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FICHA TÉCNICA Título original: Church of Spies – The Pope’s Secret War against Hitler Autor: Mark Riebling Copyright © 2015 by Mark Riebling Todos os direitos reservados Edição original publicada nos EUA por Basic Books, membro do Perseus Book Group Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2016 Tradução: Paulo Emílio Pires Revisão: Vasco Grácio/Editorial Presença Design da capa © José Luis Maldonado López Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. 1. a edição, Lisboa, outubro, 2016 Depósito legal n. o 413 464/16 Reservados todos os direitos para a língua portuguesa (exceto Brasil) à EDITORIAL PRESENÇA Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730‑132 Barcarena [email protected] www.presenca.pt

Church of Spies – The Pope’s Secret War against Hitler ... · tinha participado numa conspiração para matar Hitler «recor‑ rendo ao serviço de espionagem do clero católico».1

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FICHA TÉCNICA

Título original: Church of Spies – The Pope’s Secret War against HitlerAutor: Mark RieblingCopyright © 2015 by Mark RieblingTodos os direitos reservadosEdição original publicada nos EUA por Basic Books, membro do Perseus Book GroupTradução © Editorial Presença, Lisboa, 2016Tradução: Paulo Emílio PiresRevisão: Vasco Grácio/Editorial PresençaDesign da capa © José Luis Maldonado LópezComposição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.1.a edição, Lisboa, outubro, 2016Depósito legal n.o 413 464/16

Reservados todos os direitospara a língua portuguesa (exceto Brasil) àEDITORIAL PRESENÇAEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730 ‑132 [email protected]

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ÍnDICE

PrÓlOgO ........................................................................................ 13

Capítulo 1 — Trevas sobre a Terra ................................................... 16

Capítulo 2 — O fim da Alemanha .................................................... 45

Capítulo 3 — Zé dos bois .................................................................. 53

Capítulo 4 — Tiranicídio ................................................................... 70

Capítulo 5 — Alguém para o matar .................................................. 84

Capítulo 6 — Sorte do diabo ............................................................. 92

Capítulo 7 — A Capela negra .......................................................... 101

Capítulo 8 — Sigilo absoluto ............................................................. 107

Capítulo 9 — O relatório ‑X ............................................................. 116

Capítulo 10 — Avisos ao Ocidente .................................................... 123

Capítulo 11 — As Aves Castanhas ..................................................... 129

Capítulo 12 — bater o ferro .............................................................. 139

Capítulo 13 — O Comité .................................................................. 146

Capítulo 14 — Conversas na cripta ................................................... 157

Capítulo 15 — Tiroteio na catedral ................................................... 163

Capítulo 16 — Duas garrafas de conhaque ...................................... 172

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Capítulo 17 — Siegfried ..................................................................... 186

Capítulo 18 — O cavaleiro branco .................................................... 193

Capítulo 19 — Prisioneiro do Vaticano ............................................. 206

Capítulo 20 — Tem de acontecer ...................................................... 221

Capítulo 21 — Santa Alemanha ........................................................ 226

Capítulo 22 — O achado ................................................................... 233

Capítulo 23 — O inferno ................................................................... 243

Capítulo 24 — A forca ....................................................................... 252

Capítulo 25 — Um homem morto .................................................... 264

Capítulo 26 — O lago cor de esmeralda ........................................... 269

EPÍlOgO .......................................................................................... 283

AgrADECIMEnTOS ...................................................................... 295

AbrEVIATUrAS .............................................................................. 299

nOTAS ............................................................................................... 305

FOnTES ............................................................................................. 395

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PrÓlOgO

Em abril de 1945, os nazis tentaram vergar o homem a quem chamavam «o melhor agente do Serviço de Informações do Vaticano na Alemanha». A julgar pela aparência, Josef Müller era apenas um editor bávaro de orelhas grandes, que fumava cachimbo e colecionava selos. Contudo, desde a sua detenção por fornecer dinheiro e documentos falsos a judeus, passara a figurar num caso de rara importância. A gestapo afirmava que Müller tinha participado numa conspiração para matar Hitler «recor‑rendo ao serviço de espionagem do clero católico».1

Mas Müller recusou ‑se a confessar. «Tinha nervos de aço e dominava a situação», recordou um ajudante prisional. Quando os guardas o desalgemaram, derrubou ‑os com golpes de jiu ‑jitsu. A sua determinação provocou o assombro de outros prisioneiros, que o haviam tomado por um tipo normal. «À primeira vista», escreveu um espião britânico encarcerado juntamente com Müller, «era apenas um sujeito gorducho de compleição rosada e cabelo louro e pardacento cortado à escovinha, o tipo de pessoa para quem não olhamos segunda vez se nos cruzarmos com ela; e, todavia, [era] um dos homens mais corajosos e determinados que se possa imaginar.»2

Um gigante da SS só com uma perna entrou na cela de Mül‑ler. O Sturmführer kurt Stavitzki acorrentou as grilhetas dos pés de Müller a uma barra. Os vizinhos de Müller no campo de concentração de Flossenbürg viram ‑no depois ser obrigado

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a alimentar ‑se como um animal, de um prato pousado no chão, com as mãos amarradas atrás das costas.3

Após uma vistoria à mala de Müller, Stavitzki agarrou num envelope. Continha uma carta da mulher de Müller em que esta tentava saber o que lhe tinha acontecido. Acrescentara também uma carta da filha, a contar que iria fazer a Primeira Comu‑nhão no domingo seguinte. Stavitzki pegou em ambas as cartas e rasgou ‑as.4

Queria saber mais sobre as ligações de Müller ao Vaticano. Um ficheiro descrevia ‑o como «um homem invulgarmente intrépido de formação jesuíta», através do qual generais alemães dissiden‑tes «mantinham contacto com o papa». Segundo planos de golpe de Estado entretanto apreendidos, Pio XII tinha dito a Müller que a mudança de regime na Alemanha constituía um pré ‑requisito para a paz.5

Stavitzki confrontou Müller com um desses planos de golpe. «Alguns alemães honrados decidiram negociar com os ingleses por intermédio do Vaticano», lia ‑se na frase inicial. Stavitzki leu o texto em voz alta e, de cada vez que se deparava com a expressão «alemães honrados», desferia um golpe com as costas da mão no maxilar superior de Müller. Os dentes deste começaram a cair. Por fim, Stavitzki bateu ‑lhe com tanta força que derrubou tanto Müller como a cadeira em que este estava sentado. Depois avançou para ele, gritando: «Fala ou morres!»6

no domingo, 8 de abril, Müller tinha a cara toda pisada e inchada. Estava a deambular pela cela, arrastando os pés, para se aquecer, quando a porta se abriu de rompante. «O espetáculo está a chegar ao fim», disse Stavitzki. Depois gritou para o fundo do corredor: «O oficial às ordens já está no pátio das execuções?»7

O patíbulo fora erguido no recinto da parada. Um escadote com seis degraus dava acesso ao estrado onde, de uma fiada de ganchos, pendiam os laços corrediços. «regra geral, os conde‑nados eram enforcados despidos», apurou um relatório sobre os crimes de guerra cometidos em Flossenbürg. «Era frequente as desafortunadas vítimas serem espancadas antes do enforcamento, de tal forma que suplicavam que as enforcassem sem demora,

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para pôr fim ao tormento. Outro método de execução consistia em pendurar a pessoa pelos pulsos com um pesado barril sus‑penso dos tornozelos. Isto rasgava as entranhas do condenado, levando à sua morte.»8

Um prisioneiro soviético, o general Pyotr Privalov, viu Müller ser conduzido para o cadafalso. Chamou ‑o, na esperança de par‑tilhar com ele um último olhar de desafio. Mas falou em russo e, a princípio, Müller não reagiu. Quando este finalmente ergueu o olhar, parecia «conformado». Depois desapareceu da vista de Privalov.9

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CAPÍTUlO 1

TrEVAS SObrE A TErrA

Seis meses antes do início da II guerra Mundial, os cardeais da Igreja Católica reuniram ‑se em roma. As portas da Capela Sistina fecharam ‑se atrás deles e os guardas suíços arvoraram as suas achas a barrar o caminho a quem tentasse entrar no conclave, ou abandoná‑‑lo, antes de a maior religião do mundo ter escolhido o seu novo líder. no dia seguinte, 2 de março de 1939, milhares de pessoas enchiam a praça de São Pedro, de olhos cravados na chaminé que encimava o telhado da capela. Por duas vezes dela se ergueu fumo negro, a assinalar uma votação inconclusiva. Como sempre, a ausência de fumo branco fazia crescer a expectativa; mas, pela primeira vez desde que havia memória, o espetáculo atraiu uma multidão de cor‑respondentes da imprensa estrangeira, cujas teleobjetivas, no dizer de uma testemunha, faziam lembrar «canhões antitanque». Com a Europa a caminho da guerra, as afirmações públicas do novo papa podiam influenciar as opiniões, a sua diplomacia discreta mudar o rumo dos acontecimentos. «nunca desde a reforma», escreveu um observador, «tinha a eleição de um novo papa sido aguardada com tanta ansiedade pelo mundo inteiro.»1

Às 17h29, um penacho de fumo branco ergueu ‑se da chaminé. Voaram chapéus, ribombaram canhões, repicaram sinos. na varanda do Palácio Apostólico, o cardeal protodiácono debruçou‑‑se sobre um microfone. «Anuncio ‑vos uma grande alegria. Temos papa! O eminentíssimo e reverendíssimo cardeal Eugenio Pacelli, que se impôs o nome de Pio XII.»2

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Com passos hesitantes, o novo papa acercou ‑se da balaustrada. Era majestaticamente alto e de uma palidez cadavérica, com olhos como diamantes negros. Ergueu a mão. A praça aquietou ‑se e a multidão pôs ‑se de joelhos. Por três vezes o novo papa fez o sinal da cruz. A multidão levantou ‑se num enorme fragor: gritos de Evviva il Papa! fundiram ‑se com o clamor cadenciado de Pacelli, Pacelli, Pacelli! Este manteve ‑se de pé na varanda, distribuindo bên‑çãos pelos presentes, com as mangas das vestes abertas como asas brancas. Depois, bruscamente, virou ‑se e desapareceu no interior de São Pedro.3

no palácio, Pacelli entrou no quarto de um amigo moribundo. O cardeal Marchetti ‑Selvaggiani tentou soerguer ‑se. «Santo Padre», sussurrou ele, ao que Pacelli lhe terá pegado na mão e dito: «Esta noite, deixa ‑me que continue a ser Eugenio.» Mas o manto de Pontifex Maximus, envergado por 257 santos e vilões antes dele, já se tinha apossado de Pacelli. Desde o momento da sua eleição, escreveu mais tarde, sentiu «todo o peso das graves responsabilidades».4

De volta aos seus aposentos, encontrou um bolo de aniversário com sessenta e três velas. Agradeceu à governanta, mas deixou ‑o intacto. Depois de rezar um terço, mandou chamar o seu com‑panheiro de longa data, monsenhor ludwig kaas. Deixaram os aposentos papais e só regressaram às duas da manhã.5

Um dos primeiros biógrafos autorizados do papa descreve o que se seguiu. Pacelli e kaas atravessaram as passagens traseiras do palácio e entraram por um nicho na parede sul da basílica de São Pedro. Detiveram ‑se diante de uma porta existente entre as estátuas de Santo André e de Santa Verónica. Dava para um túnel que conduzia a outra porta, pesada e de bronze, com três fecha‑duras. kaas abriu ‑a com as chaves do seu breviário, fechou ‑a de novo atrás deles e desceu com Pacelli por umas escadas de metal, até à cripta do Vaticano.6

O ar era quente e húmido, de uma humidade pesada, con‑sequência da proximidade do Tibre. Uma passagem curva dava acesso ao jazigo, com as suas paredes repletas de falecidos papas e reis. Pacelli apanhou a bainha da sotaina e ajoelhou ‑se diante

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de uma pequena estrutura em forma de caixa que protegia um buraco aberto na terra. Aí se quedou a refletir e, pouco depois, tomou a sua primeira decisão enquanto papa. O seu subsecretário de Estado haveria mais tarde de considerá ‑la uma das «estrelas que iluminaram o seu árduo caminho (...), da qual retirou força e perseverança, e que, de certa forma, deu origem (...) ao programa do seu pontificado». Com esta decisão, Pacelli procurava resolver um dos mais perturbantes mistérios do Vaticano — e os fantasmas com que se deparou nessa demanda iriam tornar ‑se nos seus guias.7

O enigma que Pacelli decidiu deslindar era tão antigo como a própria Igreja. Em dado momento do século i, São Pedro partiu para roma, liderou uma igreja que abalou o Estado e morreu numa cruz no Vaticanum, um pântano conhecido pelas grandes cobras e o mau vinho. A Igreja nascente tinha ‑se refugiado no sub‑solo, literalmente nas catacumbas, e os sucessores do primeiro papa mantiveram prudentemente em segredo o local da sua sepultura. Contudo, há muito que os romanos segredavam que Pedro estava sepultado sob o altar ‑mor da basílica que ostentava o seu nome. Os rumores centravam ‑se num monte de alvenaria e outros materiais desconhecidos, com seis metros de largura e doze de profundidade. ninguém fazia ideia do que existiria por baixo ou no interior desta misteriosa estrutura. Havia quem dissesse que encerrava ouro e prata, para ali deitados através de uma conduta pelos peregrinos medievais. Outros afirmavam que ocultava uma urna de bronze contendo as ossadas de Pedro. nunca ninguém organizara uma expedição para pôr essas lendas à prova. De acordo com registos do próprio Vaticano, uma maldição de mil anos, pormenorizada em documentos secretos e apocalípticos, ameaçava com os piores infortúnios imagináveis quem perturbasse o alegado lugar da sepul‑tura de Pedro.8

Todavia, em 1935, Pacelli tinha quebrado o tabu. Pio XI pediu para ser sepultado sob o altar ‑mor, e arranjar espaço para o seu caixão implicava ampliar a cripta. Pacelli, que entre outras funções era presidente da Pontifícia Academia romana de Arqueologia, decidiu aumentar a altura da cripta rebaixando o chão cerca de

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um metro. Mas, aos setenta e cinco centímetros de profundidade, os engenheiros ao serviço do papa puseram a descoberto algo completamente inesperado: a fachada de um mausoléu, decorada com frisos de crânios e pigmeus — uma alegoria pagã alusiva ao duelo entre a vida e a morte. A cripta do Vaticano assentava sobre uma necrópole perdida, uma cidade dos mortos, intocada desde os tempos imperiais.9

Pacelli, convencido de que no interior deviam estar as ossadas de Pedro, pediu para aprofundar as escavações. Pio XI recusou. Os seus cardeais consideraram o projeto um sacrilégio; os seus arquite‑tos acharam ‑no perigoso. Se as escavações danificassem os pilares que sustentavam a maciça cúpula concebida por Miguel Ângelo, a maior igreja do mundo desmoronar ‑se ‑ia.

Mas Pacelli, mais do que qualquer papa anterior, tinha fé na ciência. Enquanto católico que frequentara um liceu liberal, sujeito a provocações por causa da injustiça feita a galileu, inte‑riorizou uma reverência compensatória para com as aventuras da razão. «Ó perscrutadores dos céus!», proclamou com entusiasmo. «gigantes que contais as estrelas e dais nome às nebulosas.» Elo‑giou não apenas a ciência pura mas também as suas utilizações. Os panegíricos que teceu a caminhos de ferro e a fábricas podiam ser excertos do Atlas Shrugged. nenhum problema de engenharia seria bastante para o desencorajar, nenhuma maldição religiosa capaz de impedir a sua demanda. «Os heróis da investigação», afirmou Pacelli, não temeriam «as dificuldades e os riscos». Agora, na sua primeira noite como papa, ajoelhado diante da abertura opaca da escavação interrompida, Pacelli decidia levar a cabo uma explora‑ção aprofundada.10

A demanda prefigurava, em menor escala, o épico empreendi‑mento secreto do seu pontificado. Seria ali, no local desse arrojado projeto, que, com a sua bênção, os seus coadjutores se reuniriam para urdir um outro ainda mais ousado. O segundo empreendi‑mento, tal como o primeiro, evidenciava a assinatura da governa‑ção de Pacelli. Ambos os projetos deixavam perceber um fetiche pelo secretismo. Ambos dependiam de exilados alemães, operacio‑nais leigos alemães e jesuítas alemães. Ambos implicavam ruturas

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entre palavras ditas às claras e atos dissimulados. Ambos colocavam a maior Igreja do mundo em perigo. E ambos iriam culminar em controvérsia, fazendo o pontificado de Pacelli parecer tão aziago que houve quem pensasse que este fora realmente atingido pela maldição dos profanadores do túmulo.

Enquanto Pacelli rezava na cripta do Vaticano, as luzes mantinham ‑se acesas até tarde na morada mais temida da Ale‑manha. A mansão de cinco andares do n.º 8 da Prinz ‑Albrecht‑‑Strasse, em berlim, fora outrora uma escola de arte, mas os nazis tinham transformado os ateliês de escultura em celas. Dois guardas armados de pistola e cassetete vigiavam a imponente esca‑daria principal. no último andar trabalhava Heinrich Himmler, reichsführer da Schutzstaffel (SS), a unidade de terror de Hitler. num gabinete contíguo, o especialista de Himmler em questões do Vaticano afadigava ‑se diante de uma máquina de escrever, a preparar um dossiê sobre o papa recém ‑eleito.11

O Sturmführer Albert Hartl era um padre laicizado. Tinha cara redonda, óculos redondos e um tufo de cabelo que fazia lem‑brar um penacho índio. A mulher descreveu ‑o como «taciturno, austero, evasivo (...), muito temperamental». Tornara ‑se padre depois da morte do pai, um livre ‑pensador, para agradar a uma mãe devota. Os problemas surgiram quando os superiores o con‑sideraram «inadequado para lidar com raparigas». Abandonou a Igreja em circunstâncias misteriosas, depois de denunciar o seu melhor amigo, também ele padre, aos nazis.12

«Afirma que acordou no quartel ‑general da gestapo em Muni‑que numa manhã de janeiro de 1934», escreveu um interrogador do pós ‑guerra, «coberto de nódoas negras e cheio de dores. Um dos pés exibia uma enorme ferida e tinha a cabeça entumecida e a supurar. Os lábios estavam azuis e inchados e havia perdido dois dentes. Tinha sido espancando sem dó nem piedade mas não se lembrava de nada, diz.» De pé junto de Hartl estava um homem alto com o rosto oval de um «anjo caído». O chefe da espionagem da SS, reinhard Heydrich, explicou que Hartl fora «agredido e envenenado por fanáticos da Igreja».13

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Heydrich convidou ‑o para se juntar aos serviços secretos nazis. na qualidade de chefe da Unidade II/b, Hartl lideraria uma equipa de antigos padres que espiava católicos antinazis — «para os assediar e reprimir e, por fim, destruir». Como o próprio Hitler afirmara: «não queremos nenhum outro Deus senão a Alemanha.» Hartl alistou ‑se de imediato. Como recordaria mais tarde um colega, serviu desde então «com todo o ódio de um renegado». «A luta contra o mundo que eu tão bem conhecia é agora o traba‑lho da minha vida», escreveu Hartl no seu CV atualizado.14

A eleição do novo papa deu ‑lhe uma oportunidade de brilhar. Esperava que as altas esferas, até mesmo Hitler, lessem o seu dossiê sobre Pio XII. Coligiu fontes públicas e secretas, socorreu ‑se da sua própria experiência para depurar os factos e utilizou o estilo conciso tão do agrado dos atarefados decisores políticos.15

Papa Pio XII (Cardeal Pacelli)

biografia:2 de março de 1876 nasce em roma.1917 núncio em Munique — intensa colaboração nos esforços de

paz do Vaticano.1920 ‑1929 núncio em berlim.1929 Cardeal.1930 Cardeal Secretário de Estado — viagens aos Estados Unidos e

a França.

Atitude face à Alemanha — Pacelli foi sempre muito pró ‑alemão [sehr deutschfreundlich] e conhecido pelo seu excelente domínio da lín‑gua alemã. Mas a sua defesa da política oficial da Igreja levou ‑o muitas vezes a entrar em conflito, por princípio, com o nacional‑‑socialismo.16

O conflito tinha começado com um acordo. Quando os nazis tomaram o poder, em 1933, Pio XI elogiou o anticomunismo de Hitler e aceitou a proposta deste para formalizar os direitos dos católicos. Pacelli negociou uma concordata garantindo o

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financiamento da Igreja com 500 milhões de marcos de receitas fiscais anuais. «Ao assinar esta concordata, o papa apontou o cami‑nho para Hitler a milhões de católicos até agora distantes», escre‑veu Hartl. Mas, em meados da década, a concordata tornara ‑se um estorvo para Hitler. Pacelli bombardeou berlim com cinquenta e cinco notas de protesto por violações do acordo. Tornou ‑se claro, conforme afirmou um oficial da SS, que «seria absurdo acusar Pacelli de ser pró ‑nazi».17

As declarações públicas de Pacelli incomodavam berlim. A encí clica de 1937 Mit brennender Sorge (Com Viva Ansiedade) acusava o Estado alemão de planear a aniquilação da Igreja. Mas as pala‑vras mais cortantes, observaram os analistas nazis, provinham dos protestos de Pacelli: «ódio», «maquinações», «lutas até à morte». Com essas palavras, entendia Hartl, Pacelli «intimava o mundo inteiro a lutar contra o reich».18

Pior que tudo, Pacelli pregava a igualdade racial. «A cristan‑dade terá supostamente reunido todas as raças, negros e brancos, numa grande e única família de Deus», desdenhava Hartl. «Daí que a Igreja Católica também rejeite o antissemitismo.» numa alocução em França, Pacelli condenara a «superstição da raça e do sangue». Como consequência, cartunistas nazis desenharam um Pacelli de nariz adunco a conviver alegremente com Jesse Owens e alguns rabinos, ao mesmo tempo que, afirmava Hartl, «era elo‑giado por toda a imprensa judaizada dos EUA».19

Estas doutrinas eram perigosas porque não se ficavam apenas pela retórica. A polícia secreta encontrou católicos «ideologica‑mente ineducáveis» nas suas continuadas transações com comer‑ciantes judeus. Conforme constatou a SS, «nas regiões onde o catolicismo político ainda detém influência, os camponeses estão tão infetados pelas doutrinas católicas que se mostram surdos a qualquer discussão do problema racial». Camponeses católicos chegaram mesmo a alterar uma tabuleta que dizia «não queremos aqui judeus» para passar a dizer «Queremos aqui judeus».20

Hartl atribuía a dureza desta atitude a uma causa obscura. Um amigo ordenado na mesma altura que ele, o padre Joachim birkner, trabalhava então nos Arquivos Secretos do Vaticano, supostamente

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na investigação da diplomacia da Igreja no século xvi. Mas, na realidade, birkner era um espião da SS, e o seu interesse centrava‑‑se no assessor jesuíta de Pacelli, robert leiber, a quem alguns chamavam «o espírito maléfico do papa».21

«O padre leiber disse ao informador que a maior esperança da Igreja é que o sistema nacional ‑socialista seja destruído num futuro próximo por uma guerra», relatou a SS. «Se não houver guerra, a diplomacia do Vaticano conta com uma mudança da situação na Alemanha, o mais tardar depois da morte do Führer.» O relatório de birkner coincidiu com um apelo de Pacelli a heróis católicos que «salvem o mundo» de «falsos profetas» pagãos, o que Hartl considerou um apelo para resistir a Hitler.22

Pacelli dir ‑se ‑ia, por essa altura, no epicentro de uma guerra contra o reich. Uma guerra que não iria terminar tão cedo. «Enquanto existir uma Igreja Católica», alertou Hartl, «as suas eternas pretensões políticas hão de pô ‑la em conflito com um Estado etnicamente consciente». A questão não era se o novo papa se oporia a Hitler, mas como o faria.23

Hitler partilhava da mesma opinião. Como recordou o ministro da Propaganda Josef goebbels: «4 de março (domingo). Meio ‑dia com o Führer. Está a ponderar se deve abolir a Concordata com roma à luz da eleição de Pacelli como papa. É decerto o que acon‑tecerá quando Pacelli intentar o primeiro ato hostil.»24

no domingo, 5 de março, Pio XII pegou no telefone pousado em cima da sua secretária para informar o seu mais fiel ajudante de que estava à espera. O padre robert leiber entrou nos aposentos papais. Conhecido na roma pontifícia como «o pequeno asmático», o jesuíta bávaro de cinquenta e um anos tinha a aparência de um duende melancólico. Embora falasse com Pio XII duas vezes por dia e lesse tudo o que passava pela secretária deste, ninguém sabia qual o seu título. Era descrito das mais diversas formas, desde «agente para as questões alemãs» a bibliotecário papal, professor de História da Igreja ou mesmo uma «espécie de secretário científico».25

A verdade é que não possuía qualquer título. «O padre leiber nunca foi funcionário do Vaticano», afirmou um colega jesuíta. «Era

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um colaborador próximo do papa, mas nunca foi oficialmente admi‑tido como membro do Vaticano.» Tinha aí um gabinete, mas não constava da respetiva lista telefónica. Era um funcionário não oficial.26

Essa falta de título tornava ‑o ideal para o trabalho secreto. Tal como explicou um padre que trabalhou nos serviços de informa‑ção americanos durante o nazismo: «É óbvio que as autoridades oficiais não podiam ser corresponsabilizadas se cometêssemos erros ou fracassássemos. Precisavam de estar em condições de declarar que não tinham conhecimento do que se dizia ou fazia.» Uma vez que leiber não trabalhava para o Vaticano, este podia negar qualquer envolvimento nas suas atividades.27

Para mais, leiber sabia guardar silêncio, conforme fizeram notar outros jesuítas. Sobretudo em questões de política da Igreja, disse um que o conhecia bem, «o padre leiber assume uma atitude de segredo absoluto». nesse aspeto, dir ‑se ‑ia o arquétipo perfeito de assessor papal, tal como descrito no século xiv pelo Papa Sisto V: deve saber tudo, ler tudo e perceber tudo, mas não pode dizer nada.28

Quando falava, leiber era direto: «O seu verbo é aguçado como aço», afirmou um diplomata. na década de 1920, quando Pacelli era núncio apostólico em Munique, leiber chegara mesmo a censurar o futuro papa por ter em casa uma freira bávara, Pas‑calina lehnert. Quando um cardeal veio inspecionar a nunciatura, leiber descreveu a situação como imprópria; lehnert, segundo relato da própria, gostava de ver Pacelli «em traje de montar, que lhe assentava muitíssimo bem». Ao saber que o cardeal tinha transmitido a queixa a Pacelli, leiber ofereceu a sua demissão, mas Pacelli respondeu: «não, não, não. Sois livre de pensar e dizer o que achardes. não vou demitir ‑vos.»29

Contudo, a mesma franqueza que atraía Pacelli afastava mui‑tos outros. Um padre colega de leiber descreveu os seus modos como cortantes, até agressivos, acrescentando: «Sabe, tornou ‑se um pouco estranho.» A asma levou ‑o a experimentar a «terapia com células vivas», injeções de tecidos finamente moídos de cor‑deiros acabados de abater. Havia quem o descrevesse com um dito em latim: Timeo non Petrum sed secretarium eius — «não temo Pedro [o papa], mas o seu secretário assusta ‑me.»30

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