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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE CHARLES WILLIANS SILVEIRA A CRIAÇÃO DE ADÃO COMO IMAGEM SOBREVIVENTE: UMA PERSPECTIVA NIETZSCHIANA São Paulo 2017

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

CHARLES WILLIANS SILVEIRA

A CRIAÇÃO DE ADÃO COMO IMAGEM SOBREVIVENTE:

UMA PERSPECTIVA NIETZSCHIANA

São Paulo

2017

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CHARLES WILLIANS SILVEIRA

A CRIAÇÃO DE ADÃO COMO IMAGEM SOBREVIVENTE:

UMA PERSPECTIVA NIETZSCHIANA

Dissertação de mestrado apresentada ao programa de Pós-Graduação em Educação Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Educação, Arte e História da Cultura.

Orientador: Prof. Dr. Marcelo Martins Bueno

São Paulo

2017

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S587c Silveira, Charles Willians.

A criação de Adão como imagem sobrevivente: uma perspectiva

Nietzschiana / Charles Willians Silveira.

138 f.: il. ; 30 cm

Dissertação (Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura) –

Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2017.

Orientadora: Marcelo Martins Bueno.

Bibliografia: f. 136-138.

1. Criação. 2. Imagem. 3. Niilismo. I. Bueno, Marcelo Martins.

I. Título.

CDD 261.57

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À minha amada mãe. E aos fantasmas...

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“Deus criou o homem à sua imagem e semelhança...” (Gênesis 1:27)

“Mas então, o que se tornará o homem sem Deus e sem imortalidade? ” (Dostoievsky, 2001, p. 578)

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RESUMO

O estudo da história da arte é um importante caminho nas ciências humanas. A pesquisa hermenêutica das obras de arte possibilita-nos uma compreensão mais amalgamada da própria existência humana. Um dos historiadores da arte que veio ter grande destaque na virada do século XIX para o século XX foi o alemão Aby Warburg. Segundo o historiador, profundamente inspirado pela perspectiva nietzschiana, a obra de arte carrega Imagens-fantasmas; imagens-sobreviventes que insistem em nos assombrar. Dentro desta nova perspectiva, o trabalho objetiva demonstrar, por meio da iconologia de Warburg e da genealogia nietzschiana, como a obra de arte sobrevive no decorrer do tempo, por meio de seus fantasmas, e o que ela pode dizer sobre o contemporâneo. A obra Criação de Adão, de Michelangelo, será a ferida aberta no tempo, para que possamos compreender como deter o avanço do niilismo, após a morte de Deus. O que poderia nos dizer, ainda, essa obra de arte sobre a criação, em um mundo marcado pela “morte de todas as mortes?”. Portanto, a arte surge como um caminho alternativo para o sagrado. A ferida causada pela morte de Deus é fonte de dor para contemporâneo, mas também possibilidade de salvação. A “imagem que cura”, poderia ser o título deste trabalho. Usando a dor como fonte de significação, na ausência de um criador a priori, precisamos assumir a postura artística. Tacitamente, o ato de criar é a real imagem e semelhança entre o divino e o “além-do-homem”; a conclusão e o antídoto contra o niilismo.

Palavras–chave: Criação; Imagem; Niilismo.

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RESUMEN

El estudio de la historia del arte es un importante camino en las ciencias humanas. La investigación hermenéutica de las obras de arte nos posibilita una comprensión más amalgamada de la propia existencia humana. Uno de los historiadores del arte que ha venido a destacar en el cambio del siglo XIX al siglo XX fue el alemán Aby Warburg. Según el historiador, profundamente inspirado por la perspectiva nietzscheana, la obra de arte lleva imágenes fantasmas; Imágenes-sobrevivientes que insisten en asombrar. Dentro de esta nueva perspectiva, el trabajo objetivo demostrar, por medio de la iconología de Warburg y de la genealogía nietzscheana, como la obra de arte sobrevive en el transcurso del tiempo, por medio de sus fantasmas, y lo que ella puede decir sobre lo contemporáneo. La obra Creación de Adán, de Miguel Ángel, será la herida abierta en el tiempo, para que podamos comprender cómo detener el avance del nihilismo, después de la muerte de Dios. ¿Qué podría decirnos todavía esta obra de arte sobre la creación, en un mundo marcado por la muerte de todas las muertes? Por lo tanto, el arte surge como un camino alternativo a lo sagrado. La herida causada por la muerte de Dios es fuente de dolor para contemporáneo, pero también posibilidad de salvación. La "imagen que cura", podría ser el título de este trabajo. Usando el dolor como fuente de significación, en ausencia de un creador a priori, necesitamos asumir la postura artística. Tacitamente, el acto de crear es la real imagen y semejanza entre lo divino y el "más allá del hombre"; La conclusión y el antídoto contra el nihilismo.

Palabras clave: Creación; Imagen; Niilismo.

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LISTA DE IMAGENS

1. IMAGEM:............................................................... A CRIAÇÃO DE ADÃO.

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Sumário

1. INTRODUÇÃO..................................................................................................................11

2. UMA PINTURA SEM DEUS: O Luto Pelo Divino.........................................................19

2.1 O RETRATO DO CÉU ESVAZIADO: O Trono Vazio e os Vice-Reis.......................32

2.2 OS FANTASMAS DA OBRA: A Ferida no Tempo de Warburg................................42

3. LUZES DO AFRESCO: O Renascimento como Supernova (Último Sopro Divino)...51

3.1 SOMBRAS DO AFRESCO: O Coração do Buraco Negro (Um Poema Primordial)60

3.2 ADÃO NA TERRA DEVASTADA: O Último Homem e Tipos de Niilismo..............73

4 A MENSAGEM DE “MIGUEL- ÂNGELO”: Em Agonia e Êxtase...............................89

4.1 A CRIAÇÃO DE ADÃO À BEIRA DO ABISMO: Como Fazer Nascer uma Estrela?.97

4.2. À IMAGEM E SEMELHANÇA: O Niilismo Criativo é Brincadeira de Criança...109

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS: A Mão de Adão............................................................. 128

REFERÊNCIAS................................................................................................................... 136

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1. INTRODUÇÃO

“Uma História de Fantasmas para Gente Grande”

Michelangelo Buonarroti, escultor, pintor, arquiteto e poeta italiano; formou

junto com Rafael e Da Vinci, a Santíssima Trindade do Renascimento. Sua obra é

marcada pelo sentimento intenso causado pelas contradições entre o espírito e a

matéria, a condição humana e o mundo divino, sofrimentos e prazeres, enfim, sua

figura tornou-se a própria encarnação do gênio. Entre suas obras, selecionamos

para a realização deste trabalho “A Criação de Adão”, um afresco pintado por

Michelangelo próximo do ano de 1511. A obra está localizada na Capela Sistina, em

Roma, e faz referência a uma passagem do livro de Gênesis 1.27: “Deus criou o

homem à sua imagem e semelhança”. Mas por que uma obra do Renascimento

apareceria em uma tese de mestrado voltada para a pesquisa do contemporâneo?

No início de fevereiro de 2003, funcionários das nações unidas decidiram

cobrir com um pano azul e uma fila de bandeiras a enorme tapeçaria que reproduz o

famoso quadro de Picasso, a Guernica, que, dentro da proposta do artista cubista,

descreve os horrores da guerra. A reprodução da obra estava exposta na ONU

(Organização das Nações Unidas), onde o secretário dos Estados Unidos, Colin

Powell, apresentava dados obtidos pelo EUA de que o Iraque estaria escondendo

armas de destruição em massa e que uma guerra talvez fosse necessária para

garantir a “segurança do mundo”.

Centenas de jornalistas compareceram para ouvir o relatório do inspetor chefe

da UNMOVIC (comissão de controle, verificação e inspeção da ONU). As fontes da

Organização negaram que a decisão de ocultar a reprodução da obra estivesse

ligada ao fato de ser um constrangimento diplomático ter embaixadores falando

sobre uma possível guerra em frente a uma obra que teve por finalidade denunciar

os horrores bélicos.

A “Guernica”, de Picasso, retrata um pequeno vilarejo basco ao norte da

Espanha que foi bombardeado pela Alemanha como exercício preparatório para a

guerra por mais de três horas em 27 de abril de 1937. O ataque matou mais de

1.600 civis e deixou o vilarejo em chamas por três dias. Mas por que “ocultar” uma

obra de arte? O que poderia fazer uma imagem comparada ao poderio bélico das

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nações? O que a “Guernica” carrega de tão ameaçador? Após essas questões

retóricas, as respostas são quase evidentes: pode-se inferir com segurança que os

historiadores Aby Warburg e Didi Huberman trilhando os ditirambos de Nietzsche,

compreenderam o motivo de a “Guernica” ser tão “temida”: Ela é uma ferida no

tempo. Um sintoma trans-histórico e supra-histórico, que carrega a carne e o sangue

da cultura. As obras de arte possuem fantasmas, espectros e espelhos que refletem

nossas tragédias culturais. A denúncia de Picasso não está confinada ao evento da

guerra civil espanhola, nem ao nazismo: trata-se de uma denúncia de todas as

guerras, assim como a ferida de Filoctetes1, imortalizada na tragédia de Sófocles, é

sentida e lamentada por homens e mulheres de todos os tempos e nações, pois algo

na arte sobrevive.

O estudo da história da arte é um importante caminho nas ciências humanas.

A hermenêutica do significado das obras de arte possibilita-nos uma compreensão

mais amalgamada da própria existência humana. Um dos historiadores da arte que

veio ter grande destaque na virada do século XIX para o século XX foi o alemão Aby

Warburg. Segundo Warburg, o historiador da arte precisava investigar os sinais de

força vital que toda obra artística “fossiliza” em suas formas registradas.

[...] A sobrevivência, portanto, abre a história – o que era a vontade de Warburg quando ele falava de uma 'história da arte no sentido mais amplo' [wohl zum Boebachtungsgebiet der Kunstgeschichte im weitesten Sinne]: uma história da arte aberta para os problemas antropológicos da superstição, da transmissão das crenças. Uma história da arte informada pela 'psicologia da cultura' pela qual Warburg começara a se apaixonar junto a Hermann Usener e Karl Lamprecht (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 69)

Segundo George Didi-Huberman, historiador que propôs um novo método

para a pesquisa e compreensão dos estudos das obras de arte, nós deveríamos nos

debruçar sobre as imagens-sobreviventes que habitam as criações artísticas.

Influenciado pelo também historiador Aby Warburg, Didi-Huberman aprende o

conceito da fantasmagoria. De acordo com esta perspectiva, as obras de arte

carregam fantasmas capazes de assombrar, mas também de revelar aspectos de

um passado que habita simultaneamente o mundo dos vivos e dos mortos:

1 Herói grego na Guerra de Troia, único homem capaz de erguer o arco e flecha de Hércules, foi personagem de

uma famosa narrativa trágica na qual é acometido por uma ferida terrível. Segundo a tradição mitológica, após

sua recuperação, foi o responsável pela morte de Páris, o príncipe troiano e raptor de Helena.

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Warburg mostrou que a antiguidade havia criado, para certas situações típicas e incessantemente recorrentes, diversas formas de expressão marcantes. Certas emoções internas, certas tensões, certas soluções são não apenas encerradas nelas, mas também como que fixadas por encantamento. Em toda parte em que se manifesta um afeto da natureza, em toda parte revive a imagem que a arte criou para ele, segundo a própria expressão de Warburg, nascem “fórmulas típicas do páthos “que se gravam de maneira indelével na memória da humanidade. E foi através de toda a história das belas-artes que ele perseguiu esses “estereótipos”, seus conteúdos e suas transformações, sua estática e sua dinâmica” (HUBERMAN, 2014, p. 175).

“História de fantasmas para gente grande”, assim Warburg define seu

método, um olhar para os fantasmas de um passado morto, mas que, como todo

espectro, insiste em habitar o presente vivo. A imagem-fantasma é uma ferida, que

guarda sinais de um evento. Ela surge como um sintoma, uma febre que indica

algum quadro infeccioso. Qual seria a infecção que este trabalho, que olha para os

sintomas da contemporaneidade, pretende diagnosticar? Para tal tarefa que objetiva,

por meio de uma obra de arte, desvelar qual fantasma nos assombra, utilizaremos o

martelo nietzschiano. A filosofia labiríntica nietzschiana, muito mais acostumada a

problematizar do que pavimentar estradas seguras para o pensamento, foi evocada

justamente pelo seu potencial diagnóstico e sua intimidade com a arte.

Em o Crepúsculo dos ídolos ou Como Filosofar com o Martelo, Nietzsche

propõe uma filosofia a “golpes de martelo”. Mas o que ele queria dizer com isso? A

imagem do pensador intempestivo colore o ideário sobre o filósofo alemão, e a figura

do martelo, como arma de destruição dos falsos ídolos, foi imortalizada. Todavia é

necessário que tenhamos cuidado com tal perspectiva, pois o filósofo alemão,

famoso por sua habilidade como escritor, não entregaria uma imagem tão óbvia ao

seu público. Nietzsche, filósofo amante da diferença, sabia da multiplicidade de

sentidos imagéticos que o martelo carregava, e, como todo bom escritor, brincou

com tais significados.

De todas as características do martelo, sem dúvida, a vinculada ao

instrumento de avaliação clínica é a mais ajustada ao “olhar de suspeita”

Nietzschiano. A filosofia do martelo não estava baseada na pura destruição dos

falsos ídolos; o “martelo nietzschiano”, comumente, reduzido a simples arma de

destruição, possui aqui a função de instrumento médico de ausculta, utilizado para

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reconhecer as partes ocas, as fraturas e os defeitos congênitos da genealogia

contemporânea.

Dentro desta nova perspectiva, no primeiro capítulo, efetuaremos uma

reflexão “a marteladas” sobre a Imagem-fantasma da obra A Criação de Adão, de

Michelangelo; objetivando atualizar a icônica obra do Renascimento, para “os dias

da pós-modernidade”; articulando com a proposta Nietzschiana em busca de novos

sentidos: O que poderia nos dizer, ainda, essa obra de arte sobre a criação, em um

mundo marcado pela morte de Deus?

“Minha preocupação mais íntima sempre foi a decadência”, diz Nietzsche

(2006, p. 61) sobre o fenômeno da nadificação. Qual imagem poderia ter sobrevivido

ao avanço do niilismo? Qual a nossa imagem e semelhança com o Criador, agora

ausente? Pode uma obra de arte carregar em seu seio uma mensagem supra-

histórica? Todas estas perguntas serão devidamente respondidas, dentro da

perspectiva adotada por este trabalho, pois todas estão vinculadas a pergunta fulcral

do tema: Qual a Imagem-sobrevivente da obra A Criação de Adão?

Ao retratar o desencantamento do mundo, Nietzsche, em “A Gaia Ciência”,

demonstra que toda discussão em torno da necessidade de uma vida tomada como

obra de arte está justificada pelo fenômeno testemunhado e imortalizado pelo

filósofo como: A morte de Deus.

Entender o percurso do papel da arte na obra nietzschiana é de suma

importância em seu projeto, uma vez que a possibilidade de invenção da vida dentro

de uma perspectiva estética só tem sentido quando reconhecemos que Deus, o

inventor e criador supremo em nossa tradição, não está mais presente em nosso

mundo. O motivo causador da ausência divina é tão espantoso que assombrou o

filósofo alemão: “Deus morreu! E nós o matamos! ”.

O avanço do nada carregou em seu ventre meios de destruir e por fim matar

sua concepção mais sagrada, gerando inúmeros efeitos relacionados à Morte de

Deus. Entre estes desdobramentos, encontramos e identificamos a luta dos

aspirantes à sucedâneo ao trono divino, agora esvaziado: Razão, Ciência, Classes,

Pátria e por fim a própria História (que ascenderia no século XIX como o grande

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discurso, principalmente após os trabalhos de Hegel e Marx). Nietzsche, no entanto,

percebe que o excesso de história tornou-se uma enfermidade paralisante.

A Doença Histórica obriga o ser humano a carregar o fardo de inúmeras

culturas e fatos fantasmáticos que inutilizaram a criatividade e espontaneidade,

crivando a consciência em um processo de tribunalização, no qual o homem provoca

a inquisição da própria consciência. O diagnóstico dado por Nietzsche encontrou,

na doença histórica, o câncer que adoece o pensamento criativo, a própria antítese

da espontaneidade, e o sintoma mórbido manifestado por legiões de mortos que

impedem a humanidade de viver de forma espontânea.

Deveria haver necessariamente uma raça de eunucos como guardiões da história universal? Sem dúvida, a pura objetividade lhes cairia bem. Isto pareceria sua tarefa de vigiar a história, para que dela nascessem apenas histórias, mas não acontecimentos [...] pouco importa o que pretendeis fazer, contanto que a história se mantenha preservada em sua bela objetividade, particularmente por aqueles que jamais poderão fazer história (NIETZSCHE, 2001, p. 76).

Para Nietzsche a Metafísica e suas variações nada mais são do que

sucedâneos para o Deus judaico-cristão. A principal função da metafísica seria

garantir certezas ao conhecimento e por consequência garantir ao homem controle e

alívio do medo advindo pelo absurdo da existência. Por meio de conceitos como:

Presença, Eternidade, Consciência, História e Sujeito o pensamento metafísico

tentou avaliar a vida e corrigi-la, apresentando-se como forma de saber extra-físico e

suportivo da realidade. Ao esse avanço da nadificação será dedicado o segundo

capítulo deste projeto.

Se a compreensão de que a falta de um sentido prévio para vida é a

conclusão do niilismo – e o registro da derrota metafísica em sustentar suas

heurísticas –, poderá a vida, por meio de uma postura artística criar novos sentidos?

A urgência desta questão justifica e convida a apostar na criação de um viver

experimental, sempre novo e perigoso, livre das amarras metafísicas. Um viver

trágico que tudo abriga, sem exclusões ou sistematizações. Agora, em um mundo

sem um “Criador”, será necessário, a partir da tela em branco do nada, assumir o ato

de criar e, assim, pintar novas telas existenciais do viver como obras de arte.

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A hipótese deste labor é de que a expansão da postura artística, baseada no

ato de criação, transcende as obras de arte e imprime a sua marca em qualquer

atividade da vida humana; podendo servir, desta forma, de antídoto contra o niilismo,

pois a criação artística é a própria produção da vida, não uma forma de

conhecimento confinada a um determinado campo ou esfera de estudos. Sua

criação é sempre um momento de liberdade, uma forma de manifestação da própria

vontade de poder ou dominação, entendida não apenas como forma de dominar e

controlar, mas também como forma de lutar por objetivos mais elevados do que a

mera sobrevivência dos animais.

O intento deste trabalho é ilustrar como a obra de arte sobrevive no decorrer

do tempo, por meio de seus fantasmas, e o que ela pode dizer sobre o

contemporâneo. A obra Criação de Adão, de Michelangelo, será a ferida aberta no

tempo, para que possamos compreender como deter o avanço do niilismo, após a

morte de Deus.

Tacitamente, o terceiro capítulo objetiva demonstrar a criação como a imagem

sobrevivente; pois o artista, ao criar, não visa nada fora da própria atividade, pinta

por pintar e toca por tocar, assim como a vida deve ser vivida pelo viver, sem

sentidos dados a priori, pois tal condição oferece um sem Sentido-metafísico e

possibilita novos e múltiplos significados ao inventar a vida.

É imprescindível ressaltar neste trabalho o aspecto da multiplicidade e da

diferença, pois ao desejá-las nos livramos da moral de rebanho, do inautêntico, e

alçamos ao status de criadores, tornando o ser humano aquilo que é, dentro da

dimensão do trágico, de um mundo sem Deus, e livre, principalmente, de todos os

utilitarismos e fanatismos religiosos-políticos, e mesmo científicos que visam, de

forma atávica, suceder ao trono como novas divindades universais e de rebanho.

A arte é tomada como postura estética existencial, que antecede a obra, não

se resume a quadros, músicas, poemas, esculturas; assim, como não pode ser

confundida com teorias políticas, metafísicas e estéticas. A arte expande-se ao fazer

do cirurgião, do engenheiro, do professor, do atleta, ou mesmo de um trabalho

acadêmico, embora isso seja extremamente raro. A arte tem a ver com estilo, não se

trata de movimentos históricos, como o Renascimento, o Barroco, o Romantismo, -

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meras generalizações didáticas-, mas do estilo único do autor que resiste a

normatização e a comunidade com suas regras acordadas.

O artista carrega o epíteto de gênio e de louco, ao artista tudo e possível e

desculpável, ele carrega a marca de Caim, que o amaldiçoa, e ao mesmo tempo o

protege, como prova da existência de que um dia Deus passou por este mundo; esta

é sua herança, sua marca, sua aura profana e mundana, mas capaz de

experimentar o sagrado no calor da invenção da obra, sempre em agonia e êxtase.

Nietzsche sonha com esta experiência inaudita e evoca novamente o mito, desta vez

inspirado na música wagneriana e no lendário herói nórdico - germânico Siegfried,

no final de seu livro “O Nascimento da Tragédia”:

Um dia, esse espírito se encontrará desperto no fresco vigor da manhã de um sonho inaudito, então haverá de matar dragões, aniquilará os anões pérfidos e despertará Brunilda – e a lança do próprio Wotan não poderá lhe barrar o caminho! (NIETZSCHE, 2002, p. 169).

Como o louco, que carregava uma lanterna em plena luz do dia,

procuraremos os “rastros do divino”, outrora luz do mundo, e faremos uma pesquisa

genealógica para descobrir qual a mensagem fantasma da obra “A Criação de Adão”

e, assim, contaremos uma “história de fantasmas para gente grande. ”

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Figura 1. A Criação de Adão / fonte: www.rome-museum.com

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2. UMA PINTURA SEM DEUS: O Luto pelo Divino.

É curioso começar um texto pelo tema do luto, é como iniciar uma história

pelo final. Em certa medida, o processo do presente trabalho está baseado na lógica

da retrospectiva. E ele começa por um luto; não um luto qualquer, mas o

enlutamento pelo divino. “Deus morreu”, diz o famoso, e polêmico, postulado de

Nietzsche. Mas como Deus morreu? Qual a causa mortis? Como matamos “aquilo

que havia de mais sagrado”? Sabemos, pelo menos, que nós o matamos, mas por

quê?

Michelangelo, por meio de sua arte, imortalizou a criação do universo. A

Capela Sistina foi aberta ao público no dia 1° de novembro de 1512. O artista levara

cinco anos para criar sua obra. O arquiteto Bramante sugeriu ao papa Julio II

entregar a pintura do teto da capela a um escultor. Sozinho, Michelangelo pinta

heroicamente mil metros quadrados, mais de trezentas figuras. Criou tanta beleza

quanto àquela do universo que o inspirou. No centro da gravura um Deus-homem e

um homem-deus, tão semelhantes que poderiam ser confundidos; tão diferentes que

dificilmente poderiam ser vinculados. Pintar a Capela Sistina foi uma empresa

solitária, o artista quis ser semelhante ao criador. Apagou seus afrescos iniciais e

recomeçou tudo, em uma estranha coincidência com seu antecessor divino. Do

nada, Michelangelo havia criado um universo repleto de luzes e sombras. O público

ficou atônito, haviam visto uma fenda no tempo; contemplado um portal para a

eternidade; testemunharam a criação.

Muito tempo passou, a Capela Sistina tornou-se um ponto turístico, as cores

ficaram pálidas com o avanço dos anos. Continuamos a olhar, espantados, para o

teto, mas vemos a mesma cena na abóbada e na parede de alto-Mor? As ciências

estão avançando; o mundo contemporâneo é explicado por “leis mecânicas” e

inflacionado por informações. Não se procura mais significado e sentido, mas sim

como tudo funciona como se pode entender e utilizar os modos de funcionamento.

Vivemos em um mundo “desencantado” e “burocratizado”.

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Segundo o filósofo alemão, nós, assassinos de todos os assassinos,

eliminamos a “corrente que nos unia ao Céu”, desde então, pairamos à deriva, sem

um centro solar para gravitarmos. É verdade que muitos sucedâneos apareceram,

afinal, o trono estava esvaziado, mas, como será analisado no decorrer do trabalho,

eles fracassaram em sustentar suas heurísticas.

Para Nietzsche, a morte de Deus é uma expressão poética do

desaparecimento do horizonte metafísico2. Isso significa que não se pode mais

sustentar a crença num conhecimento objetivo, que nos traga seguranças imutáveis.

Como Deus morreu e, com isso, nenhum sentido existe a priori no mundo,

seja para vida ou para a história, os homens são impelidos a criar esse sentido eles

próprios. Sobre tal condição, o filósofo questiona: “mas queremos tornar-nos aquilo

que somos: os novos, os únicos, os incomparáveis, aqueles que determinaram as

próprias leis, aqueles que criaram a si próprios?” (NIETZSCHE,2001, p. 335). Em

face da Morte de Deus tem início o nosso luto, nesse ponto as verdadeiras

dificuldades começam. Nietzsche dá sinais de insatisfação aguda com o que o

homem moderno se tornou.

O homem moderno arrasta, em última análise, uma imensa quantidade de pedras de saber não digeridas, que eventualmente fazem um grande ruído em seu ventre, como diz a lenda. Com esse rumor, revela-se a quantidade mais pessoal desse homem moderno: o singular contraste de um interior ao qual nenhum exterior corresponde, e um exterior ao qual não corresponde um interior, contraste que os povos antigos não conheciam (NIETZSCHE, 2001, p. 178).

O desencantamento provocado pela expulsão do sagrado no mundo moderno

retrata a falência de seus derivados metafísicos, por serem incapazes de suprir o

vazio existencial causado pela morte divina que gerou náusea e a sensação de

absurdo.

Com a morte do criador, pelas nossas próprias mãos, retiramos do mundo

aquilo que nos sustentava e fornecia sentido para a nossa existência. O filósofo

alemão descreveu este evento cultural que, ao procurar explicações matematizadas

2 Metafísica: “ciência primeira”, ou “ciência do ser enquanto ser”. Em grego, “depois da física”. É o campo da

filosofia que investiga uma teoria sobre o Real. Na filosofia de Nietzsche, o termo é vinculado diretamente à

filosofia de Platão, vista como uma tentativa de negação e escape do mundo natural.

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e cientificistas para todos os fenômenos da vida e do mundo, acabou por

desautorizar o papel de Deus em nossa sociedade.

Nietzsche sintetizou em um telúrico aforismo sua constatação; mantido na

íntegra neste presente trabalho, devido a sua beleza estética:

Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus!? – E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? Perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? Disse outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? – Gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. “Para onde foi Deus?, gritou ele, já lhes direi! Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte inteiro? Que fizemos nos quando desprendemos esta terra de seu sol? Para onde se move ela, então? Para onde nos movemos? Longe de todos os sois? Não nos precipitamos sem cessar? E para trás, para os lados? Há ainda um alto e um baixo? Não erramos como através de nada infinito? Não nos bafeja o espaço vazio? Não ficou mais frio? Não vem, sem cessar sempre a noite e mais noite? Não se tem que acender candeeiros pela manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e mais sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob nossos punhais – quem nos limpará este sangue? Com que água poderíamos nos purificar? Que cerimônias de expiação, que divinos jogos deveríamos inventar? A grandeza desse feito não é demasiado grande para nós? Não teríamos que nos tornar, nos mesmos deuses, para apenas nos parecer dignos dele? Jamais houve um feito maior – e sempre que tenha apenas nascido depois de nos pertence, por causa desse feito, a uma história até agora. — Aqui, calou-se o homem louco e mirou de novo seus ouvintes. Também estes silenciavam e olhavam-no com estranhamento. Finalmente, ele arrojou o candeeiro ao solo, de modo que esse se estilhaçou e apagou. ‘chego cedo demais’, disse ele então; ‘não estou ainda no tempo oportuno’. Esse acontecimento formidável ainda está a caminho e peregrina – ele ainda não penetrou nos ouvidos dos homens. Relâmpago e trovão precisam de tempo, feitos precisam de tempo, a luz dos astros precisam de tempo, mesmo depois de consumados, para que serem vistos e ouvidos. Este feito, está ainda mais distante deles do que os astros mais remotos -, e todavia eles o consumaram. Conta-se ainda que, no mesmo dia, o homem louco teria entrado em diversas igrejas e nelas entoado seu réquiem aeternam Deo. Conduzido para fora e incitado a falar, teria ele replicado sempre apenas isto: “O que são as igrejas, então, se não criptas e mausoléus de Deus?” (NIETZSCHE, p.147-148).

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O aforismo retratado é um dos momentos mais célebres da filosofía e da

literatura do ocidente. É possível notar a presença de um ex-cristão que

experimentou as consequências emocionais provocadas pela morte de Deus como o

evento decisivo que afetará o contemporâneo de forma irreversível. A constatação

“traumática” da morte divina tornará possível uma nova elaboração da perspectiva

sobre o passado e o futuro da civilização ocidental, por meio de uma “escola da

desconfiança” ou “olhar da suspeita”. Em relação a isso, Nietzsche faz a seguinte

observação: “De fato, eu não mesmo acredito que jamais alguém tenha visto o

mundo com uma desconfiança tão profunda” (NIETZSCHE, 2003, p.112).

A desconfiança nietzschiana é dirigida a todos os domínios da tradição

cultural: Religião, História, Arte, Filosofia, Direito, Ciências; ou seja, para todas as

construções culturais que os homens desenvolveram em seu convívio.

Os homens frequentemente acreditaram em uma Verdade fixa, fosse ela

denominada Deus, Razão, Ciência ou História. Confinados a essa ilusão produzida

pela linguagem, não perceberam que não há “Verdade” alguma, mas apenas

verdades convencionadas que foram criadas e produzidas por eles próprios, assim

como os deuses ou as fadas. Nietzsche foi um dos primeiros filósofos a perceber o

processo de feitiço da língua ou da ontologização da linguagem. “Enquanto houver

a gramática, ainda haverá Deus” (NIETZSCHE, 2008, p. 122). De acordo com o

filósofo, quando falamos sobre algo, não falamos sobre um mundo objetivo, mas

sobre uma teia inflacionada de sentidos e perspectivas que lutam entre si, efetuando

acordos simplórios para o entendimento, viabilizando, desta forma, a comunicação.

Portanto, esse foi o maior erro da civilização ocidental: sua busca

desenfreada e determinada pela comunicação da verdade, mesmo quando ela

poderia comprometer e matar a crença da qual teve origem. O filósofo reflete sobre

esse ”ascetismo da veracidade”:A verdade tornou-se em nós uma paixão que não

recua diante de nenhum sacrifício e nada teme, no fundo senão sua própria extinção

e talvez a humanidade até chegue a perecer por esta paixão do conhecimento!

(NIETZSCHE, 2003, p. 121)

O homem moderno herdou a fé e o otimismo na razão dialética socrática e

tenta suportar as dores do existir por meio da racionalidade que promete desvendar

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os segredos mais “profundos” da realidade. O homem teórico continua a apostar na

ciência como antídoto universal para a eterna ferida existencial e atribui ao erro (ao

falso, a mentira, a ignorância, a ilusão) a causa de todo os males do mundo; hostil a

arte, a imaginação criativa e ao mito, entendidos como formas infantis ou obsoletas

de compreensão da realidade - incapazes de explicar, verdadeiramente, as leis

causais do mundo.

Enquanto a apologia da razão bafeja as suas promessas inalcançáveis de

emancipação do sujeito e felicidade prática por meio da técnica, os moralistas,

racionalistas, empiristas, socialistas, iluministas e positivistas, todos herdeiros da

doença socrática, excluem a dimensão do trágico e afirmam e polarizam conceitos

fixos dicotomizados como o belo, o feio, o bem, o mal, a verdade e a mentira o real e

o falso. A meta é revelar o que está oculto, esclarecer por meio da razão, e dissipar

o mundo das sombras ou das ideologias que ocultam. Como diria Nietzsche: Oh,

verdade! Circe dos intelectuais! (NIETZSCHE, 2006, p. 99).

Sim, Deus morreu! Mas está morto para a cultura. E esta é a meta da

genealogia nietzschiana; compreender as consequências desse fenômeno,

especialmente para a contemporaneidade, como exemplifica Oswaldo Giacóia

Junior:

Se, como resultado do desenvolvimento das ciências e do aprofundamento do esclarecimento, nós chegamos à experiência da morte de Deus, então é licito colocar também em questão o único valor absoluto que ainda continua reconhecido pela consciência cientifica contemporânea: o valor absoluto da verdade. A morte de Deus implica, portanto, a possibilidade de colocar em questão a crença na origem divina e no valor absoluto da verdade (GIACÓIA, 2008, p. 25).

George Didi-Huberman, o historiador das imagens, buscou em Aby Warburg,

provavelmente o mais Nietzschiano dos historiadores, um novo método para sua

pesquisa no campo da arte. Os “fantasmas de Warburg’’ ofereceram esse novo

caminho para os estudos. Não mais uma história sequencial, ordenada e linear, mas

um historiar que logra investigar os sintomas de uma obra de arte:

Movimentos, emoções “como que fixadas por encantamento “e atravessando o tempo: é bem essa magia figural das Phatosformeln, segundo Warburg. Mais uma vez, sua exumação foi comandada pela aguda percepção de um paradoxo constitutivo no renascimento italiano: foi nas paredes dos antigos sarcófagos que os movimentos

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da vida, do desejo, das paixões sobreviveram até chegar a nos, até nos emocionarem e transformarem a nossa visão do presente (HUBERMAN, 2010, p. 175).

A obra de arte carrega Imagens-fantasmas, ou imagens-sobreviventes que

insistem em nos assombrar. Como diria Warburg, “essa história de fantasmas para

gente grande” é a meta deste escrito: por meio da genealogia nietzschiana,

vasculharemos as antigas imagens fantasmas que sobreviveram, mais

precisamente, em uma obra de arte, – “a obra de arte” para muitos – A Criação de

Adão, imortalizada na capela Sistina, pelas mãos de Michelangelo.

Luto e criação devem parecer figuras que representam momentos opostos, o

início de algo, pela criação e o efeito do fim, pelo luto. Todavia, como nos lembra

Nietzsche (2004, p. 165), “um pesquisador precisa ter um olho de artista e o outro de

médico; o nascimento e a morte são como o símbolo de Ouroboros3, uma serpente

devorando a própria cauda em um movimento circular e infinito”.

A Criação de algo novo não só carrega a possível destruição do antigo, como

possui o princípio de sua própria ruína, nos apontava Nietzsche. O afresco que

registra a Criação de Adão, também, registra a Morte de Deus. Seguindo o insight

nietzschiano: enquanto Michelangelo pintava a criação com uma de suas mãos, o

que fazia a outra? Provavelmente, a outra mão pintava a morte de Deus

simultaneamente.

A Criação de Adão é o início de uma elaboração sobre o luto do divino,

tentativa esta que nunca foi concluída. Evocaremos a formulação Psicanalítica: um

trauma mal elaborado gera um sintoma e esse sintoma nos assombrará como um

fantasma, até que ele seja exorcizado por meio de uma nova ressignificação. De

certa forma, a história do ocidente, pós-morte de Deus, é a história da elaboração

desse luto.

Conforme Nietzsche postulou, sabemos que o homem elaborou a arte para

que não morresse de “Verdade” (NIETZSCHE, 2001, p. 98). A Renascença foi a

“grande época da Arte”, não podemos dizer que seus esforços foram mentiras,

exceto no sentido nietzschiano, de mentir contra o tempo, contra o inexorável e cruel

3 Símbolo representando uma serpente, ou um dragão, devorando a própria cauda. Ícone comumente associado à

alquimia e ao movimento cíclico do eterno retorno do tempo mítico.

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“já passou”. A natureza hibrida do Renascimento anuncia essa “estranha-nova”:

Deus morreu; aconteceu; passou; mas teremos que lidar com isso; nem que seja

necessário que novos deuses sejam pintados.

Daí a importância desempenhada pelo Renascimento, pois o movimento

demarcou a momento fronteiriço, situado entre a Idade-Média e a Modernidade, no

qual o ocidente começou a elaborar o luto pela morte de Deus. Perante a ausência

do “centro-divino”, o ocidente começou a forjar novos sucessores. A razão e a

História são, sem dúvida, os grandes discursos “consoladores” característicos da

modernidade. Constataremos no decorrer do trabalho, que muitos “consoladores” e

usurpadores serão entronizados – afinal, a dor do luto foi insuportável –, mas foi o

Humanismo Renascentista o primeiro esforço de “reparação”4 desenvolvido por

nossa cultura, na tentativa de alçar o homem ao trono vazio de Deus.

Renascimento, Humanismo, Reforma, Iluminismo, Romantismo, Positivismo e

Comunismo, para citar os movimentos mais importantes, carregaram todos a

imagem-fantasma da morte de Deus. A afirmação pode parecer arbitrária, todavia,

será devidamente explicitada no decorrer do capítulo; por ora, o objetivo desta

formulação é a de inferir a proposta de que o homem buscou novos sucessores para

a ausência de Deus, em uma tentativa falimentar de, na ausência do Criador,

encontrar um novo fulcro para a cultura.

Infelizmente, o projeto ocidental ignorou que todo princípio carrega em si

mesmo a própria ruína. A morte de Deus, automaticamente, decretou a eminente

morte do homem. Não só do ponto de vista narrativo (seguindo as escrituras, afinal,

se não há um criador, não pode haver uma criatura) como do ponto de vista

filosófico, que culminará em interpretações como as da “morte do sujeito”, (Foucault)

ou a “morte do autor” (Barthes).

Por quem os sinos dobram? A resposta é simples: pelo próprio homem. O

homem enlutado, na sua busca por elaboração do trauma de todos os traumas, não

levou em consideração que a morte de Deus não ocorreu por um ataque externo ao

divino, uma explosão, mas a derrocada celestial foi ocasionada por uma implosão.

4 Utilizado no texto no sentido “psicanalítico”. Segundo Melanie Klein, a reparação surge como uma tentativa de

“consertar” um objeto- internalizado; danificado pela pulsão de morte.

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Nietzsche percebe que uma civilização não pode ser conquistada por forças

externas até que tenha destruído a si mesma a partir de dentro.

Mas que doença é esta que nos corroeu por dentro? Que levou aquilo que

tínhamos de mais sagrado e nos deixou enlutados? Seguindo a perspectiva

nietzschiana, a grande doença que avança sobre a cultura ocidental é o Niilismo, a

nadificação da potência.

O fenômeno do niilismo, que também será esmiuçado com mais precisão no

decorrer deste trabalho, não só causou a morte de Deus, como esvaziou nossa

potência para a elaboração do luto divino. O homem cansado, profetizado por

Nietzsche, encontra-se no limiar da encruzilhada ocidental: como viver sem um

centro referencial? Sem um sentido? Sem encantamento? A descrição de Nietzsche

é terrível:

A terra terá se tornado tão exígua então, nela veremos saltitar o derradeiro último homem, que apequena toda e qualquer coisa. Sua laia é indestrutível quanto às pulgas; o Derradeiro Homem é aquele que viverá mais tempo [...] Eles terão abandonado as paragens em que a vida é dura; pois precisam de calor. Ainda amarão o próximo e dele se aproximarão, pois precisam de calor [...] Um pouco de veneno, de tempos em tempos; isso proporciona sonhos agradáveis. Ainda trabalharão, pois o trabalho distrai. Mas tomarão cuidado para que distração jamais se torne cansativa. [...] Serão espertos, e saberão tudo que se passou outrora, assim, terão com que fazer zombarias sem fim. Ainda brigarão, mas logo se reconciliarão, com medo de atrapalhar a digestão. Terão seu pequeno prazer para o dia e seu pequeno prazer para a noite; mas venerarão a saúde. “Inventamos a felicidade”, dirão os derradeiros últimos homens, e piscarão os olhinhos (NIETZSCHE, 2001, p. 61; 63).

Dentro da perspectiva nietzschiana, o pensamento ocidental sempre procurou

pontos “fixos” para poder erguer seus edifícios teóricos: “Deus, Substância, Razão,

Absoluto, História, o Outro, e mesmo o Ser de Heidegger, não passavam de

tentativas de encontrar uma terra não movediça, uma ilha no mar revolto de

multiplicidades sem fim. Toda a história da metafísica ocidental5, desde Platão,

resumida à procura por uma essência originaria e atemporal.

5 Segundo Nietzsche, somente os filósofos pré-socráticos teriam escapado da influência da metafísica Socrático-

Platônica. O Idealismo Alemão, o Socialismo, a Filosofia-Teológica Cristã, o Racionalismo, o Romantismo

seriam só alguns dos desdobramentos da “metafísica”, (mesmo o cientista é visto como um “desenrolar do

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Agora, sem em cima ou embaixo, direita ou esquerda o homem prossegue

sua suposta jornada histórica, mas para onde? A questão é relativamente simples:

sem um ponto fixo, sem uma referência, sem um princípio, consequentemente o

homem perdeu seu destino. Não há mais um final feliz, nem finalidade, nem para

onde ir, como nos alertou Nietzsche.

Outro autor profundamente inspirado por Nietzsche foi o sociólogo alemão

Max Weber, estudioso do processo de desencantamento do mundo e do seu modo

de racionalização e burocratização. Weber chegou a declarar que:

Depois da devastadora crítica feita por Nietzsche aos últimos homens que inventaram a felicidade, posso deixar totalmente de lado o otimismo ingênuo no qual a ciência –isto é, a técnica de dominar a vida que depende da ciência – foi celebrada como o caminho para a felicidade. Quem acredita nisso – à parte de algumas poucas crianças grandes, que ocupam cátedras universitárias ou escrevendo editorias (WEBER, 1995, p. 443).

A observação do sociólogo alemão demonstra como a crítica de Nietzsche

explicitou que não há mais um “final feliz” para a trajetória da civilização ocidental.

Nada de Reinos Celestiais, Paraísos comunitários ou a solução científica para todos

os males; não há final, nem luz no fim do túnel -- a não ser para algumas “crianças

grandes”. Em um mundo desencantado, sem finalidade ou princípio, nosso luto pelo

divino é ao mesmo tempo um luto pelo homem.

Em seu ensaio “A Ciência como Vocação”, Weber postula que toda a teologia

pressupõe que o mundo tem significado e que só uns poucos corajosos são capazes

de reconhecer que esse significado inato não existe. Segundo o sociólogo, o “super-

homem”, profetizado por Nietzsche, capaz de lidar com a aspereza do mundo é o

cientista social. Para aqueles incapazes de lidar com a “perigosa verdade de

Nietzsche”, não podendo viver sem um consolo, Weber registra, “as portas das

velhas igrejas estão ampla e compassivamente abertas” (WEBER, 1995, p. 136).

Retornemos mais uma vez a obra de Michelangelo e o que ela poderia nos

dizer sobre o contemporâneo. Qual imagem poderia ter sobrevivido à tamanha

devastação de sentido? No afresco de A Criação de Adão, temos um deus vigoroso,

sacerdote”) entendida pelo filósofo como um sustentáculo ficcional para o mundo real, que teria, então, sido

transformado em uma “fabula”.

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voltado para sua criação, enquanto Adão experiência a potência da vida por meio do

vir a ser. Agora, sabemos que este Deus morreu e, com ele, um tipo de mundo

também desapareceu. Sinteticamente: em um mundo desencantado, sem finalidade

ou princípio, nosso luto pelo divino é ao mesmo tempo um luto pelo homem.

Nossa primeira imagem-fantasma nos assombrou com um cenário

contemporâneo desencantado e caótico. Percebemos que a morte de Deus não

estipulou o renascimento do homem, mas sim o seu desaparecimento.

Os homens tornaram-se atheos, não como um ateu, alguém que não acredita

em Deus, mas no sentido de que abandonamos o divino. A tragédia do homem

moderno está configurada no desamparo, no enlutamento. A palavra alemã para

tragédia é trauesrpiel, que pode ser compreendida como jogo ou espetáculo do luto.

Há uma “estranha” semelhança entre a época que os gregos formularam a

tragédia e o século XVIII, quando Nietzsche constata a morte de Deus: não há mais

lugar para a consolação das ilusões. Os gregos importaram Dionísio, um deus da

Ásia menor, e viram florescer o período trágico, após a insuficiência do padrão

épico-apolíneo em sustentar todos os dramas da vida. Nós, no entanto, vimos o

declínio de um Deus – também vindo do oriente- e o levante de uma nova tragédia6,

similar a de Édipo7, narrativa na qual o herói sobrevive ao evento trágico e, desde

então, precisa vagar cego pelo mundo.

Nós sobrevivemos à tragédia do luto divino, esse evento cultural catastrófico,

e continuamos a vagar cegos pelo mundo, sem um centro, sem um sentido, sem

garantias e sem amparo. Nossa tragédia, como a de Édipo, não consiste tanto no

evento aversivo, mas em termos sobrevivido a ele.

Segundo Nietzsche, Sócrates surge em um momento de declínio do período

heróico da tragédia ática. Esta “era da cegueira”, (pós-predomínio do mito), foi o

marco da ascensão do pensamento socrático e da supervalorização do pensamento

lógico e dialético. Com a “Mosca de Athenas” ocorreu uma ruptura radical em

relação à Grécia pré-socrática, mas tal mudança não representou uma evolução ou

6 Tragédia: gênero poético grego, especialmente vinculado aos cânticos religiosos em culto a Dionísio

7 Édipo: Herói grego, famoso por ter derrotado a Esfinge, após ter decifrado seu enigma. Segundo a lenda teria

matado seu pai e casado com sua própria mãe. Curiosamente, Édipo não morre ao final da narrativa, tendo um

desfecho diferenciado da maior parte dos heróis trágicos, como Aquiles, Heitor, Hércules, Ajax, etc.

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aperfeiçoamento, como somos ensinados a acreditar pela tradição ocidental, pelo

contrário, a racionalidade socrática, progenitora do cientificismo moderno tem como

premissa a negação do saber trágico e de sua experiência arcaica do mito.

Podemos encontrar esta atitude nos já adoentados seguidores de Sócrates que, por

não terem conseguido suportar o absurdo da existência, negaram o trágico e

promoveram a razão como ideal. Lembremos, no entanto, que o próprio Sócrates

dedica o final de sua vida às artes, como a poesia e a música o que ilustra o

fracasso de sua proposta. Nietzsche questiona: “Quem é esse que sozinho ousa

aventurar-se a negar este ser grego que com Homero, Píndaro e Ésquilo, com

Fídias, Péricles, Pítia e Dionísio, com seus abismos profundos e seus picos mais

altos, conquistaram nossa admiração e nossa adoração?” (NIETZSCHE, 2001, p.

93).

É preciso ressaltar, contudo, que diferentemente de nossa tragédia, os gregos

arcaicos (pré-socráticos), para Nietzsche, souberam integrar as dimensões

apolíneas e dionisíacas, dando a vida elevação e beleza, em todos os aspectos da

cultura, mesmo perante a violência, os horrores, paixões, guerras e sofrimentos.

Enquanto nós, pós-socráticos, no máximo, desenvolvemos uma mente bicameral,

que vive simultaneamente a morte do divino e a crença em sua presença, ainda que

travestido de razão, história ou outro sucedâneo qualquer. Passamos pelo evento da

morte de Deus, mas escondemos o corpo e continuamos vivendo como se nada

tivesse acontecido.

Nietzsche conheceu o livro “O Mundo como Vontade de Representação”

(1818), de Arthur Schopenhauer (1788-1860), por acaso, em uma livraria. Nesta

obra encontrou as bases para as ideias que forjaria posteriormente: que o mundo

não é racional em si mesmo e que a moralidade e significado histórico são relativos.

Tudo isso fez com que Nietzsche concluísse que Deus estava morto. Mas o que

queria dizer com isso?

Nietzsche não matou Deus, apenas constatou um fenômeno da cultura

ocidental. A morte de Deus talvez tenha tido origem nas “feridas narcísicas”8

8 Segundo Freud, o homem foi ferido por suas próprias descobertas cientificas: a terra não é o centro do

universo, a teoria da evolução das espécies e a descoberta do inconsciente como força responsável por

determinar o comportamento humano.

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propostas por Freud, ou dentro dessa perspectiva, agora, “chagas divinas”.

Copérnico “desatou o sol da terra” e Darwin nos mostrou uma origem menos

“gloriosa”, enfim, não somos mais o centro da criação divina. Mas a genealogia

nietzschiana nos revela algo mais sutil e espantoso:

O cristianismo chega ao fim, destruído por sua própria moralidade que acaba por se ver obrigada a negar até mesmo a existência do seu próprio Deus. O senso de veracidade, desenvolvido ao máximo pelo cristianismo, deixa-se contaminar pelas falsidades e pela desonestidade de todas as interpretações cristãs do mundo e da história. Salta de “Deus é a verdade” para “tudo é falso” (NIETZSCHE, 2006, p. 98)

O melhor trabalho de “demolição do divino” teve origem no seio do próprio

Cristianismo. Em a Gaia Ciência, Nietzsche pergunta “o que fizemos quando

desatamos a terra do seu sol?” Para onde ela se move agora? Copérnico (1473-

1543) foi um cônego católico que promoveu essa “chaga divina”, antes mesmo que

narcísica.

A constatação da morte de Deus não é um mero ataque a religião, mas algo

mais abrangente. Deus, agora, não significa somente o deus para o qual os

religiosos oram e os filósofos refletem: Deus é compreendido como a soma total dos

valores que a civilização ocidental havia produzido. Logo, a morte de Deus decretou

o fim de todos os valores elevados que havíamos herdado da tradição.

O cristianismo, em sua busca obcecada pela verdade, procurou na natureza

as leis universais e imutáveis criadas por Deus. Diferentemente da imagem

equivocada e amplamente divulgada sobre o cristianismo como “inimigo da ciência” -

herança da propaganda iluminista -, o cristianismo motivava o conhecimento das

supostas obras divinas, até mesmo como comprovação de sua origem arquitetada,

ocorreu que um problema surgiu em sua própria demanda: Ao procurar um Deus por

trás das “leis naturais”, nada encontraram; a não ser uma natureza indiferente e as

futuras bases para um mecanicismo autossuficiente. Mesmo teologias residuais,

como a do protestante unitário, a do filósofo deísta das luzes, o Deus relojoeiro e a

do racionalista integral, o Deus-natureza –são todas descendentes do platonismo e

filhas do cristianismo – como nos adverte Nietzsche:

Nos últimos séculos promoveu-se o avanço da ciência, em parte porque se esperava compreender melhor com ela e por ela a

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bondade e a sabedoria de Deus – o motivo principal na alma dos grandes ingleses, como Newton; em parte porque se acreditava na utilidade absoluta do conhecimento, particularmente na intima união da moral, do conhecimento e da felicidade- o motivo principal dos grandes franceses, como Voltaire; e em parte por que na ciência se acreditava possuir e amar alguma coisa que não tinha nada a ver com os maus impulsos humanos, alguma coisa desinteressada e inofensiva que se bastava a si mesma, algo verdadeiramente inocente o motivo principal da alma de Spinoza que se sentia divino pelo conhecimento, isto é, em razão de três erros (NIETZSCHE, 2001, p. 37).

O cristão Descartes (1596-1650), que escrevera um tratado sobre o universo,

acreditara que poderia desenvolver um sistema que não apenas englobaria todo o

conhecimento, mas também o unificaria. Estendendo seus estudos sobre um amplo

leque de temas, como astronomia, geometria, e dioptria, o filósofo Francês decidiu

estudar anatomia e passou a visitar diversos matadouros locais. Destas visitas,

nasceu uma famosa anedota: segundo a historieta, Descartes notou um jovem

desenhando a carcaça sem pele de um boi e perguntou-lhe por que escolhera

aquele tema. “Sua filosofia arrebatou nossas almas”, respondeu o artista. E em

meus quadros, eu a devolverei, mesmo aos animais mortos. Dizem que o jovem era

o famoso pintor Rembrandt (1606-1669)9.

Independentemente da veracidade do encontro, é inegável que tal “lenda”

nos relata uma verdade sobre a pretensão cartesiana e cristã: a alma do mundo

havia sido arrebatada para algum lugar distante, enquanto a arte, talvez pudesse

salvá-la.

Essa rápida digressão serviu para demonstrar que a morte de Deus teve

início pelas mãos de seus próprios fiéis, em uma curiosa repetição narrativa, já

conhecida entre judeus e cristãos.

Nietzsche foi educado em um ambiente pietista10 e, de certa maneira,

manteve seu temperamento religioso. Autenticamente angustiado pela constatação

da morte de Deus, o filósofo relatou: “O maior acontecimento dos últimos tempos – a

saber, Deus morreu; que a crença no deus cristão perdeu o crédito – já começa a

9 Rembrandt Harmenszoon van Rijn, pintor e gravador holandês, expoente máximo do “Século de Ouro dos

países baixos”, considerado por muitos como o “maior pintor da história”, justamente, por causa do seu domínio

técnico sobre as luzes; comparadas pelo artista à alma humana. 10

Nietzsche viveu sua infância em um ambiente Pietista, educado por sua mãe e irmã. Em 1849, ficou órfão do

pai, um pastor Luterano.

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projetar suas primeiras sombras sobre a Europa”. Uma crise sem precedentes dos

valores ocidentais era eminente, principalmente quando a humanidade tomasse

consciência disso:

As verdades e os valores são ilusões, mas esquecemos que eles o eram, que são usados e não tem mais força na experiência sensível, moedas que perderam sua imagem e que agora só são levadas em consideração como metal e não mais como moedas (NIETZSCHE, 2001, p. 84).

Desde então, vivemos esse espetáculo que configura a nossa tragédia, um

teatro sem protagonista e um palco no qual os atores restantes gritam e se

engalfinham pelo papel principal.

Após a morte de Deus para a cultura, tivemos que lidar com a elaboração do

“luto de todos os lutos”. A modernidade herdará tal enlutamento e sua busca ávida

por um novo sucessor. Mas antes, precisaremos compreender: Por que o

Renascimento produziu a arte mais elevada do cânone ocidental, justamente

quando Deus estava prestes a morrer? O Renascimento irá configurar para a

história do ocidente o início ambivalente da elaboração do luto pelo divino, uma

espécie de supernova, uma luz intensa que antecederá as sombras confusas e

erráticas do niilismo no contemporâneo.

2.1 O RETRATO DO CÉU ESVAZIADO: O Trono Vazio e os Vice-

reis

Se Michelangelo fosse contratado para retratar a obra a Criação de Adão nos

dias atuais, quem estaria no lugar de Deus no afresco? No decorrer da história

ocidental os candidatos foram muitos: Razão, História, Ciência, Absoluto, entre

outros. Kierkegaard – como Nietzsche - percebeu que “um rei sem país, na verdade,

não governava nada” (KIERKEGAARD,2001, p.68), o pensador dinamarquês

atacava a filosofia do Eu e do Absoluto, tão difundida em sua época, especialmente

por filósofos como Hegel, Shelling e Fitche, todavia o mais interessante é a

conclusão óbvia de que sem uma terra, não há nada para reinar.

Após o Renascimento Humanista, que colocou o homem no centro do

universo, o ocidente passou por inúmeras convulsões culturais: a reforma

protestante, que libertou a consciência individual do monopólio da Igreja; as

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revoluções científicas, que conferiram ao homem a capacidade de investigar e

controlar os antigos mistérios da natureza; o Iluminismo e sua aposta em um homem

racional, libertado da ignorância, do dogma e da intolerância; as utopias socialistas;

psicanálise e assim por diante. Todos estes movimentos contribuíram para o

nascimento de novas concepções sobre o homem, mas, ainda, havia um problema

pendente.

Temos aqui outro aspecto basal da constatação nietzschiana: a civilização

ocidental não está ciente da morte divina. Embora o crime tenha sido consumado, o

que gera a perplexidade de Nietzsche é que todos os valores morais e metafísicos

ligados ao cristianismo sobreviveram. A morte de Deus foi em vão. Apenas trocamos

de religião e de sucedâneos.

A ausência do Criador inutilizou a criatura, não havia mais terra para ser

governada. Logicamente, o processo foi gradativo. Como a erosão de uma

montanha no decorrer das eras pela força dos ventos, a pretensão ao divino foi

ruindo. O excesso de racionalização foi o “sopro do vento” que aos poucos arruinou

o mundo no qual Deus habitava.

Comumente a modernidade é associada ao período da História e da Razão.

Elas tentaram, heroicamente, suceder o divino. Mas se Deus morreu, para nossa

cultura, quem possuiria tamanha força para sustentar uma narrativa que abrigasse a

todos os aspectos da existência?

Adversário vigoroso de Nietzsche, o escritor britânico G.K. Chesterton11 dizia

reconhecer a Morte de Deus para a cultura; só não podia aceitar que qualquer

“coisa” assumisse seu lugar (CHESTERTON, 2008, p. 73). Neste aspecto,

concordava com seu desafeto alemão.

Como já foi mencionado neste trabalho, inúmeros foram os sucessores

divinos: Razão, História, Outro, Cérebro, Genoma, Progresso, Absoluto, Luta de

Classes, Amor, Natureza, Nação, Cultura, Força Vital, Estado, Inconsciente, Moral,

Sujeito, Consciência, Totalidade, Ser, Vontade, Estrutura ou mesmo a Arte, em

11

Gilbert Keith Chesterton, conhecido como G.K Chesterton, foi poeta, historiador, economista, desenhista e

teólogo britânico. Autor de livros como “O Homem Eterno” e “Ortodoxia”, famoso por colocar em debate crítico

as idéias de Nietzsche.

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formulações metafísicas que procuravam o Belo e o Sublime. Todas essas próteses

divinas, de alguma forma, operavam nos discursos como um centro, aquele mesmo

perdido com a Morte de Deus.

Heidegger foi o pensador que reconheceu Nietzsche como o “filósofo

decisivo”. Diferentemente de outros comentadores, o pensador da floresta negra

problematizou a obra nietzschiana de forma original, como comenta Giacoia Junior:

Heidegger se ocupou com o estudo do pensamento de Nietzsche por um período que vai do final dos anos 30 a meados dos anos 50. A publicação de seus estudos constitui um divisor de águas e uma referência obrigatória para qualquer interpretação da obra de Nietzsche (GIACÓIA, 2005, p. 32)

Mas por que a interpretação da obra de Nietzsche por Heidegger é tão vital?

Segundo Heidegger o pensamento de Nietzsche foi um marco decisivo para a

filosofia ocidental:

Nietzsche é o primeiro pensador que, perante a história universal pela primeira vez aflorada em seu conjunto, coloca a pergunta decisiva e a reflete internamente em toda a sua extensão metafísica. Essa pergunta reza: como homem, em sua essência até aqui, está o homem preparado para assumir o domínio da terra? (Heidegger, 2012, p. 102).

A crítica mais ampla de Heidegger ao pensamento de Nietzsche exigiria um

trabalho à parte, mas um aspecto desta crítica, complexa e ambivalente, nos

interessa: O traço ontoteológico do pensamento ocidental.

Ontologia12 é a disciplina filosófica que estuda o ser dos entes. A palavra

“ente” traduz o termo grego Onta, que designa entidades, aquilo que é ou que existe.

Ontologia, portanto, é a ciência ou estudo metódico (logia) daquilo que é – o ente-,

visando determinar sua essência ou seu ser. Teologia é o estudo sobre Deus, ou

ciência que trata do divino.

Heidegger levantou a velha questão sobre o Ser a partir da distinção entre o

“ente”, esta ou aquela realidade que existe empiricamente, e o “Ser”, misteriosa

fonte da presença de todo ente. Segundo o pensador da floresta negra, a filosofia

teria ignorado a diferença e reduzido o Ser a um ente superior e absoluto: Deus.

12

E necessário reportar que o filósofo alemão Heidegger propõe a distinção de duas palavras: Ôntico e

Ontológico; ôntico se refere à estrutura e a essência própria do ente; enquanto ontológico seria o estudo

filosófico do ser dos entes.

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Para fugirmos desse “erro”, precisamos abordar o sentido do ser a partir da

diferença, e não à eternidade e à totalidade, como foi no caso da história do

pensamento ocidental.

Para Heidegger, o pensamento ontoteológico fica evidente quando

perguntamos sobre o mundo sempre da mesma maneira; procurando um

fundamento absoluto, ignorando a temporalidade para que seja possível assegurar a

fixidez como centro que garanta a identidade, o controle, a mensurabilidade e a

funcionalidade do ente.

Os vice-reis retratados nesse capítulo, Razão, Absoluto, História, Ciência, são

apenas próteses de um Deus Morto; uma maneira velha de perguntar sobre novas

questões. Deus pode ter morrido para a cultura, mas continuamos a perguntar da

mesma forma sobre ele, ainda que com outros nomes.

Esta forma de pergunta é o que caracterizou o pensamento ocidental, desde

Platão. A própria natureza desta pergunta antecede Deus na cultura ocidental. O

outrora Deus oriental e vingativo tornou-se uma necessidade da lógica, habilmente

miscigenado pelos cristãos a filosofia platônica. Daí, Nietzsche afirmar que:

“Cristianismo era Platonismo para o povo” (NIETZSCHE, 2004, p. 133). As ideias de

Platão, as causas de Aristóteles, as mônadas de Leibniz, a substância pensante de

Descarte ou Deus como ens supremo na filosofia medieval. A Ontologia foi

determinada por uma espécie de pergunta caracterizada pela busca do ser dos

entes, por sua essência; sempre respondendo a essa pergunta com a identificação

de um ente supremo.

Por isso a importância em mudarmos a pergunta. Desde Platão, não

reformulamos a questão, mesmo que as respostas tenham sido insuficientes.

Precisamos indagar: qual o sentido do Ser? Heidegger conclui posteriormente que

só os artistas poderiam demonstrar tal pergunta, especialmente a poesia, pois ela “é

a linguagem do ser, o poeta faz a experiência de um poder, de uma dignidade da

palavra, que não consegue ser pensada de maneira mais vasta e elevada”

(HEIDEGGER, 2012, p. 77).

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O papel da arte é lócus de outra aproximação entre Nietzsche e Heidegger,

pois cabe à postura artística propor “alternativas ao pensamento ocidental”, viciado

em uma forma de questionamento, que acabou por nos condenar ao niilismo.

Nietzsche e Heidegger percebem a urgência da questão para a própria

salvação do cenário ocidental. Heidegger, em um momento nietzschiano, expõe sua

leitura sobre o contexto do contemporâneo:

Quando a tecnologia e o dinheiro tiverem conquistado o mundo; quando qualquer acontecimento em qualquer lugar e a qualquer tempo se tiver tornado acessível com rapidez; quando se puder assistir em tempo real a um atentado no ocidente e a um concerto sinfônico no Oriente; quando tempo significar apenas rapidez online; quando o tempo, como história, houver desaparecido da existência de todos os povos, quando um desportista ou artista de mercado valer como grande homem de um povo; quando as cifras em milhões significarem triunfo, – então, justamente então — reviverão como fantasma as perguntas: para quê? Para onde? E agora? A decadência dos povos já terá ido tão longe, que quase não terão mais força de espírito para ver e avaliar a decadência simplesmente como… Decadência. Essa constatação nada tem a ver com pessimismo cultural, nem tampouco, com otimismo… O obscurecimento do mundo, a destruição da terra, a massificação do homem, a suspeita odiosa contra tudo que é criador e livre, já atingiu tais dimensões, que categorias tão pueris, como pessimismo e otimismo, já haverão de ter se tornadas ridículas (HEIDEGGER, 1987, p.57).

“As perguntas reviverão como fantasmas” anuncia Heidegger. Mas quais

perguntas? Aquelas que ofereçam um antídoto contra o “esquecimento do ser13”:

capazes de mudar a forma de pensar ontoteológica, característica da própria

constituição do pensamento ocidental, condicionada a: criar centros para a

gravitação de todos os elementos restantes e forjar – palavra, etimologicamente,

parente de fingir – fundamentos que sirvam de alicerces para grandes sistemas.

Nietzsche compara, metaforicamente, a metafísica ocidental a uma aranha,

que tudo captura com sua grande teia, para depois devorar. Deus está morto e

continuamos a nos comportar como se ele estivesse vivo, procurando a velha

Verdade estática e segura; prosseguimos fingindo e forjando vice-reis, presos na

mesma teia:

13

A diferença ontológica será tratada por Heidegger como a razão do esquecimento do Ser legado pela tradição

filosófica ocidental. Desde Platão, a filosofia passou progressivamente para uma investigação do ente. Ao

ocupar-se com o ente, a questão do sentido do ser teria caído em esquecimento.

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Atravesso com sombria prudência essa casa de loucos que é o mundo há milhares de anos; pouco importa que se chamem de cristianismo, fé cristã, Igreja cristã – abstenho-me de responsabilizar essa humanidade por suas enfermidades mentais. Contudo, meu sentimento muda, explode assim que entro na era moderna, em nossa época. Nossa época não é ignorante [...] o que outrora não passou de enfermidade tornou-se um inconveniente. É inconveniente ser cristão hoje. E aqui começa meu desgosto: - volto-me: não resta nos lábios uma só palavra daquilo que outrora se chamava verdade. [...] Não é mais permitido mentir por “inocência”, por “ignorância” [...]. Todo mundo sabe disso e, no entanto, nada muda (NIETZSCHE, 2006, p. 126).

Nietzsche propõe a compreensão da lógica desse movimento contraditório, do

qual o progresso do conhecimento leva à perda de consistência dos valores

absolutos; a partir daí, denunciar todas as formas de sucedâneos pelas quais o

homem moderno esconde sua consciência dos perigos de sua condição; por fim,

após destruir os falsos ídolos, e esses são os valores mais adorados pelo homem

moderno, assumir corajosamente e tragicamente o risco de forjar valores autênticos

e criar novos horizontes para experiência humana na história.

No livro de Terry Eagleton “A Morte de Deus na Cultura”, de forma precisa o

autor expressa a condição de nosso tempo:

Nietzsche refere-se com desdém aos livres-pensadores franceses, de Voltaire a Comte, por tentarem “descristianizar” o cristianismo com um covarde culto do altruísmo e da filantropia, virtudes tão repugnantes, para ele, quanto a compaixão, a piedade, a benevolência e toda a bobajada humanitária [...] São tantas outras maneiras de negar o desaparecimento de Deus, Deus de fato está morto e somos nós os seus assassinos, mas nosso verdadeiro crime não é tanto o deicídio, mas a hipocrisia. Depois de matar o Criador na mais espetacular das revoltas edipianas, tratamos de esconder o corpo, recalcamos toda lembrança do acontecimento traumático, arrumamos a cena do crime e, como Norman Bates em Psicose, nos comportamos como inocentes. Também nós dissimulamos nosso deicídio com várias formas de pseudo-religião. Como se quiséssemos expiar nossa culpa inconsciente (EAGLETON, 2014, p. 146).

Mas essa culpa não é somente em relação ao deicídio cometido por todos

nós, ela também diz respeito ao peso da consequência pela morte de Deus. O ponto

de partida do problema é aquilo que Leibniz chamou de “questão da Teodiceia “A

questão de como justificar Deus, em vista do mal no mundo. O filósofo e matemático

propôs a solução que chamou de “compensação”. Segundo o conceito proposto por

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Leibniz, Deus teria compensado as carências e o mal com comodidades. Mas se

Deus morreu, e o ser humano assume seu lugar como senhor da História, então o

novo réu não é mais Deus, mas o próprio Homem. Isso significa que o homem se

encontra nos dois lados da acusação: é o acusador e, ao mesmo tempo, o acusado.

Desde então, o homem encontra-se em uma situação de tensão completa. Essa

pressão tornou-se insuportável, o homem precisou se justificar perante um “tribunal

da consciência”. Dentro desta perspectiva, o homem passou a procurar formas de

alívio para a tensão – a filosofia do século XVIII apresentou vários escapes

compensatórios – surgiram duas posturas em busca de alívio diante da nova

condição: a da inacusabilidade e da maximização do júri. A primeira opção oferece

uma postura de inacusabilidade, dentro dessa “tradição” encontramos a estética, a

psicologia e a antropologia, locais nos quais a relatividade impõe limites a jurisdição.

Ou podemos nos esconder por trás do papel do júri carrasco, potencializando a

tribunalizacão da consciência, como na filosofia Kantiana de autonomia da

consciência moral e a filosofia da história. Essa nova “teodiceia”, por exemplo,

pergunta não mais: como pode haver mal em um mundo criado por um Deus bom,

mas como podemos fazer arte em um mundo tomado pelo mal? Podemos identificar

essa “potencialização da tribunalização” como característica basal da Hipertrofia do

conhecimento histórico, sucedâneo do divino típico da cultura moderna, ou nos

termos do próprio Nietzsche: da “barbárie civilizada”, assolada por culturas de todas

as épocas.

“Esse modo de ver as coisas colocou a história em lugar de outros esforços espirituais, arte e religião, como única soberana, na medida em que ela é” o conceito que realiza a si mesmo”, na medida em que ela é “a dialética dos espíritos dos povos” e o “tribunal do mundo” (NIETZSCHE, 2001, p. 93).

Nietzsche, mais simpático a inacusabilidade da arte, percebe a hipertrofia do tribunal, e toma as dores da Arte:

Que lugar ainda resta para a arte? Antes de tudo, ela ensinou, através de milênios, a olhar com interesse e prazer à vida, em todas as suas formas, e alargar tanto nosso sentimento que por fim brademos: Como quer que seja a vida é boa. Essa doutrina da arte — sentir prazer na existência e considerar a vida humana uma parte da natureza (NIETZSCHE, 2001, p. 89).

Sem cair no equívoco típico do século XVIII, da busca e contemplação pelo

Belo, – somente outra postura em busca de uma nova prótese divina – ou na

elaboração de uma metafísica da arte, como encontramos na obra primogênita do

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filósofo alemão, “O Nascimento da Tragédia”, Nietzsche passará a propor a

invenção da vida como uma obra de arte, por meio de uma estética existencial

capaz de sublevar o tribunal.

Seria a proposta de elaboração de uma “estética existencial” a imagem-

fantasma que procuramos? Será que a obra A Criação de Adão deixou de significar

a criação do homem pelas mãos de Deus, para assumir no contemporâneo o sentido

da criação como exercício do próprio Adão? Essa questão será esquadrinhada no

último capítulo deste trabalho, todavia, podemos adiantar que o homem está

condenado sem Deus, e aquele que assumir o título de criador precisará, no mínimo,

ser para “além-do-homem”14.

Como Deus morreu? Terá sido somente pelo excesso de racionalização?

Certamente que não; foi também de compaixão, de caridade, de uma moral que

tornou a existência intragável; a insuportável ideia de um deus criador, responsável

por esse mundo e ao mesmo tempo culpado pelo crime de omissão pelos males do

mundo. Não se trata de um momento de negatividade dialética, caminho para o devir

absoluto, não se trata de um tratado teológico e seus malabares, como diria Milton,

em sua obra-prima, O Paraíso Perdido, “a teologia, muitas vezes, é o jogo preferido

dos demônios” (MILTON,2002, p.96). Temos, aqui, apenas a constatação do fim de

uma crença humana, demasiadamente humana. Desta forma, Zaratustra, o profeta

encontra o último papa e lhe pergunta como Deus morreu. A resposta do papa é

surpreendente:

Quando era jovem, esse Deus vindo do oriente era duro e vingativo e construiu um inferno para o deleite de seus prediletos. Mas ele ficou velho e fraco, mole e compassivo, mais semelhante a um avô do que a um a um pai, e, sobretudo semelhante a uma avó velha e trôpega. Ficava sentado, murcho a um canto no fogão, queixando-se da fraqueza de suas pernas, cansado de ter uma vontade e um dia morreu sufocado por sua excessiva compaixão (NIETZSCHE, 2000, p. 90).

Zaratustra, o sem deus, diz então: Chega de um deus como este! É melhor

não termos nenhum deus, é melhor forjarmos, nós mesmos, nosso destino, melhor

14

O termo original, empregado por Nietzsche, é Ubermensch, comumente traduzido por “Super-Homem”.

Preferimos a tradução, Além –do -homem, proposta por Rubens Rodrigues Torres Filho: Obra incompleta.

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sermos palhaços, é melhor sermos deus nós mesmos. Assim, os homens matam os

deuses “de diversas formas”. Finaliza o profeta.

O próximo encontro de Zaratustra é com o “mais-feio-dos-homens”, aquele

que tem forma humana, parece humano, mas que só pode ser reconhecido por sua

voz, pois todo o resto foi corrompido, o mais “doentio dos animais”.

O que gentalha chama de virtude é a compaixão – enquanto que eles não têm nenhum respeito por uma grande desgraça, uma grande feiura, pelo grande fracasso. De todos eles desvio meu olhar, como um cão não olha mais por cima das costas fervilhantes dos carneiros. Trata-se de gentinha tristonha, benevolente e bem lanzuda. [...] essas pequenas almas sombrias. Foi preciso que Deus morresse. Ele que via com seus olhos tudo, via profundezas e os motivos do homem, toda a sua dissimulada vergonha. Era preciso que morresse esse indiscreto, ultra compassivo. [..] Ele me via sempre, de uma tal forma que quis vingança – ou então preferia não viver. O deus que via tudo, também o homem, esse deus era preciso que morresse! O homem não suportava que tal testemunha sobrevivesse (NIETZSCHE, 2000, p. 220).

A necessidade de escolhermos sucedâneos para Deus é compreensível, não

se trata apenas de “burocracias do pensamento”, há algo muito mais importante em

jogo: o avanço do nada. A morte de Deus, como já foi dito no presente trabalho,

envolve a morte do homem; essa curiosa conclusão não era desconhecida dos

cristãos, a semelhança é inegável: Os teólogos utilizam o termo Kenosis para

nomear esse processo: O homem passa pelo evento de aceitação da vontade de

Deus, no qual acontece o esvaziamento da vontade própria de uma pessoa. Ocorreu

que nos esvaziamos; de certa maneira, o homem buscou a objetividade, até que no

século XIX ele a conseguiu. O problema é que Deus, agora ausente, não preencheu

o vazio, e em seu lugar não havia nada.

A racionalização iluminista, o sentimentalismo romântico, a ambição idealista

de totalidade, o materialismo dos comunistas, a aposta no progresso dos

positivistas, são só alguns exemplos das tentativas do homem de impor um novo

epicentro para a cultura ocidental.

Kierkegaard, em sua obra Ou...Ou, percebeu os perigos de uma cultura

racionalizada; intuiu a sabotagem prestes a ser operada, afinal, se a Razão é o

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desígnio racional do universo, não há motivo para obedecê-la, de viver em

conformidade com ela, não há porque se preocupar (KIERKEGAARD,2001, p.52). O

pensador dinamarquês, que descreveu a Razão como um Vice-rei que não governa

terra alguma, sabia que a única alternativa a Deus era o Nada, seu livro poderia ter o

título “Ou Deus...Ou o Nada” Parece que o Nada triunfou, e sobre esse avanço do

niilismo serão dedicados os próximos capítulos desta obra.

Próximo do término deste primeiro capítulo, dedicado ao tema da Morte de

Deus e de seus sucessores menores, é necessário abordar o próprio “Nada” como

um possível usurpador do trono vazio. É verdade que abordamos o Nada como a

ausência deste fulcro que garantiria a segurança e a validade de todos os discursos

restantes; mas não podemos negar a tentativa do próprio Nada de ascender a

pretensão de centro gravitacional da cultura.

A empreitada atual trabalhará a questão do niilismo no capítulo seguinte,

inclusive, a conclusão do próprio “Nada”, como manifestação do avanço do niilismo.

Neste ponto do trabalho é necessário mostrar que o Nada se tornou o “outro lado da

moeda” divina. A incapacidade da razão de demonstrar sua origem, problema

encontrado em quase todos os sucessores, não afeta o Nada, assim como não

afetava o divino. É provável que Deus tenha encontrado no Nada seu maior rival?

Um pensamento sedutor, mas não parece haver uma rivalidade, apenas uma

oposição aparente – como vimos em Kierkegaard – um problema menos dialético e

mais de contraste, como as luzes e as sombras que compõem um quadro.

O Nada é um sucedâneo diferenciado; mas a morte de Deus parece ter

condenado igualmente suas possibilidades de promoção. A grande confusão

conceitual, que entronizou o Nada, foi em relação a outro conceito: o Absurdo. Esse,

sem dúvidas, o verdadeiro adversário do pensamento, afinal, Deus pode resistir ao

Nada, mas não ao absurdo. O que gerou o problema teodiceico nunca foi o “mal”

propriamente dito, mas o absurdo de um “Deus bom” não tomar uma atitude

contundente perante, por exemplo, a morte de uma criança atropelada

acidentalmente pelo próprio pai, enquanto esse saía para trabalhar e garantir o

sustento de seu filho. O Nada é um sucessor vazio, esperando que algo o preencha,

como nos grandes mitos antigos, nos quais o oceano, representado sempre pelo

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feminino, aguarda a penetração e o preenchimento da “espada fálica” do deus

celestial masculino.

A Nadificação é o problema de nossa cultura, é verdade, mas justamente por

não ter nenhum pretendente divino capaz de preenchê-la. A experiência do absurdo

reinou sobre todos os vice-reis menores, e por este motivo eles nunca governaram

terra alguma. Nietzsche expressa esse dilema final, em um momento quase

autobiográfico de sua obra:

Dai-me pois a loucura, oh vós, mestre celeste, a loucura a fim deque eu creia finalmente em mim mesmo [...] A dúvida me devora; matei a lei e a lei me atormenta como um cadáver atormenta os vivos; se não sou mais do que a lei, então sou o mais rejeitado de todos” (NIETZSCHE, 2003, p. 73).

Há algo muito mais sério em torno do niilismo. Iniciamos o texto questionando

qual vice-rei seria retratado por Michelangelo, caso ele fosse contratado para pintar

seu mais famoso afresco nos dias atuais. Espantosamente, é muito provável que no

lugar da imagem de Deus não houvesse nada; ou pior, não houvesse nem mesmo

obra, pois o avanço do niilismo é a própria nadificacão da potência. Michelangelo

seria mais um dos últimos-homens, impotente, cansado demais para criar. Sobre o

fenômeno da nadificação, dedicaremos um dos futuros capítulos para que possamos

compreender como a tela da criação foi apagada; como Deus, o homem, os anjos e

até as nuvens desapareceram, dando lugar a uma tela em branco, sem gravura,

tintas ou pintor.

2.2 OS FANTASMAS DA OBRA: A Ferida no Tempo de Warburg

Após a exposição conceitual sobre a morte de Deus, iremos abordar um

conceito fundamental para a empresa atual: A Imagem-fantasma. Mas antes

visitaremos um personagem ilustre da cultura grega: Quíron.

Warburg pesquisou, aos 22 anos, ao lado de seu professor de arqueologia

clássica, Kekulè Von Stradonitz, a “força animal” dos centauros. As criaturas

mitológicas foram objetos de fascínio do historiador alemão: “A força animal” com

que o centauro aperta sua vítima, o desejo selvagem, que nem mesmo a morte que

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se avizinha consegue reprimir, tudo isso é perfeitamente mostrado (WARBURG,

2015, p 82).

Quíron, na mitologia grega, era um centauro. Ao contrário do resto dos

centauros, que eram famosos por serem beberrões e violentos, Quíron era

inteligente, justo, nobre e célebre por seus conhecimentos bélicos e médicos. De

acordo com os mitos arcaicos, foi filho de Cronos, titã do tempo, e da ninfa Filira.

Quíron teve como tutor Apolo que lhe ensinou música, poesia, artes divinatórias,

profecias, astrologia, medicina e a peleja mortal. Quíron foi o preceptor máximo de

inúmeros heróis, como Hércules, Jasão, Teseu, Aquiles e do próprio Dionísio.

Quíron será uma figura vital para dois importantes eventos mitológicos: A Guerra de

Troia e a libertação de Prometeu.

Segundo o mito, foi ferido acidentalmente por uma flecha de Hércules,

banhada pelo veneno da Hidra de Lerna15. A seta não matou Quíron, pois era

imortal, porém provocou-lhe uma ferida incurável. O curandeiro ferido é uma imagem

irônica: um curandeiro talentoso, mas incapaz de curar a si mesmo.

Mas voltemos, agora, aos dias da contemporaneidade. O cenário

contemporâneo já foi chamado de pós-moderno; há quem prefira “modernidade

líquida”; há ainda os que considerem que vivemos em uma sociedade do

espetáculo; em qualquer um dos casos, a única certeza é a constante mudança,

perenidade, transitoriedade e virtualidade do cenário atual. Exatamente por isso não

poderia haver momento mais oportuno para o redescobrimento de Aby Warburg, e

sua história de fantasmas.

Como Quíron, Warburg foi discípulo de grandes mestres e preceptor de

grandes nomes. Também foi um articulador de diversos saberes, história, filosofia,

arte, antropologia e psicologia. Embora não fosse filho de Cronos, como seu

antecessor, era um pesquisador dedicado ao tempo. Foi “aluno” de Apolo, pois

versava de grande erudição, e “tutor” de Dioniso, pois conduziu a divindade dos

ditirambos novamente para os caminhos da história. Por fim, Warburg também era

diferente dos outros membros de sua “raça”: os historiadores.

15

Monstro mitológico, filho de Tifão e Equidna. Habitava o pântano de Lerna. Segundo o mito, A Hidra tinha

três cabeças e corpo de dragão; era tão venenosa que matava os homens apenas com seu hálito. Foi morta por

Hércules, em seu segundo trabalho.

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Warburg foi um intelectual à frente de sua época. Enquanto historiadores

baseavam seus grandes edifícios teóricos na idolatria do fato, no longevo, no

concreto, no duradouro, no perpétuo ou linear, Aby Warburg propôs a leitura da

história por meio da iconologia, multiplicidade, da diferença e dos anacronismos

trans-históricos. Obviamente, ele foi criticado, desacreditado, rechaçado e, na

melhor das hipóteses, ignorado pelos pares de sua época. Sem dúvida, a proposta

do historiador alemão ameaçava a ambição das grandes narrativas.

Pesquisador do Renascimento, Aby Warburg acreditava que o período

vivenciado por Michelangelo e Leonardo da Vinci havia recuperado as forças

pulsionais dionisíacas, uma espécie de novo paganismo fundido a austeridade

cristã. Mas desse período parece que só os fantasmas sobreviveram.

A cultura italiana do renascimento preservou e revitalizou, no sul e no norte, alguns tipos de profecia da antiguidade pagã, cuja essência é composta de uma mistura tão intensamente viva de elementos heterogêneos - de racionalismo e mitologia, de matemática calculista e augúrio profético (Warburg, 2015, p. 138).

O Renascimento foi o centro gravitacional do pensamento de Warburg. Ele

considerava o período um grande turbilhão de ideias, local de uma reaparição da

cultura pagã, que havia sobrevivido de forma fantasmática. A partir do Renascimento

o autor avançou em direção as mais variadas formas de manifestações culturais da

antiguidade, pesquisou a Reforma Protestante, passou pelo Humanismo, pesquisou

culturas orientais e indígenas norte-americanas.

Entre seus discípulos mais destacados estão: Ernst Gombrich (1909-2001),

que foi biógrafo de Warburg e abordou problemas específicos de historiografia,

Erwin Panofisky (1892-1968), e George Didi Huberman (1963). O último dedicou a

Warburg o livro “A Imagem Sobrevivente”, no qual explora as principais noções de

Warburg, especialmente a noção de “fantasmagoria” ou imagem sobrevivente.

Mas existiria um grande tema na obra de Warburg? Repleto de análises

inusitadas, livre de escolas, doutrinas e áreas específicas do saber, Warburg criticou

o caráter estetizante dos estudos da História da Arte pautados em gêneros, estilos e

datações. Cada questão demandava um método de pesquisa. Comumente o

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historiador alemão partia de um assunto especifico e caminhava para elementos

mais genéricos e enciclopédicos.

Suas principias influências foram Jacob Burckhardt, historiador da arte,

famoso por articular as obras com outros elementos culturais (rituais, festividades) e

Nietzsche. Não há citações diretas a Freud, mas a noção de sintoma é

frequentemente abordada na obra de Warburg.

Com Nietzsche, Aby Warburg aprendeu as concepções de eterno retorno e

das pulsões dionisíacas e apolíneas. A concepção de “ciclos de retorno da

diferença” será decisiva para obra do historiador alemão. Warburg combateu a

forma de compreensão da história como um processo progressivo, sucessivo,

evolutivo e linear. De acordo com a proposta do pesquisador, a história era um

mosaico repleto de anacronismo, imagens impuras e fantasmas. Como Didi

Huberman- o “Aquiles de Warburg” - frisou: “As intricações mais inquietantes, porém,

concernem a história e a temporalidade, elas mesmas: pilhas de trapos do tempo, se

me atrevo a dize-lo. Amontoados de tempos heterogêneos (DIDI HUBERMAN, 2013,

p. 175).

Para melhor compreensão do “fenômeno histórico”, era preciso articular outro

importante aspecto do pensamento nietzschiano: a “dança” entre o dionisíaco e o

apolíneo. A história não seria um processo harmonioso, mas uma narrativa de

tensão entre os instintos e a cultura. Tradicionalmente, os estudos históricos teriam

valorizado apenas a dimensão apolínea e ignorado o lado dionisíaco da civilização.

Somente a articulação das duas dimensões poderiam produzir um processo

hermenêutico adequado para história: “toda a humanidade é o tempo todo e para

sempre esquizofrênica” (WARBURG, 2015, p. 271).

Na época de Warburg, os estudos de arte eram baseados nas concepções

iluministas; as principais bases dos estudos sobre arte estavam concentradas na

Estética (Alexander Baumgarten-1714-62), História da arte (Johan Winckelmann) e a

Crítica (Denis Diderot 1713-84). Havia, também, um fervor com produção de arte

Neoclássica.

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Intelectual independente, criador de textos fragmentados e assistemáticos,

Warburg, assim como Nietzsche, Benjamin e Kierkegaard, provavelmente, se

estivesse vinculado a uma universidade, talvez, não tivesse produzido uma obra

com teor original.

Dissertação direta e sucinta, em “O Nascimento de Vênus e A Primavera” de

Sandro Botticelli: uma investigação sobre as concepções de antiguidade no início do

Renascimento Italiano. (1891), o jovem Warburg lança as bases de seu

pensamento: o exame dos mecanismos de transmissão e a sobrevivência da

memória cultural na antiguidade por meio de uma psicologia cultural da imagem.

Após uma série de análises sobre a obra de Botticelli, Warburg postula que o

Renascimento era um caldeirão cultural, caracterizado pela erudição e a reaparição

do antigo. (Astrologia, adivinhação, magia). O Renascimento era um período de

transição para Warburg, tensão psicológica que “produziu” homens como

Michelangelo e Da Vinci.

É possível acompanhar passo a passo como os artistas e seus conselheiros viam na antiguidade, um modelo que requer movimento aparente e acentuado, e como se apoiavam nos modelos antigos quando se tratava de representar partes acessórias-como o traje e os cabelos-cujo movimento é aparente. Diga-se, de resto, que, se tal demonstração é digna de nota para a estética psicológica, é porque permite observar em seu devir, nos círculos de artistas criadores, o sentido para o ato estético da empatia como uma “força formadora de estilo” (WARBURG, 2015, p. 27).

A cultura renascentista teria reativado as forças psíquicas pagãs e exposto a

sobrevivência das imagens. Mas o que são essas imagens-fantasmas? A imagem

seria como um índice cultural. Desta forma as Imagens não são “só imagens”, mas

formas de pensamentos, feridas abertas no tempo-espaço. Produzir imagens é um

comportamento simbólico e primitivo, basal na cultura humana, frente ao cosmos.

Daí a necessidade de uma Psicologia das imagens (psicologia da expressão

humana), para o estudo e compreensão das pulsões externalizadas por ações

imagéticas: por que o homem cria imagens? Porque tem necessidade de criar; para

dar sentido ao mundo. A imagem criada migra no tempo, não acompanhando o

tempo cronológico, ela é um caldeirão de passados, presentes e futuros; formas

reinterpretadas, ciclos de tensão na linha “harmoniosa” da História racional de

síntese e norma.

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A lógica, que cria o espaço reflexivo (entre o ser humano e o objeto) por meio da designação conceitualmente especificadora, e a magia, que novamente destrói esse mesmo espaço reflexivo entre o ser humano e o objeto por meio do vínculo (ideal ou prático) supersticiosamente agregador –observamos ambas no pensamento profético da astrologia. Formando ainda um aparato unitariamente primitivo, com o qual o astrólogo pode de uma só vez medir e conjurar magia. A época em que a lógica e a magia, como o tropo e a metáfora, “florescem enxertadas num mesmo tronco” é propriamente atemporal (WARBURG,2015, p.86).

Como o homem desenvolve símbolos, desde as imagens nas cavernas, o

gesto expressivo é ressignificado (não é o mesmo), muitas vezes é até invertido. Por

isso, estudos de gêneros e escolas não servem para compreender influências tão

dispares e distantes da arte. A dimensão mágica é potente e criadora de imagens,

mas perdemos gradativamente a capacidade de compreendê-las. Warburg entendia

que a razão tentou eliminar o mito, a magia e a astrologia (elementos pagãos) por

meio da reflexão lógica, racionalizada; um projeto programático que tentou silenciar

teorias herméticas. Qualquer semelhança com a “História da Loucura”, de Foucault,

tem origem na mesma raiz: Nietzsche.

Quer dizer: no império da mitologia, não reina a lei da menor quantidade de força, não se busca a causa mais simples possível para a legalidade verificada no curso regular da natureza. Em vez disso, é instituído, em prol da possibilidade de apreensão, um ser saturado com um máximo de força demoníaca, para que assim se possa realmente criar (WARBURG, 2015, p. 248).

Mas qual seria a alternativa aos estudos “tradicionais”? O modelo de

Warburg é contemporâneo e transdisciplinar; abriu a história da arte para a

antropologia, psicologia social e outras áreas do saber, mas não há um método

fechado em Warburg, pois não há síntese em sua concepção histórica. O historiador

alemão pesquisava objetos ordinários (moedas, selos postais, etc.), imagens que de

forma insistente reapareciam; levava elementos não artísticos para o estudo da arte,

em uma época que tentava estabelecer e estipular fronteiras bem demarcadas.

Um exemplo de seu trabalho, foi a tentativa de elaborar o “Atlas Mnemosine”:

um projeto que iria expor Imagens próximas em diferentes épocas (fantasmagoria),

uma espécie de “tese da cultura por imagens”. Warburg não concluiu tal obra,

morreria vítima de um ataque cardíaco, no ano de 1929. Sobre ela comentou:

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“A Mnemosine”, com seu alicerce de imagens (caracterizada no Atlas

por meio de reproduções), a princípio pretende ser apenas um inventário das pré-formações de inspiração antiga que verificadamente influenciaram a representação da vida em movimento na época do Renascimento, contribuindo assim para a formação do estilo (WARBURG, 2015, p. 366).

Os textos de Warburg são bem diversos, escritos para cumprir requisitos

universitários ou para congressos, palestras, ou mesmo anotações dispersas para

uso pessoal. Apesar dos temas muito específicos no primeiro contato, eles logo são

abordados e moldados de forma bastante ampla. Essas são algumas das

dificuldades, que resultam do seu “estilo de pesquisa”. Seu trabalho, no entanto, não

deixou de provocar e suscitar reações em diversas áreas do saber, como a

sociologia, psicologia, artes, antropologia, filosofia. Robert Klein dizia que “esse

historiador havia criado uma disciplina que, ao contrário de muitas outras, existia,

mas não tinha nem nome” (KLEIN, 1970, p. 46).

Aby Warburg desenvolveu, assistematicamente, três conceitos para o que

chamava de sua “ciência sem nome” ou ciência da cultura, que teria como meta

compreender como as imagens e os símbolos são constituídos, conservados e

transmitidos:

Nachlenben (sobrevivência do antigo) circunscreve essa metamorfose, que

implica plasticidade, maleabilidade, mudança das formas. As formas são forças:

ativas, reativas, dominantes, pálidas. O conteúdo que ficou culturalmente morto,

passado, perdido, não se perderá jamais. Ele reaparecerá em situações

significativas, pois só estava “recalcado”.

Pathosformeln (formas carregadas de energia; paixão expressiva), uma de

suas concepções mais problematizadas, a “fórmula de páthos16” carrega o modelo

ou motivos oriundos da antiguidade utilizados por artistas para criar forma e

movimento.

Engrama (memória social e coletiva) é uma forma de memória social e

coletiva Ele se enraíza em experiências e comoções muito intensas e significativas,

16

Páthos é uma palavra grega que significa paixão, passividade, sofrimento. No contexto artístico, significa uma

experiência humana (ou representação) que evoca dor, sentimento de compaixão ou simpatia no espectador.

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que permanecem “armazenadas”, podendo ressurgir posteriormente em obras de

arte, rituais e objetos ordinários.

Em Warburg persistiu a crença fundamental comum a Nietzsche e a Freud: o que sobrevive em uma cultura é o mais recalcado, o mais obscuro, o mais longínquo e mais tenaz dessa cultura. O mais morto, em certo sentido, por ser o mais enterrado e o mais fantasmático; e igualmente o mais vivo, por ser o mais vivo, por ser o mais móvel, o mais próximo, o mais pulsional. É essa, de fato, a estranha dialética da Nachlenben (DIDI HUBERMAN, 2013, p. 136).

Para Warburg, os fantasmas habitam as imagens, que são tanto objeto

materiais como formas de pensamento. Desta forma, a produção de imagens pelos

seres humanos vincula-se à sua capacidade de simbolização; elemento fundamental

para a constituição e manutenção da civilização. O efeito de tudo isso é que a

análise precisa incorporar o complexo jogo de forças históricas e sociais atuante na

constituição dessas feridas abertas no tempo.

Mas por que apresentamos o centauro Quíron no início desse texto? O

presente trabalho trata a morte de Deus como a ferida quironica da modernidade e o

contemporâneo como a terra devastada pela seta do niilismo. Quíron e Warburg são

metres, e descobriam a mesma “fórmula” que será fulcral para o desenrolar deste

trabalho: o fenômeno do curador ferido.

Impotente para curar seu próprio ferimento e não podendo morrer, por ser

imortal, Quíron começou a sofrer intensamente; recolhendo-se em uma gruta no

monte Pélion onde, porém, continuou curando inúmeras enfermidades e

transmitindo seus conhecimentos aos discípulos. Ocorreu que Prometeu havia

roubado o fogo dos deuses e dado para os homens e por este motivo foi castigado

por Zeus. Tomado pela pena e cansado de sofrer, Quíron disse que assumiria a

pena do Titã acorrentado. Zeus concordou, liberando Quíron de seu sofrimento, para

morrer em paz. De acordo com o mito, Zeus homenageou Quíron, colocando-o no

céu como a constelação de Sagitário.

Warburg também foi, ao seu modo, um centauro, meio historiador, meio

antropólogo. Assim como Quíron, foi portador de uma grave enfermidade17, todavia,

17

Warburg sofria de depressão e apresentava sintomas de esquizofrenia. Internou-se na clínica Belleuve (a

mesma clínica que Nietzsche havia sido internado). Apesar de ter recebido alta em 1924, a saúde de Warburg

piorou no decorrer dos anos.

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continuou seu trabalho como “curandeiro ferido”. Estudioso da astrologia, Warburg

também foi imortalizado na constelação dos grandes pesquisadores. O historiador

alemão descobriu as feridas abertas no tempo, esse paradoxo anacrônico, essa

força fantasmática que atravessa as eras; livre de relações causais.

Vivemos na época da “dominação planetária’’ pela técnica; parece que

Prometeu continua acorrentado. Contudo Warburg nos mostrou um caminho similar

ao de Quíron: Só somos capazes de curar, porque fomos e estamos feridos. Nossa

ferida temporal é a marca da “morte de todas as mortes”. Eis a nossa tragédia: lidar

com a nossa ferida, provavelmente, será a única forma de encontrarmos uma cura

para “a seta envenenada do niilismo”. “Não há superfície bela sem uma

profundidade assustadora” escreveu Nietzsche, em o Nascimento da Tragédia

(NIETZSCHE, 2013, p. 96).

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3. LUZES DO AFRESCO: O Renascimento como uma Supernova

(Último Sopro Divino)

Após a morte de Deus para a cultura, tivemos que lidar com a elaboração do

“luto de todos os lutos”. A modernidade herdará tal enlutamento e sua busca ávida

por um novo sucessor. Mas antes, precisaremos compreender: Por que o

Renascimento produziu a arte mais elevada do cânone ocidental, justamente

quando Deus estava prestes a morrer? O Renascimento irá configurar para a

história do ocidente o início ambivalente da elaboração do luto pelo divino, uma

espécie de supernova, uma luz intensa que antecederá as sombras confusas e

erráticas do niilismo no contemporâneo.

Supernova é um termo utilizado pela astrofísica para descrever um fenômeno

referente à morte de estrelas. Antes de “morrer” uma estrela libera uma vasta

quantidade de energia, semelhante à chama de uma vela, que antes de apagar

emite sua luz mais intensa. Longe de um tratado de física ou da utilização

inadequada de um termo técnico de outra área, evocamos tal imagem poeticamente,

apostando na força do argumento estético – tão utilizado por Nietzsche -, com a

intenção de produzir uma analogia: o Renascimento como uma supernova.

A imagem de uma estrela que, durante o processo de sua extinção, libera sua

luz mais intensa é um bom exemplo para a próxima imagem-fantasma deste projeto.

Como em O Avarento: Um Conto de Natal, de Charles Dickens18, nós iremos ser

assombrados por fantasmas no decorrer deste escrito. Se o fantasma do Futuro

marcou a tonalidade sobre o luto causado pela morte de Deus, seremos guiados,

agora, pelo fantasma do passado ao Renascimento.

O Renascimento não só foi o período no qual a obra a Criação de Adão foi

elaborada, ele desempenha um papel de suma importância para a cultura ocidental.

18

Obra do escritor inglês Charles Dickens, com o título original “A Christmas Carol”. O livro apresenta o

personagem Ebnezer Scrooge, um homem avarento, que durante o natal acaba sendo visitado por três fantasmas.

Após a visita dos três espíritos, Scrooge passa por uma transformação pessoal e passa a amar o natal.

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Segundo a maioria dos livros didáticos sobre a história da arte: o Renascimento foi

um marco por ter decretado o fim da idade média e por ter recuperado a arte

clássica, inspirados pela cultura greco-romana. O próprio termo “renascimento” diz

respeito ao “renascimento do homem”. O renascer do humano, também, diz respeito

a outro fenômeno: A Morte de Deus.

A concepção de que o Renascimento foi o golpe inicial contra um pensamento

que tinha Deus como centro de produção de sentido é amplamente difundida, assim

como sua importância ancestral em relação aos movimentos que determinariam a

história do ocidente, como o Iluminismo:

A renascença – um renascimento cultural de extraordinária criatividade na Europa – teve início no século XIV em Florença. Espalhou-se pela Europa, durando até o século XVII, e hoje é

considerada a ponte entre o período medieval e o moderno. Marcada por um renovado interesse no conjunto da cultura clássica grega e latina – não apenas textos filosóficos, matemáticos assimilados pela escolástica medieval -, foi um movimento que considerou os humanos, e não Deus, como seu centro [...] um pensamento puramente secular estava por surgir (GOMBRICH, 2006, p. 97).

Um possível questionamento pode surgir: Por que, em um movimento que

promovia o renascimento do homem, temos a profusão de obras abordando o

universo do sagrado? O juízo final, de Michelangelo; a Santa Ceia, de Leonardo da

Vinci; Transfiguração de Rafael; Adoração dos magos de Botticelli; são só alguns

exemplos da produção renascentista. Seguindo a linha de raciocínio sobre a imagem

da “supernova”, podemos deduzir que a luz do sagrado brilhou tão intensamente,

justamente porque seu fim estava próximo.

A monumental obra de Michelangelo, eternizada na Capela Sistina, era muito

mais uma elegia ao sagrado, do que um canto de exaltação. Talvez, possamos, por

meio dessa imagem-fantasma, interpretar que a Criação de Adão esteja relacionada

à despedida entre o homem e o divino. Mãos que se tocaram em um passado, agora

se despedem; o hiato entre a mão de Adão e de Deus só aumentará no decorrer da

história da civilização ocidental.

Ao estudarmos as obras do Renascimento, especialmente as relacionadas às

artes pictóricas e formais, nós ficamos sempre com a impressão de que dificilmente

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elas poderão ser superadas, assim como a luz das estrelas moribundas - há luz

mais intensa na história da arte do que a produzida pelo Renascimento?

Sabemos, ao estudar a história da Arte, que todos os movimentos artísticos

posteriores serão reações, de uma forma ou de outra, ao Renascimento. Seja o

Cubismo, e suas múltiplas perspectivas; o onírico Surrealista, as cores da arte

impressionista ou a arte abstrata. Parece que a desconstrução do Renascimento

sempre será a pauta, como o “pai” descrito por Freud; amado ou odiado, ele será

sempre a nossa referência. Amantes ou detratores da arte contemporânea

frequentemente utilizam o Renascimento como parâmetro, ora como expressão

máxima do cânone ocidental, ora como mera representação anatômica da realidade,

desprovida de criatividade.

Longe das intermináveis polêmicas sobre o mundo da arte, focaremos nossa

atenção na Imagem-fantasma da obra “A Criação de Adão”. Já sabemos que, dentro

da perspectiva deste escrito, o contemporâneo vive o luto pela “morte do divino”,

agora, entendemos o Renascimento como o início da Morte de Deus, um sintoma do

que viria adiante no ocidente: o desencantamento do mundo pelo excesso de

racionalização e objetivação. O homem objetivo, “desinteressado” acaba por não ter

experiência própria:

Sua alma espelho, eternamente ocupada em polir-se, já não sabe mais aquiescer, não sabe mais negar, não comanda, nem tampouco destrói [...]. O homem objetivo é um instrumento, um instrumento de medida, uma obra-prima em espelharia, fácil de quebrar ou turvar, que se deve tratar com cuidado e honrar; mas ele não é um fim, um resultado, um impulso, nem mesmo um homem completo, no qual se justifica a existência inteira, nem uma conclusão – menos ainda um começo, um procriador, uma causa primeira, nada de rude, de poderoso, que encontra seu apoio em si mesmo que queira ser chefe (NIETZSCHE, 2004, p. 207).

Michelangelo, em uma artimanha visual, retratou Deus em meio a seus anjos,

embora, possamos perceber, com certa clareza, o formato de um cérebro na

imagem mencionada. Seria só mais um estudo anatômico do artista, ou há uma

provocação subjacente: a ideia de que Deus é uma mera criação da mente humana?

Para o propósito deste trabalho, não importa a intenção oculta de Michelangelo,

deixamos tal discussão para os críticos de arte; a intenção deste projeto é produzir

uma interpretação que possa desvelar a imagem-sobrevivente da obra. Mas será

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que esta é a imagem sobrevivente? Deus, outrora todo-poderoso, confinado em um

cérebro? Seria o máximo que tal afresco poderia nos dizer sobre o contemporâneo?

Embora alguns pesquisadores insistam nessa “tese”, partimos do princípio

que a Morte de Deus parece mais digna – a Morte é sempre mais charmosa do que

o cárcere. Michelangelo, assim como outros artistas do Renascimento, talvez

procurasse recuperar parte da dignidade do homem ao representá-lo de forma

simétrica e bela, mas ainda não é a imagem que procuramos.

Nietzsche via no Renascimento o retorno dos deuses gregos, agora

disfarçados, como em uma festa à fantasia, de santos, anjos, mártires e da própria

Trindade. Seguindo a lógica de Warburg e Didi Huberman, provavelmente as obras

de arte carregavam durante sua produção outros fantasmas, de épocas mais

remotas, que assombravam aquela época. Mas tal “vingança dos deuses gregos”,

não parece ter perdurado até a contemporaneidade. O vigor grego “esse povo

estranho a todos nós”, como diria Nietzsche, não combina com o avanço da

nadificação.

[...] o Renascimento tinha forças positivas que, até o presente, ainda não encontraram a mesma potência em nossa civilização moderna. Foi a fase áurea deste milênio, a despeito de todos as suas máculas e todos os seus vícios. [...] algum dia compreendemos, queremos enfim compreender o que foi o Renascimento? Inversão dos valores cristãos: uma tentativa empreendia com todos os meios, todos os instintos, todos os talentos possíveis, de fazer triunfar os valores contrários, os valores aristocráticos. Não houve, até o presente, senão uma grande guerra: esse; não houve questão mais crucial do que a formulada pelo Renascimento – a minha questão é exatamente a mesma que ele formulou (NIETZSCHE, 2001, p. 45).

O filósofo alemão considerava que a “força” pagã teria atravessado a história,

rastro esse que será devidamente estudado por Warburg. Nietzsche defendeu o

Renascimento italiano como uma “repetição anticristã da antiguidade e o despontar

da modernidade”.

Segundo Nietzsche, o Renascimento foi um tempo “em que tudo foi

desperdiçado, em que se desperdiça até a própria força que é preciso para

acumular, para entesourar, para amontoar riqueza em cima de riqueza” (2001, p.36).

Warburg, historiador do Renascimento, foi um profundo leitor da obra nietzschiana,

especialmente “O Nascimento da Tragédia”, desta obra o historiador aprendeu o

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conceito de “carne histórica”, desenvolveu e elencou quatro aspectos vitais para o

entendimento não só do Renascimento, como da própria constituição da civilização

ocidental:

a) Ethos versus Pathos: Warburg renuncia a visão, comum de sua época, sobre

uma arte essencialmente harmônica, ele compreende a dimensão dionisíaca

que compõe a obra de arte; sem recusar a harmonia apolínea, o historiador

entende que a “dança da cultura” está baseada em dor e prazer, luz e sombras,

agonia e êxtase. O Renascimento ganha “novas cores” e tal perspectiva

permite ao pesquisador perceber algo que havia escapado dos estudos sobre

arte renascentista: o “movimento”; enquanto observamos e experienciamos A

Criação de adão, aguardamos o toque entre o criador e a criatura, do mesmo

modo, quando vemos a escultura de Davi, com seus tendões retesados e a

funda19 em sua mão; aguardamos o momento do ataque letal contra Golias. Os

exemplos são inúmeros, quem não espera testemunhar o famoso e enigmático

sorriso da bela Mona Lisa ou o beijo fatal e vil de Judas no pobre Cristo de a

Santa Ceia, de Leonardo da Vinci? -- podemos quase ouvir o barulho dos

copos e pratos, das conversas em uma língua antiga e sentir a agonia do

protagonista ao centro da tela apenas aguardando o término do banquete que,

de certa maneira, representa ele mesmo -- Enfim, se os espectadores e

coautores sentem essas sensações, o criador em sua produção evoca todo

redemoinho da cultura e forja sua arte. A Civilização é feita de luzes e forças

obscuras, reconhece o historiador.

b) A Tragédia como centro motriz da cultura: Warburg parece ter aprendido a

“graça do terrível”, e as identifica na arte renascentista, tanto nas obras devotas

quanto nas pagãs. O historiador segue a fórmula nietzschiana de que arte

pictórica não move somente o olhar apolíneo, mas também as sensações

dionisíacas. O Renascimento ganha nova força graças a esta perspectiva, ele

deixa de ser apenas uma arte representativa- de que tantas vezes é acusado-

para ganhar novo fôlego e relevância. Dentro desta nova proposição, o

19

Funda ou fundíbulo é uma arma de arremesso composta por uma correia ou corda dobrada, em cujo centro é

colocado um objeto, comumente uma pedra. Na tradição, esta arma ficou famosa por ter sido utilizada por Davi

para abater o gigante Golias.

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Renascimento seria o “motor” que deu origem a modernidade, justamente por

conter em seu seio a tragédia de nosso tempo: A morte de Deus.

c) O que sobrevive na cultura é a ferida desta tragédia: Nietzsche recusa todo o

“rancor da tradição estética clássica contra a sensualidade” (NIETZSCHE,

2002, p.48). Já compreendemos que a Arte é composta do sonho apolíneo e

da embriaguez dionisíaca, assim como reconhecemos que a cultura é fundada

pela “dor originaria”, no nosso caso a Morte de Deus; a terceira premissa

extraída por Warburg da obra nietzschiana é a de que aquilo que sobrevive na

arte, no seu caráter trans-histórico, está relacionado às feridas no tempo do

qual ela emergiu.

d) A exuberância trágica da vida: Nietzsche comparava “as dores do parto”, ao vir

a ser de uma cultura; nascida da dor; originada da morte de outra, no meio de

sangue e carne. Depois contamos histórias de “cegonhas” sobre o nascimento

delas; mas para o filósofo “saber” como elas são geradas é vital. Para isso,

segundo o pensador alemão, era preciso uma “psicologia da cultura”20 que

investigasse a morfologia dos valores de determinado aspecto cultural. A vida

trágica reconhecia os excessos, por isso Nietzsche desenvolveu a teoria da

jovialidade grega (Heiterkeist)21, em outras palavras, ela aceitava a guerra, o

sangue, a derrota, o butim, a dominação entre outros aspectos renegados pela

“parvoíce” do classicismo.

Após esta síntese sobre a interpretação de Warburg em relação ao trabalho

de Nietzsche – cada item mereceria um trabalho a parte- chegamos a um ponto

essencial do presente trabalho: o eterno retorno. Existem inúmeras discussões

sobre esse conceito proposto por Nietzsche; basicamente, o eterno retorno é

interpretado como uma visão cosmológica, semelhante ao tempo do mito. Outra

corrente importante, liderada por Walter Kaufmann22, compreende o eterno retorno

como um estado psicológico. Ficaremos com a última “linha interpretativa”, calcada

20

O termo “psicologia da cultura” não diz respeito à ciência particular, formalizada no século XVII, mas ao

estudo do campo filosófico e literário responsável por avaliar os motivos que mobilizam a construção de

personagens e valores. 21

“Serenojovialidade”, na excelente tradução brasileira, feita por Jacó Guinsburg, de O nascimento da tragédia.

São Paulo: Campainha das Letras, 1992, p. 145. 22

Walter Kaufmann: filósofo e poeta alemão, eminente pesquisador da obra de Nietzsche; famoso por sua

interpretação do eterno retorno como um fenômeno psicológico.

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no fenômeno psicológico; a razão é simples: Warburg reconhecia o trabalho

nietzschiano como uma “psicologia da cultura”. Seguindo essa interpretação, o

eterno retorno, agora envolto em ares pré-existencialistas-- é o retorno ao “eterno

momento do presente”. O presente passa a ser o encontro entre o passado e o

futuro.

Santo Agostinho (354-430), em sua obra “Confissões”, havia caído no mesmo

problema (ou tentação?) muito antes de Nietzsche, “o presente do passado é a

memória; o presente do presente é a intuição; o presente do futuro é a expectativa”

(XI, 20), mas tinha sua alma vinculada a Deus para salvá-lo “é em ti, meu espírito,

que meço o tempo” (XI, 20) - do demônio que nos castiga com o eterno retorno do

momento, mais uma vez e mais uma vez. Nietzsche havia constatado a morte de

Deus, e não tinha o mesmo recurso da “maior raposa cristã”23. Essa perspectiva

presentista era a arma que Warburg precisava contra a escola historicista

predominante em sua época.

O Renascimento só mereceria atenção novamente, caso ele nunca tivesse

“passado”. Sabemos que Nietzsche não compreendia a história como um processo

linear e monocórdico, mas como uma “sucessão-simultânea” de eventos plurais e

acidentados. Nunca saímos de nossa infância, -Freud aprenderia bem esta lição-

vivemos com nossos fantasmas, melancólicos pelo passado e ansiosos pelo futuro;

confinados, entretanto, na prisão do presente. Graças à essa interpretação sisífica

do tempo, Warburg pode produzir sua “história de fantasmas para gente grande. ”

A Renascença sempre esteve entre nós, mesmo que como um espectro, as

feridas de sua época também são nossas, especialmente a referente à morte de

Deus, mãe de toda a modernidade. Daí a importância desta “concepção” para a

nossa pesquisa: Graças ao eterno retorno, podemos retornar ao Renascimento para

reconhecermos o que nos assombra no presente. A Criação de Adão carrega um

fantasma, uma imagem sobrevivente portadora de uma mensagem oriunda do “além

do tempo histórico”: O importante na história não está no que passou, mas

justamente naquilo que não passou.

23

“Raposa cristã” é a forma como Nietzsche, em sua obra, costumava a se referir ao filósofo Santo

Agostinho/Agostinho de Hipona, um dos maiores nomes da teologia e filosofia dos primeiros séculos cristãos

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Nietzsche designou de perspectivismo sua proposta para uma “teoria do

conhecimento”, não mais baseada na progressão prudente da dialética, mas como

uma forma de relacionar ambivalências, colocar em perspectivas, determinar

proveniências, hierarquias, estudar suas ramificações, elencar e articular múltiplos

aspectos de um fenômeno. Afinal, “toda a vida supõe aparência, artifício, engano, e

necessidade de colocar em perspectiva, inclusive o erro”. (NIETZSCHE, 2002, p.

45).

O termo perspectivismo foi emprestado da teoria da criação artística; aqui, é

importante ressaltar que a noção de perspectiva é uma herança e uma conquista-- a

mais marcante, provavelmente- da Renascença italiana: ela permitiu ao artista

apropriar-se da representação do espaço, de situar nele o objeto segundo relações

espaciais que correspondam a um único ponto de vista, o do artista criador e ao

mesmo tempo espectador da obra. A teoria do perspectivismo não diz respeito

apenas à arte do desenho, mas a possibilidade de representar a profundidade e a

sucessão múltipla dos planos sobre uma superfície simples. Precisamos, no entanto,

excluir do pensamento de Nietzsche a ideia Renascentista sobre um ponto de vista

único, determinado, privilegiado e imparcial da geometria. Segundo o filósofo - que

postulou que não existiam fatos, mas somente interpretações - só podemos deduzir

que possuímos perspectivas infinitas, “nosso novo infinito” (NIETZSCHE, 2003, p.

111).

Até onde vai o caráter perspectivista da existência? Tem ela ainda outro caráter qualquer? Uma existência sem interpretação, sem sentido, não se torna precisamente “absurda”? Aliás, toda a existência não é uma existência interpretante?-Como é justo, isto não pode ser decidido mesmo por uma análise introspectiva mais precisa e mais cientificamente minuciosa do intelecto; pois o intelecto humano durante esta análise não pode impedir-se de ver a si mesmo em suas formas de perspectivas e somente nelas (...), Mas penso que hoje estamos tão longe quanto possível da ridícula pretensão de decretar, a partir de nosso ângulo de vista, que não é permitido ter outra perspectiva senão a partir deste ângulo. O mundo tornou-se novamente “infinito” para nós; mais ainda porque não podemos rejeitar a possibilidade de que ele encerre em si interpretações infinitas (NIETZSCHE, 2001, p. 274).

Quando trazemos uma obra do Renascimento para o presente, parece que

ela pouco pode nos dizer sobre o contemporâneo “desinteressado”. Uma obra que

retrata a Criação do homem pelas mãos divinas, então, é como um anacronismo

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absurdo – afinal, Deus morreu – mas a genealogia nietzschiana, ao investigar as

imagens fantasmas de Warburg, nos mostra que alguns fantasmas insistem em

assombrar nossa época; mais do que sustos, como nos contos e filmes de terror,

possivelmente, eles desejam nos revelar algo maior, algum segredo oculto. Como o

espectro paterno de Hamlet, que acabou por revelar mais do que intrigas palacianas

de um assassinato, contribuiu para o desenvolvimento de seu próprio rebento, – e

de todos nós – Hamlet é um “Adão pós-queda”, que tenta lidar com o assassinato de

seu pai, agora ausente.

Senhor, em meu coração havia uma espécie de luta Que me não deixava dormir. Sentia a mim próprio jazer Pior do que os amotinados presos aos ferros irrefletidamente– E louvada seja a irreflexão: saibamos. Ouves? Desde que minha alma querida foi senhora da própria vontade, E pôde dentre os homens escolher o seu eleito, Selou-te para si mesma: pois foste Como alguém que, sofrendo tudo, nada sofre [...] (SHAKESPEARE, Hamlet, 2002, p. 77)

Abençoada seja a irreflexão; quão duro foi para o homem ser senhor de sua

própria vontade? Desde então, sofremos tudo, e nada mais sofremos graças ao

niilismo. Mas o tema da nadificação será abordado nos próximos capítulos.

Curiosamente, como nos alertava Freud, três das grandes obras máximas da

literatura ocidental tratam o tema do parricídio: Édipo Rei, Hamlet e os Irmãos

Karamazov. Todas essas obras lidam com a morte da figura paterna e personagens

que tentam lidar com os enigmas oriundos desse assassinato. Nenhuma conclusão

é tão evidente como o desfecho de os Irmãos Karamazov, de Dostoievsky (1821-

1881); o autor, que tanto impressionou Nietzsche, percebeu que “sem Deus tudo é

possível”. (DOSTOIEVSKY, 2001, p. 578).

A morte de Deus foi o parricídio de nossa cultura; ela nos revelou que “tudo

era possível”, não havia mais um caminho seguro e pavimentado e a vertigem

existencial era uma consequência inevitável de tal ato. Eis a ironia: mal havia

renascido, e os dias do homem já estavam contados. Sem um Deus, o Adão de

Michelangelo apontaria para o nada, e foi o que aconteceu.

Deus, suspenso pelos anjos, talvez estivesse se esforçando para não

abandonar o mundo de sua criação. Ele “estica” seu corpo em direção ao homem

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prostrado que, passivamente, ergue a mão. O último suspiro do sopro que deu a

vida, um deus tomado pela velhice, outrora senhor dos exércitos, agora, um pai

distante. Quanto mais belo Deus for retratado, mais longe do mundo ele estará. Esta

é a equação inquietante imortalizada por Michelangelo em sua época fronteiriça:

Deus foi expulso para o céu, enquanto seus fantasmas começaram a assombrar o

mundo.

3.1 SOMBRAS DO AFRESCO: O Coração do Buraco Negro

(Um Poema Primordial)

Segundo a astrofísica, um buraco negro é uma região do espaço da qual

nada pode escapar, nem mesmo partículas que se movem na velocidade da luz.

Causado por uma deformação do espaço-tempo, resultado do colapso gravitacional

de uma estrela (supernova), que ao desaparecer gera uma singularidade, o “coração

do buraco negro”, onde o tempo para e o espaço deixa de existir. O buraco negro

começa a partir de uma superfície denominada horizonte de eventos, que marca a

região a partir da qual não se pode mais voltar. (WEINBERG,1972, p. 52).

No capítulo anterior, comparamos o Renascimento a uma supernova; o último

e intenso brilho da estrela do sagrado. O que aconteceu depois na cultura ocidental?

“Nada pode escapar”, “onde o tempo e o espaço deixam de existir” ou “região

da qual não se pode mais voltar” todas essas notas científicas parecem ter sido

extraídas de um poema de T.S Eliot, como “O Homem-oco”, e são uma boa metáfora

para o fenômeno do niilismo.

O Niilismo já foi mencionado no presente trabalho, e algumas ilações já foram

expostas. O intuito deste capitulo é responder a questão: afinal, o que é o niilismo?

Se o Renascimento foi a supernova do sagrado na cultura ocidental, o que

aconteceu depois do colapso? O buraco negro, metáfora utilizada neste capítulo, é

uma boa imagem para o processo posterior ao Quatrrocento. O cânone ocidental

passou por um processo de desmanche, tragado pela força de um buraco negro: o

Niilismo. Assim como o fenômeno da astrofísica, o Niilismo possui uma atração

irresistível, dimensões assustadoras e a capacidade de findar o tempo e o espaço. A

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morte de Deus foi a ruptura da grande represa que continha o oceano do niilismo:

Sem Deus tudo era possível!

Segundo Nietzsche, Deus era a ideia sustentáculo para todos os valores

supremos do ocidente, e sem Deus eles não poderiam existir. Por este motivo, a

morte de Deus era “o evento mais importante de nossa época” (NIETZSCHE, 2002,

p. 107). A concepção de Deus, para o filósofo alemão, não era simplesmente a do

Deus teísta, mas, antes, a concepção que representava e sustentava todas as

crenças e valores metafísicos que davam ordem e significação ao mundo ocidental.

Nietzsche iniciou um projeto de diagnóstico da cultura, identificando as

“sequelas” da morte de Deus. Sumariamente, percebeu a fragilidade de todas as

crenças metafísicas posteriores, revelou a impossibilidade de novas crenças

pautadas em valores metafísicos e expôs a desvalorização deste mundo.

O niilismo tem sua origem na palavra latina nihil, que significa nada. Na

filosofia, embora alguns acusem Nietzsche de ser um niilista, ele é, provavelmente,

seu maior adversário e crítico. Para o filósofo alemão, o niilismo é uma espécie de

“grande doença da humanidade”, uma forma de cansaço e negação da vida, fruto do

medo e do ódio reativo a própria existência. Mas, se o niilismo é como uma doença

diagnosticada, qual a sua causa? Nietzsche constata que a causa da enfermidade é

o caráter fraco, apático e debilitado do homem para suportar a vida: “perdemos o

sentido da terra”; não somos mais o “sal da terra”.

Na modernidade os valores supremos se desvaloram por meio do

desenvolvimento e proliferação de inúmeros valores, especialmente o da História. É

importante clarificar que o diagnóstico de Nietzsche sobre o niilismo na Modernidade

não consiste em afirmar que todos os valores já foram desvalorizados, mas que o

pensamento moderno já plantou as sementes para tal desvalorização:

Narro aqui a história de dois séculos que virão. Descrevo o que virá, o que não mais deixará de vir: a ascensão do niilismo [...] O futuro fala desde de já pela voz de cem signos, a fatalidade anuncia-se em toda a parte (NIETZSCHE, 2010, p. 2).

Na história do pensamento ocidental é possível identificarmos, em alguns

autores, o niilismo como a descrença máxima nos valores superiores (niilismo

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moral), mas também a descrença na própria existência do mundo (niilismo

metafisico), ou a atitude pessimista diante do conhecimento (niilismo

epistemológico), no qual nenhum conhecimento é seguro.

Na literatura e na poesia, é possível detectarmos frequentes manifestações

do niilismo, especialmente com os grandes literatos russos (Dostoievski e

Turgueniev).

A ideia que estamos imersos em um vasto nada, e de que a vida não possui

nenhum sentido ou valor - o homem sequer deveria ter nascido- é poderosa. A

negação da realidade concreta, da realidade substancial, assim como a concepção

do homem como um proscrito, um nascido para morrer, gera a sensação de que a

vida é inútil, dolorosa e sem sentido.

Resta demonstrar que esse “tudo é vão” caracteriza nosso niilismo atual. Nossa desconfiança, em nossos antigos juízos de valor chega até a formular esta pergunta: todos os valores não seriam astúcias destinadas a fazer perdurar a comédia sem aproximá-la de uma solução? Se é verdade que “tudo é vão”, se não há nem objetivo nem fim, a duração torna-se o pensamento mais paralisante que possa haver, sobretudo se nos sentirmos enganados e sem força necessária para não nos deixarmos enganar (NIETZSCHE, 2010, p. 21).

É muito provável, que o termo niilismo tenha sido introduzido pela primeira

vez na filosofia por Friedrich Jacobi (1743 – 1819). O conceito também aparece na

obra de William Hamilton (1788-1856). Porém, o termo “Niilismo” ganhou força

associado ao movimento revolucionário russo, conhecido por suas rebeliões

violentas. Nos jornais russos o termo era utilizado desde de 1829, e na literatura ele

teria aparecido inicialmente na obra ‘‘Pais e Filhos’’, de Turgueniev (1892).

Nietzsche, como de costume, reinterpreta o conceito radicalmente. Com o

filósofo, o niilismo é apresentado como uma doença. Esta doença não foi contraída

recentemente: ela faz parte de uma narrativa trágica, um drama da humanidade, um

problema da civilização que teria, gradativamente, perdido suas forças criativas.

Socratismo, platonismo, estoicismo, epicurismo, ceticismo, escolástica,

iluminismo, idealismo, utilitarismo, naturalismo, socialismo, positivismo, anarquismo

são todos esforços, segundo a genealogia nietzschiana, vítimas de suas próprias

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fórmulas. Os valores enfraquecidos, idealizados e segregados, em vez de levar o

homem à ação de dominar a própria ação, voltaram-se contra ele próprio,

condenando a ação. Em outras palavras, a busca pelo nada culminou na frustração

da própria nadificação da potência. “Minha afirmação é que em todos os valores

superiores da humanidade esta vontade é deficiente – que os valores de declínio, os

valores niilistas comandam sob os nomes mais sagrados” (NIETZSCHE, 2010, p. 6).

Essencialmente variado, o niilismo é múltiplo e suas “digitais” estão em toda

parte: política, arte, história e na própria ciência. A história humana é a história do

niilismo. Não uma história no sentido hegeliano, não há progressão, não há

negatividade dialética, mas só um empobrecimento, uma desvalorização, perda de

força gradativa e a depreciação da vida. Quantas máscaras criamos para dissimular

nosso ressentimento contra a vida.

Não se abandona uma posição extrema por uma posição média, mas por outro extremo, inverso, é verdade. E é assim que a crença na imoralidade absoluta da natureza, por sua ausência de sentido e de fim, nos apreende como uma paixão psicologicamente necessária, logo que a crença em Deus e numa ordem essencialmente moral do universo cessar ser sustentável. O niilismo aparece então, não que o desgosto da vida seja maior que anteriormente, mas ficamos desconfiados de toda espécie de “sentido” atribuído ao mal ou mesmo a existência. Uma interpretação entre outras naufragou, mas como passava por ser a única interpretação possível, parece que a existência não tinha mais sentido, por mais vazia que fosse (NIETZSCHE, 2010, p. 21).

Nietzsche conclui que a “forma extrema do niilismo é: o Nada (o absurdo)

eterno! ” (NIETZSCHE, 2010, p. 21). No capítulo anterior, já abordamos o Nada e o

vínculo com o absurdo; cabe, no entanto, pontuar o niilismo como a conclusão da

cultura ocidental; não um resultado de uma “teleologia maior”, mas algo semelhante

as consequências de um incêndio devastador, incontrolável e incerto; cujo os únicos

“resultados” não programados, embora certos, sejam as ruinas.

O absurdo é a noção da ausência final de valor. Nietzsche parece profetizar o

existencialismo, segundo o qual a consciência “humana aniquilante” é

simultaneamente destruidora e criadora de valores cujo o único fundamento é a

vontade de nada.

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O espetáculo do nada levou Nietzsche a denunciar a doença letal dos tempos

modernos. É sabido que o niilismo, para ele, é um tema multifacetado, avaliado por

camadas, formado, assistematicamente, por noções que possuem um grau de

parentesco. As aparentes contradições são enigmas jocosos: “O último termo seria o

niilismo, mas o primeiro também não seria o niilismo? ” (NIETZSCHE, 2001, p. 23).

De forma geral, o niilismo designa a crise que afeta nossa civilização,

caracterizado pelo esvaziamento dos instintos e pela vitória dos tipos fracos. O

niilismo é, portanto, a vida depreciando a própria vida. Uma inversão radical dos

valores vitais, o momento em que a vida se torna reativa ao pensamento.

Paradoxalmente, o niilismo também é uma denúncia do fracasso dos valores

tradicionais, por isso o último niilismo, aquele marcado pela morte de Deus, é

também a “revelação” mais assombrosa sobre o nada e o fracasso de todas as

formas de idealidade.

Neste ponto, toda a acurácia de Nietzsche como psicólogo aparece: Que

significa o niilismo? O niilismo avança quando o homem toma a consciência de que

esses ideais não passam de fantasmas, aqueles mesmos que Warburg irá conjurar,

sintomas de uma vida decadente, que não tem outra função senão o de mascarar o

nada (negação da vida) que assombra os medos mais íntimos da humanidade.

O “niilismo psicológico”, como chamou Nietzsche, ou a perda de todos os

sentidos é o reconhecimento da depreciação dos valores superiores, a falta de télos,

a conclusão que não há respostas para a pergunta: para que? O vazio do nada

expõe o absurdo e a ausência de objetivo.

A narrativa metafísica ao almejar a Verdade além das aparências, em um

mundo suprassensível, deprecia o real sensível que se vê reduzido a uma pura

ilusão, abrindo, desta forma, o caminho para o nada. Por este motivo, a crítica

genealógica de Nietzsche é tão dura com o discurso metafisico. O autor denuncia os

“alucinados do além-mundo”, e seus “delírios” como fruto da fraqueza.

Somos os herdeiros de certos hábitos de dissecação da consciência e crucificação de si próprios, que foram praticadas durante dois mil anos; esse é nosso domínio talvez, nosso refinamento em todo o

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caso; associamos estreitamente as inclinações naturais e a má consciência (NIETZSCHE, 2010, p. 25).

Consequentemente, os valores morais, forjados pelos negadores da vida, são

produtos do ressentimento, sentimento de rancor vivenciado pelos incapazes de

criar, esquecer, lutar e dominar. Um conjunto de valores negativos e reativos. Daí a

importância do papel da moral no pensamento de Nietzsche, pois a moral tradicional

requer superação.

A moral não é imutável, nem dada historicamente. Ela é resultado de um

longo processo interpretativo: o das violências impostas a vida para impor-lhe

sentido. Por isso, primeiramente, precisamos interpretar as necessidades

específicas (fisiológicas e psicológicas) que forjaram esta ou aquela “preferência

axiológica” para em seguida analisá-las no sentido extramoral. Não mais em termos

de bem ou mal, verdadeiro ou falso, mas de doença e saúde, potência e impotência.

A questão final para Nietzsche será interpretar o “ideal ascético”, valor supremo das

tipologias fracas.

De forma sucinta, no pensamento moral-ascético é o instinto que se volta

contra si mesmo, e desta forma não se deseja mais viver, mas morrer. É necessário,

alega Nietzsche, ir além dessa “vontade de nada” que tem sido a base da cultura

ocidental.

Curiosamente, a superação do niilismo encontra-se no próprio niilismo, na sua

radicalização, em função do próprio absurdo que constitui a vida de chegar a negar

a si mesma.

Mas será que o niilismo não é só um prolongamento do pessimismo?

Comumente, o pessimismo é associado à filosofia de Schopenhauer. Nietzsche, que

foi influenciado por Schopenhauer, chega a considerar o niilismo como uma

evolução do pessimismo. Nietzsche constata que Schopenhauer opôs o

“pessimismo indiano” – tudo é uma ilusão – ao otimismo cristão, confiança em um

Deus bom, que não iria nos iludir. Nietzsche utiliza, mais uma vez, sua psicologia

dos valores para demonstrar que o anticristianismo de Schopenhauer não era uma

oposição a teologia cristã, nem uma alternativa, pois o ideal ascético continuava

presente, apesar da manobra de inversão produzida por Schopenhauer, o espírito

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de vingança contra a vida (ascetismo) continuava sendo o motor das duas tipologias

religiosas; filhas do mesmo niilismo. “O niilismo de Schopenhauer continua sendo a

consequência do mesmo ideal criado pelo teísmo cristão” (NIETZSCHE, 2010, p.

126).

Mas, paradoxalmente, o niilismo também designa o pessimismo radical, que

consiste em denunciar esses mesmos valores adoentados, que, rejeitando todo o

dogma, toda a moral, todo o medo, toda ortodoxia, dispensando toda a crença, tem

a coragem de reconhecer a condição trágica do homem contemporâneo: o homem

sem Deus. É esse paradoxo, que postula a morte de Deus, que coloca fim a

metafísica, que subverte a moral, que retrata a insuficiência da religião, ciência, da

filosofia, é o mesmo que reabilita as condições para a vida, e todas as suas

expressões como “ilusões úteis” necessárias a vida.

Podemos inferir que os sintomas do niilismo são: perda da vontade de viver; a

sublimação dos instintos por valores ideais; a crença em um mundo superior (futuro

melhor, utopia, etc.) e, notoriamente, a vida depreciando a própria vida.

É necessário explicitar que Nietzsche atribui valor a experiência dessa

enfermidade, pois tal condição patológica possui um lado positivo: o de conferir uma

perspectiva superior; afinal ela permite o discernimento entre os valores vitais,

àqueles que promovem o “florescimento da vida” e os valores negativos e reativos,

responsáveis pela decadência dos instintos e, consequentemente, da civilização.

Desta forma, o niilismo é “sempre ainda vontade de poder”. Portanto, não há

oposição dialética entre a vontade de poder e a vontade de nada, entre as quais o

homem seria obrigado a escolher, mas uma diferença hierárquica. Seja qual for a

camada que se manifesta o niilismo, ele mesmo é avaliação e edificação de valores.

O niilismo não está resumido ao ressentimento, nem mesmo a morte de Deus.

O niilismo, exposto pelo absurdo, precisa ser o novo ponto de partida do

pensamento, o equivalente a outrora “dúvida sistemática”. Mas a verdadeira

dificuldade será criar um novo mundo que não reintroduza um novo candidato ao

divino na história da civilização.

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Seria o niilismo uma “divinização da história?” Com exceção de um punhado

de pensadores, como Schopenhauer, Kierkegaard e Nietzsche, os filósofos

modernos herdaram de Hegel, em diferentes níveis e formas, a preocupação em

articular a ética a história.

Gilles Deleuze (1925-1995) considerava Hegel –ou o hegelianismo- o

adversário natural de Nietzsche. O filósofo francês argumenta que “o anti-

hegelianismo atravessa a obra de Nietzsche como seu fio condutor” (DELEUZE,

1983, p. 83).

A principal expressão filosófica do historicismo do século XIX foi o

historicismo de Hegel e dos hegelianos, como Hartmann (1842-1906). O

hegelianismo postula que todo pensamento faz parte de um enorme processo

dialético. Dito de outra forma, ideias fundamentalmente opostas, e sua síntese

superior, são o motor que mantem o pensamento vivo ao longo da história. Deleuze

considera a dialética hegeliana como um processo reativo e niilista em um sentido

nietzschiano. Não há, segundo o filósofo, uma oposição entre ideias, mas apenas

contrastes e diferenças. A lógica da diferença, de Deleuze, está baseada na crítica

empreendida por Nietzsche a dialética metafísica e a história.

Esta visão da história carregava consigo o que Nietzsche chamava de “idolatria do Real”, quer dizer, o culto da objetividade dos fatos, a crença no sucesso como necessidade racional, enfim, a conformidade com o “poder da história”. O historicismo hegeliano é, nesse sentido, a religião do poder da história, o culto dos fatos como objetivações do “espírito do mundo”. Porém, na opinião de Nietzsche, mas não somente dele, tudo o que os historiadores descrevem são fatos inventados, todas as relações presumidas; eles reduzem teoricamente o enigma à compreensão, colocam uma finalidade onde ela não existe, descobrem acasos onde várias causas agiram. Contra essa idolatria dos fatos, Nietzsche afirma que a virtude do sentido histórico deveria residir exatamente na revolta contra o poder cego dos fatos, contra a tirania do real, contra o determinismo histórico (DELEUZE, 1995, p. 23).

A cultura ocidental perdeu sua vitalidade, em razão de um excesso de

“formação histórica”. Este diagnóstico, psicológico e médico simultaneamente, levará

Nietzsche a buscar um antídoto para a “doença histórica” que aflige toda cultura

moderna, pois toda cultura não pode olhar para o passado sem perder sua potência

criativa.

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Qual o elo entre o niilismo e a história? Para responder esta questão,

precisamos tentar desvendar outra pergunta: Para que serve a história? Já foi dito,

no presente trabalho, que a História foi o sucedâneo do divino na Modernidade. A

Modernidade idealizou o conhecimento histórico como se ele oferecesse um domínio

sobre a vida e seu sentido (história universal e a ideologia da progressão). Ocorre

que a história se voltou contra a vida: a “febre histórica”. Não utilizamos mais a

história como matéria-prima para a civilização, mas como uma “causa mecânica”. A

vida tornou-se subordinada à história: “Há um grau de insônia de ruminação e de

sentido histórico onde o que vive se destrói e acaba por perder-se, quer se trate de

um ser humano, de um povo ou de uma civilização” (NIETZSCHE, 2002, p. 16).

Ao contrário do animal que vive de maneira a-histórica, o homem se lembra, e

aí começa sua dependência do passado. É verdade que o homem também possui a

faculdade do esquecimento – que anda meio esquecida – e esta faculdade positiva é

vital, pois liberta o homem do passado. As civilizações antigas, perante o problema

do niilismo, criaram o tempo mítico, a-histórico por natureza em sua dimensão

cíclica. Para Nietzsche, psicólogo da civilização, precisamos reaprender a converter

o conhecimento histórico em benefício à vida: é necessário recuperar a noção (não

dialética) de Hierarquia.

Não é necessário, no entanto, perdermos a dimensão histórica; precisamos

utilizar ao mesmo tempo o sentido histórico e a-histórico. Esse aspecto de equilíbrio

é de suma importância para a vitória sobre o niilismo.

A obra nietzschiana demonstra três formas de utilizar a história ou as três

tipologias psicológicas de homens: a forma monumental, no qual o homem utiliza o

passado como exemplo; a antiquária, utilizada pelo tipo conservador enraizado nos

valores passados e a forma crítica, utilizada pelo reformador para negar e superar o

passado. As três formas podem ser tanto úteis como nocivas à vida, dependendo de

sua hierarquia.

O niilismo avança sobre várias dimensões, e devora os seus filhos como

Cronos no mito grego. A história, concepção supervalorizada em nosso tempo, foi

absorvida pelo niilismo e transformada na sua própria divinização. Dito de outra

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forma, crer na onipotência histórica, -hábito comum nas ciências humanas- é coroar

o niilismo e aumentar a tração do buraco negro.

O trabalho atual não tem a ambição de elaborar um tratado sobre a história-

deixamos a missão para os historiadores- mas almejamos expor os aspectos de sua

relação com o niilismo. Nossa função é a de denunciar e evidenciar a “doença

histórica”, combatida tanto por Nietzsche quanto por Warburg, e os seus sintomas

como: a perda da unidade da cultura; o culto da objetividade, a negação da

jovialidade (aquela tão importante para os gregos), o peso insuportável das pedras

sisíficas do passado, e enfim o desgosto de si mesmo. Neste ponto, a semelhança

sintomática com o niilismo fica evidente; o motivo é simples: a infecção é o niilismo,

enquanto a história é só uma febre.

Assim como a febre é útil para o médico identificar a causa da doença, a

história nos levou ao Niilismo. Para combater o sintoma da doença histórica,

Nietzsche propõe a postura “supra-histórica” da arte; (a mesma evocada por

Warburg) trata-se de aprender a viver antes de aprender a história, e utilizar os

poderes eternizantes da arte.

Se o modo a-histórico coloca-se fora do processo histórico, os homens supra-

históricos estão para além da história, não a negam, embora olhem sempre para o

horizonte, para o devir, focados no presente, como apaixonados que perderam a

noção do tempo, presos no eterno momento do instante. Oposto do eterno “olhar

para trás” da perspectiva historicista; sempre em busca de um totem originário para

adorar e conservar na memória, pois o atual é “falta” e precisa ser reparado. Ora, só

o niilismo poderia convencer os homens que a atualidade da vida é algo vazio, ruim

e sem sentido.

Como é possível criar uma memória histórica para o animal humano? Como é possível imprimir algo nessa mente tão obtusa quanto volúvel, afinada apenas com o momento que passa, e conseguir com que a impressão ali permaneça? É bem provável, que as respostas e os métodos para se solucionar esse problema primevo não fossem dóceis; talvez não tenha havido nada mais temerário e sinistro em toda a pré-história do homem, do que a sua mnemotécnica. Para que algo se aloje na memória preciso que seja ali marcado pelo fogo; somente aquilo que jamais para de doer fica na memória, - eis a oração da mais antiga (infelizmente, também, a mais durável) psicologia existente na terra. -se até dizer que em qualquer lugar onde a cerimônia, a serenidade, o mistério e

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um colorido lúgubre ainda distinguem a vida do homem e de um povo, uma parte do terror que outrora estava a serviço de todas as promessas, juramentos e votos feitos na Terra ainda é eficaz; o passado, o passado mais remoto, mais profundo e mais severo, exala sobre nós e surge dentro de nós, sempre que nos tornamos “sérios”. O homem jamais poderia viver sem sangue, tortura e sacrifício, depois que sentiu a necessidade de criar para si uma memória histórica; os juramentos mais terríveis (inclusive o sacrifício dos primogênitos) os ritos mais cruéis dos cultos religiosos (e toda as religiões são, no fundo, sistemas de crueldade) – tudo isso tem origem no instinto que identificou a dor como o auxílio mais poderoso à mnemônica (NIETZSCHE, 2010, p. 56).

Eis o ensinamento mais contundente de Nietzsche: o significado autêntico é

doloroso; e que a dor é o significado: “Não será a realidade apenas a dor, talvez, a

representação não teria nascido daí?” (NIETZSCHE, 2002, p. 53). Entre a dor e o

significado surge a memória da dor que, então, passa a ter um significado realmente

memorável e digno da história. Origem e Finalidade – o coração da História –, pela

saúde da vida, devem ficar afastadas; esse é o ensinamento cabal de Nietzsche.

A dor é o fundamento do significado. Por isso o mundo é tão rico em

significado: porque é rico em dor. Nietzsche foi um psicólogo refinado, – em

oposição a matemática24 de Platão – sua maior descoberta foi o vínculo entre dor,

significado, memória e história. Atribuir significado a dor não significa aliviar o

sofrimento, mas permitir que o sentido se origine, sem que a dor seja vazia de

sentido. O homem sofreu com o problema do seu próprio significado, e então se

entregou ao ideal ascético, fenômeno que transformou em significado o sofrimento

em si, e assim abriu a perspectiva da vida como culpa, erro, sombra e, por fim, ao

nada.

Nietzsche nos diz que não conseguimos distinguir entre a dor e o significado.

A associação feita pelo filósofo alemão é uma terrível arqueologia do significado,

mas também um presságio mórbido de um niilismo passivo e sinistro. Há uma

semelhança instigante entre a perspectiva nietzschiana e o mito científico da horda

primeva, elaborado por Freud, em Totem e Tabu (1913); nós criamos uma narrativa

poética para ocultar a dor (ou o crime), um poema que repete, comemora e

rememora a dor primordial. Ou para ser mais objetivo: uma mentira poética

substituiu o mundo, pois o homem não suportou a dimensão terrível da vida; desde 24

Desde Menon, com a celebre interrogação do escravo por Sócrates, a matemática é usada como modelo do

tipo de idealidade da qual se considera que a alma se relembra.

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então, criamos narrativas que se constituem de dor, produzem dor e, portanto, criam

significado para ocultar o nada. Religião, Arte, Filosofia e Ciência são “grandes

sistemas de dor”.

O “poema primordial” que substituiu o mundo real e inaudito, cheio de “som e

fúria”, foi criado para não perecermos de verdade, mas qual verdade? A de que não

há sentido para a vida. Essa é a conclusão de Nietzsche, o poema primordial da

humanidade mente, mas aceitar a realidade nua e crua é, consequentemente,

morrer de verdade. “Temos a arte para não morrer de verdade” (NIETZSCHE, 2002,

p. 23).

Desassociado do ideal ascético, o homem, animal humano não tinha sentido até então. Sua existência na terra não continha um propósito; “por que homem? ” - Era uma pergunta sem resposta; a vontade para o homem e para a terra faltava; atrás de cada grande destino humano soava um refrão ainda maior: “Em vão! É isso, precisamente que significa o ideal ascético: que algo estava faltando, que o homem estava cercado por um vazio assustador- não sabia como justificar, como explicar, como se auto afirmar; e sofria pelo problema de seu significado. E sofria de outra maneira também; era, essencialmente, um animal debilitado: mas seu problema não era o sofrimento em si, mas o fato de não haver resposta para a questão flagrante: por que sofro? (NIETZSCHE, 2010, p. 22).

A falta de sentido para o sofrimento, não o sofrimento em si; o homem pode,

até mesmo, buscar o sofrimento, desde que ele encontre um sentido. Assim o

homem foi salvo, passou a ter um sentido, já não era um navio à deriva em um

oceano feroz de doença, velhice e morte.

Já não podemos esconder de nós mesmos aquilo que é expresso por todo esse querer direcionado a partir do ideal ascético; esse ódio ao humano, e ainda mais o animal, e mais ainda ao material, esse horror aos sentidos, à própria razão, esse medo de felicidade e da beleza. Esse desejo de se afastar da aparência, da mudança do devir, da morte do próprio desejo- tudo isso significa –ousemos compreender – uma vontade de nada, uma aversão à vida; mas é e continua a ser uma vontade! ... E para repetir, na conclusão, o que disse no início: o homem prefere “nada” querer a não querer (NIETZSCHE, 2002, p. 97).

Salvamos o querer; querendo o nada: deuses, utopias, paraísos, almas

gêmeas, qualquer coisa, menos a vida como ela era: cheia de nonsense.

Em suma, criamos mitos, lendas, contos, narrativas e, finalmente, a História.

A mentira da objetividade; -quase poética- nos anulamos, como em um “crime

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perfeito”. A história objetiva substituiu o mundo, mas o poema primordial da

humanidade perdeu força pelo mesmo motivo. Daí a conclusão de que a cultura

histórica é a divinização do niilismo: a ideia de um processo, de pessoas como

peças de uma engrenagem maior, a neutralidade, o culto ao fato; primeiro, negamos

o mundo e o substituímos por uma criação, e depois acabamos por anular o criador,

dito de outra forma: fomos nadificados.

É verdade que ainda esperamos a salvação messiânica, a utopia social, a

cura científica para todos os males, o amor encantado; mas eles estão sempre

prometidos para o amanhã – e nós sabemos que o amanhã é uma eterna promessa.

Crer na História e nas historietas de todos os dias está ficando cada vez mais difícil.

O tempo cíclico do Mito negava a degradação do mundo e dizia: sim! Quantas

vezes fosse necessário. Já o tempo Histórico, fundamentado no “já passou”, diz:

Não! Habita a lógica da linearidade, origem, finalidade, peregrinação e se precipita

ao nada. A crença na História é o caminho para o niilismo e a sua consagração.

Voltemos a questão inicial de Nietzsche: O niilismo não será o princípio e o

fim? Sim, ele estava lá no começo e nós reagimos, criamos o mito, a arte, a filosofia

a ciência; criamos um grande poema; negamos o mundo, muitas e muitas vezes.

Mas o nada é voraz como um buraco negro. O Niilismo é o grande fantasma da

nossa história.

Como um buraco negro, o niilismo avançou graças ao colapso do “poema

primordial”, (sendo Deus nosso verso poético mais poderoso). Estamos no coração

do buraco negro, o ciclo hermenêutico parece esgotado, ou embaralhado demais

para nos dizer algo.

O herdeiro do niilismo é o “último homem”, aquele que se arrasta em uma

terra devastada, onde sempre é Abril25.

25

:Referência ao poema de T.S Eliot “A Terra Devastada” (1922): “Abril é sempre o mais cruel dos meses,

germinam lilases da terra morta”. No mês de abril, na Europa, não há lavouras para a colheita.

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3.2 ADÃO NA TERRA DEVASTADA: O Último Homem e

Tipos de Niilismo.

A primeira parte deste trabalho aspirou responder à pergunta: o que é o

niilismo? A resposta identificou o niilismo como a nadificação da potência, cujo

caminho foi consagrado pelo culto da História, na modernidade. Agora iremos nos

debruçar sobre os tipos de niilismo. Já citamos o aspecto múltiplo do niilismo.

Também, retratamos alguns exemplos de niilismo como: o niilismo epistemológico,

niilismo na literatura, niilismo ontológico e o niilismo psicológico.

Mas iremos tratar o niilismo como um desdobramento, um processo de

decadência, na “estrada da história”; processo que alcançou seu acabamento no

objetivismo historicista.

Didaticamente, abordaremos o niilismo em três estádios distintos, embora

eles se sobreponham. Começaremos pelo Niilismo Negativo; onde este mundo se

torna um local de peregrinação.

Os dois maiores expoentes do niilismo negativo são: o Platonismo e o

Cristianismo. Sabemos que Nietzsche via o Cristianismo como um desdobramento

do platonismo: “o cristianismo é platonismo para o povo” (NIETZSCHE, 2002, p.

102).

É muito possível que a filosofia nietzschiana seja, em muitos aspectos, uma

inversão da filosofia platônica. Platão é um filósofo muito complexo para ter sua

doutrina resumida em alguns poucos parágrafos. Mas iremos focar na crítica

efetuada por Nietzsche –boa parte já exposta neste trabalho- sobre o postulado do

filósofo grego.

Para não sermos repetitivos, sobre a crítica direcionada a metafisica, iremos

expor o niilismo negativo de Platão e do platonismo por um ângulo mais audacioso:

sua rivalidade com Homero.

Quanto maior e mais sublime um homem grego, maior a claridade com que emana dele a chama da ambição, consumido todos os que seguem pelo mesmo caminho. Aristóteles fez uma lista, em grande estilo de tais disputas hostis: nela, encontra-se o exemplo mais acentuado de que mesmo morto pode provocar em um vivo o ciúme que o consome. Assim, Aristóteles aponta a relação de Xenófones de

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Cólofon para com o Homero. Não entendemos, em seu vigor, este ataque ao herói nacional da poesia – também aquele posterior em Platão- se não pensarmos que em sua raiz está uma imensa cobiça de ocupar o lugar do poeta abatido e de herdar sua fama (NIETZSCHE, 1996, p. 80).

Nietzsche tinha um, aparente, problema inicial em sua crítica contra o niilismo

negativo de Platão26: como um nobre poderia ter elaborado o maior e mais refinado

constructo do niilismo? Nietzsche atacou ferozmente Sócrates, mas seu ataque

estava direcionado a “interpretação da vida de Sócrates por Platão”. Sócrates foi a

máscara inicial de Platão, assim como Schopenhauer foi a de Nietzsche. Platão

herdou de Sócrates a ética, mas ambicionava mais do que inquerir pessoas na rua:

ele queria demonstrar a Verdade.

Platão era um escritor hábil, seus textos influenciaram a cultura ocidental,

tanto os teólogos cristãos (Santo Agostinho e Santo Tomás) como a literatura

(Dante) e, até mesmo, a psicanálise (Freud). Comumente, o filósofo grego evitava a

primeira pessoa do singular em seus textos, procurando sempre o distanciamento

(como se os seus escritos fossem neutros por terem captado a Verdade), ele criou a

“persona de Sócrates”. Nietzsche não aborda o problema da existência de Sócrates,

mas o fato de Platão, um esteta, ter criado o Sócrates vitorioso. Platão imortalizou a

vida de seu mestre em belos textos e, agora, tinha um personagem que podia

desafiar o grego mais imponente da história ocidental: Homero.

Homero foi (junto com Shakespeare) o poeta maior da tradição ocidental. A

Ilíada e a Odisseia são obras fundacionais do ocidente. Platão, no entanto, atacou

Homero: considerava os deuses imorais, a coragem dos heróis questionável, uma

fantasia poética perigosa para a moral grega: “Toda essa poesia provavelmente

distorce o pensamento de qualquer pessoa que a ouça, a menos que possua o

conhecimento de sua verdadeira natureza que atue como um antídoto” (PLATÃO,

2012, p. 397). Nietzsche, para quem o impulso de dominação é a base genuína da

argumentação filosófica, percebe que Platão utiliza a moral para atacar Homero.

Essas considerações não são frívolas e irrelevantes quanto podem parecer: Platão,

o aristocrata, queria derrotar Homero.

26

O pai de Platão era Aristo, descendente de Codro, último rei de Atenas, e sua mãe tinha como ascendente o

grande legislador ateniense Sólon.

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Por exemplo, nos diálogos de Platão, aquilo que possui um destacado sentido artístico é, na maior parte das vezes, o resultado de uma rivalidade com a arte dos oradores, dos sofistas, dos dramaturgos de seu tempo, descoberta por aquele que pudesse dizer por fim: “vejam, também posso fazer o que meus maiores adversários podem; sim, posso faze-lo melhor do que eles. Nenhum Protágoras criou mitos tão belos quantos os meus, nenhum dramaturgo, um todo tão rico e cativante quanto o “Banquete”, nenhum orador compôs discursos como aqueles que eu apresento no Górgias – e agora rejeito tudo isso junto, e condeno toda a arte! Apenas a disputa fez de mim um poeta, um sofista, um orador! (NIETZSCHE, 1996, p. 84).

Para isso, o filósofo grego criou as mais belas obras filosóficas, para propagar

sua ideia central: filosofar é aprender a morrer. Eis uma fórmula contra a “mentira

poética” dos artistas, como Homero. Sob a máscara de Sócrates, a opinião de

Platão sobre os artistas é famosa:

Porque seriamos obrigados a dizer segundo creio, que a respeito dos homens tanto os poetas como os oradores cometem os mais graves erros, quando afirmam terem sido felizes muitos homens injustos, e infelizes muitos homens justos; que a injustiça é proveitosa, quando não descoberta, e que a justiça, por sua vez, implica dano ao próprio e vantagem alheia. Teríamos de proibir-lhes tudo isso e recomendar-lhes que cantem e digam o contrário, não te parece (PLATÃO, 2012, p. 65).

Resumindo: eles não podiam entrar na sua idílica “República”. Por que um

esteta da língua carregava tanta animosidade contra a arte?

A filosofia grega aparece em um momento de declínio da tragédia. Platão, um

“poeta corrompido”, utilizou a arte contra a própria arte, assim como faria Nietzsche-

outro poeta corrompido- destruindo a filosofia por dentro. Platão, o artista,

desenvolveu um gênero literário que ambicionava tocar a Verdade. Nenhuma forma

de arte almejou tamanha façanha; a arte era uma forma de tornarmos a vida

suportável: a arte era uma forma de aprender a viver.

Quem foi Homero? O homem que nos conduziu até os horrores da guerra,

das paixões, da jornada, do anseio pelo retorno ao lar; o poeta do épico que

antecipou a tragédia e a comédia. Um artista que conduziu o ocidente ao mundo

violento e sombrio dos gregos antigos, adoradores de serpentes. Homero cantava a

vida, não a negava; tornava os horrores suportáveis, pois os embebecia de sentido.

O niilismo encontrou em Homero- mais do que em Nietzsche- o seu maior rival.

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Mas o que se encontra por trás o mundo Homérico, como local de nascimento de tudo o que é Helênico? Neste mundo, somos elevados pela extraordinária precisão artística, pela tranquilidade e pureza das linhas, muito acima da pura confusão material: suas cores aparecem mais claras, suaves, acolhedoras, por meio de uma ilusão artística, seus homens, nesta iluminação colorida e pacífica, parecem mais acolhedores, e mais simpáticos; mas para onde olharíamos, se nós caminhássemos para trás, para o mundo pré-Homérico, sem a condução e a proteção da mão de Homero? Olharíamos apenas para a noite e o terror, para o produto de uma fantasia acostumada apenas ao horrível (NIETZSCHE, 1996, p. 75).

Mas o nada é uma Hidra, e Platão sua cabeça mais poderosa. Era impossível

derrotar Homero em seu mundo, cheio de cor e dor, então, Platão criou um novo

mundo, um lugar suprassensível. Ascético, como um bom matemático deve ser,

desenvolveu o “mundo das ideias”, aprimorando a inversão de Sócrates, que

colocou a vida a serviço de ideias, a vida tornou-se uma sombra pálida de um

mundo eterno e não corruptível. O casamento com o cristianismo era questão de

tempo, e de Agostinho, a supervalorização do espirito, o dualismo, a desvalorização

da experiência sensorial, o culto idólatra da Verdade.

Tacitamente, o niilismo negativo procura a “Verdade”; um mundo sem

enganos, sem sofrimentos, sem mudanças, sem contradições. Ele não duvida que

exista um mundo como deveria ser (puro, imutável, eterno); o mundo, tal como

deveria ser, existe; este mundo no qual vivemos é um erro; não deveria existir. É

visível que a vontade de encontrar a verdade é apenas a aspiração de um outro

mundo.

Quais são os homens que refletem desse modo? Uma espécie humana improdutiva, sofredora e cansada de viver. Imaginem a espécie de homens oposta: não teria necessidade de crer no ser; melhor ainda, desprezá-lo-ia como morto, fastidioso, indiferente... A crença que o mundo deveria ser, existe, é realmente, é uma crença de improdutivos que não querem criar um mundo como deve ser. Eles o supõem dado, procuram os meios e os caminhos que a ele conduzem. Querer “o verdadeiro” – é confessar-se impotente em criá-lo (NIETZSCHE, 2010, p. 19).

Para Nietzsche a arte deve curar-nos da ferida da existência, e ninguém fez

isso como Homero; ele produziu o véu apolíneo que, cobrindo a crua realidade

dionisíaca, permitiu que aceitássemos a virulência do mundo. Nietzsche recrimina

Platão por ter inventado, com as Ideias, “os mundos de trás”. Por este motivo, O

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Cisne de Apolo27 seria a fonte de corrupção metafísica e niilista que contaminou o

pensamento ocidental. Essa tendência doentia de fugir da realidade em nome de

realidades superiores alimentou a primeira grande manifestação niilista: o niilismo

negativo. Para Nietzsche, Deus está morto; não há mais um centro; o mundo é palco

de forças e vontades múltiplas em constante embate. Platão, ao contrário, acredita

que há um deus escondido por toda a parte.

Digo de antemão, pois um dia pretendo abordar esse tópico mais detidamente-, a arte, em que, precisamente, a mentira é santificada e a vontade de iludir tem boa consciência. Opõe-se de modo mais fundamental ao ideal ascético do que a ciência: isso foi percebido instintivamente por Platão, o maior inimigo da arte até hoje produzido pela Europa. Platão versus Homero: eis o antagonismo completo, genuíno- ali, o advogado mais sincero do além, o grande difamador da vida; aqui, o deificador instintivo da natureza de ouro. Colocar-se a serviço do ideal ascético é, por conseguinte, a corrupção mais evidente possível de um artista; infelizmente, ‘também uma das formas mais comuns de corrupção, pois nada é mais facilmente corrompido do que um artista (NIETZSCHE, 2010, p. 252).

Platão, o maior adversário de Nietzsche, era filho de uma Grécia ferida pela

Guerra do Peloponeso e que sonhava, nostalgicamente, com as glórias de tempos

passados. O mestre de Aristóteles encontrou em Homero, um fantasma poderoso, o

único rival digno; pois se pudesse derrotá-lo, então, teria derrotado a mesma Grécia

que havia condenado e matado seu querido mestre.

Platão não podia derrotar Homero; não importa quão belas fossem suas

imagens poéticas, mas ainda havia uma alternativa: fugir para o outro mundo. E foi

isso que todos nós, notas de rodapé de Platão, fizemos; especialmente o seu maior

herdeiro: A raposa Cristã.

Santo Agostinho foi o grande cirurgião da cultura ocidental; a operação

efetuada por ele foi um sucesso (ou não?). Platão era um pagão, mas, segundo

Agostinho de Hipona, o melhor deles. Agostinho foi sensibilizado pelos elementos

místicos do neoplatonismo e pela ideia de que o espírito interior do homem liga-o à

uma realidade suprema e superior. Ele procurou reconciliar a doutrina de Platão

(através de Plotino) com o cristianismo:

27

Diz-se que, segundo uma anedota de Diógenes Laercio, Sócrates sonhou com um cisne adulto. No dia

seguinte, Platão foi apresentado como seu aluno, imediatamente reconheceu nele o cisne de seu sonho.

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Por conseguinte, lancei-me avidamente sobre o venerável estilo (sagrada escritura) ditado pelo vosso Espírito, preferindo, entre outros autores, o apostolo São Paulo[...]. Compreendi e notei que tudo o que de verdadeiro tinha lido ali (nos livros platônicos) se dizia aqui realçado com a tua graça (AGOSTINHO, 1987, p. 27).

A simbiose dessas duas doutrinas, nem tão similares, seria a maior

contribuição de Agostinho para o Ocidente. A doutrina neoplatônica deu bases

filosóficas sólidas ao cristianismo. Algo que possibilitou a fusão entre a filosofia e o

cristianismo é o fato de este último não ser, em si mesmo uma filosofia. Suas

crenças basais são fundamentadas na fé de um “fato histórico” mais do que

filosóficas.

A relação complexa entre o cristianismo e o platonismo não é o objetivo deste

trabalho. Mas o tema não pode ser ignorado, pois Nietzsche identifica de forma clara

tal fusão como um dos eventos mais importante da história do ocidente e do niilismo

negativo. Os cristãos teriam “popularizado” o platonismo: O divino impessoal foi

identificado ao Deus pessoal; o paraíso ao mundo das ideias, o mundo das sombras

erráticas ao mundo corrompido pelo pecado; a desconfiança dos sentidos corporais

em prol do espírito. As semelhanças são inegáveis, embora existam diferenças

consideráveis – mais de conteúdo do que de estrutura narrativa. O que chama a

atenção de Nietzsche é a natureza da narrativa: a verdade está em outro mundo:

“No cristianismo, nem a moral nem a religião tem qualquer ponto em comum com a

realidade. Nada além de causas imaginarias (Deus, almas, livre-arbítrio, pecado,

redenção, graça, punição) (NIETZSCHE, 2003, p. 34).

Já respondemos à questão sobre o que é o niilismo para Nietzsche – ou

tentamos-, também abordamos a crítica virulenta de Nietzsche a metafísica, como

uma forma de depreciar a vida e o mundo sensível. Vamos nos ater, agora, sobre a

tipologia psicológica do niilismo negativo. Nietzsche não pergunta sobre o que eles

acreditam, (Paraíso, mundo das ideias, etc.) mas como chegaram a formular tais

questões? O questionamento de Nietzsche, avesso a ontologias, é de

fundamentação psicológica.

Psicologia da metafísica: influência do medo. O que mais receamos, a causa das mais poderosas dores (a ambição de dominar, a volúpia, etc.) é o que os homens trataram com mais hostilidade e eliminaram do “mundo verdadeiro”. É assim que passo a passo suprimiram todas as paixões, fizeram de Deus o oposto do demônio, isto é,

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transferiram a realidade para a negação das necessidades e das paixões (dito de outra forma, para o nada) (NIETZSCHE, 2010, p. 127).

O cristianismo, especialmente com Santo Agostinho, desenvolveu a noção de

História, aquela mesma que divinizará o niilismo. Para Nietzsche o tempo histórico

carregava um problema desconhecido pelo tempo mítico: o reconhecimento da

corrupção natural do mundo. O homem mítico não aceitava o passar do tempo;

acreditava que ele retornava infinitamente. Os paraísos encontrados nas narrativas

míticas são extensões do mundo sensível, não negações dele. O Valhalla28 não era

uma “Cidade de Deus” oposta a cidade dos homens, mas a confirmação deste

mundo: um lugar repleto de guerras, sexo, violência, coragem e dominação... ad

infinitum.

Para Nietzsche, uma vez inventada a ideia de natureza para opô-la aquela de

Deus, era preciso que a palavra “natural” fosse condenável; esse universo de pura

ficção tem origem no ódio contra o natural e a realidade.

Em minha genealogia da moral apresentei pela primeira vez psicologicamente a noção antitética “nobre’ e de uma moral do “ressentimento”, a segunda sendo um mero produto da negação da primeira: ora, nada mais é que a moral judaico-cristã. Para poder dizer não a tudo o que representa na terra o movimento ascendente da vida, o sucesso, a potência, a beleza, a autoafirmação instinto tornado gênio do ressentimento devia então inventar outro mundo, a partir do qual toda afirmação da vida aparece como um mal-entendido, condenável em si (NIETZSCHE, 2013, p.49).

A relação do cristianismo com a verdade, para Nietzsche, foi a causa de sua

autodestruição. O embraço teológico da teodiceia e da parúsia agravaram a ruina

que culminaria com a morte de Deus. O Cristianismo não saiu impune por tentar

articular o deus dos filósofos com a divindade tribal e temperamental dos Hebreus. O

humanismo começou a nascer no seio do cristianismo –um rei sempre é morto por

seus discípulos-, os homens cansaram de esperar o “retorno do rei” e decidiram

assumir o cargo. O Renascimento foi a cobrança de uma dívida -contraída por

agiotagem- com os gregos.

28

Na mitologia nórdica, era o salão dourado dos mortos; destinado, somente, aos heróis que morreram em

batalha. Segundo a lenda, é um majestoso salão com 504 portas, situados em Asgard.

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Diferentemente do niilismo negativo, o niilismo reativo não deseja um mundo

supersensível: ele almeja um futuro utópico. O problema da nadificação reativa não

e tanto de natureza geográfica, como o dos niilistas negativos (outros mundos), mas

de caráter temporal: quando a utopia acontecerá?

É verdade que terras utópicas sempre existiram no imaginário popular ou nas

altas esferas do pensamento reflexivo, como Atlântida de Platão; os cristãos,

Tommaso Campanella (1568 -1639) e Thomas Morus (1478-1532) também

formularam seus paraísos terrestres. Mas havia uma diferença fulcral em suas

utopias: elas eram lugares construídos pela imaginação, para demonstrar a pobreza

do mundo concreto. A palavra Utopia significa um “não lugar”. Mas, dos socialistas

originados no seio do cristianismo aos revolucionários posteriores, surgiu um novo

paradigma: a utopia tornou-se um “ainda não”.

Os socialistas utópicos não acreditavam na concretização de suas “fantasias”,

- pelo menos não literalmente - elas eram mais exemplos imagéticos, avisos de

cuidado, referencias ideais; não projetos de engenharia social.

Nietzsche identificou em Rousseau, “o verme da maçã”29, aquilo que ele

considerava a perda total da dimensão trágica pela história. Apesar do cristianismo

possuir a comédia em sua alma – Deus nos salvará no final – ele não havia perdido

a dimensão trágica em seu coração (a queda). Os cristãos não acreditavam que o

mundo seria um novo paraíso. Santo Agostinho reforçou, ao homem de fé, que a

Cidade de Deus aguardava aqueles que viviam segundo o espírito; não podia haver

salvação na cidade dos homens. Mesmo a Atlântida, relatada por Platão nas obras

Timeu e Crítias, servia apenas como uma narrativa para moralizar: “olhem o que

aconteceu a poderosa cidade de Posseidon, por causa de sua degradação moral...”

O fruto da árvore do conhecimento, responsável pela queda, ainda guardava um

“verme” oculto para Nietzsche:

Contra Rousseau: infelizmente o homem não é mais bastante mau. Os adversários de Rousseau, que dizem “o homem é um animal de rapina”, infelizmente, para ele, não tem razão. A desgraça não é que o homem esteja corrompido, mas que tenha sido moralizado e debilitado. É justamente na esfera que Rousseau combateu com

2929

Assim como Nietzsche tratava Agostinho de Hipona como a “Raposa Cristã”; Rousseau é chamado de “o

Verme”, pelo autor alemão.

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maior violência que se encontra a espécie de homens ainda relativamente vigorosa e bem-nascida (aquela que tinha ainda estas paixões intactas: a vontade de potência, a vontade de desfrute, a vontade e a capacidade de comandar). É necessário comparar o homem do século XVIII com o da Renascença (e também com o do século XVII, na França), para compreender de que se trata: Rousseau é um sintoma de desprezo de si e de vaidade escaldante – dois sinais de que a vontade de dominação faz falta; ele moraliza e, como homem rancoroso, procura nas classes dominantes a causa de sua própria miséria (NIETZSCHE, 2010, p. 36).

Mas os herdeiros de Rousseau, apesar da influência indireta do cristianismo,

efetuaram uma inversão contundente em toda tradição cristã. O homem não sofria

por causa de sua natureza trágica, pelo contrário, a humanidade vivia feliz em um

estado natural, até a corrupção social destruir sua inocência. O resto da história nós

conhecemos; em uma tacada só, Rousseau havia acabado com a dimensão trágica

da vida. Nietzsche não iria perdoá-lo.

O niilismo reativo não nega o mundo; ele só reage. Enquanto o senhor

conquista, domina, mas não se vinga propriamente falando, mesmo quando usa de

represálias, da força; sua ação é espontânea, o que quer dizer que ela não tem por

origem uma reação, não se trata de inverter uma inferioridade ressentida.

Iluminismo, Romantismo, Marxismo e mesmo o Positivismo haviam herdado o

otimismo de Rousseau. Não podemos culpá-lo pelos crimes históricos posteriores,

mas a virtude da prudência, com o filósofo suíço, deu lugar a promessa de uma

revolução iminente. O que se admira em Rousseau é o que ele tem de mórbido

(NIETZSCHE, 2010, p. 37).

O Niilista reativo –lembremos que o “revolucionário russo” foi o primeiro a

herdar esse título – não almeja mais “extramundos”: ele deseja um futuro melhor.

Sua “negação” não está no mundo sensível, mas no mundo presente. A lógica do

escravo permanece, afinal, só alguém infeliz desejaria estar em outros lugares.

Contudo, o niilismo reativo não oferece oposição ao niilismo negativo. Os

niilistas reativos ainda são devotos, embora suavizem as religiões e as ciências. O

problema não é o conhecimento, mas a busca pela verdade em si, como um

desvelamento do mundo. Esta busca intensa, tal como Nietzsche a compreende,

ainda parece divina e perdura no niilista reativo.

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Quando Maximilien de Robespierre (1758-1794) contribuiu para a instauração

da “república francesa”, após a revolução de 1789, instituiu-se o culto à razão e ao

terror. O homem tomou para si o que era de Deus, mas a Verdade entrou,

sorrateiramente, pela porta dos fundos. Mudaram apenas a metafísica por trás, mas

a moral continuou a mesma.

O homem do niilismo ainda precisa de fundamentos, e Deus se esconde

neles. Ainda se crê no progresso, na ciência, na luta de classes, no humanismo, etc.

Novas lutas – Depois que Buda morreu, sua sombra ainda foi mostrada numa caverna durante séculos – uma sombra imensa e terrível. Deus está morto; mas, tal como são os homens, durante séculos ainda haverá cavernas em que sua sombra será mostrada. – Quanto a nós – nós teremos que vencer também a sua sombra” (NIETZSCHE, 2001, p. 108).

Mas Nietzsche, frequentemente profético, percebe uma diferença sutil no

ressentimento do niilista reativo: diferentemente do cristão, que reconhece os seus

pecados como fonte do sofrimento, o socialista, por exemplo, melhor espécime

desta modalidade, culpa o outro pela sua desgraça. Automaticamente, o outro passa

a ser o inimigo jurado (o judeu, o burguês), enquanto “a causa justa” liberta a “vítima

histórica” do peso da culpa pelas faltas; tudo por um futuro melhor, a História

(sempre ela) nos julgará, pois somos a sua própria conclusão!

O socialismo – tirania extrema dos medíocres e dos tolos, isto é, dos espíritos superficiais, dos invejosos, daqueles que tem três quartas partes do comediante-é na realidade consequência do niilismo, as ideias modernas e de seu anarquismo latente; mas na atmosfera morna do bem-estar democrático, a faculdade de concluir, de acabar-se relaxa. Segue-se, sem prever consequências. Por isso o socialismo é, no final de contas, uma coisa azeda e sem futuro; e nada é mais risível do que a contradição nos rostos venenosos e desesperados de nossos socialistas (NIETZSCHE, 2010, p. 255).

Os últimos dois séculos conheceram bem o impacto dessa “crença no nada

cheia de boas intenções” (Stalinismo, Nazismo, etc.); cabe, contudo, ao nosso

trabalho investigar a tipologia psicológica desta forma de niilismo. A modernidade,

mãe de todos os niilismos reativos, prometeu futuros melhores para a humanidade,

mas fracassou. Enquanto o niilismo negativo possuía um mundo “encantado”,

embora tragicômico, o niilismo reativo vivia em um mundo já desencantado. Agora, o

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salto para o nada será mais cruel; pois percebemos que a nossa própria força

fracassou em mudar o mundo. O que nos restou, então?

Essa mesma variedade de homens, empobrecida ainda de um grau, que não possui mais a força de interpretar, de criar ficções, produto do niilista. Um niilista é um homem que julga que o mundo como é não deveria existir e que o mundo como deveria ser não existe. Por conseguinte, viver (agir, sofrer, querer, sentir) não tem sentido: o que há de patético do niilismo é saber que “tudo é vão”. O homem incapaz de impor seu querer as coisas, o homem sem vontade e sem força, impõem-lhes pelo menos um sentido, ou seja, a crença que elas implicam um querer (NIETZSCHE, 2010, p. 19).

A constatação de Nietzsche não basta para libertar o homem; o filósofo

perplexo demonstra que sob um céu esvaziado, em um mundo terrível e cruel,

desprovido de seguranças e certezas, estamos abandonados, órfãos sem um

refúgio, destinados, em um primeiro momento, ao nada, em sua pior acepção.

Dentro deste contexto de desamparo, o niilismo passivo surge caracterizado pela

ausência do querer, que o difere de seus antecessores, pois ele é a conclusão do

próprio niilismo: a ausência de Vontade.

O último adorador do nada, não deseja mais mundos paradisíacos, tão pouco

almeja futuros melhores, ele apenas paralisa e esvazia nossa potência, fazendo com

que reconheçamos que não há um sentido oculto, grandioso ou racional para nossa

existência.

O fracasso dos niilismos anteriores em suportar e justificar a existência

ocorreu por dois motivos: a incapacidade de sustentar suas heurísticas perante a

dinâmica da vida e devido a sua eficácia em buscar o nada. O segundo motivo

citado pelo fracasso dos niilismos anteriores é o mesmo pelo qual o terceiro dos

niilismos triunfará: o sucesso em busca do nada, que acabou por garantir que “nada”

encontrassem; nem o paraíso no além, tão pouco a sociedade perfeita, o que

acabou por gerar a sensação de frustração e absurdo que abalou e corroeu

gradualmente a fé nos pensamentos baseados na metafísica.

O niilismo negativo, manifestado na filosofia platônica e na teologia cristã, tem

como característica a negação do mundo em prol de uma realidade suprassensível,

ideal ou paradisíaca, enquanto o niilismo reativo representado pelos movimentos

iluminista, socialista e positivista tem como principal marca a recusa do mundo

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presente em busca do aperfeiçoamento social projetado em um futuro melhor ou, em

termos técnicos, em uma utopia. A diferença entre os dois primeiros niilismos e o

terceiro, e derradeiro arauto do nada, é instituída pela qualidade e inferioridade do

tipo de força empregada pelo último, o mais traiçoeiro dos niilismos; por representar

a total ausência de Vontade, “pois era melhor querer o nada do que nada querer!”

(NIETZSCHE, 2002, p. 174).

Diante deste cenário, Nietzsche adota a postura de um médico da civilização

que identifica, em seu diagnóstico, o perigo do niilismo passivo, no qual tudo é vão e

nada vale a pena, e procura um antídoto frente ao avanço do deserto, (afinal o

deserto ainda cresce) algo que possibilite novos sentidos ao cotidiano perante o

absurdo da existência.

O niilismo passivo corresponde a um estado estável, terminal, quando uma

cultura reconhece definitivamente que a existência é carente de sentindo. Mesmo o

ressentimento perde potência. É importante ressaltar que este estádio não pode ser

confundido como pessimismo filosófico, pois não há mais um “processo em

andamento” para ser desacreditado; nenhum valor superior para ser colocado sob

suspeita.

Nietzsche impõe a nadificação da vontade como limite para o niilismo. Esta é

a marca dos “últimos homens”. O último dos niilismos é o mais terrível, não por sua

violência, mas por sua lassidão.

O niilismo passivo não é caracterizado por sua vontade de nada, mas por um

nada de vontade. Mas quais seriam seus exemplares na história?

O budismo é um exemplo perfeito de niilismo. Embora antigo, o budismo faz

parte do fenômeno do niilismo. O niilismo, como já foi dito, é um fenômeno da

humanidade. O mais significativo de tudo isso é que a filosofia ocidental e o

pensamento oriental tenham, por muito tempo, percorrido, em completa

independência uma da outra, trilhas totalmente diferentes e, no entanto, tenham

chegado à mesma conclusão acerca da realidade: o mundo empírico não tinha

significado nem propósito e que, ao fim, não era, em si mesmo, absolutamente nada;

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embora tenhamos o hábito de pensar nele como algo independente; em certo

sentido ele é todo ilusão.

A negação budista da própria realidade (aparência=dor) é de uma lógica perfeita; é a ideia de que não somente o ‘mundo em si” é indemonstrável, inacessível, não tem categorias, mas que os procedimentos que levam a toda concepção estão repletos de contradição. Num mundo que em devir, a “realidade” é sempre uma simplificação para fins práticos ou uma ilusão de órgãos grosseiros, ou uma alteração no ritmo do devir. Chega-se logicamente a negar o universo e a aniquila-lo se for o caso de se sentir obrigado a opor o ser ao não-ser e negar a noção de devir (NIETZSCHE, 2010, p. 127).

Schopenhauer foi um dos introdutores dos textos hindus e budistas no

ocidente, frequentemente referia-se a eles traçando paralelos coma sua própria

filosofia. Antes de sua época, os textos clássicos orientais eram praticamente

desconhecidos ou propositalmente ignorados. Somente no século XIX eles

começaram a ser traduzidos para diversas línguas europeias. Schopenhauer ficou

impressionado ao descobrir que algumas premissas básicas dessas doutrinas

convergiam com as conclusões de Kant.

Kant, Hume e Schopenhauer estavam engajados em investigar os limites da

capacidade humana em conhecer. Todos haviam estudado a tradição filosófica

ocidental (Platão e Aristóteles) e estavam familiarizados com ela. Ocorre que a

“filosofia oriental” havia passado por um processo histórico distinto. O que

assombrou Schopenhauer foi o fato de que, apesar do abismo entre línguas,

culturas e eventos históricos, os “sábios e iluminados” orientais haviam chegado a

uma conclusão semelhante aos pensadores mais recentes ocidentais. Como

Schopenhauer expõe em sua obra máxima:

O essencial dessa visão é antigo: Heráclito lamentava nela o fluxo eterno das coisas; Platão desvalorizava seu objeto como aquilo que sempre vem-a-ser, sem nunca ser; Espinosa o nomeou meros acidentes da substância única, existente e permanente; Kant contrapôs o assim conhecido, como mero fenômeno, à coisa em si, por fim, a sabedoria milenar dos indianos diz: trata-se de Maya, o véu da ilusão, que envolve os olhos dos mortais, deixando-lhes ver um mundo do qual não se pode falar que é nem que não é, pois se assemelha ao sonho, ou ao reflexo do sol sobre a areia tomada à distância pelo andarilho como água, ou ao pedaço de corda no chão que ele toma como uma serpente (SCHOPENHAUER, 2001, p. 49).

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O mundo era uma ilusão, um lugar aterrador; cheio de violência e injustiça.

Todos os esforços humanos pareciam inúteis perante a tragédia da vida que termina

com uma morte insignificante. Sofremos porque somos escravos do desejo – um

senhor nunca satisfeito –, a existência é a própria fonte de sofrimento para nós.

Essa concepção sombria sobre a vida não é semelhante aos sintomas do niilismo

descrito por Nietzsche: ela é o próprio niilismo.

Voltemos a questão de Nietzsche: O niilismo não estava presente do começo

ao fim? Nietzsche dizia que a leitura de Schopenhauer o fez tornar-se filósofo. De

certa forma, sua filosofia começa do ponto de partida que lhe foi dado por

Schopenhauer; sempre com uma reinterpretação violenta, outra lição bem aprendida

com seu mestre torto. Nietzsche percebe que a filosofia ocidental havia chegado em

uma encruzilhada: sem um Deus transcendente, que pudesse garantir as regras do

jogo de forma arbitrária, estávamos a mercê do nada; A morte de Deus nos levou a

mesma conclusão, por exemplo, do nirvana budista. Chegamos tardiamente a esta

constatação, a notícia da morte de Deus demorou muito tempo para espalhar-se,

embora haja uma sutil diferença.

O que é búdico exprime um belo entardecer, uma suavidade, uma doçura completa – a gratidão com tudo que se deixou para trás, sem traço de amargura de decepção ou de rancor; o sublime amor espiritual, o refinamento da contradição filosófica está por trás dele; o budismo repousa nisso, mas ele tira a auréola espiritual e seu brilho purpura do sol poente; sua origem está nas mais altas castas (NIETZSCHE, 2010, p. 135).

Qual a diferença capital? O budismo, para Nietzsche, havia nascido nas

castas aristocráticas. O Buda era uma figura serena; herdeiro das concepções dos

xátrias30, diferentemente do cristianismo, oriundo dos escravos. O contraste entre o

niilismo passivo do budismo e o niilismo negativo do cristão será mostrado pela

crítica genealógica nietzschiana: “o budismo, repito, é cem vezes mais frio, mais

verídico, mais objetivo” (NIETZSCHE, 2013, p. 46).

Entretanto, o mais relevante para o presente trabalho é a diferença de

qualidade entre o niilismo passivo dos budistas e o niilismo passivo do último

homem.

30

Xátrias: Casta de guerreiros na sociedade védica, que formam uma das quatro castas no hinduísmo.

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A cultura ocidental passou pelo trauma da morte de Deus, desde então

vivenciamos um luto sem fim. Essa experiência traumática é desconhecida do

pensamento oriental; embora o desencantamento do mundo possa se alastrar para

tais terras, a morte de um ente querido é algo de proporções inimagináveis. Após a

morte do “Pai de todos os pais”, o sentimento de desemparo foi intensificado.

A morte do criador fez a criação ruir, em uma velocidade espantosa. Vivemos

a síndrome do “Rei Pescador”31. No mito do Ciclo Arturiano, um rei adoece e, com

ele, seu reino, outrora fértil, fica igualmente devastado. Um leitor de Schopenhauer,

assim como Nietzsche, T.S. Eliot ficou tocado com o mito de um reino que adoece

na ausência do rei. Não haveria melhor alegoria para a situação de nossa cultura: na

ausência de Deus, o reino tornou-se uma terra devastada; habitada pelos últimos

homens.

O Homem Oco Nós somos os homens ocos Os homens empalhados Uns nos outros amparados O elmo cheio de nada. Ai de nós! Nossas vozes dessecadas, Quando juntos sussurramos, São quietas e inexpressas Como o vento na relva seca Ou pés de ratos sobre cacos Em nossa adega evaporada Fôrma sem forma, sombra sem cor Força paralisada, gesto sem vigor; Aqueles que atravessaram De olhos retos, para o outro reino da morte Nos recordam - se o fazem - não como violentas Almas danadas, mas apenas Como os homens ocos Os homens empalhados.

“Assim expira o mundo, não com uma explosão, mas com um suspiro”32

(ELIOT, 1987, p. 23). Uma terra devastada, murcha – não haveria melhor imagem

para o niilismo passivo – habitada pelo homem oco de Eliot, que é o mesmo último-

homem descrito por Nietzsche. T.S. Eliot era um cristão conservador; esperava

ansioso o “retorno do rei”. Já Nietzsche, um ex-cristão, postulava que precisávamos

31

O poema se refere a lenda arturiana do rei pescador: um rei incumbido de encontrar o Graal, cuja impotência

afeta não só a possibilidade de ter filhos, mas a fertilidade de todo reino, que acaba por se tornar uma terra árida

e desolada. T.S Eliot ficou tão impressionado com a narrativa que batizou sua obra magna de “Terra Devastada”. 32

Outro verso De T.S. Eliot. Do poema “O Homem oco “.

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lidar com a ausência do rei; e, para isso, a única solução seria a superação da

condição adoentada do último-homem, o sem Deus; precisaríamos de um novo ser:

um além-do-Homem.

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4. A MENSAGEM DE “MIGUEL ÂNGELO”: Em Agonia e Êxtase.

No dia 18 de fevereiro de 1564, enquanto os sinos tocavam Ave-Maria,

Michelangelo abandonava esse mundo. Morreu tal como vivera: com a macêta na

mão, ocupado em esculpir, a obra inacabada, “O Cristo baixando da cruz”. Foi,

realmente, uma morte digna de um artista genial.

Na religião romana antiga o genius33 era o espírito que perpetuava uma casa,

família ou tradição. Na idade média - nós sabemos -, a “originalidade” não era um

aspecto almejado com fervor. Se Michelangelo tivesse “copiado” suas obras, isso,

provavelmente, só teria servido para aumentar o respeito pelo saber do pintor e

escultor; afinal o saber estava fundamentado, primordialmente, na autoridade.

A noção de gênio é comumente – e equivocadamente – associada,

exclusivamente ao Romantismo. Os românticos potencializaram a figura do gênio,

todavia sua genealogia é mais antiga. Uma das heranças do Renascimento foi a

crença na figura do “Gênio”. A genialidade é um aspecto mais distinto e raro do que

o talento e a habilidade. Essa crença irá contribuir diretamente para a transformação

das artes. O gênio não buscava o talento adestrado, que opera a experiência

adquirida. O seu saber não está ao alcance de todos, não foi fruto somente do

esforço e do treino; sua fonte é quase divina: a inspiração.

Embora seja verdade que na Idade Média a palavra “criação” fosse utilizada

somente para as obras de Deus e dos artistas, o homem das artes, nesse período,

era um ser de habilidade domesticada. As primeiras corporações de artistas,

oriundas dos séculos XIII e XIV, vigiavam a vida e a obra de seus membros.

A Reforma Protestante, contrária a reprodução de imagens em igrejas, privou

os artistas de seus melhores patronos. No entanto, quase na mesma época,

banqueiros mercantis, como os Médici, criaram uma nova demanda mais variada,

possibilitando aos artistas a experiência da originalidade.

33

Genius (do latim, o procriador) era um espírito guardião de uma família. Depois passou a representar um

protetor pessoal, cada homem tinha um gênio, e cada mulher uma juno. Era um espírito capaz de conceder

grandes talentos ao protegido. No decorrer da história, o termo foi associado aos Djins , espíritos da cultura

árabe, como o “gênio da lâmpada” de “Mil e Uma Noites”. No Renascimento e no Romantismo, os gênios foram

associados, diretamente, aos “homens de grande talento”. A cultura popular, a linguagem e o imaginário parecem

ter herdado tal conotação: Einstein, gênio da física, Pelé, gênio do futebol, etc.

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Mesmo depois de isentos das obrigações e restrições das corporações, os

artistas não podiam aceitar qualquer trabalho sem autorização. Como outros

artesãos, trabalhavam por encomenda e eram pagos por hora. Mas já no final do

século XV, os grandes artistas italianos, como Leonardo e Ticiano recebiam altos

salários.

Em um cenário mais favorável, no qual o artista já não precisava só reproduzir

o estipulado pela autoridade, surgirá Michelangelo, o Divino. Antes dele Giotto,

Ucello, Botticelli e Mantegna já haviam imortalizado obras imponentes e ditado os

principais aspectos do cânone Renascentista. Mas na fase derradeira do

Renascimento, uma nova trindade rivalizará em criações com a anterior: Leonardo

da Vinci, Rafael e Michelangelo.

Não é foco do presente trabalho um estudo detalhado sobre a vida dos

grandes artistas do Quattrocento. A obra de Giorgio Vasari34 (1511-1574), “Vidas

dos Mais Eminentes Pintores, Escultores e Arquitetos” (1550), continua legível e

didática para o estudo do período.

Vasari foi amigo pessoal de Michelangelo; sua obra é repleta de fontes,

entrevistas, relatos de viagens e anedotas. Entre as lendas e boatos da obra, está a

declaração de Leonardo da Vinci, rival de Michelangelo, sobre a obra do pintor e

escultor “sua obra é mais nobre do que a natureza” ele é uma espécie de “segundo

Deus” (VASARI, 2016, p. 57). Se as outras anedotas, sobre a querela pessoal entre os

dois pintores, forem verdadeiras; podemos imaginar quão sincero – e difícil – deve

ter sido para Leonardo admitir a “divindade” de Michelangelo e de suas obras.

Se o relato de Leonardo é um fato histórico ou uma narrativa saborosa da

época, dificilmente saberemos; agora podemos afirmar que ela causou certo

impacto; tanto que, no ano de 1538, o pintor português Francisco de Hollanda disse

em Roma que “na Itália não se liga para o nome dos reis e príncipes, para eles só

um pintor pode ser chamado de Divino”.

34

Giorgio Vasari foi um pintor e arquiteto conhecido principalmente por suas biografias de artistas italianos. Foi amigo e admirador da obra de Michelangelo. Sua obra “A Vida dos Mais Eminentes Pintores, Escultores e Arquitetos” dedicou cerca de um terço de suas páginas ao trabalho de Michelangelo.

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O escritor Vasari retratou uma época marcada pela religião secular da arte.

Em sua obra retratou a vida de mais de 161 artistas, fundando o que, futuramente,

iriamos chamar de História da Arte. O “Divino Michelangelo”, seu mestre e amigo

pessoal, e o período do Renascimento foram retratados pelo “historiador” em um

imagético parágrafo que ilustra bem o “espirito da época”:

Enquanto isso o benigno dirigente do céu olhava com ternura para a

terra, via o desvalor do que estava sendo feito... e decidia salvar-nos

dos nossos erros. Assim resolveu mandar ao mundo um artista com

aptidão em cada oficio para que as pessoas pudessem admirá-lo e

segui-lo como o perfeito exemplar na vida, no trabalho no

comportamento e em todos os esforços, e ele seria aclamado como

divino. Escolheu, então, Michelangelo para nascer florentino a fim de

que um dos cidadãos de lá levassem a perfeição absoluta as obras

pelas quais Florença já era com justiça divina (VASARI, 2016, p. 78).

Se o relato de Vasari é um retrato objetivo e descritivo de um Historiador (nos

moldes modernos); ou um relato fruto da amizade que nutria por Michelangelo; ou,

quem sabe, só uma nota panfletária e caricata da vida de um artista, ficará ao

critério do leitor. Podemos, todavia, afirmar que Vasari, sinceramente acreditava na

concepção renascentista do artista como gênio, criador temperamental, Ser

Soberano e semelhante a Deus; e para o objetivo do presente trabalho é esse

aspecto que será de suma importância.

Nascido no dia 4 de março de 1475 na família de Lodovico Buonarroti,

Michelangelo foi discípulo de Domenico Ghirlandaio. Prodígio, era famoso por

efetuar copias perfeitas de obras dos grandes mestres da pintura. Obcecado pelo

desenho, foi aluno na escola de arte de Lorenzo o Magnífico. Ainda jovem,

demonstrou ser talentoso na arte da escultura. Após a morte de Lorenzo de Médici

em 1542, Michelangelo voltou a morar com o seu pai.

Foi neste período, que Michelangelo conheceria a pregação de Girolamo

Savonarola (1452-1498). O apaixonado – e fanático – monge pregador era inimigo

declarado das artes. Sua famosa “fogueira das vaidades” queimou publicamente

obras de arte, livros, tratados filosóficos e outros objetos considerados produtos da

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imoralidade humana. Michelangelo parece nunca ter se recuperado do conteúdo

destas “inflamadas pregações”.

Michelangelo retirava das esculturas a compleição simétrica do corpo

humano, que em suas telas estava sempre lutando contra o destino irreversível do

homem: a morte. Assim Michelangelo retratou o “homem sempre vencido”, o pintor

demonstrou em suas obras a dimensão dramática e violenta, rompendo e inovando

a tradição do equilíbrio e da bela forma do Renascimento. Seu trabalho profetizou o

barroco e, de certa forma, anunciou a ferida da morte de Deus.

Sua obra mais famosa da “juventude” foi “David”, um gigante extraído do

mármore. Mas os feitos de Michelangelo na “arte suprema da escultura” seriam

superados por outro de pintura. As narrativas sobre a elaboração e produção dos

afrescos, imortalizados na capela Sistina, são quase míticas, envoltas em “fatos

lendários” e “anedotas reais” que construíram uma mitologia à parte.

Seguiremos a narrativa coroada pela tradição. O Papa Júlio II, impressionado

pelas obras de Michelangelo com o mármore, resolveu encomendar-lhe o próprio

mausoléu: um sepulcro monumental, que devia ser instalado na tribuna de São

Pedro.

Michelangelo apresentou um projeto grandioso: rico de mármores, de

baixos relevos em bronze e de ornamentos arquitetônicos, teria ainda

como embelezamento do sepulcro, mais de cinquenta estátuas, das

quais algumas representando personagens da Bíblia, outras

representando as artes e as ciências (VASARI, 2011, p. 96).

Esse período ficou conhecido como a “tragédia do túmulo”, devido as

enormes dificuldades enfrentadas pelo artista para a concretização da obra. Os

papas que sucederam a Júlio II: Leão X, Clemente VII e Paulo III dificultaram o

trabalho de Michelangelo. Realmente, só quatro estátuas foram terminadas: a de

Moisés, a de Lia, de Raquel e dois prisioneiros. Sobre a obra, Michelangelo

confessaria, mais tarde, para o seu amigo Vasari: “Eu me considero como quem

perdeu sua mocidade, aprisionado a esta sepultura” (VASARI,2011, p.122). Mas a

obra magna de Michelangelo ocorreria na arte da pintura, embora, se considerasse

inferior à tarefa que iriam lhe confiar: a decoração da Capela Sistina.

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Quatro anos foram necessários para Michelangelo, sozinho, ilustrar, nas

colossais paredes a história dolorosa da humanidade, antes da redenção: gigantes,

heróis, anjos, santos, profetas e uma multidão de personagens bíblicos.

Deixou perplexos o sumo pontífice, os bispos, o povo inteiro que correram

para testemunhar a obra, quando terminada. O próprio Papa Júlio II celebrou a

missa, na capela Sistina35, no dia da inauguração.

Michelangelo, a princípio, não queria o trabalho, pois não se achava um

pintor. O projeto era desafiador; o, até então, escultor nunca havia lidado com as

cores dos afrescos36. Michelangelo procurou mestres da arte pictórica para

aprimorar sua técnica. Dispensou os andaimes tradicionais e fez um à sua maneira.

Contratou alguns auxiliares, mas ele mesmo desenhou e pintou o teto da capela.

Desde de manhã, bem cedo, até o breu da madrugada, ele permaneceu nos

andaimes, em posição desconfortável, enquanto as tintas escorriam pelo seu rosto.

As mesmas tintas faziam brotar cenas bíblicas grandiosas e famosas.

Provavelmente, outro homem teria desistido, mas Michelangelo – como sabemos-

era Divino.

A película de 1969, The Agony and Ecstasy, (A Agonia e o Êxtase), dirigida e

produzida por Carol Reed e estrelado por Charlton Heston, no papel de

Michelangelo, e Rex Harisson, no de Papa Júlio II, foi baseada no romance

homônimo de Irving Stone. O enredo do filme retrata os conflitos do artista com o

sumo pontífice. Outra faceta deste “drama” é a suposta rivalidade entre

Michelangelo e Rafael.

Segundo a “tradição”, Bramante (1444-1514), parente de Rafael, teria se

ofendido com Michelangelo, após o brioso pintor ter apontado erros nas suas obras.

Agonia e êxtase retrata o “melodrama” corroborando para a imagem de um “Rafael

35

A Capela Sistina ou Capela Magna foi inaugurada em 1483, durante o pontificado de Sisto IV (1471-1484).

Entre 1477 e 1480 a capela foi restaurada. Júlio II, sobrinho de Sisto IV, mudou o nome da capela para

homenagear o tio, passando a ser denominada como “Capela Sistina”. A Capela tem aproximadamente 540

metros quadrados e um pouco mais de 20 metros de altura. Desde então, o local tem sido palco das eleições

pontificais. 36

Afresco é uma técnica de pintura mural, executada sobre uma base de gesso ou nata de cal ainda úmida, sobre

a qual se aplica pigmentos puros diluídos somente em água. Assim, as cores penetram no revestimento e, ao

secarem, passam a integrar a superfície em que foram aplicadas. A técnica é complexa e dificultosa, pois não

permite erros e exige velocidade do pintor.

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invejoso”, que para vingar o parente e ganhar a predileção do pontífice arquiteta um

plano contra o Michelangelo: Convencer Júlio II a entregar a missão de pintar a

capela Sistina, um prédio construído pelo tio de Júlio II, a Michelangelo. A Capela já

tinha sido decorada com afrescos de Botticelli, Ghirlandaio e outros mestres.

Michelangelo deveria decorar o teto e a abóboda do túnel, superfície curva, com oito

janelas que dificultavam o tratamento. Vasari, amigo, (fã e “biógrafo suspeito”), do

Divino Michelangelo, relata:

Bramante e os outros rivais de Michelangelo o desviaram da

escultura, na qual reconheciam que ele era imbatível. Isso,

pensavam, deixaria Michelangelo desesperado porque, não tendo

experiência em lidar com as cores do afresco, Michelangelo acabaria

fazendo um trabalho inferior de pintura. Na certa, pensaram também,

que Michelangelo seria comparado com Rafael e sairia perdendo; e

mesmo que o trabalho fosse bem executado, ter sido obrigado a

fazê-lo deixaria Michelangelo aborrecido com o papa; assim de uma

maneira ou de outra, eles conseguiriam ficar livre dele” (VASARI,

2011, p. 131).

Como sabemos os planos do “maquiavélico Rafael’ foram frustrados pelo

perfeccionista e intempestivo Michelangelo. Historietas pitorescas à parte, a vilania

de Rafael, hoje, é questionada por historiadores modernos – assim como Antonio

Salieri parece ter recebido seu perdão ao lado de Mozart – sabemos que

Michelangelo passava por dificuldades financeiras, e Rafael, um talentoso e

renomado pintor, contribuiu com uma “indicação” de trabalho -leia emprego- para o

“Divino” não passar dificuldades financeiras como qualquer mortal.

Quando um papa como Júlio II manda, deve-se, ainda que forçosamente,

obedecer. Os dois, Papa e artista, possuíam um temperamento parecido. O filme “A

Agonia e Êxtase” retrata a tensão entre as partes, assim como, a amizade

construída entre Michelangelo e Júlio II; parece, nesse caso, não haver discordância

entre a arte e a vida, em relação a essa versão da história. Apesar dos

contratempos, como as sucessivas cobranças do impaciente pontífice, Michelangelo

e Júlio II desenvolveram uma, aparente, admiração mútua. Em uma cena do filme

citado, um Júlio II, atônito pela visão da obra de Michelangelo, vislumbra A Criação

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de Adão – provavelmente, o afresco mais popular do conjunto de imagens – e diz,

em tom profético: “Eu queria ser uma artista, mas só sou um Papa; afinal, Deus é um

artista!”.

O que Michelangelo e Júlio II conversaram, no momento em que o pontífice

contemplou a obra, provavelmente, nunca saberemos com exatidão. Mas os

exercícios da imaginação, como o diálogo retratado na película, parecem fornecer

bons argumentos para autores posteriores e para o presente trabalho.

Um papa reconhece a semelhança entre o artista e Deus; no momento em

que um homem cria Deus a sua imagem e semelhança. Essa “confissão” do

pontífice poderia sintetizar o espírito do Renascimento, tão admirado e estudado por

Nietzsche e Warburg.

Quatro meses depois, o Papa Júlio II morre. Sua morte foi um duro golpe para

Michelangelo; assemelhavam-se no amor pela Arte. Coube a outro Papa, Paulo III,

determinar a Michelangelo a decoração da parede central, com a imagem do Juízo

final.

Michelangelo, ainda foi incumbido pelo cardeal Júlio de Médici, mais tarde

Papa Clemente VII, de projetar a arquitetura da sacristia de São Lourenço, destinada

a abrigar o túmulo dos Médici. Em 1534, o Papa Paulo III solicitou ao “artista Divino”

que participasse das ciclópicas obras na Basílica de São Pedro.

Já fazia muitos anos que os trabalhos na basílica de São Pedro se

arrastavam. Michelangelo já se sentia esgotado fisicamente, pelo incessante labor.

Em seus últimos anos, um Michelangelo melancólico escreve a um amigo em 1542:

“Teria sido melhor para mim se eu tivesse me dedicado a fazer fósforos na

juventude. A pintura e a escultura, labor e boa-fé foram a minha ruína, e vou de mal

a pior” (VASARI, 2011, p.51). O potencial humano e terrificante do artista, inspirado

pelo gênio, iria deixar marcas profundas na Arte.

Quando nasceu, uma previsão astrológica, comum nos tempos da

Renascença, anunciou que o recém-nascido “alcançaria nobreza, fama e

genialidade, pois Mercúrio com Vênus haviam entrado na casa de Júpiter, e isso

significava que seria um gênio, capaz de vencer qualquer adversidade”. A validade

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da Astrologia – estudada com afinco por Warburg—não é a pauta do presente

trabalho. Mas é inegável que a atmosfera da Renascença influenciou o imaginário

de um artista que recebeu de sua família o nome de um ser celestial: o anjo Miguel.

Em um trabalho que almeja escavar imagens fantasmas, nos moldes da

iconologia de Warburg, e efetuar genealogias, com requintes do filólogo Nietzsche,

não poderíamos perder a oportunidade de fazer esse breve “trocadilho intelectual”.

O Arcanjo Miguel é nomeado nas escrituras judaicas (Daniel10:13,21; 12:1),

cristãs (Judas 9; Apocalipse12:7), bem como em muitos outros textos antigos do

judaísmo, cristianismo e islamismo. O nome Miguel pode ser “traduzido” como

“quem é como Deus”, e acreditavam ser um grito de batalha. Sem dúvida, é um dos

anjos mais populares da tradição ocidental e sua iconografia militarizada é um bom

exemplo de uma imagem fantasma.

O outro, Miguel-Ângelo, era uma artista sensível e irascível, tão formidável

que foi apelidado de “Divino”. Morreu trabalhando, enquanto esculpia “O Cristo

Descendo da Cruz”.

Do Príncipe Arcanjo ao Putto37 Renascentista, o que poderia haver de

semelhante? A palavra anjo (malach) é a apenas a palavra hebraica para

mensageiro. É a palavra grega angelos que dá origem a palavra anjo. Miguel é um

mensageiro poderoso e belicoso, responsável por expulsar as hordas demoníacas.

Miguel-Ângelo foi um mensageiro do espírito Renascentista. Cada um serviu ao

“divino” à sua maneira. Michelangelo, em um ato quase profético, morreu esculpindo

a cena de um deus morto sendo retirado de sua cruz. O trabalho abordou a morte de

Deus como a ferida que alcançou o contemporâneo; o Arcanjo Miguel viveu o

embate angélico decisivo entre as forças da luz e das trevas. Michelangelo, mestre

das luzes e das sombras, também viveu um momento fronteiriço, o Renascimento,

em que o corpo de Deus começava a cair de sua cruz, dando lugar a um novo “deus

em ruínas”: o Homem.

37

Putto (do latim putus, menino) é um termo utilizado no campo das artes para nomear pinturas ou esculturas de

um menino nu, geralmente gordinho e representado com asas. A compleição da figura é oriunda da imagem do

Cupido.

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O potencial humano, no Renascimento, tornou-se um valor supremo,

suplantando a fé e o misticismo. As representações míticas deram lugar ao realismo.

Mesmo as representações de temas religiosos, que persistem, são humanizadas.

Pois o homem é o centro do mundo e medida de todas as coisas. Seu corpo não é

inimigo de sua alma, e sim seu interprete, embora, a tensão continue.

O título “Agonia e êxtase” representa de forma precisa a tensão de um

homem que aspira o lugar do divino, cada vez mais ausente do mundo. Já tratamos,

no atual trabalho, o Renascimento como uma “época fronteiriça”. Por isso,

Michelangelo é chamado de “o Divino”, uma “espécie de um Deus”. O Quattrocento

foi a época da supernova, cujo brilho mais intenso foi, provavelmente, a do segundo

Michelangelo, o mensageiro de uma criação à beira do abismo.

4.1 A CRIAÇÃO DE ADÃO À BEIRA DO ABISMO: Como Fazer

Nascer uma Estrela?

“Quando se olha muito tempo para o abismo, o abismo olha pra você”

(NIETZSCHE, 2006, p 101). A sentença nietzschiana precede as análises

fenomenológicas da consciência. Para o autor alemão, instintos fisiológicos,

percepção e a consciência formam uma espécie de continuum. É muito provável,

que Nietzsche compreendesse, em seu projeto “fenomenológico”, a consciência

como uma espécie de texto do ser: “toda a nossa chamada consciência é um

comentário mais ou menos fantasioso sobre um texto não sabido, talvez impossível

de saber, mas sentido (NIETZSCHE,2006, p.37).

O que não sabemos por completo, mas sentimos? Durante o presente

trabalho, apresentamos o fenômeno da morte de Deus como a ferida, por

excellence, da contemporaneidade. Também abordamos a noção de fantasmagoria,

como uma fissura no espaço-tempo, uma chaga que carrega conteúdos trans-

históricos do zeitgeist de uma cultura. Por fim, a agudização do niilismo foi retratada

como efeito da morte divina e o fantasma perene dos dias contemporâneos. Mas

todos esses “postulados”, ainda, não configuram o que procuramos. Qual o nosso

abismo? Não se trata de encontrarmos explicações e construções teóricas, mas de

uma intuição que capta algo que nos escapa, como um fantasma:

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Aquele que sofre duramente, olha de sua condição para fora,

para as coisas com uma frieza terrível; todas aquelas pequenas

feitiçarias mentirosas em que habitualmente as coisas flutuam

quando o olho saudável as contempla, para ele desaparecem:

sim, ele próprio está diante de si mesmo sem penugem nem

cores. Supondo que até ali ele tenha vivido em alguma fantasia

perigosa: essa máxima lucidez através da dor é o meio de o

arrancar disso: e talvez o único meio [...] A incrível tensão do

intelecto, que quer ser a contraparte da dor, faz com que tudo

o que ele agora contemple brilhe numa nova luz: e o indizível

encanto que todas as novas iluminações conferem é muitas

vezes poderoso o bastante para desafiar todos as seduções do

suicídio [...] Ele pensa com desprezo no confortável cálido

mundo nevoento em que o homem saudável vaga sem

preocupações (NIETZSCHE, 2006, p .124).

O “mundo nevoento” exposto por Nietzsche dificulta o nosso olhar. O

pensamento de Nietzsche é uma tentativa de abrir a consciência para experiências

ilimitadas, múltiplas e de dor. Ele desprezava os sistemas filosóficos, pois era

apaixonado pela singularidade. A própria História, para ele, não passava de um

conjunto de eventos. O inaudito era o montante de todas as coisas, mas não um

todo.

Nesse estranho mundo de fantasmas, o Renascimento foi mais um evento

inconsciente de sua própria “mensagem de dor”, e Michelangelo o maior de seus

mensageiros. Os traçados agressivos, oriundos de sua natureza tempestuosa,

retratavam os próprios conflitos pessoais do artista. Por isso, suas obras eram

carregadas de pessimismo e um leve tom de crueldade. Suas figuras incorporavam

o espírito da tragédia, recuperação direta dos grandes dramaturgos gregos.

O humanismo marcou profundamente a obra de Michelangelo. Mesmo

quando o autor abordava outros temas – desprezava retratar figuras de pedras,

árvores, rochas, flores. Grande conhecedor da anatomia humana, Michelangelo

explorou o corpo masculino de forma minuciosa, desde as suas primeiras obras,

como David e Baco, até Moisés, um de seus últimos trabalhos.

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Embora fosse igualmente talentoso na arte da escultura, campo privilegiado

por ele, a capela Sistina foi considerada sua magnum opus. Localizada no “palácio”

do Vaticano, em Roma, foi fundada por Sisto IV, foi decorada por artistas como

Botticelli, Ghirlandaio, Cosismo Rosselli e Perugino. Mas foi Michelangelo o

responsável pelos famosos afrescos no teto, principalmente a cena da Criação de

Adão, comovente e dotada de padrões inovadores, mesmo para o Renascimento.

Na figura retratada, Deus é representado como um vigoroso ancião, envolto

em um manto que compartilha com alguns anjos. Seu braço esquerdo está

abraçando uma figura feminina, comumente interpretada como Eva –aguardando a

sua criação. O braço direito está exposto, esticado para alcançar o homem. O braço

esquerdo do homem, quase idêntico ao de Deus, é retratado em uma postura de

relaxamento, ainda ausente de vigor.

Existem inúmeras teorias sobre o significado da composição original da

“criação de Adão”. Alguns estudiosos, como Frank Lynn Meshberger38, defendem

que a obra, olhada por outro ângulo, revela o formato anatômico de um cérebro,

incluindo o lobo frontal, nervo ótico, glândula pituitária e o cerebelo. Também

levantaram a hipótese do manto de Deus representar o útero, e que o lenço verde

que sai de seu ventre um “suposto” cordão umbilical.

Essas hipóteses hermenêuticas não são meros exercícios inofensivos. Se

essa interpretação estiver correta, o sentido da obra é, habilmente, invertido.

Deixamos o reino da homenagem ao famoso episódio bíblico, executado com

perfeição por um cristão sensível e fervoroso, para assumirmos uma nova dimensão:

a da mensagem subliminar.

Agora, Michelangelo é um artista ressentido contra a tirania de séculos da

igreja; que, em uma ousada manobra, retrata Deus dentro de um cérebro,

simbolizando a razão, tentando tocar um homem pós-idade das trevas.

38

Nos anos 90, uma série de artigos foram publicados sobre supostos “segredos” contidos nas obras de

Michelangelo. A maior parte abordava estudos na área de anatomia, Frank Lynn Meshberger publicou no Jornal

da Associação médica Norteamericana artigos sobre como as figuras da Capela Sistina possuíam analogias

anatômicas. Vasari já havia narrado como Michelangelo, com apenas 17 anos, dissecava cadáveres para estudar

a anatomia humana. Entre inúmeros trabalhos, destacamos “Os segredos da Capela Sistina” (2011), de

Benjamin Blech e Roy Doliner; no trabalho os autores articulam a Cabala judaica à obra de Michelangelo.

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Conhecendo o temperamento, descrito pela literatura, de Michelangelo, não é

impossível imaginar tal artimanha. É muito provável, inclusive, que o gênio de

Michelangelo tenha abrigado as duas dimensões simultaneamente. Mas o presente

trabalho não almeja descobrir a intenção secreta do artista “Divino”. Se a “Criação

de Adão” é obra de um cristão fidelíssimo ou de um ativista humanista, nunca

saberemos. O nosso interesse é na mensagem fantasma registrada na obra de

Michelangelo.

A imagem fantasma não é uma “mensagem intencional”, mas uma ferida

aberta no tempo. Rafael de Sânzio, em sua obra a “Escola de Athenas”, retratou

Platão com o rosto de Leonardo da Vinci. Ora, sabemos a opinião do filósofo grego

sobre as artes pictóricas. Curiosamente – e maldosamente- Rafael imortalizou a

imagem de Platão com o rosto de Leonardo, um pintor – é comum ver livros e

documentários sobre Platão que utilizam, recorrentemente, essa imagem. Todavia a

imagem fantasma não é uma “armadilha intelectual”, como a “vingança” elaborada

por Rafael.

Quando Warburg efetuou a análise das obras O Nascimento de Vênus e a

Primavera de Sandro Botticelli, o historiador alemão não procurava trucagens

intelectuais, buscava ecos de tempos antigos que insistiam em retornar

postumamente. Warburg analisava os cabelos da Vênus, o sopro de Zéfiro, os trajes

e os corpos:

Afinal, na pintura não só temos os dois Zéfiros de bochechas infladas,

“cujos sopros se veem”, mas também os trajes e cabelos da deusa à

espera na praia agitando-se ao sabor do vento, e inclusive os cabelos

de Vênus esvoaçando, bem como o manto com o qual ela deverá ser

coberta. Ambas as obras de arte são paráfrases dos hinos homéricos;

mais o poema de Poliziano ainda temos as três Horas, que na pintura

foram reunidas em uma. (Warburg, 2015, p. 33)

Com isso, Warburg queria nos exemplificar e descrever os “ecos culturais”

que serviram de matéria-prima para Botticelli. Entretanto, o historiador alemão não

queria só compilar uma lista de influências arcaicas e surpreendentes, ele pretendia

demonstrar algo mais profundo: “O retorno das forças dionisíacas” (Warburg,2015, p

76); o reviver das forças pulsionais pagãs”.

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Nosso “caça-fantasmas” alemão almejava demonstrar o espectro do

paganismo que assombrava a Europa cristã. Da mesma forma, “A Criação de Adão”

carrega sua legião de fantasmas; alguns óbvios, que o mensageiro Michelangelo

nos deixou.

Hoje conhecemos sua obra na Capela Sistina – que inclui, além do teto, a

parede do altar-mor que abriga O juízo final (1534-1541) – como um dos cânones da

arte ocidental. Sua dimensão de “obra de arte magna” deve-se, em parte, ao

fenômeno de ela suscitar leituras sempre originais, ao fato de sempre oferecer o

“encontro hermenêutico” entre o admirador e interprete de cada tempo histórico e a

tradição, que projetam à frente do presente aquele que arrisca deter-se na

contemplação da obra.

O retrato das cenas bíblicas trazia algo novo, além do que evocavam as

imagens que povoaram o imaginário do devoto cristão no medievo. No teto,

separando as cenas bíblicas do Gênesis – que mostravam, em sequência: A

separação da luz e das trevas, A criação do sol e da lua, A separação da terra e das

águas, A criação de Adão, A criação de Eva, A queda e a expulsão do jardim do

Éden, O sacrifício de Noé, O dilúvio e A embriaguez de Noé.

Influenciado pelo pensamento da antiguidade clássica, Michelangelo

organizará, nos afrescos do teto da Sistina, um conjunto de imagens alternadas

entre cinco profetas bíblicos, cinco profetizas pagãs, relacionadas aos grandes

oráculos da antiguidade: as sibilas. A cada profeta católico corresponderá uma

sibila, colocada no lado oposto em relação ao profeta, no teto do vão da nave

principal. A sibila de Delfos oposta ao profeta Joel; a sibila de Eritréia, a Isaías; a

Cumeana, a Ezequiel; a da Pérsia, a Daniel e a da Líbia, a Jeremias. O arranjo de

profetas e de sibilas em igualdade de condições era, certamente, uma forma de o

artista demonstrar, ainda que inconscientemente, a mestiçagem dinâmica dos

valores e símbolos religiosos pagãos e cristãos – especialmente àqueles relativos as

intuições de Warburg, sendo que tanto os profetas como as sibilas apontavam um

futuro almejado – bem como na correspondência entre as revelações divinas nos

mundos judaico-cristão e os oráculos do mundo pagão.

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É inegável que o deus grego, Zeus, o pai-de-todos, se assemelhava muito,

especialmente no temperamento, ao Deus judaico do Antigo Testamento.

Michelangelo não parece ter usado apenas referências bíblicas, como as do Gênesis

ou de Daniel (7:13); o Deus ancião e vigoroso, de a Criação de Adão, lembra o

olímpico Zeus – menos nos casos amorosos. Essa forma de louvor à mitologia e a

cultura clássica-pagã, assim como a devoção pelos fundamentos do cristianismo,

demonstra como Michelangelo era um espírito do Renascimento.

O “divino artista” era, antes de tudo, um devoto do corpo humano. É

perceptível como o rosto de Adão foi cuidadosamente modelado. A parte do rosto

que tem destaque com essa criação meticulosa são os lábios do homem primordial

que estão obscurecidos e possuem um toque de coral; demonstrando a ausência do

“sopro divino”.

A Face de Deus é representada por meio de contornos fortes e sombras

marcantes, além de ser, propositalmente, iluminada com o objetivo de criar a

escultura facial dentro da moldura de cabelos acinzentados e barba quase alva. O

efeito ainda é agudizado pela luz frontal.

Adão é ilustrado como um humano perfeito em suas formas, ao levantar sua

mão esquerda ele aguarda ser tocado pela mão direita de Deus e este é o clímax do

ato da criação, - que efetivamente não foi representado - se observarmos,

profundamente, podemos ver semelhanças claras entre a figura jovial de Adão e a

imagem anciã de Deus. As posições de Deus e Adão, a pintura do braço direito de

Deus e esquerdo de Adão muito se assemelham sendo, portanto, fiel à passagem

descrita no livro do Gênesis (1:27): "Deus criou o homem à sua imagem e

semelhança".

Na obra, Deus não chega a tocar objetivamente o dedo de Adão. Destaque

para o olhar fixo de Adão aguardando ser tocado por Deus; Michelangelo,

possivelmente, criou este hiato infinito entre as duas figuras para concentrar e

convocar o nosso olhar para a perene questão do “ser ou não ser”, vivido pela

humanidade.

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A tensão continua, pois, a figura de Deus aparece em uma dimensão espacial

distinta de Adão, uma espécie de espaço interior; por mais que estejam

posicionados no mesmo ângulo, podemos ver a diferença de universos, entre o

criador e a criatura, esta diferença nos representa o humano e o divino; o efeito,

conquistado por Michelangelo, é a figura de Adão e a imagem celestial de Deus em

destaque no centro da obra.

Ao lado da figura que representa Deus, há uma outra imagem sendo

abraçada pelo Criador. A expressão dessa figura reforça a tensão psicológica criada

pela cena. O feminino, sutilmente, habita esse universo de varões.

Esta figura feminina, como já foi dito, é comumente interpretada como sendo

a imagem de Eva, seguindo o relato bíblico. No entanto, algumas interpretações

sugeriram a presença de Lilith39, um demônio da tradição mística judaica; Warburg,

provavelmente, aprovaria tal especulação “alternativa” - embora seja mais

impressionante a “suposta” ousadia de Michelangelo, perante a igreja, do que a

própria presença da figura feminina demoníaca.

A hipótese sobre Lililth não é impossível, é licito lembrar que Rafael –sempre

ele- imortalizou o rosto de Hipátia40 na sua obra “A Escola de Athenas”. A jovem e

bela filósofa e matemática, morta por uma turba de cristãos fanáticos, foi retratada

pelo astuto pintor, e continua altiva e eterna no palácio Apostólico, no vaticano -

templo de seus executores.

Atendo-se ao contexto da obra, o Renascimento (embora o termo tenha sido

usado não pelos contemporâneos, mas tenha sido forjado pelos Iluministas alguns

séculos depois) tinha como principal aspecto o antropocentrismo, a tentativa do

homem conhecer o mundo por meio de sua própria experiência, o que

necessariamente significava romper com algumas “verdades divinas”.

Se os mecenas podiam aparecer ilustrados em cenas sacras, os artistas

poderiam também criar novas perspectivas de mundo. Não se pode negar que os

39

Provavelmente, foi uma deusa adorada na Mesopotâmia vinculada a enfermidades e tempestades. No

misticismo judaico e islâmico, ela aparece como a primeira esposa de Adão e posteriormente como um demônio

feminino. 40

Hipátia (351 -415) foi uma matemática e filósofa, nascida em Alexandria. De acordo com a tradição, ela teria

sido assassinada por uma multidão de cristãos, após querelas políticas.

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artistas do Renascimento ainda habitavam em um mundo cuja religiosidade era de

suma importância, tampouco se pode negar a capacidade inventiva de indivíduos

como Michelangelo de criar maneiras novas de interpretar e vivenciar o mundo ao

seu redor.

Força, beleza e vigor, valores greco-romanos que voltaram, como fantasmas,

a fazer parte não só da arte renascentista, mas como do universo ocidental. A busca

pela simetria é um traço do Renascimento, seja nas esculturas, seja nas pinturas ou

em outra área do saber.

Sabemos que os séculos XIV e XV simbolizaram a quebra de um paradigma

pautado na religiosidade que há muito tempo imperava na Europa. Este período

representou uma mudança tão drástica no pensar e no representar o mundo, que os

Iluministas, cães de guarda da Razão, reconheceram em Michelangelo, Leonardo,

Rafael ou mesmo Maquiavel os seus predecessores. Denominaram-no, pois,

Renascimento.

Devido a posição geográfica privilegiada, entre o oriente e o interior do

continente, no mar mediterrâneo, as Cidades-estados italianas dominaram o

comércio europeu; O fluxo, oriundo do comércio, de pessoas de origens múltiplas

facilitou as trocas culturais, elemento indispensável para as reviravoltas da cultura.

Foi neste cenário e nessas cidadelas italianas que Michelangelo: foi um criador à

beira do abismo.

O Quattrocento, como já foi supracitado, esteve fundamentado no estilo

greco-romano de arte e técnica, por isso a volta a este estilo foi denominada

Renascimento, uma perspectiva de mundo com base em conhecimentos empíricos,

um antropocentrismo baseado nas experiências humanas, não somente na

reprodução de mensagens religiosas, que era o objetivo da arte sacra. Sobre esse

fenômeno, Nietzsche explanou:

A Renascença. Compreende-se finalmente, será que por fim compreende-se o que era a Renascença? A transmutação dos valores cristãos – uma tentativa com todos os meios, todos os instintos e todos os recursos do gênio para fazer triunfarem os valores opostos, os valores mais nobres…. Até ao presente essa foi a única grande guerra; nunca houve uma questão mais crítica que a da Renascença – que é minha questão também –; nunca houve uma

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forma de ataque mais fundamental, mais direta, mais violentamente desferida por toda uma frente contra o centro do inimigo! Atacar no lugar decisivo, no próprio assento do cristianismo, e lá entronar os valores nobres – isto é, introduzi-los nos instintos, nas necessidades e desejos mais fundamentais dos que ocupavam o poder… Vejo diante de mim a possibilidade de um encantamento supra terreno: – parece-me que cintila com todas vibrações de uma beleza sutil e refinada, dentro da qual há uma arte tão divina, tão diabolicamente divina, que em vão se procuraria através dos milênios por semelhante possibilidade; vejo um espetáculo tão rico em significância e ao mesmo tempo tão maravilhosamente paradoxal que daria a todas as divindades do Olimpo o ensejo de irromper numa imortal gargalhada – César Bórgia como Papa!… Compreendem-me? (NIETZSCHE, 2005, p. 115).

Compreendemos com Nietzsche e Warburg, que o Renascimento foi o

momento em que forças antigas retornaram “ocultas a olho nu”, nas obras dos

grandes artistas, como Michelangelo. Esses fantasmas puderam retornar de forma

mais “assombrosa” – pois sempre estiveram presentes de uma forma ou de outra-

devido ao desgaste do cristianismo medieval.

Esse “desgaste” ocasionado no medievo, é um dos traços da Morte de Deus,

último mecanismo de defesa da mente ocidental contra o Niilismo. Talvez,

Michelangelo não tenha representado a criação em si, mas a criação do homem

renascentista, que vê na divindade algo comum e imerso na natureza, sendo ele

mesmo, o homem, o agente do saber e do fazer. Na direção contrária, Deus, na

obra, simbolizaria não só o declínio do poder da Igreja, mas a queda do próprio

divino que “sendo o portador de todos os poderes” não consegue mais encantar a

sua principal obra. Michelangelo, convocado pela igreja, acaba por ilustrar não o

momento que antecede o toque entre o humano e o divino, mas a separação de dois

mundos que não voltariam a se reencontrar na história do ocidente. Deus, amparado

por seus anjos, retorna ao céu, após um logo esforço. Nascia neste momento um

abismo intransponível. Michelangelo foi o pintor do abismo.

Este sentido de “abismo histórico” de que fala Warburg apresenta certa

“polissemia positiva”, isto é, um modo de se conceber conexões entre vários tempos

históricos diferentes, várias culturas distintas, (Gregos, Indianos, Chineses, etc.)

numa ou mais obras de arte. Ao compreender as obras de arte como artefatos que

conseguem apresentar múltiplas temporalidades, Warburg derruba o conceito

tradicional de história, caracterizado pela cronologia progressiva, típica do

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pensamento moderno, em que cada época supera a anterior, seja socialmente ou

culturalmente.

Por este motivo, um dos objetos de estudo preferidos de Warburg era

o Renascimento Italiano. Warburg queria demonstrar que a arte do Renascimento

não produzia um puro e simples resgate da cultura greco-romana, não era uma arte

“pura”, da perspectiva do resgate histórico. Era uma arte “impura”, “mestiça”, no

sentido de apresentar muito “tempos” e muitas culturas mescladas em uma só peça

artística ou em várias reproduções distintas, que nunca se comunicaram

diretamente, mas que carregavam as mesmas dores, os mesmos fantasmas.

Ainda no reino da iconologia, segundo os moldes de Warburg, oriundo do

extremo oriente, viveu Wu Tao-tzu (618-905), aos nossos olhos, uma espécie de

“Michelangelo Chinês”. Considerado o maior pintor do extremo oriente, infelizmente,

quase todo o seu trabalho foi perdido, com exceção algumas poucas obras e de um

popular tríptico.

Wu Tao-tzu, também conhecido como Wu Tao-hsüan, nasceu em Yang-ti

perto de Loyang, uma Província de Honan, aparentemente em uma família de

poucos recursos. Segundo a lenda, ficou órfão e sem dinheiro; quando menino foi

adotado por monges budistas, e, então, começou o estudo da pintura, orientado por

artesãos empregados para decorar templos budistas. Ainda de acordo com a

tradição, ele também estudou caligrafia com o monge budista Chang Hsü, que era

famoso por seu “traço louco", enfatizando as qualidades aleatórias e cenestésicas

do pincel zen. Wu também parece ter aprendido com espadachins a “arte da visão

sobre as qualidades do movimento”, observando a famosa dança folclórica da

espada de Gen P'ei Min (JANSON, 2002, p. 63).

Wu Tao-tzu foi convocado pela corte do imperador Hsüan-tsung, um

governante, aparentemente, culto, (a versão oriental do Papa Júlio II) e cujos

palácios atraíram um conjunto tão brilhante de poetas, pintores, calígrafos e músicos

que seu reinado é lembrado como a idade de ouro da cultura chinesa. Neste cenário,

Wu Tao-tzu logo adquiriu uma reputação como o pintor mais brilhante da

dinastia. Seu gênio era lendário, assim como seu comportamento desordenado: "Ele

gostava de vinho, o que motivava o seu espírito, antes de empunhar o pincel, ele iria

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ficar invariavelmente bêbado" (JANSON, 2002, p. 42). Ele é conhecido por ter

pintado, sozinho, 300 paredes de templos na capital e é creditado por ter executado,

em um único dia, um mural que retrata cem milhas de cenário ao longo do rio Chia-

ling.

A “velocidade furiosa” de seu pincel é a marca significativa da arte de Wu

Tao-tzu. Ele foi um dos primeiros pintores a desenvolver um estilo fluido, e a

representar as figuras vagamente e sugestivamente. A história primitiva da pintura

chinesa41 é representada nas realizações sucessivas de três mestres: Ku K'aichih,

cuja pincelada foi "como fio de seda"; Yin Lipen, que pintou como "fio de ferro" e Wu

Tao-tzu, cuja pintura “flutuante” foi a primeira a adquirir qualidades próprias,

separadas das formas descritas (JANSON, 2002, p. 52).

A obra mais importante de Wu Tao-tzu foi um conjunto de três pinturas unidas

por uma moldura tríplice (dando o aspecto de serem uma obra), e essa pintura pode

ser encontrada em um dos mosteiros zen de Kyoto. A ilustração mostra o Buda com

dois famosos Bodhisattvas: Samantabhadra e Manjusri; mas é a figura central de

Buda que atrai a nossa atenção.

Influenciado pelo zen budismo, as linhas que formam as dobras do manto do

buda são recortadas e ousadas, mas a face possui a expressão de uma serenidade

completa que domina todo o quadro. Em sua obra “O Espirito Zen”, Allan Watts, em

um capítulo sobre a contribuição da cultura zen, ilustra:

Essas pinturas foram executadas em um tipo de papel áspero e quebradiço com um pincel macio. O meio usado, a tinta preta chinesa; não havia colorido nem elaboração, em um efeito do papel quebradiço era de que, uma vez feito o traço, nunca poderia ser eliminado; para que não houvesse borrões, o traço teria de ser rápido e firme. Com esse material era necessário ser rápido e firme “como se um turbilhão tivesse se apoderado de sua mão”. Não havia possibilidade de “retocar”. O menor erro seria óbvio, e, caso o artista parasse para pensar no meio de uma pincelada, o resultado seria um feio borrão. Essa técnica era a que se adequava exatamente ao espírito Zen, pois significava que o artista, perante o vazio, tinha de passar sua inspiração para a obra enquanto ela estivesse viva. A técnica de “pintura zen, utilizado por Wu Tao-tzu”, não permitia um

41

Na cultura chinesa, a “via do pincel” continuou sendo a via da pintura e da escrita. Os pintores chineses não

eram artesãos, trabalhadores especializados contratados para executar algum trabalho; a pintura e a caligrafia

eram a arte do sábio. Tardiamente, só depois do ano 1000 d.C. ocorreu a distinção teórica entre pintores

intelectuais e profissionais.

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esboço tosco, e, a seguir, corrigir, lentamente, os erros, preenchendo os detalhes até que a inspiração morresse em meio ao turbilhão de elaborações e mudanças (Watts, 2008, p.111).

Trechos como: “O artista perante o vazio” e para que “a inspiração não morra

em meio ao turbilhão de emoções e mudanças” são exemplos ideais para o presente

trabalho. Nossa breve digressão ao oriente não foi apenas para ilustrar semelhanças

óbvias entre Michelangelo e Wu Tao –tzu.

Ambos os pintores são envoltos por narrativas lendárias; são mestres

inigualáveis em suas artes; famosos por possuírem gênios tempestuosos e por

retratarem ícones religiosos, captando com maestria os espíritos de suas respectivas

culturas. Mas procuramos algo mais sutil, e esse algo é o Vazio.

É sabido que o Zen budismo impressionou o filósofo alemão Heidegger,

assim como o budismo indiano havia impactado Schopenhauer. Nietzsche, como foi

exposto no capítulo anterior, via o budismo e o cristianismo como fenômenos

sintomáticos do niilismo, embora tivessem genealogias díspares.

Diferentemente do cristianismo que chegou tardiamente ao “abismo do nada”,

o budismo sempre lidou com a dimensão abissal. O zen-budismo, corrente nascida

em resposta aos excessos “metafísicos” do budismo Mahayana, propõe a busca

pela experiência do satori42.

O satori é uma espécie de “salto apoiado no nada”, semelhante ao “salto de

fé” proposto por Kierkegaard. A semelhanças não param: a experiência melancólica

do ser levado ao extremo; um ego falido, incapaz de prover recursos para sua

própria salvação, não pode se apoiar em nada para se salvar.

O cristianismo propõe a entrega total da alma a Deus; todavia já sabemos que

somos “homens sem-Deus”, e não possuímos mais esse recurso- exaurido por

querelas teológicas filosóficas e pelo absurdo. Então, o que fazer?

42

Satori é um termo Zen-budista para iluminação. Pode ser traduzido como “acordar”. Não é um estado de

iluminação eterno, embora seja duradouro. Para acessar o satori, os monges utilizam os koans, perguntas sem

respostas lógicas, para demonstrar a incapacidade da razão para atingir a iluminação.

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O zen budismo propõe a experiência do Zen, que, em uma tradução literal,

significa “largar o ponto de apoio” ou vazio. Saltar em direção ao abismo, para,

então, experimentar o momento do satori, ou da intuição imediata do Ser.

“Quando você olha para o abismo, ele olha de volta para você”, Começamos

o capítulo citando o aforismo de Nietzsche; chegamos à conclusão de que

Michelangelo, o mensageiro da morte de Deus, intuiu, em sua “A Criação de Adão”,

o avanço do niilismo. Parece que o abismo nos observa fixamente, devemos saltar?

Como Wu-Tao-tzu, “o Michelangelo oriental”, que pintava como um turbilhão,

sem chances para correções, precisamos lidar com o abismo da ausência do

criador, da falta de apoio; e sobre isso será o próximo texto.

4.2 À IMAGEM E SEMELHANÇA: O Niilismo Criativo é

Brincadeira de Criança.

Embora não tenha sido a única referência, o relato bíblico da criação de Adão

foi a maior inspiração para a obra de Michelangelo. Antes do sexto dia, Deus,

segundo tradição Judaico-cristã, havia criado o mundo a partir do “nada”. (GÊNESIS

1.1-7)

Não impressiona que o homem ocidental tenha imaginado o artista como uma

espécie de ser divino - Michelangelo o “Divino”. A crença em um Deus-Criador foi

uma forma de expressar a intuição de que o “novo” estava além das explicações

humanas.

O criador foi deificado; o ocidente adotou essa concepção. O poder humano

de criação estava vinculado à uma atividade divina. Claro que os homens não

passavam de “sub criadores”; no máximo artífices, pois utilizavam materiais já

dispostos.

O Oriente, por sua vez, identificou o cosmos ao divino e criou obras de rara

beleza artística. Gregos e Romanos, que não trabalhavam com a noção direta de um

deus criador, desenvolveram obras de arte monumentais, e fonte de inspirações

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futuras, como as de Michelangelo. Os muçulmanos, obedientes a um Deus de pura

volição, mesmo com restrições as representações artísticas, elaboraram os

arabescos e uma caligrafia de beleza ímpar. O impulso de criação pareceu vencer

todos os obstáculos.

Mas a cultura ocidental, fundamentada na noção de um Deus criador,

incentivou também a concepção de um homem criador. Podemos dissertar sobre

como ocorreram as grandes criações, quando aconteceram, quem as efetuou, em

que contexto, suas implicações, mas não podemos dissertar sobre o “por que”

criamos, talvez possamos tentar responder a questão do “para que”, mas o ocidente

parece ter recebido um ingrediente novo na poção do mistério que motiva a criação:

O Deus Criador.

O homem percebeu a capacidade de continuar vivo em suas criações. Sua

imagem imortalizada em notas musicais, palavras, pedras talhadas, tintas e pinceis;

o homem havia encontrado materiais para sua imortalidade. Desde então, o homem

tem criado imagens de si mesmo e do mundo. Mas parece que retornamos para o

nada, aquele do “estado de pré-criação –seja lá o que isso for. Dos maiores golpes

de estado, efetuados pelos homens em sua trajetória histórica, o golpe contra o

“Criador” foi o mais contundente; roubamos os seus poderes e o céu do homem

contemporâneo ficou vazio.

“Ó criadores, homens superiores!” É assim que Zaratustra orava. Os

criadores profetizados são homens capazes de, como outrora o Deus Criador, criar a

partir do nada. Cabe aqui alguns esclarecimentos, é inútil buscar uma “filosofia

estética” em Nietzsche, como aquela encontrada em Kant ou Hegel.

A perspectiva de Nietzsche se opõe a tradição dos estéticos, quase todas

elas idealistas, em busca da encarnação da ideia na obra de arte, procurando a

elevação, o belo, etc. A estética em Nietsche dá lugar a fisiologia da Arte.

Nietzsche vai operar segundo a sua própria proposta genealógica, da obra ao

artista e o tipo de vontade que ela expressa. Esta proposta psicológica, como uma

história da tipologia da vontade de poder, busca a “pulsão artística”.

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“Pergunto em cada caso particular: será que é falta ou superabundância que

se tornou criadora?” (NIETSZCHE, 2001, p. 221). Qualquer teórico que não

compreenda essa “psicologia” é um logógrafo, alguém que não entende nada de

arte, um sistemático, conjunto de letras mortas, afogado em todo tipo de abstrações

e fórmulas.

O divino foi um horizonte, um princípio, uma origem, mas sua ausência pede

para que voltemos para trás. O novo pensador precisa ser não um filósofo que

especula sobre arte, mas um artista filosofante; capaz de reunir os estilhaços do

contemporâneo. Privilegiando o criador, Nietzsche golpeia a estética clássica. Não

devemos mais ouvir os espectadores e críticos; somente o criador tem direito

adquirido para abordar a arte. A estética sempre tomou em primeiro lugar a

perspectiva do “amador”, do ouvinte, e só em segundo lugar do criador.

Sobre esta esfera, Nietzsche sabe do seu pioneirismo: “Sublinharei sobretudo

que Kant, como todos os filósofos, em vez de abordar o problema estético a partir da

experiência do artista, refletiu sobre a arte e o belo somente a partir do espectador, e

fazendo isso, introduziu implicitamente o próprio espectador sob o conceito de belo”

(NIETZSCHE, 2006, p. 102). Certamente esta não é a experiência do artista. A falta

de experiência de Kant e Hegel é visível. Mas e Platão?

Longe da arte do “desinteresse” de Kant ou da arte como “sintoma”, em

Hegel, – meras notas de rodapé – Platão é um artista. E aqui, encontramos a “ferida

do trabalho”. Este último capítulo poderia se chamar “Eros versus Eros”. Mas por

que?

Na mitologia grega dois deuses detinham o nome de Eros43. O mais popular

foi o filho de Marte e Afrodite, divindade do amor erótico. Casado com Psique, era o

Cúpido Romano, um deus irresistível e alado, como o desejo. Platão cantou a

divindade olímpica, mas não sem efetuar modificações em sua história; com o

filósofo grego, Eros tonou-se filho da pobreza e da riqueza, trajava roupas de um

mendigo, todavia era belo e poderoso e sua aparência enganava o tolo, incapaz de

43

Divindade do amor erótico, era um dos “Erotes”. Seu mito passou por três fases: (1) o mito ancestral, os

gregos deviam prestar cultos a uma divindade primordial indo-europeia associada a vida e a morte. (2) fase

mitológica poética, representado por poetas, como Hesíodo, era belo, jovem e alado, filho de Afrodite, deusa da

beleza e do amor, e de Ares, divindade da guerra selvagem. Era casado com Psique. (3) o mito platônico,

utilizado para efeito de estudo, era filho da Poros, a riqueza, e Pínia, a pobreza.

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reconhecer a “verdadeira riqueza do amor”. A imagem de Platão é uma síntese de

sua filosofia, precisamos reconhecer o princípio; e ele é belo e bom, como a

divindade alada.

Quando nasceu Afrodite, os deuses banquetearam, e entre eles

estava Poros (o Expoente), filho de Metis. Depois de terem comido,

chegou Pínia, (a Pobreza) para mendigar, porque tinha sido um

grande banquete, e ela estava perto da porta. Aconteceu que Poros,

embriagado de néctar, dado que ainda não havia vinho, entrou nos

jardins de Saturno e, pesado como estava, adormeceu. Pínia, então,

pela carência em que se encontrava de tudo o que tem Poros, e cogitando ter um filho de Poros, teve relações sexuais com ele e concebeu Eros. Por isso, Eros tornou-se seguidor e ministro de Afrodite, porque foi gerado durante as suas festas natalícias; e também era por natureza amante da beleza, porque Afrodite também era bela (Platão, 2001, p. 38).

Mas Nietzsche – depois Freud – perceberá que havíamos esquecido do

“antigo Eros”, a divindade primordial. A divindade cósmica era a própria

manifestação do universo, anterior as divindades titânicas e olímpicas. Eros era um

dos primordiais44, e dividia espaço apenas com a Terra, o Céu, a Noite e o Oceano.

Nasceu de suas próprias forças, não tendo sido gerado por nenhuma divindade

externa. O Eros primordial era o deus de Nietzsche e de sua filosofia.

Para Platão, o Eros era definido pela Falta; por isso a continua busca pela

sabedoria. O filósofo grego criou a eterna problemática da filosofia ocidental: “o amor

pela sabedoria” sempre faz com que ela escape. Nietzsche, por sua vez, entendeu

que a arte carrega a sabedoria, ainda que não fale sobre ela de forma explicativa,

mas por meio de imagens, alegorias, analogias, metáforas, paradoxos. Eros, para o

alemão, era o portador da sabedoria da vida, capaz de se auto gerar.

Nietzsche não desdenhava do segundo Eros, o olímpico, pelo contrário, ele

compreendia a divindade como o filho da guerra e do amor. Os gregos, mais uma

vez, haviam forjado um mito capaz de captar a força inaudita do amor fati; da vida

como ela é, e não como deveria ser. Eros, deus da vida, sabia que era fruto de uma

infidelidade; filho da bela Afrodite (deusa do amor e da beleza) e do selvagem Ares

(deus da guerra).

44

Chamados de Protogonos, eram os “nascidos primeiro”, originados no momento da criação; constituem a

própria estrutura do universo. Provavelmente, estão historicamente vinculados a divindades indo-europeias. O

número varia, segundo os poetas, mas há certo padrão que mantem cinco divindades, são elas: Gaia (terra), Nix

(noite), Ponto (águas do oceano), Urano (céu) e Eros (vida).

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O autor de “Assim falou Zaratustra” defendia que a arte era vontade de poder

na sua dimensão criadora. Para além do bem e do mal, a arte era poesia da vida, e

o criador o único capaz de regenerá-la. Por isso, a arte é excesso de vida, uma

profusão de signos; não falta.

A obra de arte não é fruto da carência, ela é excesso. Temos uma inversão

significativa. Enquanto para Platão, a arte era eco da vida, mera imitação; para

Nietzsche, a arte era o próprio motor da vida, ela produzia os mundos simbólicos,

em que os homens viviam, mas a cultura ocidental, segundo o filósofo alemão, não

matou Eros, embora o tenha envenenado e pervertido (NIETZSCHE,2015, p. 92).

O caminho é sutil. Michelangelo era, sabidamente, um Platônico. Enquanto

Leonardo era o homem da observação, amante da natureza, um aristotélico tardio; o

autor de “A Criação de Adão” era um idealista, o próprio fato de não ser pintor de

formação ilustra a dimensão “platônica de Michelangelo”; ele só precisava acessar a

ideia encarnada da pintura para executá-la com precisão. A escultura é a arte de

capturar o movimento fugidio da vida, e Michelangelo nunca escondeu sua

predileção pelas formas retratadas (e aprisionadas) em puro mármore. O anseio

pela eternidade alcançou o auge durante o Renascimento. Michelangelo exemplifica:

Ainda no berço eu recebi a visita da Beleza, fiel guia da minha

vocação e que para as duas artes me é luz e espelho. Pensar de

outra forma é mentir. Apenas ela eleva os olhos em direção ao

sublime, o qual aqui me preparo para pintar e esculpir

(VASARI, 2001, p. 41).

Temos mais um problema aparente: A criação de Adão é fruto de um artista

platônico? A resposta é: sim. Como efetuar uma leitura nietzschiana de uma obra

indiretamente platônica?

Se é verdade que onde a luz é mais forte as sombras são mais nítidas, eis o

cerne da questão: Justamente por ser uma obra Renascentista, de temática cristã e

de cunho Platônico, ela carrega a ferida máxima estudada pela labuta atual: ela

indica a falência desta forma de pensamento; o início do fim, a morte da reflexão

fixada no ponto de origem. – Embora tenham ocorrido muitas convulsões antes do

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óbito. As sombras ficaram evidentes, justamente quando a luz do Renascimento foi

mais intensa.

Durante o trabalho, buscamos uma hermenêutica nietzschiana da obra “A

Criação de Adão”. O que ela poderia nos dizer sobre os dias de hoje? Partimos da

sugestão de Warburg que toda a obra de arte possui um pathos, uma ferida aberta

no tempo; as obras carregariam fantasmas, como o rei Hamlet, almas penadas que

carregam mensagens perturbadoras, embora reveladoras.

Desde a cultura mais primitiva, a da tradição dos costumes, encontram-se não

somente regras sociais, mas uma “mnemotécnica”, isto é, a capacidade de desligar-

se do tempo presente, ao qual o animal continua refém para sempre. É assim que o

homem escapa da animalidade, e se faz não somente animal, mas um “supra

animal” capaz de retornar ao passado e especular sobre o futuro. Durante suas

“viagens no tempo”, o homem tomou consciência das mortes passadas e da sua

própria morte futura; daí resulta o surgimento da necessidade metafisica; o homem

passa a ser o único animal que sente tal necessidade e que, por tentar fugir da

morte, morre duas vezes.

Nietzsche percebe que os sistemas morais, religiões, as filosofias, as

ciências, as leis são outros tantos processos de criação que tendem a constituir

pontos fixos. A criação passa a ser a atividade por excelência do homem. O homem

divinizou a criação. Eis o paradoxo da criação: assim como nos encontros de Moises

com o seu Deus –Criador, o profeta hebreu não podia ver a face de Deus. O Deus

sem nome, sem rosto, exigia, no entanto, intimidade e um relacionamento pessoal.

Procuramos a face, o começo, a origem da Criação, mas não a encontramos.

A herança de Platão e da fé cristã começou a demonstrar sinais de desgaste.

Longos debates filosóficos e teológicos; a racionalização e burocratização do

mundo; o processo substituiu o significado. O mundo, anteriormente objeto de

contemplação, começou a ruir, e o niilismo levou a história humana para à beira do

abismo.

Para mim não há passado nem futuro em arte. Se uma obra de arte

não pode existir sempre no presente, não pode ser levada em

consideração. A arte dos gregos, a dos egípcios, a dos grandes

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pintores que viveram em outras épocas, não são artes do passado;

talvez estejam mais vivas hoje do que nunca (PICASSO,1931, p.

117).

O comentário de Picasso poderia ser muito bem de Nietzsche ou de Warburg.

O que é mais vivo do que nunca na “A Criação de Adão”, um afresco que parece ter

perdido seus personagens principais?

Michelangelo pintou “A Criação de Adão” em um momento fronteiriço da

História: O Renascimento. Nietzsche e Warburg estudaram este período como um

momento fulcral da cultura Ocidental. Fantasmas antigos retornaram e novos

surgiram. O fantasma que interessa ao presente labor é o espectro de Deus.

O espectro divino ronda o abismo; como o fantasma paterno de Hamlet.

Neste ponto do trabalho, já sabemos que “há algo de podre no reino da Dinamarca”.

Um rei morto; sucedâneos ambiciosos; filhos desorientados e ansiosos, e um reino

prestes a ser invadido, por um adversário bem pior do que os noruegueses: o

Niilismo.

Provavelmente, Nietzsche aprovaria essa “grande tragédia” escrita com uma

pena feita de dor e um tinteiro cheio de sangue. É uma narrativa memorável, todavia

o seu vínculo a “crença histórica” exige um desfecho – assim como esse trabalho.

A história de toda a sociedade até aos nossos dias nada mais é do que da

luta de classes: a classe do sagrado contra a classe do Niilismo. Do “vale a pena”

versus “nada tem sentido”. Por isso nietzschiano Albert Camus, vacinado contra

utopias messiânicas, chegou à conclusão de que “a única questão séria da filosofia

é o suicídio” (CAMUS, 2010, p. 58).

Seguindo o “estilo de Warburg”, para ilustrar essa grande tensão entre o

sagrado e o nada, evocaremos uma narrativa bíblica:

E Jacó ficou sozinho; e um homem combateu com ele até o romper do dia. Quando o homem viu que não vencia Jacó, tocou a cavidade de sua coxa, e a coxa de Jacó de deslocou quando combatia com ele. Então ele disse: “deixa-me ir, pois o dia está raiando”. Mas Jacó respondeu: “não te deixarei ir, a menos que me abençoes”. E ele disse: “teu nome não será mais Jacó, e sim Israel, pois lutaste com Deus e com os homens, e venceste. ”

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Então Jacó lhe pediu: “rogo-te que me digas teu nome”. E ali o abençoou. Assim Jacó deu ao lugar o nome de Peniel, dizendo: “Pois vi Deus face a face, e minha vida foi preservada (Gênesis 32; 24-30).

Este episódio já foi evocado não só por religiosos, mas como por ateus. A luta

de Jacó contra Deus é um símbolo do Ateísmo. O “anjo” desta narrativa não é um

mensageiro ou guardião, ele é um ser sorrateiro, capaz de atacar Jacó durante a

noite, para testar seu espírito e sua coragem. Jacó derrota a figura misteriosa,

sobrevive e vê o sol nascer, no entanto Jacó foi ferido, e passou a mancar pelo resto

de sua vida.

Assim como Jacó, (nome traduzido como “aquele que foi segurado pelo

calcanhar”) parece que vencemos, expulsamos Deus para longe, mas o custo foi

alto, pois fomos feridos, e passamos a caminhar pela história de forma claudicante.

A “ferida de Jacó” foi causada por sua vitória, e o acompanhou pelo resto da

vida. O embate é um tanto misterioso – e deve causar malabares constrangedores

nos meios teológicos -, entretanto o que nos interessa é a ambivalência contida na

força imagética da narrativa.

A analogia é evidente: a luta contra Deus representa o processo de

racionalização e desencantamento do mundo, a ferida é a morte de Deus, o

amanhecer como o Renascimento. Mas a passagem carrega outros elementos,

como o “terror sem nome”, - Jacó termina sem saber o nome de seu adversário

misterioso, mas recebe sua benção e descobre ter contemplado a “face de Deus”,

em uma experiência de temor e tremor.

Afinal, vimos a Face de Deus? Hölderlin, o “poeta da morte de Deus” nos

presenteou com um verso relevante para o atual trabalho: “onde cresce o perigo

também surge a salvação” (HOLDERLIN, 2001, p. 56).

O avanço do niilismo é o perigo, mas também possibilidade de salvação. Mas

como procurar salvação? Nietzsche, profeta do niilismo, aponta uma direção, -

embora, como de hábito, as pessoas olhem para o dedo indicador e não para o lugar

indicado- o filósofo alemão, por meio de seu Zaratustra, indica o “caminho da

criança” ou do niilismo criativo.

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O discurso sobre as três metamorfoses inicia o livro “Assim falou Zaratustra”,

elaborado por Nietzsche entre 1883 e 1885. A relevância deste primeiro discurso é

vital. Nele, encontrarmos Zaratustra “aquele que possui bravos camelos”, e

referências que nos indicam a trajetória da obra do próprio Nietzsche - que jamais

teve a pretensão de escrever uma obra sistemática-. Precisamos “desconfiar dos

sistemáticos”, postulava ele. É plausível, entretanto, pensar em uma “solução”

nietzschiana a partir deste pequeno texto de duas páginas.

Esta solução se apresenta como uma metamorfose. Metamorfose de quê?

Três transformações do espírito é o que ele simboliza. A perspectiva de espírito está

para além daquela de “espírito livre” contida em “Humano demasiado

Humano” (1878). Se naquela obra ele apontava para um homem-livre, como um

“pássaro audaz”, agora este espírito ganha mais três signos, momentos distintos de

uma mesma libertação. Todavia, é necessário ressaltar a enorme distância entre

o “espírito livre”, simbolizado pelo “pássaro audaz”, e a última compleição do

espírito, simbolizada pela criança. Entretanto, o que os separa?

“O que é pesado? Assim pergunta o espírito resistente, e se ajoelha, como

um camelo, e quer ser bem carregado” (NIETZSCHE, 2008, p. 112). Como um

camelo, o primeiro “estádio” do homem busca carregar o peso do conhecimento; de

todos os saberes a “doença histórica” é o mais pesado dos fardos. Por mais forte

que a tipologia do camelo seja, ela é caracterizada pela necessidade de sujeição,

obediência, humildade e humilhação. Resistente ao clima árido do deserto de

niilismo, o “homem-camelo”, embora tenaz, ao encontrar um montante de cargas,

ajoelha para que coloquem o fardo sobre seus ombros. Ele só sabe “carregar”, e

ruminar a “erva daninha do conhecimento” (NIETZSCHE, 2008, p.118). Ele é pesado

e lento, devido ao peso de inúmeros fardos e, no máximo, servirá para ser um

“animal de montaria”.

“Qual é o grande dragão, que o espírito não deseja chamar de senhor e

deus? “Não farás” chama-se o grande dragão. Mas o espírito do leão diz “Eu quero”

(NIETZSCHE, 2008, p. 121). O tipo psicológico do Leão não é um espírito como o do

camelo, ele é um estádio que não aceita ficar de joelhos. Conserva o “lado

selvagem” da vida, seus instintos vitais ainda estão vinculados ao viver, ele é um

guerreiro, uma fera não domesticada, pura vontade capaz de enfrentar o “dragão do

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niilismo”. Mas o “homem leonino” carece de um sentido. Esta forma diz: não!

Rugindo a plenos pulmões, mas, assim como o camelo, não é capaz de forjar novos

valores.

“Inocência é a criança, e esquecimento; um novo começo, um jogo, uma roda

a girar por si mesma, um primeiro movimento, um sagrado dizer- sim” (NIETZSCHE,

2008, p. 133). Eis o último estádio. O espírito da criança é capaz de criar novos

mundos, brincar com os ritos sagrados, jogar com a linguagem; não carrega mais o

peso dos inúmeros mortos da história, pois é dotada do bálsamo do esquecimento.

Os olhos observam o “mundo sempre novo” repletos de fascínio. Elas não

conhecem os deuses, a história, as razões, no entanto, giram o próprio corpo e são

o próprio eixo; não dependendo de fulcros externos, no eterno retorno do presente.

“O tempo é uma criança que brinca, movendo as pedras do jogo para lá e

para cá; governo de criança” (HERÁCLITO, 2012, p. 52). Nietzsche era um

admirador da obra de Heráclito. Mas por que? Compreender esta proposição é

imprescindível, pois ela institui não só o próprio método genealógico de Nietzsche,

mas recupera a mais importante de todas as experiências: a do “devir inocente e

assombroso como na representação de um “vir-a-ser” único e eterno na total

impermanência de todo o real que não persiste no agir, no “vir-a-ser” e no não-ser”

(NIETZSCHE, 2003, p. 102).

Como a “criança que brinca”, de Heráclito, pois somente neste momento é

possível uma experiência de liberdade, causada pela arte e por uma vida que

impõem os valores ao mundo e transforma toda a sua matéria, inclusive a história,

nas mais altas esferas do espírito e da cultura; assim fizeram os gregos míticos das

obras de Nietzsche, “este famoso e pequeno povo, no auge de sua maior força, um

sentido não histórico” (NIETZSCHE, 2003, p. 93).

É no presente que atribuímos sentido ao passado e ao futuro, e neste

momento-evento o que já passou encontra o que será, e o ser pode então acontecer

livre de amarras metafísicas, em um eterno retorno, em um imortal “sim” à vida,

afirmando-a a cada instante, pois estes instantes constituem o devir, não por ser

fruto do destino, mas por constituir o próprio ser como temporalidade e destinação.

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Nietzsche propõe o amor fati45 à vida sem que haja nada para negar, a vida

concebida em todos os seus aspectos, dos mais sublimes aos mais grotescos.

Ora, diferentemente do Camelo e do Leão, o estádio da “criança que brinca” é

o único capaz de criar; justamente, porque não conhece o tempo histórico. Leve sem

as pedras sisíficas da história e livre do conhecimento de Mefistófeles, ela é potente

para “fazer de conta”. Nietzsche utiliza três tipologias psicológicas para expressar

diferentes posturas diante da vida.

Como a borboleta que passa por três metamorfoses, o estádio da criança

precisa “atravessar” as outras duas formas. Nietzsche, inimigo do niilismo, não nega

os estádios anteriores, pelo contrário, os afirma. Qual a relevância da Verdade para

a criança? Nenhuma. Toda busca pela Verdade termina por se render à

intencionalidade: a verdade estará daqui em diante a serviço da vontade, não o

contrário.

Neste mundo, só o jogo do artista e da criança tem um vir a ser à

existência e um perecer, um construir e um destruir sem qualquer

imputação moral em inocência eternamente igual. E, assim como

brincam o artista e a criança, assim brinca também o fogo eternamente

ativo, constrói e destrói com inocência – e esse jogo joga-o o Eão

(Aiôn) consigo mesmo (NIETZSCHE, 2005, p. 49; 50).

No trecho supracitado, Nietzsche, inspirado por Heráclito, demonstra que a

criança não é o fim, uma meta, o resultado final de uma teleologia maior; ela é o

próprio devir, o movimento em toda a sua intensidade. A criança não brinca, ela é o

próprio brincar. Portanto, o devir-criança de Nietzsche é a indiferença perante o que

foi, o que é e o que será. É simplesmente a afirmação do devir; isto é, do ser. O

filósofo alemão conclui: “A maturidade de um homem é encontrar de novo a

seriedade que se tinha quando criança, brincando” (NIETZSCHE, 2000, p. 68).

Zaratustra, o profeta “adestrador de camelos”, deve orientar os seus poucos

discípulos para que passem pelas três metamorfoses do espírito; não como um

rebanho, mas como uma estrela que orienta os marinheiros em alto-mar. Inclusive

outra possível tradução para Zoroastro é a “estrela dourada”.

45

Termo latino (amor ao destino) utilizado por Nietzsche como uma postura de aceitação integral da vida, em

seus aspectos mais belos e horrendos, aceitação que só um espírito superior é capaz.

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“Eu vo-lo digo: é preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela

cintilante” (NIETZSCHE, 2000, p. 93). Zaratustra não tem seguidores, mas

discípulos. Eles não devem só seguir a estrela do mestre, mas ultrapassá-la;

precisam gerar suas próprias estrelas.

“Fazer nascer uma estrela”; não parece uma das tarefas das mais simples. O

presente trabalho já utilizou outras referências da astronomia: A supernova e o

buraco negro. As imagens celestes não foram só analogias, são uma espécie de

propedêutica para o desfecho desta empreitada.

Os pensadores para os quais as estrelas movem-se em órbitas

cíclicas não são os mais profundos: quem olha para dentro de si e

encontra vastos espaços e galáxias sabe quão irregulares são todas

as galáxias; elas conduzem ao caos e ao labirinto da existência.

(NIETZSCHE,2001, p.49)

A supernova é o momento da “morte de uma estrela”, quando uma grande

quantidade de energia é liberada. O Renascimento foi o testemunho histórico da

morte da “estrela divina”. O Buraco negro é o fenômeno que surge após o colapso

estelar; a modernidade foi a versão cultural deste evento, onde “tudo que era sólido

se desmanchava no ar”.

O próximo passo deste trabalho será em direção ao nascimento de novas

estrelas. Isso mesmo, “estrelas”, no plural. A pluralidade desempenhará um papel

basal nesta jornada.

Depois de falar sobre o estádio da criança, Zaratustra profetiza de que "o

homem é uma corda, atada entre o animal e o super-homem – uma corda sobre um

abismo", surge o equilibrista andando por uma corda suspensa e perseguido por um

palhaço que o faz cair, e é assim relatado (NIETZSCHE, 2000, p. 18). Abordaremos

esse trecho enigmático – no melhor estilo bíblico- capaz de ilustrar a situação do

homem sobre o abismo do niilismo, e a aparição de um ardiloso palhaço.

Esse trecho elaborado por Nietzsche expressa o aspecto humorístico de

Zaratustra e revela a ausência da pomposa gravidade dos escritos bíblicos e

filosóficos ocidentais. A ilusividade e a indefinibilidade são recorrentes nas profecias

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de “assim falou Zaratustra”; a técnica literária de Nietzsche suscita uma massa de

ideias, reflexões, significados simbólicos, associações, todo tipo de soluções e

pensamentos peregrinos. Todo esse efeito serve para mostrar a inutilidade de

pensamentos lógicos e intelectualizados para o dilema da vida. O filósofo alemão

evoca uma imagem e demonstra a situação: um homem fugindo de um incêndio

chegou à beira do abismo. O que fazer? O risco é iminente perante a sensação de

absurdo; um caminho tem de ser encontrado. Longe de um exercício de pessimismo

ou passividade, a “literatura de Nietzsche” faz do problema um contato com a

realidade imediata, o inaudito – esse deus desconhecido – e, quando o impasse é

alcançado, nada lhe resta a fazer.

Nada?! A resposta pode parecer surpreendente, principalmente em um

trabalho que almeja vislumbrar um antídoto para o niilismo, todavia a resposta é

assertiva. Não há resposta lógica; o dilema final deve ser alcançado pela vontade;

por isso o palhaço derruba o equilibrista; o palhaço é fonte de gargalhada, da arte,

de alegria, de temor. Assim o homem “pendurado à beira do abismo” não sabe o que

fazer a seguir.

Ele precisa largar o ponto de apoio, e “girar como uma criança”, utilizando as

próprias forças. Agora ele alcançará a liberdade de espírito, não uma liberdade de

gozo pleno e metafísico, mas a de alguém que não procura mais pontos fixos para

segurar; ele é capaz de, na escuridão do universo, brilhar como uma estrela.

O Caos (vazio) é a medida necessária para a percepção do brilho estelar.

Não há como burlar, evitar ou escapar da sensação do nada; ela deve ser

vivenciada.

Que lugar ainda resta para a arte? Antes de tudo, ela ensinou, através de milênios, a olhar com interesse e prazer à vida, em todas as suas formas, e alargar tanto nosso sentimento que por fim brademos: Como quer que seja a vida é boa. Essa doutrina da arte – sentir prazer na existência e considerar a vida humana uma parte da natureza (NIETZSCHE, 2001, p. 89).

Nietzsche, como um artista, almeja a paisagem de um “céu estrelado”; vasta

escuridão e luzes cintilantes contrastando. O homem, como outrora o seu Deus

Criador, tem podido fazer algumas coisas do nada. Dos eventos passados ele tirou

consolo, fez da morte uma jornada, e do sofrimento extraiu sentido. Cada

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experiência terreal, cada desventura, cada vício humano virou material para a

composição de uma existência tragicômica. Viu heroísmo na guerra, amor na dor,

riso na tolice, ressureição na morte. Espectadores surgiram para presenciar artistas

tornarem visível o invisível. A música rompeu o silêncio, o tempo foi capturado pela

pintura, as palavras edificaram mundos.

A experiência fundamental profetizada por Nietzsche é a do niilismo e do novo

tipo do homem capaz de se sustentar em meio ao nada abissal. O homem que

perdeu o centro, centro que se tenta, inutilmente, reaver. Efetivamente, não existe

mais homem. Agora, existem apenas seus sintomas.

No Niilismo criativo, devemos experimentar e desfrutar a sorte niilista da

contemporaneidade, tentando abrir novos caminhos para dela sair. Mas antes de

pretendermos superar o niilismo, precisamos captar-lhe a essência, compreender

algo inerente à sua própria história, nas diversas feridas abertas histórico-culturais.

O Niilismo Criativo é como brincadeira de criança; preparo para o advento de

um novo começo. Nietzsche compreendia que ninguém poderia tomar o lugar do

criador. Dentro desta nova concepção, em “O Crepúsculo dos ídolos”, Nietzsche

esboça uma nova proposta que seria o título de um dos textos de sua obra

inacabada: “A Vontade de potência”. O postulado utilizado pelo autor para substituir

e combater o esteticismo da tradição filosófica foi à noção de fisiologia da arte,

claramente mais coerente com a proposta nietzschiana, por incluir o corpo na

gênese da arte e a arte como manifestação corpórea da natureza.

O ator, o mímico, o dançarino, o músico e o poeta lírico, são aparentados em seus instintos e não constituem mais do que um, mas pouco a pouco se especializaram e se separaram e mesmo até a oposição (NIETZSCHE, 2006, p. 93)

A arte nada mais é do que uma descarga emotiva e dionisíaca que atinge o

corpo inteiro e todos os sentidos, para logo após ser hierarquizada pelo impulso

apolíneo.

Neste estado, o homem transforma as coisas até que elas lhe alcancem a perfeição. Esta necessidade de transformar em perfeição é a arte. Mesmo tudo que ele não é, torna-se para o homem prazer tomado em si mesmo, na arte, o homem desfruta de si mesmo com perfeição (NIETZSCHE, 2006, p. 102).

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Para que o criador execute esta tarefa hercúlea, é necessário que haja

abundância de vida, e ciência da nova oposição entre valores morais e valores

estéticos, superando a velha tradição hegeliana que separava o “belo da arte e o

belo da natureza”. A ousada proposta nietzschiana prega a união entre o natural e o

artístico, o belo e o horrendo, a sensualidade e a pureza, não mais avessa à vida e

às paixões, diferentemente de como a cultura ocidental se posicionou em prol de um

além do mundo, seja sobrenatural ou futuro, que de nada serviram a não ser para

caluniar o melhor de nosso mundo-presente. A fisiologia da arte concebe toda a vida

como aparência, fenômeno, ilusão, mito, efeito ótico em uma inesgotável produção

de sentidos e perspectivas criadas pela vontade de poder artístico, semelhante à

vontade grega, reabilitada pelo mito de Dionísio e Apolo:

Eles consentiam em viver, para isso é necessário ter a coragem de permanecer na superfície, na dobra, na epiderme, adorar a aparência, acreditar nas formas, nos sons, nas palavras, em todo o Olimpo da aparência! Esses gregos eram superficiais -– por profundidade! E não é precisamente a isso que retornamos, nós os temerários do espírito que escalamos o pico mais alto e mais perigoso ao redor e olhamos tudo lá embaixo? E não somos precisamente nisso gregos? Adoradores de formas, de sons, de palavras? É precisamente por isso – artistas (NIETZSCHE, 1986, p. 35).

Sobre este ponto, Nietzsche evoca outra dimensão vital para a formulação de

sua proposta: A necessidade de Vontade de poder46. A partir do momento que a vida

é postulada como obra de arte, consequentemente, admitimos que a vida é: vontade

de potência. Dentro do labirinto, que constitui o pensamento nietzschiano, viver

agora não é somente uma atividade de adaptação às condições externas, a vida, é

antes de tudo uma ação criadora, que privilegia a criação e a intensifica, buscando a

diferença e a multiplicidade, hierarquizando os impulsos anárquicos e forjando

valores.

Efetivamente, todo o livro reconhece apenas um sentido artista e um sentido artista oculto em tudo que acontece - um deus se quisermos, mas com certeza somente um deus artista inteiramente sem moral, sem escrúpulo, que, ao construir como ao destruir, no bem e como na maldade, não quer conhecer indiferentemente senão seu prazer e seu domínio de si, um deus artista que ao criar mundos se livra da

46

A vontade de Poder é uma perspectiva nietzschiana sobre o impulso mais fundamental do ser. Nietzsche não

concebe como uma vontade de viver, pois a vida não pode desejar viver, mas uma vontade de potência, vigor

que inventa o próprio viver. Interpretada de forma equivocada por nazistas, como uma vontade de ter mais

poder. Para o filósofo alemão, a vontade de potência é caracterizada pela aspiração de uma vida plena, aumento

de energia no processo de criação, a força que contrasta com o niilismo.

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angustia, de sua plenitude, de sua superabundância, dos sofrimentos e das contradições que o oprimem. O mundo é a cada instante a libertação bem-sucedida do deus com a visão eternamente em mudança, eternamente nova, do ser mais sofredor e mais contraditório, do mais rico em oposições e que não sabe livrar-se senão na aparência, toda esta metafísica de artista pode ser chamada de arbitrária, inútil, fantasia – o essencial e que ela já trai um espírito que tomará posição, correndo seus riscos e perigos, contra a interpretação dos significados morais do ser (NIETZSCHE, 2002, p. 122).

A arte é um dizer “sim” à vida, o próprio ato criador. O essencial em sua

doutrina é que com a morte da verdade absoluta, não precisamos mais descobri-la

ou desvendá-la, mas inventá-la por meio de interpretações que criem valores e

construam a realidade de acordo com a sua perspectiva. Desta forma, ao

interpretarmos, estabelecemos uma relação de poder, muito mais próxima da

violência do que da tradicional concepção de elucidação; em termos nietzschianos o

martelar, tornar senhor de algo, apoderar-se e procurar resistências. A força da

interpretação é caracterizada pela capacidade de sua duração e pela capacidade de

reconhecer novas formas de interpretação que suplantem as velhas. Desta forma:

“Pelo menos estamos distanciados da ridícula imodéstia de decretar, a partir de

nosso ângulo, que somente dele pode-se ter perspectivas” (NIETZSCHE, 2002, p.

140).

Mas o que significa o ato de criação despida de sua acepção teológica,

afinal? Deus morreu para o mundo dos homens, o ato de criar não tem a mesma

conotação religiosa de originar algo do nada e finalizá-lo. Segundo a concepção de

Nietzsche, a criação é invenção constante, projeto sempre inacabado, de

interpretações sobre interpretações mais potentes, criar no sentido de sua palavra

irmã: crescer.

Não podemos confundir a atividade de criação com um simples fazer humano,

prático trabalho ou função, pois criar está ligado a uma concepção psicológica e

antropológica; é uma ação ininterrupta, confirmando a vida constantemente, é

experimentar, no sentido de sair do perímetro, burlar a mesmice, pois “Só na criação

há liberdade” (NIETZSCHE, 2001, p. 85).

A criação artística também não é uma ação de um sujeito pensante,

substancial, pois esta concepção, tão cara ao ocidente, nada mais é do que um

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feitiço da língua, uma exigência, armadilha da gramática, uma tentativa de substituir

Deus pelo conceito de humano, que teria, em uma nova narrativa; a mesma função

de tentar fixar um sentido e sustentar a presença ou a permanência, seja de quem

conhece ou do objeto conhecido. Nietzsche reage a esta interpretação, conhecida

pela fórmula humanista, que apregoa com ar de modéstia e boa vontade a tão

desejada emancipação do sujeito, mas que de forma hipócrita dissimula a sua,

inflada, vontade de potência e de verdade eterna. Contra tal mitologia do sujeito,

Nietzsche afirma que: “Não há um ser por trás do fazer, do atuar, do devir (...) ação é

tudo” (NIETZSCHE, 2001, p. 88).

Quando o vivente cria, ele não busca o horizonte, ele o inventa, pois o mundo

sensível não é dado para ser descoberto, mas é uma constante construção da

realidade em seu devir.

Um artista da própria existência, não é mais sujeito, mas verbo que abandona

a posição contemplativa e inventa a si mesmo, não mais por meio da reflexão,

cálculo ou análise, mas pela valoração e pela criação de valores superiores que

potencializam o existir, e libertam o viver, concretizando o salto que vai do “conhece-

te a ti mesmo” para o imperativo nietzschiano: “Torna-te aquilo que és”

(NIETZSCHE, 2006, p. 43).

Surge a questão: Qual o papel das obras de arte? Qual a função de obras

artísticas em um cenário no qual a própria vida torna-se um evento artístico do ser?

Nietzsche não se posiciona contra as obras de arte, ele efetua uma crítica à primazia

dada às obras em relação ao processo de criação.

Depois da tarefa alquímica de transformar a vida, com suas dores,

desgostos, desapontamentos, imundices e crises em algo de “bárbaro” - dentro das

duas concepções dadas à palavra, fantástico e terrível- às obras de arte, como os

poemas, música, teatro, dança, escultura, entre outras, são apenas apêndices,

frutos do excedente de força. Nietzsche retrata sua concepção no aforismo: “Contra

a arte das obras de arte”.

A arte deve antes de tudo e primeiramente embelezar a vida, portanto, fazer com que nós próprios nos tornemos suportáveis e, se possível, agradáveis uns aos outros: com essa tarefa em vista, ela nos modera e nos refreia, cria formas de trato, impõe aos indivíduos leis do decoro, do asseio, de cortesia, de falar e calar no momento

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oportuno. A arte deve, além disso, ocultar ou reinterpretar tudo o queé feio, aquele lado penoso, apavorante, repugnante que, a despeito de todo esforço, irrompe sempre de novo, de acordo com o que é próprio à natureza humana: deve proceder desse modo especialmente em vista das paixões e das dores e angústias da alma e, no inevitável e irremediavelmente feio, fazer transparecer o significativo. Depois dessa grande, e mesmo gigantesca tarefa da arte, a assim chamada arte propriamente, a das obras de arte, é um apêndice. Um homem que sente em si um excedente de tais forças para embelezar, esconder e reinterpretar procurará, por último, descarregar-se desse excedente também em obras de arte (...) – Mas, normalmente, começam a arte pelo fim, penduram-se à sua cauda e pensam que a arte das obras de arte é a arte propriamente dita, que a partir dela a vida deve ser melhorada e transformada – tolos de nós! Se começamos a refeição pela sobremesa e degustamos doces e mais doces, o que é de admirar, corrompemos o estômago e mesmo o apetite para a boa, forte, nutritiva refeição a que nos convida à arte!” (NIETZSCHE , 2003, p. 105).

Nietzsche chega a reconhecer em seu trabalho que está mais próximo dos

artistas do que dos filósofos, pois na arte o encantamento da vida perdura no amor

às coisas do mundo sensível, e provoca afirmando a necessidade de voltar à arte

contra o saber, e seu instinto de conhecimento que desencanta o viver ao forjar

ideais como: o Belo, a Verdade, a Justiça, sempre inalcançáveis, em sua esfera

suprassensível; menosprezando a vida que lhes fornece a condição básica para

serem formulados. Compreender tal processo na obra nietzschiana é entender e

sentir que: o impulso estético da arte é o retorno por excelência à vida. Arte no

sentido amplo do termo, como forma de potência, transformação e valoração das

forças libertadoras da vida, contra um saber teórico que tem por vício, o triste hábito

de reduzir o fenômeno do viver a desencantadas explicações mecanicistas que

visam mais do que entender os processos da vida, almejam corrigi-los. Nietzsche

propõe a postura artística como o antídoto para o pensamento desencantado e aloja

a problemática da própria existência da arte como a atual “teodiceia” de nossa

cultura e questiona: “Até onde alcança a arte o âmago do mundo? E há além do

artista outros ímpetos artísticos? Esta questão, como se sabe, foi o meu ponto de

partida: E eu disse “Sim” à segunda questão, e a primeira, o próprio mundo não é

nada senão arte” (NIETZSCHE, 2001, p. 41).

Para o filósofo, sumariamente, a Ciência e Filosofia garantem o nosso

sobreviver, mas somente a arte poderá oferecer dignidade para um viver autêntico,

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no qual a vida, o sonho e a embriaguez se misturam; ora como verdade, ora como

ilusão em um infinito jogo do devir, como uma brincadeira de criança.

Michelangelo não retratou só “A Criação de Adão”, ele registrou uma

mensagem, um fantasma que ronda e sussurra: vivemos esta grande época do

nada, da ausência de Deus, onde precisamos, como um artista, renomear e

ressignificar nossas vidas; transformando o niilismo passivo que nos assola e

adoece em um niilismo criativo que usa a “tela branca do nada” para pintar e

inventar a vida como obra arte.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS: A Mão de Adão.

E, como a imaginação dá corpo a

Contornos de coisas ignotas, a pena do poeta Lhes dá forma, e ao etéreo nada

Um lugar de morada e um nome.

(SHAKESPEARE, Sonho de uma Noite de Verão, ato V Cena 1).

O dedo indicador de Adão teve que ser pintado novamente em razão de um

dano provocado pelo desabamento ocorrido no século XVI. A mão de Adão precisou

ser restaurada. Como em um mau presságio, a mão que quase tocou o divino caiu

em ruínas. Mas o terremoto não foi a única ameaça enfrentada pela obra de

Michelangelo.

Os debates em torno da obra do pintor florentino continuaram até o papado

seguinte, de Paulo IV, que chegou a cogitar em destruir toda a obra. Com uma

medida emergencial, Michelangelo conseguiu evitar que seu trabalho fosse

desperdiçado: com “retoques” no afresco, o pintor cobriu as “vergonhas” dos

personagens nus.

Biagio da Cesane, o mestre de cerimonias do papa, ao ver a pintura, relatou

ao sumo pontífice seu descontentamento com a “obra indecente”. O temperamental

Michelangelo não aceitou as críticas direcionadas ao seu trabalho. Em um ato

vingativo, retratou Biagio na obra “o Juízo Final” completamente nu, medonho,

obeso, com o corpo envolto por uma serpente, acompanhado de demônios.

A "Criação de Adão" foi retratada na parte central do teto entre 1508 e 1512

medindo 280 cm por 570 cm, a obra é uma espécie de catarse de um conjunto de

passagens do Antigo Testamento retratadas pelo artista, durante o pontificado de

Júlio II (1503-1513).

Ao retornar para Roma em 1508 Michelangelo recebeu uma encomenda do

Papa Júlio II que não lhe agradou, decorar a abóbada da Capela Sistina.

Michelangelo nunca escondeu sua predileção pela escultura. Felizmente para a

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história da Arte, o mestre não conseguiu desvencilhar-se dos caprichos de Júlio II e

começou a produzir os afrescos da Capela.

No seu interior deparamos com duas grandes obras: "A Criação de Adão" e o

"Juízo Final". Afrescos que certamente encontram-se em todas as seleções de obras

artísticas mais significativas da história das artes. Ambos concebidos pelo florentino

Michelangelo Buonarroti, nascido no ano de 1475. O artista faleceu 89 anos depois

em Roma. Michelangelo participou de um amplo movimento cultural europeu situado

na passagem do Período Medieval para o Período Moderno, denominado

Renascimento Cultural. O movimento postulava o racionalismo, o antropocentrismo

e o realismo a partir da rejeição aos principais fundamentos da cultura medieval,

concebidos de acordo com as conveniências do pensamento cristão - baseado na

autoridade - a saber; o teocentrismo e o dogmatismo.

No início do presente trabalho, comparamos a atual empreitada à obra “Um

Conto de Natal”, de Charles Dickens. Na narrativa três fantasmas rondam e visitam

Ebnezer Srcooge, o protagonista avarento. Cada fantasma representava um período

temporal: passado, presente e futuro. Começamos anunciando o que seria uma

“história de fantasmas para gente grande”. Nossa empreitada procurava os

fantasmas que habitavam a obra “A Criação de Adão” e o que eles poderiam revelar

sobre o contemporâneo.

Seguimos a mesma lógica: o primeiro fantasma, o passado, abordou o luto

pela morte de Deus. O homem tornou-se um “sem-Deus”, sem centro, despencando

pelo infinito. Apesar de imortal, Deus morreu e gerou uma ferida colossal na cultura

ocidental; desde então, o mundo organizado e racional passou por uma

fragmentação. Essa morte gerou inúmeros fantasmas; sucedâneos ávidos pelo trono

vazio, mas que não tiveram força para sustentar seus respectivos mundos.

Warburg, historiador dos fantasmas, reconhece que o Renascimento

desempenhou um papel basal nesse processo; ele emerge em um momento

fronteiriço para história ocidental, como uma supernova, o movimento demarcou a

morte de uma forma de pensar liberando uma grande quantidade de luz sobre a

cultura.

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Após a supernova do Renascimento, o niilismo agravou o mal-estar na

cultura. A modernidade foi tragada pelo coração do buraco negro; o poder de tração

e nadificação deixou a terra devastada; e, esse, é o nosso fantasma do presente.

Warburg descobriu no Renascimento uma época habitada por imagens

fantasmas, um momento ambivalente, uma grande ferida aberta no tempo-espaço,

neste contexto nasceu o “mensageiro Miguel-Ângelo”, talvez o último anjo de um

Deus morto e um céu esvaziado. O “divino” retratou o momento da criação de Adão,

sem perceber que havia, simultaneamente, registrado a criação à beira do abismo:

restava ao homem: ruir ou criar.

Eis o fantasma do futuro, aquele que nos mostra a arte como um caminho

alternativo para o sagrado. A ferida causada pela morte de Deus é fonte de dor para

contemporâneo, mas também possibilidade de salvação. A “imagem que cura”,

poderia ser o título deste trabalho. Usando a dor como fonte de significação, na

ausência de um criador a priori, precisamos assumir a postura artística. A imagem-

sobrevivente da obra a criação de Adão foi vinculada a criação da vida como obra de

arte. Tacitamente, o ato de criar é a real imagem e semelhança entre o divino e o

“além-do-homem”; a conclusão e o antídoto contra o niilismo.

Para os “novos criadores”, o mundo futuro só será possível a partir da

transvaloração dos antigos valores morais fundamentados em Deus. Portanto, a pré-

condição necessária aos novos criadores será a "morte de Deus" que desencadeará

assim um abismo, um vácuo, um grande vazio (niilismo) para o nascimento de uma

nova concepção civilizatória. Por meio da morte de Deus será possível o

aparecimento do "Além-do-Homem" como referencial de utrapassamento do próprio

homem: “Companheiros, procurem o criador, e não cadáveres; nem, tampouco,

rebanhos e crentes. Participantes na criação, procurem os criadores, que escrevam

novos valores em novas tábuas" (NIETZSCHE, 2000, p. 77).

Todos convivemos com um abismo na vontade. A passividade exemplifica

nossa condição no contemporâneo, poucos de nós somos capazes de repetir o feito

de Michelangelo, que conseguiu criar em meio à verdade niilista aniquiladora.

Todavia, compartilhamos o dilema de ser tudo e não ser nada, em nós mesmos.

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O niilismo passivo envenenou de morte todos os valores e ideais, esperanças,

e pulsões metafísicas, todas as tentativas de dar algum sentido e segurança para a

vida, em face do abismo de absurdo que todo momento a ronda e ameaça. As

reflexões de Nietzsche empurram-nos até o ponto de nos sentir completamente nus,

perante uma vida igualmente despida de sentido.

Se Deus no Antigo Testamento é “aquele que é”, o homem contemporâneo é

justamente a sua inversão: “aquele que não é”; um nada consciente de si. Ciente da

sua queda no tempo histórico, o homem vive o dilema de ser livre e, ao mesmo

tempo, confinado na prisão da História. Quer buscar salvação, mas não consegue

afirmar valores positivos, afogado em arrazoados metafísicos – o homem não

acredita mais em Deus, mas continua desejando ser imortal.

O niilismo da cultura contemporânea não é só definido pela crise de valores: é

também a constatação de que o agir humano não pode garantir um final feliz. A

subjetividade, caraterística máxima da modernidade, demonstrou ser incapaz de

sustentar o hiato entre realidade e utopia. Sem Deus, nem História, nem progresso,

nem Revolução o contemporâneo se encontra no abismo do eterno presente.

Assim, à beira do abismo ou na terra devastada dos “pós-qualquer coisa”, por

entre as cinzas de um Deus sem face e assombrado por muitos fantasmas, o

homem corre o risco de ser tragado pelo buraco negro do niilismo.

Aqui, estamos. Muitos caminhos percorridos. Aonde chegamos, afinal? A

nossa frente, o desconhecido, aquilo que ainda não compreendemos. A

contemporaneidade não tem coordenadas. A cultura ocidental criou a imagem de um

Deus invisível, onipotente, onisciente, onipresente e eterno, cuja ausência é

insuportável.

Por ter controlado de maneira tão absoluta a imaginação do ocidente ao longo

dos séculos, o Deus-Criador deixou um sentimento inquietante de vazio, quando sua

influência, por fim, declinou. Não foi por acaso que novos movimentos, do marxismo

à cientologia surgiram para substituir a narrativa bíblica da criação. Cada uma das

“novas religiões” apresentava “provas irrefutáveis” da veracidade de suas

afirmações.

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É bastante quanto as crenças do passado, distante e recente. Mas o que

dizer sobre o futuro? Certamente, ao menos em algumas partes do ocidente, a

religião é vista com enorme suspeita. Atualmente, muitos desconfiam de todas as

crenças. Muitas pessoas preferem passar pela vida sem acreditar em forças

sobrenaturais. Acreditam que podem “se virar” com o consolo da Ciência. Mesmo

em regiões do mundo consideradas profundamente tradicionalistas, como o Oriente

Médio, o mundo está se tornando mais complexo, e as antigas certezas, mais

escorregadias.

É obvio que as inseguranças mudaram bastante desde o dia dos Homens de

Neandertal, que temiam o mau tempo, animais selvagens, o escuro da noite, a

doença, a seca e a falta de caça. No entanto as inseguranças continuam presentes

em nossas vidas, e é pouco provável que desapareçam no futuro. Suspeitamos,

portanto, que novas concepções de mundos serão criadas. A que medos e anseios

elas responderão? Isso dependerá de nós, de quão seguro nos pareça o mundo.

Em uma última e ligeira digressão, (inspirados por Warburg) não podemos

deixar de notar que a imagem fornecida pelo presente trabalho é semelhante a

algumas interpretações da Cabala47, (seria o presente trabalho mais um eco

fantasma?) começando pela ideia de que Deus não expulsou o homem do paraíso,

mas o homem o expulsou da sua vida.

A Criação de Adão de Michelangelo foi realizada em um período de

transgressão. A natureza transgressora do mito adâmico nos impulsiona. As

inúmeras passagens bíblicas, principalmente as que se referem a personagens,

como Adão e Eva, Abraão, Isaque, Jacó e até Lot e suas filhas, são recursos para

ilustrar a recorrente importância da trapaça. Mostrando que a cultura hebraico-cristã

– e até mesmo a ocidental como um todo – foi construída e desenvolveu-se através

desse artificio.

Adão pode ser traduzido como “o barroso”, “terroso”, “terra vermelha” em uma

possível referência a sua criação. Mas é sabido que línguas antigas carregam

inúmeros enigmas, Adão também pode ser “traduzido”, por meio de um trocadilho,

47

Cabala ou Kabbalah significa, literalmente, “receber tradição”. Compilado de tradições alternativas, é um

método esotérico que se originou no judaísmo. Não é uma denominação religiosa em si, mas uma forma de

interpretação religiosa mística, semelhante ao sufismo islâmico, ou a mística cristã.

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como “trapaça”. Uma trapaça, a criação como trapaça divina. O primeiro homem não

parece um trapaceiro, carece até mesmo de astúcia. De quem é, então, a trapaça?

Deus é, provavelmente, o maior personagem da literatura ocidental. Possui

inúmeros rostos: temperamental no velho testamento, bom pai para cristãos,

abstrato para filósofos, mas trapaceiro48 é um epíteto surpreendente. Talvez sua

maior trapaça tenha sido a criação do homem.

A narrativa Bíblica, que inspirou Michelangelo, possivelmente contém a maior

trapaça da tradição ocidental. Um Deus trapaceiro pode parecer uma imagem

pejorativa, mas possui um grande potencial hermenêutico.

Em sua vasta solidão, Deus cria o mundo e depois o homem, criado à sua

imagem e semelhança. O mesmo Deus repreende o homem quando ele come do

fruto da arvore do conhecimento; e protesta: “agora ele é como um de nós. ”

A mensagem é dúbia: “seja como eu, mas não ouse ser demasiadamente

parecido comigo”. Pouco importa a “veracidade literal da narrativa”, o que importa

nesta altura é a mensagem fantasma que sobreviveu desde o velho testamento,

passando pela criação de Adão de Michelangelo até os dias contemporâneos.

As religiões monoteístas comumente apresentaram certa ambivalência com

as imagens. Inspirados em sua herança hebraica os homens eram perseguidos pelo

velho medo da idolatria. O segundo mandamento condena imagens. As palavras do

Êxodo são mais incisivas (20:4-6) “não farás para ti imagem de escultura, nem

alguma semelhança do que há em cima nos céus, nem embaixo na terra, nem nas

águas debaixo da terra”; mas se fizer...se ousar...se for capaz de criar...se for capaz

de me alcançar e ultrapassar, de fazer coisas maiores do que as feitas por mim...

faça, então, como eu, trapaceie e transgrida. – um mestre é bem pago, quando

superado.

48

É importante esclarecer o sentido do termo no texto: nas mitologias, especialmente as indígenas, o Trapaceiro

se constitui como um “Herói-Civilizador”. Traço recorrente em demiurgos, sua importância está baseada mais na

continuidade do mundo, do que na tarefa de iniciador. Também conhecido como “Transformador”, a astúcia é

sua característica basal. É comumente denominado como o Velho. As trapaças, geralmente, beneficiam a raça

humana. Não raro, sua presença mitiga a solenidade. São exemplos: Prometeu, Loki, Macunaíma, etc.

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O fantasma de Deus como o ancião dos fins dos dias, do livro de Daniel, que

Willian Blake transformou em “Velha ignorância” ou “velho pai de ninguém nas

alturas” continua a assombrar o homem (BLAKE, 2013, p. 56). Deus também deve

ter um abismo para si, pois, sem um momento negativo no ato da criação, Deus e o

cosmos se fundiriam. A presença avassaladora de Deus, para todos os efeitos, deve

também se retrair, ou não haveria realidade.

Segundo algumas interpretações cabalísticas, esse momento é denominado

como zimzum49 (contração divina), é a catástrofe-criação inicial de um abismo

primordial operada por Deus. Possivelmente, queda, trapaça e sabedoria sejam a

mesma coisa.

A palavra Elohim50, uma das formas como Deus é denominado, também pode

ser traduzida como “barro”. Essa genealogia indica uma herança dos ícones feitos

com argila. Se Deus transcendeu a forma de barro, o homem, semelhante por ter

sido feito do barro, agora precisa criar seu próprio mundo, honrando o criador

anterior. Talvez em algum lugar do cosmos, Deus, ainda, espere pelo homem,

espere que o homem seja como ele: um criador, à sua imagem e semelhança.

Mas voltando para história do “outro divino”, após quatro anos de agonia e

êxtase, Michelangelo concluiu o seu trabalho. No dia 2 de novembro de 1512, o

artista retirou os andaimes que encobriam a perspectiva completa da obra,

permitindo a presença do papa à capela, para que pudesse ver o resultado. A

pintura ilustrava toda a trajetória humana. Trezentos personagens bíblicos

desfilavam pela abóbada da capela. O papa, Júlio II, foi o primeiro a ter a visão de

um esplendor criativo de beleza e genialidade jamais pensadas até então, imagem

que conquistaria milhões de olhares por mais de cinco séculos, atraindo e

fascinando pessoas de todas as culturas.

No teto da Capela Sistina estão nove cenas do Gênesis, dentre elas “A

Criação de Adão” é a mais popular. Um símbolo da influência desse afresco é o

encontro das mãos de Deus e Adão, reproduzido inúmeras vezes na cultura popular.

49

Zimzum ou Tzimtzum refere-se à noção cabalística de contração ou constrição de Deus no momento da

Criação. Sua função é possibilitar a existência independente do mundo. 50

Elohim é um substantivo que se refere a Deus. Usado no plural significa “deuses”. A compreensão é nebulosa,

mas pode ser traduzida como “argila ou barro”. O termo foi, possivelmente, absorvido por uma influência

estrangeira.

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A mão de Adão foi retratada, por Michelangelo, à imagem e semelhança a da figura

divina. Após os danos causados pelo terremoto, a mão adâmica foi restaurada; mas

e as nossas mãos?

Se a mão de Adão tocará o divino novamente; se os seus braços serão

capazes de sustentar um mundo nadificado; se os seus dedos conseguirão, a partir

do nada, criar novos mundos, como obras de arte, são questões que escapam do

escopo do atual trabalho. Mas uma coisa é certa: quanto ao indignado Biagio da

Cesena, aquele que recriminou a obra do “artista divino”, ele continua queimando no

inferno criado por Michelangelo; até hoje.

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