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TRATADO DA ARGUMENTAÇÃO A Nova Retórica Chaïm Perelman Lucie Olbrechts-Tyteca Tradução MARIA ERMANTINA DE ALMEIDA PRADO GALVÃO Mort/ns Fontes São Paulo 2005 Esta obra foi publicada originalmente em francês com o título TRAITÉ DE L'ARGUMENTATION por Éditions de l'Université de Bruxelles, Bruxelas, em 1992. Copyright © 1988,1992 by Éditions de l'Université de Bruxelles. Copyright © 1996, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., São Paulo, para a presente edição. lê edição

Chaim Perelman; Lucie Olbrechts-tyteca - Tratado Da Argumentaçao - A Nova Retorica

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Tratado De Argumentaçao - A Nova Retorica

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  • TRATADO DA ARGUMENTAO

    A Nova Retrica

    Cham Perelman Lucie Olbrechts-Tyteca

    Traduo MARIA ERMANTINA DE ALMEIDA PRADO GALVO

    Mort/ns Fontes So Paulo 2005

    Esta obra foi publicada originalmente em francs com o ttulo TRAIT DE L'ARGUMENTATION por ditions de

    l'Universit de Bruxelles, Bruxelas, em 1992. Copyright 1988,1992 by ditions de l'Universit de Bruxelles.

    Copyright 1996, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., So Paulo, para a presente edio.

    l edio

  • 1996 2 edio

    2005

    Traduo MARIA ERMANTINA DE ALMEIDA PRADO GALVO

    Reviso da traduo

    Eduardo Brando Revises grficas

    Luzia Aparecida dos Santos

    Renato da Rocha Carlos Dinarte Zorzanelli da Silva Produo grfica Geraldo Alves Paginao/Fotolitos Studio

    3 Desenvolvimento Editorial

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Perelman, Chaim

    Tratado da argumentao : a nova retrica / Chaim Perelman, Lucie Olbrechts-Tyteca ;

    traduo Maria Ermantina de Almeida Prado Galvo; [reviso da traduo Eduardo

    Brando]. - 2* ed. - So Paulo : Martins Fontes, 2005. - (Justia e direito)

    Ttulo original: Trait de l'argumentation.

    Bibliografia.

    ISBN 85-336-2207-4

    1. Oratria 2. Raciocnio 3. Retrica 1. Olbrechts-Tyteca, Lucie. II. Ttulo. III. Srie.

    05-6718 CDD-168

    * Argumentao : Lgica 168

    Todos os direitos desta edio para o Brasil reservados Livraria Martins Fontes Editora Ltda.

    Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 So Paulo SP Brasil Tel (11) 3241.3677 Fax (11) 3101.1042

    e-mail: [email protected] http:llzvww.martinsfontes.com.br

  • ndice

    Prefcio edio brasileira, por Fbio Ulhoa Coelho ..................... XI Prefcio, por Michel Meyer .............................................................. XIX Introduo ..................................................................................... 1

    PRIMEIRA PARTE OS MBITOS DA ARGUMENTAO

    1. Demonstrao e argumentao ......................................... 15 2. O contato dos espritos ....................................................... 17 3. O orador e seu auditrio .................................................... 20 4. O auditrio como construo do orador .......................... 22 5. Adaptao do orador ao auditrio .................................... 26 6. Persuadir e convencer ......................................................... 29 7. O auditrio universal .......................................................... 34 8. A argumentao perante um nico ouvinte .................... 39 9- A deliberao consigo mesmo ........................................... 45 10. Os efeitos da argumentao ............................................. 50 11. O gnero epidctico ........................................................... 53 12. Educao e propaganda ................................................... 57 13- Argumentao e violncia ............................................... 6l 14. Argumentao e envolvimento ....................................... 66

    SEGUNDA PARTE O PONTO DE PARTIDA DA

    ARGUMENTAO CAPTULO I - O acordo ............................................................ 73

    15. As premissas da argumentao ....................................... 73 a) Os tipos de objeto de acordo ........................................... 75

    16. Os fatos e as verdades ....................................................... 75 17. As presunes .................................................................... 79 18. Os valores ........................................................................... 83 19. Valores abstratos e valores concretos ............................. 87

  • 20. As hierarquias .................................................................... 90 21. Os lugares ........................................................................... 94 22. Lugares da quantidade ..................................................... 97 23- Lugares da qualidade ....................................................... 100 24. Outros lugares ................................................................... 105 25. Utilizao e reduo dos lugares: esprito clssico

    e esprito romntico .......................................................... 108

    b) Os acordos prprios de certas argumentaes.... 112 26. Acordos de certos auditrios particulares ..................... 112 27. Acordos prprios de cada discusso .............................. 118 28. A argumentao ad hominem e a petio de

    princpio ............................................................................. 125

    CAPTULO II - A escolha dos dados e sua adaptao com vistas argumentao .......................... 131

    29. A seleo dos dados e a presena .................................... 131 30. A interpretao dos dados ............................................... 136 31- A interpretao do discurso e seus problemas .............. 140 32. A escolha das qualificaes .............................................. 143 33- Sobre o uso das noes ..................................................... 147 34. Aclaramento e obscurecimento das noes ................... 150 35. Usos argumentativos e plasticidade das noes .... 156

    CAPTULO III - Apresentao dos dados e forma do discurso ......................................................................... 161

    36. Matria e forma do discurso ............................................ 161 37. Problemas tcnicos de apresentao dos dados .... 162 38. Formas verbais e argumentao ...................................... 168 39- As modalidades na expresso do pensamento ............. 174 40. Forma do discurso e comunho com o auditrio.. 185 41. Figuras de retrica e argumentao ................................ 189 42. As figuras da escolha, da presena e da comunho.194 43. O estatuto dos elementos de argumentao e sua

    apresentao ......................................................................... 203 TERCEIRA PARTE

    AS TCNICAS ARGUMENTATIVAS

    44. Generalidades ............................................................. 211

    CAPTULO I - Os argumentos quase-lgicos .................. 219

  • 45. Caractersticas da argumentao quase-lgica ....... 219 46. Contradio e incompatibilidade ............................. 221 47. Procedimentos que permitem evitar uma incompatibilidade

    ..................................................................................... 224 48. Tcnicas que visam apresentar teses como compatveis ou

    incompatveis ............................................................. 228 49. O ridculo e seu papel na argumentao ................. 233 50. Identidade e definio na argumentao ................ 238 51. Analiticidade, anlise e tautologia ........................... 243 52. A regra de justia ........................................................ 248 53. Argumentos de reciprocidade .................................. 250 54. Argumentos de transitividade .................................. 257 55. A incluso da parte no todo ...................................... 262 56. A diviso do todo em suas partes ............................ 265 57. Os argumentos de comparao ................................ 274 58. A argumentao pelo sacrifcio ................................ 281 59. Probabilidades ............................................................ 290

    CAPTULO II - Os argumentos baseados na estrutura do

    real ..................................................................... 297

    60. Generalidades ............................. .............................. 297

    a) As ligaes de sucesso.................................................... 299

    6l. O vnculo causal e a argumentao .................................. 299 62. O argumento pragmtico .................................................. 302 63. O vnculo causal como relao de um fato com

    sua conseqncia ou de um meio com um fim ............. 308 64. Os fins e os meios .............................................................. 311 65. O argumento do desperdcio ............................................ 317 66. O argumento da direo ................................................... 321 67. A superao ........................................................................ 327

    b) As ligaes de coexistncia ................................................. 333 68. A pessoa e seus atos ................................................... 333 69- Interao entre o ato e a pessoa ....................................... 337 70. O argumento de autoridade ............................................. 347 71. As tcnicas de ruptura e de refreamento opostas

    interao ato-pessoa ....................................................... 353 72. O discurso como ato do orador ........................................ 36l 73. O grupo e seus membros .................................................. 366 74. Outras ligaes de coexistncia, o ato e a essncia 372

  • 75. A ligao simblica ............................................................ 377 76. O argumento de hierarquia dupla aplicado s ligaes de

    sucesso e de coexistncia ................................................ 384 77. Argumentos concernentes s diferenas de grau

    e de ordem .......................................................................... 393

    CAPTULO III - As ligaes que fundamentam a estrutura do real .................................................................. 399

    a) O fundamento pelo caso particular ................................. 399 78. A argumentao pelo exemplo......................................... 399 79. A ilustrao ......................................................................... 407 80. O modelo e o antimodelo .................................................. 413 81. O Sei perfeito como modelo ............................................. 419

    b) O raciocnio por analogia ............................................... 423 82. O que a analogia .............................................................. 423 83. Relaes entre os termos de uma analogia ..................... 427 84. Efeitos da analogia ............................................................. 434 85. Como se utiliza a analogia ................................................ 438 86. O estatuto da analogia ....................................................... 447 87. A metfora .......................................................................... 453 88. As expresses com sentido metafrico ou metforas

    adormecidas ....................................................................... 459

    CAPTLILO IV - A dissociao das noes ...................... 467

    89. Ruptura de ligao e dissociao ..................................... 467 90. O par "aparncia-realidade" ............................................. 472 91. Os pares filosficos e sua justificao .............................. 477 92. O papel dos pares filosficos e suas transformaes484 93. A expresso das dissociaes ........................................... 495 94. Enunciados que incentivam a dissociao ...................... 502 95. As definies dissociadoras ....................................... 504 96. A retrica como expediente ....................................... 511 CAPTULO V - A interao dos argumentos .......................... 523

    97. Interao e fora dos argumentos .................................... 523 98. A apreciao da fora dos argumentos, fator de

    argumentao.................................................................. 529 99. A interao por convergncia ........................................... 534 100. A amplitude da argumentao ...................................... 538 101. Os perigos da amplitude ................................................. 544 102. Os paliativos para os perigos da amplitude ................. 550

  • 103. Ordem e persuaso ......................................................... 555 104. Ordem do discurso e condicionamento do auditrio .. 560 105. Ordem e mtodo .............................................................. 567

    Concluso ...................................................................................... 575 Notas .......................................................................................... 583 Lista das obras citadas ................................................................... 629

    Prefcio edio brasileira Fbio Ulhoa Coelho

    instigante como algumas idias, embora importantes quando irrompem na filosofia, acabam por esmaecer e chegam at ao completo desaparecimento, para, aps sculos, ressurgirem vigorosas e renovadas, em contexto histrico substancialmente diverso. Esse , entre outros, o caso da noo aristotlica de dialtica, cujas exatas implicaes foram pouco a pouco ignoradas ao longo da trajetria da filosofia ocidental. De fato, embora tenha, no pensamento de Aristteles, tanta importncia quanto os silogismos analticos, essa noo no mereceu, e no tem merecido, igual ateno dos filsofos. Os dois modos bsicos de raciocinar propostos pelo grande pensador da Antiguidade - isto , por demonstrao analtica ou por argumentao dialtica - no foram desenvolvidos, explorados ou sequer considerados, na mesma medida, valendo a pena refletir sobre as razes de tal desequilbrio.

    No quinto captulo do Organon, reuniram-se os escritos de Aristteles dedicados a uma especfica forma de raciocnio, que parte de premissas meramente provveis. O captulo denominou-se Tpicos, e, logo na introduo, estabelecido um paralelo entre o silogismo analtico e o dialtico. O primeiro se traduz numa demonstrao fundada em proposies evidentes,

  • XII TRATADO DA ARGUMENTAO que conduz o pensamento concluso verdadeira, sobre cujo estudo se alicera toda a lgica formal; o outro se expressa atravs de um argumento sobre enunciados provveis, dos quais se poderiam extrair concluses apenas verossmeis, representando uma forma diversa de raciocinar. Evidentes, para Aristteles, so as proposies que por si mesmas garantem a prpria certeza, ao passo que provveis so as que enunciam opinies aceitas por todos, pela maioria ou pelos sbios - em especial, entre esses ltimos, pelos "mais notveis e ilustres". No se nota, no pensamento aristotlico, qualquer sugesto de hierarquia entre essas duas maneiras de raciocnio: elas no se excluem mutuamente, no se sobrepem, no substituem uma outra.

    O que se perdeu, na evoluo do pensamento filosfico, pelas mos do cristianismo e do racionalismo, foi exatamente a equiparao, na importncia, dos raciocnios analtico e dialtico. Isto , relegada ao plano dos sofismas, identificada s tcnicas de persuaso sem compromisso tico, aos discursos vazios de oradores hbeis em convencer auditrios, quaisquer que fossem as teses, a dialtica no alcanou o estatuto de seriedade e consistncia concedido sua irm, a analtica. A filosofia, com efeito, deu relevncia aos mtodos do conhecimento, o quanto possvel rigoroso, da verdade, coisa que, decididamente, a dialtica nunca foi.

    A prpria expresso dialtica nem sequer conservou seu sentido original. Em Hegel, no sculo XIX, o termo se refere s contradies inerentes ao movimento de negao interna em que se manifesta o Esprito. J nos quadrantes da inverso marxista, reporta-se aos movimentos da realidade histrica, externa ao pensamento humano. De qualquer modo, perdida a noo aristotlica, aproveita-se a expresso para coisas diferentes.

    Nesse contexto, impossvel no se lembrar de Fou- cault e da genealogia dos saberes: o conhecimento acerca dos processos mentais, que foram mais tarde denominados persuaso ou convencimento - nascidos com os sofistas, a partir das necessidades prticas de discusso e deliberao poltica no seio da organizao democrtica grega a despeito do refinamento aristotlico, passa a ser considerado um saber menor e desprezado pela tradio filosfica. Inicialmente, o desprezo vem com o cristianismo, que no poderia, em suas formulaes iniciais, conviver com a idia de multiplicidade de premissas, igualmente aproveitveis como ponto de partida para a argumentao. Com efeito, se a verdade fundamental do conhecimento humano nos

  • PREFCIO EDIO BRASILEIRA XIII

    revelada por Deus, no h como atribuir igual importncia a um raciocnio fundado em meras opinies de homens que, por mais sbios, notveis e ilustres que sejam, esto contaminados pelo pecado original. Posteriormente, o desprezo pelo "saber persuadir e convencer" parte do racionalismo, para o qual a forma suficiente de conhecimento a cientfica, capaz de explicar tudo e todos segundo padres de racionalidade. As opinies ou bem so teses, a reclamarem prova racional pelo mtodo cientfico, ou so conceitos descartveis (por perniciosos ou, ao menos, inteis).

    Ao ser tomado por mera tcnica a servio de interesses mesquinhos - os quais, por no conseguirem se afirmar por sua prpria "verdade", se vem na contingncia de lanar mo de quaisquer meios para obter a adeso dos interlocutores o raciocnio dialtico, tal como formulado por Aristteles, vtima de uma grande injustia. Ele, rigorosamente falando, no se reduz a expedientes retricos guiados exclusivamente pelo objetivo de vitria nos embates polticos ou forenses, acusao que costuma pesar contra os sofistas. O raciocnio dialtico, j nos Tpicos, distinguido com clareza do chamado silogismo erstico, alicerado em premissas apenas aparentemente provveis. Quer dizer, ao tomar como objeto de sua preocupao filosfica o estudo da maneira especfica de raciocinar por argumentos, Aristteles no pretendeu que qualquer encadeamento entre proposies, que desrespeitasse os -postulados da demonstrao analtica, pudesse, to-somente pela fora retrica de quem o sustentava, alcanar o estatuto de argumentao dialtica. Em outros termos, a preocupao do pensamento filosfico no sentido de no legitimar todas e quaisquer manifestaes do intelecto humano - mas apenas as resultantes de determinado mtodo, que possibilite o controle de sua pertinncia - tambm estava, de algum modo, presente na reflexo aristotlica. Assim, s possvel entender a hie- rarquizao do raciocnio por demonstrao analtica e o descarte do raciocnio dialtico no contexto das necessidades histricas e na coerncia interna das grandes expresses filosficas que se seguiram ao perodo clssico.

    Vinte e trs sculos se passam enquanto a filosofia prestigia, do legado aristotlico, apenas o modo analtico de raciocinar. Ningum manifesta preocupao em resgatar a idia de dialtica como um saber necessrio, srio, pertinente, sujeito a regras prprias e, portanto, controlvel. Somente a partir de 1947, na Blgica, Chaim Perelman ir alterar esse quadro, dando incio, juntamente com sua colaboradora Lude Olbrechts-Tyteca, a

  • XIV TRATADO DA ARGUMENTAO pesquisas que resultaro, em 1958, na publicao do Tratado da argumentao. O pioneirismo de Perelman, na reabilitao da retrica, unanimemente reconhecido. Antes dele, a noo aristotlica, e as extraordinrias possibilidades que propicia, no despertaram o interesse de sucessivas geraes de filsofos. certo, tambm, por outro lado, que o pensador belga no se limitou a transpor acriticamente o conceito de dialtica da Antiguidade aos nossos dias. Pelo contrrio, suas reflexes sobre o discurso argumentativo e a introduo dos conceitos de auditrio interno e universal ampliaram, de modo significativo, o conhecimento acerca desse processo de comunicao.

    O ponto de partida de Perelman o modo pelo qual se entendeu, a partir da codificao napolenica principalmente, o raciocnio jurdico, isto , o relacionado com a aplicao do direito. Considerou-se, com efeito, durante muito tempo, que esse raciocnio seria uma operao dedutiva a partir das normas positivas, que, em funo do princpio da legalidade, deveriam servir de premissas necessrias. Tal modo de entender o processo, no entanto, deveria ser capaz de explicar como se opera a interferncia dos juzos de valor do aplicador da norma. Assim, a menos que se postulasse a desqualificao da questo como objeto da cincia jurdica, tal como tentado por Kelsen, a teoria do direito no a poderia negligenciar. Em outros termos, era necessrio definir se os julgamentos expressam apenas as emoes, interesses e impulsos do julgador, inserindo-se o processo de aplicao do direito no campo do irracional, ou se existiria uma lgica dos julgamentos de valor.

    Em sua obra Da justia, de 1945, Perelman inclinou-se pela primeira soluo. Nela, procurou explorar e fundamentar uma noo de justia formal, de inspirao assumidamente positivista, segundo a qual o justo se traduz em dispensar tratamento igual a situaes que se revelam, no essencial, semelhantes. Esse conceito de justia somente se pode operar a partir de um julgamento de valor acerca dos traos a tomar por relevantes, na aproximao ou no afastamento entre qualquer nova situao e a que serve de precedente. Os julgamentos de valor, entretanto, apresentam-se inteiramente arbitrrios, insuscetveis de tratamento racional, nos escritos da fase inicial do pensamento perelmaniano. J nas obras da maturidade, a resposta questo da interferncia dos valores muda significativamente. Perelman percebe que considerar irracional a aplicao do direito importa renunciar a qualquer filosofia prtica e abandonar a disciplina da conduta humana ao

  • PREFCIO EDIO BRASILEIRA XV

    sabor de emoes e interesses, quer dizer, confi-la violncia. Insatisfeito com a afirmao da irracionalidade da aplicao do direito, Perelman elege como projeto terico a pesquisa de uma "lgica dos julgamentos de valor". Da nascer a nova retrica.

    A preocupao bsica de Perelman, de entender os meandros pelos quais os valores se introduzem no processo de subsuno de fatos a normas gerais, tpica de sua gerao. E a mesma preocupao, por exemplo, de Recasns Siches, formulador da lgica do razovel, ou mesmo de Miguel Reale, em sua teoria tridimensional do direito. Mas os caminhos explorados pelo pensador belga apresentam a particularidade de se enraizarem num pensamento filosfico de primeira ordem, o aristotlico, e de desbravarem novos rumos. Alm do mais, o resgate da noo de raciocnio dialtico, embora motivado por questes originariamente jurdicas, situa a contribuio de Perelman entre as mais significativas, da segunda metade do sculo XX, para a prpria Filosofia.

    A nova retrica enseja possibilidades inditas para a teoria do conhecimento jurdico, uma vez que estabelece a ligao entre a aplicao de normas e o raciocnio dialtico, em sua formulao aristotlica. Ora, o pressuposto de tal liame a negao da existncia de interpretaes jurdicas "verdadeiras". As premissas da argumentao no so evidentes mas resultam de um acordo entre quem argumenta e seu auditrio: so as opinies de que falava Aristteles. O saber fundado em tais premissas pode ser verossmil, ou no, mas nunca ser verdadeiro ou falso. Em outros termos, no se ocupa o conhecimento jurdico de qual seria a deci-so judicial ou administrativa verdadeiramente derivada de uma norma geral, com excluso de todas as outras, as falsamente derivadas; ocupa-se, isto sim, dos meios de sustentar determinada deciso como sendo mais justa, eqitativa, razovel, oportuna ou conforme o direito do que outras tantas decises igualmente cabveis.

    A contribuio de Perelman para a filosofia do direito fundamental, enquanto uma das principais propulsoras da ruptura anticientificista em curso. De fato, nesse final de sculo a teoria do conhecimento jurdico passa por uma ruptura de suma importncia, capaz de redirecionar totalmente sua trajetria. Trata-se da reflexo inspirada pelo esgotamento do modelo cientificista do conhecimento do direito, presente na trajetria at agora desenhada pela teoria jurdica. Aps Kelsen, que, ao explorar os limites da cincia do direito, acabou por exaurir as

  • XVI TRATADO DA ARGUMENTAO possibilidades de desenvolvimento do projeto, dedica-se hoje uma parte dos jusfilsofos a examinar a natureza do saber concentrado na interpretao das normas. Pe-se em questo exatamente o estatuto cientfico desse saber. Em Trcio Sampaio Ferraz Jr., por exemplo, como o problema que se prope a dogmtica jurdica no o da verdade ou da falsidade de seus enunciados mas as pautas de decises possveis, ela se manifesta como pensamento tecnolgico, e no cientfico. O estudioso do direito conheceria, a rigor, a adequabilidade de meios (isto , as muitas interpretaes possveis de uma norma jurdica) para o alcance de fins dados externamente a seu saber (a administrao de conflitos sociais, a manuteno da organizao econmica, poltica, social etc.); ade- quabilidade essa que no se revela por demonstrao lgi- co-dedutiva mas por argumentao retrica.

    Das novas e muitas perspectivas abertas pela ruptura antcientificista no seio da filosofia jurdica, destacam-se duas por sua importncia. Primeira, a perda do carter normativo da teoria do conhecimento jurdico; segunda, a integrao entre a produo doutrinrio-acadmica e o cotidiano profissional do direito.

    De fato, os jusfilsofos tm despendido esforos e tempo, em abundante literatura, na discusso sobre as condies para a construo da cincia do direito. As obras de Kelsen e Alf Ross, assim como as dos principais juristas marxistas, de muitos lgicos do direito e dos adeptos da anlise econmica, tm em comum o trao de ditarem regras norteadoras do mtodo cientfico que cada qual elege como o correto. Apontam, em suma, cautelas e procedimentos que deveriam ser adotados pelos estudiosos do direito para se assegurarem da certeza e da veracidade do conhecimento que produzem. Desse modo, a filosofia jurdica tem revelado, principalmente no sculo XX, uma indisfarvel natureza normativa. O abandono do projeto cientificista inverte o sentido da reflexo jusfilosfica, que passa a descrever o processo de produo do conhecimento do direito, no mais postulando a adoo de determinado mtodo como pressuposto de qualificao desse conhecimento.

    Por outro lado, ao reconhecer o estatuto tecnolgico do conhecimento jurdico, a filosofia do direito rene o que foi separado pela epistemologia normativa, isto , o trabalho cotidiano dos profissionais (advogado, juiz, promotor de justia etc.) e a produo doutrinria. Se se adota, por exemplo, a teoria de Kelsen, necessrio distinguir a redao de uma petio inicial, da elaborao de uma monografia sobre tema jurdico, negando-se

  • PREFCIO EDIO BRASILEIRA XVII

    peremptoriamente primeira a natureza cientfica, que poder ter a ltima no interior da teoria kelseniana. O que se deve fazer na academia - a cincia do direito - no influi no que se faz fora dela - postulaes judiciais e julgamentos. Tal separao eliminada pela ruptura anticientificista, uma vez que todos os chamados operadores do direito - nesse conceito engloban- do-se desde os doutrinadores e jurisconsultos at os advogados e juzes - so tidos como articuladores de argumentos convincentes, gnoseologicamente situados em p de igualdade.

    Essas duas perspectivas inauguradas pela ruptura anti-cientificista servem como exemplo do potencial representado pelo novo enfoque jusfilosfico; enfoque que muito deve a Perelman, inegavelmente um de seus inspiradores mais destacados. Desse modo, conhecer sua obra - em especial o Tratado da argumentao, que recebe agora primorosa traduo para o portugus -, indispensvel a todos os profissionais do direito, cujas preocupaes se ponham alm das lides cotidianas, alcanando questes sobre o prprio sentido do trabalho que realizam. Assimilar seus ensinamentos , sem dvida, essencial para compreender nosso tempo.

    Prefcio Michel Meyer

    Quando as ditions de l'Universit de Bruxelles me pediram que preparasse a nova edio do Tratado, devo confessar que hesitei muito antes de aceitar. Afinal de contas, trata-se de um dos grandes clssicos do pensamento contemporneo, de uma dessas raras obras que, tais como as de Aristteles e de Ccero, de Quintiliano e de Vico, atravessaro os sculos, sem necessitar realmente de introduo para tanto.

    Afora a fidelidade a um pensamento que h muito tempo identifica a Escola de Bruxelas e a um homem que foi um amigo e

  • XVIII TRATADO DA ARGUMENTAO

    um grande inspirador, o que me decidiu, por fim, a redigir as poucas linhas que se seguem foi precisamente o cuidado de tornar a situar o Tratado tanto com relao tradio retrica quanto com relao filosofia em geral. Pois em nenhuma parte do Tratado evidencia-se claramente o que constitui a especificidade da abordagem definida pela Nova Retrica. Preocupados em pr em prtica sua prpria viso, os autores no se preocuparam muito, afinal, em situar historicamente a si mesmos, como o fez, porm, a maioria dos pensadores desde Aristteles.

    Em primeiro lugar, algumas palavras sobre a Escola de Bruxelas. Ningum, hoje, pode dizer se ela sobreviver, mas uma coisa certa: com Duprel e Perelman e, atualmente, com a Problematologia, nasceu, cresceu e desenvol- veu-se, de modo nico e contnuo, para enfrentar o que se convencionou chamar de essncia do pensamento, uma filosofia especfica que faz a originalidade de Baixelas.

    A retrica ressurge sempre em perodo de crise. A derrocada do mito, entre os gregos, coincide com o grande perodo sofista. A impossibilidade de fundar a cincia moderna e sua apodicticidade matemtica, mediante a escolstica e a teologia, herdadas de Aristteles, conduz retrica do Renascimento. Hoje, o fim das grandes explicaes monolticas, das ideologias e, mais profundamente, da racionalidade cartesiana estribada num tema livre, absoluto e instaurador da realidade, e mesmo de todo o real, assinala o fim de uma certa concepo do logos. Este j no tem fundamento indiscutvel, o que deixou o pensamento entregue a um cepticismo moderno, conhecido pelo nome de niilismo, e a uma reduo da razo, tranqiiilizadora porm limitada, o positivismo. Entre o "tudo permitido" e "a racionalidade lgica a prpria racionalidade", surgiu a Nova Retrica e, de um modo geral, toda a obra de Perelman. Como atribuir Razo um campo prprio, que no se reduz lgica, demasiado estreita para ser modelo nico, nem se submete mstica do Ser, ao silncio wittgensteiniano, ao abandono da filosofia em nome do fim - aceito por Perelman - da metafsica, em proveito da ao poltica, da literatura e da poesia? A retrica esse espao de razo, onde a renncia ao fundamento, tal como o concebeu a tradio, no se identificar forosamente desrazo. Uma filosofia sem metafsica deve ser possvel, porquanto de agora em diante no h outra alternativa. O fundamento - a "razo cartesiana", em suma - fazia

  • PREFCIO XIX

    as vezes de critrio a priori para desempatar as teses opostas. A Nova Retrica , ento, o "discurso do mtodo" de uma racionalidade que j no pode evitar os debates e deve, portanto, trat-los e analisar os argumentos que governam as decises. J no se trata de privilegiar a univocidade da linguagem, a unicidade a priori da tese vlida, mas sim de aceitar o pluralismo, tanto nos valores morais como nas opinies. A abertura para o mltiplo e o no-coercivo torna-se, ento, a palavra-mestra da racionalidade.

    O pensamento contemporneo, porm, quase no ouviu o que Perelman propunha. Ao abandono do cartesianis- mo, sucedeu uma filosofia centrada na nostalgia do ser. Contudo, se Descartes recusara a ontologia, era precisamente porque o ser, expressando-se de mltiplas maneiras, no podia servir nem de fundamento, nem de critrio de discur- sividade racional. Entre a ontologia, dotada de uma flexibilidade oca, mas infinita, e a racionalidade apodctica, matemtica ou silogstica, mas limitada, Perelman tomou uma terceira via: a argumentao, que raciocina sem coagir, mas que tambm no obriga a renunciar Razo em proveito do irracional ou do indizvel.

    Introduo

    i

    A publicao de um tratado consagrado argumentao e sua vinculao a uma velha tradio, a da retrica e da dialtica gregas, constituem uma ruptura com uma concepo da razo e do raciocnio, oriunda de Descartes, que marcou com seu cunho a filosofia ocidental dos trs ltimos sculos1.

  • 2 TRATADO DA ARGUMENTAO

    Com efeito, conquanto no passe pela cabea de ningum negar que o poder de deliberar e de argumentar seja um sinal distintivo do ser racional, faz trs sculos que o estudo dos meios de prova utilizados para obter a adeso foi completamente descurado pelos lgicos e tericos do conhecimento. Esse fato deveu-se ao que h de no-coercivo nos argumentos que vm ao apoio de uma tese. A prpria natureza da deliberao e da argumentao se ope necessidade e evidncia, pois no se delibera quando a soluo necessria e no se argumenta contra a evidncia. O campo da argumentao o do verossmil, do plausvel, do provvel, na medida em que este ltimo escapa s certezas do clculo. Ora, a concepo claramente expressa por Descartes, na primeira parte do Discurso do mtodo, era a de considerar "quase como falso tudo quanto era apenas verossmil". Foi ele que, fazendo da evidncia a marca da razo, no quis considerar racionais seno as demonstraes que, a partir de idias claras e distintas, estendiam, merc de provas apodcticas, a evidncia dos axiomas a todos os teoremas.

    O raciocnio more geometrico era o modelo proposto aos filsofos desejosos de construir um sistema de pensamento que pudesse alcanar a dignidade de uma cincia. De fato, uma cincia racional no pode contentar-se com opinies mais ou menos verossmeis, mas elabora um sistema de proposies necessrias, que se impe a todos os seres racionais e sobre as quais o acordo inevitvel. Da resulta que o desacordo sinal de erro. "Todas as vezes que dois homens formulam sobre a mesma coisa um juzo contrrio, certo", diz Descartes, "que um dos dois se engana. H mais, nenhum deles possui a verdade; pois se um tivesse dela uma viso clara e ntida poderia exp-la a seu ad-versrio, de tal modo que ela acabaria por forar sua convico2."

    Para os partidrios das cincias experimentais e indutivas, o que conta menos a necessidade das proposies do que a sua verdade, sua conformidade com os fatos. O empirista considera como prova no "a fora qual o esprito cede e v-se obrigado a ceder, mas aquela qual ele deveria ceder, aquela que, impondo-se a ele, tornaria a sua crena conforme ao fato"-. Embora a evidncia por ele reconhecida no seja a da intuio racional, mas a da intuio sensvel, embora o mtodo por ele preconizado no seja o das cincias dedutivas, mas o das cincias experimentais, ainda assim est convencido de que as nicas provas vlidas so as provas reconhecidas pelas cincias naturais.

    racional, no sentido lato da palavra, o que conforme aos mtodos cientficos; e as obras de lgica consagradas ao estudo dos meios de prova, limitadas essencialmente ao estudo da deduo e habitualmente completadas por indicaes sobre o raciocnio indutivo, reduzidas, alis, no aos meios de construir

  • INTRODUO 3 mas de verificar, as hipteses, aventuram-se muito raramente no exame dos meios de prova utilizados nas cincias humanas. Com efeito, o lgico, inspi- rando-se no ideal cartesiano, s se sente vontade no estudo das provas que Aristteles qualificava de analticas, pois todos os outros meios no apresentam o mesmo carter de necessidade. E essa tendncia acentuou-se mais ainda h um sculo, quando, sob a influncia de lgicos-matemti- cos, a lgica foi limitada lgica formal, ou seja, ao estudo dos meios de prova utilizados nas cincias matemticas. Da resulta que os raciocnios alheios ao campo puramente formal escapam lgica e, com isso, tambm razo. Essa razo, da qual Descartes esperava que permitisse, pelo menos em princpio, resolver todos os problemas que se colocam aos homens e cuja soluo o esprito divino j possui, ficou cada vez mais limitada em sua competncia, de sorte que o que escapa a uma reduo ao formal lhe apresenta dificuldades insuperveis.

    Deveramos, ento, tirar dessa evoluo da lgica e dos incontestveis progressos por ela realizados a concluso de que a razo totalmente incompetente nos campos que escapam ao clculo e de que, onde nem a experincia, nem a deduo lgica podem fornecer-nos a soluo de um problema, s nos resta abandonarmo-nos s foras irracionais, aos nossos instintos, sugesto ou violncia?

    Opondo a vontade ao entendimento, o esprit de finesse ao esprit de gomtrie, o corao razo e a arte de persuadir de convencer, Pascal j procurara obviar as insuficincias do mtodo geomtrico resultantes do fato de o homem, decado, j no ser unicamente um ser de razo.

    a finalidades anlogas que correspondem a oposio kantiana entre f e cincia e a anttese bergsoniana entre a intuio e a razo. Mas, quer se trate de filsofos racionalistas, quer daqueles qualificados de anti-racionalistas, todos continuam a tradio cartesiana com a limitao imposta idia de razo.

    Parece-nos, ao contrrio, que esta uma limitao indevida e perfeitamente injustificada do campo onde intervm nossa faculdade de raciocinar e de provar. Com efeito, ao passo que Aristteles j analisara as provas dialticas ao lado das provas analticas, as que se referem ao verossmil ao lado das que so necessrias, as que so empregadas na deliberao e na argumentao ao lado das que so utilizadas na demonstrao, a concepo ps-cartesiana da razo nos obriga a fazer intervir elementos irracionais, cada vez que o objeto do conhecimento no evidente. Consistam esses elementos em obstculos que devem ser superados - tais como a imaginao, a paixo ou a sugesto - ou em fontes supra-racionais de certeza, como o corao, a graa, o Einfhlung

  • 4 TRATADO DA ARGUMENTAO

    ou a intuio bergsoniana, essa concepo introduz uma dicotomia, uma distino das faculdades humanas inteiramente artificial e contrria aos procedimentos reais de nosso pensamento.

    a idia de evidncia, como caracterstica da razo, que cumpre criticar, se quisermos deixar espao para uma teoria da argumentao que admita o uso da razo para dirigir nossa ao e para influenciar a dos outros. A evidncia concebida, ao mesmo tempo, como a fora qual toda mente normal tem de ceder e como sinal de verdade daquilo que se impe por ser evidente4. A evidncia ligaria o psicolgico ao lgico e permitiria passar de um desses planos para o outro. Toda prova seria reduo evidncia e o que evidente no teria necessidade alguma de prova: a aplicao imediata, por Pascal, da teoria cartesiana da evidncia5.

    J Leibniz se insurgia contra essa limitao que queriam, assim, impor lgica. Ele queria, de fato, "que demonstrassem ou proporcionassem o meio de demonstrar todos os Axiomas que no so primitivos; sem distinguir a opinio que os homens tm deles e sem se preocupar se, para tanto, eles lhe do seu consentimento ou no"6.

    Ora, a teoria lgica da demonstrao desenvolveu-se seguindo Leibniz, e no Pascal, e no admitiu que o que era evidente no tinha necessidade alguma de prova; da mesma forma, a teoria da argumentao no se pode desenvolver se toda prova concebida como reduo evidncia. Com efeito, o objeto dessa teoria o estudo das tcnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adeso dos espritos s teses que se lhes apresentam ao assentimento. O que caracteriza a adeso dos espritos sua intensidade ser varivel: nada nos obriga a limitar nosso estudo a um grau particular de adeso, caracterizado pela evidncia, nada nos permite considerar a priori que os graus de adeso a uma tese sua probabilidade so proporcionais, nem identificar evidncia e verdade. de bom mtodo no confundir, no incio, os aspectos do raciocnio relativos verdade e os que so relativos adeso, e sim estud-los separadamente, nem que seja para preocupar-se posteriormente com sua interferncia ou com sua correspondncia eventuais. Somente com essa condio que possvel o desenvolvimento de uma teoria da argumentao de alcance filosfico.

  • INTRODUO 5 II

    Embora nestes trs ltimos sculos tenham sido lanadas obras de eclesisticos preocupados com problemas levantados pela f e pela prdica7, embora o sculo XX possa mesmo ter sido qualificado de sculo da publicidade e da propaganda, e tenham sido dedicados numerosos trabalhos a essa matria8, os lgicos e os filsofos modernos, por sua vez, se desinteressaram completamente pelo nosso assunto. por esta razo que nosso tratado se relaciona sobretudo com as preocupaes do Renascimento e, conseqentemente, com as dos autores gregos e latinos, que estudaram a arte de persuadir e de convencer, a tcnica da deliberao e da discusso. por essa razo tambm que o apresentamos como uma nova retrica.

    Nossa anlise concerne s provas que Aristteles chama de dialticas, examinadas por ele nos Tpicos, e cuja utilizao mostra na Retrica. Essa evocao da terminologia de Aristteles teria justificado a aproximao da teoria da argumentao dialtica, concebida pelo prprio Aristteles como a arte de raciocinar a partir de opinies geralmente aceitas (e\>X.o-yo)". Vrias razes, porm, incentivaram-nos a preferir a aproximao retrica.

    A primeira delas o risco de confuso que essa volta a Aristteles poderia trazer. Pois se a palavra dialtica serviu, durante sculos, para designar a prpria lgica, desde Hegel e por influncia de doutrinas nele inspiradas ela adquiriu um sentido muito distante de seu sentido primitivo, geralmente aceito na terminologia filosfica contempornea. No ocorre o mesmo com a palavra retrica, cujo emprego filosfico caiu em tamanho desuso, que nem sequer mencionada no vocabulrio de filosofia de A. Lalande. Esperamos que nossa tentativa far reviver uma tradio gloriosa e secular.

    Mas outra razo, muito mais importante, a nosso ver, motivou nossa escolha: o prprio esprito com o qual a Antiguidade se ocupou de dialtica e de retrica. O raciocnio dialtico considerado paralelo ao raciocnio analtico, mas trata do verossmil em vez de tratar de proposies necessrias. A prpria idia de que a dialtica concerne a opinies, ou seja, a teses s quais se adere com uma intensidade varivel, no foi aproveitada. Dir-se-ia que o estatuto do opinvel impessoal e que as opinies no so relativas aos espritos que a elas aderem. Em contrapartida, essa idia de adeso e de espritos aos quais se dirige um discurso essencial em todas as teorias antigas da retrica. Nossa aproximao desta ltima visa a enfatizar o fato de que em funo de um auditrio que qualquer argumentao se desenvolve. O estudo do opinvel dos Tpicos poder, nesse contexto, inserir-se em seu lugar.

    evidente, entretanto, que nosso tratado de argumentao ultrapassar, em certos aspectos - e amplamente os limites da

  • 6 TRATADO DA ARGUMENTAO

    retrica antiga, ao mesmo tempo que deixar de lado outros aspectos que haviam chamado a ateno dos mestres de retrica.

    O objeto da retrica antiga era, acima de tudo, a arte de falar em pblico de modo persuasivo; referia-se, pois, ao uso da linguagem falada, do discurso, perante uma multido reunida na praa pblica, com o intuito de obter a adeso desta a uma tese que se lhe apresentava. V-se, assim, que a meta da arte oratria - a adeso dos espritos - igual de qualquer argumentao. Mas no temos razes para limitar nosso estudo apresentao de uma argumentao oral e para limitar a uma multido reunida numa praa o gnero de auditrio ao qual nos dirigimos.

    A rejeio da primeira limitao resulta do fato de nossas preocupaes serem muito mais as de um lgico desejoso de compreender o mecanismo do pensamento do que as de um mestre de eloqncia cioso de formar praticantes; basta-nos citar a Retrica de Aristteles para mostrar que nosso modo de encarar a retrica pode prevalecer-se de exemplos ilustres. Nosso estudo, preocupando-se sobretudo com a estrutura da argumentao, no insistir, portanto, na maneira pela qual se efetua a comunicao com o auditrio.

    Conquanto seja verdade que a tcnica do discurso pblico difere daquela da argumentao escrita, como nosso cuidado analisar a argumentao, no podemos limitar- nos ao exame da tcnica do discurso oral. Alm disso, visto a importncia e o papel modernos dos textos impressos, nossas anlises se concentraro sobretudo neles.

    Em contrapartida, deixaremos de lado a mnemotcnica e o estudo da elocuo ou da ao oratria. Tais problemas so da competncia dos conservatrios e das escolas de arte dramtica; dispensamo-nos de seu exame.

    A nfase dada aos textos escritos trar como resultado, por estes se apresentarem nas formas mais variadas, que o nosso estudo ser concebido em toda a sua generalidade e no se deter especialmente em discursos encarados como uma unidade de uma estrutura e de um tamanho mais ou menos convencionalmente aceitos. Como, de outro lado, a discusso com um nico interlocutor ou mesmo a deliberao ntima dependem, em nossa opinio, de uma teoria geral da argumentao, compreende-se que a idia que temos do objeto de nosso estudo excede largamente o da retrica clssica.

    O que conservamos da retrica tradicional a idia mesma de auditrio, que imediatamente evocada assim que se pensa num discurso. Todo discurso se dirige a um auditrio, sendo muito freqente esquecer que se d o mesmo com todo escrito. Enquanto o discurso concebido em funo direta do auditrio, a ausncia material de leitores pode levar o escritor a crer que est

  • INTRODUO 7 sozinho no mundo, conquanto, na verdade, seu texto seja sempre condicionado, consciente ou inconscientemente, por aqueles a quem pretende dirigir-se.

    Assim, por razes de comodidade tcnica e para jamais perder de vista esse papel essencial do auditrio, quando utilizarmos os termos "discurso", "orador" e "auditrio", en-tenderemos com isso a argumentao, aquele que a apresenta e aqueles a quem ela se dirige, sem nos determos no fato de que se trata de uma apresentao pela palavra ou pela escrita, sem distinguir discurso em forma e expresso fragmentria do pensamento.

    Se, entre os antigos, a retrica se apresentava como o estudo de uma tcnica para o uso do vulgo, impaciente por chegar rapidamente a concluses, por formar uma opinio para si, sem se dar ao trabalho prvio de uma investigao sria10, quanto a ns, no queremos limitar o estudo da argumentao quela que adaptada a um pblico de ignorantes. este aspecto da retrica que explica ter ela sido ferozmente combatida por Plato em seu Grgias11 e foi ele que favoreceu seu declnio na opinio filosfica.

    Com efeito, se quiser agir, o orador obrigado a adaptar-se a seu auditrio, sendo facilmente compreensvel que o discurso mais eficaz sobre um auditrio incompetente no necessariamente o que comporta a convico do filsofo. Mas por que no admitir que algumas argumentaes possam ser dirigidas a toda espcie de auditrios? Quando Plato sonha, em Fedro, com uma retrica que, esta sim, seria digna do filsofo, o que ele preconiza uma tcnica que poderia convencer os prprios deuses12. Mudando o auditrio, a argumentao muda de aspecto e, se a meta a que ela visa sempre a de agir eficazmente sobre os espritos, para julgar-lhe o valor temos de levar em conta a qualidade dos espritos que ela consegue convencer.

    Isso justifica a importncia particular que concederemos anlise das argumentaes filosficas, tradicionalmente consideradas as mais "racionais" possveis, justamente por se presumir que se dirigem a leitores sobre os quais a sugesto, a presso ou o interesse tm pouca ascendncia. Mostraremos, alis, que as mesmas tcnicas de argumentao se encontram em todos os nveis, tanto no da discusso ao redor da mesa familiar como no do debate num meio muito especializado. Se a qualidade dos espritos que aderem a certos argumentos, em campos altamente especulativos, apresenta uma garantia do seu valor, a afinidade da sua estrutura com a dos argumentos utilizados nas discusses cotidianas explicar por que e como se chega a compreend-los.

  • 8 TRATADO DA ARGUMENTAO

    Nosso tratado s versar sobre recursos discursivos para se obter a adeso dos espritos: apenas a tcnica que utiliza a linguagem para persuadir e para convencer ser examinada a seguir.

    Essa limitao no implica em absoluto que, a nosso ver, esse seja realmente o modo mais eficaz de atuar sobre os espritos, muito pelo contrrio. Estamos firmemente convencidos de que as crenas mais slidas so as que no s so admitidas sem prova, mas tambm, muito amide, nem sequer so explicitadas. E, quando se trata de obter a adeso, nada mais seguro do que a experincia externa ou interna e o clculo conforme a regras previamente aceitas. Mas o recurso argumentao no pode ser evitado quando tais provas so discutidas por uma das partes, quando no h acordo sobre seu alcance ou sua interpretao, so-bre seu valor ou sua relao com os problemas debatidos.

    Por outro lado, qualquer ao que visa a obter a adeso cai fora do campo da argumentao, na medida em que nenhum uso da linguagem vem apoi-la ou interpret-la: aquele que prega com o exemplo sem nada dizer e aquele que usa o afago ou o tapa podem obter um resultado aprecivel. Ns s nos interessaremos

    por esses procedimentos quando, graas linguagem, eles forem postos em evidncia, quer se recorra a promessas, quer a ameaas. Casos ainda h - tais como a bno e a praga - em que a lingua-gem utilizada como meio de ao direta mgica e no como meio de comunicao. Trataremos deles apenas se essa ao estiver integrada numa argumentao.

    Um dos fatores essenciais da propaganda, tal como ela se desenvolveu sobretudo no sculo XX, mas cujo uso era bem conhecido desde a Antiguidade e que a Igreja catlica aproveitou com incomparvel mestria, o condicionamento do auditrio merc de numerosas e variadas tcnicas que utilizam tudo quanto pode influenciar o comportamento. Essas tcnicas exercem um

    efeito inegvel para preparar o auditrio, para torn-lo mais acessvel aos argumentos que se lhe apresentaro. Esse mais um ponto de vista que nossa anlise deixar de lado: trataremos apenas do condicionamento do auditrio mediante o discurso, do que resultam consideraes sobre a ordem em que os argumentos devem ser apresentados para exercer maior efeito.

    Enfim, as provas extratcnicas, como as chama Aristteles13 - ou seja, as que no dependem da tcnica retrica s entraro em nosso estudo quando houver desacordo acerca das concluses que delas se podem tirar. Pois inte- ressamo-nos menos pelo desenrolar completo de um debate do que pelos esquemas argumentativos empregados. A antiga denominao de "provas

    extratcnicas" adequada para nos lembrar que, enquanto nossa

  • INTRODUO 9 civilizao, caracterizada por sua extrema engenhosidade nas

    tcnicas destinadas a atuar sobre as coisas, esqueceu completamente a teoria da argumentao, da ao sobre os espritos por meio do discurso, esta era considerada pelos gregos, com o nome de retrica, a txvt\ por excelncia.

  • 10 TRATADO DA ARGUMENTAO

  • III

    TRATADO DA ARGUMENTAO

    Como a teoria da argumentao visa, atravs do discurso, a

    obter uma ao eficaz sobre os espritos, ela poderia ter sido tratada como um ramo da psicologia. De fato, se os argumentos no so coercivos, se no devem necessariamente convencer mas possuem certa fora, que pode alis variar conforme os auditrios, no pelo efeito produzido que se pode julg-la? O estudo da argumentao se tornaria assim um dos objetos da psicologia

    experimental, em que argumentaes variadas seriam postas prova perante auditrios variados, suficientemente bem conhecidos para que seja possvel, a partir dessas experincias, tirar concluses providas de certa generalidade. Alguns psiclogos americanos no deixaram de dedicar-se a semelhantes estudos, cujo interesse , alis, incontestvel14.

    Mas nosso modo de proceder ser diferente. Buscamos, acima de tudo, caracterizar as diversas estruturas argumentativas, cuja anlise deve preceder qualquer prova experimental qual se quisesse submeter sua eficcia. Por outro lado, no pensamos que o mtodo de laboratrio possa determinar o valor das argumentaes utilizadas nas cincias humanas, em direito e em

    filosofia, pois a prpria metodologia do psiclogo j constitui um objeto de controvrsia e se enquadra em nosso estudo.

    Nosso procedimento diferir radicalmente do procedimento adotado pelos filsofos que se esforam em reduzir os raciocnios sobre questes sociais, polticas ou filosficas, inspirando-se em modelos fornecidos pelas cincias dedutivas ou experimentais, e

    que rejeitam como sem valor tudo o que no se amolda aos esquemas previamente impostos. Muito pelo contrrio, ns nos inspiraremos nos lgicos, mas para imitar os mtodos que lhes tm propiciado to bons resultados de um sculo para c.

    No esqueamos, de fato, que na primeira metade do sculo XIX a lgica no tinha o menor prestgio, nem nos meios

    cientficos, nem entre o grande pblico. Whately podia escrever, por volta de 1828, que, se a retrica j no goza da estima do pblico, a lgica goza ainda menos de seus favores15.

    10

  • III

  • 1NTRODI \:O 11

    A lgica teve um brilhante desenvolvimento durante os cem ltimos anos, quando, deixando de repisar velhas frmulas, props-se analisar os meios de prova efetivamente utilizados pelos matemticos. A lgica formal moderna constituiu-se como o estudo dos meios de demonstrao utilizados nas cincias matemticas. Mas o resultado foi a limitao de seu campo, pois tudo quanto ignorado pelos matemticos alheio lgica formal. Os lgicos devem completar a teoria da demonstrao assim obtida com uma teoria da argumentao. Procuraremos constru-la analisando os meios de prova usados pelas cincias humanas, o direito e a filosofia; examinaremos argumentaes apresentadas pelos publicitrios em seus jornais, pelos polticos em seus discursos, pelos advogados em seus arrazoados, pelos juzes em suas sentenas, pelos filsofos em seus tratados.

    Nosso campo de estudos, que imenso, ficou inculto durante sculos. Esperamos que nossos primeiros resultados incentivem outros pesquisadores a complet-los e a aperfeio-los.

    PRIMEIRA PARTE

    Os mbitos da argumentao 1. Demonstrao e argumentao

    Para bem expor as caractersticas particulares da argu-mentao e os problemas inerentes a seu estudo, nada como contrap-la concepo clssica da demonstrao e, mais especialmente, lgica formal que se limita ao exame dos meios de prova demonstrativos.

    Na lgica moderna, oriunda de uma reflexo sobre o

    raciocnio matemtico, os sistemas formais j no so corre-lacionados com uma evidncia racional qualquer. O lgico livre para elaborar como lhe aprouver a linguagem artificial do sistema que constri, para determinar os signos e combinaes de signos que podero ser utilizados. Cabe a ele decidir quais so os axiomas, ou seja, as expresses sem prova consideradas vlidas

    em seu sistema, e dizer quais so as regras de transformao por ele introduzidas e que permitem deduzir, das expresses vlidas, outras expresses igualmente vlidas no sistema. A nica obrigao que se impe ao construtor de sistemas axiomticos formalizados e que torna as demonstraes coercivas a de escolher signos e regras que evitem dvidas e ambigidades.

    Cumpre que, sem hesitar e mesmo mecanicamente, seja possvel estabelecer se uma seqncia de signos admitida no sistema, se ela tem forma igual a outra seqncia de signos, se considerada vlida, por ser um axioma ou uma expresso dedutvel, a partir dos axiomas, de um modo conforme s regras de deduo. Qualquer considerao relativa origem dos axiomas ou das

  • 16 TRATADO DA ARGUMENTAO

    regras de deduo, ao papel que se presume que o sistema

    axiomtico represente na elaborao do pensamento, alheia lgica assim concebida, na medida em que ela sai do mbito do formalismo em questo. A busca da univocidade indiscutvel chegou a levar os lgicos formalistas a construrem sistemas nos quais no h preocupao com o sentido das expresses: ficam contentes se os signos introduzidos e as transformaes que lhes

    dizem respeito ficam fora de discusso. Deixam a interpretao dos elementos do sistema axiomtico para os que o aplicaro e tero de se preocupar com sua adequao ao objetivo pretendido.

    Quando se trata de demonstrar uma proposio, basta indicar mediante quais procedimentos ela pode ser obtida como ltima expresso de uma seqncia dedutiva, cujos primeiros elementos so fornecidos por quem construiu o sistema axiomtico dentro do qual se efetua a demonstrao. De onde vm esses elementos, sejam eles verdades impessoais, pensamentos divinos, resultados de experincia ou postulados peculiares ao autor, eis questes que o lgico formalista considera alheias sua disciplina. Mas, quando se trata de argumentar, de influenciar, por meio do discurso, a intensidade de adeso de um auditrio a cenas teses, j no possvel menosprezar completamente, considerando-as irrelevantes, as condies psquicas e sociais sem as quais a argumentao ficaria sem objeto ou sem efeito. Pois toda argumentao visa adeso dos espritos e, por isso mesmo, pressupe a existncia de um contato intelectual.

    Para que haja argumentao, mister que, num dado momento, realize-se uma comunidade efetiva dos espritos. mister que se esteja de acordo, antes de mais nada e em princpio, sobre a formao dessa comunidade intelectual e, depois, sobre o fato de se debater uma questo determinada. Ora, isso no de modo algum evidente.

    Mesmo no plano da deliberao ntima, existem condies prvias para a argumentao: a pessoa deve, notadamente, conceber-se como dividida em pelo menos dois interlocutores que participam da deliberao. E nada nos autoriza a considerar essa diviso necessria. Ela parece constituda com base no modelo da deliberao com outrem. Por conseguinte, de se prever que encontraremos, transpostos para a deliberao consigo mesmo, a maioria dos problemas relativos s condies prvias para a discusso com outrem. Muitas expresses o comprovam.

  • OS MBITOS DA ARGUMENTAO 17

    Limitamo- nos a mencionar frases como: "No ouas teu anjo mau", "No tornes a pr isso em discusso", que so relativas, uma a condies prvias atinentes s pessoas, a outra a condies prvias atinentes ao objeto da argumentao.

    2. O contato dos espritos

    A formao de uma comunidade efetiva dos espritos exige um conjunto de condies.

    O mnimo indispensvel argumentao parece ser a existncia de uma linguagem em comum, de uma tcnica que possibilite a comunicao.

    Isto no basta. Ningum o mostra melhor do que o autor de Alice no Pas das Maravilhas. Com efeito, os seres desse pas compreendem um pouco a linguagem de Alice. Mas o problema dela entrar em contato, entabular uma discusso, pois no Pas das Maravilhas no h razo alguma para as discusses comearem. No se sabe por que um se dirigiria ao outro. s vezes Alice toma a iniciativa e utiliza singelamente o vocativo: " camundongo"1. Ela considera um sucesso ter conseguido trocar algumas palavras indiferentes com a duquesa2. Em compensao, ao encetar um assunto com a lagarta, chegam imediatamente a um ponto morto: "Acho que voc deveria dizer-me, primeiro, quem ". - "Por qu?, pergunta a lagarta"3. Em nosso mundo hie-rarquizado, ordenado, existem geralmente regras que estabelecem como a conversa pode iniciar-se, um acordo prvio resultante das prprias normas da vida social. Entre Alice e os habitantes do Pas das Maravilhas, no h nem hierarquia, nem direito de precedncia, nem funes que faam com que um deva responder em vez do outro. Mesmo as conversas entabuladas costumam gorar, como a conversa com o papagaio. Este se prevalece de sua idade:

    Alice no podia admitir isso, sem antes saber qual a idade dele e, como o papagaio se recusasse a diz-la, no havia mais nada a falar1.

    A nica das condies prvias aqui realizada o desejo de Alice de entabular conversa com os seres desse novo universo.

    O conjunto daqueles aos quais desejamos dirigir-nos muito varivel. Est longe de abranger, para cada qual, todos os seres

  • 18 TRATADO DA ARGUMENTAO

    humanos. Em contrapartida, o universo ao qual a criana quer dirigir-se, precisamente na medida em que o mundo dos adultos lhe fechado, se amplia mediante a associao dos animais e de todos os objetos inanimados por ela considerados seus interlocutores naturais5.

    H seres com os quais qualquer contato pode parecer suprfluo ou pouco desejvel. H seres aos quais no nos preocupamos em dirigir a palavra; h outros tambm com quem no queremos discutir, mas aos quais nos contentamos em ordenar.

    Com efeito, para argumentar, preciso ter apreo pela adeso do interlocutor, pelo seu consentimento, pela sua participao mental. Portanto, s vezes uma distino apreciada ser uma pessoa com quem outros discutem. O racionalismo e o humanismo dos ltimos sculos fazem parecer estranha a idia de que seja uma qualidade ser algum com cuja opinio outros se preocupem, mas, em muitas sociedades, no se dirige a palavra a qualquer um, como no se duelava com qualquer um. Cumpre observar, alis, que querer convencer algum implica sempre certa modstia da parte de quem argumenta, o que ele diz no constitui uma "palavra do Evangelho", ele no dispe dessa autoridade que faz com que o que diz seja indiscutvel e obtm imediatamente a convico. Ele admite que deve persuadir, pensar nos argumentos que podem influenciar seu interlocutor, preocupar-se com ele, interessar-se por seu estado de esprito.

    Os seres que querem ser importantes para outrem, adultos ou crianas, desejam que no lhes ordenem mais, mas que lhes ponderem, que se preocupem com suas reaes, que os considerem membros de uma sociedade mais ou menos igualitria. Quem no se incomoda com um contato assim com os outros ser julgado arrogante, pouco simptico, ao contrrio daqueles que, seja qual for a importncia de suas funes, no hesitam em assinalar por seus discursos ao pblico o valor que do sua apreciao.

    Mas, foi dito muitas vezes, nem sempre louvvel querer persuadir algum: as condies em que se efetua o contato dos espritos podem, de fato, parecer pouco dignas. Conhece-se a clebre anedota acerca de Aristipo, a quem censuravam por ter-se abaixado perante o tirano Dionsio, a ponto de pr-se a seus ps para ser ouvido. Aristipo defendeu-se dizendo que no era culpa

  • OS MBITOS DA ARGUMENTAO 19

    sua, mas de Dionsio, que tinha os ouvidos nos ps. Seria ento indiferente onde se encontram os ouvidos?6

    Para Aristteles o perigo de discutir com certas pessoas que, com elas, se perde a qualidade de sua prpria argumentao:

    No se deve discutir com todos, nem praticar a Dialtica com o

    primeiro que aparecer, pois, com respeito a certas pessoas, os

    raciocnios sempre se envenenam. Com efeito, contra um adversrio

    que tenta por todos os meios parecer esquivar-se, legtimo tentar

    por todos os meios chegar concluso; mas falta elegncia a tal

    procedimento".

    No basta falar ou escrever, cumpre ainda ser ouvido, ser lido. No pouco ter a ateno de algum, ter uma larga audincia, ser admitido a tomar a palavra em certas cir-cunstncias, em certas assemblias, em certos meios. No esqueamos que ouvir algum mostrar-se disposto a aceitar-lhe eventualmente o ponto de vista. Quando Churchill proibiu os

    diplomatas ingleses at de ouvirem as propostas de paz que os emissrios alemes poderiam transmitir-lhes, ou quando um partido poltico avisa estar disposto a escutar as propostas que lhe poderia apresentar um formador de ministrio, essas duas atitudes so significativas, porque impedem o estabelecimento ou reconhecem a existncia das condies prvias para uma eventual

    argumentao. Fazer parte de um mesmo meio, conviver, manter relaes

    sociais, tudo isso facilita a realizao das condies prvias para o contato dos espritos. As discusses frvolas e sem interesse aparente nem sempre so desprovidas de importncia, por contriburem para o bom funcionamento de um mecanismo social

    indispensvel. 3 - 0 orador e seu auditrio

    Os autores de comunicaes ou de memrias cientficas costumam pensar que lhes basta relatar certas experincias, mencionar certos fatos, enunciar certo nmero de verdades, para suscitar infalivelmente o interesse de seus eventuais ouvintes ou leitores. Tal atitude resulta da iluso, muito difundida em certos meios racionalistas e cientficos, de que os fatos falam por si ss e imprimem uma marca indelvel em todo esprito humano, cuja adeso foram, sejam quais forem suas disposies. K. F. Bruner,

  • 20 TRATADO DA ARGUMENTAO

    secretrio de redao de uma revista psicolgica, compara esses autores, pouco preocupados com seu auditrio, com um visitante descorts:

    Eles se jogam numa cadeira, fixando enfadonhamente os

    sapatos e anunciam bruscamente, a si mesmos ou aos outros, nunca se sabe: "Fulano e beltrano mostraram... que a fmea do rato branco responde negativamente ao choque eltrico..." Muito bem, meu senhor, digo-lhes, e da? Diga-me primeiro por que devo incomodar-me com isso, ento ouvirei8.

    verdade que esses autores, na medida em que tomam a

    palavra numa sociedade cientfica ou publicam um artigo numa revista especializada, podem descuidar dos meios de entrar em contato com seu pblico, porque uma instituio cientfica, sociedade ou revista, fornece o vnculo indispensvel entre o orador e seu auditrio. O papel do autor apenas manter, entre ele e o pblico, o contato que a instituio cientfica possibilitou

    estabelecer. Mas nem todos se encontram numa situao to privi-

    legiada. Para que uma argumentao se desenvolva, preciso, de fato, que aqueles a quem ela se destina lhe prestem alguma ateno. A maior parte das formas de publicidade e de propaganda se preocupa, acima de tudo, em prender o interesse

    de um pblico indiferente, condio indispensvel para o andamento de qualquer argumentao. No porque, em grande nmero de reas - trate-se de educao, de poltica, de cincia ou de administrao da justia -, toda sociedade possui instituies que facilitam e organizam esse contato dos espritos que se deve ignorar a importncia desse problema prvio.

    Normalmente, preciso alguma qualidade para tomar a palavra e ser ouvido. Em nossa civilizao, em que o impresso, tornado mercadoria, aproveita-se da organizao econmica para impor-se ateno, tal condio s aparece claramente nos casos em que o contato entre o orador e seu auditrio no pode estabelecer-se graas s tcnicas de distribuio. Portanto,

    percebemos melhor a argumentao quando desenvolvida por um orador que se dirige verbalmente a um determinado auditrio, do que quando est contida num livro posto venda em livraria. Essa qualidade do orador, sem a qual no ser ouvido, nem, muitas vezes, ser autorizado a tomar a palavra,

  • OS MBITOS DA ARGUMENTAO 21

    pode variar conforme as circunstncias. s vezes bastar

    apresentar-se como ser humano, decentemente vestido, s vezes cumprir ser adulto, s vezes, simples membro de um grupo constitudo, s vezes, porta-voz desse grupo. H funes que autorizam - e s elas - a tomar a palavra em certos casos, ou perante certos auditrios, h campos em que tais problemas de habilitao so minuciosamente regulamentados.

    Esse contato entre o orador e seu auditrio no concerne unicamente s condies prvias da argumentao: essencial tambm para todo o desenvolvimento dela. Com efeito, como a argumentao visa obter a adeso daqueles a quem se dirige, ela , por inteiro, relativa ao auditrio que procura influenciar.

    Como definir semelhante auditrio? Ser a pessoa que o

    orador interpela pelo nome? Nem sempre: o deputado que, no Parlamento ingls, deve dirigir-se ao presidente pode estar procurando convencer no s os que o ouvem, mas ainda a opinio pblica de seu pas. Ser o conjunto de pessoas que o orador v sua frente quando toma a palavra? No necessariamente. Ele pode perfeitamente deixar de lado uma

    parte delas: um chefe de governo, num discurso ao Parlamento, pode renunciar de antemo a convencer os membros da oposio e contentar-se com a adeso de sua maioria. Por outro lado, quem concede uma entrevista a um jornalista considera que seu auditrio constitudo mais pelos leitores do jornal do que pela pessoa que est sua frente. O segredo das deliberaes,

    modificando a idia que o orador tem de seu auditrio, pode transformar os termos de seu discurso. V-se imediatamente, por esses exemplos, quo difcil determinar, com a ajuda de critrios puramente materiais, o auditrio de quem fala; essa dificuldade muito maior ainda quando se trata do auditrio do escritor, pois, na maioria dos casos, os leitores no podem ser determinados

    com exatido. por essa razo que, em matria de retrica, parece- nos

    prefervel definir o auditrio como o conjunto daqueles que o orador quer influenciar com sua argumentao. Cada orador pensa, de uma forma mais ou menos consciente, naqueles que procura persuadir e que constituem o auditrio ao qual se dirigem seus discursos.

  • 22 TRATADO DA ARGUMENTAO

    4. O auditrio como construo do orador

    O auditrio presumido sempre, para quem argumenta, uma construo mais ou menos sistematizada. Pode-se tentar

    determinar-lhe as origens psicolgicas9 ou sociolgicas10; o importante, para quem se prope persuadir efetivamente indivduos concretos, que a construo do auditrio no seja inadequada experincia.

    No se d o mesmo com quem se dedica a ensaios sem

    alcance real. A retrica, tornada exerccio escolar, diri- ge-se a auditrios convencionais e pode, sem inconvenientes, ater-se a vises estereotipadas deles, o que contribuiu, tanto quanto a artificialidade dos temas, para faz-la degenerar".

    A argumentao efetiva tem de conceber o auditrio presumido to prximo quanto o possvel da realidade. Uma

    imagem inadequada do auditrio, resultante da ignorncia ou de um concurso imprevisto de circunstncias, pode ter as mais desagradveis conseqncias. Uma argumentao considerada persuasiva pode vir a ter um efeito revulsivo sobre um auditrio para o qual as razes pr so, de fato, razes contra. O que se disser a favor de uma medida, alegando que ela capaz de

    diminuir a tenso social, levantar contra tal medida todos os que desejam que ocorram distrbios.

    O conhecimento daqueles que se pretende conquistar , pois, uma condio prvia de qualquer argumentao eficaz.

    O cuidado com o auditrio transforma certos captulos dos antigos tratados de retrica em verdadeiros estudos de psicologia. Foi em sua Retrica que Aristteles, ao falar de auditrios classificados conforme a idade e a fortuna, inseriu muitas descries argutas e sempre vlidas de psicologia diferencial12. Ccero demonstra que convm falar de modo diferente espcie de homens "ignorante e grosseira, que sempre prefere o til ao honesto" e "outra, esclarecida e culta, que pe a dignidade moral acima de tudo"13. Quintiliano, depois dele, dedica-se s diferenas de carter, importantes para o orador14.

    O estudo dos auditrios poderia igualmente constituir um captulo de sociologia, pois, mais que do seu carter pessoal, as opinies de um homem dependem de seu meio social, de seu crculo, das pessoas que freqenta e com quem convive: "Voc quer", dizia M. Millioud, "que o homem inculto mude de opinio? Transplante-o"13. Cada meio poderia ser caracterizado por suas

  • OS MBITOS DA ARGUMENTAO 23

    opinies dominantes, por suas convices indiscutidas, pelas premissas que aceita sem hesitar; tais concepes fazem parte da sua cultura e todo orador que quer persuadir um auditrio particular tem de se adaptar a ele. Por isso a cultura prpria de cada auditrio transparece atravs dos discursos que lhe so destinados, de tal maneira que , em larga medida, desses prprios discursos que nos julgamos autorizados a tirar alguma informao a respeito das civilizaes passadas.

    As consideraes sociolgicas teis ao orador podem versar

    sobre um objeto particularmente preciso, a saber, as funes sociais cumpridas pelos ouvintes. Com efeito, estes costumam adotar atitudes ligadas ao papel que lhes confiado em certas instituies sociais. Esse fato foi salientado pelo criador da psicologia da forma:

    Podem-se observar, escreve ele16, maravilhosas mudanas nos indivduos, como quando uma pessoa apaixonadamente sectria torna-se membro de um jri, ou rbitro, ou juiz, e suas aes mostram ento a delicada passagem da atitude sectria a um honesto esforo para tratar o problema em questo de uma maneira justa e objetiva.

    Ocorre o mesmo com a mentalidade de um poltico cuja viso muda quando, aps anos passados na oposio, torna-se membro responsvel do governo.

    O ouvinte, em suas novas funes, assumiu uma perso-nalidade nova, que o orador no pode ignorar. E o que vale para cada ouvinte particular no menos vlido para os auditrios, em seu conjunto, a tal ponto que os tericos da retrica acreditaram poder distinguir gneros oratrios pelo papel cumprido pelo auditrio a que se dirige o discurso. Os gneros oratrios, tais como os definiam os antigos - gnero deliberativo, judicirio, epidctico -, correspondiam respectivamente, segundo eles, a auditrios que estavam deliberando, julgando ou, simplesmente, usufruindo como espectadores o desenvolvimento oratrio, sem dever pro- nunciar-se sobre o mago do caso17.

    Trata-se, nesse caso, de uma distino puramente prtica, cujas falhas e insuficincias esto manifestas, sobretudo na concepo que ela apresenta do gnero epidctico; alis, teremos de voltar a ele18. Mas, embora essa classificao dos discursos no possa ser aceita tal qual por quem estuda a tcnica da

  • 24 TRATADO DA ARGUMENTAO

    argumentao, ainda assim tem o mrito de salientar a importncia que o orador deve atribuir s funes de seu auditrio.

    muito comum acontecer que o orador tenha de persuadir um auditrio heterogneo, reunindo pessoas diferenciadas pelo carter, vnculos ou funes. Ele dever utilizar argumentos mltiplos para conquistar os diversos elementos de seu auditrio. a arte de levar em conta, na argumentao, esse auditrio heterogneo que caracteriza o grande orador. Poderamos encontrar amostras dessa arte ao analisar os discursos proferidos perante os Parlamentos, onde os elementos do auditrio heterogneo so facilmente discernveis.

    No necessrio encontrar-se perante vrias faces organizadas para pensar no carter heterogneo do auditrio. Com efeito, pode-se considerar cada um de seus ouvintes como integrante, em diversos pontos de vista, mas simultaneamente, de grupos mltiplos. Mesmo quando o orador est diante de um nmero limitado de ouvintes, at mesmo de um ouvinte nico, possvel que ele hesite em reconhecer os argumentos que parecero mais convincentes ao seu auditrio; insere-o ento, ficticiamente, por assim dizer, numa srie de auditrios diferentes. Em Tristram Shandy - ao qual nos referiremos ainda muitas vezes, porque a argumentao constitui um dos seus temas principais -, Sterne descreve uma discusso entre os pais do heri. Meu pai, diz este, que queria convencer minha me de arrumar um parteiro,

    fez valer seus argumentos sob todos os ngulos; discutiu como cristo, como pago, como marido, como patriota, como homem;

    minha me respondeu sempre como mulher. Foi um jogo duro para ela: incapaz de adotar para o combate tantas mscaras diferentes, ela sustentava uma partida desigual, lutava um contra sete19.

    Ora, ateno, no somente o orador que muda assim de cara, muito mais ainda o auditrio a que se dirige - a pobre esposa no caso - que ele transforma assim, ao sabor de sua fantasia, para apreender-lhe aspectos mais vulnerveis. Mas, competindo a iniciativa dessa decomposio do auditrio ao orador, a ele que se aplicam os termos "como cristo", "como pago", "como marido", "como pai"...

  • OS MBITOS DA ARGUMENTAO 25

    Perante uma assemblia, o orador pode tentar situar o

    auditrio em seus marcos sociais. Perguntar-se- se o auditrio est includo por inteiro num nico grupo social ou se deve repartir seus ouvintes em -grupos mltiplos ou, mesmo, opostos. Nesse caso, vrios pontos de partida sempre so possveis. De fato, pode-se dividir igualmente o auditrio de acordo com grupos sociais - por exemplo, polticos, profissionais, religiosos -

    aos quais pertencem os indivduos ou de acordo com valores aos quais aderem certos ouvintes. Essas divises ideais no so independentes uma da outra; no obstante, podem levar constituio de auditrios parciais muito diferentes.

    A subdiviso de uma assistncia em subgrupos depender, alis, da posio pessoal do orador: se este mantm, sobre uma

    questo, opinies extremistas, nada se opor a que ele encare todos os seus interlocutores como partes de um nico auditrio. Em contrapartida, se de opinio moderada, ser levado a encar-los como partes de pelo menos dois auditrios distintos20.

    No se concebe o conhecimento do auditrio indepen-dentemente do conhecimento dos meios suscetveis de in-fluenci-lo. Isso porque o problema da natureza do auditrio ligado ao de seu condicionamento. Esse termo implica, acima de tudo, que se trata de fatores extrnsecos ao auditrio. E qualquer estudo desse condicionamento pressupe que este considerado como que se aplicando a uma entidade que, por sua vez, seria o auditrio tomado em si mesmo. Mas, examinando melhor o caso, conhecer o auditrio tambm saber, de um lado, como possvel assegurar seu condicionamento, do outro, qual , a cada instante do discurso, o condicionamento que foi realizado.

    Para poder influenciar mais o auditrio, pode-se condi- cion-lo por meios diversos: msica, iluminao, jogos de massas humanas, paisagem, direo teatral. Tais meios foram conhecidos em todos os tempos, foram empregados tanto pelos primitivos como pelos gregos, pelos romanos, pelos homens da Idade Mdia; os aperfeioamentos tcnicos possibilitaram, em nossos dias, desenvolv-los poderosamente; de modo que se viu nesses meios o essencial da ao sobre as mentes.

    Ao lado desse condicionamento, cujo estudo no podemos abordar, existe um condicionamento atravs do prprio discurso; de sorte que o auditrio j no , no final do discurso, exatamente

  • 26 TRATADO DA ARGUMENTAO

    o mesmo do incio. Este ltimo condicionamento s pode ser realizado pela adaptao contnua do orador ao auditrio.

    5. Adaptao do orador ao auditrio

    "Todo o objeto da eloqncia", escreve Vico, " relativo aos nossos ouvintes, e consoante suas opinies que devemos ajustar os nossos discursos."21 O importante, na argumentao, no saber o que o prprio orador considera verdadeiro ou probatrio, mas qual o parecer daqueles a quem ela se dirige. Sucede com um discurso, para citar uma comparao de Gracin, "o mesmo que com um festim, em que as carnes no so preparadas para o paladar dos cozinheiros, mas para o dos convivas"22.

    O grande orador, aquele que tem ascendncia sobre outrem, parece animado pelo prprio esprito de seu auditrio. Esse no o caso do homem apaixonado que s se preocupa com o que ele mesmo sente. Se bem que este ltimo possa exercer certa influncia sobre as pessoas sugestionveis, seu discurso o mais das vezes parecer desarrazoado aos ouvintes. O discurso do apaixonado, afirma M. Pradines, embora possa tocar, no produz um som "verdadeiro", sempre a verdadeira figura "rebenta a mscara lgica", pois, diz ele, "a paixo incomensurvel para as razes"23. O que parece explicar esse ponto de vista que o homem apaixonado, enquanto argumenta, o faz sem levar suficientemente em conta o auditrio a que se dirige: empolgado por seu entusiasmo, imagina o auditrio sensvel aos mesmos argumentos que o persuadiram a ele prprio. O que a paixo provoca , portanto, por esse esquecimento do auditrio, menos uma ausncia de razes do que uma m escolha das razes.

    Como os chefes da democracia ateniense adotavam a tcnica do hbil orador, um filsofo como Plato lhes censurava "adular" a multido que deveriam dirigir. Mas nenhum orador, nem sequer o orador sacro, pode descuidar desse esforo de adaptao ao auditrio. Cabe aos ouvintes, diz Bossuet24, fazer os pregadores. Em sua luta contra os demagogos, Demstenes pede ao povo ateniense que se aprimore, para aprimorar o estilo dos oradores:

    Jamais vossos oradores, diz ele, vos tornam bons ou maus; sois

    vs que fazeis deles o que quiserdes. Com efeito, no vos propondes conformar-vos sua vontade, ao passo que eles se pautam pelos desejos que vos atribuem. Tende, pois, vontades sadias e tudo ir

  • OS MBITOS DA ARGUMENTAO 27

    bem. Pois, de duas, uma: ou ningum dir nada de mal, ou aquele

    que o disser no se aproveitar disso, por falta de ouvintes dispostos a se deixarem persuadir25.

    E, de fato, ao auditrio que cabe o papel principal para determinar a qualidade da argumentao e o comportamento dos oradores.26

    Embora os oradores possam ter sido comparados, em suas relaes com o auditrio, no s com cozinheiros, mas at com parasitas que, "para terem um lugar nas boas mesas, empregam quase sempre uma linguagem contrria aos seus sentimentos"27, no esqueamos todavia que, quase sempre, o orador tem toda a liberdade de renunciar a persuadir um determinado auditrio, se s o pudesse fazer eficazmente de um modo que lhe repugnasse. No se deve acreditar que seja sempre honroso, a esse respeito, nem ser bem-sucedido nem sequer se propor s-lo. O problema de conciliar os escrpulos do homem de bem com a submisso ao auditrio um dos que mais preocuparam Quintiliano28. Para ele, a retrica scientia bene dicendi29 implica que o orador perfeito persuada bem, mas tambm que diga o bem. Ora, se admitirmos que h auditrios de pessoas depravadas que no queremos renunciar a convencer e se nos colocarmos no ponto de vista da qualidade moral do orador, seremos estimulados, para resolver a dificuldade, a estabelecer dissociaes e distines que no so nada evidentes.

    A obrigao, para o orador, de adaptar-se ao seu auditrio e a limitao deste multido incompetente, incapaz de compreender um raciocnio ordenado e cuja ateno est merc da menor distrao, levaram no s ao descrdito da retrica, mas introduziram na teoria do discurso regras gerais cuja validade parece, entretanto, limitada a casos especficos. No vemos, por exemplo, por que, em princpio, a utilizao de uma argumentao tcnica afastaria da retrica e da dialtica30.

    H apenas uma regra a esse respeito, que a adaptao do discurso ao auditrio, seja ele qual for.- o fundo e a forma de certos argumentos, apropriados a certas circunstncias, podem parecer ridculos noutras31.

    A realidade dos mesmos acontecimentos descritos numa obra que se pretende cientfica ou num romance histrico no deve ser provada da mesma forma. Aquele que teria achado

  • 28 TRATADO DA ARGUMENTAO

    despropositadas, se publicadas numa revista mdica, as provas fornecidas por J. Romains de suspenso voluntria dos movimentos cardacos poder consider-las uma hiptese interessante, se a encontrar desenvolvida num romance32.

    A extenso do auditrio condiciona em certa medida os processos argumentativos, e isso independentemente das consideraes relativas aos acordos nos quais nos baseamos e que diferem conforme os auditrios. Estudando o estilo em funo das circunstncias em que se exerce a palavra, J. Marouzeau assinala

    a espcie de deferncia e de respeito humano que o nmero impe. medida que a intimidade diminui, o escrpulo aumenta, escrpulo de ser bem julgado, de colher o aplauso ou, pelo menos, o assentimento dos olhares e das atitudes..."

    Muitas outras reflexes relativas a particularidades dos auditrios que influenciam o comportamento e a argumentao do orador poderiam ser desenvolvidas com pertinncia. , pensamos, baseando-se na considerao dos auditrios sob seu aspecto concreto, particular, multiforme, que nosso estudo ser fecundo. Todavia, gostaramos sobretudo de estender-nos nos quatro pargrafos seguintes sobre as caractersticas de alguns auditrios, cuja importncia inegvel para todos, especialmente para o filsofo.

    6. Persuadir e convencer

    As pginas precedentes mostram suficientemente que a variedade de auditrios quase infinita e que, querendo adaptar-se a todas as suas particularidades, o orador v-se confrontado com inumerveis problemas. Talvez seja esta uma das razes pelas quais o que suscita acima de tudo o interesse uma tcnica argumentativa que se imporia a todos os auditrios indiferentemente ou, pelo menos, a todos os auditrios compostos de homens competentes ou racionais. A busca de uma objetividade, seja qual for sua natureza, corresponde a esse ideal, a esse desejo de transcender as particularidades histricas ou locais de modo que as teses defendidas possam ser aceitas por todos. Por esse motivo, como o diz Husserl no emocionante discurso onde defende o esforo de racionalidade ocidental: "Somos, em nosso trabalho filosfico, funcionrios da humanidade'*.

  • OS MBITOS DA ARGUMENTAO 29

    no mesmo esprito que J. Benda acusa os clrigos de traio quando abandonam o cuidado com o eterno e com o universal, para defenderem valores temporais e locais35. De fato, assistimos aqui retomada do debate universal entre os partidrios da verdade e os da opinio, entre filsofos, indagadores de absoluto, e retores, envolvidos na ao. por ocasio desse debate que parece elaborar-se a distino entre persuadir e convencer, que gostaramos de retomar em funo de uma teoria da argumentao e do papel desempenhado por certos auditrios36.

    Para quem se preocupa com o resultado, persuadir mais do que convencer, pois a convico no passa da primeira fase que leva ao37. Para Rousseau, de nada adianta convencer uma criana "se no se sabe persuadi-la"3".

    Em contrapartida, para quem est preocupado com o carter racional da adeso, convencer mais do que persuadir. Alis, ora essa caracterstica racional da convico depende dos meios utilizados, ora das faculdades s quais o orador se dirige. Para Pascal39, o autmato que persuadido, e ele entende com isso o corpo, a imaginao, o sentimento, em suma, tudo quanto no a razo. Com muita freqncia a persuaso ser considerada uma transposio injustificada da demonstrao. Segundo Dumas10, na persuaso, o indivduo "se contenta com razes afetivas e pessoais", sendo a persuaso em geral "sofstica". Mas ele no especifica em que essa prova afetiva diferiria tecnicamente de uma prova objetiva.

    Os critrios pelos quais se julga poder separar convico e persuaso so sempre fundamentados numa deciso que pretende isolar de um conjunto - conjunto de procedimentos, conjunto de faculdades - certos elementos considerados racionais. H que salientar que esse isolamento s vezes incide sobre os prprios raciocnios; por exemplo, mos- trar-se- que tal silogismo, mesmo ocasionando a convico, no ocasionar a persuaso; mas falar assim desse silogismo significa isol-lo de todo um contexto, significa supor que suas premissas existem no esprito independentemente do resto, significa transform-las em verdades inabalveis, intangveis. Dir-nos-o, por exemplo, que tal pessoa, convencida do perigo de mastigar muito rpido, nem por isso deixar de faz-lo41, porque se isola o raciocnio em que se baseia essa convico de todo um conjunto. Esquece-se, por exemplo, que tal convico pode colidir com outra convico, a que nos afirma que h ganho de tempo em comer mais depressa.

  • 30 TRATADO DA ARGUMENTAO

    V-se, portanto, que a oncepo daquilo que constitui a convico, que pode parecer baseada numa diferenciao dos meios de prova ou das faculdades postas em jogo, o tambm, muitas vezes, no isolamento de certos dados dentro de um conjunto muito mais complexo.

    Embora se possa recusar, como fazemos ns, a adotar essas distines dentro de um pensamento vivo, cumpre no obstante reconhecer que nossa linguagem utiliza duas noes - convencer e persuadir - entre as quais considera- se geralmente exista um matiz apreensvel.

    Propomo-nos chamar persuasiva a uma argumentao que pretende valer s para um auditrio particular e chamar convincente quela que deveria obter a adeso de todo ser racional. O matiz bastante delicado e depende, essencialmente, da idia que o orador faz da encarnao da razo. Cada homem cr num conjunto de fatos, de verdades, que todo homem "normal" deve, segundo ele, aceitar, porque so vlidos para todo ser racional. Mas ser realmente assim? Essa pretenso a uma validade absoluta para qualquer auditrio composto de seres racionais no ser exorbitante? Mesmo o autor mais consciencioso tem, nesse ponto, de submeter-se prova dos fatos, ao juzo de seus leitores42. Em todo caso, ele ter feito o que depende dele para convencer, se acredita dirigir-se validamente a semelhante auditrio.

    Preferimos nosso critrio quele, bastante prximo em suas conseqncias, embora diferente em seus princpios, que foi proposto por Kant em sua Crtica da razo pura. A convico e a persuaso so, para Kant, duas espcies de crena:

    Quando vlida para cada qual, ao menos na medida em que

    este tem razo, seu princpio objetivamente suficiente e a crena se chama convico. Se ela tem seu fundamento apenas na natureza particular do sujeito, chama-se persuaso. A persuaso mera aparncia, porque o princpio do juzo que est unicamente no sujeito tido por objetivo. Assim, um juzo desse gnero s tem um valor individual e a crena no pode comunicar-se... Logo, a

    persuaso no pode, na verdade, ser distinguida subjetivamente da convico, se o sujeito imagina a crena apenas como um simples fenmeno de seu prprio esprito; mas a experincia que se faz no entendimento dos outros, dos princpios que so vlidos para ns, a fim de ver se el