua cabeça meneou para trás quando ele juntou a boca na sua. Os lábios flácidos não ofereceram resistência aos dele. Com um palavrão, ele a jogou de volta ao canto. Com um baque surdo, Arabella bateu o ombro no lado da carruagem e gemeu baixinho enquanto escorregava para o chão Volkonsky a levantou pondo-a sentada novamente. Talvez acordasse mais depressa com um pouco de estímulo. Sacudiu-a pelos ombros.

— Acorde, Arabella. — Outra sacudidela. — Vamos, acorde — A cabeça de Arabella perdeu para trás e meneou de um lado para o outro enquanto um murmúrio de protesto formava-se em sua garganta.

Os dedos de Volkonsky apertaram-lhe as faces.

— Acorde, minha doçura. Não tive todo este trabalho para um cadáver em minha cama — protestou como se não fosse quem a tivesse narcotizado com a droga obtida por seu criado de um turco.

Um tremer leve das pálpebras, o movimento quase imperceptível de uma das mãos, um ressonar mais alto, sinais de que Arabella iniciava o retorno das profundezas do sono. Volkonsky observava sua luta para recobrar a consciência com extrema ganância. A respiração estava menos fraca e ele podia ver-lhe o arfar do peito. Como um corpo sobe à tona na água, balouça* um pouco e torna a afundar, Arabella emergia da inconsciência. Mas desejava voltar ao lugar aconchegante onde sua cabeça repousava na grama macia e perfumada e Nando enchia-lhe a visão. Com um suspiro, atirou-se nas profundezas abençoadas. Nando. Só teve a graça de vê-lo de relance antes de ser envolvida pelo frio. A segunda sensação foi de dor. As têmporas latejavam no ritmo do coração. Tentou mexer-se, mas as pernas e os braços estavam pesados demais. Devagar, outras noções vagas tomavam forma. Um peso no peito. Pressão no estômago. O medo deu-lhe forças para erguer as mãos e empurrar.

— Até que enfim, minha feiticeira de cabelos negros, você acordou!

O peso no peito diminuiu um pouco. As palavras formavam um murmúrio de sons sem sentido e Arabella mexeu os lábios para formular uma indagação, mas o único som ouvido foi o de sua respiração. A pressão, que ela não podia identificar, desceu do estômago ao longo das pernas e tornou a subir. Na mente surgiam fiapos de lembranças. O baile. Luzes. Luzes alaranjadas que feriam os olhos embora eles estivessem fechados. Então, lembrou-se e um som desolado escapou-lhe da garganta. Os lábios secos mexeram-se.

— Nando.

De repente, uma nova dor surgia em seus ombros e braços fazendo-a esquecer a da cabeça.

— Não, não é o seu Nando, sua cadela! Abra os olhos e veja quem eu sou!

Arabella lutou para subir à superfície e as pálpebras entreabriram-se um pouco. As imagens 86

Page 87: Ch 006 nina beaumont olhos da inocência

Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06diante dos olhos estavam nubladas e moviam-se num ritmo louco, porém ela reconhecia raiva nos sons desconexos que lhe chegavam à mente. Retraiu-se ruído pavoroso e submergiu novamente na escuridão.

Nando. Sorriu e estendeu a mão. Os dedos de ambos tocaram-se, mas dessa vez, ele não chegou perto. A silhueta dissolveu-se ate tomar-se diáfana e depois, desaparecer completamente. Arabella abriu os olhos querendo vê-lo, segurá-lo e a imagem diante dela, devagar, entrou em foco. Sua primeira reação foi de perplexidade, pois não reconheceu as feições distorcidas a sua frente. Onde estava Nando? Ante ser tomada pelo pânico, voltou a sentir a dor nos ombros.

— Maldita. Sou Nikita Volkonsky e antes de eu terminar com você, saberá muito bem quem eu sou.

As palavras ressoaram em seus ouvidos aumentando-lhe a dor de cabeça. Uma a uma, elas foram adquirindo sentido e o reconhecimento da situação registrou-se em sua mente. Por um instante, a compreensão a manteve paralisada. Apenas os olhos mexiam, alargando-se cada vez mais ao fitar o homem acima dela. Mas então, o medo e a adrenalina espalharam-se pelo seu sistema e ela começou a lutar.

Sem se importar com as mãos que empurravam, batiam e arranhavam, Volkonsky usava as dele para apalpar-lhe o corpo inteiro. A carruagem sacolejou mais ao passar por um buraco e movimento atirou ambos ao chão, o corpo de Volkonsky prendendo o seu.

Pouco apouco, Arabella foi perdendo as forças. Algo a puxavu para a profundeza outra vez. Um grito de protesto formou-se em seu peito, mas não chegou a emiti-lo. A escuridão abençoada voltava a envolvê-la. Ela amoleceu o corpo, inconsciente de que todo o movimento a sua volta cessava.

O vento frio de dezembro batia no rosto de Nando, mas mesmo assim, ele sentia a transpiração correr-lhe pelas costas. Há muito, tinha tomado as rédeas das mãos de Franz, pois precisava manter as suas ocupadas. Mas do que adiantava isso se o pensamento corria à frente da caleça, imaginando cenas pavorosas? Quanto mais teriam pela frente nessa carreira desabalada? A égua já mostrava sinais de cansaço e começava a diminuir a marcha. Alcançaram uma curva e Nando sentiu a mão de Franz no braço.

— Por aqui — disse o coado.

Ele olhou para o chão, iluminado pela luz difusa da meia-lua, e viu as marcas da carruagem viradas num ângulo agudo. Nando estalou a língua e o animal, percebendo por intuição o fim da jornada, voltou a acelerar o passo.

A luz filtrava-se através das árvores e, ao deixá-las para trás, Nando viu uma enorme casa de fazenda, com várias outras construções ao redor. O odor característico, soprado em direção a eles, indicava a existência de vacas e de outros animais. Viu logo a carruagem de Volkonsky parada e iluminada por várias tochas, a portinhola aberta. Atirou as rédeas para Franz e pulou da caleça. Apesar da lama escorregadia, correu em direção ao cocheiro em pé ao lado da portinhola.

— Acorde, desgraçada! Acorde!

Com o rosto distorcido pela raiva e ajoelhado no chão do veículo, Volkonsky sacudia Arabella, aparentemente inconsciente.

Nando sentiu a fúria e a aflição crescer dentro dele como um líquido alcançando o ponto de ebulição.

— Maldito! — praguejou em voz rouca ao atirar-se sobre a presa.

Volkonsky olhou para cima e, tirando as mãos dos ombros de Arabella, deixou-a cair para trás. Nando. precisou de todo o seu controle para agarrá-lo pela túnica do uniforme e não pelo pescoço. Com um puxão forte, tirou-o de dentro do veículo e o atirou no chão. Entrando na carruagem, aninhou

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06Arabella em um dos braços enquanto, com a mão do outro, verificava-lhe o pulso irregular. Enquanto a tocava, ela entreabriu os olhos.

— Nando?

— Sim. Fique quietinha. Já está em segurança.

Os olhos fecharam-se novamente, mas os braços de Nando apertaram-se a sua volta e ela forçou-se a abri-los a fim de tranquilizá-lo.

Fitaram-se. O tempo parou e Arabella, com os olhos perdidos nos prateados e brilhantes, teve as respostas para todas as suas perguntas. Censurou-se por querer também as palavras.

— Ele a machucou? —perguntou Nando ainda acariciando-lhe a face.

Arabella fez um esforço inútil para sorrir.

— Nada irrevogável, eu acho.

Os braços de Nando ficaram tensos a sua volta. Ela sentiu algo quente e felpudo sendo enrolado em seu corpo e, em seguida, ser levantada e acomodada no banco.

— Você ficará bem sozinha por uns instantes? Voltarei logo para levá-la para casa.

Havia violência sob a suavidade do tom de Nando. Ela esticou a mão para fora do robe a fim de segurar o uniforme dele.

— Aonde você vai?

Fez-se silêncio e, de repente, Arabella soube, com certeza terrível, o que ele pretendia fazer.

— Não, por favor, Nando, não — implorou. — Não faça isso. Não me force a mais esse pesadelo.

— Uma vez, você me impediu. Se não tivesse feito isso, não teria passado por essa experiência terrível. Agora, não poderá me conter.

Nando tomou-lhe o rosto entre as mãos e passou um dos polegares sobre os lábios. Curvou-se a fim de beijá-la, pois queria levar o seu sabor como um talismã. Bem de leve, roçou-os com os dele.

— Não se preocupe, chèrie. Eu voltarei — garantiu Nando. Desceu da carruagem e dirigiu-se para onde Volkonsky, em pé, vociferava com o cocheiro. Este tentava limpar a lama da túnica azul e da calça de pelica branca do uniforme dele.

— Diga-lhe para não se dar ao trabalho, Volkonsky. Não levará muito tempo para você cair de novo no barro.

— Seu nojento...

O russo deu um passo à frente, mas Nando desembainhou a espada tão depressa que Volkonsky quase bateu nela.

— Não se atreva — gritou Nando. — Não torne mais difícil do que já é não matá-lo neste instante como se fosse um cão louco.

Num movimento controlado, Nando tocou-o num dos botões de prata com a ponta da espada. Volkonsky cambaleou e recebeu outra cutucada, dessa vez no peito, que o fez dar um passo para trás. Satisfeito, Nando recuou, tirou a bainha da espada e a túnica atirando-as, em seguida, para Franz. Então fixou o olhar frio em Volkonsky.

— Lamento termos de violar o règlement, príncipe. A escolha das armas e do lugar é minha —

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Page 89: Ch 006 nina beaumont olhos da inocência

Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06declarou Nando, as palavras ecoando pelo pátio.

Flexionou os ombros para relaxar os nós de tensão formados na última hora. Então, assumiu postura ereta e dirigiu-se ao adversário, a voz ressoando com um tilintar metálico.

— En garde, Volkonsky.

CAPÍTULO XVII

Com o coração disparado, Arabella encostou-se à janelinha. O pátio estava repleto com os mora-dores da fazenda. Vários criados seguravam tochas. O silêncio era profundo. Ninguém se movia. Durante alguns instantes, a atenção de Arabella concentrou-se em si mesma. Levou a mão aos lábios e estremeceu. Nando os tinha roçado com os dele. Ela havia querido muito um beijo mais completo para cobrir a vergonha, a humilhação, para faze-la esquecer os momentos de horror, porém temera a repulsa de Nando. Ela mesma não se via dominada por uma reação de nojo pelo corpo aviltado? Irritada, esfregou as costas da mão nos lábios.

Mas então, a cena no pátio adquiriu movimento. Ao ver tudo se desenrolar a sua frente, ela esqueceu a miséria pessoal. O temor pela vida de Nando subjugava todos os outros sentimentos..!

Alerta e à espera do início do duelo, Nando mantinha-se ereto, imóvel, a espada refletindo o brilho da luz. Uma única vez, olhou, por cima do ombro e sorriu para ela, o gesto distendendo as linhas de concentração no rosto. Arabella nunca o tinha visto tão lindo e jamais o amara tanto como nesse momento.

Volkonsky tirou fora a túnica e perfilou-se, embora com dificuldade.

— Ficarei satisfeito com o primeiro sangue derramado — declarou ele.

Nando encarou o oponente.

— Ficarei satisfeito quando você me suplicar clemência.

— Como queira — respondeu Volkonsky.

Os dois homens trocaram as saudações de praxe e, embora! não houvesse padrinhos para ajuizar o duelo, eles deram uns passos para frente e cruzaram a ponta das espadas de acordo com os regulamentos. Então, num movimento simultâneo, afastaram-se um pouco para trás e começaram a bater as espadas de leve. Volkonsky gostaria de rodear o oponente por algum tempo, o suficiente para acostumar-se ao contato da arma na mão. A espada não era sua preferida, porém não tivera oportunidade de escolha. Em questão de segundos, ele via-se aparando golpes de um ataque poderoso. Volkonsky fez finta, deixando o lado sem defesa e Nando atacou. As exclamações dos espectadores encheram o ar. Porém ele não completou o golpe enterrando a ponta da espada entre as costelas do oponente como poderia fazer. Em vez disso, interrompeu o movimento para a frente e contentou-se em cortar a camisa de cambraia de Volkonsky, valendo-se apenas de um girar rápido do pulso. O gesto de desacato enraiveceu e enervou Volkonsky muito mais do que um golpe certeiro. Ele atirou-se num ataque furioso que Nando enfrentou com facilidade. E quando, num contra-golpe, varou novamente a defesa de Volkonsky, mais uma vez limitou-se a cortar-lhe a camisa sem nem, ao menos, arranhar a pele. Os dois ferviam de raiva. Mas a fúria de Volkonsky o deixava imprudente e inepto, ao passo que Nando conseguia adestrar a sua e usá-la de maneira vantajosa. Nunca na vida Nando tinha sentido tanto ódio e sede de sangue. Como ansiava pela satisfação de sentir a carne de Volkonsky ceder sob os golpes de sua espada. Mas sabia que, apesar da vontade imensa, não poderia derramar-lhe o sangue. Não poderia fazer

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06isso para Arabella.

Arabella. Nando desejava perder um segundo para fitá-la e inspirar-lhe confiança. Porém, o melhor seria acabar de uma vez por todas com esse duelo.

Atacou sem piedade. Avançando, fez o russo recuar, passo a passo, o pátio inteiro. Nando viu para onde se dirigiam. Quase sorriu. Com os golpes precisos e fortes, continuou atacando-o Mais um passo. Depois, outro. No meio de um deles, as botas de Volkonsky bateram de encontro à mureta de uma valeta que drenava a água de um depósito de esterco ao lado. Ao estender os braços a fim de manter o equilíbrio, ele abriu a mão deixando a arma cair, Com um grito, tombou para trás, dentro do líquido escuro e mau cheiroso.

A um gesto de Nando, vários criados correram a fim de ajudar o russo a se levantar.

Tão logo, limpou a água dos olhos, Volkonsky apressou-se em apanhar a espada do chão, mas Nando empurrou-a para fora de seu alcance com a ponta da sua.

— Não tenho a intenção de lutar mais esta noite, Volkonsky.

— Pensei que você quisesse me ouvir suplicar por clemência.

— Basta eu haver tido várias oportunidades para matá-lo esta noite. — respondeu Nando com desdém. — Além do mais, você está com um mau cheiro horrível para eu chegar perto a fim de lutar.

— Vá para o inferno, Berg. Meus padrinhos irão procurá-lo.

— Serão bem-vindos. Terei prazer em repetir esta cena na presença de nossos amigos mútuos da cidade. — Saudou Volkonsky com a espada e curvou a cabeça num gesto caricato de reverência.

— Adi eu, príncipe.

Os passos de Nando eram lépidos ao se dirigir à carruagem. Nessa noite, pela primeira vez na vida, havia tido a satisfação de conhecer o gosto de lutar pela honra de uma mulher e vencer.

Num instante, estava ao lado de Arabella, com as mãos em seus ombros, sorrindo-lhe.

— Está vendo? Não disse que voltaria logo?

O medo que a paralisara durante o duelo ainda dominava Arabella. Nando tinha lutado por ela, entretanto, sabia que ele nunca mais seria capaz de tocá-la sem se lembrar dessa noite. Não querendo ver a repulsa nos olhos dele, abaixou a cabeça. A fragância de Nando a envolveu, acre e viril. Era grande a tentação de encostar a cabeça em seu peito e sentir, na face, as batidas do coração. Mas não se atrevia.

Ao perceber como Arabella, com o corpo retesado, mantinha-se afastada, Nando imaginou se ela ainda temia ser tocada. Resolveu ajudá-la a se livrar da ansiedade. Ergueu-lhe o rosto com a ponta dos dedos e, depois, escorregou o polegar sobre seu lábio inferior.

— Esta é a maneira de cumprimentar o herói vencedor? — perguntou ele fingindo ressentimento.

Para surpresa sua, os olhos de Arabella encheram-se de lágrimas. Elas eram tantas que começaram a correr, sem parar, pelas faces. Nando preparou-se para os soluços, porém ela não emitiu som algum. Apenas as lágrimas silenciosas continuaram a rolar, acompanhadas por um tremor muito leve do lábio encostado em seu polegar.

— Arabella — murmurou Nando rodeando-lhe o rosto com as mãos. — Arabella.

O nome soava como uma carícia.

Enquanto via as lágrimas correr, Nando sentiu alguma coisa fragmentar-se em seu íntimo, liberando uma onda de emoções que ele não sabia como enfrentar. Implacável consigo mesmo, questionou-se por quantas dessas lágrimas o seu comportamento agora à noite era responsável,

— Por favor, me diga o que fazer. Do que você precisa? Quero ajudá-la. Preciso — disse ele em

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06tom aflito.

Arabella tirou as mãos de sob o robe felpudo e segurou as de Nando.

— Me beije — sussurrou.

Bem devagar, com medo de assustá-la, Nando curvou a cabeça e prensou os lábios em suas faces molhadas. Sentiu o gosto salgado das lágrimas.

Afastou-se um pouco e Arabella o fitou procurando a repulsa nos olhos cinzentos. Viu apenas meiguice e... Baixou as pálpebras por um momento. Não se atrevia a pôr nome ao sentimento vis-lumbrado. Ao fitá-lo de relance, notou seu sorriso e isso lhe deu a coragem necessária.

— Me beije outra vez, mas de verdade — murmurou. Nando foi se achegando aos poucos, sem saber que a impaciência e um anseio imenso a dominavam.

Os lábios também tinham gosto de sal. Ao deslizar os seus sobre eles, percebeu que Arabella tornava-se menos tensa, mais maleável, até recostar-se no seu peito. Com a língua, tirou até o último vestígio de sal. Continuou a carícia numa busca. Num sinal. Numa súplica. Os lábios de Arabella entreabriram-se num convite. Numa admissão. Isto e muito mais leram-se nos olhos antes de baixar as pálpebras e se entregar a um beijo mais íntimo.

Arabella estava ansiosa pela absolvição, pela purificação que esse beijo representava. Desejava também sentir o sabor de Nando, do qual tinha tanta saudade. Por momentos sem fim, ele explorou a doçura oferecida pela boca de Arabella. Não queria se apressar, mas em algum ponto do beijo, o controle escapou sem que ambos se dessem conta. Nando apossou-se de sua boca com a mesma paixão com que lhe possuiria o corpo. Ela não se retraiu, ao contrário. A boca floresceu sob a de Nando. Provocativa, Insinuante. Responsiva. Dadivosa. Nando sentiu a excitação do corpo e recobrou parte do bom senso.

— Desculpe. Não era minha intenção cair sobre você como um animal — murmurou de encontro a seus cabelos.

— Você não fez isso. Não como...

Os olhos cor de safira anuviaram-se e Nando percebeu que ela pensava na experiência horrível.

— Quietinha — sussurrou e pôs-se a acariciar-lhe a face até a expressão sombria desaparecer.

Como se ela fosse feita da porcelana mais frágil e delicada, ergueu-a nos braços.

— Vamos. Vou levá-la embora deste lugar.

Nando carregou-a facilmente, sem sentir-lhe o peso. Enquanto atravessavam o pátio, Arabella fechou os olhos. Podia ser covardia, mas não tinha coragem de olhar para Volkonsky.

Na caleça, Nando a acomodou a seu lado, apoiando-lhe a cabeça no ombro. Quando a luz bruxuleante da fazenda já tinha ficado para trás, Arabella perguntou:

— Para onde estamos indo?

— Vou levá-la de volta para Viena.

— Viena? — repetiu ela como se fosse um lugar estranho. Não desejava nada além de continuar como estava, aconchegada ao corpo forte de Nando e embalada pelo balançar da caleça.

— Precisamos mesmo? — indagou num murmúrio.

— Não posso resgatá-la de um rapto e a transformar na vítima de outro.

— Uma pena. O campo é tão agradável. Tenho vivido em cidades há tanto tempo que gostaria...

— Gostaria? — interrompeu Nando que, nas circunstâncias, não precisava de estímulo algum para satisfazer as vontades de Arabella.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06— Eu gostaria de passar uns dias longe da cidade. E tão sossegado e lindo no campo. Veja essas

árvores a nossa volta. Preste atenção à quietude.

Prendeu a respiração por um segundo. De fato, só se ouviam o barulho das patas da egua e o ranger suave das molas da caleça. Sorriu para Nando.

— Você ainda não me conhece bem. Não se convenceu de que não sou uma cabeça oca, preocupada apenas com minha aparência no próximo baile. Vamos, admita — disse ela.

O seu sorriso era fascinante, tentador e Nando sentiu o pulso acelerar. Uma ideia louca surgiu-lhe na mente. Isso é absolutamente insano, advertiu-se, porém os lábios o traíram.

— Se está falando sério, podemos mandar um recado a Lulu avisando que você se encontra em segurança. Assim, ela não se preocupará mais.

Arabella permaneceu calada.

— Franz e eu estávamos indo visitar meu tio avô em Trautenstein — continuou Nando depressa antes que a parte sensata da mente o convencesse a mudar de ideia. — Ele mora num castelo medieval no meio da floresta. Poderíamos passar o dia lá e voltar para Viena à noite, ou quem sabe, amanhã de manhã.

Nando riu tomado por uma serenidade estranha. De repente, sentia-se despreocupado e irresponsável como quando ele e Franz, na infância, planejavam uma travessura. Algo proibido e tentador.

— Gostaria de ir até lá? — perguntou ele tocando-a de leve na face.

— Muito.

Nando a fitou em busca de confirmação.

— Tem certeza? O tio Johann é um homem respeitado e sua presença impedirá qualquer falatório maledicente sobre você.

Rindo, Arabella sacudiu a cabeça.

— Diga uma coisa, Nando. Qual de nós dois você está tentando convencer?

O castelo de Johann von Berg localizava-se no centro da mata nas montanhas. Quando a estrada estreita, cheia de curvas fechadas, terminou inesperadamente, Arabella viu-se diante de uma muralha escarpada, o acinzentado claro meio difuso na neblina surgida ao amanhecer.

Ouviu-se o arranhar de metal em madeira quando as enormes portas foram abertas por mãos invisíveis. Devagar, eles passaram pelo arco da entrada.

— Nando! — soou uma voz vigorosa vinda do outro lado do pátio.

Nando e Arabella viraram-se para ela. Uma silhueta alta. de cabelos brancos vinha-lhes ao encontro com os braços estendidos. Os dois homens abraçaram-se afetuosamente,

— Tio Johann, deixe eu lhe apresentar a srta. Arabella Douglas.

— Que surpresa agradável para um velho — disse ele ao tornar e curvar-se sobre a mão de Arabella. — É um prazer conhecê-la.

Fitaram-se numa avaliação mútua e, depois, sorriram com sinal de aprovação. Ambos descobriam estar ligados pelo amor ao homem entre eles.

Poucos minutos depois, um cavalariço era enviado com uma mensagem para Lulu e eles se sentavam diante das chamas crepitantes da lareira. Um criado serviu café aos homens e chá para Arabella, além de um prato de croissants frescos, com manteiga e geléia de damasco. Arabella não

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Page 93: Ch 006 nina beaumont olhos da inocência

Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06prestou muita atenção ao relato resumido dos acontecimentos das últimas horas dado por Nando ao tio. O resto do narcótico, o calor do fogo e a sensação de segurança começavam a lhe provocar sono. Sentou-se ereta e massageou as têmporas onde a dor tinha voltado.

— Minha querida, gostaria de repousar um pouco? — perguntou Johann.

— Desculpem se não estou sendo uma companhia muito boa. Acho que ainda me encontro sob o resto dos efeitos do entorpecente.

— Entorpecente? — exclamou Nando alarmado.

— Volkonsky me narcotizou — explicou Arabella.

— Ele fez isso? Porque não me contou?

Vendo as faíscas raivosas nos olhos de Nando, ela achou melhor não dizer mais nada. Apenas deu de ombros.

— Se eu soubesse, não teria deixado o bandido escapar sem o castigo merecido.

Embora houvesse falado bem baixo, o tom inflexível revelava o ódio sentido.

— Modere-se, meu rapaz — advertiu Johann von Berg.

Arabella acordou e pensou ter ouvido o farfalhar de roupas. Abriu os olhos e viu uma jovem com uma trança de cabelos loiros enrolada à volta da cabeça. De costas, ela colocava um vestido e outras peças no encosto de um sofazinho. Ao ouvir Arabella mexer, virou-se e fez uma reverencia.

— Frãulein. O conde Berg me mandou ajudá-la a tomar banho e se vestir quando acordasse. Meu nome é Lisl.

— Bom dia. Ou devo dizer boa tarde?

— Passa um pouco da uma, Frãulein.

Arabella espreguiçou-se. Tinha dormido mais de quatro horas e sentia-se recuperada, com a mente clara. Os braços e ombros doloridos, onde Volkonsky a tinha segurado com brutalidade, eram os únicos vestígios da noite anterior.

Enquanto lavava os cabelos de Arabella e a ajudava a tomar banho, Lisl manteve uma prosa agradável. Ao ver as manchas arroxadas em sua pele alva, sacudiu a cabeça com ar de comiseração. As roupas trazidas tinham pertencido à esposa de Johann von Berg, falecida sete anos atrás, contou ela.

— Os cavalheiros acharam que a senhorita gostaria de ir cavalgar esta tarde. Por isso, eu trouxe um costume de montaria. Caso concorde, o jovem conde Berg sugere que já desça vestida com o costume para o almoço.

Arabella imaginou o que, dessa vez, veria nos olhos de Nando.

A primeira coisa vista foi um brilho carinhoso de prazer e ela quase suspirou alto quando o viu desaparecer atrás de um sorriso cortês.

— Vejo que Lisl conseguiu transformá-la numa verdadeira Frãulein austríaca — comentou Nando ao virar Arabella a fim de observá-la por todos os lados.

Os cabelos negros tinham sido trançados e enrolados em volta da cabeça. Apenas alguns caracóis rebeldes teimavam em emoldurar-lhe o rosto.

Após o almoço, os dois saíram a cavalo. O silencio invernal da floresta era eloquente e eles não o quebraram, exceto para uma troca vaga de palavras, até avistarem outra vez a muralha acinzentada.

Ainda se encontravam sob as copas das falas antigas quando Arabella estendeu a mão e puxou a

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06manga de Nando.

— Onde você se escondeu? — perguntou-lhe tão logo ele se virou. — A tarde inteira, você não passou de um verdadeiro estranho, embora atencioso. Fez o possível e o impossível para não me tocar. Você está agindo como se esta madrugada não tivesse existido. Como se não houvesse lutado por mim, me beijado.

— Sabe por quê? — demandou Nando em tom brusco, as mãos apertando as rédeas num nervosismo óbvio.

— Não faço a. mínima ideia. Tente me explicar — desafiou ela.

Num movimento decidido, Nando abandonou a sela, tirou Arabella da sua e a apertou de encontro ao corpo. Por um longo momento, fitaram-se.

— Porque eu a quero. Eu a venho desejando há muito tempo e preciso de toda a minha disciplina a fim de não levá-la para a cama, sem me importar com as consequências.

O momento se prolongou. A tentação e o desejo cresciam dentro dele como se fossem seres vivos. Nando acabou encostando a cabeça de Arabella no peito, pois não conseguia mais fitá-la sem abrir o coração.

— Não tenho nada para lhe oferecer, Arabella. Nada além de uns poucos momentos de prazer. E você merece mais. Muito mais.

— Por que não me deixa resolver o que mereço? — perguntou ela.

— Porque eu...

Arabella observou as pupilas de Nando dilatar enquanto ele recebia, na mente, a mensagem do coração.

— Sei o que é melhor.

Porém Arabella tinha visto a verdade lampejar nos olhos cinzentos. Guardou-a bem na memória e separou-se de Nando.

Quando entraram no castelo, a mesa estava posta para o chá. Surpresa, Arabella descobriu, alguns minutos depois, não ser um simples chá, mas um completo Jau se campestre. Tratava-se de uma farta refeição que o conde Berg, o anfitrião, havia insistido para que fosse preparada em sua honra. Ela fez o possível para não desapontar o velho homem que sentia um prazer enorme em lhe oferecer um petisco atrás do outro.

— Precisa experimentar um pouco de cada coisa — insistia Johann von Berg. — Em ocasiões como esta e que dou valor a minha doceira da Boémia.

Nando mantinha-se retraído e silencioso enquanto ela conversava com o tio. Quando este os deixou a sós, a atitude dele se mostrou tão intimidativa que Arabella foi se sentar na reentrância de uma janela. Deixou o olhar se perder no topo das árvores que já sumiam nas sombras do anoitecer.

Era o mesmo sonho tido na noite anterior e Arabella lutava para não acordar, pois de certa forma, sabia que a realidade seria fria, feia e dolorosa. Mas aos poucos, tomava consciência de certas sensações. Um calor agradável a envolvia, o corpo repousava em algo muito macio, mãos a tocavam nos ombros com delicadeza extrema. Sentia-se segura. Lábios tocaram os seus e o contato aveludado provocou uma onda de exaltação pelo corpo inteiro. Soube, então, que não estava sonhando. Entreabriu os olhos e viu Nando. Ele tinha os dele fechados enquanto a beijava. Temendo-lhe a retração, caso ele descobrisse que estava acordada, Arabella manteve-se imóvel. Mas chegou o momento em que isso se tornou impossível. A respiração ficou irregular, os lábios entre abriram-se e o corpo mexeu-se para acomodar melhor o dele. Como havia temido, Nando afastou-se assustado, mas Arabella o segurou pelo pulso.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06— Ontem à noite, quando estava inconsciente, sonhei várias vezes. Eu via seu rosto, mas quando

acordava, não era você, a não ser na última vez.

Nando se manteve calado.

— Agora há pouco pensava estar sonhando e tinha medo de acordar. Então, percebi que não era sonho.

— Volte a dormir, Arabella — disse ele ao acariciar-lhe a face.

— Não.

Embora dita com suavidade, a palavra repercutiu na mente de Nando como o troar de um tambor louco. Os olhos de Arabella estavam escuros na penumbra do quarto, porém eles o hipnotizavam. Seria isso o que Ulisses sentira quando Circe o tinha atraído com seu canto de sereia?

— Você não sabe o que está dizendo.

Ainda segurando-o pelo pulso, ela se sentou.

— Não sou uma criança atrasada, Nando.

— Mas eu lhe disse...

— Eu sei o que me disse. Eu quero o que você tem para me dar. Entendeu? E quero agora.

CAPÍTULO XVIII

Nando sabia não ter o direito de fazer amor a Arabella, de se apossar de sua virgindade. Sabia ainda que o sentimento de culpa seria muito grande depois. Reconhecia isso e muito mais, porém do que valia o raciocínio lógico num momento como esse? Sentia o calor de suas mãos nas faces, a maciez de seu corpo, a carência de ambos. Isso é o amor, que Nando não admitia, davam-lhe a força, e a fraqueza, para aceitar a dádiva de Arabella.

Temerosa de que ele a iludisse no último instante, Arabella manteve as mãos em seu rosto enquanto se deitavam. Abraçaram-se e ela foi tomada por uma onda de sensações. A camisa de cambraia fina de Nando, quente com o calor do corpo. A textura sedosa dos cabelos claros em seu rosto. A fragância de tabaco, couro e virilidade. Esta última a tocava como uma carícia íntima e lhe provocava um tremor de desejo incipiente pelo corpo. Se essa noite fosse tudo o que teria, haveria de aproveitá-la para dar a Nando o que jamais entregaria a outro homem.

Nando aconchegou-lhe o rosto entre as mãos, os polegares acariciando seus lábios. O desejo fortalecia-se, mas a paixão continuava sob controle, ainda nos limites da possibilidade de retroceder.

Roçou os lábios nos dela. A intenção era de ir bem devagar, mas o gosto de Arabella, seu perfume o intoxicavam mais do que um conhaque forte. Sem se dar conta, apossou-se de sua boca com a ansiedade de um homem prestes a morrer de fome. A pressa, o desespero da posse de Nando tornaram-se de Arabella também. Abriu a boca à invasão e cada fibra de seu corpo exultou acompanhando-o, respiração por respiração ofegante, bocado por bocado guloso, toque por toque ganancioso.

Nando sentou-se puxando-a junto sem soltar-lhe a boca. Emterrou as mãos em seus cabelos e, impaciente, desfez as tranças As mechas negras tomavam vida entre seus dedos levando-o um patamar mais alto da excitação. Puxou as da nuca vergando-lhe a cabeça para trás para poder beijá-la ao longo do pescoço. Sentir o latejar da veia que batia no ritmo acelerado da dele próprio.

Ao sentir a língua provocar a veia, Arabella agarro-se aos ombros de Nando. Não sabia do que precisava com tanto desespero.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06— Por favor, Nando — gemeu.

Ele levantou a cabeça e a observou. A boca de Arabella um convite e os olhos cor de safira embaciavam-se de desejo

— Por favor o que? — provocou ele.

— Me faça amor, Nando.

A onda de ternura que o invadiu era tão estranha que ele não a reconheceu. Sabia apenas que havia alcançado um porto segui Virou a cabeça e sussurrou a resposta na palma de sua mão. Levantou-se da cama levando-a consigo. Em pé, diante um à outro, fitaram-se. Tocavam-se apenas pelas mãos. Nando puxou uma delas e a estendeu para apagar a vela, mas Arabella foi mais rápida e o impediu.

— Não, eu quero ver você. Quero ver me fazer amor.

Se essa noite fosse a única, não cederia um só momento a escuridão.

Ao ouvi-la, Nando foi tomado por nova onda de desejo, com tudo, forçou-se a se conter. Devagar, ele começou a despi-la. Sem desviar os olhos dos seus e na expectativa de ouvir por suspiros, foi tirando peça por peça, porem ela manteve-se calada! Só quando se livrou da última, desviou o olhar do seu. Ajoelhou-se a sua frente e a beijou na pele sedosa da barriga. Ouviu-a gemer ao mesmo tempo em que ela lhe puxava a cabeça de encontro si. Chamas crepitavam onde pele se encostava em pele, a bocal úmida de Nando atiçando o fogo que consumia Arabella. Beijou-a enquanto lhe acariciava-lhe os seios, levando os mamilos a desabrochar eretos.

— Você é uma feiticeira. Exerce sua magia em todo homem de quem se aproxima — murmurou ele.

— Apenas em um, em você — respondeu ela.

Num movimento rápido, Nando carregou-a de volta para a cama para, em seguida, despir-se numa pressa que beirava ao desespero.

Arabella não desviou o olhar. Extasiava-se com a silhueta esguia e forte, certa de nunca ter visto nada tão lindo. Não seria o próprio Apolo descendo de seu cairo de sol para fazer amor a uma mulher mortal?

Nando aproximou-se da cama e, de repente, ela sentiu-se acanhada. Num gesto instintivo, virou-se de lado e flexionou um dos joelhos a fim de esconder a feminilidade.

Nando segurou-lhe o rosto e a fez virar para ele.

— Arabella?

Ela estendeu-lhe as mãos. ansiosa para retribuir as carícias feitas por Nando em seu corpo. Mas a meio caminho, parou indecisa.

— Nando, me ensine. Mostre como devo tocá-lo, lhe proporcionar prazer — murmurou numa voz rouca.

Nando foi tomado por uma emoção forte. Com uma ponta de surpresa, uma parte ainda lúcida da mente identificou-a como alívio. Até então e no fundo, ele não acreditara, realmente, que Arabella fosse pura e inexperiente. Era uma alegria, imensa livrar-se da desconfiança. Segurou-lhe a mão e disse:

— Mais tarde. Eu a ensino mais tarde.

Sua expressão mostrou-se meio perdida e desapontada. Sorrindo, Nando explicou:

— O seu primeiro ato de amor,deve ser lindo, meu coração. Se me tocar, sou capaz de não poder lhe dar o que precisa.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06Meu coração. A expressão carinhosa enterneceu Arabella. Imaginou se Nando percebia o que

tinha dito. Mas então, começaram a se beijar e ela não pensou em mais nada.

Dessa vez, Nando saboreou-a mais devagar, deixando a excitação crescer aos poucos. Mas ao sentir-lhe a língua acariciar a dele, mal conteve o desejo sob controle. Ao se separarem ofegantes, as mãos de Nando desceram ao longo de seu corpo.

— Lindíssima — murmurou. — Eu estava errado. Você não é uma feiticeira, Arabella, mas uma deusa feita para ser adorada.

A voz desencadeou uma onda de calor bem dentro de seu corpo. Ela juntou as pernas e as apertou numa tentativa de apagar a sensação, mas o movimento serviu apenas para aumentá-la e não passou despercebido a Nando.

Querendo familiarizá-la mais com sua mão, ele a espalmou na cintura e começou a move-la em sentido giratório. Centímetro a centímetro, ela foi subindo até alcançar os seios. Ao aconchegar um deles, Arabella suspirou. A mão ligeiramente áspera de Nando em seu seio produzia vibrações em partes do corpo que Arabella nem tinha noção da existência. Por intuição, arqueou-se de encontro a ele. Nando voltava a tomar-lhe a boca. Entre um beijo e outro, ele murmurou:

— Diga o que quer, diga.

— Tudo. Quero tudo — respondeu ela em tom ofegante. Nando substituiu a mão em seu seio com a boca e deslizou aquela, cada vez mais para baixo, até alcançar seu ponto mais íntimo que, quente e úmido, o aguardava.

Sôfrego, Nando observou o rosto de Arabella enquanto o prazer a transportava à loucura desenfreada. A sua reação tornava a própria excitação quase intolerável, porém ele não se importava. Continuava a acariciá-la com massagens estimulantes dos dedos. Acatava cada gemido, cada movimento, cada arquejar seu como uma dádiva. Ao percebê-la tremer com os primeiros sinais do terremoto, sentiu-se tão recompensado e feliz que quase gritou.

Arabella tinha certeza de que estava morrendo. Ninguém poderia sentir prazer tão grande e sobreviver. Contudo, ela conseguiu. O prazer expandiu-se, agitou-se até o universo explodir em êxtase ofuscante.

Quando abriu os olhos, Nando lhe soma. Tentou fazê-lo também, mas os olhos encheram-se de lágrimas. Chorava de alegria. Ele não disse nada, apenas aninhou-a de encontro ao peito.

— Pensei que estivesse morrendo — soluçou ela junto a seu ombro.

— Os franceses o chamam de Ia petite morf, contou Nando.

— Mas você... — Arabella ergueu o rosto para ele e mordeu o lábio sentindo-se enrubescer. — Você não morreu a pequena morte.

Nando deu-lhe um beijo leve na testa.

— Morrerei, meu coração, dentro de você. Ela o fitou com olhar interrogativo.

— Quero levar você comigo nessa jornada — explicou Nando com suavidade. — Por isso, vamos esperar até que esteja pronta.

Permaneceram quietos por algum tempo. Então, a mão de Nando, ainda aconchegada a sua feminilidade, recomeçou as carícias. Com morosidade provocativa, estimulou, incitou e liberou, outra vez. o reservatório de emoções dentro dela. Com cuidado extremo, levou-a até quase a eclosão final, pois sabia que, quando a penetrasse, não manteria mais o controle.

Imersa no prazer, Arabella sentiu os dedos de Nando experimentando, dilatando-a. Pouco depois, ele se ajoelhava entre suas pernas e erguia-lhe o corpo para recebê-lo. Ela esperava dor, mas não sentiu nenhuma, apenas um mal-estar passageiro provocado pela distensão de músculos nunca usados antes.

Nando agora se mexia num ritmo excitante dentro de seu corpo, conduzindo o prazer cada vez 97

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06mais ao alto até alcançar o apogeu e ela gritar-lhe o nome.

O controle não o tinha abandonado. Mesmo quando se sentiu envolvido pelo aveludado de seu corpo, conseguiu retardar mais um pouco a própria libertação do desejo. Queria vê-la entregar-se ao êxtase que ele lhe proporcionava. Mas ao sentir Arabella contrair-se à volta dele num espasmo final, Nando cedeu. Mais um impulso, dois e ele estremeceu derramando a semente farta em seu âmago.

Exaustos, continuaram unidos até as batidas do coração e a respiração voltar ao normal.

Ao recuar um pouco na cama a fim de dar mais espaço a Nando, Arabella observou os lençóis e arregalou os olhos.

— Por que não sangrei? — indagou confusa.

— Não há necessidade de sangramento nem de dor, doçura. Se o homem for delicado e habilidoso, a mulher só sentirá prazer. Mesmo na primeira vez — explicou Nando.

Tinha percebido que Arabella precisava do reconhecimento de sua virgindade. Além dessas palavras, tranquilizou-a também com o olhar confiante.

— Durma agora — disse ele.

Mas Arabella sacudiu a cabeça e o fitou.

— Não quero perder um único momento desta noite. Corajosa, sorriu embora já lutasse contra uma angústia que começava a tomar lugar em seu peito. Queria segurar a noite, fazer o tempo parar, impedir a lua de cruzar o céu e o sol de se erguer acima do horizonte.

— Promete passar a noite inteira comigo, Nando, mesmo se eu dormir?

Ele a estreitou nos braços. Queria dormir, acordar e fazer amor com Arabella. E não apenas essa noite, mas para sempre.

— Fico, sim prometo — murmurou ele com determinação.

— Esta noite é nossa.

O céu tinha o tom acinzentado do amanhecer no inverno quando Arabella acordou. Estendeu a mão para tocar Nando, mas sentiu a cama fria a seu lado.

Ele estava em pé, à janela, com o corpo tenso. Ela quase podia ver-lhe a mente cheia de recriminações contra si próprio. Talvez contra ela também. Não permitiria isso, resolveu ao levantar-se.

Nando sobressaltou-se ao sentir-lhe a testa apoiar-se nas costas e as mãos na cintura, pois submerso nos pensamentos, não tinha ouvido sua aproximação.

Tentou se afastar, porém Arabella o segurou. Bem devagar, encostou-se nele, suspirando de satisfação com o contato da pele de ambos. Nando fez nova tentativa para escapar, porém ela passou os braços por sua cintura.

— Não adianta, não vou deixar. Está me ouvindo? Não vou deixar.

Nando tentou ignorar a textura acetinada de sua pele na dele, ou o roçar dos mamilos eretos nas costas, ou ainda sua respiração morna no ombro.

— Não vou deixar você transformar a noite passada num erro. Vire-se para mim, Nando e me encare. Diga, olhando para mim, que foi um erro. Que está arrependido. Eu o desafio.

Nando a atendeu, mas a sua beleza, tão pura e natural por ter acabado de acordar, o deixou estonteado. Baixou as pálpebras depressa, a única defesa contra o convite inocente dos olhos cor de safira. Já havia acumulado culpa suficiente na consciência, por um momento de paixão durante a noite, para arranjar mais em plena luz do dia.

Arabella viu a expressão de autocrítica, de desolação e acariciou-o na pele, desejando apenas 98

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06oferecer conforto e não o excitar.

— Eu sabia o que estava fazendo. Nando. Você não me seduziu. — Orgulhosa, Arabella ergueu o queixo. — Se houve sedução, foi de minha parte. E caso alguém deva sentir remorso agora de manhã, esse alguém sou eu. — Confiante, aproximou-se bem até roçar-lhe o corpo que começava a despertar. — Fique sossegado, pois eu não sinto o mínimo remorso.

As acusações que Nando vinha se fazendo desapareceram como se nunca tivessem existido. Tomou Arabella entre os braços e apertou-a de encontro ao corpo. Ela intoxicava-lhe o sangue. Ele daria a vida, até a própria alma, para lhe fazer amor outra vez.

— Como eu já disse, você é uma feiticeira, Arabella.

Ela ansiava por lhe dizer que não exercia magia. A sua varinha de condão era o amor por ele. Contudo sabia que, nesse dia, só poderia lhe oferecer o desejo e o corpo. O amor teria de continuar secreto.

O corpo de Nando queimava, marcando-os como ferro em brasa e Arabella exultava por ele não conseguir controlar o desejo por ela.

— Você prometeu me ensinar, a me mostrar como lhe provocar prazer — murmurou ela.

Ele não respondeu e manteve-se imóvel. Arabella inclinou a cabeça para trás e o fitou.

— Vai me forçar a implorar, Nando? Sabe muito bem que eu farei isso.

Embora em tom de humildade, as palavras continham um tom de orgulho que não passou despercebido a Nando. E foi a esse orgulho, mais do que ao desejo mútuo, que Nando se curvou ao erguer Arabella nos braços a fim de cumprir a promessa.

O primeiro dia de 1815 mostrou-se agradável, sem grandes atividades e Arabella sentiu-se satisfeita em aceitar o que a vida lhe oferecia.

Contudo naquela noite, havia uma ponta de desespero todas as vezes em que Nando a procurava para fazer amor. Ambos sabiam que o amanhecer traria o fim do interludio mágico.

Antes do amanhecer. Nando, acordado, observava Arabella. Ela dormia serena, com apenas um leve sinal de seu temperamento na linha voluntariosa dos lábios.

Embora um realista cético, deu-se ao luxo de imaginar como seria acordar a qualquer hora da noite, pelo resto da vida, para ter e tocar a moça adorável deitada ao lado. Vê-la transformar-se em mulher, conceber seus filhos. Envelhecer junto a ela e um dia, entregar-se ao sono eterno a seu lado.

Mas como todos os sonhos, os de agora não passariam disso. Ela era muito jovem, tão cheia de alegria. Como poderia arriscar essa vivacidade unindo-a a ele, um homem incapaz de lhe dar o amor generoso sem o qual ela feneceria?

Nando acordou Arabella ao amanhecer, ela o recebeu em seu corpo, sôfrega e desesperada, pois apesar de ter-lhe visto o amor nos olhos, sabia que não era o suficiente para ele a querer per -manentemente. E ela o amava muitíssimo, a ponto de não desejar prendê-lo contra a vontade. Pela última vez, arqueou o corpo de encontro ao dele e aceitou o que o momento lhe oferecia.

Foi uma viagem silenciosa para Viena. Tanto Nando como Arabella tentavam encaixar os dois últimos dias no tecido emaranhado de suas vidas. Quando a torre alta da catedral de St. Stephan apareceu, a visão tirou Arabella de sua abstração. Com sentimento de culpa, deu-se conta de haver esquecido Poldi completamente. Com toda a certeza, Nando não fazia ideia de que ela tivesse instalado a menina cm seu palácio.

— Tenho algo para pedir a você, Nando. Um favor muito grande, na verdade.

O impacto causado pelas palavras de Arabella foi automático. A experiência dele com mulheres que pediam favores, após algumas noites na cama, era bem grande. A ternura que ainda sentia, começou

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06a evaporar-se.

— Do que se trata? — perguntou ele com uma sensação desagradável.

— Você se lembra da menininha na praça do mercado? Aquela que livramos de uma sova, semanas atrás?.

— Lembro, sim — respondeu Nando com uma certa cautela.

— Enquanto você estava fora, fui procurá-la.

— Você o quê? Não sabia como era perigoso? Eu não lhe recomendei para ser cuidadosa? Foi sozinha? — demandou ele.

Sem se importar com o rompante de Nando. Arabella relatou a história inteira. A confiança crescia à medida que falava, pois os comentários frequentes de reprovação não eram contra o que tinha feito e sim por haver-lhe ignorado as instruções.

— Pois é. Agora Poldi está instalada na ala dos criados, aprendendo as letras e a costurar. Pela primeira vez na vida, ela não tem frio, fome e medo.

— Não me olhe como se eu fosse a própria encarnação do diabo! Imaginou, por um segundo, que eu fosse capaz de atirar a menina na rua?

A irritação de Nando tinha muito mais a ver consigo mesmo e às conclusões erradas do que com a história de Arabella. Ela deu de ombros.

— Achei que podia depender de sua boa vontade, mas também que você não ficaria muito satisfeito com o fato de Poldi estar morando em seu palácio.

— A sua confiança nas pessoas ainda vai deixá-la em maus lençóis. Você levou em conta os perigos de pegar uma criança de rua? — indagou Nando.

— Considerei, sim. Poldi e eu esclarecemos tudo, logo na primeira noite.

Nando riu.

— Se a prataria da família tiver sumido, vou pôr a culpa em você.

Como escurecia cedo no inverno, as sombras já baixavam sobre a cidade quando o portão do palácio Berg foi aberto para a caleça entrar no pátio. Com a intenção de garantir a Poldi a segurança de seu futuro, Arabella dirigiu-se logo à ala dos criados, acompanhada por Nando.

Já bem perto do quarto da menina, ele lhe bloqueou a passagem. Ergueu o rosto e deparou-se com o semblante frio de um desconhecido.

— Precisamos conversar, Arabella. Você sabe disso.

Ao interpretar as palavras e a expressão de Nando, o coração de Arabella começou a se despedaçar..

— Está bem. Conversaremos daqui a pouco — respondeu. Desviou-se dele antes que os olhos se enchessem de lágrimas. Com esforço, Nando controlou-se para não tomar Arabella nos braços e apagar a mágoa estampada nos olhos cor de safira. Porém não se atrevia a tocá-la, agora que já tinha criado coragem para falar sobre o futuro de ambos.

Poldi recebeu Arabella com uma exclamação entusiasmada que morreu ao vê-la acompanhada.

— O conde Berg veio lhe dizer que você pode ficar aqui. O olhar sério de Poldi foi de um adulto ao outro.

— Tem certeza? — murmurou ela virada para Arabella. Nando aproximou-se das duas.

— Sim, Leopoldine, você pode ficar.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06Arabella pôs o braço sobre os ombros de Poidi e a menina aconchegou-se a ela.

Constrangido e com uma ponta de inveja, Nando avisou: — Vou esperá-la no vestíbulo, Arabella. Ao chegar lá, ele pôs-se a andar de um lado para o outro. De vez em quando, dava um murro na palma da mão. Podia oferecer tão pouco a ela, dizia-se. Não conseguiria nem começar a retribuir o afeto incondicional dado com tanta facilidade por Arabella. Apenas na cama, ele satisfazia uma parte de suas necessidades. Por Deus, ele era muito egoísta. Não suportava a ídéia da separação. Poderia impedí-la? indagou-se. Tinha o direito de pedir a Arabella para aceitar um marido com tantas cicatrizes na alma? Muito antes de avistá-lo, Arabella ouviu o eco das botas de Nando no assoalho de mármore. O coração disparou. O semblante dele estava sombrio, os lábios, apertados.

Ele não a queria. Ou não desejava querê-la, o que dava na mesma. Teria ela visto, de fato, amor em seus olhos? Ou teria vislumbrado apenas o que necessitava com tanta ansiedade? Afinal, nenhuma palavra fora dita. Ela não tinha prova alguma, exceto a lembrança dos olhos cheios de amor e ternura.

A depressão ameaçou engolfá-la e Arabella esforçou-se para erguer os ombros. Ela desligaria Nando de qualquer obrigação. Dessa forma, manteria as recordações sem traços de amargura.

A atitude de Nando amenizou-se um pouco ao ouvi-la se aproximar.

— Muito bem. O que achou de sua protegida?

— Ela está progredindo bastante. — O sorriso de Arabella não se refletiu nos olhos. — Como você disse, Nando, precisamos conversar.

— Claro

Olhou-a de soslaio, pois estranhava seu tom de voz e a falta de expressão no rosío. Abriu a porta de uma sala e a conduziu ao interior.

— Posso oferecer-lhe algo para beber? — ofereceu.

— Não, obrigada. Acabei de tomar uma xícara de chocolate com Poldi.

Incapaz de fitá-lo, Arabella vírou-se para a janela.

— Vou mandar acender as velas — disse Nando ao notar a penumbra do anoitecer:

Mas Arabella o impediu. Precisava falar antes de perder a coragem

— Por favor, não se incomode. O que tenho a dizer não levará muito tempo.

Uma sensação pesada de desânimo dominou Nando e ele teve vontade de gritar para interrompê-la, beijá-la até que perdesse o fôlego. Todavia, não conseguiu se mexer.

— Sei muito bem que você não desejava que isso acontecesse entre nós, Nando, e eu...

— Tem certeza de querer dizer isso, Arabella? — Nando a interrompeu, não suportando aceitar a sentença em silêncio.

— Eu devo. — Com desespero, Arabella tentava bloquear as emoções da face. — Você não tem obrigação alguma para comigo. Quero que saiba disso.

Como era corajosa, pensou Nando. E altaneira.

— E se eu quiser ter obrigações? — perguntou ele com suavidade.

Arabella acautelou-se. Que tipo de jogo Nando fazia agora?

— Você não quer. E caso queira, não passa de uma rcação extemporânea provocada peio sentimento de culpa, o qual, você não precisa ter.

Ao notar-lhe o tom firme. Nando franziu a testa.

— Você parece muito segura do que se passa em minha mente.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06— Você facilita muito isso para mim e, pelo jeito, eu não.

— Está me recriminando?

— Não, Nando, apenas declarando um fato.

De repente ela se sentiu exausta. Ah, meu amor me deixe acabar logo com isso, desejou. Aproximou-se de Nando e pôs a mão em seu braço.

— Não vamos nos debater.

Ele sentiu Arabella escapando-lhe e, em pânico, contraiu a garganta até quase se sufocar. E isto que você quer, seu idiota, gritou-lhe a voz da mente. Ela está lhe dando a liberdade. A ideia, contudo, não o consolou.

Sem esperar, teve um lampejo. Arabella não tinha lhe dito que o amava. Ela havia permitido que lhe fizesse amor, mas nem uma vez confessara amá-lo. Nem no auge da paixão, nem nos momentos de maior ternura. Que ingenuidade de sua parte concluir que ela o amava. Uma dor estranha começou a atacá-lo em ondas implacáveis e ele, um tanto alheio, admírou-se de como os instintos continuavam a funcionar apesar da fúria desencadeada em sou íntimo. Tirou a mão de Árabella de seu braço e a segurou pelos ombros.

— O que você quer, Arabella?

Era carência nos olhos cinzentos? Desejo? Amor? Ela fechou os seus para não ver. Tendo tomado uma decisão, não podia arcar com mais confusões.

— Nada — murmurou lembrando-se bem do momento em que lhe tinha dito querer tudo. — Não quero nada.

As mãos de Nando deixaram seus ombros. Arabella cambaleou um pouco e só, através de muito esforço, não caiu sem aquele amparo.

— Você está me dispensando? — perguntou ele entre atónito e incrédulo.

Arabella ignorou a súplica escondida na voz de Nando, tentando se convencer tratar-se apenas de dúvida. Ele não podia acreditar na sua intenção de abrir mão da possibilidade de prendê-lo com um pouco de esperteza.

— Para se dispensar é preciso ter-se primeiro. Eu nunca o tive, Nando.

— E o que significaram esses dois dias? — Nando semicerrou os olhos, pois a desconfiança voltava a alfinetar-lhe a mente. — Ou você queria apenas meus serviços? — acrescentou sem conter a raiva.

Os nervos irritados de Arabella não aguentaram mais e lhe recuperaram um resto da energia perdida.

— Pare com isso! Como se atreve? Desde que nos conhecemos, você vem me dizendo que não é o homem para mim. Que não poderia me dar o que eu preciso. Agora que resolvo acreditar, você se ofende?

Nando sentiu todas as emoções abandoná-lo como o sangue esvaindo-se por um ferimento, deixando-o vazio. Fitou Arabella.

— Acredite no que quiser.

Ela quase se aproximou de Nando, mas antes de fazê-lo, ele se virou para a janela. Para não mostrar as lágrimas que já corriam pelas faces, ela saiu depressa da sala.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06CAPÍTULO XIX

Arabella havia temido o retorno à embaixada da Inglaterra. Receava as perguntas que a forçariam a mentir. Mas os Castlereagh tinham voltado mais cedo de Praga e a confusão da chegada fora aumentada com notícias sobre um tratado de paz, terminando a guerra da Inglaterra com a antiga colónia no Novo Mundo. Graças a isso, deram-lhe pouca atenção. Um baile em comemoração tinha sido anunciado e todos na embaixada, sem exceção, estavam envolvidos nos preparativos frenéticos.

Grata pela distração, Arabella canalizou as energias em ajudar lady Castlereagh no envio de convites, arranjo de flores e um sem fim de detalhes. Mas não importava o quanto se ocupasse, as emoções e pensamentos não a deixavam em paz.

Nas noites de insónia, ela revivia cada momento na penumbra do anoitecer na sala do palácio Berg. Lembrava-se das palavras e dos olhares, da incredulidade e desolação no semblante de Nando quando lhe dissera não querer nada dele. De tanto refletir, chegara à conclusão de haver cometido um grande erro. Tinha se forçado na vida de Nando e destruído todas as barreiras erguidas por ele. Após o êxito, havia pisoteado a sua vulnerabilidade da pior forma possível, como se fosse movida pela melhor das intenções.

Lcmbrava-se como Nando dizia não poder lhe dar nada e, agora, imaginava se ela não transformara isso em realidade.

Atordoada de medo, atravessou o pátio do palácio Berg na manhã seguinte. Seus passos no calçamento de madeira ecoavam aos ouvidos como o estalar de chicotadas.

Ao subir os degraus da frente, tinha bem noção do comportamento inadequado. Embora fosse discreta, já bastava vir ao palácio quase todo dia a fim de ver Poldi.

Tendo, uma vez. ouvido Lulu comentar casualmente que os aposentos de Nando ficavam no terceiro andar, Arabella dirigiu-se à escadaria após atravessar o vestíbulo, onde não se via ninguém nessa hora matinal.

Lá em cima, o corredor escuro também estava deserto. Ela olhou para a fileira de portas sem saber a qual se dirigir. Então, uma delas se abriu na outra extremidade e um criado surgiu carregando uma bandeja. Como não desejasse ser vista. Arabella escondeu-se atrás de uma estátua de mármore.

Ao passar por ela, o criado resmungava aborrecido, a bandeja cheia de garrafas vazias. Tão logo ele desapareceu escada abaixo, dirigiu-se à porta pela qual tinha saído. O coração disparava com a certeza de que Nando estava atrás dela.

Nando estendeu a mão em direção ao copo de cristal, cheio até a metade de vinho Borgonha, mas recolheu-a achando que não valia o esforço. Afinal, não conseguia se embriagar a ponto de não sentir mais nada. Com um suspiro de frustração, inclinou a cabeça para trás.

Sem ver, fixou o olhar no teto entalhado em madeira escura. Há quanto tempo vinha bebendo? conjeturou distraído. Uma noite? Duas? Uma semana? Não se lembrava. Também não tinha importância, pensou amargurado. A única coisa significativa era o fato de a razão que o motivava a beber continuar vívida dentro dele. A dor que ele tentava amortecer com garrafa atrás de garrafa continuava afiada como um estilete.

E como a dor que não cessava nunca. Arabella continuava ali. Podia ver-lhe a imagem em todo canto, mesmo quando fechava os olhos. A voz e o riso delicado ecoavam em sua cabeça. Até o seu perfume, uma mistura de lírio do vale e pele morna, não o abandonava.

Uma batida cadenciada na porta empurrou a dor para trás dos olhos. Então uma voz, no corredor, registrou-se em algum lugar entre as imagens confusas na periferia da consciência. A sua voz. Sacudiu a cabeça. Impossível, não podia ser. Tratava-se apenas da lembrança gravada na mente. Ou talvez ele

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06tivesse conseguido, finalmente, se embriagar. Inciinou-se para a frente e se levantou, sem notar, sequer, que derrubava a cadeira para trás.

Diante da porta e antes de perder a coragem, Arabella tentou abri-la. Estava trancada. Bateu, mas não obteve resposta. Insistiu, mais duas vezes. Nada.

— Nando, sou eu, Arabella. Preciso falar com você. Abra, por favor.

Ficou tensa ao perceber movimento do outro lado e, logo depois, o baque de algo caindo. Repetiu:

— Sei que você está aí, Nando. Abra, por favor. — Esquecida do orgulho, acrescentou: — Eu te amo, Nando. deixe eu falar com você.

Trôpego, Nando dirigiu-se à porta. A cabeça latejava, mas pelo menos, a dor era algo concreto a que se agarrar e não como a voz sem corpo iludindo-o. Não tinha entendido as palavras, porém notara a tristeza no tom de Arabella. Talvez ela fosse real e não fruto da imaginação estimulada pelo vinho.

Já ia girar a chave quando ouviu o ruído de passos afastando-se pelo corredor. Se fosse real, já tinha ido embora.

Automaticamente, Arabella tomava parte na festa. Escutava, sorria, fazia comentários apropriados e deixava se levar à pista de dança para uma valsa ocasiona!.

Recostada em uma coluna, a princesa Katharina Bagration seguia os movimentos de Arabella com o olhar míope. Logo se vingaria, tinha certeza.

— Esqueceu nosso trato, minha querida? — indagou Volkonsky ao se aproximar.

— Não, mon ami. Aliás, tenho estado muito ocupada por causa dele.

— Fazendo o quê?

— Angariando informações. E também espalhando outras tantas — contou ela.

— Explique-se melhor, ma chère.

— Um bom exemplo. A criança que a srta. Douglas instalou no palácio Berg e a quem vai visitar todos os dias.

— Grande coisa. Qualquer pessoa, a troco de uma moedas, poderia descobrir isso.

— Mas a história não é ainda do conhecimento geral, meu caro Niki. Estou me esforçando para que o maior número de pessoas fique sabendo sobre as idas diárias da sua inglesa ao palácio Berg. Naturalmente, omito que sejam para ver a menina. Dessa forma, se ela perder a reputação quando você agir, ninguém vai querer defender-lhe a honra

Volkonsky fitou Katharina com um novo respeito.

— Lamento se a subestimei, minha cara Katya.

— Esse não foi um erro cometido só por você mon ami — respondeu ela e se afastou.

— Boa noite, Arabella. Posso falar um minutinho com você? — Embora há semanas não visse Nando, a não ser à distância, ela teve de se esforçar para falar com naturalidade. Incrível essa reação, reconheceu Arabella.

— Claro — respondeu ao enrolar as mãos trémulas no xale de cashmere, pois não queria exibir a fraqueza.

Cerimonioso, Nando curvou-se. Ela nem lhe oferecia a mão, pensou ressentido. Relanceou o

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Page 105: Ch 006 nina beaumont olhos da inocência

Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06olhar por seu rosto, à procura de algum sinal que o estimulasse a confessar os sentimentos, mas viu apenas a expressão fria, embora atenciosa.

— Eu queria lhe contar que o futuro de Leopoldine está garantido. Tomei as medidas necessárias para um casal adotá-la — contou Nando.

— Como assim? Pensei que você...

— Como tenho título de nobreza, a lei me proíbe de adotá-la — interrompeu ele.

— Curioso, mas compreensível. Deve ser para garantir a pureza da linhagem, imagino — comentou Arabella.

— Bem, ela vai ser adotada por um criado meu, Menzel, e a mulher. Naturalmente, providenciarei os recursos para garantir a segurança financeira da menina. O padrasto já assinou os papéis abrindo mão dos direitos e deveres. Não espero que haja problema algum com o caso.

— Ah, muitíssimo obrigada! Fico sensibilizada com sua generosidade, Nando.

O sorriso de Arabella iluminou-lhe o rosto e ela quase estendeu as mãos para tocá-lo. Conteve-se diante de sua expressão fria. Ele não fazia isso a fim de agradá-la e sim para cumprir a promessa feita. Talvez para um conde, fosse questão de honra, refletiu baixando os olhos.

Seu sorriso o ofuscou como o sol do meio-dia, mas desapareceu, tão depressa que achou tê-lo imaginado. Não fora Arabella quem batera em sua porta, concluiu Nando. Tinha sido um fantasma criado por sua mente enevoada pelo vinho. Não poderia ter sido essa criatura fria e distante quem lhe havia suplicado para falar com ela. Também, não era a mesma mulher que se inflamara de paixão entre seus braços.

Arabella forçou-se a fitar os olhos de Nando. Por alguns segundos, procurou uma brecha no gelo, qualquer coisa que a ajudasse a vislumbrar o calor e a ternura vistos um dia. Não havia nada.

— Mais uma vez, obrigada — murmurou ao retirar-se.

Preocupada, Lulu observou Arabella esmigalhar a terceira bolacha sem comê-la. Seu chá já tinha esfriado quando ela tomou um gole e fez uma careta.

— Depois de ter estragado não sei quantos biscoitos deliciosos, não quer me contar o que a está afligindo? — perguntou Lulu, o tom aborrecido disfarçando a apreensão.

Arabella respirou fundo, mas não criou coragem para se abrir com a amiga. A conversa com lady Castlereagh nessa manhã já tinha sido um golpe do qual ainda não se recuperara. Lulu tomou-lhe a mão, porém ela a puxou depressa.

— Por favor, não demonstre compaixão porque eu não vou suportar.

— Não acha que já está na hora de confiar em mim, Arabella?

— Você sabia que é verdade o que andam dizendo por aí?

— Ah, então você descobriu?

— Por que não me contou, Lulu?

— Bem, não acreditei nos boatos e você andava muito triste.

— Pois é, existe uma certa verdade. Tenho sido vista entrando no palácio Berg quase todos os dias.

Em tom inexpressivo, relatou a história de Poldi como já o tinha feito, de manhã, a lady Castlereagh.

— Subestimei a eficiência dos espiões de Viena. Mas não tem mais importância, pois logo vou embora daqui. Lorde Wellington chega na próxima semana para substituir lorde Castlcreagh e, em

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06seguida, voltamos para Londres. Isso resolve o problema.

— Nando já sabe?

Como sempre que lhe ouvia o nome, Arabella sentiu o coração pesado. Continuaria assim, ou a mágoa melhoraria com o passar do tempo?

— Que vou embora? Não. Mas não existe razão alguma para o fato o interessar. Desde a volta de Trautenstein, falei com ele apenas uma vez. Foi uma conversa rápida e educada sobre Poldi.

— Conte o que aconteceu entre vocês dois.

— Não posso, Lulu.

Apesar da negativa, Arabella ansiava abrir-se com a amiga, livrar-se do peso de tudo. Guardava segredo não apenas do que se passara entre ela e Nando, mas também de algo mais. Estava grávida.

Com um pontapé, Nando afastou uma pasta de couro do caminho e recomeçou a andar de um lado para o outro. Por Deus, odiava os deveres de cão de guarda e o príncipe Schwazenberg sabia. Mesmo assim, ele o tinha designado para acompanhar a czarina Elizabeth numa viagem de recreio a Budapeste.

Franz observava o patrão andar como um animal enjaulado. Enquanto lhe arrumava as malas esperava que o conde se acalmasse um pouco para poder falar, porém como isso não acontecesse, resolveu arriscar.

— A condessa Lulu esteve aqui ontem.

— E daí? Pensa que é muito esperta. Como me recusei a falar com efa, acha que pode me forçar a ouvi-la através de você. Está muito enganada. Aliás, os dois.

Persistente, Franz continuou como se não tivesse ouvido o patrão.

— Ela me contou várias coisas que o senhor deveria saber.

— Posso imaginar. Mas nào estou interessado.

— Nem mesmo sobre os boatos a seu respeito?

— Boatos?!

— A srta. Douglas tem sido vista entrar aqui no palácio quase todos os dias. As pessoas tiraram a conclusão lógica.

Nando estremeceu ao ouvir o nome. Pensativo, parou junto à janela. Não importava o quanto tentasse, Arabella não lhe saía do pensamento. O raciocínio, a lógica, as experiências amargas não serviam de nada.

Que grandessíssimo tolo havia sido. Tivera a oportunidade de possuir um tesouro precioso, mas hesitara por tanto tempo que ele tinha desaparecido como uma miragem no deserto.

— Os Castlereagh vão voltar para a Inglaterra dentro de duas semanas — prosseguiu Franz. — E Arabella Douglas irá com eles como a amante descartada do conde Fcrdinand Berg.

Nando ficou paralisado. O coração trovejava no peito expulsando o desespero e a sensação de derrota que o atormentavam há semanas. Agora, ele a teria, disse a si mesmo. Arabella não se atreveria a recusá-lo e eles se casariam. Haveria de trancá-la no quarto e lhe fazer amor até aquela expressão fria desaparecer para sempre de seu rosto. Até os olhos cor de safira voltarem a brilhar. Até não lhe existir outro homem exceto ele.

— Ouviu o que lhe disse?

— Ouvi, sim, Franz.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06Nando virou-se e o criado surpreendeu-se. O semblante sombrio das últimas semanas fora

substituído por outro de determinação, quase somdente. Depressa, ele afivelou a bainha da espada na cintura, apanhou a capa e o chapéu. Já chegava à porta quando o criado o advertiu:

— Temos de estar em Hofburg dentro de duas horas.

— Eu sei. Encontro você lá.

Nando esforçava-se para ficar parado. A conversa com lorde Castlereagh o tinha deixado nervoso. Como tutor temporário de Arabella, o inglês havia demonstrado satisfação com seu pedido de casamento e aceitado, mas expressara dúvida quanto a tutelada concordar também.

— Pode lhe parecer estranho, meu caro conde, mas minha mulher afirma que Arabella está ansiosa para ir embora de Viena e prefere não vê-lo mais.

— Tenho certeza de haver um mal-entendido, senhor. Se me der permissão, falarei com a srta. Douglas.

Apesar de uma certa apreensão, Nando continuava confiante.

Grande ironia, pensou Arabella ao descer a escada. Há um mês, teria exultado ao ir ao encontro de Nando para receber o pedido de casamento. No entanto, sentia-se como se fosse ao próprio enterro. Poderia haver coisa pior do que se recusar a coisa mais desejada do mundo? indagou-se.

Entrou na sala e, sem fitá-lo, dirigiu-se até onde ele estava.

— Nao me casarei com você.

— Ah, é? — disse Nando, o tom de indiferença disfarçando a confusão.

— Isso mesmo..

— Pode me dizer o motivo?

— Não preciso de um.

— Seria delicado se me explicasse.

— Não tenho a mínima intenção de fazer isso, nem de ser delicada — explodiu Arabella com raiva.

Tal reação a aliviava um pouco, pois era sua única defesa. Sem ela, acabaria esquecendo que o pedido de Nando bascava-se apenas no sentimento de honra.

A raiva de Arabella deixou Nando animado. Se ela existia. sinal de que não havia indiferença. Aproximou-se e pôs as mãos em seus ombros.

— Vai se casar comigo, Arabella, não importa o quanto lute. A tentação de concordar, sem pensar nas consequências, era imensa. Mas não podia permitir que a nova vida em seu corpo viesse a ser tocada pela infelicidade e recriminações resultantes de uma união baseada em sentimento de culpa. Sem resistir, fitou Nando. Seria a última vez.

— Pode me dar uma boa razão para me casar com você, Nando? Ele quase declarou o amor, porém a cautela habitual refreou a vontade.

— Trata-se de uma atitude honrada de nossa parte.

O ódio e a mágoa dominaram Arabella. Num gesto brusco, tirou as mãos de Nando de seus ombros.

— A sua honra precisa ser satisfeita a qualquer custo, não é? Vá para o inferno, Ferdinand von Berg! Você levou a vida de soldado, apesar de se enojar com a carnificina, só para respeitar a honra de sua família! Assumiu a responsabilidade financeira de Poldi para honrar uma promessa! E agora, quer se casar comigo para salvaguardar a nossa honra! Como se atreve a me propor isso?

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06Num acesso de fúria, pôs-se a esmurrá-lo no peito.

Por um instante, Nando manteve-se impassível. Mas de repente, segurou-lhe o rosto com firmeza entre as mãos.

— Você acredita mesmo nisso tudo?

— Sim — respondeu ela, porém ao ver-lhe o desespero, murmurou: — Não.

Na fração de segundo antes de baixar a boca sobre a sua, Nando vislumbrou a luta das emoções nos olhos cor de safira. Viu a raiva e a mágoa transformar-se em paixão e amor. Seria mesmo amor? Mais tarde teria a resposta.

Forçou-a a abrir os lábios e invadiu-lhe a boca com a língua revelando toda a raiva, mágoa e amor. Deu e tomou. Em sua doçura, reconheceu o amor. Arabella podia manter a indiferença no olhar, mas jamais conseguiria esconder a ternura da boca.

Ansiosos, possuíram-se concedendo tudo e ao mesmo tempo, nada. Não foi com suavidade que a respiração e o sabor de ambos misturaram-se num só.

Quando se separaram, arfavam ofegantes, os lábios trémulos e úmidos.

— Acha esta uma boa razão? — murmurou Nando ao apertá-la de encontro ao corpo para que lhe sentisse a excitação. — Ou esta?

Arabella arregalou os olhos ao constatar como o corpo a tinha traído e ela, a si mesma. Apesar de sentir-se alarmada, o contato com Nando provocava uma turbulência em seus sentidos difícil de ser suportada. Ainda com as mãos no peito dele, empurrou-o, mas em vão.

— Estarei de volta dentro de duas semanas, Arabella. Então, você será minha mulher. — Beijou-a outra vez. — Minha mulher.

Quando Nando se foi, Arabella permaneceu em pé no meio da sala. Ainda sentia o sabor de café, tabaco e paixão na língua. O odor de couro, cavalo e virilidade continuava em suas narinas. E no corpo, havia a chama acendida por ele. Cuidadosamente, registrou cada sensação na mente. Elas teriam de lhe valer pelo resto da vida.

CAPÍTULO XX

Encolhida no assento do vão da janela, Arabella observava o movimento das pessoas passando sob o arco gótico da igreja Minoriten do outro lado da rua. Suas forças tinham chegado ao fim. Os Castlereagh, apesar de bondosos, ignoravam sua recusa de se casar com Nando e a tratavam como uma criança teimosa que acabaria obedecendo.

Tinha avaliado todas as possibilidades e continuava sem solução. Só sabia que precisava deixar Viena antes da volta de Nando.

A porta abriu-se a suas costas sem aviso e uma voz irritada ecoou.

— Se a montanha não vai a Maomé, Maome vai à montanha. — Arabella virou-se e viu Lulu se aproximar como um general pronto para entrar em batalha.

— Esse negócio de me evitar acabou, como também acabou minha paciência. Não vou mais me manter em silêncio, nem ser diplomática ao falar. Não saio daqui enquanto você não me contar tudo e eu ver o que posso fazer para ajudá-la — declarou Lulu ao sentar-se a seu lado.

Temendo as lágrimas, Arabella não respondeu.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06— Por favor — murmurou Lulu tocando-a na face. A atitude carinhosa da amiga rompeu-lhe as

defesas.

— Ah, Lulu, Nando teima em se casar comigo, mas pelo motivo errado. Só por questão de honra. Eu não suportaria ver o que ele talvez sinta por mim se transformar em ódio. Nando acabaria achando que eu armei uma situação para forçá-lo a um casamento indesejado.

As lágrimas, retidas até então, começaram a correr pelas faces.

— As vezes, acordada durante a noite, eu me convenço a aceitar qualquer coisa só para poder ver, ouvir e tocar em Nando. Mas não posso.

— Por que não, pelo amor de Deus? A maioria dos casamentos se contenta com bem menos — disse Lulu, perplexa.

Arabella respirou fundo.

— Estou grávida.

— Grávida? E pretende esconder isso de Nando? Como pode fazer isso com ele? — perguntou Lulu cheia de indignação.

— Não posso criar essa criança num casamento que não conta com os fatores mais importantes.

Lulu sacudiu a cabeça. — Você quer tudo, Arabella. Não acha estar exigindo demais?

— Pode ser. Mas não posso agir de outra maneira.

— Sinto muitíssimo, pois gosto de vocês dois.

— Foi sincera quando disse que queria me ajudar, Lulu? — perguntou Arabella falando depressa antes de perder a coragem.

— Farei o que estiver ao meu alcance.

— Então, me ajude a sair de Viena antes de Nando voltar. De tão apavorada, não consigo raciocinar com clareza aqui. Em outro lugar, tenho certeza de encontrar uma solução para o resto de minha vida.

Por um longo tempo, Lulu fitou os olhos de Arabella. Finalmente, fez um gesto afirmativo com a cabeça.

— Temos uma propriedade de campo na Alta Áustria. A casa é bem confortável e você poderá ficar lá o tempo que quiser.

— Em que posso ser útil a vossa graça, príncipe Voíkonsky? — perguntou Mettcmich em tom amável, embora considerasse os russos uns bárbaros.

Volkonsky, nervoso, preferiu não se sentar na cadeira oferecida pelo anfitrião. A feiticeira inglesa, de cabelos negros, o estava deixando fora de si. Irritava-se não só com sua rejeição como também consigo próprio. O corpo não cessava de desejá-la, não importava quantas mulheres tivesse.

— Quero lhe pedir um favor, príncipe Mettemich.

O chanceler esperava tratar-se de algo fácil de ser conseguido. Não faria mal ter mais um favor para ser cobrado mais tarde. A um gesto seu, o russo continuou:

— Preciso ter a certeza de que o conde Ferdinand Berg não voltará a Viena nos próximos cinco dias e apreciaria sua ajuda para tanto.

— Berg está numa missão oficial acompanhando a sua czarina, mon cher príncipe, A volta dele depende apenas da vontade de sua alteza.

— Nós ambos sabemos que a czarina poderá permanecer mais uma semana em Budapeste, ou

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06voltar bem antes. Não quero passar os próximos dias sobressaltado — impaciente, Volkonsky res-mungou.

— O que deseja, exatamente, que eu faça?

— Quero que tire Berg de circulação. Uma palavra sua será suficiente.

— Vossa graça me honra. Meus poderes não são tão extensivos como imagina — disse Mcttemich.

— Sei muito bem até onde eles vão.

— Não diga. Pois então, tomarei a liberdade, mais tarde, de lembrá-lo de minha colaboração.

— Quando agirá?

— Preciso apenas do tempo necessário para um mensageiro chegaria Budapeste.

— Otimo! — exclamou Volkonsky. — Eu sabia que vossa graça não me desapontada.

Após ele sair, Mettcmich esfregou as mãos com sensação de triunfo. Arranjos bem feitos como esse eram muito de seu agrado. Volkonsky lhe deveria um enorme favor. A inglesa vagabunda e idiota teria o que merecia. E Berg receberia a lição de que tanto precisava.

Nando sorveu o último gole de vinho e maldisse a morosidade do tempo. Durante o dia, enfrentava as obrigações sociais insípidas e, nas noites de insónia, analisava os destroços em que ele havia transformado a vida.

Por Deus, como pudera ser tão estúpido e cego? censurava-se. Havia pedido Arabella em casamento como se ela fosse uma escrava em vez de lhe dizer que seria sua mulher amada pelo resto da vida. Escondera-se atrás daquela conversa boba sobre honra, sem ter coragem de lhe confessar o amor sentido.

Quando começara a amá-la? Nando imaginou. Quando o simples desejo de possuí-la tinha se transformado na carência afetiva? Quando ela havia se tornado tão vital quanto o ar que respirava?

Foi tomado por um forte ressentimento ao dar-se conta de como estava sob o poder de Arabella. Ao mesmo tempo, sentia-se contente por não haver lhe confessado seu amor. Caso soubesse, ela poderia tornar sua vida um inferno.

A música cigana, melancólica e sensual, começou e as mesas foram afastadas a fim de dar espaço a uma dançarina.

Nando pôs-se a observá-la. Era atraente com suas curvas bem feitas e a cabeleira negra. Os pés descalços, com sininhos nos tornozelos, batiam no chão de terra batida da czarda, ao compasso da música. O ritmo foi aumentado, num crescente frenético e a cigana, rodopiando e retorcendo-se, o acompanhava com facilidade.

A rapidez, a energia, a intensidade da música e a dança pagã distenderam-se, atingiram o auge e subitamente, cessaram. Um silêncio, carregado como uma nuvem tempestuosa antes do explodir das faíscas, envolveu o ambiente. A cigana o quebrou com um grito rouco enquanto se ajoelhava com os braços estendidos como se recepcionasse um amante.

Aplausos dos oficiais eclodiram no ar. Risos e palavras gritadas irromperam, cada homem tentando sobrepujar o outro em seus convites lascivos à cigana. Enquanto observava a cena em silêncio, Nando fez um gesto ao taverneiro para lhe trazer outra jarra do vinho vermelho escuro, das planícies húngaras.

A cigana levantou-se devagar e percorreu a taverna, duas vezes, com olhar mortiço. E então, passo a passo, foi se aproximando da mesa de Nando. Tomou a jarra de vinho das mãos do taverneiro e curvando-se, serviu o copo. Largou-a na mesa com um baque abafado, endireitou-se, pôs as mãos nos quadris, o tempo todo sem desviar os olhos dos dele, e ficou à espera.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06Nando não deu atenção às palavras de estímulo, embora meio invejosas, dos colegas oficiais. Só

depois de tomar um gole do vinho, percorreu os olhos pelo corpo da cigana.

Ela possuía a beleza de uma rosa aberta, mas não devia ter mais de dezesseis anos. O seu odor, uma mistura de perfume adocicado, transpiração e fumaça, era grosseiro. Mas as curvas do corpo convidavam carícias e os lábios vermelhos prometiam prazeres.

Talvez ela fosse do que precisava essa noite, pensou Nando ao beber mais goles de vinho. Se fechasse os olhos, poderia imaginar que as curvas atraentes e os cabelos sedosos pertenciam a outra pessoa. Quem sabe ela não conseguiria aplacar a tristeza e a raiva que o consumiam desde a rejeição de Arabella.

Voltou a observar o corpo da cigana, esperando a manifestação do desejo, mas não sentiu nada. Fitou-a e resmungou ao bater com o copo na mesa.

— Verschvind. Suma daqui!

Mas a cigana, em vez de se afastar, tomou-lhe a mão e começou a passar os dedos pelas linhas da palma.

O contato irritou Nando levando-o a puxar a mão.

— Desgraçada! Já disse para sumir daqui! Me deixe em paz! A cigana sorriu.

— A paz não é sua companheira, meu amigo.

Nando ergueu a cabeça e deparou-se com olhos negros e brilhantes.

— Qual é o problema, Berg? Bebeu demais para dar conta aí da moça fogosa? Se quiser, eu me incumbo dela — perguntou e ofereceu uma voz pastosa ao lado.

Com olhar ameaçador, Nando calou o homem.

— Há uma mulher de cabelos negros em sua vida — disse a cigana numa voz grave de contralto.

— Não tem uma maneira mais engenhosa de me convidar para sua cama? — indagou Nando em tom sarcástico.

— Ah, você não é para mim, mas para a outra, eu sei. O que tem entre as pernas pertence àquela que lhe tira o sono mesmo quando está deitado sozinho.

Ridículo, pensou Nando embora o pulso acelerasse e ele não pudesse desviar o olhar do da cigana.

— Você não a estava procurando, mas a encontrou — disse ela com olhar vidrado e perdido em algum ponto distante. — Também não procurava o que tem no coração, mas está lá. Para sempre. Não vai ser fácil para você. Tome cuidado. Existe perigo. Para você. Para ela. Para o bebé.

Respirando depressa, ela se calou.

De repente, alguém a puxava de perto de Nando.

— Já que não se interessa por ela, Berg, eu a tiro de suas mãos.

Sem dar atenção ao homem atrás da cigana, ele se levantou e a segurou pelo pulso.

— Que bebe? De quem vem o perigo? Vamos, diga, sua maldita. De quem?

A cigana estremeceu e voltou a focalizar os olhos no rosto de Nando.

— Você está me machucando.

— Conte o que viu — disse ele em tom áspero, ao afrouxar os dedos.

— A visão sumiu.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06De repente, Nando foi puxado para trás pela gola da túnica. Antes de poder se virar, ouviu uma

voz declarando:

— Eu o prendo em nome de sua majestade, o imperador. Ele se soltou e virou-se depressa, todos os instintos em estado de alerta. Num gesto automático, levou a mão ao cabo da espada. Dois guardas corpulentos e bem armados, postaram-se de ambos os lados dele. Embora os ignorasse, Nando baixou a mão, pois não havia sobrevivido nove anos de guerra afrontando riscos inúteis. Antes de falar, fez uma avaliação rápida do homem magro, vestido de preto, diante dele.

— Não diga! Posso lhe perguntar sob que acusação?

Não sentia medo. Pelo menos, não do homem raquítico que contava com os guardas para lhe garantir o cumprimento das ordens. Mas as palavras da cigana tinham lhe provocado uma certa inquietação.

— A acusação de altercação em público é suficiente por enquanto.

Com expressão de indiferença mascarando a preocupação, Nando perscrutou o semblante do outro.

— Por enquanto? Tenho certeza de que pode ser mais específico.

— O conde Berg será informado dos detalhes mais tarde. Nando deu um passo para a frente, mas foi imediatamente imobilizado pela truculência dos guardas.

Percebendo não ter escolha, ele desembainhou a espada e a entregou ao homem magro, de roupa escura. A calma aparente não deixava transparecer a fúria íntima. Quem estaria por trás disso? Com que propósito?

Com as palavras da cigana martelando-lhe a mente, atravessou devagar a czarda, os guardas perto o suficiente para ele sentir o cutucar de metal nas costas.

CAPÍTULO XXI

Devagar, Arabella percrustou o olhar pelo quarto já despido de seus pertences. Tudo tinha sido colocado em grandes malas e valises, enviados por ela na frente, ao anoitecer, sob os cuidados de Jeanne.

Tantos sonhos, pensou ao olhar o aposento pela última vez. Tantas esperanças. Tudo dispersado e largado para murchar como flores após uma festa.

Arabella estava triste, mas não se arrependia de nada. Tocou a barriga e sorriu. Apesar dos desencontros da vida, a sorte tinha sido magnânima ao lhe dar um filho de Nando.

Na ponta dos pés, desceu pela escada de serviço. Ao passar pela porta estreita, apressou-se, pois a carruagem já a esperava. Com os olhos nublados pelas lágrimas, ela não viu que tanto o cocheiro como o cavalariço não usavam a libré dos Thurheim.

Quando o veículo, após um trajeto curto, fez uma curva fechada e parou em seguida, Arabella pensou em indagar a razão ao cocheiro, mas não teve tempo. A portinhola abriu-se e o príncipe Volkonsky pulou a seu lado.

— Está um tanto pálida, minha querida, porem adorável como sempre Ravissante — disse ele ao afagar-lhe o rosto.

— Como se atreve? — perguntou ela afastando-lhe a mão. — Desça já! — ordenou ao tentar abrir a porta, mas Volkonsky a impediu.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06— Se fosse você, eu me mostraria mais amável, ma chère. Desta vez, o seu querido conde Berg

não está por perto para socorrê-la. Aliás, ninguém.

— Do que está falando, seu bárbaro? — demandou Arabella com mais confiança do que sentia. — É só eu gritar por socorro.

— Não vai adiantar, minha querida. Mas tente, se quiser.

Arabella olhou pela janelinha e viu dois cossacos, em posição de sentido, ao lado da carruagem. Virou-se para Volkonsky.

— Onde estão os criados dos Thurheim?

— A caminho do palácio Dietrichstcin — informou ele sorridente. — Uma pena você ter saído antes da hora marcada.

Arabella ficou tensa e começou a se sentir alarmada. Teimosa, ergueu o queixo.

— Eu ficaria muito grata se me dissesse o que está acontecendo, príncipe Volkonsky — disse ela pronunciando o título com desdém.

— É muito barato se obter informações em Viena. Eu só tive de mandar minha carruagem mais cedo, antes da outra.

— Do que vai adiantar isso? Acha mesmo que o fato de eu não aparecer na casa dos Thurheim vai passar despercebido?

— De forma nenhuma. Por isso mesmo, minha querida, você vai escrever uma carta à condessa informando-a ter mudado de planos — explicou ele em tom afável.

— Jamais farei tal coisa! — protestou Arabella em tom ríspido. — Deixe eu descer imediatamente — exigiu ao mover-se para a porta outra vez.

Volkonsky a segurou pelos ombros e puxou-a para junto do peito.

— Vai fazer sim, Arabella, acredite. — Enterrou os dedos em sua carne. — É incrível o que um ser humano faz quando se usa um pouco de força. — Os dedos a apertaram mais. — Só um pouco.

Arabella podia sentir-lhe a respiração morna no rosto e foi tomada pela náusea.

Todavia, tão de repente quanto a tinha agarrado, as mãos de Volkonsky afrouxaram. Com um pontapé, abriu a portinhola e atirou Arabella para fora. Antes de atingir o solo, ela foi apanhada por um cossaco enorme e barbudo.

Arabella não chegou a gritar, pois logo a mão do homem tapava-lhe a boca. Pelo jeito, ele obedecia uma ordem vociferada por Volkonsky em russo. O cossaco a carregava como se fosse uma pluma e embora ela soubesse que as cordas vocais se distendiam, apenas um gemido distante e abafado ecoava em sua garganta.

Subiram dois lances de escada. A porta da armadilha se fechava sobre ela, reconheceu ela tomada pelo pânico. Começou a luta, mas o cossaco segurou-a com mais força.

Minutos se passaram antes de ser atirada num sofá. Com esforço, sentou-se e percorreu os olhos à volta. Horrorizada, viu que ela e Volkonsky estavam a sós no aposento. O ruído da chave girando na fechadura ecoou em sua mente como um trovão ensurdecedor. No mesmo instante, tentou ficar em pé, porém as perna não a sustentaram e ela voltou a se sentar.

Devagar, ele se aproximou e Arabella, lutando contra o medo, endireitou o corpo de encontro ao encosto do sofá.

— Esperei tempo demais por isto — declarou ao sentar-se a seu lado. — Acabou-se a espera.

Segurando-lhe a cabeça, começou a beijá-la. Desesperada, Arabella tentou virar o rosto, mas o

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06movimento serviu apenas para aumentar a fricção dos lábios dele nos seus. Com brutalidade, abriu-lhe a boca e encheu-a com a língua. Ela o segurou pela garganta e o medo, transformado em pânico, deu-lhe forças que não imaginava ter. Apertou os dedos o quanto pôde.

Voíkonsky soltou-a, mas os olhos brilhavam de luxúria e expectativa. Ele estava satisfeito com sua reação, percebeu Arabella. Caso sucumbisse ao terror, não teria escolha senão submeter-se ao homem que a olhava como se fosse um petisco preparado especialmente para satisfazer-lhe a gula.

Com esforço sobre-humano, respirou fundo numa tentativa de se acalmar e elaborar um plano de defesa. Mas antes de formular qualquer pensamento coerente, Volkonsky voltou a puxar-lhe a cabeça a fim de beijá-la. Levantou as mãos a fim de lutar, porém imobilizou-as a tempo, lembrando-se de que isso o estimulava. Quando a boca tomou a sua, forçou-se a amolecer o corpo completamente. As mãos dele apertaram-lhe a cabeça com força e quando já começava a se censurar pela suposição errada, ele a largou.

— Pensei que você tivesse mais espírito de luta — comentou Volkonsky ao avaliá-la com olhar petulante.

Passo a passo e com grande esforço, Arabella foi se controlando. Dava-se conta de ser essa a sua única oportunidade. Tinha de usar de artimanha com ele, num jogo de gato e rato, até encontrar uma maneira de escapar dali, concluiu quando os pensamentos adquiriram uma certa ordem.

— E eu pensei que usasse de mais sutileza, príncipe Volkonsky. Algumas mulheres preferem não ser tratadas como presas de guerra. Sou uma delas — disse com urna imitação de sorriso malicioso.

— Logo você descobrirá de quanta sutileza sou capaz, minha querida. Mas agora, as prioridades — declarou Volkonsky ao levá-la, pelo braço, até uma escrivaninha. — Vai escrever o que eu mandar.

Ciente de não ter escolha, Arabella registrou as palavras ditadas pelo russo. Ao vê-lo enfiar a carta no bolso, ela preparou-se para novo ataque. Para surpresa sua, Volkonsky apenas a cumprimentou com ironia.

— Vou deixá-la repousar por enquanto, ma chère. Tenho de providenciar uns negócios importantes. Mas voltarei para impedir que se aborreça aqui sozinha.

Da porta, ele virou-se e acrescentou:

— A única chave deste quarto está no meu bolso. E é uma grande distância deste andar até o solo. Estamos entendidos?

Arabella assentiu com a cabeça, embora a mantivesse bem erguida.

No momento em que a porta se fechou, ela pôs-se a procurar algum meio para fugir do quarto.

A cigana dançava. Os pés descalços batiam tão depressa no chão de terra batida que não se podia mais distingui-los. Os cabelos caiam-lhe no rosto enquanto ela rodopiava cada vez mais perto até sua saia roçar-lhe as pernas, mas Nando não conseguia segurá-la.

A música parou de repente e o silêncio assaltou-lhe os ouvidos. Graciosa e maleável, a cigana abaixou-se a seus pés. Estranho, o seu odor não era mais grosseiro e sim perfumado, uma mistura de lírio do vale e pele morna. Num gesto sensual, ela afastou os cabelos do rosto. Não tinha mais olhos negros e sim azuis e tão escuros como safiras preciosas.

— Cuidado. Existe perigo. Para você. Para ela. Para o bebé — murmurou ela com o rosto bem perto do seu.

Nando viu-se erguer a mão a fim de segurá-la, mas a imagem a sua frente começava a desvanecer. Tinha de vê-la novamente, perguntar-lhe o que mais sabia. A visão, entretanto, desaparecia

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06no ar.

Ele se sentou depressa. Os olhos arregalados não viam nada. Devagar, ele se deu conta do frio que gelava as gotas de transpiração na testa. Sentiu o cheiro fétido da cela e ouviu o ciciar da palha na enxerga em que se sentava. Sacudiu a cabeça a fim de clarear a mente, apoiando-a, em seguida, num dos joelhos erguido.

A cela não passava de um buraco escuro, sem janela e ele já havia perdido a noção do tempo. Quantos dias tinham se passado desde que fora trazido de volta a Viena? indagou-se. Três. quatro? Sem a luz do sol, não tinha como contá-los. Com que frequência tinha dormido? Quantas vezes o prato de comida horrível fora passado por baixo da porta? Por mais que se esforçasse, os dias continuavam uma ideia disforme de desespero.

E por que razão tinha sido preso? Quem assinara a ordem? Poucas pessoas possuíam o poder de prender um ajudante-de-ordens do príncipe Schwazenberg. Por que não fora interrogado? As indagações martelavam-lhe a mente e, como não pudesse encontrar respostas, o medo irracional o atormentava. E as palavras da cigana o perseguiam não só enquanto estava acordado como também durante o sono.

Instintivamente, sabia que Arabella corria perigo. Tantos enigmas. Quem seria o bebé? Outro órfão a quem Arabella queria proteger? Quem teria ainado esse esquema perverso, vingativo? Metternich, Volkonsky, Katharina? Cada possibilidade era pior do que a outra e ele não podia tomar providência alguma.

O ruído de passos soou nas pedras do lado de fora da cela e Nando ergueu a cabeça ao ouvir a chave girar na fechadura. Num lampejo de esperança, levantou-se da enxerga. Talvez um dos carcereiros tivesse resolvido dar ouvidos a suas ofertas de ajudá-lo.

A porta abriu-se e a cela foi inundada pela luz de uma tocha. A entrada de Volkonsky, bem vestido e sorridente, fez a raiva de Nando, controlada por tantos dias, explodir.

— Você? Eu deveria saber que estava por trás disto!

Sem a cautela e o autocontrole há muito dissipados, Nando pulou para a frente, não se importando com os dois homens à estatura avantajada ao lado do russo,

A um sinal de Volkonsky, os indivíduos atiraram Nando, com violência desnecessária, de encontro à parede. A dor, forte e precisa, foi quase bem-vinda após esses dias de escuridão e temores nebulosos. Com as mãos apoiadas nos tijolos irregulares, Nando se levantou.

— Nao acredito que você tivesse coragem de mandar seus homens para fora e tentar me bater com as própria mãos, não é Volkonsky?

— De fato não. Tenho algo melhor para fazer do que sujar minhas mãos com você, Berg.

Volkonsky olhou para as luvas brancas a fim de esconder a irritação. Depois de três dias nessa cela fétida, Berg não tinha perdido a coragem, nem a arrogância.

— Passei por aqui apenas para informá-lo dos últimos boatos.

— Bem posso imaginar o que tem para me relatar — vociferou Nando compreendendo,de repente, a lógica motivadora de sua prisão. — Você e Katharina encontraram mais boatos sujos para espalhar sobre Arabella Douglas? Planejando uma última investida, você quis ter certeza de que eu não voltaria a Viena, inoportunamente, para frustrar-lhe os esforços?

Volkonsky sorria. Embora demonstrasse calma, Nando podia sentir seu nervosismo acompanhado de uma firmeza que lhe provocava um arrepio de medo.

— O seu poder de dedução é excelente, meu caro Berg, até certo ponto. Mas armei um plano excelente que vai um pouco mais longe.

Volkonsky prendeu os polegares no cinto e fitou Nando. Exasperava-se com seu silêncio.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06— Não vai me perguntar do que se trata?

— Nada o deterá de me contar, tenho certeza — respondeu Nando com desdém.

— Viena está fervendo com os boatos do desaparecimento da srta. Douglas. Dizem que a ideia de se casar com você lhe era repulsiva. Por isso, ela fugiu.

— O quê? O que fez com ela? — gritou Nando ao pular outra vez para a frente. — Você ficou louco? Eu o matarei!

Os dois homens interceptaram-lhe os passos e, brutalmente, o encostaram à parede.

— Ela é minha hóspede — continuou o russo como se não tivesse sido interrompido. — Contra a vontade, para ser franco. Mas vou me esforçar para mudar-lhe a disposição. Caso não consiga... — Deu de ombros.

Tomado pelo desespero e contra todas as chances, Nando lutou para se livrar dos dois capangas que o seguravam. Empurrou um para o lado e virou-se para o outro em quem infligiu um golpe de joelho entre as virilhas.

Desesperado e consciente de ser esta a única oportunidade de escapar, Nando seguiu em frente. Já havia se apossado da espada de Voikonsky e a tinha a poucos centímetros de seu peito quando um dos homens o prendeu pelo pescoço, vergando-lhe a cabeça para trás. Os dedos afrouxaram e a arma caiu ao chão. Ajudado pelo outro, o capanga tornou a prensá-lo na parede.

Por um momento, Nando fechou os olhos e tentou encher os pulmões de ar. Quando os abriu, viu Voikonsky fazer um gesto para o homem da tocha erguer-lhe a espada. As mãos do russo tremiam, mas isso não lhe serviu de consolo.

Com algum esforço, Voikonsky ergueu a cabeça e fitou Nando

— Fico satisfeito em ver que alguma coisa pode afetar seu sangue-frio, Berg.

Nando sentiu uma leve hesitação na voz de Voikonsky, mas não pensou em tirar vantagem disso. Em pânico, não encontrava saída para a situação. De repente, uma ideia lhe ocorreu. Talvez conseguisse convencer Voikonsky a não tocar em Arabella caso se humilhasse.

— Não lhe faça mal, Voikonsky, eu suplico.

— Suas palavras são música a meus ouvidos, Berg. Mas tenho mais o que fazer do que ficar aqui ouvindo-as

— Não, por favor — insistiu Nando. — O que vai ganhar com isso, exceto um momento de prazer? Nem mesmo satisfação, pois saberá sempre que se apossou do que não lhe era dado. — Por um momento, percebeu-lhe a hesitação e prosseguiu: — Além disso, mesmo a nossa sociedade corrupta é contra o estupro praticado em mulheres respeitadas.

— Ah, Berg, aí é que você se engana. A reputação da srta. Douglas já não vale mais nada. Pensa mesmo que alguém acreditará no uso da força?

Nando respirava com dificuldade. Por um momento, avaliou o oponente.

— Mas você sempre saberá, não é verdade? — perguntou em voz mansa.

— Maldito! — Voikonsky virou-se para a porta enquanto gritava aos homens por sobre o ombro: — Tirem-lhe o anel com o brasão. Não se importem se tiverem de lhe cortar o dedo para conseguir!

Louco de ódio, saiu da cela, Amaldiçoado Berg! Devia ter mandado os capangas lhe dar uma sova até fazê-lo perder os sentidos e o impedir de lhe roubar o prazer da expectativa.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06CAPÍTULO XXII

Sentada na pama, Arabella trançava os cordões das cortinas para fazer uma corda. Já estava bem comprida. Durante os três dias de cativeiro, tinha descoberto que a mente ocupada com os planos de fuga e os dedos, na confecção da corda, evitavam o pânico.

Tinha vasculhado cada canto do quarto à procura de possíveis armas. Encontrara um vaso, uma garrafa fechada de champanhe e um pesado tinteiro de bronze. Sem dúvida, logo Voikonsky se cansaria do jogo de gato e rato, que lhe estimulava a vaidade, e se apossaria dela. Para isso a tinha trazido até ali. Poís estaria pronta para recebê-lo, tentava se convencer.

Não sabia onde encontrava forças para encenar o jogo com Voikonsky. Suportava-lhe as carícias nojentas enquanto mantinha o corpo largado, sem reação alguma. Até agora, sua tática vinha dando certo, mas não seria por muito tempo mais. O pior momento tinha sido quando ele atirara o anel de Nando, com o brasão, em seu prato de sobremesa. Ao saber que ele também era prisioneiro de Voikonsky, chegara às raias da loucura. Nem sabia como tinha se controlado e não gritado para que ele a possuísse de uma vez por todas em troca da liberdade de Nando.

— Você nem parece se importar com o fato de Berg estar se consumindo numa cela por sua causa, minha querida — Voikonsky tinha reclamado.

Depressa, Arabella havia escondido as mãos trémulas e dado de ombros.

— O que esperava que eu fizesse, príncipe?

— Sei lá. Gritado, chorado, feito uma cena intercedendo por ele. — Tiritado, a tinha puxado de encontro ao peito. — Eu devia te-la possuído naquele primeiro dia. Fui muito tolo ao me deixar levar pela ideia de sedução. Primeiro instigada por você e, depois, por Berg. Logo, Arabella — acrescentara atirando-a de volta à cadeira. — Minha paciência acabou e não vou esperar muito mais.

Isso tinha acontecido na véspera e agora, ouvia passos no corredor. Depressa, correu esconder a corda sob a pilha de travesseiros.

A porta abriu-se com violência e, depois de trancá-la, Volkonsky encostou-se nela enquanto guardava a chave no bolso. Os olhos brilhavam excitados.

— Chegou a hora, Arabella.

Com morosidade deliberada, começou a se aproximar. O corpo balançava um pouco e os passos estavam meio trôpegos.

Ele estava embriagado, percebeu Arabella. Embriagado, excitado e disposto a se satisfazer. Volkonsky estendeu o braço a ela, ao dar um passo para trás, prendeu o pé na bainha da saia e caiu. No instante seguinte, Volkonsky deitava-se sobre ela. Desesperada, Arabella esqueceu o jogo e começou a lutar. Rindo, ele a fitou.

— Engraçado como a confiança se esvai quando a gente se vê em posição de desvantagem, não é? Você pensou que me refreava, minha querida, mas fui eu quem se deixou refrear.

A voz de Volkonsky era suave, quase como a de um amante, mas os lábios curvavam-se num sorriso cruel.

— Hoje, contei a Berg que já a tinha possuído. A expressão dele valeu a mentira.

Engolfada pelo desânimo e tendo perdido a vontade de lutar, Arabella fechou os olhos.

— Olhe para mim — ordenou Volkonsky ao percorrer-lhe o corpo com a mão. — Porque agora, Arabella, vai ser verdade. Em um minuto, vou lhe abrir as pernas e a mentira vai se transformar em verdade.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06Ele baixou a cabeça a fim de beijá-la, mas o hálito forte de conhaque a enojou. Virou a cabeça e

começou a lutar. Volkonsky, soergueu-se apoiado num dos cotovelos. Tentando controlá-la, escorregou uma das pernas para cima e prensou o joelho em seu abdome. De repente, Arabella ficou absolutamente imóvel.

— Não — murmurou baixinho. — Não, por favor, não me machuque.

A sua imobilidade súbita e a súplica conseguiram o que a luta e o orgulho não tinham obtido. Estupefato, ele a fitou.

— O seu joelho. Está me machucando.

As mãos dele afrouxaram e Arabella rolou para longe, encolhendo as pernas dobradas sobre o ventre, num gesto instintivo de autodefesa. Continuando no chão. Volkonsky não se mexeu para impedi-la e ela, apoiada nas mãos, foi deslisando para trás. Finalmente, teve forças para se ajoelhar e, enquanto acalmava a respiração, cruzou os braços sobre a barriga.

Volkonsky sacudiu a cabeça como se acabasse de acordar e quisesse clareá-la. Com olhar penetrante, observou Arabella.

Ela recuou para trás, mas os dedos do pé encontraram um obstáculo. O tinir de vidro contra metal soou em seus ouvidos, como um trovão, imobilizando-a. Mas Volkonsky, ainda esparramado no chão, caso tivesse ouvido, não deu importância.

Num movimento súbito, ele ergueu-se de joelhos. A expressão de perplexidade tinha desaparecido e se o canto da cama não estivesse a suas costas, Arabella teria recuado mais. Os lábios de Volkonsky encresparam-se num ríctus pavoroso e, em qualquer outra situação, ela teria rido e lhe dito que ele parecia a encarnação de um cachorro louco.

— Você está grávida! — gritou ele. — Vamos, confesse! Tem o folho de Berg na barriga!

Pela primeira vez durante o cativeiro, Arabella sentiu o domínio absoluto do pânico. Ele amortecia-lhe as sensações, paralisava seus movimentos e a impedia de raciocinar.

— O maldito filho do cão! Com toda aquela conversa hipócrita sobre honra! Eu queria ser o primeiro a possuir você! Eu queria ter seu sangue de virgem no meu corpo. — gritou ele fora de si. Caiu para a frente e apoiou-se nas mãos.

— Você não vai ter esse filho. Arabella. Juro que vou copular com você até o seu corpo cuspir fora essa criança!

Volkonsky, firmado nos joelhos e nas mãos, começou a se arrastar em sua direção. Estava cada vez mais perto. O amortecimento e a paralisia de Arabella foram desaparecendo, embora o medo persistisse. Seu filho corria perigo. Seu filho e de Nando.

Com a mão para trás, ela segurou o gargalo da garrafa de champanhe, escondida entre as dobras do reposteiro da cama.

Volkonsky já se encontrava a distância de um braço, porém Arabella forçou-se a esperar um segundo mais.

Ele ocupou o espaço inteiro de sua visão. Arabella desviou-se o quanto pôde a fim de dar o maior impacto ao braço e, com a garrafa bem segura entre os dedos, o levantou num arco amplo. Arabella observou o desenrolar da cena como se fosse espectadora e não, participante. Viu a garrafa atingir o lado da cabeça de Volkonsky, ouviu o estalar surdo de vidro contra osso e outro mais claro quando a garrafa caiu ao chão sem se quebrar. Viu os olhos de Volkonsky arregalados de surpresa, a mão levada à têmpora por onde o sangue escorria, o corpo cambalear algumas vezes antes de, finalmente, tombar desfalecido. Aliviada, Arabella fechou os olhos.

Os segundos correram. Ela não fazia ideia de quantos já haviam passado. Ainda de joelhos,

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06respirou fundo. Estava bem. Ela e o bebê.

Todavia, continuava prisioneira. Porquanto tempo Volkonsky ficaria desacordado? Precisava aproveitar a pequena vantagem conseguida.

Correu pegar a corda escondida sob os travesseiros. Depois de amarrá-lo, as mãos às costas e os pés, ela percebeu a necessidade de uma mordaça. Tão logo voltasse a si, Volkonsky gritaria por socorro. Deus do céu, por que não tinha pensado em todos os detalhes? Olhou à volta e apanhou um guardanapo na mesa, mas precisava de algo para prendê-lo bem. Só então, lembrou-se dos lençóis. De posse de um começou a cortá-lo em tiras com o auxílio de uma faca, também da mesa de jantar. Elas serviriam ainda para amarrar o cossaco, caso precisasse se livrar dele.

Depois de amordaçar Volkonsky, passou um pedaço de corda pelo pescoço dele, deu um nó e prendeu as pontas no pé de uma armário pesado. Estava frouxa o suficiente para ele não se enforcar, porém não lhe dava liberdade de se arrastar pelo chão. Quando terminou, tinha as roupas encharcadas de transpiração. Quase chegava a lamentar a violência praticada, porém não se esquecia de que o russo desgraçado quase a tinha violentado em várias ocasiões e mantinha Nando preso.

Faltava agora só encontrar a chave no bolso de Volkonsky. Remexeu vários até encontrá-la e sentiu náusea por ter de tocá-lo enquanto o fazia.

No maior silêncio possível, Arabella preparou-se para o novo teste de suas forças. Colocou uma cadeira, ao lado da porta, na qual subiu a fim de ficar em posição vantajosa. A garrafa de champanhe, que serviria de arma novamente, estava bem firme na mão. Abaixou-se um pouco, colocou a chave na fechadura e abriu a porta. Estava atrás dela e não podia ser vista de fora. Ansiosa, ficou à espera.

Só então, lembrou-se do chapéu de pele que fazia parte do uniforme do cossaco. Teria de bater a garrafa um pouco abaixo dele a fim de obter o resultado desejado.

O homem estava demorando muito. Já devia ter aparecido para verificar por que a porta estava aberta. Ouviu passos e um resmungar baixo. Estaria ele desconfiado de algo?

A Tolha da porta abriu-se mais e bateu na cadeira sobre a qual ela estava. Pés se mexeram. Depois, fez-se silêncio absoluto. O olhar de Arabella seguiu, em linha reta, da porta até Voikonsky. Sem querer, um suspiro escapou-lhe dos lábios. Muito depois, ela deu-se conta de que esse ruído a tinha salvado. Atraído por ele, o cossaco rodeou a folha da porta e Arabella. num movimento reflexo, atingiu-lhe a base da cabeça com a garrafa de champanhe. Ela se encontrava em verdadeiro estado de exaustão quando acabou de amarrar o cossaco como tinha feito a Voikonsky. Os dedos tremiam ao trancar a porta do quarto com os dois dentro. Afastou-se pelo corredor e apesar do medo, desceu a escada. Tinha a capa bem enrolada no corpo, a gola levantada cobrindo-lhe a parte inferior do rosto. Rezando para não cruzar com Katharina, alcançou a rua finalmente.

CAPÍTULO XXIII

Aproveitando-se de todas as sombras e reentrâncias de portas, Arabella andava o mais depressa possível. Tinha de encontrar Nando, pois Volkonsky iria até ele tão logo fosse encontrado e solto.

Ela rodeou a catedral de St. Stephan e tomou a Wollzelle, rumo à casa dos Thurheim. A certa altura, ouviu o som de passos correndo a suas costas e apressou os seus. Teve a impressão de que alguém chamava seu nome. Se conseguisse chegar até Lulu, estaria a salvo. Mas então, tropeçou numa pedra solta do calçamento e cambaleou.

Mãos a seguraram antes de cair. Chegou a abrir a boca para gritar por socorro, mas uma escuridão horrível a envolveu.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06Ao voltar a si um pouco depois, embora a ansiedade persistisse, foi tomada por uma sensação

curiosa de segurança. Após abrir os olhos e ver o semblante preocupado de Lulu, entendeu a razão.

— Arabella, chérie, você está bem? Por onde andou? Pode me contar o que aconteceu? Tenho andado louca de aflição.

— Volkonsky. — Arabella passou a língua pelos lábios secos. — A carruagem dele veio me buscar antes da sua e eu não percebi. Ele me manteve trancada num quarto do palácio Palm.

Fechou os olhos. Em poucas palavras, tinha descrevido um pesadelo de três dias.

— Ele lhe fez algum mal?

Arabella sacudiu a cabeça e quase conseguiu sorrir.

— Não sei como, mas eu o controlei até o finzinho. Quando tentou me atacar, eu o golpeei com uma garrafa de champanhe cheia. Bem merecido, não acha? — perguntou com um laivo de bom humor.

Jeanne apareceu com uma camisola pendurada no braço e os olhos marejados de lágrimas.

— Vamos, minha queridinha. Vou ajudá-la a se deitar.

— Não! — protestou Arabella agarrando-se a Lulu. — Volkonsky mandou prender Nando. Não sei como, nem onde. Mas preciso descobrir depressa e tirá-lo de lá.

— Ah, enfão foi isso. Viena está fervendo com os boatos sobre a prisão de Nando. Ele foi detido em uma czarda em Budapeste por um civil acompanhado de dois homens em uniforme. Mas ninguém sabe quem deu a ordem e para onde Nando foi levado.

— Tenho de descobrir — afirmou Arabella ao pôr as pernas para fora do sofá onde se deitava.

— Minha amiga, pense um pouco. O que você pode fazer? — disse Lulu ao tomar-lhe as mãos entre as suas.

— Naturalmente você conhece alguém que poderá descobrir onde Nando está. Por favor, Lulu. Você precisa me ajudar. E também mande buscar Franz. Talvez ele saiba de alguma coisa.

Depois de Lulu prometer tomar as providências, Arabella consentiu que Jeanne a ajudasse a tomar banho e lhe lavasse os cabelos. Já estava vestida e pronta quando a amiga reapareceu acompanhada de Franz. Este sabia do paradeiro de Nando.

— Você poderia me emprestar dinheiro, Lulu? De alguma forma, eu lhe pagarei de volta. Vou tentar subornar os guardas para que soltem Nando.

— Arabella, isso é muito perigoso, uma verdadeira loucura! — protestou Lulu assustada. — Como vai agir? Entrar na prisão, atirar umas moedas aos carcereiros e sair com Nando?

— Tem de haver um jeito e eu vou encontrá-lo. Preciso. Caso não tente, jamais viverei em paz comigo mesma.

— Pelo menos aguarde um certo tempo. Eles não podem mantê-lo preso indefinidamente. Logo a história será esclarecida, tenho certeza. Iremos procurar Schwazenbcrg, Mcttcmich ou qualquer outra autoridade.

— E se não for esclarecida e ele continuar preso? O que é um cadáver a mais entre tantos outros? Eu preciso fazer isso, Lulu. Por favor, entenda! — argumentou Arabella.

— Vejo que sua teimosia vai além da razão. Tome cuidado, minha amiga — disse Lulu em voz meiga.

Grata e em silêncio, Arabella apertou-lhe a mão. Em seguida, levantou-se pronta para sair.

Uma hora mais tarde, Arabella encontrava-se diante da construção sombria, de pedras cinzentas, tão grande que ela precisou virar a cabeça do ombro esquerdo para o direito a fim de vê-la de ponta a

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06ponta. Parada não muito longe dos portões, ela olhou para o guarda, na guarita, e imaginou quantas moedas de ouro lhe comprariam a entrada.

Um homem alto e atarracado, envergando a toga preta de advogado, passou por ela, ao lado de um casal. Umas poucas palavras trocadas por eles, fizeram Arabella compreender que iam entrar na prisão a fim de visitar um detento.

Depressa e com o coração aos pulos, juntou-se ao grupo, mantendo-se a um passo atrás. À guarita, o homem grandalhão sacudiu um papel para o guarda. Este, mal desviando os olhos de uma faquínha e de um bloco de madeira que esculpia, fez um gesto de cabeça, enquanto dizia:

— Griiss Gott, Herr Doktor,

Em seguida, tocou um sino e retomou a atenção à escultura.

Tão logo o som dissonante do sino de feiro ecoou no ar, um homem, com um enorme aro cheio de chaves preso à cintura, apareceu e abriu os portões.

Absorvidos com a conversa e seus problemas, as três pessoas não prestaram atenção em Arabella e o porteiro, pelo jeito, assumiu que ela fazia parte do grupo. Atravessaram o pátio e passaram sob o arco imenso da porta de entrada.

Arabella achou-se num longo corredor, cuja parca iluminação mal lhe permitia ver que não havia portas, mas apenas outros corredores partindo em todas as direções. O pequeno grupo desapareceu por um deles e, em pouco tempo, suas vozes sumiam. Arabella respirou fundo, consciente de estar por conta própria daí em diante.

Sempre com o coração aos pulos, continuou em frente. Em instantes, ouviu o som de passos e viu um homem, com uma braçada de papéis, surgir de um dos tais corredores laterais.

— Graças a Deus, mein Herr. — exclamou. — Eu me perdi por aqui. — Aproximou-se dele e continuou: — Vim falar com Herr... — Parou e franziu a testa. — Não posso me lembrar do nome dele.

— Qual é o seu assunto? — indagou o homem, meio ríspido, mas sem hostilidade.

Arabella baixou os olhos enrolou os dedos nos cordões da bolsinha. Não era difícil fingir-se de mulher atarantada e sem expediente quando o coração disparava de medo.

— Preciso saber notícias de um dos presos — murmurou.

— Um caloteiro?

Ela fez um gesto negativo com a cabeça.

— Então, um daqueles detidos por ordem policial? Nestes últimos dias, apareceram muitos deles. Deve estar à procura de Herr Wegart.

Podia ser uma armadilha, pensou Arabella, mas tinha de tentar.

— Sim, sim, esse é o nome. Tenho andado tão confusa ultimamente. — Tirou uma moeda da bolsa e a pôs na mão do homem. — O senhor faria a fineza de me levar até ele?

O brilho do ouro o deixou bem obsequioso.

— Natiifiich. — Curvou-se. — Por favor, me acompanhe, Frãulein.

Enquanto o seguia, Arabella acalmou-se um pouco. Sentia uma ponta de esperança, embora a parte mais difícil ainda tivesse de ser enfrentada.

Depois de percorrerem um labirinto de corredores e passagens, pararam em frente a uma porta semi-aberta. O homem soltou uma exclamação de impaciência ao ver o escritório vazio. Pediu-íhe para esperar um pouco e foi à procura do tal Wegart.

Os minutos foram passando e nenhum dos dois aparecia. Sozinha. Arabella voltou a se sentir 121

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06nervosa. Assim parada, tinha a sensação de não estar fazendo nada por Nando. O destino dele estava, agora, nas mãos do homem a quem dera a moeda de ouro. Estaria ele, de fato, procurando a pessoa com quem deveria falar ou, desconfiado, fora buscar alguém para interrogá-la?

Quando já não aguentava mais as conjeturas horríveis, ouviu passos. Logo viu seu guia, numa atitude de deferência, a meio passo atrás de um homenzinho baixo e gordo. Este usava o uniforme verde e preto para civis e o rosto, acima do colarinho apertado, estava longe de apresentar o aspecto amedrontador imaginado por Arabella.

Herr Wegait cumprimentou-a e, com uma curvatura, apontou-lhe o interior do escritório, onde se sentaram, um de cada lado da escrivaninha.

— A que devo o prazer de sua visita, Frãulein! — perguntou ele em tom afável.

— Vim conversar a respeito de um dos presos aqui, Herr Wegart. O nome é Berg, Conde Ferdinand Berg — respondeu Arabella sem rodeios, decidida a ir diretamente ao assunto.

— Como sabe que ele está aqui? É parente seu? — indagou Wegart com um franzir de sobrancelhas.

A mãe de seu filho por nascer, pensou Arabelia.

— Amiga. O criado do conde me disse que ele estava aqui.

— Ah. sei — comentou ele em tom sugestivo. — Deseja visitá-lo?

Arabella encarou-o e imaginou se não assinaria a própria ordem de prisão com as palavras seguintes.

— Eu gostaria de ser informada sobre a situação presente do conde e como poderá ser remediada.

Wegart levantou-se e começou a andar pelo aposento. Parou perto da cadeira de Arabella como se fosse falar, mas calado. voltou para a dele.

— Poderia ser mais clara, Frãulein? Eu não gostaria caso não nos entendêssemos bem.

Parte da tensão de Arabella cedeu, pois Wegart também se sentia inseguro, notou ela.

— Não sou uma espia, Herr Wegait, mandada para averiguar se é leal e incorruptível — afirmou ela, satisfeita por escapar da fala diplomática e se expressar abertamente.

— Como sei se está dizendo a verdade?

— Não posso provar. — Arabella exibiu seu sorriso mais cativante. — Mas garanto-lhe almejar apenas a liberdade do conde Berg.

Wegait atirou a cabeça para trás e riu, o som sonoro contrastando com seu tamanho diminuto.

— A liberdade dele?! Ich bin nicht Gott. Não sou Deus, Frãulein.

A tensão de Arabella retornou.

— Mas o homem que me trouxe aqui disse...

— Lamento se foi mal orientada. Não passo de um funcionário civil que cumpre ordens e cuida do registro dos presos trazidos para cá pela polícia. Sinto muito, mas não tenho poder para libertar ninguém.

Desanimada, Arabella lutou contra as lágrimas. Não choraria, decidiu, e faria uma última tentativa. Tirou da bolsa a sacolinha de couro com as moedas de ouro. pedidas emprestadas por Lulu ao futuro cunhado rico.

Sem desviar os olhos de Wegart, ela colocou a sacolinha na escrivaninha, com impulso suficiente para as moedas tilintar. Mantendo-a bem segura sob a mão, perguntou:

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06— Quem sabe não pode reconsiderar as possibilidades. Herr Wegart?

Um brilho de cobiça surgiu nos olhos azul-claros do homem enquanto ele observava a sacolinha estufada de moedas.

— Talvez eu tenha sido um tanto precipitado. Deixe-me ver se o conde Berg está em meus registros.

Ansiosa. Arabella o observou percorrer o indicador pelas colunas de nomes registrados. Quando o dedo parou, ficou tensa à espera de que ele falasse. Mas ao levantar o rosto, seu semblante lembrava a melancolia de um palhaço.

— Um caso muito difícil. O conde Berg nem foi acusado ainda.

E o próprio príncipe Metternich assinou a ordem de prisão.

— Mettcmich?! — exclamou Arabella tomada por um medo imenso, pois podia imaginar Nando largado, para sempre, numa masmorra.

Wegart tornou a olhar para a sacolinha e ela relaxou um pouco. Talvez o homem estivesse sendo esperto e aumentando a dificuldade do caso a fim de fazer uma barganha melhor.

— Naturalmente, há muita confusão esses dias — disse ele com um dar de ombros e cobiça expressa no olhar preso à sacolinha.

Arabella acariciou o couro macio.

— Quanto tempo mais o senhor acha que ele vai ficar preso? Uns dez dias?

Sem esperar resposta, abriu a sacolinha e contou dez moedas de ouro. Arrumou-as em duas pilhas que empurrou até o meio da escrivaninha, entre as suas e as mãos de Wegart.

Com grande dificuldade, o homem tirou os olhos das moedas brilhantes e fitou Arabella.

— Mais tempo, imagino.

— Vinte dias?

Antes de ele poder responder, mais dez moedas juntaram-se às outras. Num gesto audacioso, ele colocou o boné do uniforme sobre as quatro pilhas. Mas quando ia puxá-las, Arabella o impediu. — Talvez possa explicar seu plano antes. Herr Wegart. Ele reconheceu sua estratégia e sorriu como se fosse um procedimento normal. Abriu uma gaveta de onde tirou um documento selado embaixo.

— Recebi ordens para transferir, amanhã bem cedo. um grupo de prisioneiros para a cadeia de Meidling. Não será difícil acrescentar mais um nome à lista.

Sem perceber a vantagem, Arabella arqueou as sobrancelhas.

— Fica a uma légua ao sul das portas da cidade. Caso um dos presos escape nesse trajeto, será muito desagradável, mas mein Gott, essas coisas acontecem.

Wegart cruzou as mãos sobre o documento e, inclinando-se para a frente, prosseguiu:

— Por favor, Frãulein, preste atenção.

Durante a meia hora seguinte, Arabella ouviu, e gravou na memória, as explicações de como se daria a fuga de Nando. Depois de repeti-las várias vezes, ele acrescentou:

— Vou precisar de algo para persuadir o guarda. E preciso garantir que ele não prenda bem as correntes e que não tenha boa pontaria.

Arabella levantou o boné e juntou mais uma pilha de moedas.

— Como posso saber se o senhor vai mesmo fazer isso? E se as correntes estiverem bem firmes e o guarda acertar o tiro? — indagou ela.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06— Terá de confiar em mim. Mas almejo apenas a liberdade do conde Berg — disse ele citando-

lhe as palavras. — Ele tem sorte, pois sua generosidade, Frãulein, é muito grande.

Arabella rezou para que estivesse sendo sensata. De fato, não tinha escolha a não ser confiar cm Wegart.

CAPÍTULO XXIV

O horizonte começava a adquirir uma tonalidade rosada quando Arabella se pôs a caminho, acompanhada por Franz e Anton o cavalariço de Lulu.

Nenhum dos três tinha dormido muito, pois passaram horas estudando o trajeto menos arriscado para Trautenstein. Embora Arabella receasse as recordações que a aguardavam lá, havia concordado que o castelo de Johann von Berg ofereciam a proteção adequada até o nome de Nando ser reabilitado.

As instruções de Wegart tinham sido precisas. Um cavaleiro devia conduzir uma segunda montaria rumo à cidade, direção contrária à dos prisioneiros. O conde Berg seria colocado no úl timo lugar da fila, as algemas, ligadas por correntes, estariam abertas e o guarda não acertaria o alvo. O próprio Wegart providenciaria isso. No pequeno escritório, o plano parecera simples, mas a fuga não terminaria nesse ponto.

Contra todos os argumentos de Franz e Anton, Arabella tinha insistido em puxar a montaria destinada a Nando. Eles lhes dariam cobertura de sob as árvores nas duas margens da estrada.

Arabella, sempre tão impaciente com a imobilidade, dessa vez não movia um músculo. Acomodada na sela, mantinha o olhar fixo no ponto da estrada onde os prisioneiros deveriam surgir. Apenas de vez em quando, acalmava a montaria, ou o garanhão, ambos irrequietos com a parada forçada.

Completamente concentrada na execução do plano, ela não permitia nenhum outro pensamento na mente. Finalmente, viu a fileira de presos surgir, um guarda à frente e outro à retaguarda, os dois animados com espinguirda e baioneta. No primeiro instante, Arabella não se mexeu. Sentia o coração disparar e gotas de transpiração brotar na testa. Mesmo assim, calma e deliberadamente, pôs a montaria em movimento.

— Hall. Stehenbleinben.

O comando de parada ecoou no ar e o corpo de Nando acostumado à disciplina militar, estacou imediatamente. Cada instinto seu mostrava-se alerta.

Disfarçadamente, verificou as algemas. Elas continuavam com uma folga de uns cinco centímetros. Ao colocá-las no raiar do dia, o guarda fora negligente. Agora, esperava tenso que o en-carregado da retaguarda passasse à frente a fim de verificar a razão da ordem de parada. Do lado esquerdo da estrada havia uma fazenda, um bom lugar para tentar a fuga. A casa e outras construções poderiam lhe dar cobertura, e o cavalo, que pastava por perto, aguentaria um bom galope. A única coisa de que precisava era uma pequena distância do guarda às costas.

Mas o indivíduo, como se tivesse criado raízes, não saía do lugar. Nando praguejou ao perceber que não poderia aproveitar a oportunidade. Mesmo contando com o elemento surpresa, não conseguiria alcançar cobertura antes de receber uma bala.

A ordem para a marcha recomeçar foi dada. Ouviu-se de novo o tilintar de correntes e a fila seguiu em frente, embora num passo mais vagaroso. O olhar inquieto de Nando fixava-se na estrada e, de repente, detectou a silhueta de um cavaleiro.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06Com os dedos endurecidos pela longa imobilidade e sem afastar o olhar da estrada. Arabella

apalpou as pistolas presas à sela. Queria verificar se continuavam lá.

Firmando os pés nos estribos, levantou-se um pouco. Lá estava ele. Como Wegart prometera, Nando era o último da fila.

Ao vê-lo caminhar ereto, com movimentos desimpedidos, ela foi tomada por uma grande onda de alívio. Pela primeira vez, desde haver sabido de sua prisão por Volkonsky, livrava-se do medo de que tivesse sido torturado e sofrido dano físico.

Já estavam bem perto e Arabella podia distinguir as feições de Nando. Teve de refrear a vontade de correr a seu encontro.

Ele ja a tinha visto, mas apesar da distância, Arabella percebeu que Nando ainda não a reconhecera. Num gesto distraído, levou a mão à garganta enquanto cravava o olhar nele, como se assim pudesse lhe transmitir o plano em todos os seus detalhes. Não se lembrou de que esse era o homem de quem tinha fugido. Sentia apenas o coração transbordar de amor por ele e a necessidade de tê-lo em segurança.

Agora estavam bem próximos. O olhar de Nando passou do cavalo ao lado para seu rosto e, então, fitaram-se.

Um garanhão arreado e som cavaleiro! Nando mal podia acreditar no incrível golpe de sorte. Uma grande energia o dominou ao perceber que a oportunidade de fuga aparecia.

Ele observava todos os movimentos do cavaleiro na outra montaria. Temia que o homem entrasse na mata cortada pela estrada. Com muito cuidado e sem fazer ruído algum, foi escorregando as algemas pelas mãos até alcançar a ponta dos dedos. Curvou-os para impedir que elas caíssem ao chão.

O gesto do rapaz, ao levar a mão à garganta, chamou a atenção de Nando para seu rosto, parcialmente coberto por um chapéu escuro.

O corpo amoleceu e o passo falhou ao reconhecer as feições de Arabella. Forçando as pernas a obedecê-lo e sem desviar os olhos de seu rosto, continuou em frente. Estavam mais próximos e os traços tornavam-se mais claros. Não se tratava de uma visão, mas da pura realidade, admitiu ele num lampejo de alegria.

Como Arabella havia escapado de Volkonsky? indagou-se. Inquieto, Nando percorreu o olhar pelo campo à volta procurando sinais do russo. A desconfiança, companheira de tantos anos, dominou-o por um instante. Mas então, sentiu-se atraído pela magia dos olhos cor de safira. Naufragava em sua beleza, na lembrança da turbulência das emoções vividas.

Ela estava mais linda do que nunca. As roupas de homem, que vestia, escondiam-lhe as formas, mas Nando por conhecê-las bem, reviu-as na memória. Todavia, uma certa tristeza persistia.

Arabella estava ali para ajudá-lo a fugir? Ou tratava-se de um terrível estratagema? Nando afastou a idéia e forçou-se a perscrutar-lhe o semblante. Estava impassível, uma verdadeira máscara de calma e indiferença. Apenas os olhos brilhavam com algo que ele não conseguia decifrar.

Estava a poucos passos de Arabella agora. Em segundos, ficariam frente a frente e ele teria de decidir se confiava-lhe, ou não, a vida. Seria imaginação sua, ou ela teria movido, em sua direção a mão com as rédeas do garanhão? Mais um passo. Outro.

Da mata. chegou o tropel de cavalos e, de repente, sentiu a respiração do guarda, na orelha. No instante seguinte, a ponta da baioneta tocou-lhe as costas.

— Laufen Sie. Schnell. Corra. Depressa.

Nando explodiu em ação. Numa fração de segundo, deixou as algemas cair, virou-se e empurrou o guarda no chão lamacento. Num pulo rápido, alcançou a sela vazia do garanhão.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06Os cavalos já tinham encetado galope quando os gritos, atrás deles, os alertaram de que todos

perceberam o que acontecera. Nando deixou Arabella tomar a dianteira, pois se houvesse tiroteio, preferia ser o alvo das balas.

Sem dar atenção a um único cavaleiro ao encalço deles, abandonaram a estrada. A trilha na mata era estreita e, com frequência, galhos roçavam-lhes a cabeça. Não haviam percorrido mais do que uns poucos metros entre as árvores quando o primeiro tiro eclodiu.

Ouviu-se um grito vindo de trás, depois outro. Sem saber se tinham sido dados por Franz ou Anton, Arabella olhou por sobre o ombro, mas Nando bloqueava-lhe a visão. Não se atrevendo a parar, instigou a montaria para frente.

Nando sentia um prazer imenso com o galope. O vento frio, após o ar fétido da cela, e a liberdade de movimento, depois de tantos dias de inatividade, eram um presente dos deuses. Nunca dera tanto valor à vida.

Não, não era verdade, reconsiderou observando a silhueta de Arabella logo adiante. Nas duas noite passadas a seu lado, ele tinha conhecido o verdadeiro sentido da vida. Por que estaria ela ali? voltou a se indagar. A que preço teria comprado, de Volkonsky, a liberdade de ambos? As possibilidades horríveis o atemorizavam.

As conjeturas e suspeitas mesclavam-se com o amor e a carência provocando um estado de espírito perigoso e irreal. A cavalgada desenfreada, o perigo à retaguarda, o uivar do vento aos ouvidos o exacerbavam. Com violência estranha, jurou que, dessa vez, Arabella não escaparia. Seria sua.

Ao formular o pensamento, Nando ouviu o disparo da pistola e, uma fração de segundo depois, sentiu a bala na coxa.

Quando ouviu o disparo, Arabella rezou para ter sido imaginação sua. Virou-se para trás e viu Nando segurar a coxa, o sangue já surgindo por entre os dedos. O olhar dirigiu-se ao cavaleiro que os alcançava e ela não pôde reprimir um grito ao reconhecê-lo.

Ao ver Nando puxar as rédeas e desmontar, ela não hesitou em fazer o mesmo. Desesperada, puxou uma das pistolas, mas a arma enganchou-se na sela e ela gastou minutos preciosos para soltá-la. Quando finalmente conseguiu, notou que Nando já se aproximava de Volkonsky.

O russo tinha esvaziado as balas da arma e a erguia para usá-la como cacete. Mas antes de poder dar a pancada, Nando o arrastava para baixo da montaria.

Com a pistola entre as duas mãos, Arabella chegou ao lado de Nando. Ele virou-se depressa e, segurando-lhe o pulso, apossou-se da arma.

Fitaram-se por um momento, o suficiente para Arabella ler a acusação nos olhos cinzentos. Não abaixaria o olhar, decidiu ela. Não mostraria fraqueza, embora sentisse a energia esvair-se. Os dedos dele largaram-lhe o pulso e a mão caiu ao longo do corpo.

Devagar e deliberadamente, Nando deu as costas para Arabella e apontou a pistola à cabeça de Volkonsky.

De repente, o silêncio foi quebrado pelo choro do russo. ,

— Não, pelo amor de Deus, não atire em mim. Je vous prie — soluçou Volkonsky. — Por favor, Berg. Eu menti. Não me apossei dela. — Olhou para Arabella. — Conte a verdade para ele — implorou cobrindo o rosto com as mãos.

— Pelo menos, enfrente a morte como homem, Volkonsky. Abaixe essas mãos — ordenou Nando em voz glacial.

Mas Volkonsky continuou a soluçar e a murmurar palavras incoerentes.

— Levante-se, desgraçado! Se não, vou ter de matá-lo como o cão que é — rugiu Nando ao

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Page 127: Ch 006 nina beaumont olhos da inocência

Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06destravar a arma.

A fúria irracional de Nando tirou Arabella do torpor em que se encontrava. Aproximou-se e pôs a mão no braço dele.

— Não faça isso, Nando. Ele não vale o esforço.

— Agora está intercedendo pelo maldito?! — vociferou ao puxar o braço.

— Não, Nando, estou pedindo por você — murmurou ela. Nando fitou os olhos cor de safira, repletos de mágoa. Esquceu-se de Volkonsky, da prisão, de tudo, execto da realidade de Arabella ali tão perto. A violência o abandonou por completo e ele percebeu que, mesmo se Arabella o tivesse traído e sido possuída por Volkonsky. amava-a demais para abrir mão dela.

O tropel de cavalos quebrou o silêncio que havia caído sobre eles. Tenso, Nando apontou a pistola em direção ao barulho. Pouco depois, surgiam dois cavaleiros que, a tempo, ele reconheceu como sendo Franz e o cavalariço de Lulu.

Apesar do pano sujo de sangue à volta de um dos braços, Franz aproximou-se sorridente.

— Gott sei dank, graças a Deus o senhor está salvo. E o verme foi apanhado — acrescentou olhando para Volkonsky, ainda encolhido no chão.

Conscientizando-se da verdade, Nando fitou o criado. Arabella havia arriscado a vida por ele e sido insultada em recompensa. Virou-se para ela. Como era horrível ver a tristeza estampada em seus olhos. Provocada por ele. Estendeu-lhe a mão num pedido mudo de perdão.

Com a cabeça e os ombros bem erguidos, Arabella virou-lhe as costas e se afastou. A energia chegava ao fim. Tinha visto Nando na fila de prisioneiros e o conflito das emoções em seu semblante. A dúvida. A suspeita. Mas não a suavidade que poderia lhe amenizar a mágoa. Tudo ela poderia esquecer, descontar. Mas como ignorar a acusação furiosa de um momento atrás? Atordoada, fechou os olhos e apoiou a cabeça na anca da montaria. Mas no instante seguinte, ao sentir-se tocada nos ombros, voltou a abri-los.

Nando virou-a de frente e fitou-lhe os olhos, ansioso para limpá-los da tristeza. Aflito, procurava o que dizer. Tinha pensado na palavra "amor", mas teria coragem de pronunciá-la em voz alta? E Arabella, acreditaria? Seria capaz de perdoá-lo?

— Eu... Arabella, me perdoe.

Não obteve resposta e a sentiu esquivar-se de suas mãos.

— Por favor, fale comigo, Arabella.

— O que nos sobrou para dizer? — perguntou ela com o olhar perdido.

— Tudo.

Arabella sacudiu a cabeça de um lado para o outro. Não conseguia fitar os olhos cinzentos tão cheios da ternura pela qual ela teria vendido a alma até minutos atrás.

Não podia aceitar o que Nando lhe oferecia, pois ele continuava pensando o pior a seu respeito. Ele a considerava uma prostituta, porém a perdoava porque o desejo era maior do que o desdém Devagar, ela percorreu os olhos por suas feições até fitá-lo. Maldizia-se por ceder à tentação. Agora, sentia-se presa. Percebia o perigo, mas não tinha coragem para fugir. Incapaz de não tocá-la. Nando aconchegou-lhe o rosto entre as mãos,

— Eu te amo, Arabella.

Ao pronunciar as palavras, ele sentiu como se um grande peso lhe fosse tirado dos ombros. Porém o alívio dissipou-se ao ver , o desânimo estampar-se nos olhos cor de safira.

As palavras de Nando queimaram Arabella como ferro em brasa. Nunca teria imaginado que a 127

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06declaração pudesse feri-la tanto.

— Você negaria que também me ama? — perguntou Nando.

— Não nego nada — respondeu ela ao sacudir a cabeça.

— Mas você está me virando as costas — protestou ele sentindo a violência retornar. — Estou avisando. Não vou deixá-la escapar desta vez. Ouviu? Nem agora, nem nunca mais — acrescentou com a boca a milímetros da sua.

Arabella podia sentir-lhe o hálito nos lábios. Seria fácil ceder. Por um momento. Pelo instante de um beijo. Contudo e apesar da dor, o orgulho existia. Ergueu bem o queixo.

— Você não tem escolha, Nando. Acha que posso ouvi-lo dizer "Eu te amo", sabendo que existe um qualificativo subentendido? “Eu te amo apesar, embora, independente de". Você me ama, mas não confia em mini.

Nando abriu a boca a fim de desmentir a acusação, porém ela não permitiu.

— Não jure em falso. Desde o início, você se mostrou pronto a fazer mau juízo sobre mim. Nada que eu fizesse, ou dissesse, mudava sua ideia preconceituosa. Você continua o mesmo. A única diferença está no fato de se mostrar disposto a me perdoar porque me deseja.

Aturdido com as palavras e por reconhecer a verdade nelas, Nando largou-lhe o rosto. Mas incapaz de cortar o contato completamente, colocou as mãos em seus ombros.

— Foi por isso que não quis se casar comigo? — perguntou apavorado ao compreender tudo.

Que grande mal havia lhe feito! Tinha provocado sofrimento tão intenso a ponto de levá-la a agir dessa forma!

— Não importa o que eu diga, Nando, você nunca acreditará em mim — respondeu ela.

— Isso não é verdade! Eu acreditaria em você, sim — afirmou ele tentando se convencer da sinceridade.

— Mentira corajosa! Não, Nando, você está enganado. Caso me visse conversando com um homem, se aborreceria, E sempre que me tomasse nos braços, imaginaria se outro homem já tinha feito o mesmo. Acabaria me odiando por ter me casado com você. — Pôs as mãos sobre as dele e as afastou dos ombros. — Não, Nando, eu te amo demais para suportar isso.

Arabella fechou os olhos, pois não queria continuar compartilhando sua dor com ele.

— Por favor, Nando, não diga mais nada e me deixe sozinha. Ele percebeu como Arabella estava frágilizada e a ponto de ter um colapso. Embora ansiasse por tomá-la nos braços, conteve-se.

— Posso, ao menos, lhe agradecer? — perguntou baixinho. Em silêncio, Arabella assentiu com um gesto de cabeça.

CAPÍTULO XXV

Foi um grupo solitário que partiu rumo a Trautenstein. A alegria que todos deveriam sentir com o triunfo não se manifestava.

Ansiosa por se encontrar num quarto e chorar à vontade, Arabella apressava a marcha. Porém quando entraram no pátio do castelo e ela viu como o ferimento de Nando, apesar da atadura improvisada, continuava a sangrar, tomou a iniciativa das providências.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06Ao chegar ao salão, carregado por cavalariços, Nando já encontrou uma cama preparada no

maior sofá e ela pedia a um criado para trazer água quente e ataduras.

Nando abafou um gemido de dor quando o deitaram.

— Eu preferia que ela não ficasse aqui, tio Johann. Já lhe causei sofrimento demais hoje.

— Paciência, meu rapaz. Tente não se mexer agora — recomendou o conde.

A meia voz, ele ordenou a um lacaio para ir buscar o barbeiro residente no castelo. Este não demorou a chegar e logo pôs-se a cuidar de Nando.

Arabella prendeu a respiração ao ver a atadura cair. O corte feito pela bala não era profundo, mas longo e irregular Continuava sangrando. Mal reprimiu um grito de protesto quando Nando arqueou o corpo de dor enquanto o barbeiro, com o dedo, examinava o ferimento.

— Não passa de um arranhão — explicou o homem. — A bala apenas rasou o músculo. Só temos de limpar bem e dar uns pontos.

Em seguida, o barbeiro pediu conhaque, uma bacia, agulha e linha. Quando tudo já estava ao lado, ele ajeitou bem a cabeça de Nando no travesseiro e, com um movimento inesperado, acertou-lhe um murro no queixo.

Mais uma vez, Arabella ia protestar, mas o homem a impediu acenando para que se aproximasse bem.

— Temos de trabalhar depressa. Ele não vai ficar inconsciente por muito tempo.

Lutando contra a náusea, Arabella ajoelhou-se ao lado para segurar a bacia enquanto o barbeiro limpava o ferimento com um pedaço de linho e o melhor conhaque da adega do tio Johann. Quando já preparava a agulha e linha, Nando começou a dar sinais de estar voltando a si.

— Tem coragem para dar os pontos, Frãulein? Se tiver, eu seguro os lados do corte juntos.. Assim, o trabalho será feito mais depressa. Ele não vai demorar para acordar.

Arabella assentiu com um gesto de cabeça. Foi preciso toda a sua força de vontade para passar a agulha pela carne de Nando. Esperava resistência dos músculos, mas não encontrou nenhuma. Mordendo o lábio inferior, deu todos os pontos necessários.

— Calma, Nando. Deite-se e fique quieto — murmurou Arabella forçando-o a acomodar as costas no sofá'.

Ele abriu os olhos e fez nova tentativa para se sentar.

— Você está ferida. Arabella? O que aconteceu? — perguntou ele numa voz fraca.

Ela acompanhou-lhe o olhar e notou as manchas na roupa.

— Estou bem, Nando. Isto aqui é o seu próprio sangue. Ajudei o barbeiro a dar os pontos no ferimento.

Agora que tudo tinha sido feito, Arabella começou a sentir os efeitos da luta e das emoções enfrentadas nesse dia.

— Por favor, me dêem licença. Estou muito cansada — murmurou ao se levantar, tendo o cuidado de não olhar para Nando.

O conde Berg veio-lhe ao encontro e segurou seu braço.

— Posso acompanhá-la até seu quarto? — perguntou amável. Arabella assentiu com a cabeça e virou-se.

— Fique.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06Ela parou ao ouvir a voz de Nando, mas continuou de costas.

— Por favor.

Poderia ela ignorar a súplica evidente na voz? Precisava. Arabella respondeu a si mesma. Nando a tinha magoado muitas vezes, profundamente e ela não suportaria mais. Mesmo assim virou-se e deu um passo em direção a ele.

O conde Berg observou-os. Fez um gesto aos criados para o acompanharem e deixou o salão.

Com dificuldade, Nando se levantou e deu um passo em direção a Arabella, mas ao vê-la recuar, a dor moral foi maior do que a do ferimento.

— Não devia ficar em pé, Nando — disse ela.

— Bobagem. Já sofri coisas piores.

Incapaz de manter as mãos imóveis, Arabella tirou o chapéu, de seu disfarce de homem, e soltou os cabelos. No instante seguinte, Nando a tocava no braço, numa súplica silenciosa. Nervosa, ela estremeceu e deixou os grampos espalharem-se pelo chão.

Fitaram-sce. Embora não se dessem conta, muita coisa foi revelada por ambos através daquele olhar.

— O que um homem faz ao descobrir que não passa de um tolo insensato? — perguntou Nando com um sorriso triste.

Perturbada emocionalmente, Arabella não respondeu.

— Quantas vezes você colocou a felicidade a meu alcance e eu a desprezei? — continuou Nando perscrutando-lhe as feições à procura do perdão que, apesar de não merecer, desejava muitíssimo.

Ela sacudiu a cabeça para demonstrar mais a incapacidade de falar do que a de responder.

— Pode me perdoar, Arabella? — pediu ele baixinho. Arabella encarou-o, cada fibra de seu corpo proclamando o amor sentido, porem ela não tinha certeza de poder pronunciar as palavras de absolvição sem mentir.

O silencio se prolongou, o eco da indagação vibrando entre eles. Finalmente, Nando o quebrou:

— Por favor, Arabella, je t'en prie...

Ela o calou com a mão em seus lábios. Não queria ouvi-lo suplicar, não importava o que tinha acontecido entre ambos. Tirou a mão e a fechou como se quisesse guardar a lembrança do contato. Não estava sendo levada pelo espírito de revanche, mas o desgosto infligido por Nando e o orgulho, que a sustentara durante tanto tempo, a impediam de fazer o gesto de perdão.

As batidas apressadas do coração de Nando, até então esperançosas, tomaram o ritmo lento de um canto fúnebre.

Naturalmente, censúrou-se. Depois do que fez, ela seria muito tola em lhe dar outra oportunidade para magoá-la. Com o coração apertado, Nando virou-se para voltae ao sofá, mas sentiu um toque leve no braço.

— Amanhã conversaremos, Nando. Vamos dormir e repousar. Talvez com a cabeça descansada, possamos pôr uma certa ordem em nossas vidas.

Em seguida, Arabella deixou o salão. A fenda em seu íntimo ainda estava em carne viva e ela imaginava se, um dia, viria a se cicatrizar. No caminho para o quarto, Arabella, atraída pelo fogo crepitante da lareira, entrou na biblioteca. Distraída com as reflexões, não percebeu os passos que a seguiam.

— Frãulein!

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Page 131: Ch 006 nina beaumont olhos da inocência

Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06Virou-se depressa e deparou-se com Franz.

— Pois não?

— Peço que me perdoe por tomar a liberdade de lhe falar — começou Franz, meio constrangido. — Ele precisa da senhorita. Muitíssimo.

— Eu sei, Franz. E eu preciso dele. Mas houve tanta desconfiança, tantas palavras feias. Não sei se eu poderia assumir uma nova vida sob essa sombra.

— O orgulho é um companheiro frio na cama, Frãulein — Arabella ressentiu-se da maneira rude de Franz se expressar, mas lembrou-se de que o criado gostava de Nando tanto quanto ela.

— Acredite em mim, eu sei — insistiu ele com olhar tristonho. — Sabe, eu tinha uma namorada e antes de me alistar no exército, nós compartilhamos a maçã. Mas quando voltei para casa na minha primeira licença, ela levava o filho de outro homem na barriga.

— Compartilhar a maçã?

Os olhos de Franz adquiriram brilho.

— Ah, é um antigo costume entre os camponeses. Quando um casal decide que vai dormir na mesma cama pelo resto da vida, primeiro compartilha a maçã. A doçura da fruta resiste ao inverno mais frio e escuro. Essa fruta é o símbolo da vida, pois até a mais murcha e seca, guarda, no centro, a semente de uma nova vida. Bem, o homem tinha abandonado minha namorada, mas eu fui orgulhoso demais para aceitá-la de volta. Hoje, ela está morta e eu continuo sozinho — concluiu ele em voz baixa. Em seguida, curvou-se dizendo: — Desculpe a temeridade de minhas palavras.

Antes de Arabella poder falar algo, ele saiu.

Nando estava em pé à janela, com um copo de vinho esquecido na mão. O corpo já tinha sido lavado da sujeira da prisão e ele tentava filtrar a dor que lhe corroía a alma.

Ainda não tinha perdido, esforçava-se por acreditar, porém sabia não ser verdade. Arabella podia ter dado uma réstia de esperança, mas do que adiantava? As palavras e acusações terríveis não poderiam ser apagadas. O mal, desfeito. Eles permaneceriam sempre entre ambos. Que desfecho terrível o destino lhes tinha preparado. Se suas suspeitas tivessem se provado verdadeiras, ele a perdoaria. Mas esqueceria? Jamais! Arabella estava disposta a esquecer o sofrimento causado por ele. Mas perdoar? Não acreditava.

Nando ouviu a porta abrir-se a suas costas.

— Não vou precisar de mais nada, Franz. Vá dormir.

Parada diante da porta do quarto de Nando. Arabella hesitou. E se ele a rejeitasse? Caso a aceitasse, qual seria a reação em relação ao filho? Seria ele bem recebido? Pela segunda vez, levou a mão à maçaneta, mas baixou-a sem coragem para abri-la. A sós no quarto, a consciência do amor por Nando a convencera a não lhe recusar nada. Lá, a resolução de oferecer a ele sua completa vulnerabilidade não a tinha amedrontado. Tudo parecera muito simples. Mas agora, já não se sentia tão segura. Estaria sendo sensata? indagou-se.

Porém a lembrança do desespero de Nando, quando lhe pedira perdão, e da tristeza evidente nos olhos cinzentos diante de sua recusa, tomou conta de sua mente. Sabia o quanto esse passo tinha custado ao espírito orgulhoso de Nando. As dúvidas desapareceram e Arabella abriu a porta.

Franz não respondeu. O único ruído foi o da chave girando na fechadura. Exasperado, Nando virou-se ao exclamar:

— Com todos os diabos! Arabella? — conseguiu murmurar, perplexo como se estivesse tendo visões.

Fitando-o, ela atravessou o quarto num passo vagaroso, mas firme. Parou à distância de um 131

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06metro e pouco e pôs, na mesinha ao lado, um prato que tinha na mão. Nando seguiu-lhe os movimentos mas sem registrar o que ela trouxera. Voltou a fitá-la quase imediatamente, em indagação e busca silenciosas.

— Franz me contou o costume, lã da região onde vocês dois cresceram, segundo o qual duas pessoas, que decidem passar a vida juntas, compartilham uma maçã.

A voz de Arabella tremia um pouco e cia parou não só para tomar fôlego como também para deixar Nando falar. Porém, ele manteve-sc calado, provocando-lhe uma ponta de incerteza.

Mas no instante seguinte, ele transpôs a pouca distância que os separava e a tocou nos ombros.

— Fale, Arabella — pediu baixinho, ainda sem acreditar que ela viera para lhe dar o que tanto precisava. — Eu tenho de ouvir as palavras.

— Eu te amo — murmurou ela com as mãos espalmadas em seu peito. — Aprendi que o amor não é avarento, nem sobrevive a custa de barganhas. É um poço profundo que jamais se esgota.

— Ele oferece perdão?

— Sempre.

Nando fitou os olhos cor de safira que brilhavam de amor e imaginou o que tinha feito para merecer a dádiva de Arabella. Estendeu a mão para pegar a maçã no prato, porém ela o impediu.

— Existe algo que preciso contar primeiro.

Sua gravidez ainda não aparecia, por isso, ela tomou a mão de Nando e a colocou sobre a barriga que logo começaria a crescer.

— Há um bebê aqui. Você vai querer nós dois?

Arabella observou Nando com uma ponta de receio. Estava grávida há dois meses e o bebe já se tornara tão real como se o carregasse nos braços. Mas era ainda um estranho para Nando.

Ao dar-se conta de que havia quase perdido não só Arabella como também o filho, ele sentiu o sangue esvair-se da cabeça. No instante seguinte, lembrando-se de como e quanto ela havia cavalgado para ajudá-lo na fuga, entrou em pânico.

Arabella viu-o empalidecer, mas antes de entender a emoção em seu semblante, Nando a estreitava entre os braços e enterrava o rosto em seu pescoço.

— Você está bem? A cavalgada? Não lhe fez mal? — perguntou, aflito.

— Estou ótima. Aliás, eu e o bebê — respondeu ela rindo e tentando levantar-lhe o rosto para poder fitá-lo. — Não se esconda de mim, Nando, por favor.

Bem devagar, ele a soltou um pouco, o suficiente para Arabella poder ver-lhe os olhos cheios de lágrimas.

— Eu te amo — murmurou Nando emocionado. Segurando-a com um dos braços, acariciou-lhe os cabelos e o rosto. Depois, apanhou a maçã que, com um retorcer forte das mãos, repartiu em duas partes iguais. Lado a lado, comeram a fruta, os olhos fazendo os votos de união perene.

Ainda sentindo o sabor adocicado da maçã, Nando baixou a cabeça e tocou os lábios nos de Arabella. Apenas um beijo casto, disse ele a si mesmo, para selar o nosso juramento.

Ela porém, entreabriu os lábios num convite excitante, generoso. Em instantes, Nando esquecia as boas intenções. A paixão, a carência das longas semanas de separação, transformaram logo o beijo puro em outro de desejo incandescente.

Nando respirava ofegante quando conseguiu afastar a boca, mas Arabella segurou-lhe o rosto.

— Me faça amor, Nando, por favor.132

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 06— Não, não. Tenho mendo de machucá-la.

Ela exultou ao sentir-lhe a ereção de encontro ao corpo.

— Bobagem, você nunca mais vai me machucar.

Ouviu-o gemer e percebeu que ele havia capitulado.

As mãos que a despiram tremiam. Por algum tempo e desejoso de prolongar esse momento, ele admirou-lhe o corpo lindo.

Tecidos romperam e botões despregaram-se enquanto Nando se livrava das roupas. Em pé junto à cama e com a expressão de um homem faminto, ele a contemplou mais uma vez. Então, Arabella estendeu-lhe os braços e ele deitou-se a seu lado.

Acariciaram-se com uma ponta de ansiedade como se quisessem ter certeza de estarem juntos e se pertencerem finalmente.

— Você vai sempre acreditar em mim? — perguntou Arabella.

— Sempre. Eu te amo. Prometa que nunca mudará — murmurou ele.

— Prometo. Então, você me aceita como sou? — disse arqueando-se para recebê-lo.

— Sim — concordou ao penetrá-la. — Eu jamais a recusarei.

NINA BEAUMONT tem ascendência russa e uma árvore genealógica em que figuram os condes Stroganoff e um Khan mongol. Nascida em Salzburg, foi criada em Massachusetts e, em 1970, mudou-se para a Áustria, onde mora no campo com o marido e um simpaticíssimo cão schnauzer. Leitora ávida de História, ela adora viajar, o que lhe proporciona a oportunidade de exercitar as cinco línguas em que c fluente. Além de escrever romances, Nina leciona inglês para adultos.

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Nina Beaumont – Olhos da Inocência – CH 067 - O ROMANCE DA ROSA Claire Delacroix

O cavaleiro Armand D'Avigny iria lembrar-se de Alexandria de Fontaine sempre que aspirasse o perfume de rosas... e levaria para as cruzadas a lembrança da bela jovem que lhe salvou a vida. Agora, ao contemplar novamente o rosto encantador, jurou que nunca mais se afastaria do lado de sua doce amada. O coração de Alexa bateu mais forte ao reconhecer os oihos verdes de seu salvador. Mas, durante a fuga para a liberdade, soube que jamais poderia se entregar ao amor de Armand D'Avigny, porque o transformaria em vítima do inimigo que a estava perseguindo. Enquanto Pierre de Villiers, seu impiedoso raptor, vivesse, Alexa de Fontaine nunca seria uma mulher livre para amar!

8 - PAIXÃO FATAL

Erin Yorke

A missão de Anne Hargraves era perigosa: encontrar o homem que planejava assassinar a rainha Vitória, antes que fosse tarde demais! Hábil agente do serviço secreto, Anne não havia contado com a possibilidade de se apaixonar pelo seu maior suspeito, lan Kendrick. Ele seria mesmo capaz de cometer um crime tão medonho? O repentino interesse que lan demonstrou por ela o tomava ainda mais suspeito... mas suas carícias ousadas provocavam-lhe o desejo de afastar as dúvidas e render-se à atração que poderia ser fatal!

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