Chesterton - O Homem Que Foi Quinta-feira

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    G.K. CHESTERTON

    O HOMEM QUE FOI

    QUINTA-FEIRA

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    Biblioteca So Miguel

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    CAPITULO I

    OS DOIS POETAS DE SAFFRON PARK

    Para as bandas do poente de Londres refulgia, como overmelho esfarrapado de uma nuvem ao entardecer, o subrbiode Saffron Park. Totalmente edificado com ladrilho brilhante,ostentava uma fantstica linha de telhados e uma extravagantelinha de caladas. Fora obra de um construtor especulativo,miro em assuntos de arte, que identificava sua arquiteturaalgumas vezes com o estilo Rainha Elizabeth e outras vezes como estilo Rainha Ana, sob a visvel impresso de que as duassoberanas eram uma s. Com alguma justia, Saffron Parkpassava por colnia de artistas, embora nunca houvesse pro-duzido razoavelmente qualquer gnero de arte. Mas, se suaspretenses a ncleo intelectual eram um tanto descabidas, suaspretenses a recanto aprazvel eram realmente incontestveis.O visitante, que pela primeira vez contemplasse aquelas esdr-xulas casas vermelhas, seria levado a cogitar desde logo nasingularidade que devia marcar o feitio mental das pessoas queas habitavam. E quando encontrasse tais pessoas no ficariadesapontado. O local era no s aprazvel, mas perfeito, desdeque no fosse tido em conta de miragem, mas de sonho. Aindaque os habitantes nada tivessem de "artistas", tudo ali era ar-tstico. Aquele rapaz de cabelos compridos e vermelhos e defeies impudentes no havia de ser necessariamente um poeta,mas era irrefutavelmente um poema. Aquele cavalheiro idoso,de barba branca e enxovalhada e de chapu tambm branco eenxovalhado, um pndego venervel, no havia de ser obriga-toriamente um filsofo, mas, no mnimo, devia fornecer moti-vos filosofia alheia. Aquele cavalheiro cientfico, calvo comoum vo, de pescoo pelado como o. de uma ave, no fazia jusaos ares de cientista que alardeava. No descobrira novidades

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    em biologia; mas poderia, por acaso, ter descoberto um esp-cime biolgico mais raro do que sua pessoa? Por isso, e so-mente por isso, o lugar merecia estudos pertinentes e demo-rados; tinha de ser examinado menos como uma oficina de

    artista do que como uma delicada, posto que consumada, obrade arte. O estranho que chegasse a participar de sua atmosferasocial teria a sensao de estar participando da representaode uma comdia.

    Sua atraente irrealidade avultava de modo especial nocrepsculo, quando sobre os fantsticos telhados incidiam asltimas reverberaes da luz. Nesses momentos, todo aquelebairro insano parecia projetar-se no espao como uma nuvem

    flutuante. Esta impresso era ainda mais fortemente verdicanas muitas noites de festa local; pois, nos recessos dos pequeni-nos jardins iluminados, enormes lanternas chinesas pendiam dervores minsculas como frutos monstruosos e sinistros. E aimpresso foi excepcionalmente forte naquela noite, da qualainda se guardam vagas recordaes e na qual o poeta dos ca-belos de fogo foi o heri. No se pense que aquela foi a nicanoite em que le figurou como heri. Em muitas outras, os

    que passavam em frente ao seu jardim podiam ouvir-lhe a vozsonora e didtica promulgando leis para os homens e, especial-mente, para as mulheres. Nessas ocasies, a atitude das mulhe-res constitua mesmo um dos paradoxos do lugar. Pertenciamquase todas categoria das vagamente chamadas mulheres eman-cipadas e proclamavam ali seus protestos contra a suprema-cia masculina. Entretanto, estas mulheres modernas consentiamem regalar um homem com a inusitada cortesia jamais recebida

    por le de uma mulher comum: a de escut-lo enquanto leest falando. E Mr. Lucian Gregory, o poeta dos cabelos ver-melhos, era um homem digno de ser escutado, mesmo quedevesse a gente rir-se dele no fim. Entoava a velha cantiga daanarquia da arte e da arte da anarquia com petulante frescor,o que provocava momentneo prazer. Ajudava-o, at certoponto, a cativante singularidade de sua aparncia, da qual leprocurava tirar o maior efeito. A cabeleira vermelho-escuro,

    dividida ao meio, era literalmente igual de uma mulher: sua-vemente encaracolada, como a de uma virgem de um quadropr-rafaelista. Entretanto, do interior dessa moldura oval, qua-se piedosa, avanava uma cara insuspeitadamente grosseira ebrutal, e o queixo despontava com aspecto desdenhoso e zom-beteiro. Essa mistura ao mesmo tempo deleitava e abalava os

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    nervos de uma populao neurtica. Era uma blasfmia ambu-lante, uma fuso do anjo e do macaco.

    Aquela noite, se no merece ser lembrada por outro mo-tivo qualquer, permanecer, contudo, na memria dos habitan-

    tes do lugar em razo do extraordinrio crepsculo que a prece-deu. Parecia o fim do mundo. O cu se cobrira de plumagemvivida e palpvel; dir-se-ia que as penas que adejavam no ar vi-riam tocar os rostos das pessoas. No alto da abbada as penasacinzentavam-se, tomando os mais raros matizes de violeta emalva e tons absurdos de rosa ou verde plido. Mas, para oslados do oeste tudo era indescritvel, transparente, apaixonante.As ltimas plumas escarlates escondiam o sol como se este fosseuma coisa boa demais para ser vista. Tudo ali se aproximavaexcessivamente da terra, como se quisesse contar uma assusta-dora confidencia. O empreo mesmo parecia um segredo. Ex-primia aquela esplndida pequenez que a alma do patriotismolocal. O prprio cu parecia pequeno.

    Repito, h vrias pessoas que s relembraro aquela noi-te em virtude do cu opressivo. Outras h, porm, que podem

    relembr-la por ter assinalado a apario do segundo poetade Saffron Park. Por muito tempo, o revolucionrio dos cabelos vermelhos reinou sem rival. Mas, na noite que se seguiuquele crepsculo assustador, sua solido teve fim inopinada-mente. O novo poeta, que disse chamar-se Gabriel Syme, eraum sujeito calmo e corts, de barbicha pontuda, bem cuidada ecabelos amarelados. Mas, em pouco tempo, adivinhava-se quele era menos manso do que aparentava. Particularizou sua

    chegada por diferir de Gregory, o poeta estabelecido, em tudoquanto dizia respeito natureza da poesia. Dizia-se um poetada lei, um poeta da ordem; ia mais alm ainda: dizia-se umpoeta da respeitabilidade. Por isso, alastrou-se, entre os mora-dores de Saffron Park, a suspeita de haver le despencado da-quele cu inverossmil.

    Com efeito, Mr. Lucian Gregory, o poeta da anarquia, fa-rejou um nexo entre os dois acontecimentos.

    Admito, exclamou em seu tom subitamente lrico, ad-mito que s numa noite assim, de nuvens e cores cruis, pode-ria ocorrer na terra um to grandioso portento, como o , naverdade, um poeta respeitvel. Voc afirma que um poetada lei e eu afirmo que voc uma contradio em termos. Es-panta-me somente que no tenha havido cometas e terremotosquando voc surgiu neste jardim.

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    O homem dos brandos olhos azuis e da barbicha plida epontuda suportou essas rajadas com certa solenidade submissa.O terceiro membro do grupo, Rosamond, irm de Gregory que tinha deste os cabelos ondulados e vermelhos, emborapossusse um rosto muito mais afvel riu com espanto ereprovao, como habitualmente fazia diante do orculo fami-liar.

    Gregory recomeou num tom de alta bonomia oratria. Um artista o mesmo que um anarquista, sentenciou.

    Voc pode inverter a ordem das palavras, se lhe aprouver. Umanarquista um artista. O homem que atira bombas um ar-tista, porque prefere um grande momento a tudo o mais. Es-

    se homem percebe que valem muito mais o sbito claro deuma flama viva e o estampido de uma detonao perfeita doque os simples corpos desarticulados de alguns esbirros. Umartista afronta todos os governos, omite todas as convenes.O poeta s est vontade na desordem. No fosse assim, acoisa mais potica do mundo seria a estrada de ferro subter-rnea.

    E mesmo, confirmou Mr. Syme.

    Absurdo! disse Gregory, que se vendia por muito ra-zovel quando outra pessoa tentava o paradoxo. Por que que todos os empregados e operrios que tomam os trens pa-recem to tristes e cansados, to completamente tristes e cansa-dos? Eu respondo. porque sabem que o trem est na rotacerta. porque sabem que tero de chegar ao lugar para oqual compraram os bilhetes. Porque sabem que depoisde Sloane Square a estao seguinte deve ser Vitria,

    nenhuma outra seno Vitria. Mas eu adivinho o formidvel x-tase, o brilho astral de seus olhos, o enlevo paradisaco de suasalmas, se a estao seguinte pudesse ser Baker Street!

    voc que antipotico, replicou o poeta Syme. Setudo quanto voc diz dos empregados verdadeiro s tenho alamentar que eles sejam to prosaicos como a sua poesia. Omaravilhoso, o raro est em chegar meta. O vulgar, o ins-pido, est em no atingi-la. Sentimos um frmito pico quan-do o homem com sua seta selvagem atinge um pssaro distan-te. No tambm pico quando o homem com uma locomo-tiva selvagem atinge uma estao distante? O caos estpido.No caos o trem podia ir a qualquer parte, a Baker Street ou aBagdad. Mas o homem um mgico e toda a sua magia con-

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    siste precisamente nisso: le diz Vitria e zs Vitriamesmo. Ora, por favor! Tome todos os seus livros de poesiae de prosa. A mim deixe-me ler, com lgrimas de orgulho, umatabela do horrio dos trens. Tome seu Byron, que comemora as

    derrotas do Homem. D-me Bradshaw, que comemora as vit-rias. D-me Bradshaw, digo-lhe eu! Vai viajar? perguntou Gregory sarcsticamente. Eu lhe digo, continuou Syme com veemncia, que ca-

    da vez que o trem entra numa estao sinto que le venceuas baterias dos opressores, e que o homem ganhou uma bata-lha contra o caos. Voc diz com desprezo que quando algumdeixa Sloane Square, chega infalivelmente a Vitria. E eu digoque podem acontecer milhares de coisas em vez desta e que sem-pre que efetivamente chego a Vitria, tenho a sensao de terescapado por um triz. E, quando ouo o guarda gritar: "Vi-tria", no me parece ouvir um vocbulo desprovido de senti-do. Para mim, o grito do arauto anunciando a conquista.Para mim, realmente "Vitria". a vitria de Ado.

    Gregory, com sorriso lento e amargo, meneou a cabea

    vermelha e pesada. Mesmo assim, disse le, ns, os poetas, perguntamosincessantemente: "E o que Vitria, agora que ns a alcan-amos?" Para voc, Vitria como a Nova Jerusalm. Parans, entretanto, Nova Jerusalm no ser melhor nem pior doque Vitria. Sim, o poeta ser um eterno inconformado, mesmoandando nas ruas do cu. O poeta est sempre em revolta.

    De novo! disse Syme irritado. O que h de potico

    nessa contnua revolta? Voc podia dizer tambm que po-tico padecer enjo no mar. um estado de revolta. Ambas,a doena e a revolta, podem ser coisas salutares em certas oca-sies desesperadas. Mas, enforquem-me, se posso ver em queso elas poticas! A revolta, em abstrato, . .. revoltante. mero vmito!

    A moa estremeceu ao ouvir o vocbulo desagradvel, masSyme estava demasiadamente inflamado para reparar nela.

    a boa marcha das coisas que potica! Exclamou.Nossa digesto, desde que se mantenha sagrada e silenciosa-mente normal... eis o fundamento de toda a poesia. Sim, acoisa mais potica, mais potica do que as flores, mais poticado que as estrelas, a coisa mais potica do mundo no estardoente.

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    O homem dos brandos olhos azuis e da barbicha plida epontuda suportou essas rajadas com certa solenidade submissa.O terceiro membro do grupo, Rosamond, irm de Gregory que tinha deste os cabelos ondulados e vermelhos, embora

    possusse um rosto muito mais afvel riu com espanto ereprovao, como habitualmente fazia diante do orculo fami-liar.

    Gregory recomeou num tom de alta bonomia oratria. Um artista o mesmo que um anarquista, sentenciou.

    Voc pode inverter a ordem das palavras, se lhe aprouver. Umanarquista um artista. O homem que atira bombas um ar-tista, porque prefere um grande momento a tudo o mais. Es-se homem percebe que valem muito mais o sbito claro deuma flama viva e o estampido de uma detonao perfeita doque os simples corpos desarticulados de alguns esbirros. Umartista afronta todos os governos, omite todas as convenes.O poeta s est vontade na desordem. No fosse assim, acoisa mais potica do mundo seria a estrada de ferro subter-rnea.

    E mesmo, confirmou Mr. Syme. Absurdo! disse Gregory, que se vendia por muito ra-zovel quando outra pessoa tentava o paradoxo. Por que que todos os empregados e operrios que tomam os trens pa-recem to tristes e cansados, to completamente tristes e cansa-dos? Eu respondo. porque sabem que o trem est na rotacerta. porque sabem que tero de chegar ao lugar para oqual compraram os bilhetes. Porque sabem que depois

    de Sloane Square a estao seguinte deve ser Vitria,nenhuma outra seno Vitria. Mas eu adivinho o formidvel x-tase, o brilho astral de seus olhos, o enlevo paradisaco de suasalmas, se a estao seguinte pudesse ser Baker Street!

    voc que antipotico, replicou o poeta Syme. Setudo quanto voc diz dos empregados verdadeiro s tenho alamentar que eles sejam to prosaicos como a sua poesia. Omaravilhoso, o raro est em chegar meta. O vulgar, o ins-

    pido, est em no atingi-la. Sentimos um frmito pico quan-do o homem com sua seta selvagem atinge um pssaro distan-te. No tambm pico quando o homem com uma locomo-tiva selvagem atinge uma estao distante? O caos estpido.No caos o trem podia ir a qualquer parte, a Baker Street ou aBagdad. Mas o homem um mgico e toda a sua magia con-

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    siste precisamente nisso: le diz Vitria e zs Vitriamesmo. Ora, por favor! Tome todos os seus livros de poesiae de prosa. A mim deixe-me ler, com lgrimas de orgulho, umatabela do horrio dos trens. Tome seu Byron, que comemora asderrotas do Homem. D-me Bradshaw, que comemora as vit-rias. D-me Bradshaw, digo-lhe eu!

    Vai viajar? perguntou Gregory sarcsticamente. Eu lhe digo, continuou Syme com veemncia, que ca-

    da vez que o trem entra numa estao sinto que le venceuas baterias dos opressores, e que o homem ganhou uma bata-lha contra o caos. Voc diz com desprezo que quando algum

    deixa Sloane Square, chega infalivelmente a Vitria. E eu digoque podem acontecer milhares de coisas em vez desta e que sem-pre que efetivamente chego a Vitria, tenho a sensao de terescapado por um triz. E, quando ouo o guarda gritar: "Vi-tria", no me parece ouvir um vocbulo desprovido de senti-do. Para mim, o grito do arauto anunciando a conquista.Para mim, realmente "Vitria". a vitria de Ado.

    Gregory, com sorriso lento e amargo, meneou a cabeavermelha e pesada.

    Mesmo assim, disse le, ns, os poetas, perguntamosincessantemente: "E o que Vitria, agora que ns a alcan-amos?" Para voc, Vitria como a Nova Jerusalm. Parans, entretanto, Nova Jerusalm no ser melhor nem pior doque Vitria. Sim, o poeta ser um eterno inconformado, mesmoandando nas ruas do cu. O poeta est sempre em revolta.

    De novo! disse Syme irritado. O que h de poticonessa contnua revolta? Voc podia dizer tambm que po-tico padecer enjo no mar. um estado de revolta. Ambas,a doena e a revolta, podem ser coisas salutares em certas oca-sies desesperadas. Mas, enforquem-me, se posso ver em queso elas poticas! A revolta, em abstrato, . . . revoltante. mero vmito!

    A moa estremeceu ao ouvir o vocbulo desagradvel, mas

    Syme estava demasiadamente inflamado para reparar nela. a boa marcha das coisas que potica! Exclamou.

    Nossa digesto, desde que se mantenha sagrada e silenciosa-mente normal... eis o fundamento de toda a poesia. Sim, acoisa mais potica, mais' potica do que as flores, mais poticado que as estrelas, a coisa mais potica do mundo no estardoente.

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    Realmente, disse Gregory com arrogncia, os exemplosque voc escolhe.. .

    Oh! Perdoe-me, respondeu Syme, inflexvel. Esquecia-me que tnhamos abolido todas as convenes...

    Pela primeira vez um indcio de rubor marcou a testa deGregory. Quer dizer que voc no espera, disse le, que eu ini-

    cie a revoluo da sociedade aqui neste jardim?!Syme cravou os olhos nos olhos do outro e sorriu com do-

    ura. No, no espero. Mas creio que se voc fosse um anar-

    quista de verdade era exatamente isso o que faria.

    Os enormes olhos taurinos de Gregory relampejaram co-mo os de um leo enfurecido, e quase se podia imaginar quesua juba vermelha se encrespara.

    Ento voc acha, disse com grande dificuldade, que nolevo a srio o meu anarquismo?

    Como? Quer repetir, por favor? Que no levo a srio o meu anarquismo? rugiu Gre-

    gory com os punhos fechados.

    Ora, meu caro! No se aflija! respondeu Syme e afas-tou-se.Com surpresa, mesclada de curiosidade e prazer, desco-

    briu que Rosamond Gregory havia acompanhado seus passos. Mr. Syme, comeou ela, pessoas como o senhor e meu

    irmo, quando falam, esto sempre atentos para o que dizem?O senhor reparou no que disse?

    Syme sorriu e perguntou: E a senhorita? Repara no que diz? Que quer dizer o senhor? indagou a moa severamente. Cara Miss Gregory, disse Syme com brandura na voz,

    h muitas espcies de sinceridade e de insinceridade. Quandovoc, por exemplo, agradece ao vizinho de mesa que acaba delhe passar o saleiro, repara no que diz? No. Quando diz queo mundo redondo, repara no que diz? No. Est dizendo a

    pura verdade, mas no se d conta disso. Ora, s vezes acon-tece que um homem quando fala diz, realmente, aquilo que pen-sa. Pode dizer uma meia-verdade, um quarto ou um dcimo daverdade, no importa. o caso de seu irmo. Ao falar, lediz mais do que quer dizer, tal o mpeto com que pensa naquiloque est dizendo.

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    Rosamond fixou-o demoradamente. Em seu rosto gravee franco pairava a sombra daquela insensata responsabilidadeque habita o ntimo da mulher mais frvola, daquele desvelomaternal que to velho quanto o mundo.

    Ento h razes para julgar Gregory um anarquista? Apenas aquelas razes que dei h pouco, ou, se quiser,aquelas sem-razes.

    Rosamond passou alguns momentos matutando, a testafranzida; de repente, disse:

    Em todo caso, no ir le atirar bombas ou tomar par-te em atentados?

    Syme rebentou numa gargalhada que parecia grande de-

    mais para seu tipo frgil e levemente ajanotado. No, por Deus! exclamou. Essas coisas tm de ser fei-

    tas anonimamente.Os lbios de Rosamond descerraram-se num sorriso. Ela

    pensava em Gregory. Sabia-o inconseqente, mas no precisavatemer pela segurana dele.

    Syme afastou-se com ela para um banco no canto do jar-dim e continuou a expor suas opinies. Era um homem sin-cero e, a despeito de suas graas e finezas superficiais, fundamen-talmente humilde. E sempre o humilde que fala demais; o or-gulhoso mede as palavras com muita cautela. Defendia a respei-tabilidade com ardor e exagero. Apaixonava-se no louvor cordura e decncia. Ali, sentado, aspirava a fragrancia doslilazes espalhados pelo jardim. Lenta e quase imperceptivel-mente, comeou a subir at le, vinda de uma rua distante,

    a msica de um realejo. Parecia-lhe que suas hericas palavrasengolfavam-se numa delicada melodia emanada talvez de re-gies subterrneas ou extraterrenas.

    Ao passo que falava, comprazia-se em contemplar os ca-belos vermelhos e o rosto cndido da moa. Supondo teremdecorrido alguns minutos, advertiu que, em ocasies como aque-la, os pares no deviam isolar-se por muito tempo. Com estepensamento, ps-se de p, mas pasmou-se ao ver o jardim

    completamente vazio. H muito tinha sado o ltimo conviva.Embaraado, pediu desculpas moa e tratou de partir o maisdepressa que pde. Em sua cabea e le no sabia como

    justificar essas sensaes boiavam uns como eflvios de cham-panha. Nos extraordinrios acontecimentos que viriam depois,a moa no teria nenhuma participao. E le no voltou a v-la seno quando tudo acabou. Entretanto, por entre as temer-

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    rias aventuras que o aguardavam, a imagem dela havia de sur-gir, desaparecer e surgir de novo, inexplicavelmente, como o te-ma de um movimento musical; e o esplendor de sua mara-

    vilhosa cabeleira havia de atravessar, como um fio vermelho,as tramas desvairadas e tenebrosas das tapearias da noite.Porquanto, o que se seguiu foi to inacreditvel que bem podiater sido um sonho.

    Quando Syme chegou rua, achou-a deserta sob o cu es-trelado. No demorou a descobrir um misterioso silncio queera antes um silncio vivo que morto. No alto do poste, situa-do defronte da porta, uma lmpada acesa dourava as folhas darvore, cujos galhos debruavam-se sobre o muro. A um pas-so do poste, algum se mantinha de p, quase to rgido e im-vel como o prprio poste. Tinha a cabea coberta por um cha-pu alto e negro e o corpo envolto numa comprida sobreca-saca negra; na sombra, o rosto era igualmente negro. Todavia,a meada de cabelos avermelhados, escapos zona das trevas,e a agressividade da postura publicavam' no vulto negro o poe-ta Gregory. Imitava os bravateiros embuados que, munidosde espadas, espreitam a vinda do opositor.

    Gregory fz um gesto semelhante a uma saudao e teveda parte de Syme uma rplica algo mais solene.

    Estava esperando que voc chegasse, disse Gregory.Poderamos conversar uns dois minutos?

    Pois no. De que se trata? inquiriu Syme um poucoespantado.

    Gregory bateu com a bengala no poste e na rvore, ao

    mesmo tempo em que comeou a falar. Disto e disto. Da ordem e da anarquia. A tem vocsua preciosa ordem nessa mesquinha lmpada de ferro, feia eestril. E aqui est a anarquia, opulenta, viva, fecunda. Eisa anarquia nesta rvore esplndida nas cores do ouro e da es-meralda.

    Apesar de tudo, respondeu pacientemente Syme, nestemomento voc s pode ver a rvore sob a luz da lmpada.

    No me consta que em tempo algum voc possa ver a lmpa-da, sob a luz da rvore. Fz uma curta pausa e prosseguiu:mas posso perguntar-lhe se voc ficou aqui todo esse tempono escuro, s para reabrir agora nossa discusso?

    No! explodiu Gregory numa voz que ressoou em to-da a rua. No fiquei aqui para recomear a discusso, maspara acabar com ela de uma vez.

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    Caiu novamente o silncio, e Syme, ainda que no pes-casse o verdadeiro sentido das palavras do outro, instintiva-mente pressentiu a gravidade do momento. Gregory voltou afalar com voz macia e sorriso desconcertante.

    Mr. Syme, esta noite voc fz uma coisa realmente no-tvel. Voc fz comigo o que nenhum homem nascido de mu-lher jamais conseguiu fazer antes.

    Realmente? Alis, se bem me recordo, disse Gregory pensativamen-

    te, outra pessoa tambm conseguiu fazer a mesma coisa. Foio comandante de um vaporzinho vagabundo, em Southend, sea memria no me falha. A verdade que voc me irritou.

    Lamento muito, respondeu gravemente Syme. Mas eu temo que a minha ira e o insulto que voc me

    fz ultrapassem os limites do tolervel e no possam ser apa-gados com uma simples desculpa, disse Gregory muito calmo.Nenhum duelo poder apag-lo. Se eu o matasse, o caso noestaria encerrado. S existe um meio de fazer desaparecer oinsulto e esse meio eu j o escolhi. Vou, com o possvel sacri-

    fcio de minha vida e de minha honra, provarque voc est en-ganado em tudo quanto disse. Em tudo quanto eu disse? Sim. Voc disse que eu no levo a srio o meu anar-

    quismo. H graus de seriedade, replicou Syme. Nunca pus em

    dvida a sua sinceridade em certas coisas. Por exemplo: vocs diz aquilo que lhe parece digno de ser dito, acredita que um

    paradoxo pode despertar a humanidade para uma verdade des-prestigiada. Neste sentido, nunca duvidei de que voc fossecabalmente sincero.

    Gregory encarava-o firme mas penosamente. E num outro sentido, perguntou, voc cr na minha

    seriedade? Voc me toma por um flneur que deixa cair poronde passa uma ou outra verdade ocasional. Num sentidomais profundo, mais intenso, voc no cr que sou srio.

    Syme bateu violentamente com a bengala na calada ebradou: Srio! Santo Deus! seria esta rua? So srias estas

    malditas lanternas chinesas? sria toda essa mixrdia? Olhe,aparece aqui um sujeito, diz um monto de tolices e talvez tam-bm algumas coisas sensatas. .. Est bem. Mas eu no dareium vintm por le se no mais fundo do ser no conduzir uma

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    coisa mais sria do que essa tagarelice... uma coisa mais s-ria, que tanto pode ser a religio quanto a bebida.

    Muito bem, disse Gregory com o rosto sombrio. Vocvai conhecer uma coisa mais sria do que a bebida ou a religio.

    Syme ficou aguardando delicadamente at que Gregoryretomou a palavra.

    Voc acaba de falar em religio. verdade, realmen-te, que voc tem uma?

    Claro! exclamou Syme, com um sorriso radiante. So-mos todos catlicos agora.

    Ento posso pedir-lhe que jure por todos os deusese santos da sua religio que no revelar a nenhum filho deAdo e especialmente polcia o que vou contar? Jura? Seassume to terrvel compromisso, se consente em sobrecarre-gar sua alma com um juramento que nunca pensou em fazer ecom um conhecimento de coisas com que jamais sonhou, eulhe prometo em troca...

    Voc me promete em troca!?! insistiu Syme quando ooutro se interrompeu.

    Eu lhe prometo uma noite muito divertida.Syme tirou o chapu e disse: Seu oferecimento to insensato que no merece re-

    cusa. Voc diz que um poeta sempre um anarquista. Dis-cordo. Mas espero que le seja pelo menos um cavalheiro. Per-mita-me, aqui e agora, jurar como cristo e prometer comobom camarada e companheiro de ofcio, que no contarei nada,seja o que fr, polcia. E agora, em nome de Colney Hatch,de que se trata?

    Acho, disse Gregory com plcida dissimulao, que de-vemos chamar um fiacre.

    Deu dois longos assobios, e um fiacre veio ressoando pelarua. Entraram em silncio. Pela portinhola, Gregory deu o en-dereo de uma obscura taberna situada em Chiswick, mar-gem do rio. O fiacre foi posto de novo em movimento e, den-tro dele, estes dois fantsticos sujeitos deixaram seu no menosfantstico subrbio.

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    CAPITULO II

    O SEGREDO DE GABRIEL SYME

    Chegado em frente a uma cervejaria particularmente imun-da e lgubre, o fiacre parou. Apearam-se e Gregory conduziuimediatamente o companheiro para um cubculo interior, som-brio e abafado, espcie de locutrio, onde se sentaram roda deuma srdida mesa de p de galo, toda de madeira. O quartoera to pequeno e escuro que do servial chamado nada maisse divisava alm da vaga e negra sombra de um vulto corpulento

    e barbado. Quer cear? perguntou Gregory polidamente. O ptde foie gras daqui no bom, mas posso recomendar a lebre.

    Syme recebeu impassvel a observao, imaginando tratar-se de uma pilhria. Disposto a seguir o filo de humor, respon-deu com propositada indiferena:

    Ora, me traga maionese de lagosta.

    Para sua indescritvel estupefao, o criado disse apenas"Pois no, senhor!" e foi busc-la. Que quer beber? acrescentou Gregory, com o mesmo

    ar descuidado mas polido. Como j jantei, vou tomar somenteum creme de menthe. No champanha se pode confiar... Dei-xe-me servir-lhe ao menos meia garrafa de Pommery.

    Muito obrigado, disse o imvel Syme. Voc muitoamvel.

    Suas tentativas, at ento frustradas, de manter a conver-sao, foram enfim cortadas, como por um raio, com a presen-a da lagosta. Syme degustou-a, achou-a bastante apetitosa elogo comeou a comer com grande avidez.

    Perdoe-me se manifesto to claramente minha satisfa-o, disse sorrindo a Gregory. Nem sempre tenho a sorte de ter

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    um sonho como este. uma novidade para mim que um pesade-lo conduza a uma lagosta. Comumente sucede o inverso.

    No est dormindo, garanto-lhe, disse Gregory. Aocontrrio; voc est beira do momento mais real e excitantede sua existncia. Ah, olhe a seu champanha! Admito quehaja uma leve desproporo, digamos, entre o arranjo interiordeste excelente hotel e seu exterior simples e despretensioso.Mas nisso reside toda a nossa modstia. Somos os homens maismodestos que jamais viveram sobre a terra.

    E quem so ns? perguntou Syme, esvaziando o copode champanha.

    Muito simples, respondeu Gregory. Ns somos os anar-quistas srios, em quem voc no acredita.

    Oh! exclamou Syme. Vocs se arranjam bem nas be-bidas!

    Sim, somos srios em tudo, respondeu Gregory.Depois de uma pausa acrescentou: Se dentro de alguns instantes esta mesa comear a gi-

    rar um pouco, no meta isso na conta das suas incurses nochampanha. No quero que voc cometa uma injustia.

    Bem, se no estou bbado, estou louco, replicou Symecom absoluta calma. Mas confio em que possa comportar-mecomo um cavalheiro em qualquer circunstncia. Posso fumar?

    vontade, disse Gregory, apresentando-lhe uma cha-ruteira. Experimente um dos meus.

    Syme aceitou o charuto e, cortando-lhe a ponta com umcorta-charutos que tirou do bolso do colete, levou-o boca,acendeu-o vagarosamente e soltou imensa baforada. Credite-

    se a seu favor a calma com que efetuou todo este ritual, pois,pouco antes de inici-lo, a mesa tinha comeado a girar, a prin-cpio vagarosamente e depois cleremente como numa sessoesprita.

    No faa caso, disse Gregory. uma espcie de rosca.' Exato! disse Syme plcidamente. Uma espcie de rosca.

    Como simples!Um minuto depois, a fumaa do charuto, que at ento

    ondulava pelo quarto em serpeantes volteios, subiu a prumocomo por uma chamin de fbrica, e os dois, mais a mesa e ascadeiras, desapareceram atravs do assoalho, como se a terraos tivesse tragado. Foram caindo estrepitosamente por dentro deuma espcie de chamin rugidora, to rapidamente como umascensor desgovernado, e de supeto chegaram ao fundo com

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    um baque surdo. Mas quando Gregory escancarou as duas fo-lhas de uma porta e surgiu uma subterrnea luz vermelha, Sy-me continuava a fumar tranqilamente, uma perna cruzada so-bre a outra, e um nico fio de seus cabelos amarelos no se ti-nha desarranjado.

    Gregory guiou-o atravs de um corredor baixo, abobadado,de onde provinha a luz vermelha. L no fundo, presa a umapequena e pesada porta de ferro, estava uma enorme lanternaescarlate, quase to grande como uma lareira. Na porta ha-via um tipo de escotilha ou vigia, na qual Gregory deu cincopancadas. Uma voz forte, com sotaque estrangeiro, perguntou

    quem era. Gregory deu uma resposta mais ou menos inesperada:"Mr. Joseph Chamberlain". Moveram-se os pesados gonzos.Evidentemente, tratava-se de uma senha.

    Interiormente, o corredor cintilava como se estivesse re-vestido de uma rede de ao. Num segundo relance, Syme per-cebeu que a fulgurante parede estava realmente forrada devrias fileiras de espingardas e pistolas, estreitamente entrelaa-das ou amontoadas.

    Devo pedir-lhe perdo por todas essas formalidades,disse Gregory. Temos que ser muito rigorosos aqui. No se desculpe, disse Syme. Conheo sua paixo pela

    lei e pela ordem. E entrou no corredor guarnecido pelas armasde ao. Com seus compridos cabelos louros e sua ridcula so-brecasaca, era na verdade uma figura singularmente frgil efantstica a caminhar naquela rutilante avenida da morte.

    Atravessaram vrios corredores idnticos e chegaram, por

    fim, a um esquisito quarto de ao e de paredes curvas, quaseesfrico, mas sugerindo, com suas fileiras de bancos, o aspectode um anfiteatro cientfico. Nele no havia espingardas nem pis-tolas, mas estavam suspensas nas paredes formas mais amb-guas e terrveis, coisas que lembravam bulbos de plantas de fer-ro, ou ovos de pssaros de ferro. Eram bombas, e o quartomesmo assemelhava-se ao interior de uma bomba. Syme bateuna parede para derrubar a cinza do charuto e entrou.

    E agora, meu caro Mr. Syme, disse Gregory sentando-se expansivamente no banco situado debaixo da bomba maior,agora que estamos vontade, falemos claramente. Mas nenhu-ma palavra da linguagem dos homens poder lhe dar a menoridia do motivo que me impeliu a traz-lo at aqui. Foi umadaquelas emoes puramente arbitrrias, que levam a gente apular de um rochedo ou a apaixonar-se. Limito-me a dizer

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    que voc foi e, para fazer-lhe justia, ainda continua sendo umcamarada indizivelmente irritante. Eu quebraria vinte juramen-tos de sigilo s pelo simples prazer de espezinh-lo. Esse seumodo de acender o charuto obrigaria um padre a revelar o

    segredo da confisso. Bem. Voc dizia que estava perfeita-mente convicto de que eu no era um anarquista srio. Estelugar no lhe parece srio?

    Realmente parece encobrir uma moral debaixo de todasua gaiatice, assentiu Syme. Mas posso fazer-lhe duas pergun-tas? No precisa ter medo de me dar informaes. Voc deveestar lembrado de que muito habilmente extorquiu de mim apromessa de nada contar polcia... promessa que em verda-

    de cumprirei. Portanto, por mera curiosidade que fao taisperguntas. Em primeiro lugar, que que tudo isso significa? Oque que vocs pretendem? Querem abolir o governo?

    Queremos abolir Deus! disse Gregory abrindo os olhosde fantico. No pretendemos somente perturbar alguns despo-tismos e regulamentos policiais. Esse tipo de anarquismo existe,mas no passa de um ramo dos no-conformistas. Ns cavamosmais fundo e vamos faz-los voar mais alto. Visamos a nega-

    o de todas as arbitrrias distines, estabelecidas entre o vcioe a virtude, a honra e a traio, que ainda constituem o fun-damento da rebeldia dos simplrios. Os ingnuos sentimentais daRevoluo Francesa pregavam os Direitos do Homem! Nsodimos Direitos e Injustias. J abolimos os dois.

    E a direita e a esquerda? perguntou Syme com simplici-dade. Espero que vocs as eliminem tambm. Para mim somuito mais enfadonhas.

    Voc falou de uma segunda pergunta, interrompeu Gre-gory.

    Com muito prazer, disse Syme reatando o fio da con-versa. Noto que, em todos os atos e circunstncias presentes,vocs tentam cobrir-se de mistrio. Tenho uma tia que moravaem cima de uma loja, mas esta a primeira vez que encontrogente que vive, de preferncia, debaixo de uma taberna. Pos-

    suem uma pesada porta de ferro e no podem passar por ela semse submeter humilhao de chamar-se Mr. Chamberlain. Cer-cam-se de apetrechos de ao que tornam o lugar, por assim dizer,mais sinistro do que acolhedor. Posso agora perguntar-lhe porque, depois de vencer todos esses obstculos para entrincheirar-se nas entranhas da terra, voc alardeia os seus segredos, dis-

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    correndo sobre anarquismo diante de todas as donas desocupa-das de Saffron Park?

    Gregory sorriu: A resposta simples. J lhe disse que sou um anar-

    quista srio, mas voc no acreditou. Nem ningum acredita.Enquanto no os trouxer a esta sala infernal no acreditaro.Syme fumava pensativamente e fitava-o com interesse.

    Gregory continuou: A histria que lhe vou contar poder diverti-lo. Logo

    que me fiz membro dos Novos Anarquistas experimentei todosos gneros de disfarces respeitveis. Vesti-me de bispo. Cuidei deler tudo o que se relacionava com os bispos em nossos ops-culos anarquistas. O Vampiro da Superstio e Padres de Ra-

    pina. Aprendi neles que os bispos so uns ancios terrveis eestranhos que ocultam da humanidade um segredo cruel.Estava enganado. A primeira vez que, com botas episcopais,botei os ps num salo e trovejei "Humilha-te, humilha-te,presunosa razo humana" descobriram, no sei como, que eunada tinha de bispo e me apanharam imediatamente. Depoisbanquei o milionrio, mas defendia o capital com tanta inte-ligncia que qualquer imbecil podia ver logo que eu era muitopobre. Ento, procurei passar por major. Pessoalmente, souum humanitrio, mas creio possuir bastante largueza intelec-tual para compreender a posio daqueles que, como Nietzs-che, admiram a violncia, a guerra altiva, feroz da natureza etudo o mais que voc conhece. Transformei-me, ento, num ma-

    jor. Constantemente desembainhava e brandia a espada e, semnenhum propsito, gritava: "Sangue!", como um homem quepede Vinho. Repeti muitas vezes: "Peream os fracos. alei". Parece que no assim que procedem os majores. Fuiapanhado novamente. Afinal, desesperado, fui ter com o Pre-sidente do Conselho Central Anarquista, que o homem maisnotvel da Europa.

    - Como se chama? perguntou Syme. Voc no pode nem imaginar, respondeu Gregory. E

    nisso est a grandeza dele. Csar e Napoleo empenharam to-do o seu gnio para se tornarem conhecidos e tiveram xito.Nosso Presidente pe todo o seu gnio em conseguir que nose fale dele, e o conseguiu. Mas voc no pode ficar cincominutos na mesma sala em que le estiver sem sentir que namo dele Csar e Napoleo teriam sido dois meninotes.

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    Empalideceu e passou uns momentos em silncio. De-pois prosseguiu:

    Qualquer que seja o conselho que le d sempreuma coisa to surpreendente como um epigrama e ao mesmotempo to prtica como o Banco da Inglaterra. Perguntei-lhe:"Que disfarce esconder-me- das vistas do mundo? Que possoeu descobrir de mais respeitvel que bispos e majores?" leme olhou com sua cara enorme e indecifrvel. "Voc quer umdisfarce que o ponha a salvo de tudo, no ? Voc quer umtraje que lhe permita passar por inofensivo; um traje de que nin-gum possa suspeitar que leva uma bomba escondida?" Assen-ti com a cabea. E le prosseguiu, alteando a voz de leo:

    "Pois, ento, vista-se como um anarquista, seu idiota!", rugiucom tanta fora que abalou a sala. "E no haver ningumque o julgue um tipo perigoso". E virou-se, dando-me suaslargas costas, sem me dizer outra palavra. Tomei o conselho eat aqui no me arrependi. Dia e noite preguei sangue e des-truio quelas mulheres e por Deus! elas me deixariamguiar o carrinho em que levam os filhos a passeio.

    Os grandes olhos azuis de Syme fitavam o companheiro

    respeitosamente. Voc me ludibriou, disse le. realmente um embus-te primoroso.

    Fz uma pausa e acrescentou: Que nome tem esse medonho Presidente? Ns todos o chamamos Domingo, respondeu Gregory

    com simplicidade. O Conselho Central Anarquista se compede sete membros que receberam os nomes dos dias da semana. O

    Presidente o Domingo. Alguns de seus admiradores chamam-no Domingo, o Sanguinrio. curioso que voc tenha tocadoneste ponto, porque nesta mesma noite em que voc caiu docu (desculpe-me a expresso) nossa seo londrina deve reu-nir-se aqui nesta sala para eleger um representante que vai pre-encher a vaga no Conselho. O cavalheiro que desempenhou poralgum tempo, com percia e aplausos gerais, as rduas funesde Quinta-feira, acaba de morrer. Por isso, convocamos es-

    ta noite uma reunio para escolhermos o seu sucessor.Levantou-se e comeou a passear pela sala, sorrindo com

    certo embarao. Syme, de certo modo, eu o sinto agora como se voc

    fosse minha me. Sinto que posso confiar-lhe qualquer coisa,desde que voc prometeu no contar nada a ningum. De fato,

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    vou contar-lhe uma coisa que no teria coragem de contar aosanarquistas que estaro aqui dentro de dez minutos. Natural-mente iremos proceder a uma forma de eleio. No me aca-nho de dizer-lhe que estou certo do resultado. E baixando mo-destamente os olhos, disse: Est quase estabelecido que eu se-rei o Quinta-feira.

    Bravo, amigo! exclamou Syme calorosamente. Congratulo-me com voc. Bela carreira!

    Gregory sorriu com modstia e, enquanto atravessava asala, falava apressadamente.

    A verdade que tudo est pronto para mim nesta me-

    sa, e a cerimnia provavelmente ser a mais curta possvel.Por sua vez, Syme foi at mesa e viu uma bengala queum exame mais apurado revelou ser uma bengala de estoque.L estavam tambm um grande revlver Colt, um embrulho desanduches e uma formidvel garrafa de conhaque. Numa ca-deira, ao lado da mesa, fora atirado um capote.

    Resta-nos somente esperar que se cumpram as formali-dades da eleio, prosseguiu Gregory com desenvoltura. Uma

    vez concludas, agarro a capa e a bengala, meto as outras coisasno bolso e abandono esta caverna, saindo por uma porta que dpara o rio. L me espera uma lancha a vapor. Ento.. . De-pois . . . Oh! A alegria selvagem de ser o Quinta-feira! E en-trelaou os dedos nervosamente.

    Syme, que se sentara uma vez mais com seu habitual lan-gor insolente, levantou-se com um desusado ar de hesitao.

    Por que , perguntou de maneira um tanto vaga, que

    eu acho que voc um sujeito honesto? Por que que eu sim-patizo francamente com voc? Parou um instante e depois ajun-tou, como se o fizesse por pura curiosidade: Ser porque voc um verdadeiro asno?

    Ficou meditando em silncio durante alguns momentose por fim exclamou:

    Ora, dane-se tudo! Nunca em minha vida me vi numasituao mais engraada do que esta, mas vou comportar-me altura. Gregory, antes de entrar aqui eu lhe fiz uma promessa.E hei de cumpri-la, mesmo torturado por tenazes incandescen-tes. Voc est disposto a fazer, para minha segurana, umapequena promessa da mesma espcie?

    Uma promessa? perguntou Gregory espantado. Sim, uma promessa respondeu Syme muito srio. Pe-

    rante Deus eu jurei que no contaria seu segredo polcia.

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    Poder voc jurar pela humanidade, ou por qualquer outra as-neira da sua crena, que no revelar meu segredo aos anar-quistas?

    Seu segredo? perguntou Gregory estupefato. Voctem um segredo?

    Tenho, disse Syme. Eu tenho um segredo. Depois deuma pausa, insistiu: Jura?

    Antes de falar, Gregory considerou gravemente o outro poralguns instantes.

    Voc deve ter-me enfeitiado, mas sinto uma furiosacuriosidade a seu respeito. Juro. Juro que no contarei aosanarquistas nada do que voc me disser. Mas avie-se. Em doisminutos eles estaro aqui.

    Syme levantou-se e enfiou as mos brancas e compridasnos bolsos das calas cinzentas. Quase ao mesmo tempo soa-ram cinco pancadas na escotilha, anunciando a chegada dos pri-meiros conspiradores.

    Bem, disse Syme, e continuou a-falar com lentido. Nosei como contar-lhe a verdade em poucas palavras, seno di-zendo que o seu expediente de disfarar-se como um poeta de-sorientado no privilgio seu nem do seu Presidente. Algumasvezes tambm temos lanado mo do mesmo embuste na Scot-land Yard.

    Gregory tentou levantar-se de um pulo, mas por trs ve-zes fraquejou.

    Que que voc est dizendo? perguntou aterrado. Isso mesmo, disse Syme simplesmente. Sou detetive.

    Trabalho para a polcia. Mas. .. creio que seus amigos esto

    chegando.Do corredor vinha um murmrio de "Mr. Joseph Cham-berlain", repetido duas vezes, trs, trinta vezes, casado ao trotardaquela multido de Joseph Chamberlains o que parecia apersonificao mesma da solenidade.

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    CAPITULO III

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    Antes que assomasse porta o primeiro recm-chega-do, Gregory se tinha recuperado da surpresa e do aturdimento.De um salto ps-se ao lado da mesa. Rugindo feito uma fera,apanhou o revlver e apontou-o para Syme. Este, sem vacilar,ergueu a mo plida e delicada.

    No seja idiota, disse com a dignidade efeminada de

    um cura. No v que no necessrio? No v que embar-camos no mesmo bote e que ambos estamos mareados?Gregory no podia falar, mas tambm no podia disparar

    a arma; apenas podia considerar em silncio a situao. No v que nos pusemos em xeque um ao outro? gri-

    tou Syme. Eu no posso dizer polcia que voc anarquis-ta. Voc no pode dizer aos anarquistas que eu sou da polcia.

    Posso apenas vigi-lo, ciente do que voc ; voc pode apenasvigiar-me, ciente do que eu sou. Em suma, trata-se de um soli-trio duelo intelectual: minha cabea contra a sua. Eu sou umpolcia privado da ajuda da polcia. E voc, meu pobre amigo, um anarquista privado da ajuda daquela lei e daquela organi-zao to essenciais anarquia. A nica diferena que existe a seu favor. Voc no est rodeado de polcias inquiridores;eu estou rodeado de anarquistas inquiridores. No posso atrai-

    o-lo, mas poderia eu mesmo atraioar-me. Vamos, homem!Espere para ver como me atraio. Vou faz-lo primorosa-mente.

    Gregory baixou vagarosamente o revlver, ainda com osolhos presos em Syme, como se este fosse um monstro ma-rinho.

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    No creio na imortalidade, disse por fim. Mas se, de-pois de tudo isso, voc quebrar sua palavra, Deus fabricarum inferno s para voc gemer l dentro eternamente.

    No quebrarei minha palavra, disse Syme severamente,nem voc quebrar a sua. Seus amigos j esto aqui.

    A massa de anarquistas entrou pesadamente na sala, apasso duro e fatigado. Um homenzinho de barba negra e deculos um sujeito mais ou menos do tipo de Mr. Tim Healy destacou-se do grupo, agitando numa das mos um mao depapis.

    Camarada Gregory, disse le, suponho que esse homem um delegado, no?

    Surpreendido, Gregory baixou os olhos e gaguejou o nomede Syme; mas Syme, quase petulante, respondeu: Alegra-me ver que a sua porta to bem guardada que

    dificlimo para algum que no seja delegado entrar aqui.Entretanto, o homenzinho da barba negra, visivelmente

    suspeitoso, contraiu a testa. Qual dos nossos ramos voc representa? perguntou

    maliciosamente.

    Eu no diria que represento um ramo, disse Symerindo. Acho melhor dizer que represento a raiz.

    Que quer dizer com isso? A verdade, disse Syme serenamente, que eu sou saba-

    tista. Enviaram-me especialmente para que vocs observemaqui o devido acatamento ao Domingo.

    O homenzinho deixou cair um de seus papis, e um bru-xuleio de medo perpassou em todas as fisionomias do grupo.Evidentemente, o terrvel Presidente, cujo nome era Domin-go, costumava enviar esses embaixadores intempestivos s as-semblias secionais.

    Bem, camarada, disse o homenzinho dos papis, achoque agiramos corretamente dando-lhe um lugar em nossa reu-nio.

    Se voc me pede um conselho de amigo, disse Symecom severa benevolncia, acho que isso que devem fazer.

    Quando Gregory notou que o perigoso dilogo terminara,com inesperada salvao para seu rival, levantou-se imedia-tamente e comeou a caminhar pela sala, mergulhado em pe-nosos pensamentos. Afligia-o, deveras, uma angstia diplom-tica. Era bvio que, com sua inspirada desfaatez, Syme ven-ceria todas as situaes difceis. Por esse lado no havia o que

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    temer. le mesmo, Gregory, no podia atraioar Syme, emparte por questo de honra, mas em parte tambm porque,se le o atraioasse e por um motivo qualquer fracassasse emdestru-lo, o Syme que escapasse seria um Syme desoneradode todos os compromissos de sigilo, um Syme que simplesmentecorreria a denunci-lo na Delegacia mais prxima. No fim decontas, tratava-se de uma nica reunio noturna e de um ni-co detetive que a assistia. Teria o cuidado de evitar o mais pos-svel, naquela noite, que se mencionassem os planos de ao.Depois Syme ia embora e o caso estava encerrado.

    A passos largos avanou por entre os anarquistas que

    comeavam a distribuir-se nos bancos, e disse: Penso que tempo de comearmos. A lancha estesperando no rio. Proponho que o camarada Buttons assumaa presidncia.

    Erguendo as mos, todos aprovaram a proposta. O ho-menzinho dos papis enfiou-se na poltrona presidencial.

    Camaradas! comeou le com voz incisiva como dispa-ro de pistola. Nossa reunio desta noite importante, mas

    convm que seja breve. Esta seo tem, desde sempre, tidoa honra de eleger Quintas-feiras para o Conselho Central Eu-ropeu. Elegemos muitos e valorosos Quintas-feiras. Todoslamentamos o triste desaparecimento do herico trabalhadorque ocupou o posto at a semana passada. Como sabeis, leprestou considerveis servios nossa causa. Organizou aque-la grande exploso de dinamite em Brighton, que, sob circuns-tncias mais favorveis, teria matado todos quantos se encon-

    travam no cais. Sabeis tambm que le foi to desprendido emsua morte como o tinha sido em vida, pois morreu no culto f que depositava numa higinica mistura de gua e giz, emsubstituio ao leite, beberagem que considerava prpria debrbaros pela crueldade que inflige vaca. E a crueldade,ou qualquer coisa que lembrasse a crueldade, indignava-o. Masno para louvar suas virtudes que estamos reunidos, e sim pa-ra uma tarefa mais rdua. Difcil glorificar o mrito de suas

    qualidades; , porm, ainda mais difcil substitu-las. A vs,camaradas, compete, nesta noite, escolher, entre os presentes, ohomem que dever ser Quinta-feira. Espero que um de vsindique um nome para ser submetido votao. Se nenhumnome fr indicado serei forado a admitir que aquele queridodinamitador, que nos deixou para sempre, levou aos abismos in-sondveis o ltimo segredo da virtude e da inocncia.

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    Houve um movimento de aplauso quase inaudvel, tal co-mo o que se ouve s vezes na igreja. Em seguida, um anciocorpulento, com uma comprida e venervel barba branca, tal-vez o nico trabalhador real que ali se encontrava, levantou-se

    com dificuldade e falou: Proponho para Quinta-feira o camarada Gregory. Evoltou a sentar-se com a mesma dificuldade.

    H algum que secunde esta proposta? perguntou oPresidente.

    Um tipo pequeno, barbado, vestido com um casaco de ve-ludo, apoiou a resposta.

    Antes de submeter a matria votao, disse o Presi-

    dente, convido o camarada Gregory a fazer sua profisso de f.Gregory ergueu-se no meio de ruidosos aplausos. A pali-dez mortal de seu rosto acentuava, por contraste, o esquisitovermelho de seus cabelos, que pareciam quase escarlates. Massorria e estava inteiramente vontade. Tinha o esprito prepa-rado e, diante de si, via o programa que traara, plano e retocomo uma estrada branca. Estava decidido a fazer um discur-so ameno e ambguo a fim de gravar na mente do detetive a

    impresso de que a fraternidade anarquista era, de resto, mui-to suave. Acreditava no prprio talento literrio e na sua ca-pacidade de sugerir belos matizes e usar palavras inconfundveis.Julgava que, com cautela e a despeito das pessoas que o ro-deavam, podia dar da instituio uma idia sutil e delicadamen-te falsa. J uma vez Syme presumira que os anarquistas co-briam com suas arruaas as mais refinadas tolices. No podiaagora, num momento de perigo, reforar a antiga presuno

    de Syme? Camaradas! comeou em voz baixa mas penetrante.No mister dar-vos conta da minha poltica, pois ela tam-bm a vossa. Nossa crena tem sido caluniada, deformada,totalmente obscurecida e vilipendiada, mas persiste incorrupt-vel. Os ociosos que falam da anarquia e da ameaa que elarepresenta, catam informaes ali, acol, por toda a parte, masno nos buscam, no buscam as nascentes, as origens. Sobre os

    anarquistas instruem-se nas novelas baratas, instruem-se nosjornais da bolsa comercial, instruem-se no Ally Sloper's Half-Holiday e no Sporting Times. Nunca se instruem sobre os anar-quistas nas prprias fontes anarquistas. No temos ensejo dedesagravar as montanhas de ultrajes que, de um extremo a ou-tro da Europa, acumulam sobre nossas cabeas. O homem que

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    sempre ouviu dizer que somos pragas vivas nunca ouviu nossaresposta. certo que ainda no vai ouvi-la nesta noite, em-bora a paixo me mande romper o teto com minhas palavras.Porque nas profundezas do corao da terra que os perse-

    guidos tm permisso para reunir-se, como os cristos se reu-niam nas catacumbas. Mas, se por um desses incrveis acasos,estivesse aqui neste momento um homem que durante toda asua vida alimentou imensos preconceitos a nosso respeito, far-lhe-ia esta pergunta: "Que espcie de reputao moral desfru-tavam nas ruas de Roma os cristos que se congregavam nascatacumbas? Quantas histrias de atrocidades crists no con-tavam os romanos cultos? Suponde (eu pediria a esse homem),

    suponde que ns estamos apenas revivendo aquele misteriosoparadoxo da Histria. Suponde que ns parecemos to escanda-losos como os cristos porque somos realmente to inofensi-vos como eram os cristos. Suponde que parecemos to loucoscomo os cristos porque somos realmente to mansos comoeles".

    Os aplausos que tinham saudado as primeiras frases deGregory foram esfriando gradualmente e ante as ltimas pala-

    vras sumiram-se de vez. Cortou o repentino silncio a vozforte e spera do homem do casaco de veludo. Eu no sou manso! O camarada Witherspoon, tornou Gregory, diz que

    no manso. Ah, como le conhece to mal a si mesmo! Nopodeis negar que le usa de expresses extravagantes e quesua aparncia feroz e mesmo (para o gosto vulgar) poucosedutora. Mas somente o olho de uma estima to profunda

    e dedicada como a minha pode perceber as camadas de slidamansido que lhe forram o mago do ser, camadas to inescru-tveis que le mesmo incapaz de divis-las... Repito: So-mos os verdadeiros cristos primitivos, s que chegamos muitotarde. Somos simples como eles eram simples: contemplai ocamarada Witherspoon. Somos modestos, como eles erammodestos: contemplai-me. Somos clementes...

    No! Isso no! demais! protestou Mr. Witherspoon,o do casaco de veludo.

    Gregory repetiu furioso: Somos clementes como os primitivos cristos eram

    clementes, o que no impediu que eles fossem acusados de co-mer carne humana. Ns no comemos carne humana...

    Vergonha! bradou Witherspoon. Por que no?

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    O camarada Witherspoon, disse Gregory com febriljovialidade, est ansioso de saber por que motivo ningum ocome. (Risos) De qualquer modo, no seio de nossa socieda-de, que o estima sinceramente, que est fundada no amor...

    No! no! disse Witherspoon, abaixo o amor! . . . que est fundada no amor, repetiu Gregory ran-gendo os dentes, no haver dificuldade em atingir o objetivoque visamos como uma corporao, ou que eu visaria se fos-se eleito representante dessa corporao. A cavaleiro das ca-lnias que nos representam como assassinos e inimigos da so-ciedade humana, demandaremos, com coragem moral e tran-qilo impulso intelectual, os perenes ideais de fraternidade e

    simplicidade.Gregory volveu a seu banco e passou a mo pela testa.Fz-se um silncio constrangedor, mas o Presidente ergueu-secomo um autmato e falou com voz incolor:

    H algum que se oponha eleio do camarada Gre-gory?

    A assemblia dava a impresso de estar vaga e subcons-cientemente desapontada. O camarada Witherspoon mexia-se

    intranqilo em seu banco e resmungava dentro da espessa bar-ba. Todavia, por mera rotina, a proposta teria sido aprova-da. Mas quando o Presidente ia abrir a boca para declar-laaprovada, Syme levantou-se rapidamente e disse com voz sumidae quieta:

    Sr. Presidente, eu me oponho.O fator decisivo na oratria uma sbita mudana de

    voz. E Mr. Gabriel Syme evidentemente entendia de oratria.

    Tendo pronunciado estas primeiras palavras formais num tommoderado, breve e simples, fz com que as seguintes retumbas-sem e estalassem na abbada, como se uma das armas hou-vesse disparado.

    Camaradas! gritou com uma voz que fz estremeceros ouvintes. Foi para isto que viemos at aqui? Para ouvir-mos frases como essas que vivemos soterrados como ratos?Bobagens desta ordem podemos escutar nos banquetes das es-

    colas dominicais. Revestimos de armas estas paredes e barra-mos a porta com a morte para impedir que outros venham aquiouvir o camarada Gregory dizer-nos: "Sede bons e sereis fe-lizes", "A honestidade o melhor princpio" e "A virtude trazem si mesma a recompensa"? Respondam-me por favor. Nohouve em todo o discurso do camarada Gregory uma nica

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    palavra que um cura no pudesse ouvir com prazer. (Apoiado,apoiado) Mas eu no sou um cura (Ruidosos aplausos) e noo escutei com prazer. (Renovados aplausos) O sujeito talhado

    para ser um bom cura no foi talhado para ser um enrgico,resoluto e eficiente Quinta-feira. (Apoiado, apoiado) O cama-rada Gregory nos disse, num tom demasiadamente indulgente,que ns no somos os inimigos da sociedade. Mas eu digo quens somos os inimigos da sociedade, e tanto pior para a socie-dade. Ns somos os inimigos da sociedade, pois a sociedade inimiga da humanidade, sua mais antiga e impiedosa inimiga.(Apoiado, apoiado) O camarada Gregory nos disse, mais uma

    vez indulgente, que no somos assassinos. Concordo. No so-mos assassinos. Somos carrascos. (Aplausos)Desde que Syme se levantara, Gregory permanecia fitan-

    do-o, com o rosto idiotizado de assombro. Na pausa que sefz, seus lbios cr de barro despregaram-se e le exclamoucom automtica e inanimada clareza:

    Maldito hipcrita!Syme cravou seu olhar azul-plido nos olhos furiosos de

    Gregory e disse com dignidade: O camarada Gregory acusa-me de hipocrisia. le sabe,to bem como eu, que estou mantendo meus compromissos eque no fao outra coisa seno o meu dever. Falo sem rebuos.No simulo. Digo que o camarada Gregory incompetentepara o cargo de Quinta-feira, apesar de todas as suas amveisqualidades. Alis, le est incapacitado de ser Quinta-feira emrazo de suas amveis qualidades. No queremos o Supremo

    Conselho da Anarquia infetado de pieguismo sentimental.(Apoiado, apoiado) No tempo de polidez cerimoniosa,e menos ainda de cerimoniosa modstia. Oponho-me ao cama-rada Gregory como me oporia a todos os governos da Europa.O anarquista que se dedicou anarquia esqueceu a modstiae esqueceu tambm o orgulho. (Aplausos) No sou apenasum homem. Sou uma causa. (Aplausos renovados) Oponho-me ao camarada Gregory to impessoalmente e to serena-

    mente como se tivesse de escolher entre um revlver e outronuma daquelas prateleiras. E digo mais: em lugar de ter Gre-gory e seus mtodos aucarados no Supremo Conselho, ofe-reo-me como candidato...

    Esta frase afogou-se numa ensurdecedora cachoeira deaplausos. Aquelas caras, que iam ficando mais ferozes me-dida que aprovavam as palavras cada vez mais intransigentes

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    de Syme, estavam agora retorcidas em esgares de expectaoou fendidas em gritos de regozijo. No momento em que lese anunciou como candidato ao posto de Quinta-feira, rebentouincontrolvel bramido de excitao e assentimento. Gregory,cuja boca espumava, ergueu-se de um salto e berrou para contera gritaria.

    Parai! Loucos, parai! gritou com uma voz aguda quelhe rasgava a garganta. Parai...

    Entretanto, acima dos brados de Gregory e acima do ala-rido geral, ouvia-se a voz de Syme trovejando impiedosamente:

    No vou para o Conselho com o fim de rebater acalnia dos que nos chamam assassinos; ao contrrio, lutareipor merec-la. (Aplausos estrepitosos e prolongados) Ao p-roco que afirma que estes homens so inimigos da religio, aojuiz que afirma que estes homens so inimigos da lei, ao gordoparlamentar que afirma que estes homens so inimigos da or-dem e da moralidade pblicas, a todos eles responderei: "Soisfalsos reis, mas sois verdadeiros profetas. Vim para destruir-vos e cumprir vossas profecias".

    O pesado clamor paulatinamente decrescia, mas antes que

    cessasse Witherspoon, arrebatado, o cabelo e a barba eriados,falou: Proponho, como emenda, que o camarada Syme seja

    indicado para o posto. Parai! Pairai! gritou Gregory frentico. Tudo isso

    uma..,A voz do Presidente cortou-lhe a palavra com frieza... H algum que esteja de acordo com a emenda? per-

    guntou.Num dos ltimos bancos, um homem alto, cansado, deolhos melanclicos e de cavanhaque americana, tentava levan-tar-se. Gregory, que estivera a esganiar-se at ento, impri-miu voz uma nova modulao, mais espantosa do que qual-quer ganido.

    Vou dar cabo de tudo isso! disse, e sua voz pareciato pesada como uma pedra. Este homem no pode ser eleito.

    le ... . . . ? ! repetiu Syme completamente imvel. Que que le ?

    Duas vezes Gregory abriu a boca mas no pde articularuma s palavra. Depois, lentamente, o sangue comeou a insi-nuar-se em seu rosto inerte.

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    le inexperiente em nosso trabalho, concluiu e sen-tou-se imediatamente.

    Nesse nterim, o homem comprido e magro, do cavanha-que americano, conseguira levantar-se e estava repetindo com

    montono sotaque americano: Peo licena para apoiar a candidatura do camaradaSyme.

    Como de praxe, dever ser apreciada, em primeirolugar, a emenda, disse Mr. Buttons, o Presidente, com mec-nica rapidez. Resta saber se o camarada Syme...

    Gregory estava novamente de p, ofegante e arrebatado. Camaradas! bramiu. No sou nenhum louco.

    Oh, oh! interrompeu Mr. Witherspoon. No sou nenhum louco, reiterou Gregory com to ines-perada sinceridade que por uns instantes a sala ficou em siln-cio. Dou-vos um conselho. Chamai-me louco, se quiserdes.No, no. No direi que um conselho, pois no posso dar-vos nenhuma razo para o seguirdes. Direi que uma ordem.Podeis cham-la uma ordem louca, mas executai-a. Protestai,mas ouvi-me! Matai-me, mas obedecei-me! No elejais este

    homem!A verdade, mesmo agrilhoada, to terrvel, que por ummomento a vitria louca e frgil de Syme oscilou como umcanio ao vento. Mas nada se podia adivinhar nos olhos friose azuis de Syme. Este se contentou com dizer:

    O camarada Gregory ordena...Foi o suficiente para desfazer o feitio. Um dos anarquis-

    tas logo interpelou Gregory:

    Quem voc? Voc no o Domingo.E outro acrescentou em tom mais rude: Nem o Quinta-feira.Camaradas, gritou Gregory, numa voz semelhante de

    um mrtir que, no xtase da dor, supera a prpria dor. Nadasignifica para mim que vs me odieis como tirano ou que medetesteis como escravo. Se no quereis acatar minha ordem,aceitai minha degradao. Ajoelho-me diante de vs, atiro-mea vossos ps, imploro-vos: no elejais este homem.

    Camarada Gregory, disse o Presidente ao fim de umapausa de consternao. Na verdade, isso no muito digni-ficante.

    Pela primeira vez, naqueles lances, houve alguns segundosde silncio real. Gregory, um esqulido destroo de homem,

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    deixou-se cair em seu banco, e o Presidente, como um relgioque tivesse acabado de receber corda, repetiu:

    Resta saber se o camarada Syme deve ser eleito para

    o posto de Quinta-feira no Conselho Geral.O alarido cresceu como o mar, as mos ergueram-se comofloresta, e trs minutos depois, Mr. Gabriel Syme, do ServioSecreto da Polcia, estava eleito para o posto de Quinta-feirano Conselho Geral dos Anarquistas da Europa.

    Todos os que estavam na sala pareciam pensar na lanchaque esperava no rio, na bengala de estoque e no revlver queesperavam em cima da mesa. No instante em que a eleio

    se concluiu e foi declarada irrevogvel e Syme recebeu suascredenciais, todos se puseram de p e os fogosos grupos movi-mentaram-se e confundiram-se na sala. Inesperadamente, Symeviu-se cara a cara com Gregory, que o contemplava com dioe espanto. Passaram muitos minutos fitando-se mutuamente emsilncio.

    Voc um demnio, disse Gregory por fim. E voc um cavalheiro, redarguiu Syme gravemente. Foi voc que me arrastou a esta cilada, comeou Gre-

    gory, trmulo da cabea aos ps. Foi voc que.. . No diga tolices, retrucou Syme. Quem, seno voc,

    me trouxe a este demonaco parlamento? Voc me fz jurarantes que eu o fizesse a voc. Talvez estejamos fazendo o queambos julgamos ser justo. Mas, quanto ao que nos parece

    justo, possumos noes to danadamente contrrias que entrens no pode haver nenhuma conciliao. No temos nada decomum, exceto a honra e a morte. Ao dizer isso ajustou oenorme capote sobre os ombros e apanhou a garrafa de cimada mesa.

    O barco est pronto, disse Mr. Buttons alvoroando-se.Tenha a bondade de acompanhar-me.

    Com um gesto que revelava o recepcionista de loja, Mr.Buttons desceu com Syme por um corredor estreito, reforado

    com arcos de ferro. Seguia-lhes febrilmente os passos o tor-turado Gregory. No fim do corredor havia uma porta que foiaberta engenhosamente por Buttons, desvendando um quadroazul-prateado do rio ao luar, semelhante a um cenrio de tea-tro. A poucos passos achava-se uma escura e minscula lanchaa vapor, que parecia um filhote de drago, com um olho ver-melho.

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    No momento em que ia passar para bordo, Gabriel Symevoltou-se para o ofegante Gregory.

    Voc cumpriu sua palavra, disse cortsmente, com orosto na sombra. um homem de bem. Muito obrigado. Cum-

    priu a palavra at nos pormenores mais insignificantes. Houveuma coisa especial que voc me prometeu no comeo dessessucessos e que realmente me proporcionou.

    De que que voc est falando? bradou o caticoGregory. Que foi que eu lhe prometi?

    Uma noite muito divertida, disse Syme, e fz um cum-primento militar com a bengala de estoque, enquanto a lanchacomeava a deslizar.

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    CAPITULO IV

    A HISTRIA DE UM DETETIVE

    Gabriel Syme no era simplesmente um detetive que pre-tendesse ser poeta; era realmente um poeta que se transformaraem detetive. Seu dio anarquia no era hipcrita. Syme eraum daqueles homens a quem desde cedo a rematada loucurada maioria dos revolucionrios compele a adotar diante da vidauma atitude demasiadamente conservadora. No atingira esseponto por via de nenhuma tradio domstica. Sua respeita-

    bilidade era espontnea e imprevisvel, uma rebelio contra arebelio. Descendia de uma famlia de excntricos, em cujoseio as pessoas mais velhas empolgavam idias mais novas. Umde seus tios tinha o hbito de sair rua sem chapu, e outrofizera gorada tentativa de sair de chapu e mais nada. Seupai cultivava as artes e o aperfeioamento de si mesmo. Suame dedicava-se simplicidade e ao asseio. Por isso o me-nino, durante os seus mais verdes anos, ignorou totalmente

    qualquer bebida entre os extremos do absinto e do licor decacau, pelos quais revelava saudvel repugnncia. Quanto maissua me pregava uma abstinncia mais do que puritana, maisseu pai se expandia numa incontinncia mais do que paga, eno momento em que ela chegou a propagar o vegetarianismo,le j estava a pique de defender o canibalismo.

    Assediado desde a infncia por todos os tipos concebveisde revolta, Gabriel teve de revoltar-se em nome de alguma coisa.

    Assim, revoltou-se em nome da nica coisa que restava: obom senso. Mas dentro dele corria boa parcela do sangue des-tes fanticos, o que fazia com que seus protestos de fidelidadeao senso comum parecessem um pouco ferozes demais para se-rem sensatos. Sua averso desordem moderna foi coroadapor um acidente. Aconteceu que le passava por uma rua quan-

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    do se deu um atentado a dinamite. Por alguns momentos ficoucego e surdo e, quando a fumaa desapareceu, pde ver as

    janelas quebradas e os rostos ensangentados. Depois disto,continuou como de costume: quieto, corts, gentil; mas havia

    em sua mente um ponto que no estava so. No consideravaos anarquistas, do mesmo modo que a maioria considera, comoum punhado de sujeitos mrbidos que combinam ignornciacom intelectualismo. Considerava-os como um perigo imensoe terrvel, uma invaso chinesa.

    Inundava continuamente os jornais e as cestas de papisusados das redaes com uma torrente de contos, versos eviolentos panfletos acautelando as gentes contra esse dilvio

    de brbara negao. Mas parecia ter avanado muito poucona direo do inimigo, como, e isto era muito pior, pare-cia ter avanado menos ainda na direo da prpria subsis-tncia. Quando vagueava pelo aterro do Tmisa, pitando amar-gamente um charuto barato e matutando nos progressos daanarquia, no havia anarquista, dos de bomba no bolso, toselvagem ou to solitrio como le. Inquietava-o permanente-mente o desamparo e o desespero do governo, posto entre a

    espada e a parede. Era quixotesco demais para ver as coisascom naturalidade.Certa vez, sob um crepsculo vermelho-escuro, Syme pas-

    seava pelo aterro. O rio vermelho refletia o cu tambm ver-melho e ambos refletiam sua clera. O cu, de fato, estavato carregado e o rio emitia um claro to acobreado que agua parecia deitar chamas mais violentas que as do cre-psculo. Era literalmente um caudal de fogo correndo sinuoso

    atravs das amplas cavernas de um mundo subterrneo.Nessa poca Syme tinha um aspecto andrajoso. Usavauma antiquada cartola preta e envolvia-se num capote pretoe roto, ainda mais antiquado. Tal combinao tornava-o se-melhante aos antigos viles de Dickens e Bulwer Lytton. Abarba e o cabelo amarelados tambm estavam mais desgrenha-dos e leoninos do que quando surgiram, muito depois, aparadose penteados, nos jardins de Saffron Park. Os dentes cerrados

    mordiam um mata-rato preto, comprido e fino, comprado emSoho. Toda a sua pessoa representava um perfeito exemplardaqueles anarquistas contra quem havia declarado uma guerrasanta. provvel que tenha sido este o motivo que levou oguarda do aterro a caminhar em sua direo e saud-lo:

    Boa noite!

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    Syme, em plena crise de mrbido temor pela sorte dahumanidade, sentiu-se espicaado com a simples e mecnicacortesia do funcionrio, que, ali ao crepsculo, no passavade uma indistinta figura azulada.

    Ser mesmo uma boa noite? disse mordazmente. Vo-cs so capazes de achar boa a noite do fim do mundo. Vejaeste cu, veja este rio: vermelhos, sangrentos! Garanto quese isso fosse rigorosamente sangue humano, espalhado e cinti-lante, voc continuaria aqui perptuamente impassvel, a ins-pecionar pobres transeuntes inofensivos e a ordenar-lhes quese dispersassem. Vocs da polcia so cruis com os pobres,mas eu poderia perdoar a crueldade de vocs no fosse esta

    calma que vocs afetam. Se temos calma, replicou o guarda, a calma da resis-

    tncia organizada. Ah ? disse Syme admirado. O soldado deve ter calma no aceso da batalha, conti-

    nuou o guarda. A disciplina de um exrcito a clera de umanao.

    Valha-me Deus! As Escolas Pblicas! essa a edu-cao no-sectria?

    No, disse o guarda com tristeza. No gozei nuncadesses privilgios. No sou do tempo das Escolas Pblicas.Temo que a minha educao tenha sido muito rudimentar eobsoleta.

    Onde voc estudou? inquiriu Syme curioso. Oh, em Harrow, respondeu o guarda.

    As simpatias de classe, por mais falsas que sejam, so,no obstante, para muitas pessoas as coisas mais verdadeirasdo mundo. E Syme sentiu-as explodirem dentro de si antesque pudesse refre-las.

    Mas homem, por Deus! Voc no devia ser da polcia.O guarda suspirou e meneou a cabea. Tem razo, disse solenemente. Eu sei que no sou

    digno. Mas por que voc ingressou na polcia? interrogouSyme com rude curiosidade.

    Exatamente pelo mesmo motivo que voc tem de insul-tar a polcia. Descobri que havia no servio uma oportuni-dade especial para aqueles, cujos temores pela sorte da huma-nidade dizem respeito antes s aberraes do intelecto cien-

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    tfico que aos normais e desculpveis, ainda que excessivos,distrbios da vontade humana. Espero que tenha sido claro.

    Se voc se refere a suas opinies, acho que as expri-miu claramente, disse Syme. Mas quanto a ter-se explicadoest longe ainda. Como que um homem como voc botaum elmo azul e vem filosofar aqui no aterro?

    Evidentemente voc nada sabe dos ltimos desenvol-vimentos do nosso sistema policial, retorquiu o guarda. Alis,isso no me surpreende. Ns os mantemos em segredo, acoberto das classes cultas, porque so estas que abrigam amaior parcela de nossos inimigos. Mas parece que o seu esp-rito j est predisposto... Penso que voc podia alistar-se.

    Alistar-me em qu? perguntou Syme. Explicarei tudo, disse o guarda calmamente. A situao

    esta: o chefe de um dos nossos departamentos, detetive dosmais clebres de toda a Europa, vem desde muito tempo sus-peitando de uma conspirao puramente intelectual que embreve ameaar a prpria existncia da civilizao. Est con-victo de que os mundos artsticos e cientficos se unem secre-tamente numa cruzada contra a Famlia e o Estado. Por estarazo, le ideou uma especial corporao de detetives, dete-tives que so tambm filsofos. A funo deles investigar asorigens dessa conspirata e combat-la, no s no sentido mera-mente criminal, mas no terreno da controvrsia. Eu sou demo-crata e creio no valor do homem comum em questes de intre-pidez e virtudes comuns. Mas no seria aconselhvel, obvia-mente, o emprego do polcia mediano numa investigao que, ao mesmo tempo, uma caa heresia.

    Os olhos de Syme brilhavam de curiosidade e simpatia. O que que fazem ento? perguntou. A misso do polcia-filsofo, respondeu o homem de

    azul, mais arriscada e mais sutil do que a do simples detetive.O detetive comum vai s cervejarias capturar ladres; ns nosdirigimos ao seres artsticos para descobrir pessimistas. Atra-vs das pginas de um razo ou de um dirio os detetivescomuns descobrem que se cometeu um crime. Ns, atravsde um livro de sonetos, descobrimos que um crime est paraser cometido. Temos que seguir desde a origem a pista da-queles pensamentos terrveis que conduzem os homens ao fana-tismo intelectual e, por fim, ao crime intelectual. H pouco,tivemos de correr bastante para chegarmos a tempo de impedirum assassnio em Hartlepool. O nosso xito se deveu exclusi-

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    vmente argcia do jovem Mr. Wilks, nosso companheiro,que atinara com o sentido exato de umas oitavas que havialido.

    Quer dizer, inquiriu Syme, que h realmente tal cone-xo entre o crime e a inteligncia moderna?

    Voc no suficientemente democrata, replicou oguarda, mas tinha razo h pouco quando disse que o trata-mento que dispensamos usualmente aos criminosos pobres um tanto brutal. Garanto-lhe que abomino meu ofcio quan-do, algumas vezes, sinto que le consiste apenas numa guerraaos ignorantes e desesperados. Mas este nosso novo movi-mento uma empresa muito diferente. Procuramos dar um des-

    mentido ao pretensioso axioma ingls que diz que os incultosso os criminosos temveis. Lembramo-nos dos imperadoresromanos, dos prncipes da Renascena, grandes envenenado-res. Afirmamos que o criminoso temvel o criminoso culto.Afirmamos que o criminoso mais temvel destes tempos ofilsofo moderno inteiramente brbaro. Comparados com le,arrombadores e bgamos so homens de moralidade perfeita;meu corao me leva para o lado deles. Aceitam o ideal es-

    sencial do homem; s que o procuram erroneamente. Os la-dres respeitam a propriedade; s que desejam que a proprie-dade se torne propriedade deles para que possam respeit-lamais e melhor. Mas os filsofos condenam a propriedade en-quanto propriedade, querem destruir a simples idia da possepessoal. Os bgamos respeitam o matrimnio, ou ento no le-variam a cabo a formalidade altamente cerimoniosa e ritualsticada bigamia. Mas os filsofos desprezam o casamento como ca-

    samento. Os assassinos respeitam a vida humana; apenas dese-jam obter para si mesmos uma abundncia maior de vida hu-mana, com o sacrifcio daquelas que lhes parecem vidas me-nores. Mas os filsofos odeiam a vida mesma, a deles ea dos outros.

    Syme ps-se a bater palmas. Isso verdadeiro! bradou. Tenho pensado assim desde

    a infncia, mas nunca pude estabelecer a anttese verbal. O

    criminoso vulgar um mau sujeito, mas , em todo caso, con-dicionalmente bom. Desde que um determinado obstculo um tio rico, por exemplo seja removido, est pronto paraaceitar o universo e louvar a Deus. reformador, no anar-quista. Pretende limpar o edifcio e no destru-lo. Mas o fil-sofo pernicioso no tenta alterar as coisas; quer aniquil-las.

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    Sim, o mundo moderno conservou todas aquelas facetas real-mente opressivas e ignominiosas da funo policial, como sa-quear os pobres e perseguir os infortunados. Abandonou aobra mais digna: a punio dos poderosos traidores do Estado

    e dos poderosos heresiarcas da Igreja. Os modernistas dizemque no devemos punir os herticos. Minha nica dvida resi-de em saber se temos o direito de punir algum mais.

    Mas isto absurdo! exclamou o guarda, esfregandoas mos numa excitao inusitada em pessoas da sua categoriae dos seus hbitos. Mas inexplicvel! No sei o que vocfz, mas sei que est desperdiando sua vida. Voc deve,com urgncia, alistar-se em nosso exrcito especial para lutar

    contra a anarquia. Os exrcitos de nossos inimigos esto emnossas fronteiras. Apertam o cerco. Um momento mais e vocpoder ser excludo da glria de trabalhar conosco e talvezda glria de morrer com os ltimos heris do mundo.

    Realmente uma oportunidade que no se deve des-perdiar, anuiu Syme. Mas ainda no entendi tudo. Sei, tantoquanto qualquer outro, que o mundo moderno est cheio dehomenzinhos sem lei e de pequenos movimentos absurdos. Mas,

    selvagens como eles so, tm geralmente o mrito de discor-darem uns dos outros. Como que voc pode dizer que che-fiam um exrcito ou organizam uma investida? Que espcie deanarquia esta?

    No a confunda, redargiu o guarda, com essas for-tuitas exploses de dinamite na Rssia e na Irlanda, que soefetivamente as exploses de homens oprimidos, se bem quedesorientados. Falo de um vasto movimento filosfico, com-

    posto de dois crculos: um externo e outro interno. Pode dizer-se mesmo que o crculo externo o dos leigos e que o interno o do sacerdcio. Prefiro dizer que o crculo externo dosetor inocente e que o interno o setor supremamente culpado.Os do crculo externo, que formam a copiosa massa dos sec-trios, so simples anarquistas, isto , homens que acreditamque as normas e as frmulas destruram a felicidade humana.Crem que todos os funestos efeitos do crime so conseqn-

    cias normais do sistema que lhe deu o nome de crime. Nocrem que o crime gera o castigo. Crem que o castigo gerouo crime. Para eles, o homem que seduziu sete mulheres deverianaturalmente passar impune como as flores da primavera. Paraeles o punguista naturalmente um sujeito de sentimentos deli-cadamente generosos. Estes eu filio ao setor dos inocentes.

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    Oh! murmurou Syme. natural, portanto, que estas pessoas falem no ad-

    vento de uma era de felicidade, no paraso do futuro, numa

    humanidade liberta da servido do vcio e da servido da vir-tude, e de coisas semelhantes. Assim tambm falam os docrculo interno, os do sacerdcio sagrado. Tambm falam paraas multides aclamadoras da felicidade futura e da humanidadeque um dia ser livre. Mas em suas bocas (e aqui o guardabaixou a voz), em suas bocas essas frases ditosas tm umasignificao aterradora. Eles no tm iluses; so demasiada-mente intelectuais para crer que neste mundo o homem possa

    libertar-se uma vez sequer do pecado original e do combate.Suas palavras querem dizer morte. Quando asseveram que ahumanidade h de ser livre algum dia, tm em mente que ahumanidade h de suicidar-se. Quando falam de um parasofora do bem e do mal, tm em mente o tmulo. Visam apenasdois objetivos: destruir primeiro a humanidade e depois des-trurem-se a si mesmos. este o motivo por que lanam bom-bas em vez de disparar pistolas. A tropa dos inocentes fica

    desapontada ao ver que a bomba no matou o rei, mas o altosacerdcio regozija-se por saber que matou algum. Como posso unir-me a vocs? perguntou Syme numa

    espcie de arrebatamento. Sei de certeza que no momento h uma vaga, disse

    o guarda, j que tenho a honra de merecer um pouco da con-fiana do chefe, do qual lhe falei. Voc deveria vir v-lo.

    Alis, no direi que voc vai v-lo, pois que ningum nuncao viu; mas poder falar com le, se quiser. Pelo telefone? inquiriu Syme com interesse. No, respondeu calmamente o guarda. le tem o ca-

    pricho de viver sempre num quarto escuro como breu. Dizque assim seus pensamentos ficam mais claros. Venha comigo.

    Um pouco confuso e muito animado, Syme deixou-se levar

    at uma porta lateral na longa fila de edifcios da ScotlandYard. Antes de dar pelo que fazia, passou pelas mos de cercade quatro oficiais intermedirios e encontrou-se de um mo-mento para outro num quarto cuja escurido inesperada feriu-ocomo uma centelha. Nada tinha da escurido normal, em queas formas pouco a pouco se esboam; era antes a escuridoda cegueira instantnea.

    o novo recruta? perguntou uma voz dura.

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    E estranhamente, visto que nenhum contorno se podiaadivinhar naquela escurido, Syme compreendeu duas coisas:a primeira, que a voz procedia de um homem de estatura des-comunal e a segunda, que o homem estava de costas para le.

    o novo recruta? repetiu o chefe invisvel, que pare-cia estar a par de tudo. Est bem. Est admitido.Syme, assombrado, trmulo, procurou timidamente lutar

    contra esta sentena irrevogvel. Mas eu, na verdade, no tenho experincia... Ningum tem nenhuma experincia da batalha do Ar-

    magedon, disse o outro.

    Tambm no sei se sou capaz... Voc quer e isso basta, disse o desconhecido. Mas, a verdade, ponderou Syme, que no sei de

    nenhum ofcio em que a simples boa vontade seja prova deaptido.

    Eu sei, disse o outro. O dos mrtires. Eu o estoucondenando morte. Passe bem.

    Foi assim que ao reaparecer com sua deplorvel cartola

    preta e seu anrquico e deplorvel capote na claridade carme-sim do crepsculo, Gabriel Syme vinha feito membro da novacorporao de detetives, fundada para dar combate grandeconspirao. Seguindo os conselhos do guarda seu amigo (queera profissionalmente inclinado ao asseio) aparou o cabelo ea barba, comprou um chapu novo, vestiu um irrepreensvelterno de vero azul-cinza, enfiou uma flor amarela na lapelae, em suma, converteu-se naquele sujeito elegante e quase into-

    lervel que Gregory veio a conhecer no jardinzinho de SaffronPark. Antes que le deixasse os quartis da polcia, seu amigoentregou-lhe um cartozinho azul, onde se lia um nmero e aspalavras "A Ultima Cruzada", signo de sua autoridade oficial.Guardou-o cuidadosamente no bolso do colete, acendeu umcigarro e dali partiu para caar e acometer o inimigo em todosos sales elegantes de Londres. J vimos para onde sua aven-tura o guiou finalmente. Mais ou menos uma e meia da

    madrugada de um dia de fevereiro, le se encontrava subindoo silencioso Tmisa, armado de bengala de estoque e revlver,solenemente eleito Quinta-feira do Conselho Central Anarquista.

    Quando Syme tomou a lancha, experimentou a esquisitasensao de estar vivendo num ambiente completamente novo;no s na paisagem de uma nova terra, mas na paisagem

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    de um novo planeta. Isto se devia, em grande parte, im-pensada porm firme resoluo daquela noite e, um poucotambm, completa mudana havida no tempo e no cu, desdeque entrara na lbrega taberna duas horas antes. Todos os

    sinais da apaixonada plumagem daquele anuviado crepsculohaviam-se desvanecido. Agora a nudez da lua pairava na nudezdo cu. A lua estava to redonda, to cheia, que (por para-doxo que deve ter sido notado inmeras vezes) parecia um solmais fraco. Dava, no a impresso de uma resplandecentenoite de lua, mas a de um mortio dia de sol.

    Sobre toda a paisagem derramava-se um irreal e luminosopalor, como naquele crepsculo que, no dizer de Milton, pro-

    voca o sol em eclipse. isso veio reafirmar em Syme a con-vico de que se achava num outro planeta mais vazio, quegirava em volta de uma estrela mais triste. Contudo, opunha aesta ofuscante desolao na terra luarenta a sua cavalheirescaloucura, que chamejava na noite como uma imensa fogueira.Mesmo as coisas comuns que trazia consigo a comida, oconhaque e o revlver carregado revestiam-se daquela poesiaconcreta e material que toca o menino que leva uma espingarda

    num passeio ou que vai para a cama com um pedao de bolo.A bengala de estoque e a garrafa de conhaque, embora fossemos utenslios de mrbidos conspiradores, tornavam-se as ex-presses de um romance mais saudvel. Syme via na bengalade estoque a espada do paladino e no conhaque o vinho dotrago de despedida. Em verdade, as mais desumanizadas fan-tasias modernas necessitam, para se firmar, de alguns smbolosmais antigos e mais simples. A aventura pode ser louca, mas

    o aventureiro deve ser so. O drago sem So Jorge no seriasequer grotesco. Assim, aquela paisagem s era fantstica pelapresena de um ente realmente humano. Para o esprito exal-tado de Syme, as casas e os terraos reluzentes e frios dasmargens do Tmisa pareciam to ermos como as montanhas dalua. Mas a prpria lua s potica porque h o homem dalua.

    A lancha era manejada por dois homens, e com muitoesforo avanava com lentido. A lua transparente que alumiaraChiswick desaparecera no momento em que eles passavam porBattersea. Ao chegarem diante da portentosa frontaria de West-minster o dia comeava a raiar. Raiava como enormes barrasde chumbo que se racham deixando entrever barras de prata;e estas esplendiam como fogo alvacento quando a lancha, mu-

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    dando de rumo, derivou para os lados de uma ampla escadade desembarque localizada um pouco alm de Charing Cross.

    As grandes pedras do aterro revelavam-se aos olhos deSyme escuras e gigantescas. Eram negras e descomunais nainfinita alvura da aurora. Contemplando-as, Syme sentia-se co-mo se fosse desembarcar nas colossais escadarias de um palcioegpcio. Realmente, a impresso no era despropositada. le,em esprito, ia galg-las para atacar os slidos tronos de terrveisreis pagos. Pulou da lancha sobre um degrau escorregadio eficou, um instante, imvel, forma escura e delgada no meioda fabulosa pedraria. Os dois tripulantes se afastaram na lan-cha, rumando contra a corrente. No tinham pronunciado umanica palavra.

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    CAPITULO V

    A FESTA DO MEDO

    primeira vista, a ampla escadaria de pedra pareceu aSyme to deserta quanto uma pirmide; mas, antes de atingir otopo, descobrira que um homem, debruado no parapeito, es-quadrinhava o rio. Quanto aparncia, le era totalmente con-vencional. Usava um chapu alto de seda e envergava um so-bretudo do tipo de moda mais formalista, com uma flor ver