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Churchill - Visionário. Estadista. Historiador. - John Lukacs

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Esperosinceramentequesóleiamistoaquelesquedefatodesejaremfazê-lo.

ÚltimafrasedoprefácioaTheGroombridgeDiary

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Prefácio

Nestes primeiros anos do século XXI, a reputação de Winston Churchillestá em alta conta. Não sei efetivamente explicar por quê. A inal, já sepassaramquasequarentaanosdesdeasuamorteequasecinqüentaanosdesde o im da sua carreira pública. Evidentemente a sua imagem sebene iciouvistaemperspectiva:Churchillseagigantaemcontrastecomasmuitasmediocridadesque,desdeasuaépoca,ocuparamacenadapolíticamundial ou por ela pa ssaram efemeramente. Penso às vezes que existeumoutroelemento.MaisdeumadécadaapósocolapsodaUniãoSoviética,podemosverque,entreosdoiscolossaisadversáriosdoOcidenteduranteo séculoXX, aUnião Soviética eramais fraca e oTerceiroReichdeHitlereramais fortedoqueaspessoas costumavampensar; enão foiChurchillquem, nos momentos mais dramáticos da Segunda Guerra Mundial, fezfrente a umHitler que chegaramuito perto de vencê-la? (Mas, por outrolado, tal perspectiva só ocorreria àqueles que sobreviveram à guerra ouque re letiram muito a esse respeito...) De qualquer modo, mostrasrecentesdeadmiraçãoporChurchill sãocom freqüência surpreendentes.Depois que alguns árabes fanáticos lançaram aviões seqüestrados contraastorresdeNovaYork,algumaspessoasevocaramonomeeacoragemdeChurchill durante a Blitz — mas a Blitz foi algo inteiramente diferente.Tenho achado curiosas tanto quanto irritantes as recentes apresentaçõesdeoradoresemdiversasreuniõesdaSociedadeChurchill,pessoasquenãofazmuitos anos o depreciaram na imprensa e, igualmente, uma ou duasque,em1940,haviamsidoopositoras in lexíveisaqualquertipodeajudaamericanaàGrã-Bretanha,especialmenteaumaGrã-BretanhaguiadaporChurchill,ofomentadordeguerras.Houveumainterrupçãonabibliogra iaa seu respeitoduranteadécadade1980, emcujo inal forampublicadasas primeiras críticas maciças a Churchill feitas por alguns historiadores,masamarédoseurenomesubiunovamente.Aindanoanopassadoforamlançadas duas importantes biogra ias de Churchill (ver o capítulo 8). Emjaneiro de 2001, igualmente, uma conferência no Instituto de PesquisaHistórica, na Universidade de Londres, foi intitulada “Churchill no século

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XXI”; os textos das comunicações foram publicados emAta da RealSociedadeHistórica,série6,vol.XI,no inaldoano.Talvezsejasigni icativoque, dentre os quinze estudiosos e personalidades públicas queparticiparam, somenteumhistoriador fez críticas severasaChurchill. (Ascríticas de outro forammais ponderadas. As referências a ambos podemserencontradasnoscapítulos3e7.)

Os historiadores agora têm à sua disposição os vastos eesplendidamente catalogados Arquivos Churchill, em Cambridge(abrigados em um enorme edi ício moderno de espantosa feiúra,infelizmente).Mas a amplitude dos dados relativos a Churchill é enorme,muito além desse valioso conjunto. Eu também fui bene iciado pelointeresserecenteporChurchill:doislivrosmeus,umpublicadonoinícioeooutrono imdadécadade1990,reconstituiçõesdeChurchillduranteosmeses e dias mais perigosos e cruciais de 1940, receberam críticasfavoráveis e, surpreendentemente, atraíram muitos compradores eleitores, não só nos países anglófonos como também em outros lugares.Estepequenovolumenãoéumabiogra ianemumensaioeruditosobreavidadeChurchill,emborasebaseieemestudose leiturasque tenho feitopor toda aminha vida. Seu conteúdo pode esclarecer alguns aspectos deChurchill pouco conhecidos ou valorizados e sugerir alguns tópicos queainda não foram totalmente explorados,mesmo na extensa bibliogra ia aseu respeito. Assim, algumas dessas perspectivas (ou argumentações)incluem sugestões para pesquisa adicional. Outra limitação é a minhaênfasefreqüentenopapeldeChurchillduranteaSegunda

GuerraMundialeposteriormente.Masnaturalmente1940foiagrandelinha divisória na sua carreira. Antes de 1940, ele experimentou muitosfracassos, cometeu muitos erros. Em 1940, ele foi o homem que nãoperdeuaSegundaGuerraMundial.Issomeinspirounaépoca;eaindameinspiraatualmente.EmumensaiosobreChurchillcomohistoriador(verocapítulo 6), J.C. Plumb escreveu que “o passado em que [Churchill]acreditava”seperdeu.“OquedeuaChurchillacon iança,acoragem,aféardente de que sua causa era justa — a sua profunda percepção doprodigiosopassadoinglês—seperdeu.”EuseioquePlumbqueriadizer.Aindaassim...nãoacreditototalmentenisso.

2001-2002

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Churchill,ovisionário

Umadassingularidadesdalínguainglesa—edassensibilidadesdamenteinglesa — é que, enquanto a palavravisão é elogiosa, sugerindo umatributopositivo,visionáriopodeterumsentidodúbio,comodefatoocorrecom freqüência. Naturalmente, há diversos sentidos dessas palavras noDicionário Oxford, mas eis aqui os principais.Visão: “Algo que éaparentementevistodemaneiradiferentedafaculdadevisualcomum”ou“Um conceito mental de uma espécie distinta e intensa: um projeto ouexpectativa altamente imaginativos”. Já visionário: “Propenso a opiniõesfantasiosas e impraticáveis; especulativo, devaneador”, ou “Que só existena imaginação; ilusório ou irreal”, ou “Aquele que alimenta idéias ouprojetos fantásticos;umentusiasta inepto”.Esteúltimo sentidopejorativo,segundo oDicionárioOxford, surgeno inglêsem1702.Duzentosevinteecinco anos depois, era assim que os adversários ingleses de WinstonChurchill—etambémmuitosoutros—oconsideravam.Maseuaquinãoestou interessado nos adversários e críticos de Churchill. Omeu objetivoneste capítulo é diferente. É sustentar quevisionário pode ser, de formaapropriada e, assim espero, convincente, aplicável a Churchill em umsentidopositivo.

Ele era extraordinário — muito bem, mas não é só isso. Não havianenhumaoutrapessoaquepudesseterfeitooqueelefezem1940.Estaéumaquestãoque,apósmaisdesessentaanos,devemosencarardeformaum tantodiferentede comoa encaramosdurantemuito tempo.Em1940Churchill, sozinho, postou-se no caminho da vitória de Hitler. Não só osamericanos — que, justi icadamente, associam o início da sua SegundaGuerra Mundial a dezembro de 1941 — mas muitas outras pessoas,inclusive historiadores sérios e biógrafos de Hitler, tendem a considerarquearuínadoFührerfoiumaguerraqueeleinicioueemqueeleeoseuTerceiro Reich seriam esmagados pela força unida da Grã-Bretanha, dosEstados Unidos e da União Soviética. Mas o que poucos compreendem é

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comoHitler chegoupertodevencera suaguerranocomeçodoverãode1940ebemantesdaBatalhada Inglaterra.Ele teriavencidoaguerra sehouvesse mandado um pequeno exército alemão desembarcar naInglaterra em junho ou julho — essa possibilidade foi reconhecida poralguns historiadores militares, na maioria britânicos. Mas isso é umaespeculação. O que não é uma especulação é o que Churchill, em 27 demaiode1940,nassessõessecretasdoGabinetedeGuerra,chamoude“aladeira escorregadia”. Se um governo britânico houvesse entãodemonstrado mesmo uma inclinação cautelosa para examinar umanegociaçãocomHitler,oqueequivaleriaaumadisposiçãoparaaveriguaras suas possíveis condições, isso teria sido o primeiro passo em umaLadeira Escorregadia sem volta. Alguns não concordavam inteiramentecomChurchillaesserespeito:foradosigilodasaladoGabinetedeGuerra,havia muitos do Partido Conservador; e talvez houvesse a maioria dosrepresentanteseleitosdopovobritânico,doPartidoConservador;ehaviapelo menos a potencialidade de que, em circunstâncias diferentes, oshomens e mulheres da Grã-Bretanha pudessem haver concordado comesseprocedimento,pelomenosaparentemente, razoável eprudente.MasChurchill não esmoreceu e impôs a sua vontade. Esse foi o principalmomentodedecisão—ummomentodedecisãomaisdoqueummarco—na sua carreira. Talvez tenha sido o principal momento de decisão nahistória da Segunda Guerra Mundial. Durante os meses subseqüentes,Churchill e a Grã-Bretanha desa iaram o Terceiro Reich de Hitlerpraticamente sozinhos. Posteriormente, ele já não estava sozinho. Ele e asuaGrã-BretanhanãopoderiamderrotarHitlersemajuda.Mas,enquantoChurchill governou a Grã-Bretanha, Hitler não conseguiu vencer a suaguerra.

Provavelmente essa foi a razão por que o ódio de Hitler contraChurchill queimou com tanto ardor até o im. Hitler respeitava e atéadmirava Stálin; referia-se com desdém a Roosevelt; mas seu ódio porChurchillseinflamavaemsuamenteacimadosoutros.

Mas a valentia e a irmeza que Churchill demonstrou naquela épocaeraminseparáveisdedeterminadoselementosdasuacapacidadedevisão.Podem-se identi icar elementos visionários também em outrosmomentosdasuacarreira.Algunspodemsermaisóbviosdoqueoutros.Jáem1901ele disse no Parlamento: “A democracia é mais retaliativa do que osGabinetes.Asguerrasdospovosserãomais terríveisdoqueasdos reis.”(Note-sequeelea irmouissoemumaépocaemqueosprognósticossobrea inviabilidade de grandes guerras futuras eram usuais entre muitos

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pensadorespolíticos.)Aindamaisassombroso—edesalentador—éoqueo jovem Churchill escreveu no vigésimo quinto ano da sua vida, emAguerra luvial: “Esperoque,sediasfunestossobreviessemaonossopaíseo último exército que um Império em colapso pudesse interpor entreLondres e o invasor se estivesse decompondo entre debandadas edestroços,haveriaalguns—mesmonestes temposmodernos—quenãodesejariamacostumar-seànovaordemdascoisasedocumentesobreviveràdesgraça.”1Agoraumaúltimaolhadanosigni icadodapalavra visionário.Emtodosossentidos—querpositivosquernegativos—,apalavrasugereprevidência. E a previdência pode ser negativa assim como positiva,excessiva assim como inadequada — observe-se este provérbiocaracteristicamentebritânico:“Atravessaremosaquelapontequandoaelachegarmos.” Essa advertência evoca o pragmatismo do bom senso, maspodetambémlevaraumarelutânciaempensardemaisoucomdemasiadarapidez. Apenas alguns anos antes de 1940, o primeiro-ministro StanleyBaldwin,predecessordeChurchill,teriasupostamentedito:“Ohomemquea irma poder ver muito adiante é um charlatão.” (Ele não se referia aChurchill.) Como escreveu Robert Rhodes James: “A previdência empolíticaérarae,emgeral,éumaquestãomaisdeacasodoquedegênio.” 2

Talvez, mas, seja como for, as previdências de Churchill foram maishistóricas do que políticas. Impetuosidade, impaciência, obstinação,excentricidade foram, muitas vezes, falhas de Churchill. Imprevidência?Não. Relutância em pensar? Raramente, talvez nunca. Ele possuía umamente extraordinariamente ágil e essas peculiaridades eram não sóinseparáveis do seu temperamento e caráter, como também inseparáveisdacapacidadevisionáriadasuamente.

UmexemplodissofoiasuaavaliaçãovisionáriadeHitleredoTerceiroReich. Foium trunfo importanteque, duranteos cruciaismesesdoverãode 1940, Churchill compreendesse Hitler melhor do que Hitler ocompreendia.(Observe-setambémqueessetipodecompreensãohumanainteligentenaquelemomentoquasenadatinhaavercomaposteriormentetão exaltada interceptação e deci-fração, pelo serviço de inteligênciabritânico, dos sinais e códigos alemães.) A luta entre Churchill e Hitlerduranteaquelesmesesfoiumautênticoduelo—otítuloqueescolhiparaomeu livro sobre aqueles oitenta dias, descrevendo os movimentosrecíprocos dos dois líderes, dentre outras coisas. Ali, porém, não estavaenvolvido somente o fato de um estrategista superar o outro. Ummestrede xadrez é um calculista esplêndido, talvezmesmoum estrategista.Masele não é um visionário. No entanto, a compreensão do seu grande

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adversário por parte de Churchill continha insights que poderiam seradequadamentereconhecidoscomovisionários.

Ele—melhordoqueosfranceses,cujaopiniãosobreaAlemanhaapós1918 era uma combinação demiopia emedo, e omedo não proporcionaumavisãonítida—anteviuaascensãodeumaAlemanhavingativa jáem1924: “Os enormes contingentes de jovens alemães que, a cada ano,atingem a idade militar estão inspirados pelos sentimentos maisimpetuosos, e a alma da Alemanha arde com sonhos de uma guerra delibertação ou vingança.” Churchill enxergoumuito além das agitações daBerlim cosmopolita ou daquelas do parlamento da República deWeimar.Eledivisououtraagitação,adosentãoaindapequenosgruposdetropasdeassalto,quemarchavampelascidadesalemãsoubatiamruidosamenteascanecas de cerveja nos salões bávaros. Em outubro de 1930, Churchilljantou na embaixada alemã, em Londres. À mesa, ele disse que estavaapreensivo em relação a Hitler. O conselheiro da embaixada, umdescendente de Bismarck, considerou as palavras de Churchillsigni icativas o bastante para relatá-las a Berlim. Elas podem serencontradas na coleção de documentos diplomáticos alemães. Observe-sequeissoocorreuem1930,épocaemqueninguém—semdúvidaninguémnaInglaterra,masigualmenteninguémnaAlemanha,comaexceçãotalvezdo próprio Hitler — imaginava que Hitler pudesse, um dia, tornar-se ochanceler e líder da nação alemã. Em julho de 1932, Churchill escreveuque Hitler era “a mola propulsora sob o governo alemão e, em breve,poderiasermaisqueisso”.Assimviriaaser.

PorémaindamaisvisionáriofoioqueChurchillescreveusobreHitlereaAlemanhanoiníciode1935.3QuandoaAlemanhahavia sidoderrotada,aniquilada,nosestertoresda revolução,desarmada, “então [em1919] foiqueumcabo,umex-pintordecasas,4dedicou-searecuperartudo”.

Nos quinze anos que se seguiram a essa resolução, ele conseguiu recolocar a Alemanha naposiçãomais poderosa na Europa, e não só restabeleceu a posição do seu país, como até, emgrandemedida,inverteuosresultadosdaGrandeGuerra....[Agora]osvencidosestãoemviasdesetornarosvencedoreseosvencedores,osvencidos.QuandoHitlercomeçou,aAlemanhajaziaprostradaaospésdosAliados.EletalvezaindavejaodiaemqueoquerestadaEuropaestaráprostrado aos pés da Alemanha. Independente do que mais se possa pensar sobre essasproezas, elas estão seguramente dentre as mais notáveis em toda a história do mundo.Independente do que mais se possa pensar sobre essas palavras, elas estão seguramentedentre asmais notáveis— e exatas— previsões na história das origens da Segunda GuerraMundial. E no início de 1935, quando Churchill estava inteiramente só. Ninguém maisenxergava talperspectiva,nemmesmoosoponentesmaispessimistasdeHitler.MasChurchillnuncasubestimouHitler.

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Posteriormente, durante o inal da década de 1930, temos uma longasérie de comentários de Churchill a respeito de Hitler, alguns bemconhecidos. Alguns são mais pertinentes do que outros, mas eles sãosempreinteressanteseexpressivos.Permitam-me,porém,saltaradianteemencionarumoutroexemploquehámuitotempomefascina.Éumbreveesboço do caráter de Hitler que Churchill ditou em 1948, ao preparar oprimeiro volume das suas Memórias de Guerra. Ali ele disse que acristalização da visão demundo deHitler ocorreu não antes da PrimeiraGuerraMundial,massimem1919;enãoemViena,masemMunique.Noentanto,emMinhaluta,Hitlerinsistira—eamaioriadoshistoriadorestemaceitado a tese — que, enquanto a sua vida sofreu uma reviravolta em1918-1919, a sua ideologiapolítica se cristalizaraemViena, cercadeoitoou nove anos antes. Bem, cerca de cinqüenta anos após 1948, algunshistoriadores (inclusive eu, mas sobretudo a excelente Brigitte Hamann,emViena)estiveramrevendoatesedeViena,encorajadosporindíciosqueincluem a adulteração consciente, por parte de Hitler, da seqüência daevolução das suas idéias. No entanto, cinqüenta anos antes, naquelaspáginas rapidamente ditadas, a percepção de Churchill em relação aojovemHitlerfoiprodigiosa.

AopiniãodeChurchill—eàsvezes,de fato,asuavisão—arespeitododestinodopovoalemãonãoerasimples.Muitaspessoas,especialmentena Alemanha, consideraram (e ainda consideram) Churchill umarepresentação de um inglês germanófobo e atávico, um John Bulfantiquado,obcecadopeloespectrodopoderalemãoeporum irmedesejode destruí-lo. No entanto — a despeito de todas aquelas famosasfotogra ias de Karsh, em que se assemelha a um buldogue—, ChurchillnãoeraumareencarnaçãodeJohnBull 5,nasuapersonalidade,nocaráternem no amplo interesse e conhecimento em relação ao mundo além daInglaterra. O que eu devo mencionar aqui são as muitas indicações dorespeito de Churchill para com a Alemanha e o seu povo. Elas estão lá,vigorosamente expressas nas últimas passagensdeAcrisemundial, a suahistóriadaPrimeiraGuerra;podemserencontradasnoúltimovolumedassuasmemórias sobre a Segunda GuerraMundial quando, ao visitar umaBerlimdevastadanoverãode1945,eleescrevesobresimesmoqueentãosósentiacompaixãopelaspessoasmaltrapilhasefamintasquevia;6eháoseudiscursode1946emZurique,praticamentetãoimportantequantoseudiscursosobreaCortinadeFerroemFulton,noMissouri,naquelemesmoano,emqueeleexortouaFrançaeaAlemanhaaformaremumnovotipode aliança, a im de iniciar um novo capítulo na história da Europa

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ocidental. Menos evidente porém mais latente foi o seu reconhecimentoprogressivo,duranteaguerra,deaquepontoosalemãespodiamchegar,doquantoosseusexércitoseramtemíveis.Hámotivosparacrer,alémdealgumas indicações, que após El Alamein Churchill continuou instando omarechal-de-campoMontgomery a esse respeito. Issome conduz a outroexemplodasuacapacidadevisionáriaquetenhocitadocomfreqüência.Elepercebeu que Hitler havia forjado uma temível unidade do povo; que onacional-socialismo alemão era uma onda aterrorizante de um futuropossível; e que era a isso que a Grã-Bretanha tinha de fazer frente.Considere-se,nesseaspecto,adiferençaentreavisãodeChurchill eadoprimeiro-ministro francês, Paul Reynaud. Em junho de 1940, poucos diasantes da queda de Paris, Reynaud falou pelo rádio ao povo francês: seHitler vencesse a guerra, “seria novamente a Idade Média, mas nãoiluminadapelamisericórdiadeCristo”.Poucosdiasdepois,em18dejunho,no discurso “A hora mais gloriosa”, Churchill divisou uma perspectivamuitodiferente—nãodeumavoltaà IdadeMédia,masdeumaguinadaparaumanovaeradeobscurantismo.SeHitlervencerenóssucumbirmos,disse ele, “então o mundo inteiro, inclusive os Estados Unidos, inclusivetudooqueconhecemoseapreciamos,submergiránoabismodeumaNovaIdadedasTrevas,aindamaissinistra,e talvezmaisprolongada,devidoàsluzesda ciênciadeturpada”.Ele,melhordoqueReynaude talvezmelhordoquequalqueroutrapessoa,sabiaaquetinhadeseopor.

Estouchegandoagoraaoutroexemplo:aopiniãodeChurchill sobreaEuropa—que,novamente,oapresentacomoalguémdiferentedomodelode John Bull. John Bull tinha um só propósito. Winston Churchill, não.Existem dualidades nas inclinações da maioria dos seres humanos. Umadas dualidades de Churchill na sua visão do mundo e da história desteenvolviaarelaçãodaInglaterra,deumlado,comosEstadosUnidos(ecomospovosanglófo-nos)e,deoutro,comaEuropa.ApercepçãodeChurchillda relação anglo-européia é um tema rico e complexo. Envolve, dentreoutras coisas, o seu grande apreço pela civilização e cultura da Europa,bem como o respeito pelos seus componentes antigos, tais como asmonarquiasconstitucionaisqueaindaeramasprincipaisformasdeEstadoduranteasuavida.(Observe-seque,quandoChurchilljácontava36anos,haviasomenteduasrepúblicasemtodaaEuropa:aFrançaeaSuíça.)Masseria errôneo atribuir a opinião de Churchill sobre a Europa ao apelo delembrançasvitorianas,oumesmoeduardianas.Tampoucoasuafranco iliaera a conseqüência lógica da germanofobia de que tem, freqüentemente,sido acusado. A sua simpatia pela cultura, civilização e história francesas

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(considerem-se apenas a admiração por Joana d'Arc, tantas vezesexpressa,eorespeitoporNapoleão)eramaisprofundadoqueisso.

Masaqui chegoàdiferença, talvezsutilmasessencialmenteprofunda,que separava Churchill da maioria dos contemporâneos no PartidoConservador na época. Eles sabiam menos sobre a Europa do queChurchill e, mais importante, eles descon iavam mais dos laços ecompromissos ingleses com a Europa do que Churchill. Eles nãocompreendiam as dimensões apavorantes dos objetivos e do poder deHitler,paralelamenteaocertoalívioquesentiamcomoseuanticomunismo.Aomesmotempo,elesnãoentendiamque,seaGrã-BretanhapermitisseàAlemanha dominar toda a Europa central e a maior parte da Europaoriental,aindependênciadaEuropaocidental,inclusivedaFrança,estariafatalmentecomprometidae fatalmenteconstrangida;queoqueseachavaem jogo era mais do que as tradicionais questões de um equilíbrio depoder. Houve, e ainda há, muitos historiadores alemães, algunshistoriadores americanos e europeus orientais e, posteriormente, atéhistoriadoresbritânicosquecriticamChurchillporhaveradotadoapolíticade combater a Alemanha, com o resultado de que a destruição do poderalemãolevouàpresençadopoderrussonametadeorientaldocontinenteeuropeu. No entanto, essa conseqüência melancólica da Segunda GuerraMundial na Europa não adveio de algum tipo de imprevidência deChurchill. Chego assim a outro exemplo das suas qualidades visionárias:suaopiniãosobreaRússiaduranteaguerra—enãosóduranteaguerra.Meupropósitoaquinãoédefendersuahabilidadedeestadistaemtermosde realismopolítico,mas simargumentaralgoquedevo repetir emoutrapartedestelivro(emboraahistórianãoserepita,oshistoriadoresàsvezeso fazem...), que é o que há muito considero a essência da habilidade deestadistadeWinstonChurchillnaSegundaGuerraMundial.Jáem1940eleviaduaspossibilidades:ouaAlemanhadominatodaaEuropa;ouaRússiadominará a porção oriental da Europa (na pior das hipóteses, por algumtempo): emantermetade da Europa émelhor do que nada. Abordarei arelação de Churchill com Stálin no próximo capítulo: sua tentativa deentenderStálin,seusembaraços,oreconhecimentodeque,semaRússia,aAlemanha talvez fosse invencível. Porém aqui desejo referir-me não aopragmatismo de Churchill, mas às suas qualidades visionárias. Umaamostra disso pode ser o famoso comentário ao seu secretário, algumashoras antesdo importantediscursode22de junhode1941, nanoitedodia em que a Alemanha invadiu a Rússia— um comentário, à primeiravista um tanto frívolo, que ele caracteristicamente julgou adequado

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registrarnassuasMemóriasdeGuerra: “SeHitler invadisseo Inferno,eufaria pelo menos uma referência favorável ao Diabo na Câmara dosComuns.”7 Essapercepçãodeque “oadversáriodomeu inimigopode sermeu aliado” é a reação de um estadista pragmático — porém eu estouinteressado em mais do que isso. Estou interessado no reconhecimento,por parte de Churchill, de que Stálin era um nacionalista e não umcomunista internacionalista, e de que a chave para o “enigma” russoconsistia nos interesses do Estado imperial russo conforme Stálin osconsiderava. Essa compreensão de Stálin explica os acordos, às vezescriticados,como lídersoviético, inclusiveoAcordosobreasPercentagensde 1944, pelo qual Churchill conseguiu preservar a Grécia (e que Stálincumpriudeformaescru-pulosa).

E era a visão de Churchill de um perigo russo no pós-guerra que seachava por trás das suas fúteis insistências para delinear a estratégiaanglo-americana no último ano da guerra, com o objetivo de avançar omáximo possível para leste na Europa central, a im de evitar umaextensãoperigosadapresençamilitarrussaali.Issopoucotinhaavercomocomunismo,mastinhatudoavercomopontoondeosexércitosrussoseanglo-americanosseencontrariamepermaneceriam—emessência,ondeocorreria a linha divisória da Europa e o que isso signi icaria. Essa foitambém a essência do seu discurso sobre a Cortina de Ferro, em Fulton.De 1943 a 1946, Churchill deparou-se com críticas e interpretaçõeserrôneasporpartedemuitosamericanos,quepensavam—oupelomenosinsinuavam abertamente, de quando em quando — que as idéias deChurchill re letiam opiniões que eram tacanhamente britânicas,imperialistas, reacionárias e perigosamente anti-russas. Recorde-setambémquemesmoodiscursodeFultonfoitratadocommuitacautelaporWashington, com corteses desautorizações e algumas poucas aprovaçõesparticulares, ao mesmo tempo em que era abertamente atacado porpolíticos, pela imprensa e tanto pela direita quanto pela esquerdaamericanas.

Pode-se agora dizer — e, eu admito, com uma certa parcela deirrefutabilidade—que, talvezao contráriodaminhadistinçãoanterior, oque acabei de apresentar foram argumentos para tentar retratar oChurchill pragmático em vez do visionário. No entanto, tal advertênciadistintiva não pode ser aplicada à sua visão de longo prazo do futuro daEuropa e do comunismo, da qual subsistem indícios. É singular que eleresolvesse dar o títuloTriunfo e tragédia ao último volume das suasMemórias de Guerra, por causa da divisão antinatural da Europa e do

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adventodaguerrafria—aopassoquenãosepodeencontrartalempregodapalavratragédianasMemóriasdeGuerraouavaliaçõesdeamericanosou russos daquela época. É singular que toda a segunda parte dessevolume apresente o título “A Cortina de Ferro”. É também singular, efartamentecomprovado,queChurchill resolvesseminimizar,narealidadeeliminar, muitos dos registros e lembranças dos seus desentendimentoscom líderes políticos e militares americanos em 1944-45, por motivospragmáticos, já que esse volume estava para ser publicado na época emque Eisenhower, o seu aliado no período da guerra, estava prestes a setornar presidente dos Estados Unidos e, sem dúvida, também devido àmagnanimidadedeChurchill,àsuacaracterísticarelutânciaemlembraràspessoas: “Eu avisei.” Mas a natureza da sua visão — neste caso,verdadeiramente antevisão— evidencia-se de duas fontes. Uma está nasmemóriasdogeneraldeGaulle.Churchill voltouaParisdepoisdequatroanos, em novembro de 1944. Foi uma ocasiãomemorável. Ele chorou. E,quandoogeneraldeGaullecriticouosamericanosporestarempermitindoquetãograndepartedaEuropaorientalpassasseparaosrussos,Churchillrespondeu que sim, era verdade. A Rússia era então um grande lobofaminto, no meio das ovelhas. Mas, após a refeição, vem o período dadigestão.ARússianãoseriacapazdedigeriroqueestavaentãoprestesaengolir. O segundo exemplo é o comentário que Churchill fez a JohnColville,nodiadeanonovoem1953(considere-seque isso foiditoaindaantesdamortedeStálin):“(Churchill)disseque,seaminhavidativesseaduração normal, eu seguramente veria a Europa oriental livre docomunismo.”Levando-seemcontaospresumíveissetentaanosdeColville,teriasidoadécadade1980—efoiexatamenteoqueaconteceu.Bismarckteria supostamente a irmado que um estadista pode enxergar cinco anosadiante, na melhor das hipóteses. A poucos estadistas na história éconcedidosugeriroinesperado,décadasadiante,tãoprecisaeclaramente.Noentanto,taiseramasfaculdadesvisionáriasdeWinstonChurchill.

Ele estava assombrosamente certo a respeito de Hitler. Estava emgrande parte certo a respeito do comunismo e de Stálin. Acerca doprimeiro, ele conseguiu transformar as suas opiniões em ação. Acerca dosegundo— devido aos muitos embaraços e também devido à relutânciaamericana—, somente em parte o conseguiu. Churchill também julgavaque a noção americana de anticolonialis-mo era, pelo menos em parte,prematura. Ele não partilhava a freqüente propensão americana aconsideraraChinaumagrandepotência.Sim,eleeraimperialista.Sim,eledefatodisse—emumafatídicaocasião,emumafatídicafrase—quenão

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se tornara primeiro-ministro para presidir à liquidação do ImpérioBritânico.8NãopodemossaberoqueteriaacontecidocomoImpérioseeletivessepermanecidocomoprimeiro-ministroapós julhode1945.Tendoapensar que, salvo uma ou outra exceção, o im do Império não teria sidointeiramentediferente.Oquepossoa irmaréqueasuavisãodaEuropaeda relação anglo-americana foram mais claras que qualquer visão queaindapudessetermanifestadosobreofuturodoImpério.

Eaquichegoaoqueé tambémaminhaconclusão.Umresumodasuacapacidadedeantever(etalvezdoseumaiorfracasso):adeumaeventualconfederação dos povos anglófonos do mundo. Chur-chill possuiu essavisãodo inícioao imdasuavidapública—desdeoapoio juvenil àmãe,quepublicouumaefêmeraAnglo-SaxonReviewde1899a1901(Churchillnão gostava do título), através de literalmente incontáveis exemplosimpressosefalados,culminandonapublicação inaldosquatrovolumesdeUmahistóriadospovosanglófonos,nasegundametadedadécadade1950.AsimpatiaeorespeitopelosEstadosUnidoseramatribuíveisaalgomaisdoqueain luênciadamãe,americanadenascimento.Incluíamasuavisãodo futuro domundo. Eram históricosmais do que raciais,mais ligados àcivilizaçãoqueàcultura, tendocomoumdos fundamentosaqualidadedointeresse e a extensão do seu conhecimento da história americana.Permitam-me mencionar apenas um caso, interessante e talvez atéalentador. Em um delicioso livrinho intitulado Se (subtítulo: “Se houvesseacontecido de outro modo / Devaneios pela história imaginária”),organizadopor J.C. Squire em1931, Churchill colaborou comumcapítuloqueinvertiaalógicaeaordemdetodososoutroscapítulos.Essescapítulostinham títulos como “Se Napoleão não houvesse perdido em Waterloo”;mas o capítulo de Churchill apresentava o título “Se Lee não houvessevencidoabatalhadeGettysburg”.Nesseesplêndidotourdeforce,Churchillespeculava sobre as lamentáveis conseqüências da imaginada derrota deLeeemGettysburg—poisentão,infelizmente,orápidotérminodaGuerradeSecessãoeaconfederaçãoamericanacomasoutrasnaçõesanglófonasdomundonão teriamacontecido, eo resultadodeplorável teria sidoumaPrimeiraGuerraMundial.Portanto,essafoiapenasmaisexpressãosucintadavisãodeChurchill:casotivesseexistidoumauniãomaisestreita, talvezmesmo uma federação, dos Estados Unidos com os países anglófonos domundo, aPrimeira e, depois, a SegundaGuerraMundialpoderiam jamaister ocorrido. O mundo teria ingressado em outra “Era dos Antoninos”,avançando para as luminosas regiões elevadas de uma ordem mundialdemocrática,amparadopelasuaveebenévolaprimaziaglobalemarítima

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dospovosanglófonos.Devemosconsiderarqueessavisãonãoeradestituídaderealidade—

comoquemere iroàpotencialidadedasuaconsumação.Foiexatamenteapós 1895 que a propensão americana a falar mal da Grã-Bretanhacomeçou a desaparecer; e após1900que a idéia de umaPaxAmericanaestavasendosubstituída,namentedealgumaspessoasmuitoperspicazes,pelaimagemdeumaPaxAnglo-Americana.Essanãofoisomenteumaidéiapredominante de Churchill durante grande parte da sua vida pública, decercade1895a1955;elacorrespondia,pelomenosdurantecertotempo,àstendênciasdealgumaspessoasdentreasclassesmaisaltasamericanas.É pelo menos possível que Churchill houvesse sofrido uma in luênciaexcessiva das ligações e contatos com tais pessoas, que ele estivesseinsu icientemente a par das mudanças em curso na composição e naestruturadapopulaçãoamericanaeque,conseqüentemente,asinfluênciasde uma classe dirigente angló ila estivessem decrescendo. Talvez elereconhecesseisso;talveznão.Sejacomofor, estavisãodeumauniãocadavezmaisestreitadospovosanglófonosdomundonãoviriaaocorrer.

E então encerro este capítulo acerca da visão de Churchill com umasugestãosobreoseulugarnahistória.Estassãoquestõesrelacionadas.Aocontráriodasopiniõesmaisaceitas,devemosconsiderarqueChurchillnãoera uma espécie de remanescente admirável de um passado maisgrandioso. Ele não era o Último Leão. Era algo mais. Representavadeterminados traços aristocráticos em uma época de democracia que elese sentia obrigado a aceitar e eventualmente estimar. Sabiaquenão só asupremacia da sua nação dentre as potências mundiais, mas talvez todauma era nomundo que principiara cerca de quatrocentos anos antes doseu nascimento, estava caminhando para o im. Em suma, ele era odefensordacivilizaçãono imda IdadeModerna.Essapalavra,civilização,também surgiu no inglês há quinhentos anos, de inida então como aantítese de barbárie. Em um momento dramático no século XX, DeusconferiuaChurchillaincumbênciadeseroseuprincipaldefensor.Eagoraoutro exemplo mais assombroso e surpreendente da sua capacidadevisionária.Eleestavavelhoefraco,comasaúdeprecária,quandoem1955se sentiu compelido a encerrar sua vida pública. No entanto, no últimodiscursonaCâmaradosComunsem1955,eledissealgo,comoescreveumdos seus biógrafos recentes, 9 “inesquecível ... que iluminou a a litivaperspectiva como o clarão de um relâmpago” — sobre o im do nossomundo.Churchilldisse:“Querumotomaremosparasalvarasnossasvidaseofuturodomundo?Issonãoimportatantoparaosvelhos,poisembreve

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eles partirão, de qualquer jeito.Mas acho pungente olhar para os jovenscom toda a sua energia e entusiasmo ... e icar pensando: o que seestenderiadiantedelesseDeussecansassedahumanidade?.” Churchillnãoeraumhomemreligioso,masessefoiumbordãodepres-ságio,comoqueproveniente do coração e da boca de um visionário e profeta do AntigoTestamento.

Os leitores deste capítulo— sob certos aspectos, introdutório— nãodeveminterpretarmaloseuobjetivo,quenãoéumsumáriodasvirtudesnemda carreira deChurchill. Ele resulta de uma concepçãoda tarefa dohistoriador,queénãoapenasfornecerumrelatoprecisosobrepessoasouperíodos, mas assinalar e considerar problemas: problemas do nossoentendimentode lugaresepessoasnopassado,assimcomoosproblemasdas dualidades de determinadas pessoas. A uma descrição de taisproblemasdavidadeChurchill—asaber: suas relaçõescomStálin; comRoosevelt; com Eisenhower; com a Europa; sua atividade de historiador;seusfracassoseseuscríticos—passareiadedicaraminhaatenção.

1CitadoporMauriceAshley,ChurchillasHistorian.NovaYork,1968,p.49.2RobertRhodesJames,Churchill:AStudyinFailure,1900-1939.NovaYork,1971,p.381.3AomenosháumaindicaçãodequeChurchillescreveuissoaindaem1934.ReproduzidoemGreatContemporaries.Londres,1937,p.262.4Hitlerpintouquadrosdecasas,masnãopintavaascasasemsi.5 Personagem símbolo do povo inglês, a partir do protagonista deAhistória de JohnBuli, de JohnArbuthnot(1712).(N.T.)6 Confronte-se isso com Patrick J. Buchanan: “Em 1945, a Alemanha havia sido destruída eChurchillpôdebisbilhotar-lheasruínas.”ARepublic,NotanEmpire.Washington,1999,p.275.7Encontreicertavezumaprecursoradessafrase.NãoseiseChurchilltinhaconhecimentodela.NojornalnacionalistairlandêsFianna,odr.EoinMcNeillescreveuemsetembrode1915(note-sequeisto foi publicado em Dublin no meio da Primeira Guerra Mundial): “Se o próprio Inferno sevoltassecontraapolíticainglesa,talcomonósaconhecemos,poderíamosserperdoadosporficardoladodoInferno.”8UmdosmaioresfracassosdeChurchill,quelheprejudicouareputaçãoeacarreira,foiaoposiçãoveemente à concessão do status de Domínio à índia, de 1929 a 1935: “Quando perdermos acon iançananossamissãonoOriente,quandorepudiarmosasnossasresponsabilidadesparacomestrangeiroseminorias,quandonossentirmos incapazesde,calmaedestemidamente,cumprirasnossasobrigaçõesemrelaçãoaimensaspopulaçõesdesamparadas,entãoanossapresençanessespaíses estará privada de toda sanção moral.” (Citado em James,Churchill, p.218.) E ele estavatotalmenteerrado?9InRoyJenkins.Churchill.NovaYork,2001,p.893.

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ChurchilleStálin

No segundo volume deDademocracia naAmérica, de Tocqueville, há umcapítulo que raramente (se tanto) despertou a atenção quemerece. Compoucomaisdeumapáginaemeia,contémsomentequarentaeoitofrases.Intitula-se “Algumas características dos historiadores em períodosdemocráticos”. Muitas vezes tenho pensado que talvez se devesseemoldurá-loe ixá-loacimadamesadetrabalhodetodososhistoriadorese estudantes de história. Pois as frases de Tocqueville nos revelam queescrever a história na época da democracia, na época governada pormaioriassoberanas,serádiferenteemaisdi ícildoqueescreverahistóriaemépocasgovernadasporminoriasaristocráticas.Eelepreviuigualmentequeoshistoriadoresemumaépocademocráticatenderãoasepreocuparcom grandesmovimentos gerais de sociedades e idéias, com a tendênciaconcomitante a negligenciar os motivos, atos e objetivos de pessoassignificativas.

Noentanto,mesmoemperíodosdemocráticos,ocursodashistóriasdenações inteiras pode depender de personalidades individuais. Isso seaplica à Segunda Guerra Mundial mais do que a praticamente qualqueracontecimento ou período importantes da história durante os últimosduzentos anos. Hitler, Churchill, Stálin, Roosevelt, de Gaulle (em menorgrau,atéMussolini)—semeles, tantoocursodaquelaguerraatrozcomoassuasorigens,ade lagração,osmomentosdecisivoseoresultadoteriamsido não só totalmente diferentes: grande parte daquilo não teria sequerocorrido.Esseslíderesforamprovasvivasdeque,alémdanoçãodequeahistória consiste em amplos movimentos econômicos e sociais, ou talvezmesmo ao contrário disso, para entender a história daquela épocadevemosantesdetudo(mas,éclaro,nãoexclusivamente)concentrar-nosnosatoserelaçõesdealgunslíderesnacionaisimportantes.

Churchill, Stálin,Roosevelt: eles vencerama SegundaGuerraMundial.(Decertomodo,Churchillfoia igurafundamental,porqueem1940elefoi

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o homem que não perdeu a guerra— pois esse foi o momento em queHitler poderia ter vencido a guerra. Depois que a Rússia e os EstadosUnidosseenvolveram,Hitlernãomaispoderiavencer,aindaque—eistoainda está longe de ser adequadamente compreendido — pudesse terobrigadoosadversáriosaalgoparecidocomumempate.)Churchill,Stálin,Roosevelt:eleseramhomensmuitodiferentes;masaquiomeuobjetivoéuma descrição e uma análise não só dos seus caracteres, como das suasrelações,eemvistanãosódaSegundaGuerraMundialcomotambémdassuas imensas conseqüências. Pois estas não só in luenciaram comodeterminaram a história domundo durante, pelomenos, cinqüenta anos.As duas guerras mundiais foram as duas grandes cordilheiras que sesalientaramnapaisagemdetodoumséculo.Aguerrafria,de1947a1989,foiaconseqüênciadiretadaSegundaGuerraMundial—istoé,algomuitodiferente da tão alardeada disputa mundial entre comunismo ecapitalismo,ouentrecomunismoe“liberdade”.EasorigensdaguerrafriadependiamouresultaramdasrelaçõesdeChurchill,StálineRoosevelt.

Sobre esses relacionamentos triangulares, muitos dados seacumularamemuitoseescreveuduranteosúltimossessentaanos,muitosobreChurchilleRoosevelt,menossobreRoosevelteStálin,emenossobreChurchilleStálin.Noentanto,esseúltimorelacionamento,inclusiveasduasreuniões de cúpula, pode ter sido o mais decisivo, pelo menos para aEuropaeoseufuturonaquelaépoca.

O raciocínio, o relato e o estudo históricos são, pela sua natureza,revisionistas. O historiador, ao contrário de um juiz, está autorizado aexaminar um caso repetidas vezes, com freqüência depois de achar eutilizarnovosdados.Entretanto,apesardo luxoescassoedesordenadodedocumentosquepingaramdosarquivosrussosdurantemaisoumenososúltimos doze anos, parece não haver muito motivo para acreditar (ouesperar) que eles possam fornecer dados para rever não só osfundamentos,mas até os detalhes da relação entre Churchill e Stálin. Noentanto,amentehumanatemaaptidãoeadisposiçãopararepensarumagrande parcela do passado, reiteradas vezes — e não necessariamentedevidoanovosdados,masdevidoaperspectivasmutáveis:eaperspectivaé,evidentemente,umcomponenteinevitáveldoatodever.

Grandepartedascríticasescritas(e,eventualmente,orais)aChurchilltem sido dirigida ao tratamento que dispensou a Stálin (e à RússiaSoviética) durante a Segunda Guerra Mundial. As tendências pessoais epolíticasdoscríticospodemdiferir,masaessênciadascríticaséamesma.ElesacusamChurchillde critériosduplos.Ele,que seopôs com irmezae

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veemência ao apaziguamento da Alemanha e de Hitler, esforçou-sebastanteparaapaziguarStálineaRússia.Elenão tinha ilusõesacercadeHitler,masacalentava—eexprimia—muitasilusõesinjusti icadasacercade Stálin. O ódio à Alemanha cegou-o durante toda a guerra. Tornou-otambém um cúmplice na permissão à Russia e ao comunismo paraavançarematéocentrodaEuropa.(Talcríticaé,comfreqüência,ostensivadentrehistoriadoresalemãesedeterminadosjornalistas,inclusivehomensemulheres que não podem ser acusados de nutrir simpatias porHitler.)Churchill,queatacaraoprópriogovernoporabandonaraTchecoslováquiaà Alemanha, abandonou a Polônia à Rússia. (É interessante que a últimacrítica temsidomanifestadacommenos freqüênciaporpolonesesdoqueporhistoriadoreseautoresnão-poloneses.)

Existecerto fundamento nessas críticas, mesmo quando elas sãoideológica,nacionalouexageradamenteparciais.Noentanto,praticamentenenhum dos críticos de Churchill considera uma condição essencial, queeraanecessidadedemanteraaliançacomaRússiaSoviética,semaqualaGrã-Bretanha e os Estados Unidos di icilmente — ou talvez jamais —poderiamteresperadoderrotaraAlemanha.Contudo,nemoâmbitonemo objetivo deste capítulo dizem respeito primordialmente às relaçõesanglo-russasduranteaguerra.Elesdizemrespeitoàsmentalidadeseaosrelacionamentosdosdoislíderes,ChurchilleStálin.

A opinião de Churchill sobre Stálin não era simples. Ela continhaelementos de ilusão, mas também de um realismo supremo (e, se possodizê-lo,antiquado).Mais tarde,omodocomoeleencaravae tratavaStálinse tornou totalmente separado do modo como encarava e tratava ocomunismo.Aindaantesdaguerra,elecomeçouaveraRússiaeseulídercomouma realidadenacional, e não ideológica.Não sabemos seChurchilltomouconhecimentodocomentáriodogaiato inglêsque,anteanotíciadoPactoNazista-Soviético(eentreHitlereStálin)em1939,disseque“todosos ismossãopassados”,masexistepelomenosmotivopara imaginarqueChurchill teria rido disso. Evidentemente, ele abominava o comunismodesdeocomeço.Adefesatenazdaintervençãoaliadanaguerracivilrussa,em 1919-20, foi mais do que um outro exemplo da sua comba-tividaderomântica. Ele julgava que os bolcheviques eram bastante fracos e, porisso, um pouco mais de ajuda aliada aos adversários brancos osderrubaria; do contrário, eles permaneceriam e se tornariam uma sériaameaçaaoutrasnaçõesdomundo.Oanticomunismoeraumadas razões(emboraapenasuma)paraasuaestimaporMussolinieoutrosditadoreselíderes anticomunistas europeus (e asiáticos). O seu desdém pelo

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comunismonãodiminuiu.UmexemplodissofoiasuapreferênciapeloladodeFranconoinícioeporcertotempoduranteaguerracivilespanhola,porváriasrazões,dentreelasapresençadecomunistasnoregimerepublicanodetendênciaesquerdista,emMadri.

Contudo, e isto é importante, o proclamado anticomunismo“conservador” de Hitler, que na década de 1930 foi extremamente bem-sucedido, atraindo e alinhando pessoas e nações do lado alemão, nãocausounenhuma impressãoemChurchill,queeraentãominoriaentreosconservadores. Ele não se deixou enganar pela propaganda do TerceiroReich, inclusive o Pacto Anti-Comintern. Ele enxergou o perigo de umanovaAlemanha,emascensãoear-mando-se.Comoconseqüência,começoua levar em conta (como izera o governo francês, a partir de 1934) apossibilidade de a Rússia Soviética vir a participar de uma aliançaantigermânica de Estados, talvez em nome da “segurança coletiva”. Se jánaquela época Churchill encarava Stálin cada vez mais como um líderrevolucionário nacional e cada vez menos como um líder revolucionáriointernacional, não podemos saber; o que podemos a irmar é que suasopiniõessobreocomunismoesobreaRússiacomeçaramadivergir.Ele,onotório imperialistadedireita, que sebateu contra a concessãodo statusde Domínio à Índia e, depois disso, a favor de sempre mais armamentobritânico,via-seentãoapoiadoporcadavezmaispessoasde“esquerda”.Oseu círculo de relações de então incluía também o embaixador russosoviético em Londres, Ivan Maisky, raposa política que (como agorasabemos pelos textos dos seus despachos para Moscou) não merece areputação que adquirira, mas que sabia como dizer algumas coisas queChurchillgostavadeouvir.

Noentanto,Churchill,quecompreendiaHitlereosseusobjetivostalvezmelhordoquequalqueroutroestadistadomundo,sobretudoem1938-39,estava equivocado a respeito da Rússia e sobretudo a respeito de Stálinnaquela época. As pessoas não o sabiam então; nós o sabemos (ou pelomenosdevíamos saber) agora.Antes e nodecorrerda crise deMunique,Churchill julgava, e sustentava, que a Alemanha de Hitler tinha de serdetida e, se necessário, combatidanaquelemomento, pormuitosmotivos,inclusiveaparticipaçãodaRússiaemtalguerra:a inal,aRússia tinha,naépoca, uma aliança com a França e com a Tchecoslováquia. Dez anosdepois, Churchill repetiu a argumentação, direta e vigorosamente, em Atempestade em formação, o primeiro volume da sua história da SegundaGuerraMundial. Ele já devia ter sabido então o que icou cada vezmaisevidentedepois:queemsetembrode1938Stálinnãotinhamaisintenção

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(defato,aindamenos)derespeitarasuaaliançacomaTchecoslováquiadoque tinham os franceses; na verdade, que Stálin estava satisfeito por selivrardaarmadilha(se,defato,fossearmadilha).

Em outro capítulo, terei de dizer algo sobre Churchill em relação aMunique,sobreacombinaçãoderealismoe ilusõesnassuasexpectativasde então, mas aqui o meu objetivo é reconstituir a combinação do seurealismoedassuasilusõesarespeitodeStálin.MuitodepoisdeMunique,elecontinuouaacreditarqueumaaliançaanglo-francesacomaRússiaeraabsolutamente essencial para dissuadir Hitler. Após março de 1939Churchill já não estava sozinho nessa insistência e provavelmente tinharazãoaolamentarqueogovernodeChamberlainfossemorosoerelutantena busca de uma aliançamilitar séria com a Rússia Soviética. Entretanto,estavaequivocadoempensarqueStálinestivessedispostoaparticipardetal aliança. Dados substanciais indicam que em 1939 (e posteriormente)StálinpreferianegociarumacordocomHitlerafazê-locomasdemocraciascapitalistas ocidentais. E assim aconteceu. Há certa razão para acreditarque,atordoadocomoseachava,talcomoquasetodososdemais,Churchillicou menos chocado com o Pacto Stá-lin-Hitler do que icaram muitosoutros. Foi em lo de outubro de 1939 — quando então já integrava ogabinete de Chamberlain — que ele pronunciou as frases que icariamfamosas: “Não posso prever para os senhores a ação da Rússia. É umacharada envolta emmistério, dentro de um enigma.Mas talvez haja umachave. Essa chave é o interesse nacional russo.” (Chamberlain, cujodesagrado com os soviéticos era mais entranhado que o de Churchill,escreveu-lhequeconcordavaplenamente.)

O interesse nacional russo; algo muito diferente do comunismointernacionaledecididamentemaisimportantedoqueeste:Churchilltinharazão quanto a isso na época e desde então. Devo insistir nisso mesmoagora, mais de uma década após o colapso do comunismo e da UniãoSoviética.Tantoantescomonodecorrerdaguerrafriahouve(eaindahá)governos e povos inteiros que viram toda a história do século XXgovernadaporumcon litotremendoentreocomunismointernacionaleoMundoLivre (oquequerque isso seja).Evidentemente, aRússia eraumEstado comunista e Moscou ainda a capital do comunismo internacional:masestaseachavasubordinadaaosinteressesnacionaisdaRússia—ou,maisprecisamente,aoqueStálinentendiacomoessesinteresses—muitoantes de 1939, e sem dúvida depois. Churchill compreendeu isso. Narealidade,eleocompreendeuperfeitamente.ConsideravaStálinumditadornacional:umlíderbrutaledesdenhoso,masaindaassimumestadista.Em

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breve veremos que, especialmente após 1941, esse elemento desentimentalismo românticoquepode ser inerente amuitos casosdeumafaculdade visionária levou Churchill ao exagero, quando ele sentiunecessidade demanifestar, de vez em quando, o seu grande apreço porStálin.Mas antes de passar às relações pessoais entre ambos, permitam-me dizer algo sobre a convicção de Churchill: que, não obstante ocomunismo,ointeressenacionalrussotalveznãofosseincompatívelcomodaGrã-Bretanha.Poishaviaumacoerênciaqueestevepresente,comoumiocondutor,navisãodomundodeChurchill,de1939atépraticamenteoimdasuavida.Estavaláem1939,quandoelebuscouumaaliançacomaRússia de Stálin; estava lá em 1939 e 1940, quando Stálin estavapraticamentealiadoaHitler;estavaláem1941edepois,quandoChurchille Stálin se tornaram aliados; estava lá durante e especialmente perto doim da guerra, quando ele considerou a Rússia de Stálin um enormeperigo; estava lá emeapós1945,quandoele advertiuosamericanoseomundosobreaqueleperigoeinsistiunanecessidadededetê-loecombatê-lo;estava láem1952edepois,quandotentou,emvão,renegociarcomosrussosadivisãodaEuropa,queeraopontofundamentaldaguerrafria.Aquestãoeraqueos interessesnacionaisdaRússiadeviamserseriamenteconsiderados—emborade inidosemantidosdentrode limitesrazoáveis,sempre que possível. E aqui devemos considerar que, segundo todas asindicações, a maioria da opinião política, pública e popular britânicasacercadeuma conformidadepotencial dos interesses britânicos e russosestava de acordo com o ponto de vista de Churchill em 1939-41, assimcomoem1941-45.1

Nãohánecessidadeaquidedescrever,outalvezmesmoderesumir,asrelações anglo-russas antes da invasãodaRússia porHitler, embora elasincluama carta deChurchill a Stálin escrita após a quedada França, umimportante documento político, lido mas desconsiderado por Stálin; e,depois,asinsistentesadvertências,indiretasediretas,deChurchillaStálin—e,denovo,sistemática,desconfiadaedesdenhosamenterejeitadas—deabrilajunhode1941,acercadaiminenteinvasãoalemã.Chegamosassimà constrangida,mas não obstantedefacto, aliança entre ambos, que teveinício exatamente naquele domingo, 22 de junho, que foi o pior dia deStálin, mas não o de Churchill, de modo algum. Às nove horas daquelanoite,Churchillfezpelorádioumdosseusgrandesdiscursos,cujoteorfoique, embora não repudiasse nada do que dissera sobre o comunismo,naquele momento em que a Alemanha estava invadindo a Rússia,espezinhando e subjugando-lhe o povo, qualquer nação que repelisse e

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combatesseHitlereraaliadadaGrã-Bretanha.Stálin,atéoúltimoinstante,esperoudesesperando(apesardetodosos

sinais) queHitler não o atacasse. Conforme a sua índole descon iada, eletambém achava que as advertências de Churchill deviam serdesconsideradas (e não só abertamente). Achava que o interesse deChurchilledaGrã-Bretanhaeraverocolossoalemãovoltar-separaolestee envolver-se em uma guerra com a Rússia, razão por que não podiaesperar grande coisa—se é quepodia esperar algo—deChurchill. Emsuma, ele sabiaquea invasãodaRússiaporHitler erabemrecebidaporChurchill,oquenaturalmenteeraverdade.Maseletambémavalioumalosmotivos de Churchill, atribuindo-lhes, pelomenos de quando em quando,umdesejoardilosode incitarosalemães,ouaomenosajudaraocasionaruma guerra germano-russa. As interpretações errôneas de Stálinmarcaramgrandepartedorelacionamentoentreambosduranteaguerra.Mas não era só isso. Churchill passou a apreciar Stálin, ou pelo menosalgumasdassuasqualidades,eStálinpassouarespeitarChurchill,oupelomenosaacreditarnoqueeleestavadizendo.

No que diz respeito a Churchill, havia dois elementos agindo nesserelacionamentoqueentãosedesenvolvia.Umeraseualívio,queàsvezeschegava à admiração, ao ver Stálin como um grande líder nacional naguerra; o outro era seu persistente desdém pelo comunismo. Porémdurante váriosmeses após junho de 1941 não houvemuitomotivo paraChurchillaumentarsuaestimaporStálin.Dejunhoadezembrode1941asprincipais preocupações de Churchill eram ver os Estados UnidoslentamenteseaproximaremcadavezmaisdaguerraeajudaramanteraRússia lutando.Emsetembroeoutubrode1941,houveumacrisequeoshistoriadores da Segunda Guerra Mundial talvez não tenham examinadocom su iciente atenção. No início de setembro, Stálin enviou umamensagem a Churchill que incluía palavras sinistras: “A União Soviéticaestá em uma situação de perigo mortal” — de fato, com os alemãesavançando, capturandomilhões de prisioneiros russos. Nessamensagemdesalentada,2 Stálin exibiu seu desconhecimento: pediu uma invasãobritânicadaEuropaocidental eodeslocamentodevinte e cincoou trintadivisõesbritânicasparaaRússia,pelaPérsiaouporArcan-gel. 3 Churchilldisse-lhequeeraimpossível.Enquantoisso,aproduçãobélicabritânicaseesforçavaao extremo (e emumaépocamuitodi ícil), enviandoomáximopossívelde tanques e aviõespara aRússia.AGrã-Bretanhae aRússia jáhaviam assinado uma espécie de aliança e, conjuntamente, dominaram eocuparam a Pérsia em questão de dias. Churchill não era um estadista

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reservado,masnão sabemos exatamente o que ele pensavade Stálin emsetembroeoutubrode1941,quandoumadecisivavitóriaalemãnaRússiapareciadefatopossível.4Sejacomofor,aserenidadedeChurchillduranteesse período de crise, hoje em grande parte esquecido, foi notável. Emseguida,ocorreuopontocrucialdetodaaguerra,emdezembrode1941:os russos detiveram e repeliram o avanço alemão diante de Moscou noexatomomentoemque,ameioglobodedistância,oataquejaponêsaPearlHarborimpeliaosEstadosUnidosparaaguerra.

Churchill icou aliviado. Ele soube então que os japoneses (e Hitler)estavamperdidos. Compreendeu tambémque aRússia havia superado opior, com Stálin como o seu grande líder e, além disso, um estadista. Nasemana anterior a Pearl Harbor e à reviravolta em Moscou, ChurchilltiveradeconsentirnasrepetidassolicitaçõesdeStálinparaquedeclarasseguerraaFinlândia,HungriaeRomênia(eleseimportavamuitomaiscomaprimeiradoquecomasúltimas),governosquehaviamentradoemguerracontraaRússiaaoladodeHitler.NasemanaposterioraPearlHarbor,eleenviou Anthony Eden a Moscou, onde Stálin exigiu que a Grã-Bretanhareconhecesse o que a Rússia queria após a guerra: no mínimo umrestabelecimento das suas fronteiras de 1941, incluindo a incorporaçãodosEstadosbálticosedaPolôniaoriental.Churchillconseguiuesquivar-sedetalcompromissoformal,masacusto.Alémdisso,começavamarevelar-se cada vez mais casos de barbaridades e ambições russas, cujasmanifestaçõeseramsofridaserelatadasprincipalmenteporpoloneses.Emmarçode1942,houveumencontroentreChurchill eoprimeiro-ministropolonêsnoexílio, generalWladyslawSikorski,narradoporeste.Churchilladmitiu“queasuaapreciaçãodaRússianãodiferiamuito”daapreciaçãodoseuamigopolonês.“Noentanto,eleressaltouosmotivosquetornavamnecessário” fazer determinados acordos comaRússia. “Fora o único paísquelutaracontraosalemãescomêxito.Elaeliminaramilhõesdesoldadosalemães e, nomomento, o objetivo da guerra parecia não tanto a vitória,quantoamorteouasobrevivênciadasnossasnaçõesaliadas.SeosrussoschegassemaumacordocomoReich, tudoestariaperdido. Issonãodeviaacontecer. Se fosse vitoriosa, a Rússia decidiria sobre as suas fronteirassemconsultaraGrã-Bretanha;seelaperdesseaguerra,oacordoperderiatoda a importância.”5 Existem todos os motivos para crer que essa visãosombria e desalentadora eramais do que uma advertência realista a umaliadosecundárioe,ocasionalmente,incômodo;elarepresentavaaopiniãomaisprofundadeChurchillsobreaguerra.Poisemmarçode1942grandepartedoalíviodetrêsmesesantessehaviadissipado,senãodesaparecido

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totalmente. A reviravolta nas imediações deMoscou não fora além disso.Onde Napoleão fracassara, Hitler foi bem-sucedido. Os exércitos alemãessobreviveram ao inverno na Rússia, preparando-se para avançarnovamente.Os japoneses avançavam também, a passos largos. Cingapurahavia capitulado. No Atlântico, navios americanos e britânicos foramafundadosporsubmarinosalemães.De junhoadezembrode1941,StálindependeradeChurchill.AgoraChurchillsetornavadependentedeStálin.

Houve algumas ocasiões durante a guerra em que Churchill icouapreensivo com a admiração excessiva pela Rússia, bem como com oaumentodas in luênciascomunistasnaGrã-Bretanha,porémnãoatribuiumuita importância a isso. Diferentemente das pessoas de esquerda (e,claro,dapropagandaalemãepró-alemã),comunismoeRússia,comunistase Stálinnãoeramde formaalgumaquestões idênticaspara ele. Podemosveri icar isso mais adiante na guerra, quando ele usou a desdenhosapalavratrotskistaparaclassi icarrevolucionárioscomunistasestrangeirosque pareciam agir independentemente de Stálin. Ele não estava de todoequivocado. Por exemplo, a maioria dos comunistas nos Estados Unidos,muitas vezes judeus, apesar de comprometidos com o stalinismo,assemelhavam-se essencialmente a Trotski nas convicções quanto aocomunismointernacionalouàlutadeclassesea ins.Masessaéumaoutraquestão. A nossa questão principal é o relacionamento de Churchill comStálinea suadependênciamútua, emcujabalançaStálinpesavamaisdoque Churchill, sem dúvida em 1942. E assim Churchill voou através demetadedomundoparaseencontrarcomele.

PassoagoraaosencontrosdeambosemMoscou,àsduas“reuniõesdecúpula”deagostode1942eoutubrode1944,que foramcruciaisparaoseu relacionamento. Em1942, eles aprenderam a se conhecer; em1944,elesdividiramentresiaEuropaoriental.Essasreuniõesforam,senãomaisimportantes,nomínimotãoimportantesquantoasreuniõestripartitesemTeerã (1943), Ialta (1945) e Potsdam (1945), as duas primeiras com aparticipaçãodeRoosevelt,aterceiracomTruman(semfalarnameiadúziadeencontrosdeChurchill comRoosevelt,de1941a1944).Emagostode1942 Chur-chill voou por sobre a África e a Ásia até Moscou. Nãosimplesmente para estabelecer um relacionamento pessoal: ele tinhamuitas explicações a dar.Mais uma vez os alemães estavam irrompendopelosuldaRússia,penetrandonoCáucaso;osamericanosestavamlutandocomosjaponesesnaslongínquasregiõesdosudoestedoPací ico;Rommelestava fazendo os britânicos recuarem para o Egito; navios britânicosforammandadosparao fundodosoceanosAtlânticoeÁrtico; tudooque

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os britânicos podiam fazer, e faziam, era bombardear determinadascidadesalemãsànoite.Pior:ChurchilltinhadedizeraStálinoqueestejáesperara—quenãohaveriaumaSegundaFrentenaEuropaocidentalem1942.(ChurchilleseusgeneraishaviamconseguidodissuadirRoosevelteMarshall disso— acerta-damente, pois teria sido uma catástrofe.) Stálinfalouduramente.MasChurchillretrucounomesmotom.IssoimpressionouStálin. Ele muitas vezes apreciava a coragem e o ânimo daqueles (nãohaviamuitos)queoenfrentavam.Churchill,porsuavez, icou igualmenteimpressionado com Stálin: pelo seu rude desembaraço; pelas qualidadesdeumchefenacionalmastambémpelasdeumpai;porsua invocaçãodeDeus, ao menos em uma ocasião. Churchill icou também aliviado, eimpressionado,comareaçãodeStálinàúnicaboanotíciasigni icativaqueelelevara:adaplanejadainvasãodeamericanosebritânicosnaÁfricadoNorte francesa, emnovembro. Stálinnão icouexcessivamentegrato,maspareceuentenderdeprontooqueissosignificavaparaaguerra.

Após essa primeira reunião em Moscou, de quando em quando (nãosabemos exatamente qual a primeira vez) Churchill diria ao seu círculo:“Eugostodessehomem.”Masalgopiorestavaporvir.ApósStalingrado,abesta russa tomou as rédeas de sua situação. Stálin tornou-se exigente:ChurchilleRoosevelt tiveramdedar-lhecadavezmaisatenção.Em1943suas relações icaram piores do que antes. Stálin percebeu que nãohaveriaumaSegundaFrentenemmesmonaqueleano.Algumasdassuasatitudes(porexemplo,a retiradadosseusbem-conhecidosembaixadoresdeLondreseWashington) foramdesanimadoras.Ele achava, edizia, queosbritânicosnãoestavamabsolutamenteseempenhandoparafazerasuaparte na guerra. Havia um turbilhão de problemas em torno da Polônia.Churchill achavaquenãoeraomomentodequestionarStálin sobre suasintenções após a guerra. Ele admirava como os russos lutavam. Não foiidéiasuapresentearStálin,emTeerã,coma“EspadadeStalingrado”,masisso estava em conformidade com os seus sentimentos românticos. “Emconformidade”:maselesedeixouempolgarpelasimpatiaporStálin?Não—haviauma tendênciadualna suamenteacercadeStálinedos russos,uma dualidade que não era oscilante, mas quase sempre constante. Hámuitas indicações disso. Em outubro de 1943, o general Henry PownallregistrouqueChurchill“antipatizavaprofundamentecomosrussoseoseujeitoenãomantinhailusõesaseurespeito.Elesestãofazendooqueestãofazendo (emuitobem, realmente)parasalvaraprópriapele. Suapolíticafutura será unicamente para atender às suas conveniências, e ninguémmais será levado em conta. Tanto mais necessário, portanto, manter-se

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junto com os Estados Unidos.”6 Em outra ocasião, Churchill disse que ossoviéticoseramcomocrocodilos:nuncasesabequandodar-lhes tapinhasnacabeçaougolpeá-los.

Em seguida houve a reunião tripartite emTeerã. Ali Churchill perdeusua posição anterior de predomínio e percebeu isso: icara atrás deRoosevelteStálin.Suadecepção(cuidadosamenteoculta,mesmonassuasmemórias de guerra) foi maior com Roosevelt do que com Stálin, pois opresidente americano deu demonstrações do seu distanciamento deChurchill, tentandocausaraStálina impressãodequeestavapelomenostão próximo do russo (senão mais próximo) quanto estava do britânico.Muitas coisas foramdiscutidas e decididas emTeerã. Stálin icou aliviadoaosaberqueainvasãototaldaEuropaocidentaliriaen imocorrerno inalda primavera seguinte, embora ele ainda suspeitasse que Churchilldesejaria retardá-la ou alterá-la. Àquela altura, porém, Stálin sabiaigualmentequemanterasboasrelaçõescomosEstadosUnidoseraaindamaisimportantedoqueassuasrelaçõescomaGrã-Bretanha.

Churchillsabiadisso.Massabiatambémque—noquediziarespeitoàEuropa—assuasrelaçõescomaRússiaeramtão importantesquantoassuas relações com os Estados Unidos. Além disso, devido à geogra iaprogressiva da guerra, tornavam-se iminentes questões, problemas eplanosquenãopodiamseradiadospormuitotempo.Envolviam,antesdetudo,adivisãoemperspectivadaEuropa.Escreviantessobreapercepção—àprimeiravista,brutalmentecoerente—deChurchill (ebritânica)dequemetadedaEuropaeramelhordoquenada;deque,seaalternativaaodomínioalemãodaEuropaeraodomíniorussodaEuropaoriental,assimfosse. Essaparte estava claramente expressa, porém já não se tratava sódisso. Ao olhar mais à frente, Churchill estava começando a icarpreocupado com dois assuntos graves. O controle alemão da Europa, seDeusquisesseeodiaDvingasse,estavachegandoao im.Ocorrendoisso,a liberação da Europa ocidental era uma decorrência inevitável. Mas equanto ao resto daEuropa?AAlemanha seria dividida? Churchill achavaque talvez para melhor, sim, junto a fronteiras históricas. Mas não tinhacertezadoqueStálineRoose-velt tencionavamquantoàAlemanhaenãoinsistiu nesse problema, nem mesmo em Ialta. A leste e a sudeste daAlemanha, porém, a questão da Europa oriental, ao contrário da questãoda Alemanha, se tornava iminente. Churchill e Stálin sabiam disso;Roosevelt, não—pormuitas razões, inclusive o hábito americanodenãopensaremcoisasfuturasdesagradáveis,bemcomoohábitodeprotelaçãode Roosevelt, especialmente em 1944, associado ao seu desejo de evitar

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qualquertipodedificuldadecomStálin.Chegamos assim aos problemas da Polônia e da Europa oriental, sob

certos aspectos semelhantes, sob outros diferentes. Havia, para começar,um compromissomoral com a Polônia que Churchill não descartaria, pormotivosmaisprofundosdoquepolíticos.ForadevidoàinvasãodaPolôniapor Hitler que a Grã-Bretanha declarara guerra à Alemanha. Mas agarantia e a aliança da Grã-Bretanha em 1939 não valeram de nada àPolônia.Aomesmo tempoospoloneses lutaramcombravuraexcepcional.Aproximadamente cem mil poloneses seguiram para a Grã-Bretanha,muitosdelessoldadoseaviadoresdequalidadesnotáveis.Eleslutaramnoar, nosmares e em três continentes, no lado britânico. Existia um deverbritânicoparacomeles,nãoimportavaoquantofossedi ícilcumpri-lo.Nãoera algo que Churchill consideraria apenas devido a razões políticasinternas (ao contrário de Roosevelt, que surpreendeu Stálin ao lhe dizerque precisava de votos polono-americanos em determinadas zonaseleitorais, emestados importantes).Masporoutro ladohaviaageogra ia.Foi pela Polônia que os alemães se concentraram e depois marcharampara a Rússia, e seria pela Polônia que os russos marchariam para aAlemanha.Erapelomenosimaginávelque,emalgunslocaisdosudestedaEuropa, forças britânicas ou anglo-americanas pudessem surgir poucoantesouno imdaguerra;masnonordestedaEuropa,eparticularmentena Polônia, isso era impossível. Assim, as mãos de Churchill estavamatadas,mesmoquandosuamentenãooestava.

Ele não podia ignorar, quanto mais contestar, o que Stálin queria daPolônia. Stálin queria duas coisas: as suas fronteiras de 1941 e, depois,umaPolônia subserviente.No imele conseguiu ambas, emboraChurchilltenha se batido tenazmente quanto à segunda. A primeira foi a questãomaisfácil—paraele,emboranãoparaospoloneses.AfronteiraoestedaUniãoSoviéticaem1941(queelaalcançouem1939,pelopactocomHitler)se estendia, de um modo geral, ao longo da chamada Linha Curzon de1920 (proposta pelos governos britânico e francês durante a guerrasoviético-polonesaem1920masque,apósaderrotadoExércitoVermelhonaquelaguerra,foiabandonada;noTratadodeRiga,em1921,afronteirapolono-russa foiestabelecidaamaisde160kmpara leste).Desdeo início,Churchill julgou que não devia nem podia recusar essa exigência russafundamental. Alémdisso, dentre outros problemas, essa parte da Polôniaoriental era habitada por pessoas de todos os tipos, a maioria não-poloneses. De outro lado, uma aceitação polonesa da Linha Curzonequivaleria a uma perda de mais de dois quintos do território polonês

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anterior à guerra. O governo polonês no exílio em Londres — que, aocontrário de muitos outros governos no exílio, não era um regime desimulacro,mas com razoável prestígio e um exército considerável—nãoconsentirianisso.

OprojetodeChurchilleracompensaraconcessãogeográ icacomumaconcessãopolítica:cederaStálinaLinhaCurzon,emtrocadasuaaceitaçãode uma Polônia independente, irmemente amistosa para com a Rússia,mas cujo governonão fosse dominadopor pessoal escolhidoporMoscou,comunistas subservientes. Ele não deve ser criticado por não haverconseguido isso. O governo polonês em Londres só aceitaria a LinhaCurzonnoderradeiromomento—emboraChurchill,comoconsentimentodeStálin, propusesseuma compensaçãobastante razoável àPolônia, comterritórios extensos que seriam obtidos da Alemanha. Roosevelt e osamericanos deram pouco, ou nenhum, apoio a Churchill. Mais relevante:em1944 Stálin, cujos exércitos haviam começado a avançar pela Polônia,sabiaqueconseguiriatantoaLinhaCurzonquantoumgovernosatéliteemVarsóvia,dirigidonamaiorparteporcomunistaspreparadosemMoscou.Que o destino da Polônia não era uma preocupação secundária paraChurchill icaóbviodofatodeque,porinsistênciasua,aPolôniafoiotemaaocuparamaiorpartedotempoemIalta,assimcomoemsuaconferênciaemMoscoucomStálin,emoutubrode1944.Duranteessaconferência,elese dirigiu rude e, às vezes, brutalmente aos representantes polonesesdemocráticos ainda relutantes e impossibilitados de aceitar a LinhaCurzon.ChurchilldissequenãopermitiriaqueelescolocassememriscoasuaaliançadeguerracomStálin.Censurou-osasperamentepelateimosiaeirrealismo, por deixarem escapar (assim lhes disse) a sua última e únicaoportunidade de assegurar uma Polônia decente e livre após a guerra.Stálin,afinal,haviapermitidoquealgunsdospolonesesemLondresfossema Moscou, ao passo que Churchill demonstrou apenas desdém pelospolonesescomunistasoupró-co-munistasqueStálinapresentaracomooslíderesdasuaPolônia. (Churchill icou impressionado—masnãodetodoaplacado—aoverqueStálintambémnãoostinhaemaltaconta.Comumaespéciedecintilaçãonoolhar,StálintransmitiuasuasatisfaçãoaChurchillcomosentido:“Vejacomoosmeusfantochesobedecem...”)

EssaconferênciaemMoscou,quedurouquasedezdias,oferecemuitaspistas sobre o relacionamento entre Churchill e Stálin. Churchillconsiderou-a um sucesso, como informou a Londres tanto durante comoapós a reunião. Talvez ele estivesse sendo otimista demais; talvezsuperestimasse o que via como sinais do realismo de Stálin — e, por

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conseqüência, do relacionamento de ambos, do recíproco, senão mútuo,apreço. Churchill tem sido criticado por seu comportamento emMoscou.Noentanto,eletentou,epelomenosemparteconseguiu,salvaropossível:salvardas garrasdeStálinomáximodaEuropaqueentãopodia, emummomentoemquenãodispunhadetrunfosnamão.Nãoviriaahaverumapresençamilitar anglo-americana na Europa oriental. Ele não conseguirapersuadir os americanos. Enquanto isso, os russos haviam ocupado aRomênia e a Bulgária, entraram na Iugoslávia e estavam avançando comdi iculdade pelaHungria.Meses antes, Churchill formulou uma pergunta,talvez retórica, a Anthony Eden: nós estamos dispostos a consentir nacomunização dos Bálcãs e, talvez, da Itália? Em junho, ele sugeriu umadivisão de trabalho temporária aos russos (e também a Roosevelt), queconsistia, em essência, em se traçar uma linha de divisão deresponsabilidades, comaRomênia e aBulgária passandopara os russos.Masnãohouveumaconcordânciaamericanaexplícitaquantoaisso,comode fatonãohouvequantoaoutrosassuntos.AssimChurchill, ao chegaraMoscou, sentou-se à mesa diante de Stálin e propôs o Acordo dasPercentagens.

De vez em quando, o Acordo das Percentagens é apresentado comoprovadocinismodeChurchill,comoindicaçãodamaneiradisplicentecomoessevelhoearrogantearistocratadispunhadodestinodenaçõesinteiras.Essa crítica está mal colocada. De certo modo, o seu inverso eraverdadeiro. Não existe amais leve indicação de que qualquer pessoa nogoverno britânico (inclusive Eden), qualquer funcionário importante noMinistériodasRelaçõesExteriores,qualquerpersonagempúblicobritânicoin luente, qualquer barão da imprensa houvesse tentado lembrar aChurchillqueeraprecisofazeralgoparaaveriguareestabeleceroslimitesdeumcontrolesoviéticototaldosudestedaEuropa,incluindoaHungria.Aidéia, e a preocupação, foram do próprio Churchill. Era o primeiro, epremente, assunto na sua agenda. Logo no começo do primeiro encontrocom Stálin, ele disse que deviam discutir a Polônia e, imediatamente,passou a fazê-lo. A história é bem conhecida. Ninguém a descreveu tãodireta e vividamente quanto o próprio Churchill. Ele abriu por cima damesa meia página de papel, em que havia escrito estas percentagens:“Romênia:Rússia90%.Grécia:Grã-Bretanha(acordadocomosEUA)90%.Iugoslávia: 50-50. Hungria: 50-50. Bulgária: Rússia 75%.” Stálin pegou oseu habitual lápis azul e fez um grande•/ de conferido, no papel. Tudocerto!“Depoisdisso,fez-seumlongosilêncio.Opapelcomamarcadolápispermanecia no centro da mesa. Por im, eu disse: 'Não poderia ser

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considerado um tanto cínico se parecesse que resolvemos essesproblemas, tão decisivos para milhões de pessoas, de um modo tãoimprovisado?' Vamos queimar o papel. 'Não, guarde-o com você', disseStálin.”7Churchill icouimpressionado.Essaseriaumaconferênciabem-su-cedida,eerapossívelconfiaremStálin.

Não foi exatamente assim, porém Churchill não estava de todoequivocado.Nãofoiexatamenteassim:jávimosqueChurchillpraticamentenão abalou a determinação de Stálin sobre o que fazer quanto à Polônia.Alémdisso,mais oumenos umdia após aquele importante acordo, Stálinmandou Molotov barganhar com Eden a respeito de alguns detalhes.Molotov era um barganhador mais tenaz do que Eden. Ele reformuloualgumas das percentagens (especialmente no caso da Hungria) em favordaRússiaeChurchillpermitiuqueassim icasse—talveztambémporqueelehaviacontraídoumafortegripe.Noentanto,asuaestimaporStálineraaindamaissólidadoqueantes;emaomenosumaocasiãoelesereferiuaStálincomo“umilustreebomhomem”.PelomenosemumcasoimportanteStálin cumpriu de fato a palavra. Churchil havia proposto o predomíniobritânico de 90%, quase absoluto, na Grécia. Stálin aceitou sem discutir.Issoeraimportante,porqueChurchilltinhamuitocomoquesepreocuparnaGrécia, ondea guerra civil era iminente, poisumexército guerrilheirocomunistaestavasurgindoempraticamentetodaparte,tentandoderrotare eliminar as forças da resistência grega,monarquistas e liberais— issoapesardachegadadealgumastropasbritânicasaAtenas,precisamentenaépocadaconferênciaemMoscou.Entretanto,oAcordodasPer-centagenssalvouaGrécia8—objetivoprincipal deChurchill. Cinco semanasdepois,uma insurreição comunista pareceu subjugar Atenas. Churchill enviouconsiderávelforçabritânicadaItáliaparacombatê-laeesmagá-la.Nomaissombriodezembro,eleabandonouaexpectativadeumnatalemfamíliaevoou para a Grécia, a im de forjar uma solução política provisória. Elehavia suscitado críticas intensas, e às vezes violentas, dos americanos,inclusivedoDepartamentodeEstadoeda imprensa,masnemumaúnicapalavraouatodesfavorávelporpartedeStálin.(OrepresentanterussonaComissão de Controle Aliado em Atenas a irmou aos comunistas,momentaneamente vitoriosos, que nada tinha a ver com eles.) Uma ouduas vezes Churchill chamou os comunistas gregos de “trotskistas” —querendodizerqueelesnãoeramcomoStálin.

Ele encarava Stálin como um governante russo tradicional — umestadista, um czar vermelho. Ao atacar Churchill após a guerra, EvelynWaugh escreveu que Churchill havia julgado que Stálin era apenas um

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velho czar em escala maior, “um erro apavorante”. Mas evidentementeStálinera um czar em escala maior: só que não do tipo de Nicolau II,evasivo, vacilante, afável, com a barba em ponta como a de Jorge V daInglaterra, mas um espantoso czar em escala maior, um novo Ivan, oTerrível. O que Churchill também compreendeu foi que a geogra ia e oterritório tinham importância, não a ideologia: onde os exércitos russos eondeosexércitosanglo-americanosseachariamno inaldaguerra;equeamaneirade lidarcomStálinera,portanto,nabasedapermuta—issoéseu, isso é nosso. Stálin compreendia as coisasmais oumenosdamesmamaneira. (Já Roosevelt e os americanos não, exceto quando e onde eramobrigadosaissopelascircunstâncias.)

NaConferênciadeIalta,emfevereirode1945,Churchillaindaeraumaiguraprincipal,masoseupodereasuain luênciaerammenoresdoqueosdeRoosevelteStálin.APolônia foiumtemaprincipalemuitodebatidoemlalta,masStálinpoucoounadacedeu.AsrelaçõespessoaisdeChurchillcom ele ainda eram excelentes. Eles brindavam um ao outro, talvez emdemasia.EmIalta,Stálinchegouquaseaopontode felicitarChurchillpelocontrole da Grécia. Churchill disse aos representantes britânicos naRomênia que eles tinham de compreender as grandes limitações dosinteresses da Grã-Bretanha lá. Mas logo depois de Ialta, a despeito doAcordo das Percentagens, Churchill reconheceu que a “Declaração daEuropaLiberada”—umenunciadoemtermosgeraisredigidoeassinadoemIalta,principalmenteparaagradaropresidenteRoosevelt,prometendo“democracia”emtodapartedaEuropa—erainterpretadaporStálincomosigni icando que o que osseus exércitos haviam “liberado” pertenciam aele. Era assim imperioso que os exércitos anglo-americanos seencontrassem comos russos omáximoa leste possível. Por algum tempoChurchill havia esperado e, ocasionalmente, planejado que uma forçabritânica chegasse a Viena; seus planos foram frustrados pelosamericanos.Mas no inal demarço uma nova situação se delineava: pelaAlemanha, os exércitos anglo-americanos estavam avançando maisdepressadoqueosrussos.SenãoViena,elespoderiamalcançarPragaoutalvezatéBerlim,àfrentedosrussos.Osamericanosnãopermitiriamissodeformaalguma.OgeneralEisenhower,comandantesupremodosaliados,se incumbiu de informar Stálin (sem informar Churchill antes) que osexércitosaliadosnãoavançariamnaqueladireção.

Os problemas de Churchill comos americanos, comRoosevelt e o seucírculo (o presidente estava morrendo) eram, nesse período, tão di íceisquanto seus problemas com Stálin. Ele tomou extremo cuidado para não

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tornar issopúbliconaépoca, oumesmosete anosdepois, quandoditouovolumede suasmemórias de guerra que tratavado tema. (Fez issoparaagradar Eisenhower, o presidente que seria empossado e seu ex-companheiro do tempo da guerra — como veremos em um capítulosubseqüente, em vão.) Stálin tinha certo conhecimento das divergênciasentreChurchilleosamericanos.Eventualmente,conseguiuatécolocarumcontra o outro, ao menos um pouco. Mas em março de 1945 a suapreocupação principal era outra: onde os seus exércitos se encontrariamcom os anglo-americanos, no interior da Alemanha? Ele icou furioso aosaber que, desde o início de fevereiro, Allen Dulles, um representanteamericano secreto na Suíça, estivera negociando com um general SSalemão a rendição de initiva do exército alemão na Itália aos anglo-americanos. (Stálin não estava totalmente errado: essas parlamentaçõeseram apenas mais uma tentativa alemã de afastar anglo-americanos derussos. Elas tampouco eram realizadas sem o conhecimento de Hitler oucontraasuavontade.)Stálinestavaaindamaispreocupadocomarendiçãofácil e rápida de cidades e tropas alemãs aos aliados na Alemanhaocidental, ao passo que os alemães lutavam encarniçadamente em cadavilarejona Silésia, naPrússiaoumesmonaBoêmia tcheca.Rooseveltnãosabia bem como reagir às iradas acusações de Stálin,mas já não era elequemredigiaasrespostasaStálin,cujostonseramàsvezescontraditórios.A12deabrilelemorreu.CasohouvessemuitoantesevidenciadoaStálin(eaomundo)queeleeChurchill estavamemplenaconformidadeacercadetemasimportantes,aposiçãodeChurchillcomooprincipalestadistadoOcidente no inal da guerra teria sido inco-mensuravelmentemais sólida.Mas não seria assim e, no que dizia respeito à Europa, Churchill nãoconseguiu o que pretendia. Os russos ocuparam Viena, Berlim, Praga.Alguns dias antes de Hitler se matar, Heinrich Himmler ofereceu arendição incondicional do Terceiro Reich aos aliados ocidentais. Churchillrejeitou-a: a rendição devia envolver todos os aliados, inclusive a UniãoSoviética. A reação de Stálin foi, dessa vez, efusiva, quase em excesso:“Conhecendo-o, eu não tive dúvidas de que agiria dessamaneira.” Dessavez, a vaidade de Churchill o dominou: ele icoumuito lisonjeado com aspalavrasdeStálin.

Mastalentusiasmofoiefêmero.Duranteaquelassemanasdevitóriasedo desmoronamento do Terceiro Reich de Hitler, o estado de espírito deChurchill eramelancólico— talvezmaismelancólicodoqueemqualquerperíodo desde maio de 1940. Sua esposa fez uma viagem à Rússia e foirecebida commuita cordialidade e boa vontade. No entanto, trechos das

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cartasdeChurchillaelasãoexpressivos.(Em2deabril:“Nestemomento,você é o único ponto luminoso nas relações anglo-russas.” Em8 de abril:“Você sabe perfeitamente como são grandes as nossas di iculdades arespeito da Polônia, Romênia e esta outra encrenca sobre pretensasnegociações. Ainda pretendo perseverar, mas é muito di ícil.” Em 5 demaio: “Mal preciso dizer-lhe que sob esses triunfos se acham políticasperniciosaserivalidadesinternacionaisfatais.”)9Elecompreendia,melhordoquequalqueroutrapessoa,oque signi icavaa interpretaçãodeStálindas declarações de Ialta: dentre elas, a ausência de qualquer sinal, ouesperança, de que Stálin permitiria sequer um governo mais ou menoslivre e democrático na Polônia.Nos discursos doDia daVitória, Churchillpreveniu o povo britânico sobre mais tribulações e desa ios adiante. ElechegouadarinstruçõesaMontgomeryeaoutroscomandantesbritânicosnaAlemanhapara recolheremas armas alemãs,mantendo-asna reservapara um eventual confronto com os russos que avançavammais a oeste,além das zonas de ocupação que lhes haviam sido atribuídas. Dentreoutrospontos,elequeriaassegurarqueoexércitobritânicoseencontrariacom os russos a leste do acesso à península dinamarquesa. E restava,julgavaele, um trunfo importante: o fatodeque,naAlemanha central, osexércitos anglo-americanos em marcha se haviam encontrado com osrussos bem a leste dos limites das zonas de ocupação previamenteajustadas. Talvez— talvez— a sua retirada pudesse ser condicionada aconcessõesrussas,maisumavezprincipalmenteemrelaçãoàPolônia.

Mas isso não ocorreria. Havia então um novo presidente americano,Harry Truman, que logo demonstrou coragem e irmeza de caráter,fazendo frente a Stálin, e que tinha quase o mesmo ponto de vista deChurchill, mas não totalmente. Durante os decisivos últimos meses daguerra— na verdade, ao longo damaior parte do Ano Zero, 1945—, ogoverno americano, as forças armadas, o Departamento de Estado, aimprensa aplaudiram os russos, com muito poucas exceções. “Eles estãorepicandoossinos”,disseraWalpolesobreosseuscríticos,duzentosanosantes. “Breve estarão retorcendo asmãos.” Assim foi com os americanosem 1945. Na última reunião de cúpula da guerra, em Potsdam em julho,não se discutiu nada de grande importância, além de uma nebulosaaceitaçãodostatusquonaEuropaenaAlemanha.Churchill,aessaaltura,estava desgastado e cansado. Sua energia havia diminuído e também acapacidade de concentração; a atenção aos detalhes, inclusive osimportantes, era lenta; ele não se preparou adequadamente antes oudurante a reunião emPotsdam— tudo isso foi notado pela sua comitiva.

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Stálin não acreditava que Churchill não fosse reconduzido ao cargo pelopovo,naeleiçãobritânicadejulhode1945.Churchilltambémmalpoderiaacreditarnisso.Noentanto,assimaconteceu.

Chegamos agora à última fase desse relacionamento extraordináriocom Stálin, marcado pelas sonoras advertências de Churchill contra aRússia, e pelo início da guerra fria. Ele já não era primeiro-ministro.Masestava acompanhando a evolução dos acontecimentos. Consolou-se umpoucoaovercomoopresidenteTrumaneogovernoamericanoestavam,cautelosa e gradativamente,mudando de opinião sobre Stálin e a Rússia.Havia, porém, uma diferença entre a sua perspectiva e a deles. Osamericanos estavam cada vez mais apreensivos com o comunismo, aexpectativa de a in luência e o poder de Stálin se estenderem à Europaocidental,ItáliaouFrança.Churchillestavapreocupadocomaprogressivarigidez da divisão da Europa, com a crescente imposição por parte deStálindoseucontroletotalsobreaEuropaorientaleoqueissosigni icava.Posteriormente, Churchill mostrou-se à altura do convite do presidenteTruman e fez o famoso discurso sobre a Cortina de Ferro em Fulton, noMissouri, emmarçode1946.Logo tornou-seumdos seusdiscursosmaiscélebresehistóricos.Naépoca,porém,areaçãoamericanafoivariada:atéTrumanachouquedeviadistanciar-sedodiscurso,pelomenosumpouco;seucon identeedepoissecretáriodeEstado,DeanAcheson,odesaprovouinteiramente. Não importa: em breve icou evidente que Churchill tinharazão. Halifax, ainda embaixador britânico em Washington, aconselhouChurchillaabrandarotom,talvezatéiraMoscouparaexplicarasituaçãoa Stálin. Não, disse Churchill, isso seria aviltante, como apresentardesculpasaHitler,digamos,em1938.

Isso signi icavaqueChurchillmodi icara completamentea suaopiniãosobre Stálin? Sim e não—mais precisamente: não,mais do que sim. Eleconsiderava Stálin um tirano russo, interessado em resguardarirmemente os domínios conquistados na Europa oriental, enquanto osamericanosoconsideravamochefedocomunismointernacional,decididoa expandir os seus domínios cada vez mais na Europa. Churchill achavaqueostemoreseramcomfreqüênciaascausasdaagressividadebrutaldeStálin. Eles temem a nossa amizade tanto, senão mais, quanto a nossainimizade, dizia Churchill de vez em quando. Em 1951, ele se tornou denovo primeiro-ministro. A guerra fria estava no auge; uma guerra eratravada na Coréia; os russos tinham a sua bomba atômica; havia muitasdi iculdades emoutros locais. No entanto,mesmo antes de Stálinmorrer,Churchillenxergavaalgunssinaisdemudança.Vimosque,noúltimodiade

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1952, ele disse a Jock Colville que dentro de cerca de três décadas ocomunismodesapareceriadaEuropaoriental.Novesemanasdepois,Stálinmorreu.Churchillestavaconvencidodequehaviachegadoomomentoderenegociaralgumasdascondiçõesdaguerrafria,inclusiveascondiçõesdeuma Europa dividida, com os novos, constrangidos e insegurosgovernantesdaUniãoSoviética.Masissotambémnãosucederia.

Em suma: Churchill estava equivocado namaneira como avaliou— etratou—Stálin?Seutemperamentoromânticoesuaretóricasentimentalolevaram, de fato, a exageros, de vez em quando. Mas essencialmente elenão estava equivocado. Manteve ativa aquela estranha e complicadaaliançanoperíododaguerra,oquenãofoifácil,jáquealealdadedeStálinaosaliadosnãoeraalgolíquidoecerto,semfalarnaintençãodeHitlerdedesunirosaliadosou,pelomenos,provocarsériasperturbaçõesentreeles.EquantoàEuropaoriental:em1944ChurchillrealmentesalvouaGrécia;e—aocontráriode1915,depoisdeoutraguerramundial,quandooutroczarrussonãopermitiuqueexistisseumEstadopolonês—em1945haviaumEstadopolonês, apesarde subserviente aMoscou.A sua existência e,mais importante,ogradualdesenvolvimentodaindependênciapolonesaapartirdaídeveram-seemgrandeparteàcoragemdosprópriospolonesesduranteaguerraeàsuadeterminação;mas,pelomenosemumpequenograu,tambémaWinstonChurchill.

1Umexemplo:umeditorialnoTimesdeLondres,em01.08.1941:“AliderançanaEuropaorientalsópodecaberàAlemanhaouàRússia.NemaGrã-BretanhanemosEstadosUnidospodemexercer,ouaspiraraexercer,qualquerpoderpredominantenessasregiões.”2 É talvez curioso que essa frase tenha sido ligeiramente alterada na edição soviética dacorrespondênciaentreStálineChurchill. (“IssoresultouemumareduçãodanossacapacidadededefesaeconfrontouaUniãoSoviéticacomumriscomortal”)3 SombrasdeLênin!Éumapenaquenão tenha acontecido.Que livroEvelynWaughpoderia terescrito sobre as aventuras dos Reais Fuzileiros na Ucrânia. (Possíveis títulos:A jovem comandantevermelha; Camaradas em armas; Kommissarovka revisitada.) Escrevi um pouco disso vários anosatrás;cf.TheLastEuropeanWar,1939-1941.NovaYork,1976,reimp.2001,p.149.4Épelomenoscuriosoque,noiníciodesetembro,ChurchilltenhaenviadolordeBeaverbrookparaumaentrevistasecretacomRudolfHess.VerigualmenteTheLastEuropeanWar,p.149,n.22.5DocumentsofPolish-SovietRelations,1939-1945.Londres,1961,1:297-8.6BrianBond(org.),HenryPownall,ChiefofStaff:TheDiariesofLieutenantGeneralSirHenryPownall,1940-1944.Londres,1974,2:109-10.7RelatodeChurchill.TriumphandTragedy.Boston,1953,p.227-8.8NãopoderiasalvaraHungria,emboraduranteosmesesseguintesChurchillinsistisseváriasvezes(principalmente comosamericanos)queaHungrianãoeraumEstadobalcânico,masdaEuropacentral, e que (ao contrário de uma das observações de Stálin) a Hungria não formava fronteiracomaRússia.9 Mary Soames (org.),Speakingfor Themselves: ThePersonalLetters ofWins-ton and Clementine

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Churchill.Londres,1998,p.522,530.

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ChurchilleRoosevelt

Uma correspondência entre dois estadistas pode ocultar tanto quantorevela. Com freqüência as cartas sugerem, mais do que expõem, orelacionamento dos autores. Os três volumes de Churchill e Roosevelt: acorrespondênciacompleta(1984),organizadosporWar-renF.Kimball,sãouma exceção. Eles são o registro mais completo do que pode ser acorrespondênciamaiscopiosaque já foimantidaentreos líderesdeduasimportantesnações—todaduranteoscincoanosdeumaguerramundialemqueChurchilleRoosevelteramduasdasquatro igurasprincipais.Nãosó para os povos anglófonos mas para a história do mundo, orelacionamentoentreChurchilleRooseveltfoiecontinuaasernomínimotãointeressantequantoorelacionamentodecadaumdelescomodi íciledistantealiadoStálin.AcorrespondênciaentreChurchilleRooseveltnãoécontemplativa.Éumacorrespondênciaquelidacomações,decisões,riscoseperspectivas: o registrodedois capitães 1 que se comunicamemmeio àmaior tormenta que já a ligiu a civilização ocidental. Antes de a SegundaGuerra Mundial começar, Churchill e Roosevelt haviam enviado algumasmensagensdistantes umao outro. Antes de a guerra terminar, Roosevelthaviamorrido.Mas durante a guerra—mais precisamente, entre 11 desetembro de 1939 e 11 de abril de 1945 — eles trocaramaproximadamente dois mil telegramas e cartas, dos quais Churchillescreveu1.161eRoosevelt,788.Algunsforampublicados,pelomenosemparte,emASegundaGuerraMundial,aimponentecombinaçãodehistóriaememórias de Churchill, redigida poucos anos depois. Desde então houveoutras coletâneas e seleções da correspondência entre Churchill eRoosevelt,masna compilação exaustivadeKimball temos algo comoumaimagemquasecompleta:umaenormepilhadecartasemensagensqueéummonumento da civilização dos últimos cinco séculos que ora inda—um monumento equivalente, digamos, ao Coliseu na era de Roma, ou àcidadedeParisnaEraModerna.

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Um motivo para tal a irmação, aparentemente exagerada, é que nãohouve nenhuma correspondência remotamente semelhante entre doisgrandesestadistasdesdeentão,eaprobabilidadedesuaocorrênciaagoraé mais ou menos igual à probabilidade de alguém compor uma sinfoniacomo Schubert. Por muitas razões, inclusive o risco de os alemãesinterceptaremereordenaremascomunicações telefônicas,oscontatosdeChurchilleRoosevelteramfeitos,namaioria,porescrito.Desdeentãoumasérie de mudanças, tanto culturais como tecnológicas, reduziu anecessidade e a prática dessas comunicações escritas entre estadistas.Churchill preferia ardorosamente a palavra escrita ao telefone. Isso nemsempre lheeraproveitoso.Comomuitosdosgrandesmestresdapalavra,ele tendia a con iar em excesso na in luência das suas. Ditava umamensagem,empenhando-seaomáximoparaexprimirassuasproposiçõescom clareza e vigor, inclusive todos os argumentos e detalhes possíveispara apoiar sua tese. Depois de despender energia, zelo e precisão naexposição minuciosa das suas proposições, às vezes se seguia umarrefecimentodesuaresolução—sobretudoduranteosdoisúltimosanosda guerra, quando a resistência ísica e a capacidade de concentraçãoestavam fraquejando. Do início ao im da guerra, o próprio Churchillminutou as cartas e mensagens. Roosevelt, à medida que a guerraprosseguia e à medida que a sua saúde e energia começaram a decair,dependiadaminutadeoutraspessoas (sabemososnomesdealgunsdosredatores). Isso teve importânciamas, com exceção de uns poucos casos,nãofoiumadiferençadecisiva.

Emalgummomentodooutonode1938—apósMuniqueemaisdetrêsanos antes de Pearl Harbor —, Roosevelt começou a oferecer apoio, deforma cautelosa, individual e secreta, a algumas pessoas na Inglaterra eFrançaqueseopunhamaumnovoapaziguamentodeHitler.Churchillerao primeiro dentre esses homens. Durante o ano que antecedeu ade lagração da guerra, não houve comunicação escrita entre os doishomens.EntretantoRooseveltsabia,comotodososdemais,que foidevidoà quantidade de advertências de Churchill sobreHitler que Chamberlainse viu forçado a convidar Churchill para o Gabinete de Guerra, comoprimeiro lorde do Almirantado; e, alguns dias depois, Roosevelt enviou aprimeiracartaaChurchill,querespondeuanimadamenteaesseamistosoeimportanteacenodoNovoMundo.ElefalouaChamberlaineaHalifax,osecretário das Relações Exteriores, sobre essa correspondência especial.Eles aprovaram-na plenamente. Oito meses depois, Churchill se tornouprimeiro-ministro. Ele sabia que de algum modo, em algum lugar, em

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algummomento,osEstadosUnidosteriamdeentrarnaguerraaoladodaGrã-Bretanha. Roosevelt também sabia disso, embora preferisse nãoadmiti-loparaopovoamericano.ChurchillsabiaqueRooseveltsabia.Antea extraordinária importância desse enfoque comum, os eventuais mal-entendidos e discordâncias entre ambos icam em segundo plano. Sem oapoio de Roosevelt, os britânicos se veriam forçados a irmar a paz comHitler, aceitando o domínio da Europa pela Alemanha. Enfatizo a Europa,nãooExtremoOriente,porqueesteeratambémumelementoessencialnoenfoque comum de Churchill e Roosevelt. Muito antes de Pearl Harbor,Roosevelt percebeu que uma guerra contra a Alemanha devia terprioridade sobre uma eventual guerra contra o Japão; uma derrota dosegundoseseguiriaàderrotadaprimeira.Essadecisãoamericananãoerainevitável:haviamuitaspressõesinternasemilitaresemsentidocontrário.Erademáxima importânciaqueRoosevelt estivessedeplenoacordocomChurchillquantoaisso.

Tanto Churchill quanto Roosevelt foram o iciais navais (“Ex-O icialNaval” foi o codinome que Churchill usou na correspondência comRoosevelt durante a maior parte da guerra). Mas Roosevelt tinha umacon iança exagerada na importância do poder naval, que após quatroséculos estava começando a decrescer. Na época do colapso francês,Roosevelttentouconsolaroprimeiro-ministrofrancês:opodernavalaindaeraachaveparaaguerraeahistória,escreveuele.Em1941eleescreveuaChurchillque“emúltimaanálise,comocorrerdotempo,ocontrolenavaldooceano ÍndicoedooceanoAtlânticovenceráaguerra”.Noentanto,naSegundaGuerraMundialumexércitoterrestremotorizadopodiamover-secommaisrapidezdoqueumafrotanaval.AguerratinhadeservencidanocontinentedaEuropa.ElaterminarianomeiodaAlemanha,nasruínasdeBerlim. Alguns dias após se tornar primeiro-ministro, quando a Europaocidental tombava sob os golpes de Hitler, Churchill compreendeu o queRoosevelt estava pensando: se o pior acontecesse, a esquadra britânicapoderianavegarparaoNovoMundoeunir-seàmarinhaamericanaparaprotegeroAtlânticoocidental.ChurchillescreveuaRooseveltque,emboraele jamais fosse se render,opresidenteamericanodevia reconhecerque,com a vitória de Hitler e sem a expectativa de ajuda americana, poderiaseguir-seumgovernobritânicocujaúnicacartadevalor,emumeventualarmistíciocomHitler,seriaaexistênciadeumaesquadrabritânicaintacta.Certos historiadores americanos, inclusive Kim-ball, têm encarado aadvertênciadeChurchill comoumatentativaastuciosademanterabertasassuasopções.Não:naquelemomentoChurchilleraumsupremorealista,

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obrigado a lembrar a Roosevelt a mais desoladora de todas aspossibilidades. Pouco depois, esse mal-entendido entre eles se desfez.DevidoàrelutânciadeHitleremarriscaruma invasãodaGrã-Bretanhaedevidoaumacertezamaiordaajudaamericana, a liderançadeChurchilltornou-seseguraeaperspectivadeumaGrã-BretanhaforçadaasolicitarumarmistíciocomHitlerdesapareceu.Emnovembrode1940abatalhadaInglaterra,pelomenosnoar, foravencidaeFranklinRoosevelthaviasidoeleitopresidenteparauminauditoterceiromandato.

Alguns dias depois dessa eleição, Churchill redigiu uma carta paraRoosevelt. (Ele escreveu dois longos rascunhos antes da versão inal.) AAlemanha,escreveuele,“atingiusuaproduçãoindustrialmáximanofimde1939”.Eleestavaenganado.Aeconomiaalemãrealizariamilagresdurantea guerra, atingindo a produção máxima quatro anos depois, apesar dascentenas de milhares de bombas lançadas sobre a Alemanha peloesmagador poderio aéreo anglo-americano. Churchill escreveu que nãoestavapedindo “umnumerosoExércitoExpedicionárioamericano”. Seelerealmente falava a sério, não podemos saber. Provavelmente não. Eletambém pensava em um futuro em que as duas democracias anglófonasgovernariam os destinos da maior parte do mundo — uma idéia queesposaranoiníciodavidaequeoacompanhouatéo imdosseusdias.“Sevencermos,teremosdeassumiraresponsabilidademáximaporumanovaordem mundial”, escreveu ele. “Se, no entanto, os nossos dois paísesvieremaassociar-senadefesadaliberdadeeaindamaisnareconstruçãodomundoapósaguerra,nenhumdelesdeveseroclientesup licantedooutro.”Todavia,foiexatamenteissoqueaconteceu:àmedidaqueaguerraprosseguia, a Grã-Bretanha de Churchill se tornou cada vez maisdependentedariquezaedopoderdosEstadosUnidosdeRoosevelt.Alémdisso — segunda na ordem, mas não na importância —, havia umacondição que nem Churchill nem Roosevelt podiam prever em 1940:apesar de toda a riqueza e do predomínio aéreo e marítimo das forçasanglo-americanas, elas não conseguiriam derrotar sozinhas o TerceiroReich, semopoderioprimitivodaRússia.FoioataquedeHitleràRússia,lançadosobopretextoeemnomedoanticomunismo,queposteriormenteresultounasobrevivênciadaGrã-BretanhaenavitóriaglobaldosEstadosUnidos.

Churchill e Roosevelt descobriram isso depressa. É o que explica aindulgência de ambos para com as exigências russas, inclusive asimpossíveis de satisfazer. Explica aindamais o respeito e a con iança emrelaçãoaStálin,expressosnalinguagem—emretrospecto,estranhamente

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loreada—dostelegramasebrindesaele.MasasopiniõesdeChurchilleRooseveltsobreStálindivergiam.QueaRússiacompartilhasseosdespojosda vitória sobre a Alemanha na Europa era inevitável. O que não erainevitável era a extensão — a extensão, mais do que a natureza — dodomíniorussosobreamaiorpartedaEuropaorientale sobreregiõesdaEuropa central: em suma, as origens da guerra fria. Na sua introdução,Kimball escreve que Churchill “havia meramente substituído o mal daAlemanha nazista pelomal da União Soviética. Independentemente de setinha ou não razão a respeito dos soviéticos, Churchill não conseguiucompreenderqueopreçoinevitáveldavitóriaéocolapsodasaliançasdotempo de guerra, apesar da força dos laços pessoais.” Isso é demasiadosimples. A aliança anglo-americanadefacto sobreviveu à guerra. Maisimportante:aopiniãodeChurchillsobreossoviéticoseassuaspropostaspara tratar com eles eram mais realistas do que as de Roosevelt. Acorrespondênciaentreambosofereceamplacomprovaçãodisso.

Havia muitos elementos no desejo de Roosevelt de se dissociar deChurchill à medida que a guerra avançava. Roosevelt con iava em seucharmepessoal:acreditava,ea irmava,quepodia lidarcomStálinmelhordo que a maioria das pessoas, inclusive Churchill. Ele queria que Stálinparticipasse da guerra contra o Japão. Queria evitar qualquerenvolvimento americano na política da Europa central e oriental. Achavaque o povo americano não toleraria uma permanência prolongada detropasamericanasnaEuropaapósaguerra.AchavaquelevaraRússiadeStálin para as Nações Unidas era uma grande sorte. Algumas dessasconsideraçõespodemtersidorazoáveisnaépoca;outras,não.Subjacentesa elas, havia tendências pessoais que se revelaram decisivas. Uma era ohábito de Roosevelt de protelar, a relutância em enfrentar determinadosproblemas — uma prática que às vezes atuou a seu favor na políticainterna, mas que se tornou cada vez mais acentuada à medida que lhedeclinavamovigoreasaúde.

Odesejo crescentedeRooseveltde sedistanciardeChurchillduranteos últimos anos da guerra exige mais explicações. Por muito tempo, orelacionamento excepcional de ambos preponderou. A simpatia mútuatalvez tenhaatingidoo augeem1942—ou seja, depoisqueChurchill setornaraosóciominoritárionaaliançadeambos.Elesencontraram-sepelaprimeira vez emnavios de guerra ao largo de TerraNova, em agosto de1941,edenovoemWashingtonapósPearlHarbor.Essesegundoencontroocorreusoboprenunciodecalamitosasderrotasbritânicas,masdealgummodo a amizade pessoal de ambos então se consolidou.Mesmo o fato de

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quenemEleanornemElliottRooseveltgostarammuitodeChurchillnessaocasião fezpoucadiferença.A inal, foiem1942queRooseveltescreveuaChurchill: “É divertido estar na mesma década com você.” E em 1942, emesmoduranteumapartede1943,Churchill pôde impor a suavontade.Ele conseguiupersuadirRoosevelt eoalto comandomilitaramericanodeque a tencionada invasão da França, no inal de 1942, seria umacalamidade.Umanodepois,conseguiuconvencê-losdequeavitóriaaliadanaÁfricadoNortedeviaserseguidaporumainvasãodaSicíliaedaItáliacontinental. Mesmo as censuras e as propostas contrárias ao governobritânico na Índia feitas por Roosevelt não izeram grande diferença: opresidente deixou de lado o assunto, sem que Churchill tivesse dereclamar muito a esse respeito. Mas por im houve uma mudança —gradualmasindiscutivelmente.NaépocadareuniãodecúpuladeTeerã,aprimeiraentreosTrêsGrandes,amudançahaviasecristalizado.Rooseveltfez o melhor — e, às vezes, o pior — possível para se distanciar deChurchill,paraindicaraStálinquenãomantinhanenhumrelacionamentoespecial com Churchill. E quando, em 1944, Churchill argumentou comRoosevelt para aproveitar a campanha na Itália e deslocar algumas dasforçasanglo-americanasnadireçãodeViena;parainsistirnoproblemadaPolônia antes que fosse demasiado tarde; para resolver algo acerca dofuturodosEstadosdanubianosdaEuropa central antes queos russos osocupassemecontrolassem;para tirarpartidodeumasituaçãoquando—inalmente, na primavera de 1945 — os exércitos anglo-americanosestavam avançando pela Alemanha mais depressa do que os russos,Roosevelt negou. Antes de Ialta, Churchill escreveu a Roosevelt: “É bempossívelqueessasejaumaconferênciadecisiva,realizadaemumaocasiãoemqueosgrandesaliadosseachamtãodivididoseasombradaguerrasealongadiantedenós.Nopresentemomento,achobempossívelqueo imdessaguerravenhaasermaisdecepcionantequeodaúltima.”Rooseveltnãopensava assim.Ele recusou-se a conferenciar comChurchill antesdeIalta, exceto por algumas horas no porto deMalta. Ali Churchill escreveuque era “indesejável que mais da ... Europa do que o necessário fosseocupadapelosrussos”.MasRooseveltnãoquisdiscutirisso.

No início de abril de 1945, os problemas provocados pelocomportamento russo haviam se agravado. Há um telegrama, um dosderradeiros, que Roosevelt enviou a Churchill de Warm Springs, naGeórgia,seisdiasantesdemorrer.Eleescreveuqueestava“satisfeitocomasua[deChurchill]mensagemmuitoclaraeenérgicaaStálin....Dentrodemuito poucos dias nossos exércitos estarão em uma posição que nos

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permitirá sermais 'duros' do que até agora pareceu conveniente para oesforço de guerra.” Por muitos anos esse telegrama foi citado pordefensoresdeRooseveltque—especialmenteduranteosanosrepulsivosdoperíodoMcCarthy—queriamprovar que, se tivesse vivido, Rooseveltteria passado a resistir à agressividade comunista tão rápida evigorosamentequantofezseusucessorHarryTruman.Sabemosagoraquenãoeraassim.AmensagemfoiminutadapeloalmiranteLeahy,pessoadaequipe do presidente que não gostava dos russos. (Ele descon iavaigualmente dos britânicos.) Existem até motivos para acreditar queRoosevelt,doente,sequerchegoualê-la.

ChurchillinsistiaquesuasimpatiapelosEstadosUnidos,agratidãopelaaliança americana, a lembrança de Franklin Roosevelt se mantinhamsempresólidas.Com inteira razão: em1940edepois, elenãopoderia tersido bem-sucedidopormuito tempo semo apoio deRoosevelt. Ele nuncaesqueceuisso,enãosomenteporconsideraçõespolíticas.Élamentávelquemuitosamericanos—inclusiveosRoosevelts,masespecialmenteocírculodopresidenteetantosautoreshistóricosdesdeentão—tenhamatribuídoaChurchill intrigase ardis imperialistasdequeosamericanos tinhamdesuspeitar. Na realidade, no relacionamento comRoosevelt, Churchill foi omais franco, mais emotivo, mais romântico, menos reservado e menosdescon iado. Houve momentos em que o seu bom humor naturalin luenciou também Roosevelt. Evidentemente, Churchill era quemescrevia melhor. (De quando em quando, uma mensagem de Roosevelttermina com um americanismo prosaico: “Continue fazendo um bomtrabalho.”)

Noentanto,hámaisasedizersobreorelacionamentoentreChurchilleRooseveltdoqueseevidenciadovolumeexcepcionaldacorrespondênciado período de guerra. Neste breve capítulo, tentareimeramente resumirtrês temas. Um é a questão de dados adicionais e sua falsi icaçãointencional. Outro é a obra “revisionista” de determinados historiadores.Um terceiro é a minha tentativa concludente de aventar algo sobre orelacionamentopessoaldessesdois estadistas—sempre lembrandoque,embora a mente de um historiador possa estar equipada com o seuextenso conhecimento de dados documentais, bem como com a suacompreensão da natureza humana, tanto o conhecimento quanto acompreensãopermanecemnecessariamenteincompletos.

Churchill e Roosevelt mantiveram muitos contatos que não icaramregistrados: conversas particulares e telefônicas. Pelo menos duas —possivelmentemais—dassuasconversastelefônicasforamcaptadaspelo

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serviçode informações alemão.OMinistério dosCorreios alemãomontouumaestaçãodeescutaradiotelefônicanooestedaHolanda,onde técnicosconseguiram violar o chamado circuito radiotelefônico “embaralhado”,instalado entre Londres e os Estados Unidos no inal de 1941, cujasegurança,apesardeconsiderável,nãoeraperfeita (osbritânicossabiamdisso). Uma conversa relevante entre Churchill e Roosevelt, quatro diasapós a queda de Mussolini, em 29 de julho de 1943, parece haver sidogravada na íntegra: um resumo foi imediatamente transmitido ao altocomando alemão, assim como a Hitler. Existe uma reprodução impressadesse resumo. Todavia, não consegui adquirir uma cópia da transcriçãointeira, embora tenha feito um sem-número de tentativas naAlemanha ena Inglaterra. A razão do meu interesse era a minha suspeita — quedepois se consolidou em convicção — de que essa versão impressa epublicadadaconversaéuma falsi icação.Ela foi impressaemumcuriosovolume que contém supostos interrogatórios e depoimentos de HeinrichMüller, o chefe da Gestapo, que (com a provável conivência de AllenDulles) foi levado secretamente para os Estados Unidos em 1948 einterrogado pelos serviços secretos americanos. Posteriormente elemorreu e foi enterrado em segredo nos Estados Unidos. Isso é bastanteinteressante, mas o seu exame aprofundado não se encaixa no âmbitodeste livro. Pertinentes a ele são alguns dos documentos que Müllera irmouhaver levadoconsigo, inclusiveamencionadaconversa telefônicaentre Churchill e Roosevelt, reimpressa em um volume 2 organizado por“Gregory Douglas” (possivelmente um pseudônimo).Minha leitura atentadessedocumentosugeriu,desdeoinício,queeraumahábilinvenção.(Umexemplo das minhas suspeitas originais: Churchill chamar muitas vezesRooseveltde“Franklin”,aocontráriodoseuhábito).Minhasdúvidasforamdepois comprovadas por pessoas que conheciam Churchill intimamente,inclusive uma con irmação integral e minuciosa de uma inglesa, uma“censora”telefônica,cujatarefahaviasidoouviressescontatostelefônicosequetinhaautoridadeparainterrompê-losemmomentoscríticosquando,por exemplo, estavam em pauta assuntos de extrema segurança, com opropósitodeprevenirosqueconversavam.

Existemoutrashábeisfalsi icaçõesenvolvendoHitler—namaioriadoscasos,atribuindo-lhedeclaraçõesquesãocontráriasàsopiniõesaceitasououtrasquesugeremprevisõesouprofeciasassombrosasdesuaparte.Elassão hábeis porque com freqüência dão a impresão de autenticidade:contêm elementos inseridos para elevar a reputação póstuma de Hitler,com freqüência cuidadosamenteelaboradosporpessoas sagazes.Quando

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setratadeChurchill,osobjetivosemétodossãosemelhantes,masemumsentidonegativo:a “prova”sedestinaadenegrirasuareputação(e,pelomenos indiretamente, a reabilitar a de Hitler). Esse é tanto o objetivoquanto o método de David Irving, “revisionista”primus inter pares, masalguém que, pelo menos até agora, icou desacreditado a ponto de nãodevermos levá-lo a sério. No entanto, devemos ter em mente que existerevisionismoe revisionismo:que ahistória é revisionistapor suapróprianatureza; que não existe algo como história ortodoxa, históriaincontestável,história imutável, inalterável, ixadapara sempre.A revisãodahistórianãodeveseromonopólioefêmerodeideólogosouoportunistasque estão sempre prontos a deturpar, adulterar ou falsi icar dados dopassadoparailustrardeterminadasidéiaseosseusprópriosajustamentosaelas.Escrevoistoporqueumareconstituiçãoeinterpretaçãoautorizadasdo relacionamento entre Churchill eRoosevelt talvez ainda seja devida, etalvezespecialmentedaperspectivado séculoXXI.A inal, essa relação foiapenaspartedeumtemamuitoamplo,queéaaliançaeorelacionamentoespecialanglo-americanoduranteoséculoXX,algoqueaindapersisteaquie ali, mas que está fadado a se tornar problemático, mais cedo ou maistarde,devidoaoutraamplaquestão,queé—eserá—orelacionamentodaGrã-BretanhacomaEuropa.

Churchill estava espantosamente certo a respeito de Hitler. Estavaigualmente certo a respeito do comunismo e de Stálin. No primeiro caso,ele conseguiu transformar seus planos em atos. No segundo— devido aseus embaraços, mas também devido à relutância americana—, apenasparcialmente.IssotinhamuitoavercomadiferençaentreasmaneirasdeChurchill e FranklinRoosevelt encararemahistória. Foi umabênção elesconcordarem que o desígnio fundamental da guerra era a derrota doTerceiro Reich de Hitler. (Lembre-se que muitos dos adversáriosamericanos de Roosevelt não concordavam: eles acreditavam que ocomunismo era um perigo muito maior que o nacional-socialismo e aRússiaumperigomaiorqueaAlemanha.)Mas considere-se tambémqueRooseveltviaosEstadosUnidosnomeio:nomeionãosóentreessesdoispotenciais adversários, a Grã-Bretanha de Churchill e a Rússia de Stálin,masnomeiodaevoluçãoprogressivadahistória—aposiçãohistóricadosEstadosUnidosdeseacharnomeioentreavelhaInglaterratórieatoscaexperiência pioneira da União Soviética. (Um exemplo, o discurso deRoosevelt em 1944: “As grandes repúblicas, americana e soviética,postadas ombro a ombro, cada uma a sentinela no seu hemisfério,garantirão juntas a paz e a ordem do mundo.”) A opinião de Churchill

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sobre a União Soviética era muito diferente: um império poderoso masretrógrado, comahistória, a estrutura, a civilização e amentalidadebemaquémdaquelasdomundoocidental—dequalquermodo,inadequadoemumprojetodeprogressoevolucionáriotalcomoentendidoporRoosevelt(epormuitosamericanos)duranteaguerra.

Isso, receio eu, foi tratado — e compreendido — de maneirainsu iciente por pelo menos dois historiadores do relacionamento entreChurchilleRoosevelt,osprofessoresWarrenF.Kimball(umamericano)eJohn Charmley (um inglês). A reunião e reprodução rigorosas dos trêsvolumes da correspondência entre Churchill e Roosevelt realizadas porKimball são louváveis, mas os seus comentários não o são. Os volumesestão comprometidos pelas “notas introdutórias” de Kimball, queapresentammuitosdosdocumentos.Elascontêmmuitasdezenasdeerros,mas também más interpretações e atribuições de pensamentos etendênciasaChurchillquesãoerrôneas.Umexemplo (hámuitosoutros),que me senti obrigado a mencionar emCinco dias em Londres, é ocomentário de Kimball sobre a mensagem de Churchill a Roosevelt nomomento dramático da queda da França, em 14-15 de junho de 1940.SegundoKimball,Churchill,“a lito...julgounecessárioadvertirRooseveltdequenãosepodiaesperarqueaGrã-Bretanhacontinuassealutarsozinha,sem nenhuma esperança real de intervenção militar americana. Suaameaçadequeumgovernopró-alemãopudessesubstituiroseuMinistériofoiaprimeiraeumadasmuitopoucasvezesemqueChurchillsedesviouda costumeira estratégia de enfatizar a disposição da Grã-Bretanha delutaratéamorte.”Issonãofoiditopelaprimeiravez;nãoeraumaameaça,masumaadvertênciadealgoqueeraprecisoteremmente;nãoerauma“estratégia” e não representava um “desvio” de Churchill. CharmleyescreveuvárioslivroscomcríticasaChurchill.Nãocompeteaestecapítulouma análise da sua historiogra ia,mas devemos considerar um elementobásiconaargumentaçãodeCharmley,queéodequeoerromaisgravedeChurchill foi a sua “rendição” dócil, e muitas vezes leviana, aos EstadosUnidos. Recentemente Charmley escreveu que, na Segunda GuerraMundial, “os britânicos estavam lutando ... para preservar o império deVitóriaeosvaloresqueelerepresentavaeestimava”. 3Entretanto,opovobritânico e a maioria dos seus líderes haviam abandonado osmodelos eideais imperialistas vitorianos bem antes de 1939. Em um capítuloposterior, voltarei brevemente à descrição de Charmley do historiadorChurchill (“um mitólogo com [grande] capacidade e habilidade”). Aquitalvez seja su iciente a irmar que a sua atribuição de egoísmo e

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extorsionismoamericanoduranteaguerraédesequilibradaeexagerada,como é a atribuição dissimulada do seu confrade americano Kimball deimperialismointeresseiroaChurchill.

Algumas observações inais sobre Churchill e os Estados Unidos e,depois, sobre ele e Roosevelt. Escrevi anteriormente que Churchill,impelido pormuitosmotivos e impulsos, acreditou durante quase toda asua vida na suprema importância de um relacionamento cada vez maisestreitoentreessesdoisimportantespovosanglófonos.Devemosabrandarisso.Houveexceções.ElenãodavamuitovaloraWoodrowWilsonemuitasvezesfezcríticasaosamericanos,bemcomoasuaspolíticaseidéiasapósaPrimeiraGuerraMundial.Adecisãoderestabeleceropadrão-ouroparaalibraestavamuito ligadaaoseudesejodever restabelecidaaantiga taxade câmbio da libra para com o dólar. Ele era também contrário a umaequivalêncianavalbritânicacomosamericanos,de1918praticamenteaté1935. Em junho de 1927, ele disse: “Parece presumir-se sempre que énossodevercondescendercomosEstadosUnidoseatenderasuavaidade.Elesnadafazempornósemtroca,excetoexigirseuúltimonacodecarne.” 4Em certa ocasião, ele chamou Calvin Coolidge de “um matuto da NovaInglaterra” que mergulharia e de inharia em uma obscuridade que bemmerecia; em outra ocasião, chamou Herbert Hoover de ilho da puta.Tampouco o relacionamento de Churchill com Roosevelt teve um iníciotranqüilo. Eles haviam de fato se encontrado uma vez em 1919, quandoRoosevelt era subsecretário da marinha. Roosevelt lembrou-se disso em1940, enquanto Churchill pareceu não se lembrar. Os primeiroscomentários de Roosevelt sobre a notícia de que Churchill se tornara oprimeiro-ministro não foram lisonjeiros. Algumas pessoas próximas deRoosevelt acharam que Churchill era velho demais; que estava bebendodemais; já outros (como a sra. Roosevelt) que ele era reacionário eimperialista. Logo grande parte disso se desfez. Durante muito tempo,porém,a sra.Roosevelt continuoua suspeitardeChurchill ede suavisãodapolíticamundial.Issoédignodenotaporque,apesardosproblemasemseu casamento, Franklin Roosevelt era, pelo menos em pequeno grau,in luenciado pelas opiniões da esposa sobre o mundo durante toda aguerra.Roosevelttinhatambémcertainvejaemenosprezopelavivacidademental e habilidade retórica de Churchill. Aomesmo tempo, as defesas eexortações anticolonialistas, isto é, a favor da Índia e da China, feitas porRooseveltnãoeramtãoarraigadasquantoalgunshistoriadores,nessecasoespecialmenteKimballeCharmley,asjulgaram. 5FoiemrelaçãoàRússiaeà Europa após a guerra que as opiniões de Churchill e Roosevelt

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divergiram consideravelmente, embora com freqüência Churchillprocurassenãoenfatizá-lasexcessivamente,nemmesmodepoisdaguerra.Masoquefoiecontinuaaseromaisimportante:Rooseveltcompreendeuem 1940 que Churchill era o homem que não cederia a Hitler e nãoperderiaaguerra—aopassoqueChurchillreconheceuque,senãofosseRooseveltmasalguémcomoHooveraterocupadoaCasaBrancaem1940,Hitlerteriavencidoaguerra.

1 Capitães, sim; mas em 1942 Churchill, pelo menos de quando em quando (e de brincadeira),referia-seasimesmocomo“tenentedeRoosevelt”.2GregoryDouglas(org.),GestapoChief:The1948InterrogationofHeinrichMüller.SanJosé,Califórnia,1995,p.56-62.3 JohnCharmley,“ChurchillandtheAmericanAlliance”, in ChurchillandtheTwenty-FirstCentury:AConference Held at the Institute of Historical Research, University of London, 11-13 January 2001,TransactionsoftheRoyalHistoricalSociety,série6,vol.XI.Londres,2001,p.358.4 Citado por Phillips 0'Brien em “Churchill and the U.S. Navy 1919-29”, in R.A.C. Parker (org.),WinstonChurchill:StudiesinStatesmanship.Londres,1995.5Cf.oexcelenteestudodeChristopherG.Thorne,AlliesofaKind:TheUnitedStates,Britain,andtheWarAgainstJapan,1941-1945.Londres,1978.

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ChurchilleEisenhower

Houve divergências entreWinston Churchill e Dwight David EisenhowerduranteoúltimoanodaSegundaGuerra.Houvedivergênciasmaissériasentreelesduranteosanosdoaugedaguerrafria.Orelacionamentoentreambos durante a Segunda Guerra foi descrito por muitos historiadoresmilitares; durante a guerra fria, por relativamente poucos. Isso élamentável,poisexisteumasimetriadrásticaentreessesdoisperíodos.Em1944-45 Eisenhower se opôs às preconizações estratégicas de Churchill,que considerava controversas e perigosamente anti-russas. Oito anosdepois,avisãodemundodeEisenhowersetornaraexatamenteoposta:eleconsideravaaspropostasdeChurchill controversaseperigosamentepró-russas.

AmaiorpartedosbiógrafosdeEisenhowersustentaqueem1945elese opôs a Churchill devido a razões militares (inclusive o episódioextraordinário quando, no inal de março de 1945, Eisenhower seincumbiu de desconsiderar Churchill e escreveu uma carta pessoal aStálin,garantindo-lhequeosexércitosaliados,que investiampelo interiorda Alemanha, não avançariam em direção a Berlim ou Praga). Havia,porém,muitomais do que prudênciamilitar nos cálculos de Eisenhower.Em1945eleestavaemplenaconformidadecomoqueconsideravaoclimade opinião predominante em Washington — como estaria, em 1952 edepois, em plena conformidade com um diferente clima de opinião emWashington.Essa,a irmo,foiarazãodasuaoposiçãoaChurchillemambasasocasiões.

Em1945nemChurchill nemEisenhowerpoderiam saber que,menosdeoitoanosdepois,aProvidêncialhespermitirianovamenteseveremnoscentrosdopoder,emLondreseemWashington,equeestacircunstância,à primeira vista, favorável revelaria um novo tipo de diferença profundanas suas visões de mundo. As comprovações dessas divergências sãosurpreendentes. Elas incluem a correspondência publicada de ambos em

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1953-55.1 Elas revelam a existência de uma oportunidade históricaperdida,pelomenospotencialmente:atentativadeChurchilldereduzirastensões da guerra fria, mediante o estabelecimento de algum tipo decontatocomaentãonovaeinseguraliderançarussa,a imdeabrandaroureti icar a divisão da Europa. Elas revelam também graves falhas nodiscernimento e no caráter de Eisenhower. Em nenhuma das suasnumerosas biogra ias há uma descrição sólida de como e por que essemilitar aparentemente simples (embora, na realidade, complexo ecalculista), de reputação serena e liberal, abandonou as opiniões pró-russas e, às vezes, pró-democráticas para se tornar um anticomunistain lexível,umrepublicanoe,por im,atéumpretenso “conservador”.Masa inal a conversão de Eisenhower apenas correspondeu à conversão degrandepartedaopiniãopúblicaamericanaeaumarevoluçãonasatitudespolíticas americanas, que começou em 1947 e, daí em diante, sedesenvolveu depressa. Em 1948, Eisenhower ainda foi aventado para aindicação presidencial democrata; quatro anos depois, ele se declarourepublicano e anticomunista (e, durante a campanha, um religiosopraticante—pelaprimeiraveznasuavidaadulta).

Em 1951 Churchill voltou a ser primeiro-ministro. As lembranças,assimcomoacon iança,norelacionamentoespecialenaaliançadeguerrabritânico-americana erammuitomais fortes do que qualquer sentimentode rancorqueelehouvessealimentadodevidoàsdissensõesde1944-45comEisenhower.EleasatribuíaàinexperiênciapolíticadeEisenhowernaépoca. Churchill preferira o Partido Democrático ao Republicano.Descon iava dos muitos isolacio-nistas, com freqüência antibritânicos,dentre os republicanos, mas se consolou ao ver seu companheiro doperíodo de guerra, um internacionalista republicano, eleito para apresidência.Breveviriaadecepcionar-se.

Por coincidência, o último volume deSegunda Guerra Mundial, deChurchill,abordandoosanos1944-45,estavaparaserpublicadoem1953.Nesse sexto volume,Triunfo e tragédia, Churchill se empenhou paraminimizar as suas consideráveis divergências com Eisenhower em 1945.Ele escreveu a Eisenhower em 9 de abril de 1953: “Mas, agora que osenhor assumiu o cargo político supremo no seu país, estou muitopreocupado emquenão seja publicadonadaque a outrospossaparecerameaçadorparaasnossasrelaçõesatuaisemnossasfunçõespúblicasnemprejudicial à a inidade e ao entendimento que existem entre os nossospaíses.Poressemotivo,reexamineiolivronosúltimosmeseseesmerei-meem assegurar que não contenha nada que pudesse dar a entender que,

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naquela época, houvesse alguma controvérsia ou falta de con iança entrenós.”

Churchilldesejavarestabelecerumarelaçãodetrabalhofavorávelcomo antigo parceiro do período de guerra. Ele estava apreensivo com aescolhaporEisenhowerde JohnFosterDullescomosecretáriodeEstado.(EsteeraoJohnFosterDullesqueemjunhode1940,quandoParishaviacaído e a Grã-Bretanha icara sozinha, opôs-se a qualquer compromissoamericanocomaGrã-BretanhacontraaAlemanhadeHitler.)

Emjaneirode1953,antesdapossedeEisenhower,ChurchillfoiaNovaYork. Ele disse a Eisenhower que estava considerando a possibilidadedeumencontrocomStálin.Eleestavaapardedete-minadossinaisnoLeste.No dia de ano novo em 1953 seu secretário, John Colville, anotou doiscomentários singulares de Churchill, um dos quais eu já citei: “Churchilldisseque,seaminhavidativesseaduraçãonormal,euseguramenteveriaaEuropaorientallivredocomunismo....Por im,lamentouque,emvirtudede Eisenhower haver chegado à presidência, precisasse suprimir grandepartedovolumeVIdesuaHistóriadaGuerraenãopudessecontarcomoos Estados Unidos, para agradar a Rússia, cederam vastas extensões daEuropaquehaviamocupadoe como [osamericanos] entãodescon iavamdeseusapelosparateremcautela.”2

OqueChurchillnãosabiaeraatéquepontooseuantigocompanheiroestava de novo propenso a descon ianças — em parte devido a suaideologiarecém-adquiridaepessoalmentesatisfatória,emparteporcausadasuarelutânciaemdesagradarosentimentopopularamericano,queporvoltadessaépocaestavaatingindocul-minânciasdehisteriaanticomunista.Estadista que era, Churchill provavelmente não compreendia o quantoEisenhower era político, característica que alguns dos biógrafos recentesde Eisenhower têm exaltado como se fosse idêntica à habilidade doestadista.

Em5demarçode1953,seissemanasdepoisdapossedeEisenhower,Stálin morreu. Multiplicaram-se informações sobre a insegurança dosnovos líderes russos e a tendência a reconsiderarem algumas das suasrelaçõescomoOcidente.Seisdiasdepois,ChurchillescreveuaEisenhower.Lembrou-lheque“eu tinhaplena liberdadede iraoencontrodeStálinsejulgasse conveniente e que o senhor interpretou isso como signi icandoqueo senhornãoqueria que fôssemos juntos,mas agora quandonãohámais Stálin ... eu tenho a impressão de que nós dois, reunidos ouseparadamente, poderíamos ser chamados a prestar contas se não seizesse nenhuma tentativa de virar uma folha, para que se iniciasse uma

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nova página que contivesse algo mais coerente do que uma série deincidentestriviaisouperigososnosmuitospontosdecontatoentreasduasdivisões do mundo. Não tenho dúvidas de que está pensandoprofundamentesobreesseassunto,queocupaoprimeiro lugarnosmeuspensamentos.”

Eisenhowernãopareciapensarmuitosobreisso.Elenãoviadiferençaalguma sem Stálin. “Tendo a duvidar da sensatez” de tal encontro,respondeu ele, “já que daria ao nosso adversário o mesmo tipo deoportunidade que ele muitas vezes teve ... para fazer do mesmoacontecimento... outra fábrica de propaganda para o Sovie-te.” Em 5 deabril, Churchill concordou que “temos de permanecer vigilantementealertas” e continuar os rearmamentos defensivos, mas acrescentou que“nósachamos,comotenhocertezadequeosenhortambémacha,quenãodevemos perder nenhuma oportunidade de descobrir até que ponto oregime Malenkov está disposto a chegar para abrandar a situação emtodas as partes.” Ele reforçou isso comduasmensagens. Em11 de abril:“Creio que nestemomento o tempo está do nosso lado.” Em 12 de abril:“Seria pena se uma geada imprevista crestasse a primavera em botão....Não seria conveniente combinar as rea irmações das suas e nossasresoluções in lexíveis comuma equilibradora expressão de esperança dequetenhamosprincipiadoumanovaera?”

A réplica de Eisenhower foi uma breve rejeição. Churchill icou umtanto impaciente. Em 21 de abril, ele escreveu: “Se nada pode seracordado,tereideconsiderarasérioumcontatopessoal.EmNovaYorkosenhormedissequenãoterianenhumaobjeçãoaisso.Eu icariagratoseme informasse como essas coisas se estão con igurando a seu ver.”Eisenhowerrespondeuem25deabril:“Pensoquenãodevemosprecipitardemaisascoisas....Umaaçãoprematuranossanessesentidopoderiateroefeito de proporcionar aos soviéticos uma saída fácil da posição em quepensoqueestãoagoracolocados.”Aessaaltura,eraóbvioqueEisenhowerera não só in luenciado mas guiado por John Foster Dulles (cuja“carantonha” Churchill execrava em particular). No entanto, desejandodemonstrar lealdadeaEisenhower,Churchill lhe enviou seu rascunhodeuma carta a Molotov, ainda o ministro russo das Relações Exteriores.Eisenhower rejeitou-a. “Foster e eu a examinamos a fundo. ... Nós adesaconselharíamos.Hádemeperdoar,eusei,semanifestoumpoucodeespanto por o senhor julgar apropriado recomendar Moscou a Molotovcomo um local de encontro adequado. ... Decerto nada do que o governosoviéticofeznessemeiotempotenderiaapersuadir-medeoutromodo.”

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Churchill respondeu dois dias depois. “Não temo a 'peregrinaçãosolitária' se tiver íntima certeza de que ela possa ajudar a promover acausadapaze,mesmonapiordashipóteses,podenomáximoprejudicaraminhareputação. ...Tenhoumaforteconvicçãodequeointeressepróprioseráoguiadossoviéticos.”EmvistadaoposiçãodeEisenhower,Churchillnão persistiu em buscar por ora um encontro com os russos. Mas nodiscurso de 11 demaio na Câmara dos Comuns— iria ser o último dosseus grandes discursos históricos — falou sobre sua esperança dealcançar alguma espécie de conciliação com os novos líderes da Rússia.Eisenhower e Dulles não lhe deram atenção. Em particular, Eisenhowercontinuavaareferir-seaChurchillcomo“senil”.

Churchill contava encontrar-se com Eisenhower nas Bermudas. Areunião teve de ser adiada porque, em 23 de junho, Churchill teve umpequeno derrame. Mas a sua atenção aos incidentes americanospermaneceuaguçada.Eleestavaapardaondacrescentedomacart-hismo.E mlo de julho o senador Alexander Wiley, presidente republicano daComissão do Senado sobre Relações Exteriores, disse que poderia haverumamudançarussadepolítica,mas“issosedevesomenteaomedodentreos trêmulos remanescentes de bandidos e delinqüentes que se encolhemno Kremlin”. Churchill desaprovava essas avaliações. “Não tenho maisintençãodoquetive...em1945deserenganadopelosrussos.”

A conferência de Bermudas foi então marcada para o inal denovembro. Sua data exata dependia de “Foster”. Eisenhower enviou umamensagemem10deoutubro:“Fosterviajouno imdesemanamas,assimque se izer contato com ele, o senhor receberá mais notícias nossas.”“Foster” então aparecia emquase todas asmensagens, longas ou breves,importantesouligeiras,que“Ike”ou“IkeE.”enviavaa“Winston”.Em7denovembro: “Foster só voltará a Washington na tarde de domingo, 8 denovembro, o mais cedo.” Churchill teria de esperar. “Isso me dará aoportunidade de trocar idéias com Foster.” No dia seguinte, Eisenhoweren imconcordoucomumadataparaasBermudas“porque issopermitiráque Foster vá comigo”. Churchill icou aliviado quando uma data foimarcada.“Aindaassim”,escreveuele, “euestou,comodissedaúltimavezno Parlamento, esperando que possamos construir pontes, e nãobarreiras.”NasBermudas,Dullesprevaleceu.Nãohaveriaumencontrodealto nível com os russos, apenas um encontro deministros das RelaçõesExterioressobreostemasdaAlemanhaeÁustria.

No início de 1954, Churchill reconhecia que os seus esforços paraconvencer Eisenhower eram praticamente inúteis. A linguagem de

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Eisenhower na mensagem de 9 de fevereiro de 1954 a Churchill erareveladora.Proclamando“ofestimdepropagandaqueoinimigodesfrutaànossa custa”, Eisenhowermencionou a necessidade de “repelir a ameaçarussa epermitir que a civilização, tal comoa conhecemos, continue a suamarcha.... A menos que [nós] sejamos bem-sucedidos ..., não haveráhistória alguma, tal como a conhecemos. Haverá somente uma versãoinventada,forjadapelosconquistadorescomunistasdomundo.”Essaeraalinguagem e a visão de mundo dos macarthistas da época (e dos“conservadores”americanosedos“neoconservadores”desdeentão).

No inaldejunhode1954Churchill,com79anos,foiaWashington.Eleparecia cansado.Avisita coincidiu comoaugeda crisedasaudiênciasdoexército e deMcCarthy. A princípio Eisenhower concordou a contragostocom a proposta de Churchill para uma reunião de cúpula, mas depoismudoudeidéia.EntãoChurchilljuntouforças.NaviagemdevoltaabordodoQueenMary, redigiueenviouumamensagemaMolotov,propondoumencontro, com ou sem o presidente americano. Molotov respondeuimediataeafirmativamente.ChurchillenviouascartasaEisenhower.

“O senhor não perdeu tempo”, reagiu um Eisenhower claramenteirritado. “Quando partiu daqui, eu pensei, de forma obviamente errônea,que estivesse indeciso sobre esse assunto. ... Evidentemente, terei demepronunciar quando o seu plano for publicamente anunciado. Espero quepossaparticipar-medeantemão....Provavelmentedireialgonosentidodeque, enquanto o senhor esteve aqui, foi discutida a possibilidade de umEncontro dos Três Grandes; que eu não consegui ver como isso poderiaconcorrerparauma inalidadeútilnestemomento;queeudisseque,seosenhor se encarregasse dessamissão, seu plano seria acompanhado dasnossas esperanças para o melhor, mas não implicaria nossaresponsabilidade.”Eleprosseguiucomumtomqueera,pelomenosemumsentido, acusatório: “O fato de a sua mensagem a Moscou haver sidoenviada tão prontamente após a sua partida daqui é capaz de dar umaimpressão mais forte do que as suas palavras acauteladoras de que, decerto modo, o seu plano foi acertado no nosso encontro. ... Quanto aoconteúdo damensagemdeMolotov relatada no seu cabograma, só possoobservar que deve ser quase exatamente o que o senhor teria esperadonascircunstâncias.”

Churchill respondeu de pronto. “Deixei claro para Molotov que osenhor não estava de forma alguma comprometido. ... Muito tempo já foiperdido desde omeu telegramapara o senhor, de 4 demaio de 1953. ...Nunca me desviei, nos quatorze meses que se passaram, da minha

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convicção de que a situação do mundo não seria piorada e talvez fossemelhorada pelo contato direto com a Rússia que sucedeu a era Stálin. ...Achei que a resposta de Molotov foi mais cordial e receptiva do que euhavia esperado, ao que era, a inal, apenas uma indagação pessoal ereservada. ... Fiquei impressionado pelo fato de eles não sugerirem umencontroemMoscou,masrespeitaremomeudesejodedeixaradataeolocal inteiramente por marcar.” (Mais adiante nessa carta, Churchillescreveu:“MinhaesperançaéqueumcrescentedistanciamentodaRússiadas ambições chinesas possa ser uma possibilidade e algo que nãodevemos desprezar”) Eisenhower não cedeu. Achava que não estavaenganado “na minha conclusão de que os homens no Kremlin nãomerecem con iança”. Churchill escreveu-lhe imediatamente: “Aceito totalresponsabilidade, pois não posso acreditar que os meus parentesamericanos serão unânimes em acreditar que sou antiamericano ou pró-comunista.”Em12dejulho,Eisenhowervoltouà“suatencionadaviagem”.Escreveu que os americanos julgariam a tentativa de Churchill de seencontrar com os russos, “como Hoover supostamente disse sobre oproibicionismo,'umanobreexperiência'”.Hánessaexpressãoumtoquedeimpertinência.EEisenhowerfoiadiante.Elepassouaexaminarosmotivosde Churchill. Em 22 de julho, escreveu: “Estou convicto de que o senhordeveterumdesejomuitoprofundoecompreensíveldefazeralgoespecialecomplementar,noseuperíodorestantedeserviçoativo....Tenhocertezadequealgumacogitaçãodasuamenteconscienteouinconscientedeveserresponsável pelo seu desejo de se encontrar com Malenkov.” (Isso foidirigido ao Churchill que, poucos meses antes, a irmara estar disposto aconversar com os russos mesmo sob o risco de “prejudicar a minhareputação”.) Em seguida, o psicanalista Eisenhower reverteu ao ideólogoEisenhower, declarando “minha absoluta falta de con iança naidedignidade e integridade dos homens no Kremlin”. Sem se apressar,Churchillrespondeuem8deagosto:“Nãoestouprocurandoumaformadefazer uma saída teatral nem de encontrar uma cortina adequada”,escreveu ele. “Estou convencido, porém, de que o método atual deestabelecer as relações entre os dois lados domundo, por intermédio dein indáveis discussões entre Ministérios de Relações Exteriores, nãoproduziránenhumresultadodecisivo. ...MesmoopoderdaGrã-Bretanhasendo tão menor do que o dos Estados Unidos, eu sinto, não obstante avelhice, uma responsabilidade e determinação para usar qualquerin luência que eu ainda possa ter para buscar, senão uma solução, aomenosumalívio.Mesmoquenãoseobtenhanadasólidooudecisivo,nãoé

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precisocausarnenhummal.”Mas então o ritmo dos contatos diminuiu; e Churchill estava se

preparandoparaaaposentadoria.Em7dedezembro,eleescreveu:“Aindatenho esperança de que possamos chegar a uma reunião de alto escalãocom o novo regime na Rússia e que tanto o senhor quanto eu possamosestarpresentes.”Eisenhowerreplicou:“Nãocreioqueumareuniãodealtoescalãosejaalgoqueeupossaanotarnaminhaagendaparaqualquerdataprevisível.”Porfim,talencontro—aprimeirareuniãodecúpuladaguerrafria — ocorreria em Genebra, em junho de 1955. Foi uma reuniãoinconcludenteeinútil.

AsexpectativasdeChurchillacercadeumencontrocomosrussosem1953e1954podemounãotersidoexageradas.Maselenãoseequivocoumuitasvezesacercadosrussos.Em1944e1945esteveàfrentedemuitosamericanos, inclusive Eisenhower, na estimativa dos perigos do avançorussoparaaEuropa.De1952a1955,eleesteveàfrentedeEisenhower,edetodosospartidáriosdaguerrafria,naestimativadainevitabilidadedosrecuosrussos.3De fato,em1955algunsdesses recuoshaviamcomeçado.Os russos retiraram-se da Áustria, em troca de uma remoçãocorrespondentedetropasocidentaisedeumtratadoo icialquegarantisseaneutralidadeaustríaca;elesabandonaramasbasesnavaisnaFinlândia;KruchevestavaprestesafazerumavisitaarrependidaaTito,oinimigodeStálin, na Iugoslávia. Bem antes disso, Churchill se convencera de que oencanto da ideologia comunista se debilitara e que o inchado impériosoviéticonaEuropaorientalnãoduraria.

A correspondência de 1953-55 entre Churchill e Eisenhower fornecefartas indicações para a necessidade de se rever a recente moda deaprovaçãoacadêmicadahabilidadedeestadistadeEisenhower.Umafrasenaúltima cartadeEisenhower aChurchill, em1955,deveriabastarparademonstrar isso: “O ímpeto comunista sobre o mundo desde a SegundaGuerra Mundial tem sido muito mais rápido e muito mais implacável doqueo ímpetodosditadoresnadécadade1930.”Eleescreveu issoem29demarçode1955,quando jáhaviamsidoanunciadasasretiradasrussasdaÁustria e da Finlândia; quando os russos reconheceramo governodaAlemanhaocidentalsemexigirqueaspotênciasocidentaisreconhecessemogovernodaAlemanhaoriental;quando jáhaviamosprimeirossinaisdeuma grave cisão entre a Rússia e a China; quase dois anos depois daprimeira revolta popular em Berlim oriental e um ano antes de assublevaçõesnaPolôniaenaHungria justi icaremaconvicçãodeChurchillsobrea“indigestibilidade”dosdomíniosrussosnaEuropaoriental.

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Na sua introdução à correspondência entre Churchill e Eisenhower,Boyle, professor de história americana na Universidade de Nottingham,enfatizaotomcordialdamaioriadessascartas.Noentanto,aleituradelasnão justi icaasuaconclusãodeque“muitasdas longascartasaChurchillfornecemdadosconcludentespararepudiaraopiniãodequeEisenhowereraumpresidentefracoedesinformado,quedelegavaresponsabilidadeapessoascomoJohnFosterDulles.”Elasnãofornecemtaisdados.Osdadosconcludentesdascartassãosobreumhomemobstinadamentepresunçosocom a sua recém-adquirida visão ideológica do mundo eextraordinariamente dependente do conselho e da in luência, comfreqüênciaequivocadoseàsvezesatésinistros,deJohnFosterDulles.

Dispomos de algumas frases dispersas que mostram o desdém deChurchill por Dulles. Expressivas são as registradas por lorde Moran, omédicoparticulardeChurchill,nanoitede7dedezembrode1953,depoisdemaisumareuniãocomEisenhower,nasBermudas:

— Parece que tudo é deixado para Dulles. Dá a impressão de que opresidentenãopassadeumbonecodeventríloquo.

Poralgumtempoelenãodissemaisnada.Depoisfalou:—Essesujeitopregacomoumministrometodistaeoseumalditotema

ésempreomesmo.QuesomenteomalpoderesultardeumencontrocomMalenkov.

Fez-seumalongapausa.— Dulles é um tremendo empecilho. (Sua voz elevou-se.) Dez anos

atráseupoderiaterlidadocomele.Mesmocomoascoisasestão,eunãofuiderrotadoporessecanalha.Fuihumilhadopelomeuprópriodeclínio.Ah,não,Charles,você fez tudooquepodiaser feitoparaascoisas iremmaisdevagar.

Quandomevirei,eleestavachorando.4Umaextrematristezaexaladessaspalavras.Nelasassentaaatitudedo

autoconhecimentodeumvelho.Churchillestavaextenuadoedeprimido.Aesserespeito,seurecentebiógrafoRoyJenkinsestáenganado,aoescreverque Churchill “parecia curiosamente imperturbado pela demonstração[por parte de Eisenhower e de Dulles] de insensibilidade que raiava arudeza”.“Imperturbado”elenãoestava.Masjánãopodiain luenciaressesamericanoseessenãofoioprimeirocasoassim.

Devemos,porém,concluiranarrativadaÚltimaTentativadeChurchill.Seu desejo — e discernimento — de buscar algum tipo de acomodaçãocom a Rússia vinha de muito tempo. Ao contrário dos americanos e demuitos outros nomundo ocidental, ele compreendia que os russos eram

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tanto fracos como fortes. Sua tendência a apaziguá-los existiumesmonosúltimosanosdavidadeStálin.Jáemfevereirode1950,ChurchillfalouemEdimburgo, sugerindo a conveniência de uma negociação na “reunião decúpula” (foi essaa suaexpressão), “umesforço supremopara transporoabismoentreosdoismundos,demodoquecadaumpossaviverasuavida... sem os ódios da guerra fria”. Em dezembro de 1950 ele escreveu aEisenhower (que ainda não era candidato à presidência): “Oapaziguamentoapartirdafraquezaedomedoé ... fatal.Oapaziguamentoapartirda força émagnânimo ... e talvez sejaomeiomais seguropara apaz.” Negociação a partir da força, da óbvia força do sistema de aliançaamericano, é o que ele desejava alcançar, sem dúvida após a morte deStálin em março de 1953. Com Eisenhower e Dulles, ele não conseguiunada. Eram os dois irmãos Dulles— o secretário de Estado e seu irmãoAllen,diretordaCIA—quedeterminavamorumodagigantescanavedoEstadoamericano,enquantoEisenhowerocupavao lugardocomandante.Eisenhowercontinuavaarepetir:osrussosnuncamudam.(NasBermudas,eledisse:“ARússiaéumaputa.”)

Devemos considerar, entretanto, que o projeto de Churchill de umanovaaproximaçãocomaRússiahaviasidorejeitadojáemjaneirode1953pelo presidente Truman e seu secretário de Estado Dean Acheson, emWashington. Além disso, as tentativas de Churchill de entrar em contatocomMoscou, em1953 e 1954, foram tambémenergicamente combatidaspor integrantesdo seuGabinete, inclusiveEdene Salisbury, sem falarnochancelerAdenauer,daAlemanhaocidental,quenãoviunessastentativasmuitomais do que o desejo de um velho de encerrar a carreira comumtriunfo — histórico, ainda mais do que diplomático —, uma perigosa eobstinada tentativa, impelida pela vaidade. Esse elemento, ou fator,provavelmenteexistia.Masnãoerasomente isso.Comoconhecimentodealgumascoisasdequehojedispomos(inclusivealgunsdadosderelatosedocumentosrussos),podemosafirmarcomsegurançaqueaperspicáciadeChurchill, impelida ou não pela vaidade de um velho, não estavainteiramenteequivocada.

Churchilleraumestadista,nãoumideólogo.Porestranhoquepareça,eraEisenhoweroideólogodosdois—omesmoEisenhower,eurepito,queconsiderava Churchill excessivamente perigoso porque anti-russo em1944-45, então considerando-o e tratando-o como perigosamente senil eexcessivamente pró-russo em 1953-55. Considere-se, entretanto, que umideólogo não é necessariamente um fanático. O que ele faz é ajustar amaioria das suas idéias às circunstâncias, sem reconhecer o oportunismo

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latenteemtaisajustesideológicos.Ooportunismodeumgrandeestadista,poroutro lado,assentasobreosseusprincípios.Oque JohnMorleycertavez escreveu sobre Edmund Burke pode ser aplicado a Churchill: “Elemudou de tribuna, mas nunca mudou de posição.” Ou o que o idosoMetternichescreveu certavez:queuma idéia é comoumcanhão ixoemuma fortaleza, pronto a atirar e atingir o erro em uma direção retilínea;masumprincípioécomoumcanhãomontadosobreumabase ixaporémgiratória, capaz de atirar no erro em todas as direções possíveis. O queimportava para Eisenhower eram idéias do momento. O que importavaparaChurchilleramdeterminadosprincípios.Avisãodomundo,edeseushabitantes, adotada por Eisenhower era política. A de Churchill erahistórica.Elespodemtervistoosseusadversáriosdeformadiferentemas,sobtudoisso,achava-seadiferençanocaráterdeambos.

1 Os excertos citados das cartas de ambos são de Peter G. Boyle (org.),The Churchill-EisenhowerCorrespondence,1953-1955.ChapeiHill,N.C.,1990.2JohnColville.TheFringesofPower:10DowningStreetDiaries,1939-1955.NovaYork,1985.p.658.3HenryLuce,proprietárioediretordeTime-Life-Fortune,cooperouparaacandidaturaeeleiçãodeEisenhower como presidente. Em 1944-45,Time eLife izeram críticas severas à intervençãoanticomunista de Churchill na Grécia. Oito anos depois, emTriunfo e tragédia, Churchill escreveumodestamente:“Seosdiretoresdessesbem-intencionadosperiódicosreviremoqueescreveramnaépocaecompararem-nocomoquepensamatualmente, tenhocertezadeque icarãoadmirados.”NapublicaçãoseriadadeTriunfoetragédiapelaLife,em1953,essafrasefoiomitida.Em1946,Lifeescreveu cautelosamente sobre as advertências de Churchill em relação à Cortina de Ferro, emFulton;Time apresentou Churchill como se estivesse um tanto ébrio: “Engoliu cinco uísques comsoda...remexiaodiscurso....Ocriadopassou-lhefurtivamenteumgoledeconhaqueparafortalecê-lo”{Time,18.03.1946).Oitoanosdepois,Timeapresentou-ocomoseestivessecaduco:“Agitandoosbraçosgrossosparadarênfase...ElenãoassimilaraaliçãodeBerlim...Suaexplosãodenostalgia....”Em uma coluna de menos de quinhentas palavras, os adjetivos “velho”, “mais velho”, “senil”,“senescente”e“nostálgico”ocorreramnovevezes{Time,08.03.1954).4citadoinMartinGilbert,WinstonS.Churchill.Boston,1988,8:936.

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ChurchillaEuropaeoapaziguamento

JáseescreveumuitosobreChurchille“apaziguamento”;nãomuito(excetoindiretamente) sobre Churchill e “Europa”. Minha tese é que esses doistemas—duaspreocupaçõesno seupensamentoemperíodos cruciais—eramnãosóligadoscomoinseparáveis.ElenãoaceitariaumaaquiescênciabritânicaaodomíniodaAlemanhasobreaEuropa.Churchillenxergouessaperspectiva antes dos outros, daí sua luta veemente contra oapaziguamentodoTerceiroReichdeHitler,duranteadécadade1930.Issonãoédiscutível.OqueédiscutíveléasuaatitudeemrelaçãoàEuropaaolongodavida.A inal,aaliançadaGrã-BretanhacomosEstadosUnidosfoicom freqüência sua prioridade. A inal, ele — como a maioria dos seuscompatriotas — achava, pelo menos freqüentemente, que o canal daMancha era mais largo que o Atlântico. A inal, ele desejara e procurarapromoveralgumaespéciedeunidadeentreospovosan-glófonos,masnãoumaassociaçãobritânica,quantomaisumaconfederação, comumauniãoeuropéia.

Mas isso não era tudo. Ele certamente não era um isolacionistabritânico.Em1889 lordeSalisburydisse: “Existeummundodediferençaentre o esforço afável e bem-disposto para estar bem com os vizinhos eesseespíritodearroganteetaciturnoisolamentoquetemsidodigni icadocomonomedenão-intervenção.FazemospartedacomunidadedaEuropae devemos cumprir o nosso dever como tal.” Churchill teria concordadocom isso.Tal foi a sua convicçãoao longodavida.Ele iniciaraa trajetóriapública e parlamentar quando aentente cordiale com a França estavaconcluída,em1904.Aesserespeito,AndrewRoberts,oexcelentebiógrafodeSalisbury,escreveuque“poucoapósumanodamortedeSalisbury, [aentente cordiale] ligou a sorte britânica à de um país que veio a entrar,durante a primeira metade do século XX, em um declínio relativo mais

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rápidodoquemesmoaprópriaGrã-Bretanha”.1MasquealternativaaGrã-Bretanhatinha?Recentemente,pertodofimdoséculoXX,algumaspessoasaventaram e o historiador britânicoNiall Fergusson escreveu que a Grã-BretanhateriafeitomelhornegócioaceitandoumaEuropadominadapelosalemães,etalvezassimunida,enãoentrandonaguerraem1914,aoladoda Bélgica e da França. Essa é uma discussão que, a meu ver, Churchillteria descartado (e, se estivesse vivo, aindadescartaria) comumbreve eirritadomovimentodocharuto.

Desde o início ele foi favorável ao entendimento com a França. (Seriainteressante saber quais foram as origens da sua franco ilia cultural;quando e onde principiaram—mais um tema para novas pesquisas.) Oseu pró-americanismo não estava em con lito com isso. Pois, no segundoplanodadecisãobritânicadedar inícioaumacordocomaFrança,haviaum elemento americano: a decisão britânica, em e após 1898, quaseunânime entre a população, de não arriscar nenhum confronto com osEstadosUnidos,demanterepreservarasmelhoresrelaçõespossíveiscomo emergente gigante transatlântico, ainda um distante parenteconsangüíneo. Somente com esse tipo de segurança ao fundo a Grã-Bretanhapodiaenvolver-senoesforçoparaorganizaroapoioeuropeuemtornodepotencialconfrontocomaAlemanha.

É claro que Churchill icou também impressionado com a relação deexércitos britânicos em guerras importantes travadas no continenteeuropeu,inclusiveaquelassustentadasporseuantepassadoMarlborough:uma série de nomes de batalhas, de Blenheim, Ramillies, Malplaquet atéCorunna, Badajoz, Salamanca,Waterloo (e talvezmesmo Sebastopol). Eleinstruíra-sebem;sejacomofor,oseuconhecimentodahistóriaegeogra iaeuropéias era respeitável. Sabemos que admirava os dois maioresadversários franceses da Inglaterra, Joana d'Arc e Napoleão. Mas issoequivalia a mais do que uma franco ilia sentimental ou romântica. Em1914,foimaisdoqueumtemperamentodesoldadooqueoconvenceudeque a Grã-Bretanha não podia deixar de se envolver na iminente guerraeuropéia.Suadescriçãodoqueaconteceuno inaldatardede24dejulho,quase ao término da Conferência do Palácio de Buckingham sobre oproblemadaIrlanda,re leteessarealidade, impressionistae líricacomoéessa descrição. A reunião não chegara a nenhuma conclusão, osparticipantes estavam cansados, quando levaram um documento a sirEdwardGrey,comostermosdoultimatoaustríacoàSérvia.“AsparóquiasdeFermanagh eTyronedesvaneceram-sedenovonasbrumas e rajadasdeventoda Irlanda,euma luzestranhacomeçou imediatamente,masem

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gradações perceptíveis, a incidir e se intensi icar sobre o mapa daEuropa.”2 O mapa da Europa: isso fez os olhos de Churchill brilharemimediatamente.

Teria ele se dado conta, logo após a guerra, do que o mosaicoensangüentadoefragmentadodanovaEuropa,devidoemgrandeparteàvitóriadosextenuadose freqüentemente temeráriosaliados, signi icavaesigni icaria?Simenão—oumelhor:simmaisdoquenão.Imediatamenteapósaguerra,assuasprincipaispreocupaçõeseaçõesdiziamrespeitoaobolchevismo na Rússia e na Irlanda e ao Oriente Médio. O desejo depromover um relacionamento britânico cada vez mais estreito com osEstados Unidos raras vezes se manifestou durante a década de 1920.Nenhum dos seus cargos o iciais ou mesmo participações parlamentarestinhamuitoavercomaEuropanaépoca.Noentanto,eleestavapensando—e escrevendo—muito sobre aEuropa, sobre as suas condições entãovigentes e mutáveis, bem como sobre o seu futuro. Já em novembro de1918eledissenoGabinete:“PoderíamostalvezabandonaraEuropa,masa Europa não nos abandonará.” Imediatamente após a guerra, elepronunciou-se contra maus-tratos ao povo alemão (como também fariaapósaSegundaGuerraMundial).ElecomemorouoTratadodeLocarnoem1925. Nessamesma época, estava escrevendo o segundo volume da suahistóriadaPrimeiraGuerraMundial.Emalgummomentode1926 (Acrisemundial,1916-1918 foipublicadaem janeirode1927), eleo concluiu comessas expressivas palavras: “Isto é o im? Deve ser tão-somente umcapítuloemumanarrativacruele insensata?Umanovageraçãoserá,porsua vez, imolada para ajustar as contas sinistras do teuto e do gaulês?Nossos ilhos derramarão seu sangue e arfarão de novo em terrasdevastadas?Oubrotarádasprópriaschamasdocon litoessareconciliaçãodos três grandes combatentes gigantescos, que lhes uniria o gênio egarantiria a cada um, em segurança e liberdade, uma participação nareconstruçãodaglóriadaEuropa?”

OqueseevidenciadessaspalavraséacertezadeChurchilldequeumamedonha luta futura entre a Alemanha e a França (“teuto e gaulês”)incluiria, natural e inevitavelmente, também a Grã-Bretanha — opiniãonem de longe partilhada pelos seus contemporâneos britânicos daquelaépoca. Signi icativo é o inal retórico, uma esperança de uma uniãopossível, “uma participação na reconstrução da glória da Europa”. Aperspectiva de uma Europa unida agradava a Churchill. Ele escreveu efalouaesserespeitomuitasvezesduranteadécadade1920.Em1923,ocondeRichardCoudenhove-Kalergi,nobrecosmopolitanascidonaÁustria,

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lançou o movimento “Pan-Europa”, que teve considerável repercussão.Churchill apoiou-o, como tambémo izeram, cautelosamente,osprincipaisestadistas europeus da época, Briand e Stresemann. No plano deCoudenhove-Kalergi, nem a Grã-Bretanha nem a Rússia fariam parte deumauniãoeuropéia:Churchillconcordavacomisso.Aomesmotempo,elesaudouenfaticamenteoplanoafavordealgumaespéciedeuniãoeuropéia(mais uma vez, praticamente sozinho dentre os políticos britânicos). Emfevereiro de 1930 escreveu em um jornal americano: “Não vemos senãobemeesperançaemumacomunidadeeuropéiamaisrica,maislivre,maissatisfeita.Masnóstemosonossosonhoeanossatarefa.Nósestamoscoma Europa, mas não somos da Europa. Estamos ligados, mas nãocomprometidos. Estamos interessados e associados, mas nãoincorporados.”3Igualmentesigni icativossãoassuasdeclaraçõeseescritosocasionais sobre o que considerava os locais e problemasmais perigosossituados no novo mapa da Europa: ele mencionava Dantzig e aTransilvânia.

EosseusolhosestavamvoltadosparaaEuropamesmoantesdeHitlerse tornar o líder de uma nova Alemanha, no início da década de 1930,quando Churchill estava politicamente enredado—de forma profunda eeloqüente, com prejuízo considerável para a sua reputação — no quedeveria acontecer com a Índia e quando (como veremos no capítuloseguinte) tinha e expressava dúvidas sobre a própria viabilidade dademocracia parlamentar e do sufrágio universal. Vimos como, parasurpresadosan itriõesalemães,emumjantardiplomático,Churchillfalousobre sua preocupação comHitler em outubro de 1930, numa época emque nenhuma outra pessoa no mundo (com exceção, claro, do próprioHitler), inclusive na Alemanha, jamais imaginaria Hitler como um futurolíder da Alemanha. Mas, mesmo antes de Hitler chegar ao poder, haviaindícioscadavezmaioresdeumaAlemanhadando-searesdeimportância,apesardeseencontrarsobopiortipodedepressãoeconômica.Osindíciosacham-se nas conferências de desarmamento de 1931 e 1932, com oaumentoprogressivodasexigênciasalemãs.Churchillcompreendeuoqueisso signi icava. “A Alemanha está se armando!”, anunciou ele — talvezexageradamente. Repetidas vezes ele enfatizou a relevância do exércitofrancês—nãoporcausadasuafranco iliaouinclinaçõessentimentais:eleo via como o único contrapeso importante possível contra o poder e oarmamentocrescentesdaAlemanha.

As advertências e a luta de Churchill contra o apaziguamento daAlemanha têm, com freqüência, sidoanalisadasedescritas comosea sua

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principal preocupação fosse o despreparo militar da Grã-Bretanha.(Existem várias análises úteis que comparam as suas estimativas dasaeronavesbritânicas e alemãs, bemcomodas respectivas construçõesdeaeronaves, que agora parecem ter sido imprecisas, mas não totalmenteerradas.) Devemos considerar, porém, que a sua oposição aoapaziguamento, embora relacionada com o estado de iciente do preparomilitar britânico, estava pelo menos igualmente, senão mais, relacionadacom o estado do desenvolvimento da Europa. Essas duas questõesfundamentais eram naturalmente inseparáveis. Entretanto, se nãohouvesse indícios de um crescente predomínio alemão no centro daEuropa,oestadodosarmamentosbritânicosteriamenorimportância:teriasido secundário, se não completamente marginal. Inversamente: se orearmamento britânico houvesse alcançado um grau satisfatório, oumesmo impressionante, nadécadade1930, a importânciadessa situaçãoteria sido secundária em relação à importância de um Terceiro Reichalemão que estivesse dominando uma parte cada vez maior da Europa.Haviamuitos ingleses, inclusive alguns dos amigos de Churchill, que nãoviam as coisas desse modo. Alguns deles até julgavam que a própriapresença de uma nova Alemanha era um fator oportuno contra ocomunismo.Dentreelesestava lordeRothermere,queseencontraracomHitler e depois recebera uma impressionante carta sua em 1935, a qualmostrouaChurchill.ArespostadeChurchillfoi:“Seaproposta[deHitler]signi icaquedevemoschegaraumacordocomaAlemanhaparadominaraEuropa,eupensoqueissoseriacontrárioatodaanossahistória.” Todaanossa história... Assim o tóri Churchill de mentalidade européia, emcontraste com os isolacionistas conservadores (e ainda de mentalidadeimperial)...

Apaziguamentoeapaziguadores.ReexaminandodoséculoXXI,podemosverqueosigni icadodessestermosmudouduasvezesduranteosúltimossessenta e cinco anos. Em 9 de março de 1936 (observe-se que issoocorreu apenas dois dias depois de Hitler, desprezando o Tratado deLocarno, haver marchado sobre a parte desmilitarizada da Renânia),Anthony Eden discursou na Câmara dos Comuns: “É o apaziguamento daEuropa como um todo que temos constantemente diante de nós.” Talvezessa tenha sido a primeira vez que a palavra “apaziguamento” apareceu,nessaocasiãoempregadacomumsentidopositivo.Doisanosdepois,Édense tornou um dos opositores ao apaziguamento. Emmenos de outro ano,“apaziguamento” adquiriu a conotação negativa que ainda conserva.Entretanto, os motivos dos apaziguadores da década de 1930 não eram

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irresponsáveisenãodevemserassimconsiderados.Haviatrêselementosprincipais nas suas inclinações, palavras, políticas e comportamentos. Umera o desejo de evitar a guerra, um desejo sincero reforçado pelaslembranças da carni icina de menos de vinte anos antes. Havia aí umcomponenteparticular:nãoveraGrã-Bretanhaenvolvidaemumaguerrapotencial, quantomais real, na Europa. O outro era produto da eqüidadebritânica: o lento movimento de a irmação, com o auge em meados dadécada de 1930, da idéia de que a Alemanha recebera um tratamentoinjustonoTratadodeVersalheseque,conseqüentementeounão,mereciaumcréditodecon iançaatéprovaemcontrário.Oterceiroelementoeraoanticomunismo,dequeHitlereraoprincipalporta-vozeexpositor.A inal,ocomunismoestavaentãoerradicadonaAlemanha,naçãoquesetornaraum baluarte contra a Rússia Soviética e o comunismo internacional.Quando Neville Chamberlain sucedeu a Stanley Baldwin como primeiro-ministro em 1937, havia um elemento a mais em suas inclinações: umafalta de con iança na França, juntamente com a disposição de oferecermais do que um módico crédito à nova Alemanha (inclinação que seuirmãoAustennão teriapartilhado,masquebempoderiaseramesmadeseu pai Joseph Chamberlain, que em 1899 havia proposto uma aliançaanglo-saxônica-teutônica para governar a maior parte do mundo). Noentendimento de Chamberlain e de muitos conservadores, essasinclinações contribuíampara uma tendência a encarar amaior parte dosrelatossobreascrueldadesecondiçõesdoregimedeHitlercomoexagerosepropaganda.

Essas inclinações, que se transformaram em atos, políticas e decisões,podemtersidoimprevidentes,masnãoeramirresponsáveisnemdeformaalgumadesonrosas.Atémarçode1939elasestavamemgrandeparteemconformidade com os sentimentos e opiniões de boa parcela, se não amaioria, do povo britânico. Já em 23 demarço de 1936 Harold Nicolsonescreveu em seu diário: “A atmosfera na Câmara é extremamentefavorável à Alemanha” — talvez um exagero, mas não muito. KennethRose, o biógrafo do rei Jorge V, resumiu bem as alegações contra oapaziguamento: “O quemancha amemória dos chamados apaziguadoresnãoéqueelesfossemdesviadosda irmezapelasrealidadesestratégicaseeconômicas de uma política de defesa; é o servilismo com quetestemunharamalentaescravizaçãodaEuropa.”4Europa...Em11dejunhode 1937 (um ano relativamente calmo), Churchill escreveu: “Como tudoisso aconteceu na Europa enquanto estivemos pensando nos nossosassuntos?Quantoamim,nuncaconseguiesqueceraEuropa.Elapairaem

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minhamente.”ComoescreveuRobertRhodes: “Suacampanhaeramenoscontra uma administração do que contra uma índole nacional.” 5 Issonaturalmente envolvia os barões da imprensa, inclusive Rothermere (umamigo)eBeaverbrook(quesóanosdepoissetornariaíntimodeChurchill).Em1935Churchillescreveu:“Haveriamuitooquedizerafavordapolítica[deBeaverbrook]deumisolacionismopací icosepudéssemospelomenosprovidenciar para que o Reino Unido fosse rebocado uns 3.000kmAtlântico adentro.” Evidentemente nem sempre Churchill considerava ocanaldaManchamaislargodoqueoAtlântico.NaspalavrasdeJames,ele“viaesentiaoquepoucosoutroscontemporâneosviamesentiam—queomundoestavaempresençadeumespantosofenômenopessoalenacionalpara o qual não houve paralelo desde Napoleão”— na verdade, pior doque Napoleão. Em um ensaio sob outros aspectos irrepreensível e deleiturainteressantesobre“Churchill,oestadista”,A.J.P.TaylorescrevequeChurchill“nãovisualizavaumanovaEuropa,menosaindaumnovomundo.Elequeriavoltaraovelhomundo.”6

Isso não é convincente. Em um livro excelente,Churchill e oapaziguamento, R.A.C. Parker demonstra que a política de Cham-berlainpara apaziguar Hitler não se devia simplesmente a uma decisão sagaz eprudente de ganhar tempo para o rearmamento. Isso é importante. Éverdade que, ao mesmo tempo em que se dedicava a procurar oapaziguamento, Chamberlain também se ocupava do rearmamentobritânico, sobretudo no ar. Mas permitam-me acrescentar: não existe omais leve indício, ou comprovação, de que, após haver atingido um grausatisfatório de rearmamento, Chamberlain e os apaziguadores teriamentãomudadoacondutaparauma irmeoposiçãoaHitler.Haviatambém,comojáfoimencionado,arusso-fobia,afrancofobiaeoanticomunismodeChamberlain.

Churchillerasemdúvidaanticomunista.MasemprimeirolugaremsuamenteestavaaperspectivadeumaEuropadominadapelaAlemanha.Emjaneiro de 1937 ele disse à Câmara de Comércio de Leeds (que haviaconvidadoRibbentrop, então o embaixador alemão na Grã-Bretanha, quenãopôdecomparecer, e tiveramdesearranjar comChurchill)queHitlerpensava(empartecomoumaimplicaçãodoacordonavalanglo-germânicode1935)queaGrã-BretanhadeviaentregarumaparcelaconsideráveldaEuropa,semdúvidaaEuropacentraleamaiorpartedaEuropaoriental,àAlemanha. Churchill compreendia Hitlermuito bem, o que veio a ser umtrunfoexcepcional. SeumChurchillnopodernadécadade1930poderiater impedido a expansão do Terceiro Reich é uma questão sem dúvida

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discutível — ao contrário do que ele escreveu emA tempestade emformação, o primeiro volume deA Segunda GuerraMundial. O que não édiscutível é que a diferença essencial entre ele e os apaziguadores(diferençaque,emmuitosaspectos,predominouaté julhode1940)eraasuaconvicçãodequeodestinodaGrã-BretanhanãoestavaenãopoderiaserseparadododestinodaEuropa.Osadversáriosconservadoressabiammenos sobre a Europa do que ele e suspeitavam dos vínculos ecompromissosinglesescomaEuropa.IssocontribuiuparaasuapercepçãoescassadosobjetivosedopoderdeHitler.Elesnãoentendiamque,sesepermitisse que a Alemanha dominasse toda a Europa central e a maiorparte da Europa oriental, a independência das democracias da Europaocidental, inclusive a França, estaria fatalmente comprometida efatalmente reprimida: que em jogo estava mais do que qualquer ajustetradicionaldeequilíbriodepotências.

Nesse ponto, chegamos a um assunto signi icativo que vem sendosuscitado recentemente por alguns dos críticos de Churchill, diretos ouindiretos. É a a irmação de Churchill, sob o sigilo do Gabinete de Guerra,em26demaiode1940,duranteoscincodiasemquetevedelutarcontraadefesadenegociaçõescautelosas, sustentadaporHalifax.O testemunhoprovém dessas atas e do diário de Chamberlain. “O P.-M. desaprovouqualquer movimento em relação a Musso.” (Halifax insistira em que seinvestigasse seMussolini poderia— eventualmente— ser intermediário,isto é, averiguar sob quais condições Hitler concordaria em suspender aguerra.) Chamberlain citou Churchill: “Era improvável que Hitlerconsentisse em quaisquer condições que nós pudéssemos aceitar —embora, sepudéssemos sairdessaenrascada cedendoMalta&Gi-braltar& algumas colônias africanas, ele aceitasse prontamente.” Isso tem sidomencionado amiúde pelos críticos de Churchill, com o propósito dedemonstrarque,a inal,adescriçãoconsagrada(edopróprioChurchill)dasua determinação intransigente e tenaz é, para dizer o mínimo, inexata.Mas a essência da questão não era ele visar a um objetivo de formainabalável; era o quanto ele compreendia Hitler: o entendimento, tantoracional quanto intuitivo, de que(a) qualquer indicação britânicamesmopara sondar negociações naquele momento extremo fatalmentefortaleceriaopoderdeHitler;(b)queascondiçõesdeHitlerequivaleriamà redução da Grã-Bretanha, na pior das hipóteses, a um satélite ou, namelhordashipóteses, aumsóciominoritárioeaquiescentedaAlemanha,incluindo um explícito compromisso britânico de concordar com umaAlemanha que dominasse a Europa, bem como de viver ao seu lado. Ele

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disseem27demaio,maisumavezsobosigilodoGabinete:“SeHerrHitlerestivesse disposto a irmar a paz nos termos da restituição das colôniasalemãs e da suserania da Europa central, isso era uma coisa. Mas eraabsolutamente improvável que ele izesse tal oferta.” Em maio de 1940,Hitlerdesejavaconquistarmaisdoqueisso:desejavaocontroledetodaaEuropa, quer a Grã-Bretanha concordasse, quer fosse obrigada aconcordar.

Assim Churchill escreveu a Roosevelt em 15 de junho de 1940,inclusive esta frase: “Se formos derrotados, o senhor poderá ter umEstados Unidos da Europa sob o comando nazista bem mais numeroso,bemmaisforte,bemmaisarmadodoqueoNovoMundo.”Foiporissoque,em14dejulho,eledeclarouqueaGrã-Bretanhaestavalutando “porsisó,masnãoparasisó”(etambémqueLondresentão“eraestasólidaCidadede Refúgio que cultua os títulos de propriedade do progresso humano etemprofundasigni icaçãoparaacivilizaçãocristã”).NemporummomentoeleacreditouqueaGrã-BretanhaeoImpériopudessemcontinuaraexistirdiantedeumaEuropatotalmentedominadapelaAlemanha.

Nãose temdedicadoatençãosu icienteàvisãoqueChurchill tinhadaEuropaduranteaguerra.Sim,eleentendiaque,separaaindependênciaea democracia britânicas sobreviverem era necessária a eventualtransferência de grande parte da responsabilidade imperial para osamericanos, que assim fosse; sim, a preservação e o desenvolvimento daaliançacomosEstadosUnidoseramsuaprioridade.Noentanto,foiemumdos programas de rádio para os Estados Unidos em 1941 que ele disse:“Nessas Ilhas Britânicas que parecem tão pequenas no mapa nósresistimos, os iéis guardiães das justas e ardentes esperanças de umadúziadeEstadosenaçõesagoraa ligidoseatormentadosporumatorpeecruel servidão.”NasúltimaspáginasdeCincodiasemLondres eu escrevi:“Suas frases a respeito de Londres haver se tornado a depositária dacivilização ocidental não erammera retórica: havia a presença de reis erainhasexiladosdaEuropaocidentalnassuasmansões,haviaapresençacoloridadeseussoldadosemarinheirosfardadosnassuasruas(inclusiveos valentes poloneses, milhares deles); havia aqueles concertos de Bachnos salões vitorianos escurecidos — e o sinal da British BroadcastingCorporation iniciando as transmissões para a Europa com o primeirocompasso da Quinta Sinfonia de Beethoven.” Churchill, escreveuMauriceAshley, “permaneceu no fundo um europeu e tinha esperança de que osamericanosprezassem,acimade tudo,a suaherançaeuropéia”. 7 Quando,em novembro de 1944, o general de Gaulle tentou afastá-lo da

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dependênciaestreitadosEstadosUnidosemproldeumadireçãoeuropéia,Churchill disse que compreendia a argumentação de de Gaulle econcordava em grande parte com ela, mas que a primazia do seurelacionamentocomosEstadosUnidosdeviaeiriapredominar.Aomesmotempo, sua preocupação com a Europa, inclusive as perspectivas de umaEuropapós-guerra,permaneciamaisdoqueconsiderável.

Issoin luenciouassuaspropostasdeestratégia.Ainvasãoealiberaçãoda Europa a partir do sul, assim como os planos subseqüentes paradesembarcar nos Bálcãs ocidentais ou avançar da Itália para nordeste,deveriam preceder, ou então complementar, a invasão da Europaocidental,mashaviatambémumoutroobjetivo:estabelecerumapresençaanglo-americana em pelo menos partes da Europa central, prevenindo aocupação russa da sua totalidade. Até meados de 1943 ele conseguiuin luenciarosaliadosamericanos,oqueresultounaentradanaSicíliaenaItália continental.Depois disso, nadamais: eles rejeitaramos seus planosdoAdriático por váriosmotivos, umdeles a suspeita quanto ao interessedeChurchillemregiõesdaEuropaondeosamericanosnãosedispunhamaseenvolver.MasapreocupaçãodeChurchillcomaEuropaultrapassavaaspreconizaçõesdeestratégiamilitar.Elaevidenciava-senaproposta(emTeerã) para uma Áustria independente; nos planos para um eventualEstadopós-guerraquereunisseaAlemanhadoSuleaÁustria, talvezatéincluindoaHungria;napropostadaspercentagensaStálin,queredundouemmaisdoqueapreservaçãodaGrécia,comChurchilldispostoaaceitaradominação russa da Romênia e Bulgária, para a qual havia precedenteshistóricos, eondeos russos jáeramas forçasdeocupaçãodefacto. Vimostambémqueeledeclarava,devezemquando,queaHungrianãoeraumEstado da Europa oriental, mas da Europa central. Entretanto, napreocupação sobreatéondeos russosavançariamnaEuropa central, elenãorecebeunenhumaajudaamericana—muitopelocontrário.

Mas, durante os últimos meses da guerra na Europa, a sua energiaestavadiminuindo.Ele aindaexpunhaas suaspreocupações comclareza,masapersistênciaemlevá-lasadiantenãoeraoqueforaantes.Defato,àmedida que a guerra prosseguia, Churchill icava com menos cartas namão.Noentanto,haviaalgumasqueestavamali equeelenãousou.Umaera uma idéia um tanto vaga, que circulou em Whitehall e foi atéapresentada por Eden no inal de 1944, para um sistema de aliança daEuropaocidentalsobliderançabritânica.Tenhomuitasvezespensadoqueem1945osbritânicos, inclusiveChurchill, deixaramescaparumagrandeoportunidadehistórica.Elespoderiamterconquistadoaliderançadetoda

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aEuropaocidentalporumaninharia.Tamanhoeraoseuprestígiodentreas populações libertadas da Europa ocidental e Escandinávia — umprestígio sólido que se devia principalmente à liderança de Churchilldurante a guerra (e também ao fato de que esses países haviam sidolibertados namaior parte por exércitos britânicos e da Com-monwealth).Mas naquela época o exausto povo britânico e os seus representantesestavam—compreensivelmente—desinteressadosdeumtalprojeto,eomesmosedavacomChurchill.Talvez,seeletivessesidoreeleitoem1945,as coisas fossem diferentes. Mas devido a muitas circunstâncias —inclusiveosembaraçospolíticoseeconômicosdopaís,assimcomoosseusobstáculos pessoais decorrentes de idade e saúde — isso talvez nãohouvessemesmoocorrido.

Ainda assim: Churchill continuou a ser um principal proponente deumaEuropaunida.Observe-se,maisumavez,queo seu famosodiscursosobreaCortinadeFerro, emFultonemmarçode1946, enfatizavanãooperigo do comunismo internacional, mas a divisão da Europa; apreocupaçãocrescenteentreosamericanoseraoprimeiro;apreocupaçãode Churchill era antes a segunda — em suma, o que signi icava asupressão pelos russos de antigos Estados europeus e o seu isolamentoforçadodorestantedaEuropa.NessapreocupaçãocomaEuropaoriental,eleestavasozinhodentretodososestadistasdomundoocidental,inclusivehomens in luentes como o presidente Truman e o general de Gaulle.Poucosmesesmais tarde, em Zurique (um discurso que, quase sessentaanos depois, ainda é lembrado por muitos europeus ponderados), eleevocouo espectro de umaunidadedesejável daEuropa, assentada antesde tudo em um novo tipo de reconciliação e associação entre os povosfrancês e alemão. “Nesses anos, a sua linguagem quando se referia àEuropaeratãocalorosaqueéfácilinterpretarmalqueoutrossentimentoscoabitassem com esse naquela mente ampla. Em Zurique, ele iniciouentoandoohinodoeuropeucultoàqualidadesuperiorda suaherança.” 8Churchill discursou em termos semelhantes em um Congresso da UniãoEuropéia em Haia, em 1948, e também em outras ocasiões. No entanto,mesmo durante o segundo período como primeiro-ministro, ele pouco ounada fezpara favorecer uma ligaçãobritânica comosEstadosdaEuropaocidental e com as instituições européias então em desenvolvimento dooutro lado do canal da Mancha. Em 1950 ele disse: “Nós estamoscom aEuropa,masnãonaEuropa.”ElecontinuouaconsiderararígidadivisãodaEuropacomooprincipalfatordaguerrafria;em1949,disseemBruxelas:“AEuropaquebuscamosunirétodaaEuropa”;suatentativadeentrarem

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negociaçõescomosnovos líderesdaRússia,em1953e1954, tinhacomoobjetivo principal uma correção ou abrandamento dessa condição; masvimos como foi repelido por Eisenhower e por outros americanos. Eleestava então perto do encerramento de sua vida política. No entanto, devezemquandoaindasepronunciavaafavordeumaEuropaunida—porexemplo em Aachen, em 1956, onde a irmou que a unidade da Europaocidentaleradesejável,porqueeraemconseqüênciadetalunidadequeosEstados da Europa oriental recuperariam a independência, umdesdobramentoinevitávelqueelepreviuanosantes.

Elenão viveupara ver as complicaçõesnas relaçõesdaGrã-Bretanhacom a “Europa”. Eu duvido que uma “União Européia” inca-racterística,comfreqüênciaimpotenteeemgrandeparteburocrática,recebesseasuaaprovação,masachoqueeleteriaacolhidobemostrensdoEurotúnel.

“Churchill e a Europa” é um livro ainda a ser escrito. Foi enquantopreparavaaredaçãodestecapítuloqueencontreialgorealmentedignodenota. Em 2 de janeiro de 2002, o dia seguinte à adoção do euro em boapartedaEuropa, li emum jornal uma sériede entrevistas comeuropeusilustres: franceses, italianos, holandeses, suíços e outros. Uma dasperguntas formuladas era esta: quem, para eles, eram os europeusmaisnotáveis? As respostas compreendiam pessoas tão diversas quantoLeonardodaVinciouJeanMon-net;mas,paraminhasurpresa—ealegria—pelomenos trêsdeles incluíramWinstonChurchill.Poucos ingleses, setanto,considerariamChurchillum“europeu”notável.Noentanto,aescolhadesseseuropeusnãofoidestituídadevisão—muitopelocontrário.

1AndrewRoberts,Salisbury:VictorianTitan.Londres,1999,p.488,843.2WinstonChurchill,TheWorldCrisis,1911-1918.Londres,1931,ed.con-densada,p.110.3SaturdayEveningPost,15.02.1930.4KennethRose,KingGeorgeV.NovaYork,1984,p.86.5 Citado por Robert Rhodes James,Churchill: A Study in Failure, 1900-1939. Nova York,1970,p.308,311,318.6A.J.RTaylor,“TheStatesman”,inChurchillRevised:ACriticaiAssessment.NovaYork,1969,p.36.7MauriceAshley,ChurchillasHistorian.NovaYork,1968,p.209.8“Desejofalar-lheshojesobreatragédiadaEuropa.Esteadmirávelcontinente,queabarcaasmaisbelasemaiscultivadasregiõesdaTerra,quedesfrutadeumclimatemperadoeuniforme,éaterranatal de todas as grandes raças ancestrais domundo ocidental. É a fonte da fé cristã e da éticacristã.Éaorigemdamaiorpartedacultura,artes, iloso iaeciênciatantodaépocaantigaquantoda épocamoderna. Se a Europa se unisse na partilha da sua herança comum, não haveria limiteparaasuafelicidade.”CitadoporGeoffreyBest,Churchill:AStudyinGreatness,Londres,2001,p.278.Entretanto, Best acrescenta: “Mas em nenhum ponto do discurso, nem em qualquer momentoposterior,eleaproveitouaoportunidadeparainsistirqueaGrã-Bretanhaeraumpaíseuropeunoplenosentidoemqueoeramospaísesdocontinenteeuropeu.”

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Churchillcomohistoriador

Churchill eraumescritor.Nato?Nãopodemosa irmar, exceto argumentoqueotalentodeumescritorraramenteéhereditário.Essetalentopode,éclaro, desenvolver-se pelo exemplo de um dos pais. O impulso paraescrever, porém, é de expressão da própria personalidade. O estímuloparaescreveréodesejodevencerumapreocupaçãomentalexpressando-a consciente e claramente, ao passo que o propósito de escrever quasesempre incluiegocentrismoepelomenosummínimodevaidade.Atrevo-meapensarqueessasgeneralizações(reconheço:discutíveis)seaplicamaWinstonChurchill.

Ele era um escritor. Era um historiador? Há muitos acadêmicos quetendemarecusar-lheesse título:umamador,enãoumintegrantedasuaconfraria; alguns deles (críticos não meramente pro issionais, masideológicos) insinuam que os seus métodos de historiogra ia eramanticientí icos e insu icientes (ou, pior, a serviço de interesses próprios eda criação demitos). Esse é um extremo. Totalmente contrária a isso é aasserçãodosensocomumdequetodoserhumanoéumhistoriadorinato,ao passo que é um cientista somente por escolha, uma vez que ahistoricidadeéaquartadimensãodohomem.Noentanto,nãosãomuitosos homens emulheres que têm consciência dessa condição. Poucos delesexperimentam a necessidade de escrever algum tipo de história e umnúmeroaindamenortornaoatodeescreverahistórianãosó“cientí ico”,masumaobradearte.Churchill fazia isso:daí, comtodaprobabilidade,oPrêmioNobeldeLiteraturalhetersidoconcedido(em1953)eemumpaísondeamaioriadoshistoriadorespro issionaisaindatendiaaconsiderarahistória como uma ciência. Mas por outro lado ele estava em boacompanhia (apesar de não ter viajado a Estocolmo para a cerimônia): oúnico outro historiador que recebera o Prêmio Nobel de Literatura foi oeminentehistoriadoralemãoTheodorMommsen,em1902.

Em um imponente (e ótimo) ensaio, J.H. Plumb escreve que Churchill

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“era um híbrido raro e singular: um estadista-escritor e um escritor-estadista”.1 Eupreferiria dizerumestadista-historiador e umhistoriador-estadista.Churchilleraumescritorprincipalmenteporqueeraatraídopelahistória, não um historiador porque era atraído pelo ato de escrever.(Plumb, como veremos, presta umdevido e tocante tributo ao irresistívelsensodehistóriadeChurchill,mascriticasuahistoriogra ia.)Queeusaiba,só existe um livro sobre o historiador Churchill, escrito pelo seu ex-assistenteMauriceAshley.Outrasavaliaçõesdahistoriogra iadeChurchillpodemserencontradasemartigoseconferênciasdeRobertBlake,VictorFeske, John Ramsden e David Reynolds.2 Creio que (como “Churchill e aEuropa”) um livro substancial sobre “Churchill como historiador” aindaestáporserescrito.

Uma di iculdade para tal tarefa seria que o volume e o alcance dashistórias de Churchill são enormes. Antes, porém, de me dedicar a umadescrição sucinta, necessariamente breve e decerto inadequada, e a umaanálise ocasional das obras principais, creio que devo dizer algo sobre aperspectiva de Churchill da sua própria historiogra ia. Creio que issomerece atenção, não só porque raramente tem sido analisado porhistoriadores, como também porque (pelo menos na minha opinião) hánessa perspectiva um elemento que não é obsoleto ou tradicional, mastalvez surpreendentemente oportuno. A perspectiva de Churchill emmuitos dos seus livros é participativa. Eu disse antes que o propósito deescreverraramenteésepa-ráveldoegocentrismo.Hámuitoshistoriadores(emespecialaquelesqueclassificamoseuofíciocomosendoumaCiênciaenãoumaArte)3queprefeririamnãopensarnessacondição—aindaqueaprópria escolha dos seus objetos de estudo seja em geral inseparável dasuacuriosidadeouinteressepessoal.Admitiroegocentrismoéadmitirqueo ideal de objetividade cientí ica está ausente. No entanto, pelo menosdepoisdoséculoXXetalvezdetodaachamadaEraModerna,nósdevemossaber que o ideal de Objetividade, com o sentido de uma separaçãocompleta e anti-séptica entre o observador e o material observado, éimpossível(enãosónomundomentalcomotambémnomundo ísico);queaalternativaàObjetividadenãoéaSubjetividade(queéapenasumaoutraforma de determinismo); que todo o conhecimento humano éinevitavelmente pessoal e participativo. Praticamente toda a obra escritade Churchill ilustra isso. Praticamente todos os seus livros forammotivados,pesquisadoseescritosdevidoàpreocupaçãoeaoconseqüenteinteresse pela história de pessoas com que ele estava intimamenterelacionadoepelosacontecimentoshistóricosdequeparticipou.Assimas

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históriasdasguerrasnaÍndiaenoSudão,assimabiogra iapolíticadeseupai,assimabiogra iahistóricadeseuantepassadoMarlbo-rough,assimashistórias das duas guerras mundiais, assim até as descrições decontemporâneos e, pelo menos indiretamente, da história dos povosanglófonos, na divulgação de uma idéia de que foi o principal expositordurante quase toda a vida. (Exceções talvez sejam as biogra ias deGaribaldiedeNapoleãoqueelecertavezachouquepoderiaescrever.)

Pessoal e participativo: esses adjetivos resumem a iloso ia históricainerente às obras de Winston Churchill. É errôneo atribuir issosimplesmente ao método de um amador. Além do argumento de que nahistória,aocontráriodemuitasdasciênciasnaturaiseaplicadas,amadoreprofissional não são e não podem ser categorias totalmente isoladas edistintas, Churchill tinha consciência das condições e limitações da suahistoriogra ia. No início de sua imponente história da Primeira GuerraMundial, Acrise mundial (1923-27), ele escreveu: “Disponho-me a cadaetapaaresponderàsperguntas:'Oqueaconteceueporquê?'Tentoguiaro leitorpara aquelespontosondeo cursodos acontecimentos está sendodecidido, quer seja emumcampodebatalha, emuma torrede comando,noConselho,noParlamento,emumcorredor,umlaboratórioouumasalade trabalho.Talmétodonão é um substituto para a história,mas pode serumauxíliotantoparaseescreverquantoparaseestudarahistória.” (Grifosmeus.) Tal reconhecimento devia ao menos atenuar a ferroada docomentário espirituoso feito, creio eu, por Balfour de que Churchillescrevera um grande livro sobre si mesmo e depois o intitulara A crisemundial.Churchilleracapazdeautocrítica,pelomenosdevezemquando.Sobre Acrise mundial, ele escreveu: “Olhando para trás com oconhecimentoadquiridoeosanosamais,parecequefuidemasiadamentepropenso a empreender tarefas que eram perigosas ou mesmodesesperadas.”Noprimeiro(eàsvezesdevidamentecriticado)volumedeA Segunda Guerra Mundial, ele escreveu sobre a década de 1930:“Empenhei-me ao máximo para incitar o Governo à exaltação e apreparativos extraordinários, mesmo à custa de alarme mundial. Nessesesforços, sem dúvida pintei o quadro ainda mais negro do que era.” Noprefácio a ASegunda Guerra Mundial ele insistiu novamente: “Não aquali ico como história, pois isso compete a uma outra geração. Massustentocomsegurançaqueéumacontribuiçãoàhistóriaqueseráútilaofuturo.”

Há historiadores que podem tender a rejeitar essa quali icação, “umacontribuição à história”, como insincera ou falsa modéstia, mas eles

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desprezarãoaobraeosdadosdeChurchill,“úteisaofuturo”,tão-somenteporsuacontaerisco.Deve-seigualmenteobservarque,emboraChurchill,pormuitas razões, tenha omitido ou abrandadomotivos de controvérsia,inclusivesituaçõesemqueesti-veracertoeosadversários,errados,muitasvezeselenãoomitiuumregistrodassuaspalavraseatosque,naépocadapublicação, teriam causado espanto, para dizer o mínimo (como no casodasdescriçõesdeStálinedosseusentendimentoscomele).Nosprefáciosàsduashistóriasdeguerrasmundiais,eleescreveuqueseguiu,“atéondemeépossível,ométododeMemóriasdeumcavalheiro,deDefoe,emqueoautorpõea crônicaeadiscussãodosacontecimentosmilitaresepolíticossobreo io das experiências pessoais deum indivíduo”. Essemétodo (ou,antes, estrutura eperspectiva) foi então complementado, emquase todasassuasobras,por fartas,eàsvezesdemasiadoextensas, reproduçõesdecartas, diretrizes e outros documentos com a inalidade de ilustraçãodocumental, indicando pelo menos o respeito de um historiador amadorpelocânoneprofissionaldadependênciadefontes“primárias”.

Muitos desses documentos entremeados no texto, ilustrando (mastambém ocasionalmente interrompendo) a narrativa ou a argumentação,sãomuitovaliosos.Sãotambémcomprovaçõesdassuasassíduastentativasdepesquisas.Repare-se,porém,quemuitosdoslivroseramlongos—comfreqüência,longosdemais.Seusdiscursosraramenteeramenfadonhos;osescritos — com algumas exceções e, claro, com a exceção dos textosjornalísticos—freqüentementeoeram.Haviaumatendência(comovimosantes, em muitas cartas e mensagens) a esperar muito do seu registroescrito:tentedizertudo.Ebem!

Seu interesse—mais: seu apetite—pela história amadureceumuitocedo.Churchilltinhavinteeumanoseachava-senaÍndiaquandopediuàmãeparaenviar-lhedozevolumesdeMacaulay(oitodashistórias,quatrodos ensaios reunidos). Ele escreveu-lhe que lia, todos os dias, cinqüentapáginasdeMacaulayevinteecincodeGibbon.“Macaulayédeleituramaisfácil do que Gibbon e em um estilo bem diferente. Macaulay enérgico evivo, Gibbon imponente e impressionante. Ambos são fascinantes edemonstram como o inglês é uma língua admirável, já que pode seragradável em estilos tão diferentes.” 4 Eles exerceram in luência sobre oseuestilo.Masele jáeraumescritor(e jornalista:aindanãotinhavinteedoisanosquandoescreveuevendeucincoartigosparaTheDailyGrap-hic).Então surgiram, em breve, cinco volumes de história bem à maneira deChurchill, ou seja, participativa e contemporânea:A história da tropa decampo Malakand (1898),A guerra luvial (dois volumes, 1899),Savrola

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(1900, o seu único romance, escrito às pressas),Londres até Ladysmith(1900),A marcha de Ian Hamilton (1900). Cinco livros escritos epublicadosnoespaçodetrêsanos,antesdeelecompletarvinteeseis—ecomo foram movimentados esses anos, incluindo a ida de Churchill àguerranoSudão,depoisnaÁfricadoSul,seuaprisionamentopelosbôerese sua fuga. Esta não é a ocasião para descrever ou analisarminuciosamente esses livros. Eles não são longos; muitos eram textosreescritos de algumas das suas matérias jornalísticas. Posteriormente,foram suplantados pelas suas incomparáveis memórias,Meus primeirosanos:umpostoerrante (1930),provavelmenteo livromaisagradávelqueescreveu, resumindo em alguns capítulos curtos a sua história daquelesanoseaventuras.

Seu talento para a reconstituição histórica é perceptível nessesprimeiros livros (o primeiro já foi reconhecido em uma resenha noAthenaeum como “um clássico militar”). Ainda mais signi icativos, porém,são esses vislumbres da sua visão histórica (e pensamento político) quesurgem, aqui e ali, nesses primeiros livros. Já vimos uma passagemvisionária, uma visão talvez comparável à outra e mais famosa visãosombria de um contemporâneo, o poema “Recessional”, de Kipling, em1897.NoromanceSavrolapodemosvislumbrarsuaapreciaçãocondicionalde um ditador, junto com a perspectiva melancólica da democracia demassa (ou, antes, popu-lismo). No inal do primeiro livro, Churchillescreveusobreoseupovo,osbritânicos:“Umpovodequepelomenossepode dizer que acrescentou à felicidade, ao saber e às liberdades dahumanidade.”Essassãoaspalavrasdeumpatriota—emboranãodeumnacionalista. (Hitler a irmoumuitas vezes, e escreveu emMinha luta, queeraumnacionalista,“masnãoumpatriota”.)

Em 1902, Churchill dedicou-se a escrever uma de suas obras maisimportantes: a vida do seu pai.Lorde Randolph Churchill, “uma biogra iapolítica”, compunha-se de dois alentados volumes,mais demil páginas intoto. Biogra ias políticas extensas não eram incomuns na época, emboraesse costume vitoriano estivesse começando a desaparecer. O fatoincomumeraqueamaiorpartedessesdoisvolumesseocupavadeapenasseis agitados anos da trajetória do pai, de 1880 a 1886. É óbvio que ainspiração e o objetivo do ilho eram uma justi icação do pai. Isso ésingular,talvezespecialmenteporqueo ilhonãoviaopaicomfreqüência,orelacionamentoentreambosnãoeramuitoestreitoeopaimorreuantesdeo ilhocompletarosvinteeumanos.Hátambémsingularmentepoucosobre a vida familiar (e, exceto algumas cartas, muito pouco sobre o

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relacionamento entre lorde e lady Randolph). A inal, embora fosse semdúvida interessante, lorde Randolph não era de todo uma personalidadecativante.Eraumgrandeorador,falavacomdesembaraço(aocontráriodoilho, que tinha de preparar cuidadosamente os discursos e até apronúncia), mas tinha muitos preconceitos 5 e fortes propensões para ademagogia6 (o que não ocorria com o ilho). Joseph Chamberlain eRandolph Churchill foram os principais responsáveis pela frustração daproposta humanitária (e, naquela época, talvez exeqüível) de autonomiapara a Irlanda, apresentada por Gladstone. Ele possuía uma inteligênciamuito viva, era impaciente (como o ilho), indisciplinado e, às vezes,rebelde dentro do próprio partido — a maioria dos conservadores nãogostava dele (mais uma vez, como no caso do ilho). Demitiu-se de umcargo importante no ministério por causa de seus princípios in lexíveis(como a irma a biogra ia escrita pelo ilho), mas também num acesso deirado me-lindre (como a irmam adversários e críticos contemporâneos).Em1888,determinados jornaisdescreviamRandolphChurchillcomo“umegoísta fanfarrão e tagarela, semprincípios e, aparentemente, semnoçãodedeverehonra” (2:358). (Essasexatasexpressõesepalavrasviriamasercomfreqüênciaaplicadasao ilho,pelomenosnosprimeirossessentaequatroanosdasuavida.)

Entretanto, embora umgrand plaidoyer, como uma justi icaçãoLordeRandolph Churchill não é bem-sucedido; como uma excelente históriapolítica, sim. Houve críticos que o proclamaram uma obra-prima, algunsdeles talvez o livro mais admirável que Winston Churchill escreveu. Ascircunstâncias de sua elaboração são muito interessantes. Churchill tevecerta di iculdade em consentir que os testamenteiros literários do paiobtivessemacessoatodaadocumentaçãoecorrespondênciavolumosasdopai.ElenecessitouemespecialdoauxíliodelordeRosebery,queoprestou,ainda que com certa relutância. Ao contrário do que ocorreu com osprimeiros livros, rapidamente redigidos e compilados, nesse Churchilltrabalhoucoma incodurantequatroanos.(Eledefatorecebeuumaajudaexcepcional: um dos primos o hospedou em Blenheim enquanto ele alitrabalhava nos documentos do pai; outro primo permitiu que eletrabalhasseemumapartamentoexcelente,emLondres.) 7Easqualidadesliterárias do livro são com freqüência excepcionais. A obra principia comuma descrição de Blenheim, primorosamente redigida e profundamenteevocativa.(RoseberyaconselhouChurchillaomiti-la.Felizmenteelenãofezisso.) Os críticos muitas vezes censuraram Churchill por ser autodidata:mas como são fartas as mostras de cultura literária e erudição nessa

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biogra ia política! A epígrafe por ele escolhida é de Goethe (curioso paraumhomemacusadodepoucoconhecerepoucoapreciaraAlemanhaesuacultura), sobejam outras epígrafes de capítulos e outras citaçõesesplêndidas de Maquiavel, Horácio, Burke, Disraeli, Crabbe, Dry-den, doLivro de Jó. Disperso pelas páginas do livro há um tesouro de frases edescriçõesmemoráveis.Talvezmaisimportante:LordeRandolphChurchilléuma contribuição de extraordinário valor — e duradoura — à históriapolíticabritânicaduranteametadedoséculoXIX,quesobmuitosaspectosfoi um período crucial. A esse respeito, permitam-me citar a talentosa esériadescriçãodessahistórianaquelaépoca,feitapelojovemChurchill:

Haviamedidasimportantes.Haviahomenssérioseambiciosos.Porémalgomaisexistiaportrásda inquietação e das incertezas da hora. Não foram apenas a deterioração do Governo ou adecadêncianaturaldeumpartidoaproduzirasagitaçõesde1885e1886.Olongodomíniodasclasses médias, que se iniciara em 1832, havia chegado ao im e, com ele, o reinado quaseuniforme do Liberalismo. As grandes vitórias haviam sido conquistadas. Ditadurasatravancadoras de todos os tipos haviam sido derrubadas. Em toda parte a autoridade foirompida.Os escravos estavam livres.A consciência estava livre.O comércio estava livre.Mas afome, a miséria e o frio estavam também livres; e as pessoas demandavam algo mais que aliberdade.Osvelhos lemasaindasoavamverdadeiros,masnãobastavam.EcomopreencherovácuoeraoenigmaquedividiaoPartidoLiberal.(1:268-9)

Esseéumresumofeitoporumgrandehistoriador—comprovaçãodasuacapacidade de resumos globais e visionários em uma obra que tambémincluíacomfreqüênciadetalhesparticulareseexcessivos.Passagenscomoessaperdurarãoeinspirarãohistoriadoresenquantoahistóriainglesaforescrita.

ElasdecertoficaramgravadasnamentedeChurchill.8Eagoradevodarum salto adiante e interromper a seqüência cronológica para dizer algosobreMarlborough, escrito trinta anos depois, porque essa obra tinhaigualmenteoobjetivodejustificarumantepassado.

Marlborough compõe-se de quatro volumes. O primeiro foi publicadoem outubro de 1933, o último em setembro de 1938. Essas datas sãoexpressivas. Pois Churchill escreveu esses extensos volumes no exatoperíodoemqueestavaprofundamenteenvolvidoemmaisdoqueapolíticahabitual,emqueeraautoproclamadaaCas-sandradaperspectivadeumaiminente segunda guerra mundial. Além disso, durante aqueles anos eleescreveueditouprovavelmentemaisartigosparajornaisdoquenunca.E,enquanto trabalhava nos dois últimos volumes deMarlborough, estavatambém começando a ditar os primeiros capítulos deUma história dospovosanglófonos (que interrompeuem1939,retomando-abemdepoisdaSegundaGuerraMundial).Queextraordináriaenergia!Éverdadequeele

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então podia reunir e dispor de uma considerável equipe de secretárioshistoriadores que lhe levava documentos, preenchia lacunas no seuconhecimento histórico de um detalhe ou mesmo de um períodoconsiderável — o tipo de colaboração que outros historiadores menosfavorecidos podem justi icadamente invejar —, mas a elaboração e aredação da obra eram dele. Devemos comparar a historiogra ia deChurchill não com a de professores (lamentavelmente, existem os dessaespécie) cujapesquisaououtros trabalhos émuitas vezeso resultadodetarefas que passaram aos seus estudantes de pós-graduação. Se existealguma comparação válida é com grandes pintores como Leonardo ouRubensouRembrandt,quetantasvezescontaramcomgruposdealunos-pintoresparacompletardetalhesaquieali, semcomprometerogêniodoesplêndidoprojetodomestreouda sua arte.MauriceAshley, que foi umdosauxiliaresdeChurchill no trabalhopara Marlborough, escreveu: “Issome proporcionou a oportunidade de ver Churchill em atividade comohistoriador,numaépocaemqueomeucoraçãoerajovem,aminhamente,maleáveleaminhamemória,boa.”9

Marlborough é a obra mais grandiosa e mais singular de Churchill.Ashley julgava que era ainda melhor do queLorde Randolph Churchill, oqueédiscutível.Maisdoquequalqueroutradassuasobras,Marlboroughpoderia (e talvez deveria) ter sido reduzida. Os quatro volumes (comfreqüência publicados em dois livros, a que as citações seguintes sereferem) alcançammais deduasmil páginas. 10 A obra é também—umapalavra que utilizo com certa relutância— indisciplinada. A pesquisa foiextraordinária. Uma grande quantidade de cartas inéditas Churchillencontrou nos arquivos de Ble-nheim (elas recebem uma marcaçãoespecial ao longodaspáginas),mas issoé apenasumapequenapartededocumentosdetodosostipos,selecionadosdeumaenormediversidadedearquivos, papéis e livros, na Inglaterra e por toda a Europa. Sim,muitosdeles foramdesencavadose levadosaChurchillpelosassistentes,mas eleescolhiaquaisiriautilizar,comoutilizá-los(àsvezesdeformaexcessiva)eemqueponto.Asnotasdepédepáginasão intimidadoras.Acertaaltura(2: 673, n.1), Churchill evidentemente considerou adequado e necessárioilustraruma frasedo textocomumapequena tabelanumérica,ospreçoslutuantesdotrigonaInglaterrade1706a1714.Masemoutrotrecho(1:116),aoescreversobreopedidodecasamentode JohnChurchillaSarahJennings,belamasnãorica,elegastaumapáginaemeiaparacriarcartasictícias dos pais dos noivos (“Podemos imaginar algumas delas”),desaprovandoaunião.Entretanto,háoutrasdigressõesquesãomagistrais

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(porexemploumcapítulointeiro,“AEuropadeCarlosII”,quepoderiaserummodeloparaoshistoriadores).Outrassãodemasiadamenteinstrutivas:sobre fortalezas, treinamento militar, mosquetaria e assim por diante.CreioqueChurchillfoitambématraídopelahistóriadeMarlborough,suasguerras, sua época, porque isso envolvia o que para Churchill era econtinuouasera ligaçãoinevitávelentreodestinodaInglaterraeasortedaEuropa,oupelomenosdaEuropaocidental—paraondeMarlboroughe um exército inglês haviam retornado, após uma ausência insular dequasetrezentosanos.

Como emLorde Randolph Churchill, a magní ica descrição feita porChurchilldopainelmaisamplo,dahistóriadaqueletempo,resultamelhordoquea justi icaçãobiográ icadoseuantepassado.AocontráriodeLordeRandolphChurchill,podemosnosperguntarporqueeleempreendeuesseesforçohercúleoemvezdeumabrevecorreçãodaversãodesdenhosadeMarlborough, apresentada por Macaulay e outros autores. Vimos queChurchill possuía vários traços em comumcomopai. Como antepassadoJohn Churchill, praticamente nenhum. Marlborough pode ter sido umgrandegeneral,maseratambémfrio,interesseiro,comedido,dissimulado,avarento—muitodiferentedo seu ilustredescendente. (Emaisumavezdiferente: “Não gosto de escrever” (2: 581). Uma coisa eles possuíam emcomum: o amor pelas esposas.) De um modo geral Churchill, apesar detoda a ênfase justi icável no caráter e nas condições daquela época, nãoconseguenos convencerdequeo seuprotagonistanão eraum calculistaastutoeardilosonos contatos comoexilado Jaime II (outrora seugrandebenfeitor, que ele abandonou em 1688) e com o ilho ilegítimo de Jaime,Berwick (cuja mãe, Arabella, era ex-amante de Jaime e irmã deMarlborough).HouveigualmenterudezadapartedeMarlboroughquandoele, por exemplo, escreveu à rainha Ana em 1710, forçando-a a escolherentre a sua con idente, a despretensiosa sra. Masham (que estiverafazendo intrigas contra Sarah) e ele. Quando a rainha escreveu-lhedispensando-o (nanoitedeanonovo,de1711),ele jogouacartano fogo.Suarespostaàrainha,nodiaseguinte,nãofoidasmelhores.

Um equívoco muito óbvio deMarlborough é a campanha excessiva eretaliadora de Churchill contra Macaulay — uma exceção estranha einsólita na habitual magnanimidade e na disposição de Churchill paraesquecererrospassados.Masa inal todaa inalidadedeMarlborough eledeclaroulogonoprincípio:“Umalongasucessãodosmaisfamososautoresda língua inglesa esgotou as suas reservas de censura e insulto ao nomedele. Swift, Pope, Thackeray e Macaulay, nos seus diferentes estilos,

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competiram para apresentar à posteridade uma imagem abominável.MacphersoneDalrympleabasteceram-noscomdadosfalsoseenganosos”(1: 17). A campanha de Churchill contra Macaulay prossegueinde inidamente. Sobre o caso de John Churchill com a in luente BarbaraVilliers, mais velha e muito rica: “Que repugnante alegar, a exemplo delordeMacaulay,ummotivosórdidoeasquerosoparaaçõesinspiradasporessas conclusões esmagadoras que procedem ardentes do caldeirão daprópria vida!” (1: 92). De vez em quando sua pesquisa obtém êxitonotável:emumairrepreensívelnotadepédepágina,Churchillprovaque,em um caso, Macaulay confundiu William Penn com um escritor semimportância de nome Penne (1: 199). Em suma: “Está acima das nossasesperanças alcançar lorde Macaulay. A imponência e a amplidão do seuestilo de narrativa levam-no velozmente adiante. ... Podemos apenasesperarqueaVerdadesigaatráscomvelocidadesu icienteparapregarorótulo'Mentiroso'nasabasdasuaelegantecasaca”(1:132).Macaulaynãofoi o único historiador a despertar a ira de Churchill. Sobre o austro-alemãoOnnoKlopp: “Uma lamúria eummurmúriodedespeito frustradoprovêmdessascrônicasenfadonhasepesadas”(1:492).

Talvez a crítica mais severa aMarlborough tenha sido feita em 1934,apósapublicaçãodoprimeirovolume,emumpequenolivrodohistoriadorjacobitaMalcolmV.Hay,WinstonChurchilleJaimeIIdaInglaterra.“Pode-seacreditar no sr. Winston Churchill? ... O sr. Churchill, eliminando docaminho tudo que pudesse impedir o avanço do seu raciocínio, seguiu atécnicanãodahistória,masda icção.”Naconclusão,Haycitaoprefáciodopróprio Churchill: “Aguardamos com humildade toda correção oucontestação que o conhecimento diverso de estudantes e críticosproporcionará”(1:20).“Seestárealmentedispostoaaceitarcorreção,osr.Churchillapresentarádesculpasnopróximovolume,pelasuaparcialidadeemrelaçãoaJaimeII.Aimparcialidadefreqüentementeexigeumesforçoeum controle vigilante da vontade. Foi aqui que o sr. Winston Churchillfalhou.”11Sim,Churchilljulgavaque“osdocumentosjacobitasconservadosnoScotsCollegeemParissãoumadasmaioresfraudesdahistória”(1:18-9). Entretanto, ele podia ser espantosamente imparcial em relação aprovas e argumentos contrários aos seus. “Seria parcial extrair umaimagem da [rainha] Ana dos escritos da duquesa deMarlborough” (queChurchill admirava incondicionalmente. 1: 166). Que ele não eradogmaticamente anticatólico deve evidenciar-se do seu primoroso retratodo papa Inocêncio XI (1: 229-30). E eis um excelente exemplo deequanimidade, o reconhecimento do mérito do pró-jacobita James II, de

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Hilaire Belloc: “Um autor católico recente descrevera a oposição a Jaimecomo a resistência dos ricos e poderosos. Isso é verdade. Ela teve êxitoporqueosricosepoderosospatrocinaramascausasepreconceitosqueamassaapoiavamasque,semliderançasuperior,eraincapazdedefender”(1:217).

Por im, há as frases e passagens esplêndidas. Marlborough teriasupostamente estudado de forma minuciosa o autor militar romanoVegetius. “Foi muitas vezes sugerido que, por algum misterioso ato daProvidência, nosso protagonista conseguiu extrair vários raios de solmodernosdessepepinoantigo”(1:46).SobreascartasdeHarley:“Háumcerto embaraço pessoal nelas e um odor de lâmpada a óleo, recendenteapós dois séculos” (1: 540). “A Escóciamascou soturnamente as correiasdauniãoduranteasdesventurasde1707”(2:317).“Umadasmaisfortescaracterísticas inglesaséuma indiferençaà lógicaquandoéprovávelqueissoleveasériasdificuldades”(1:545).

Um outro livro que Churchill publicou na década de 1930 foi umacoleçãodealgunsdosseusretratosliterários,comotítulo Contemporâneosilustres. À suamaneira, é uma das três obras biográ icas de Churchill. Éclaro que a arte de um biógrafo e a de um historiador não apenas sesobrepõem:muitasvezeselassãoexatamenteidênticas.EContemporâneosilustreseramuitomaisdoqueumacoleçãodeobrasdísparesemuitíssimomais do que obras de qualidade inferior. Muitos dos per is de diversaspersonalidades(nemtodasbritânicas)nãoapenassãobemescritoscomose distinguem por um discernimento que ultrapassa a arte de esboçarperfis.12

Dedico-me agora às histórias das duas guerrasmundiais escritas porChurchill. Ele as escreveu em circunstâncias muito distintas e durantefasesmuitodiferentesdesuavida—Acrisemundialnadécadade1920,ASegundaGuerraMundial entre1948e1953.Trabalhoudurantedezanosna primeira, durante cinco na segunda. A primeira compõe-se de cincovolumes,asegundadeseis.Elerecebeumuitomaisajudadehistoriadoreseassistentesparaa segundadoqueparaaprimeira.Entretanto, tendoaachar que a história da SegundaGuerraMundial é amelhor das duas.Oeminente historiadormilitar sir Charles Oman foi um crítico severo deAcrise mundial. Houve também outros.13 Churchill dedica páginas demaisdessahistóriaa justi icaralgumasdassuasdecisões, talcomoDardanelos—emboranãosemumaconcessãodeautocrítica.Alémdisso,aqualidadedosvolumesvaidecaindo.Oúltimo,Afrenteoriental, publicadoem1931eo mais curto, foi um acréscimo posterior. (Ele escreveu-o quando já se

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achava profundamente envolvido na redação deMarlborough.)Mais umavez,acombinaçãodehistóriaeautobiogra ia,inspiradaemDefoe,funcionamelhor emA Segunda Guerra Mundial do que na volumosa história daPrimeira: mas a inal isso é natural, pois ele era o primeiro-ministro e oprincipal oponente da Alemanha de Hitler durante a maior parte daSegundaGuerra.Aqualidade,acoerênciaeoritmodosseisvolumesdeASegunda Guerra Mundial são mais regulares, ainda mais do que os deAcrisemundial.

Mastambémnessecasoháelementosparacrítica.Amaissólidarefere-se ao primeiro volume,A tempestade em formação, em que — paramencionar apenas um exemplo — a descrição de Stanley Bald-win édesarrazoada e parcial. Há outros exemplos semelhantes, embora talvezmenos autojusti icativos doqueemAcrisemundial. EmASegundaGuerraMundial, o objetivo principal de Churchill é menos justi icar-se do quejusti icarasuaperspectiva:seaomenososgovernosbritânicoefrancêssehouvessemconduzidomelhor,essaguerrapoderiatersidoevitada. Issoédiscutível. John Ramsden, que não é um crítico habitual de Churchill, emsua valiosa conferência cita Churchill que, emA tempestade em formação,insiste que em 1936 teria sido possível deter Hitler, se ao menos osfrancesessehouvessemmobilizado:“NãorestadúvidadequeHitlerteriasidoforçadopeloseuEstado-maiorarecuareteriasidocolocadoumfreioàs suas pretensões que bem poderia ter sido fatal ao seu governo.”“Observe-se a maneira”, diz Ramsden, “como essa frase deslizaimperceptivelmentedeumcon iante'nãorestadúvida',passandopordoisesperançosos 'teria sido', até um sugestivo 'bem poderia ter sido'. Erasobreessefrágil iodesintaxequeseapoiavaatãorepetidaa irmaçãodeChurchilldeque(comoeleexpressouemFulton) 'nuncahouveemtodaahistória uma guerra mais fácil de evitar'.” Isso é muito bom. 14 De outrolado, há muitos exemplos da magnanimidade de Churchill emA SegundaGuerraMundial— talvez o principal dentre eles seja a decisão de omitirtotalmente a controvérsia com Halifax, que desejava pelo menos sondarumapotencialnegociaçãocomHitler,durantecincodiasmuitocríticosemmaio de 1940. (Outro exemplo é o já mencionado abrandamento doregistrodassuasdivergênciascomosamericanosem1944-45.)Plumb,deresto muito crítico da historiogra ia de Churchill, admite: “O historiadorChurchill encontra-se no próprio cerne da historiogra ia da SegundaGuerraMundial,eaípermanecerá.”15

Existe ainda outra diferença entre as duas histórias das guerrasmundiais. Há um objetivo deA Segunda GuerraMundial que persiste em

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Umahistóriadospovosanglófonos.16Ambos sãoexortati-vos.Creioque foiSamuel Johnsonquema irmouquenósestamosaquimenospara instruiraspessoasdoqueparafazercomqueelasselembrem.Nessasduasobras,de vários volumes e de resto muito diferentes, o objetivo de Churchill éfazer os povos anglófonos lembrarem-se de sua herança, do que eleshaviam sido capazes de realizar, das suas próprias virtudes. Isso icaevidente na “moral” deA Segunda Guerra Mundial: “Na guerra:determinação. Na derrota: disposição para resistir. Na vitória:magnanimidade. Na paz: boa vontade” — como também na decisão deChurchill de não escrever nada acerca daqueles dias e noites dramáticosno inaldemaiode1940,emqueeleprevaleceueemqueeleestavacertoe Halifax, errado. Em vez disso, ele escreve que naqueles dias “todo oGabinete de Guerra tinha amesma opinião”. E: “Havia um fulgor branco,irresistível e sublime, que cobria nossa ilha de um extremo ao outro”(1:89,100).

“Deve-se admitir”, diz Maurice Ashley na conclusão do seu excelentelivroChurchill as Historian, “que faltava a Churchill aquela aplicaçãocientí icacompleta,possívelnorecolhimentodasuniversidades,emboraasua capacidade de concentração e sua habilidade para dar conta dosdetalhesfossemformidáveis....Churchillpodiaserobstinado,comosabiamos que o ajudavam a escrever os livros e, embora pudesse ceder àpersuasão, era di ícil persuadi-lo. Creio que se deve admitir ser esta aprincipalfalhadeChurchillcomoautorhistórico.Clioéumaamain lexíveleexigemuitadevoção. ...Elenuncateveotemponematendênciaparaseabsorver completamente nesse trabalho nem para rever a obra emdetalhes, à luz do conhecimento posterior. Ele preferia fazer a história aescrevê-la.”17 Issoéemgrandeparteverdade(exceto talvezaquestãodeseareconstituiçãohistóricaconsisteem“aplicaçãocientíficacompleta”eseelaéverdadeiramentepraticadanorecolhimentodasuniversidades).SoamaisverdadeiraemaisjustadoqueaconclusãodeDavidReynolds,nasuacomunicaçãonaconferênciasobreChurchillde2001:“Nadécadade1950,poder-se-ia dizer que Churchill era um prisioneiro da história — a suaprópriahistóriadadécadade1930.Revelou-semais fácil fazerahistóriado que desfazê-la.”18 Reynolds exagera ao a irmar que as noções aceitassobre Baldwin, Chamberlain, Munique, apaziguamento haviam sido, emgrandeparte,obradeChurchill.Reynolds,porém,merecereconhecimentopela pesquisa nos documentos nos Arquivos Churchill, reconstituindogrande parte da redação deA tempestade em formação. John Ramsden,mais simpático a Churchill, salienta outras de iciências da pesquisa de

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Churchill, uma delas já em 1948, quando ele não conseguiu que opresidenteTrumanliberassealgumasdascartasdeFranklinRoosevelt.

Permitam-me, porém, examinar agora um tema mais amplo e maisprofundo,queultrapassaométodoeoobjetivodeChurchillaoescreverashistórias (ao mesmo tempo em que devemos entender que o objetivo écomfreqüênciainerenteaométodo,comotodo“porquê”éinerenteatodo“como”).Em1933A.L.Rowse,emOfimdeumaera,declarouqueChurchill,“ao contrário de Trotski [!], não possui uma iloso ia da história”. Aa irmação foi citada e repetida em 1962 por E.H. Carr, em O que éhistoriai.19 Isso é um absurdo completo. Esses famosos intelectuaisacadêmicosbritânicosnãoconseguemcompreenderqueChurchillpossuíaalgobemmaisessencialdoqueuma iloso iasistemáticadahistória(que,segundooeminentehistoriadorJacobBurckhardt,éumacontradiçãoemsimesma: “Uma iloso ia da história é um centauro, uma contradição emtermos: pois a história coordena e, por conseguinte, é não- ilosó ica,enquanto a iloso ia subordina e, por conseguinte, é não-histórica”).Churchill possuía algo muito diferente: uma iloso ia histórica. (PobreTrotski!Ele possuía uma iloso ia da história! Ela não lhe trouxe nenhumproveito. Não me re iro unicamente à sua trajetória política. O que eleescreveu no exílio mostra que a sua interpretação das realidadeshistóricasdaquelaépoca—adécadade1930—estavalamentavelmenteequivocada, exatamente ao con trário da interpretação de Churchill...)Depoisde trintaecincoanoseumaSegundaGuerraMundial, J.H.Plumb,noensaiosobre “Ohistoriador”, resvalaedesliza (ecai)emoutra ladeiraescorregadia,aoescreversobreahistoriogra iadeChurchill:“Havia,ehá,na sua obra um toque do ilisteu”; “Ele nunca conheceu a fundo asgigantescas iguras intelectuais da sua juventude e princípio da idademadura—Marx e Freud.” (Tendo a pensar que isso pode ter sido bompara Churchill, não uma desvantagem.) Segundo Plumb, as omissões emUma história dos povos anglófonos são “indicativas da principal falha deChurchill tanto como historiador quanto como estadista: faltava-lhe umapercepção dos motivos mais profundos que controlam a sociedade[Economia, Alguém?] e a fazemmudar, exatamente como lhe faltava uminteresse pelos motivos humanos mais profundos [Como, por exemplo,pelosdeHitler?].”20

Em 1962, E.H. Carr escreveu: “Antes de estudar a história, estude ohistoriador” e “antes de estudar o historiador, estude o seu ambientehistóricoesocial”.Essameia-verdade 21temsidocomfreqüênciaaplicadaaChurchill, erroneamente. Segundo Plumb, mais uma vez: “Para

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compreenderohistoriadorChurchill,deve-seexaminarcommaioratençãoasuaherança,sobretudoaspressuposiçõeshistóricasdasuaclasse.” Issoé excessivamente simples. Como escreve Roy Jenkins, um dos seus maisrecentesbiógrafos:a formaçãoaristocráticadeChurchillnãoera“achavepara toda a sua carreira. Churchill era uma personalidadedemasiadamente multi-facetada, idiossincrática e imprevisível para sepermitir icar aprisionado pelas circunstâncias do seu nascimento”. 22Historiadores tão diferentes como Plumb e Charmley classi icaramChurchill como um whig aristocrata prototípico, o que é questionável ajulgarunicamentepelassuasavaliaçõeshistóricas(dequesãoexemplosasmaneiras como trata os whigs da década de 1680 emMarlborough eaquelesdedoisséculosmaistarde,emLordeRandolphChurchill).

Noentanto,Plumb,queinsistenainsu iciênciadaextensapesquisadeChurchill paraMarlborough, escreve: “Embora sujeita a críticas comohistória, continua a ser uma esplêndida obra de arte literária.” E sobreUmahistóriadospovosanglófonos:“Elacontémasuacrençasecular.Comohistória, ela fracassa, irremediavelmente; comomonumentodapercepçãodo passado de um inglês ilustre, é um êxito admirável.” Mas essas duasquestões são totalmente sepa-ráveis? Se alguém tema percepção correta(e apurada) do passado, a sua história pode estar totalmente incorreta?A inal, Plumb escreve também que “a história não era, para Churchill,como a pintura, algo a que alguém se dedicava como distração ou tão-somente para levantar fundos para cobrir despesas colossais. A históriaachava-senoâmagodasuacrença.Permeavatudooqueeletocava,eraamola-mestra dos seus princípios políticos e o segredo da sua imensamestria... E arrisco-me a achar que somente um estadista imerso nahistória poderia ter incitado e fortalecido a nação como fez Churchillduranteaquelesanos.”ComoconcluiMauriceAshleysobreohistoricismodeChurchill:“Deve-sereconhecerqueeleprezavaosvereditosdahistóriaetinhaconsciência,emtudooquefaziaediziacomoprimeiro-ministro,deque os historiadores um dia o examinariam e avaliariam.” 23 Esses sãotributosapropriadosaChurchill,ofazedordehistória;aumestadistacujamente estava imersa na história. Existemhistórias ruins que são escritasde forma e icaz ou até bem escritas, mas não pode existir nenhumahistóriaboaquenãosejabemnarradaoubemescrita.A inal,sejaqualfora pesquisa, não há nenhum fato histórico cujo signi icado existaseparadamentedasuaexposição,daprópriafraseologia.

Churchill moldou o próprio estilo. Ele foi in luenciado por Gibbon eMacaulay,masnão lhes seguiuospassos.Emcadaumdos seus livroshá

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umaprofusão de passagens e frases impressionantes. Reproduzo apenasalgumas delas, que recolhi e rabisquei emdiversos pedaços de papel, aolongodequaseumavidadeleitura.EmLordeRandolphChurchill, sobreoswhigs: “O debate foi anunciado durante vários dias por muito rosnadoparlamentar.” Sobre alguns dos tóris: “os autoritários prosaicos queagastam os corações dos povos celtas”. EmMarlborough, sobre Carlos II:“Por mais que manobrasse, tergiversasse e simulasse, ele sempre sesubmetia, e sempre tencionava submeter-se, com presteza ao rosnadoprofundo de seus súditos e à autoridade das suas instituiçõesinexpugnáveis”.SobreJaimeII,em1686:“Não,elenãorejeitariasequeramassa tacanha e teimosa, que acorrera aos estandartesdeMonmouthnoOeste,ouoaguardaraemoutrolocal,cujacrençaeraaprópriaantítesedasuaecujospaishaviamcortadoacabeçadoseupai”.EmAcrisemundial,sobre1914:aAlemanha “retiniaobstinada, temeráriaedesastradamenteemdireçãoàcrateraearrastavatodosnósconsigo.”Esobre28dejulhode1914,quandoaPrimeiraFrotapartiadePortsmouthemdireçãoa ScapaFlow, pelo canal da Mancha: “dezenas de gigantescos castelos de açoseguindo seu caminho pelo mar enevoado e reluzente, como gigantescurvados em apreensivameditação”. Uma passagem imortal! Ou sobre oalmirantealemão,vonSpee,impedidodereabastecerouconsertarosseusnavios: “Ele era uma lor cortada em um vaso, bela de se ver, porémfadada a morrer — e morrer muito breve — se a água não fosserenovada”. Sobre um general que ordenou a retirada de Gallipoli: “Veio,viu e capitulou”. EmAs conseqüências, sobre a Rússia após a revoluçãobolchevique: “A Rússia icou congelada em um inverno inde inido dedoutrina subumana e tirania sobre-humana”. Em Uma história dos povosanglófonos,sobreoreiCarlos,isoladonocastelodeCaris-brooke,em1647:“Aqui,ondeumburromarcapassoemumaperpétuarodad'água,eleficoudurante quase um ano, indefeso, sacrossanto, um rei espiritual, uminstrumento cobiçado, umaparcela fascinante, um sacri ício supremo.” (Oburrinho triste e solitário, girando sem parar em torno da roda d'água,cativou a imaginação de Churchill. Ele deve ter achado que precisavainseri-lo na descrição. Essa não era a utilização de um conhecido clichêhistórico,nãoeracomoosgansosdoCapitólioouumreinoporumcavalo.SóconheçoumahistóriadeCarlosIIoudaguerracivilinglesaemqueesseburro foimencionado.) A iloso ia histórica de Churchill era evidente. Elenão só re letia profundamente sobre a história, com o queme re iro aosacontecimentosesuaevolução.Valeapenacitaroqueeleocasionalmenteescreveuoudissesobreanaturezamesmadoconhecimentohistórico,por

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muitasrazões,umadasquaisadehaverresisitidoàprovado tempo.EmLorde Randolph Churchill: “Di icilmente existe uma fonte mais abundantede erronahistóriadoqueodesejonatural dos autores—sem levar emcontaasuperposiçãoeainteraçãodelembranças,princípios,preconceitoseesperanças,eareaçãodecondições ísicas—dedescobrirou fornecerexplicações simples para os atos dos seus personagens.” Ou considere-seesta passagem acerca dos debates sobre a Autonomia— fazendo eco aBurke, que a irmou que não se pode e não se deve compreender oshomens totalmente separados de suas circunstâncias históricas: “Podesurgir uma geração na Inglaterra que contestará a orientação política[deles] ... tão pouco quanto nós contestamos a conveniência daEmancipação Católica e que estudará os registros das discussõesveementes de 1886 com o ar superior de um professor modernoexaminando as controvérsias da Igreja primitiva. Mas isso nãodemonstraráqueoshomensde1886eramincorretosoutolosnodiscursoe na ação.” (Bem, alguns deles eram...) Ou esta notável passagem da suaoração fúnebre para Chamberlain, em novembro de 1940: “Não éconcedido aos seres humanos, felizmente para eles, antever ou predizerem grande medida o desenrolar dos acontecimentos. ... [Mas] existe umnovo equilíbrio, existe outra escala de valores. A história, com a sualâmpadabruxuleante,andaaostropeçõespelatrilhadopassado,tentandoreconstituir-lhe as cenas, reviver-lhe os ecos e iluminar com raios tênuesas paixões de tempos antigos.” “O historiadormaismedíocre deve algo àverdade.”24“Churchill,ohistoriador”éumlivroaindaaserescrito.25

1J.H.Plumb,“TheHistorian”,inChurchillRevised:ACriticaiAssessment.NovaYork,1969,p.143.2 Robert Blake, “Winston Churchill as Historian”. Palestra em 1990 na Universidade do Texas.ReimpressoemW.RogerLouis(org.),AdventureswithBritannia:Personalities,PoliticsandCulture inBritain. Austin, 1995. Victor Feske,FromBelloc to Churchill: Private Scholars, Public Culture, and theCrisisofBritishLiberalism,1900-1939.ChapeiHill,1996.JohnRamsden,“'ThatWillDependonWhoWrites theHistory':Winston Churchill asHis OwnHistorian”. QueenMary andWest ield College,Londres,1996.DavidReynolds, “Churchill'sWritingofHistory:Appeasement,Autobiography, andThe gathe-ring storm”, inTransactions ofthe Royal Historical Society, série 6, vol.XI. Cam-bridge,2001,p.221-47.3 A excelente formulação de VerônicaWedgewood: “A história é uma arte, como todas as outrasciências.”CreioqueChurchillteriaconcordado.4RandolphChurchill,WinstonS.Churchill,1:327-8.5 Um exemplo é sua carta à esposa, enviada de Lourdes: “um monumento àbêtise humainé”. R.Churchill,WinstonS.Churchill,2:436.6SuavisitaaBelfast,apósseusviolentosdiscursosa favordeUlster, foisucedidaporumtumultoemquepelomenosvinteecincopessoas(namaioriacatólicas)forammortasecentenasferidas.7 Ele foi bem remunerado por esse livro. É interessante observar que o seu agente literário era

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FrankHarris,omesmoHarrisque,mais tarde, se tornou famosoporsuaautobiogra iacruamentesexual.8 Um exemplo assombroso. Em 1887, Joseph Chamberlain escreveu a lorde Randolph Churchilluma carta conciliatória que continha uma frase em latim: “Ira amantium redintegratio amoris”(tradução livre: o amor entre nós serámais forte após nossa desavença).Mais de quarenta anosdepois de ler e publicar essa carta (2: 347), Churchill usou amesma frase emumamensagemaFranklinRoosevelt,em1945.9MauriceAshley,ChurchillasHistorian.NovaYork,1968,p.4.10WinstonChurchill,Marlborough:HisLifeandTimes.2vols.Londres,1967.11MalcolmV.Hay,WinstonChurchillandjamesIIofEngland.Londres,1936,p.8,62.12Cf.oseuperfildeHitler,citadonocap.l.13VertambémRobinPrior,ChurchiWsWorldCrisisasHistory.Londres,1983.14Ramsden,“ThatWillDependonWhoWritestheHistory”,p.14.Ramsdenobservatambémqueemfevereirode1938Churchillassinouumacartadecon iança,assegurandoaChamberlainoseuapoio—aocontráriodaimpressãoqueoleitortemapartirdeAtempestadeemformação.15Plumb,“TheHistorian”,p.166.16 Falando de ummodo geral, os dois últimos volumes deUma história dos povos anglófonos sãomelhoresqueosdoisprimeiros.ChurchillnãoeraespecialmenteinteressadopelaIdadeMédia.17Ashley,ChurchillasHistorian,p.230-1.18Reynolds,“Churchill'sWritingofHistory”,p.247.19A.L.Rowse,TheEndofanEpoch:Re lectionsonContemporaryHistory.Londres,1947,p.282-3;E.H.Carr,WhatisHistory?NovaYork,1962,p.54.20Plumb,“TheHistorian”,p.142,155.21Arespeitodessameia-verdade,verJohnLukacs,AttheEndofanAge.NewHaven,2002,p.68-9.22RoyJenkins,Churchill.NovaYork,2001,p.3.23Plumb,“TheHistorian”,p.142,134,151,153,155,137,167;Ashley,ChurchillasHistorian,p.231.24Churchill(em1899!),citadoporAshley,ChurchillasHistorian,p.47.25FrederickWoods,ABibliographyoftheWorksofSirWinstonChurchill.Londres,1975,2aed.rev.Umabibliogra ia extensa, preparadaporRonald I. Cohen (Manotick,Ontário), deve serpublicadaembreve.Cf.tambémEricStainbaugh,WinstonChurchill:AReferenceGuide.Boston,1985.

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Seusfracassos.Seuscríticos

Churchill:Umestudosobreo fracasso,1900-1939 éo títulodeumaobradeRobertRhodesJames,escritaepublicadahámaisdetrintaanos.Éumdosmelhoreslivros(tendoaclassi icá-lopelomenosentreosseismelhores)arespeito de Churchill, dentre as muitas centenas que existem. É tristeregistrar que o autor morreu na lor da idade; ele poderia ter nosenriquecido com mais bons livros, talvez um outro sobre a vida deChurchillapós1939.Mas1odesetembrode1939(ou,omaistardar,10demaiode1940)assinalaaprincipalmudança.Antesdisso,oserros,enganose reveses de Churchill foram em número su iciente para que muitaspessoasresponsáveisdescon iassemdele—naverdadeosatribuíssemafalhas no seu caráter. Ainda assim, ele veio a ser o primeiro-ministro daGrã-Bretanha e, posteriormente, em seu momento de maior glória, osalvador da civilização ocidental. A curto prazo, a ascensão a primeiro-ministro poderia ter sido prevista naquela época, já que todas as suasadvertências acercadeHitler se tornara realidade.No imdas contas, deforma alguma isso seria previsível: foi uma espécie demilagre. Ou, paracitaromeuprovérbiopreferido:“Deusescrevecertoporlinhastortas.”

E tortas eram as linhas, devido aos seus vários reveses, muitossuscitados por ele mesmo. Churchill possuía uma menteextraordinariamente ágil, algo que pode ser um trunfo formidável— àsvezes—,masquetambémpode levaraconclusõesprematuras,paranãofalar nas reações previsíveis de pessoas destituídas dessa acuidade evivacidade mentais, reações que variam de reserva e cautela adescon iança e inveja. Neste breve livro e neste breve capítulo, só possorelacionar ou resumir os seus erros e fracassos. Alguns deles são bemconhecidos. Outros não. Bem conhecida é a sua transferência, inaudita eextremamenteforadocomum,deumdosgrandespartidosparlamentaresparaooutroe,depois,avoltaaoprimeiro.Ele iniciouacarreirapolíticaeparlamentar em 1900 como conservador, porém não era um partidário

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ferrenho, mas antes um rebelde; depois passou-se para os liberais, mastambémsedecepcionou comaquelepartido; apósvinte anos, voltouparajunto dos conservadores,mas era, de novo, um rebelde nas suas ileiras.Ele sabia o que isso signi icava. “Os conservadores nunca gostaram demim”, disse ele certa vez — mais precisamente, a maioria dosconservadoresnãogostava—e,de fato, sódepoisde julhode1940,elessecolocaram,demodomaisoumenosunânime,aseulado.

No entanto, políticos de destaque reconheceram com freqüência otalento desse dissidente, apesar de alguns dos episódios polêmicos epitorescos no início da sua carreira. Assim, ele foi nomeado ministro doInterior e, depois, em 1911, primeiro lorde do Almiran-tado. Devido àperspectiva de uma potencial guerra com a Alemanha, a ser travada emalto-mar entre frotas enormes, esse talvez fosse o cargo governamentalmais importanteantesdaguerra.Noentanto,opreparoeasexperiênciasdeChurchill haviam sidonoExército.Quando assumiuo cargo, ele poucosabiasobreaMarinha.Seudesempenhocomoministrofoicontroverso.Oshistoriadoresaindadebatemospróseoscontras,quaseumséculodepois.Seumaior feito foi a prontidão da Esquadra Nacional em julho de 1914,condiçãocujomérito lhedeviaseratribuído(eleprópriodeclarouque foiumadasrealizaçõesmais importantesdasuavida).Aomesmotempo,eleera insensato e impulsivo, muitas vezes com resultados desastrosos, ouquase. James cita um “discurso extremamente insensato que [Churchill]fezemLiverpool,em21desetembrode1914,emquedeclarouque,seamarinha alemã não se apresentasse para lutar, 'seria desentocada comoratos de um buraco'”. No dia seguinte, três cruzadores britânicos foramafundados, incidenteque levouoreiacomentarcomAsquith,oprimeiro-ministro, que “os ratos se apresentaram espontaneamente e à nossacusta”.1 Duas semanas depois, Churchill fez uma proclamação dramática:conduziriauma forçabritânicaatéAntuérpia,para livraresse importanteportodaocupaçãoalemã;senecessário,renunciariaaoministérioemtrocade tal comando. Ele não precisou demitir-se: obteve o comando, mas aexpediçãofracassou.

Chegamos então a Dardanelos. Logo no início da guerra, antes deoutros(inclusiveKitchener),Churchillpercebeuaperspectivadesoladora,na verdade horrenda, de uma guerra estática na frente ocidental, commassasdesoldadosatoladosentrelamaearamefarpado.Suamentefértil,reforçadapeloconhecimentodecasosdehistóriasanterioresdeiniciativasbritânicasnoMediterrâneo, levouà idéiadeumaforça-tarefaqueabrissecaminhopeloestreitodeDardanelos,chegasseaConstantinoplaemumou

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dois dias e, assim, eliminasse imediatamente da guerra a Turquia (quepareciaoaliadomaisfracodaAlemanha):umtriunfonotávelquetambémlevariaàaberturadeumavaliosasaídamarítimaatéaRússia,assimcomoà rápida aglutinação de uma frente balcânica de Estados, que ameaçaria,pelo sul, o império austríaco, principal aliado da Alemanha. No inal deoutubrode1914,ChurchillconduziralordeFisherdevoltaaoAlmirantado,como comandante supremo daMarinha. “Jacky” Fisher possuía traços degênio, inclusivemuitasvariedadesdepercepção, concedidosaalgunsdosmais ilustresalmirantes inglesesdesdeNelson.Estavaentãocommaisdesetentaanos,masasuaagilidademental(comexplosõesesporádicas)eraextraordinária. Ele e Churchill tinhammuito em comum. Um admirava avivacida-de da inteligência do outro. Mas Fisher julgou (e disse) que oplano deDardanelos era inconveniente por ser inexeqüível. Ainda assim,Churchill conseguiu levar o plano adiante. Fisher tinha razão. En-couraçados e outros navios de guerra foram afundados; o restante dasfrotas tevededarmeia-volta;aartilharianavalnãoconseguiudestruir (enãosedeviateresperadoqueoconseguisse)oscanhõesdasforti icaçõesem terra irme; a decisão subseqüente de desembarcar tropas econquistar a península de Gallipoli por terra se revelou em outracalamidade lamentável. Churchill estava errado — não só tática comotambém estrategicamente. O que sabemos sobre a capacidade e amobilidade dos alemães indica nitidamente que, mesmo se a investidaatravés de Dardanelos tivesse sido bem-sucedida, mesmo seConstantinopla e a Turquia tivessem sido afastadas da guerra, umconseqüenteavançopelosBálcãsnãoeraocaminhoparachegaràspartesvitaisdaAlemanha.2

Fisherdemitiu-seeChurchilltevedesair.Foioperíodomaisdesoladordesuacarreira.Anosdepois,aoescreverahistóriadaGrandeGuerra,elese defendeu sem amargura nem disposição vingativa, dando-nos aimpressão de que, com um pouquinho mais de sorte (e inteligência), osnaviospoderiamteratravessado:mas, comoeua irmei,ovalorde todooplanoeradiscutível.Entretanto,háumargumentodeChurchillem A crisemundial,raramenteobservado,queexigeatenção.NofinaldascentenasdepáginasdedicadasaDardanelos,eleescreveuqueo fracassoda tentativaali foi uma contribuição fatal à decepção dos russos com os aliadosocidentais,àsuarelutânciaemprosseguircomaguerra,àrevoluçãoeaocolapsoposterioresdaRússia.Umargumentoválidoeconvincente.(ExcetopelaconvicçãodeChurchilldequeaprometidaentregadeConstantinopla,umprêmioreluzenteaosrussos,valesseapena;equantotempo isso teria

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durado,emumaépocadenacionalismos?)Seja como for, essa perspectiva de Churchill sugere a ligação com o

fracasso seguinte na sua carreira, a sua insistência no combate aosbolcheviques, com pelo menos um parcial envolvimento britânico naguerra civil russa. Três anos, nomáximoquatro, apósDar-danelos, nós ovemos argumentando, contra Lloyd George, contra o governo, contra oscomandantes militares da Grã-Bretanha, contra a maioria da populaçãobritânica, tentando derrubar o regime bol-chevique na Rússia,principalmente(masnãoexclusivamente)equipando,armandoederestoajudandoosgeneraisbrancos,talvezsobretudoogeneralDenikin,lutandocontraosvermelhos,marchandodeumladoparaooutrodasRússias.EaíChurchill fracassou também, menos devido à incapacidade deimpressionaro governodoquedevidoàs fragilidades fataisdosprópriosbrancos. “Antuérpia, Dardanelos, Denikin”: Winston Churchill signi icavaencrenca,segundooseuinimigoSirHenryWilson,em1919.

Ele se recuperou. Sua carreira política não estava terminada. Ele foiincluídoemgabinetes:ministrodasMunições,ministrodaGuerraedoAr 3

naSecretariadeEstadoparaasColônias.Em1924,mudounovamentedepartido:teve,namelhordashipóteses,umaacolhidaindiferentenoPartidoConservador. Mas não era um rejeitado; havia líderes que achavam quetinham de levar em consideração as suas aptidões incomuns. Assim, em1925, coube-lhe outro alto cargo, o de ministro das Finanças. E ali semanifestououtrofracasso.Em1911,aoassumiradireçãodoAlmirantado,ele sabia muito pouco sobre assuntos navais; em 1925, ao assumir adireção da Fazenda, sabia ainda menos sobre economia e inanças. Aocontrário de 1911, quando se entusiasmou com a aprendizagem e ointeresse pela Marinha, em 1925 ele estava (e permaneceu) sementusiasmo e sem grande interesse pelas teorias e pelo jargão doseconomistas. Entretanto, o fracasso subseqüente não foi necessariamenteobra sua. Ao fazer a libra esterlina voltar ao padrão-ouro de antes daguerra, ele se iou em pareceres abalizados. Não foi devido ao seutratamento incompetente que a questão acabou malogrando. A não serentre determinados conservadores, a reputação de Churchill não sofreumuito devido a esse período. Ele seguiu adiante, impondo-se ao mundo,inclusive aos Estados Unidos, com cada vez mais palestras, jornalismo,elaboração e publicação das histórias da Primeira Guerra Mundial. Onúmerodeleitoreseragrande.Eeleeraaindaimperialista—numaépocaem que alguns ingleses conscientemente, e muitos outros menosconscientemente, se haviam cansado do Império, ou pelomenos do rigor

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das suas responsabilidades imperiais. O resultado foimais uma explosãopública, um grande protesto, um fracasso. Isso prosseguiu durante anos.Ele atacou a decisão dos governos (primeiro conservador, depoistrabalhista,depoisnacional)deconcederostatusdeDomínioàÍndia.Seusdiscursos, declarações e artigos soavammuitas vezes radicais (aindaquesuas profecias não devessem ser descartadas tão facilmente). Taispronunciamentos são bem conhecidos pelos historiadores, não hánecessidade(nemespaço)deilustrá-loscomexcertos.Devo,porém,citarocomentário sucinto deRobertRhodes James: “Quando as pessoas hoje seperguntampor queChurchill não foi levado a sério por tantos políticos ejornalistasentão,devemser lembradasas suas [irresponsáveis]atuações[daquelaépoca].Oquepodeserperdoadoemumpolíticojovemquebuscatornar-se conhecido e atrair atenção — embora irresponsavelmente —não é facilmente perdoado a um ex-ministro de gabinetemais velho, emumassuntodetãorelevanteimportância.” 4Elehaviapassadodossessentaanos,entraranasétimadécadadasuavida,quandooprojetodeleisobreaÍndiafoien imaprovadoem1935.Eradesdenhadopeloprópriopartido,excluídodopensamentodemuitos,uma iguratalvezinteressanteporémàparte,namelhordashipóteses.

Ele era um reacionário,mais do que um conservador, namargem doespectro da política britânica. Durante quase seis anos foi agitado pelacontrovérsia acerca da Índia. Por volta de 1930, porém, outra questão oabsorvia: uma desilusão com a democracia liberal e parlamentar, com assuas instituições corrosivas, comas suasperspectivas.Umexemplodisso,apenas um, foi o respeito e a admiração por Mussolini, com quem seencontrouem1927.“Umhomemrealmentenotável”,a irmoueleem1935,elogiando-oaindaem1937,emboraumanodepoismudassedeidéiaaseurespeito. Chur-chill tinha um certo apreço por governantes autoritários,queeracomoconsideravaMussolini:umenérgicorestauradorda leiedaordem, que reprimia o perigo do comunismo e governava dentro doslimites da civilização, preservando-lhe as liberdades. Ele não estavainteiramente equivocado ao perceber a diferença entre autoritarismo etirania totalitária (emboraMussolinipossa ter sidooprimeiro autilizar apalavratotalitário, de forma positiva, já em 1926). Outro exemplo: em1931,aocolaborarcomoprefácioparaumlivrointitulado Ditadura,deumaustríaco (Otto Forst de Batta-glia), Churchill escreveu que, emdeterminadas circunstâncias, um regime ditatorial poderia ser oportuno,mas claro que não para a Grã-Bretanha. Nas suas memórias,esplendidamenteescritas,Meusprimeirosanos,em1930elereexaminoua

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cena política em 1900. “Devo explicar que, naqueles tempos tranqüilos,tínhamos uma verdadeira democracia política conduzida por umahierarquiadeestadistas,enãoumamassa luidaaturdidapelos jornais. ...Tudo isso foi antes de a liquefação do sistema político britânico se haverestabelecido.”Nessemesmoano,emsuaconferênciaRomanes,emOxford(mastambémemoutrasocasiões),elecontestouoprincípioeapráticadosufrágio universal. “A democracia mostrou-se indiferente acerca dessasmesmas instituições pelas quais a sua situação política foi alcançada. Elaparecedisposta a entregar osdireitospalpáveis duramente conquistadosem séculos di íceis a organizações partidárias, a ligas e sociedades, achefes militares ou a ditaduras sob diversas formas.” Sobre o sufrágiouniversal, ele escreveu em 1932: “Por que neste momento devemosimpingir às raças incultas da Índia esse mesmo sistema, cujasinconveniências são agora sentidas mesmo nas nações mais altamentedesenvolvidas, nosEstadosUnidos, naAlemanha, na França e na própriaInglaterra?”5

Churchill manifestamente dava prioridade ao fascismo sobre ocomunismo.Eleinclusivea irmounoParlamento,jáem1937:“Não ingireique, se tivesse de escolher entre o comunismo e o nazismo, escolheria ocomunismo.”Issonãodevesermalinterpretado.Creioqueeleconsideravao comunismo uma mentira e o nacional-socialismo uma meia-verdade esabia(comosouberam ilósofostãodiferentescomosãoTomásdeAquinoeLaRouchefoucauld)queumameia-verdadeémaisperigosaporsermaisatraente do que uma mentira. E que na mesma época, 1937, ele via oTerceiroReichdeHitlersendo(erapidamentesetornando)maisperigosodoqueaUniãoSoviética.Mas,pelomenosnaopiniãodesteautor,devemosreconhecer-lhe também algo mais. Ele, na extrema direita dosconservadores,teriadispostodeamplasrazõesparasimpatizarcomHitler.A “democracia tóri”,queopai eeleapoiaram, tinhaa inal algumascoisasemcomumcomaconformidadeentrenacionalismoesocialismoqueHitlerapoiavaequepareciaserumdesenvolvimentouniversal,sebemquesobdiferentes formas, na década de 1930. De um lado a outro domundo, emesmo na Grã-Bretanha, muitos conservadores de direita e tambémmuitos trabalhistas de direita (considere-se somente Mosley) não sódecidiram dar aHitler um crédito de con iança como chegaram perto desimpatizar com a sua causa. Churchill não decidiu assim—devido à suavisãoedevidoaoseucaráter.

Eleeratambémumhomemquepodiamudardeopinião,comomudava,enãoporoportunismo.Elequehaviacontestadoosufrágiouniversal(até

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1935 achava que talvez devesse ser limitado ou dobrado para chefes defamília) tornou-se, durante a guerra, o defensor e porta-voz mundial dademocracia parlamentar. (Assim como mudou de opinião sobre aautonomia irlandesaeovoto femininodécadasantes.Nabiogra iadopai,eleocitou:“Umamenteinalteráveléalgoadmirável—algoqueeuesperoardentemente jamais possuir.”) Até 1935 ele falava sobre “essas loresmur-chas do liberalismo vitoriano”. 6 Mas ele tinha então outra grandepreocupação:aascensãodaAlemanha.Parafraseandosuaspalavrassobreo que ocorrera subitamente em julho de 1914: as nuvens de poeira ebrumasletárgicasdaÍndiadesvaneceram-seeumaluzestranhacomeçouimediatamente, e com gradações perceptíveis, a incidir e se intensi icarsobreomapadaEuropa.Eleestavapraticamentesozinhonesseenfoque;amaioriadosseuscontemporâneosnãoviaassim.Sabemosdissoagora.Mastambémsabemosqueeleestavaenganadonosnúmerosexageradossobreosarmamentosalemães,sobretudodaforçaaéreaalemã.Ele,queforaumdefensorprecoceemuitosensatodaguerracomtanquesem1917,estavatambémenganadosobreaperspectivapróximadeofensivasmotorizadasblindadas. Estava igualmente enganado sobre a vulnerabilidade, pelo ar,dosnaviosdeguerra.Entretanto,essesnãoforamosmotivosporquenãoconseguiu impressionar o Parlamento naquela época, inclusive osmembrosque,emboranãoconcordassemnecessariamentecomele,muitasvezesseinteressavam,oupelomenossedivertiamcomasuaretórica.Nosanosde1934a1938,elesoconsideraramrepetitivo.Estavacomeçandoaentediá-los. Então, a essas falhas acrescentou-se, substancial, a defesaobstinada de Eduardo VIII durante a crise da abdicação em 1936. Comoescreve A.J.P. Taylor: “Ele cometeu todas as inconveniências possíveisduranteacrise.” 7Emcertaocasião, izeram-nocalaraosgritosnaCâmaradosComuns.ComoescreveGeoffreyBest:“Foioepisódiomaishumilhanteem sua carreira parlamentar.” Em janeiro de 1938, ele atacou o TratadoIrlandês,emboraestefossebastantemoderado.Chegamosassimaoanode1938, que foi talvez o nadir da sua carreira política, ao passo que foi omelhoranodeHitler.ChurchilleraentãomanifestamenteoadversáriodeNeville Chamberlain (que já em 1925 expressara sua antipatia porChurchill).Os temperamentosde ambos erammuito diferentes. Em1938também o eram as orientações políticas de ambos e o rumo queprocuravamestabelecerparaanação.AGrã-Bretanhanãodeviaenvolver-se em uma guerra européia a im de combater Hitler, pensava (e dizia)Chamberlain, enquanto Churchill dizia: se preciso for, temos que ir. Emretrospecto, Churchill parece ter acertado. No seu retrospecto, ele

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escreveueinsistiuaesserespeitodezanosdepois,noprimeirovolumedahistóriadaSegundaGuerraMundial.Noentanto,eleestavaerrado—pelomenosemumsentido,aindaquenãooadmitisse.Emumcapítuloanterior,sustentei que, ao contrário da sua convicção em 1938 e também de suareconstituiçãoapósaguerra,existempoucossinaisenenhummotivoparacrerqueaRússiadeStálinteria icadoaoladodasdemocraciasocidentais,em um apoio militar à Tchecoslováquia em outubro de 1938. Maisimportante—embora talvez tambémmaisdiscutível—éaconsideração,baseadaemfortesindícios,deque,setivesseocorridoumaguerrarápidapor causa da Tchecoslováquia em 1938, Hitler a teria vencido, porque aFrançaeaGrã-Bretanha—osexércitosassimcomoaopiniãopúblicadeambas—,aindamenospreparadosdoqueestariamumanodepois,teriamtendido ou sido forçados a aceitar fatos consumados. Sim: o ataque deChurchillao“arranjo”deMuniqueeaogovernodeChamberlainfoiumdosseus discursos mais notáveis. No entanto, embora ele estivessemoralmentecerto,podetambémterestadoerradonaprática.

Tudoissofoiredimidoem1940.Isso nós sabemos — ou devíamos saber. Ainda assim, devemos

reconhecer — ou, pelo menos, relacionar — seus fracassos durante aguerra,comoquemere iroamovimentosmilitaresouidéiasestratégicasquesedeviamprincipalmenteàsuainsistência.Houveo lúgubrefracassodacampanhanorueguesaem1940,quefoiemgrandeparteresultadodoseuplanejamento(porém,maisumavez, linhastortasacabamcertas—odesastre na Noruega o levou ao cargo de primeiro-ministro). Outrosexemplos de decisões equivocadas incluíram Dakar, o desastre dos doisencouraçados no mar da Malásia, Cingapura, Anzio. É claro que não érazoável nem possível atribuir todos esses fracassos à liderança deChurchill na guerra— ou seja, ao seu planejamento. A própria execuçãodessasaçõesfoimuitasvezesfalha.Restaoutraquestãomaisampla.Vimosque até meados de 1943 ele conseguia impressionar e in luenciar osamericanosacercadaestratégiatotalnaEuropa.Aindaconseguiufazê-losconcordar, pelomenos até certo ponto, com sua estratégia periférica, deinvestir, após a liberação da África do Norte, pelo que ele chamou de “otenroladoinferior”daEuropa,atravésdoMediterrâneo.Sim,eraumtenroladoinferior—mas,depoisdaSicíliaedeNápoles,oavançodosexércitosanglo-americanos se tornou, com freqüência, um rastejardesesperadamentevagarosoparacima.E,depoisdosApeninos,viriamosAlpes e seus defensores alemães, de soberba competência. Háhistoriadoresmilitaresqueescreveramquetodaacampanhaitalianapode

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tersidodesnecessária;eoutrosqueagrandeinvasãodaEuropaocidentalpoderia e deveria ter sido desfechada em 1943, não em 1944, comresultados imprevisíveis, também pondo im à guerra mais cedo. Issonuncasaberemos.

O que sabemos é que, perto do im da guerra, Churchill estava comfreqüência(masnãosempre)cansado;quefoiacometidopordoençasem1943 e 1944, embora nada que o incapacitasse, como foi o caso deRoosevelt. Houve algumas ocasiões— embora houvesse muitas ocasiõesopostas — em que a sua vivacidade mental foi uma compensaçãoinsu icienteparaafaltadopreparoprévio.FoiesseoseucomportamentoduranteaconferênciadePotsdam.Houve,porém,algomais importante:ofracasso em convencer os americanos, em impor-lhes a sua vontade, em1944-45assimcomoem1952-54,comojávimos. Issotinhamuitarelaçãocomumatendênciaqueàsvezesagiuaseufavor,masàsvezesnão.Eraatendência de um homem que cultuava a palavra escrita. Churchillen ileirava, organizava, arrolava e expressava os seus argumentos deforma clara e abrangente, em seguida os enviava com uma sensação dealívio,comoseentãotudoestivesseditoefeito:mas,emboraescritoeditosempre estivesse, às vezes não estava feito. Em1940 (“AçãoNesteDia”),isso muitas vezes funcionou; em 1944-45 e depois, muitas vezes nãofuncionou. O fracasso em convencer os americanos foi talvez o únicograndefracassonosanosmaisavançadosdeumalongacarreira.

Houve fracassos na carreira de Churchill que di icilmente poderiamhaver sido evitados. Houve outros pelos quais ele foi responsável.Chegamosaqui aumaperguntadebiógrafo—que,porém,nãopode serpostade lado, como seo trabalhodeumbiógrafo fosseuma coisa e odeumhistoriador,outra.Quaiseramosdefeitosdoseucaráter?A inal,éissoqueosbiógrafosatribuemaseusbiografados.Entretanto,este livronãoéuma análise biográ ica ou psíquica, mas um ensaio histórico.Conseqüentemente, o grande divisor de águas de 1940 tem de novoimportância.Tantoshomensemulheresnãooapreciavamnemcon iavamnele antes daquele ano! Meio livro talvez não seja su iciente pararelacioná-laseassuascondenaçõesaChurchill.Elasseacumularam—deforma bastante compreensível — desde o início da sua carreira. TheSpectator,em1911,porocasiãodasuanomeaçãocomoministro:“Elenãopossuialealdade,adignidade,aconstânciaeobomsensoqueconstituemumchefee icientedeumapastaimportante.”TheNationalReviewchamou-odecharlatão, falastrão,manipuladorpolítico.Atépessoasquederestooapreciavam, por exemplo A.G. Gardner, diretor do The Daily News, em

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1908:“Àcuriosidadeinsaciáveleaoentusiasmodeumacriança,eleuneafranqueza da criança. Ele não tem reservas nem falsidades. Demonstraaqueledesdémpeladissimulaçãoque é própriodeuma casta quenuncaduvida de si mesma.” Uma apreciação imparcial. Porém maisrepresentativa talvez tenhasidoadarainhaAlexandra,apósDardanelos:“Tudo por culpa daquele estúpido e imprudente Winston Churchill.”Imprudenteelepodetersido;estúpido,não.AapreciaçãodoinimigoBonarLaw,em1917,foirepetidapormuitosoutrosaolongodavidadeChurchill:“Achoqueeletemumaaptidãointelectualmuitoincomum,masaomesmotempo parece ter uma mente totalmente desequilibrada.” (Vinte e trêsanos depois, podemos encontrar expressões quase idênticas, palavra porpalavra,nodiárioeemcartasdeHalifax.)Apetulância,aimpetuosidade,aretórica (a linguagemmais do que a forma de discursar: ao contrário daopinião aceita, ele não era um orador nato; sua pronúncia apresentavaimperfeições; ele sabia disso, tanto que com freqüência ensaiava osdiscursos),asmudançasdepartidoedeposições,ojornalismo,“seueternofracoporpessoasvulgares”. 8Essascríticasnãodesapareceramderepentequando,emmaiode1940,elesetornouprimeiro-ministro.Masaconteceualgo que, de certo modo, havia sido predito por uma moça de quem elegostara na juventude: “Na primeira vez em que você se encontra comWins-ton, vê todos os seus defeitos, e o resto da vida você passadescobrindoasvirtudesdele.”AssimfoicomapopulaçãodaGrã-Bretanha(inclusive não poucos dos seus antigos adversários e críticos) em1940 edepois.

Naturalmenteocaráterdeumhomemnãomudamuito(seéquechegaa mudar), decerto não depois do seu sexagésimo quinto ano de vida. Aimpetuosidade e a rapidez de raciocínio continuaram a prevalecer. Issodesconcertava alguns dos conselheiros militares que achavam e diziamqueChurchilltinhaidéiasdemais,amaioriainviável—umcríticotípicofoilordeAlanbrooke,comotestemunhodosseusdiversosdiáriospublicados.Mas eles eramminoria: de ummodo geral, a reputação de Churchill, umreconhecimento do seu papel histórico, após 1940 tem sido enorme. Noentanto, houve — e há — exceções: pessoas que eram indiferentes oudesinteressadas por sua carreira antes de 1940, mas que manifestaramdesagrado com a sua liderança, sua retórica ou mesmo toda a suaperspectiva da guerra. Tais foramhistoriadoresmilitares como o generalJ.F.C. Fuller; 9 escritores e personalidades públicas como Evelyn Waugh,Malcolm Muggeridge e Alan Clark; historiadores como David Reynolds eSheila Lawlor (pelo menos até certo ponto); John Charmley (a cuja obra

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devo voltar); entre republicanos direitistas e populistas americanos,iguras como Patrick Buchanan, cujos argumentos e frases acerca deChurchill revelam, de vez em quando, algo como um arraigado desprezo(tal como em todas as obras de David Irving). Duas questões acham-seaqui latentes. Uma — a secundária — é o esperável, e até previsível,desenvolvimento de perspectivas históricas. A inal, já estamos no séculoXXI,maisdesessentaanosapós1940equasemeioséculoapósamortedeChurchill. A avaliação geral e com freqüência quase universal dedeterminados homens e acontecimentos é revista e corrigida, às vezesdevido à descoberta de novos documentos e de provas, masprincipalmentedevidoaperspectivasmutáveis—apósessasegundafase,podeseguir-seoutra,maisumavezcomligeirasdiferenças.Masahistória—onossoconhecimentoecompreensãorelativosaela—nãoécomoumpêndulo. Não é mecânica nem automática: não balança de volta,certamente não para onde estava. Nós estamos, pelo menos na minhaopinião, vivendo numa época em que uma outra questãomaior deve serconsiderada, alguns sinais da qual, conscientemente ou não, podem serdetectados nos textos de determinados historiadores, como também nasdeclaraçõesdealgumaspersonalidadespúblicas.Diretaouindiretamente,todosdizem respeito ao lugardeChurchill nahistória daGrã-Bretanha etambémnahistóriadoséculoXXemgeral.

AquestãoéasituaçãodaGrã-Bretanha—eoseudestino—entreosEstadosUnidoseaAlemanha.EscrevianteriormentequeosdirigentesdaGrã-Bretanha izeram a escolha decisiva de se aliarem com a antigainimigaFrança,em1904,comoconhecimentopréviodequeessaescolhafora facilitada por saberem que a inimizade americana para com a Grã-Bretanha não mais existia. Essa percepção estava de acordo com asconvicçõesdeChurchill. Vimosquehouvemomentos emque ele esperoupoucodosamericanoseemquelhesfezmuitascríticas.Comocorrerdosacontecimentos,porém,issonãoimportavamuitoe,em1940,aalternativaerabemde inidaeclara:adependênciacrescentedosEstadosUnidos(eaeventual cessãode pelomenos parte do Império) era conveniente, talvezaté inevitável;umacordocomaAlemanha(mesmocomapreservaçãodoImpério),dejeitonenhum.Poucaspessoas,seguramentenaGrã-Bretanha,tiveramdúvidasquantoa essaescolha;poucos têmdúvidasagora.VimosqueChurchill tevedi iculdades comos americanosmas, poroutro lado, asuapropostaenfáticadeumrelacionamentoespecialentreaGrã-Bretanhae os Estados Unidos permaneceu circulando, aceita por uma diversidadede líderes britânicos e americanos, não importa o quanto as aplicações

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efetivas tenham sido (e sejam) super iciais. Ultimamente, porém, vêmsurgindoalgunssinaisdereexame.OhistoriadorNiallFergussonescreveu,como vimos, que a Grã-Bretanha pode ter errado ao entrar na PrimeiraGuerraMundial,queumaEuropamaisoumenosunida,emgrandepartesobaliderançaalemã,poderiatersidoaceitáveleatépropíciaparaaGrã-Bretanhaemúltimaanálise.JohnCharmleychegouapontodea irmarque,mesmo durante a Segunda Guerra Mundial, Churchill devia terconsiderado um acordo com Hitler. Muitas vezes não é di ícil detectartendênciasdeanti-americanismosob tais argumentos.No iníciodo séculoXXI, o seu surgimento pode ser signi icativo, embora não importante —ainda. Eles estão grandemente ofuscados pelo debate britânico de umdilemadiferente:unir-seounãoà“Europa”.Aindaassim,épossívelquenoséculoXXI,aocontráriodoséculoXX,aGrã-BretanhaeosEstadosUnidospossam estar tomando rumos diferentes. As pessoas inteligentes devem,mais cedo ou mais tarde, considerar uma associação britânica política emilitar(maisdoqueeconômicaeburocrática)maisestreitacomaEuropa,inclusive a Alemanha, assim como um declínio da dependência britânicaparacomosEstadosUnidos.

No entanto, a admiração por Churchill dentre os americanos é, pelomenos enquanto escrevo, talvez mais forte e mais geral do que emqualquer período anterior. Na Alemanha, não. Muitos historiadoresalemães sériosda SegundaGuerraMundial têmatribuído aChurchill umódio in lexível e resoluto à Alemanha, uma obsessão de derrotá-la edestruí-la, a qualquer custo.10 Ecos de tal imagem de Churchill têma lorado,devezemquando,mesmoemrespeitáveisjornaisalemães,comooFrankfurterAllgemeine.JörgHaider,virtualchancelerdaÁustria,chamouChurchillde“criminosodeguerra”emumdosseusdiscursosrecentes—presumivelmente pensando no maciço bombardeio britânico de cidadesalemãs durante a guerra (mas não no fato de que Churchill contribuírafundamentalmenteem1943paraconvencertantoRooseveltquantoStálina declarar a independência da Áustria como um dos seus objetivos deguerra conjuntos). Naturalmente, houve muitos casos em que Churchillemitiu opiniões ríspidas e preconizou operações militares contra aAlemanha. Ele estava igualmente errado em, muitas vezes, atribuir aagressividadeebrutalidadealemãsaoprussianismo,11 desconsiderandooelemento peculiarmente bávaro (e austro-germânico) no nacional-socialismo e em Hitler. Talvez o exemplo mais questionável das suastendências germanófobas tenha sido a falta de interesse, na verdade omenosprezo, pelos conspiradores alemães—muitos deles aristocratas e

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prussianos—que,emjulhode1944, tentarammatarHitlerederrubaroseu regime criminoso. (Pelo menos um fator importante nas reações deChurchill naquela época foi a preocupação de que os alemães— e haviaum acúmulo de indícios de tais intenções naquele período— tentassemseparar e semear dis-sensões entre os anglo-americanos e os russos.)Entretanto, não foi oportunismo nem interesse, mas a sua generosidadenatural, que o levou a mudar de opinião (e sentimento) acerca daAlemanhalogoapós1918eimediatamenteapósmaiode1945.Alémdisso,comoeleescreveunoiníciodadécadade1930:“Sempreseguiadoutrinade que a reparação do ressentimento justi icado dos derrotados devepreceder o desarmamento dos vencedores. Pouco se fez para reparar osressentimentos dos Tratados de Versalhes e Trianon.” Em 1945 KonradAdenauer, o futuro chanceler da Alemanha no pós-guerra, teriasupostamente dito a respeito de Churchill: “um inimigo dos alemães”,porém três anos depois: “um homem de visão”. Ainda assim, muitosalemães não chegaram, mesmo agora, a um acordo sobre o lugar deChurchill na história, como tambémmuitos deles (embora em diferentesaspectos)aindanãochegaramaumacordosobreodeHitler.

No primeiro capítulo deste livrinho, escrevi sobre as característicasvisionáriasdeChurchill,masoseugrandeadversárioHitlertampoucoeradestituído de previdência. Em 6 de novembro de 1938, ele discursou:“Naturalmente não posso impedir a possibilidade de que esse cavalheiroentreparaogoverno[britânico]dentrodealgunsanos[oqueaconteceu],mas posso assegurar-lhes que eu o impedirei de destruir a Alemanha [oque não aconteceu].” Ele desprezava Churchill, classi icando-o comfreqüênciacomoumbêbado,tendoatrásdesi“osjudeus”.ÉevidentequeChurchill não era abstêmio nem semitófobo. Mas ele compreendia Hitlermelhor do que este o compreendia, o que Hitler poderia ou não poderiafazer. Juntamente com as qualidades da liderança e da coragem, foi porisso que Churchill não perdeu a guerra em 1940. Seis anos depois, em1946,eleteverazãodenovoaoadvertirdacortinadeferrodaRússia.12

“Seus fracassos. Seus críticos.” Perto do inal deste capítulo, devoempreenderumaanálise críticadaobradeumhistoriadorbritânico cujoobjetivotemsidoreveraopiniãoaceitasobreChurchillesobreaSegundaGuerraMundial.Churchill:o imdaglória.Umabiogra iapolítica (1993),deJohnCharmley,foiprototípico,poisamaioriadosseustextossubseqüentesrepetiuatesedessaobraextensa:Churchillpossuíatalentos,masosseusdefeitos eram enormes, o que levou ao im não só do Império britânicocomodopoderbritânico.EntraremguerracomaAlemanhadeHitlerem

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1939foierrado;comofoierradaarecusaem irmarapazcomHitlerem1940e,denovo,em1941,quandoHitleratacouaRússia;aaliançacomaRússia durante a guerra foi errada; e o pior engano foi “o rastejamentoextremamente servil” de Churchill “em direção aos americanos”, que ele“pode ter encarado como uma rami icação dos povos anglófonos, maseram, de fato, estrangeiros que antipatiza-vam com o Império britânicoaindamaisdoqueHitler”.RoosevelteraumacombinaçãodeUriahHeepeMaquiavel,“umaconsideráveldescon iançadetodasascoisasbritânicas...fazia parte da bagagem mental de qualquer partidário genuíno do NewDeal”. “Um fato puro e simples: a política do primeiro-ministro em 1940havia, efetivamente, fracassado.Longede resguardara independênciadaGrã-Bretanha,elaahipotecaraaosEstadosUnidos.”

Bem,abagagemmentaldospartidáriosdoNewDeal,inclusiveaajudaamericana à Grã-Bretanha contra a Alemanha de Hitler, continhamuitosmotivoseobjetivos,masodehipotecaraGrã-Bretanhanãoeraumdeles.Masa inala interpretaçãodorelacionamentodeChurchillcomosEstadosUnidosfeitaporCharmleyresultadasuainterpretaçãodetodaaSegundaGuerra Mundial. Segundo Charmley, Churchill estava errado ao a irmarque“permitirqueaAlemanhadominasseaEuropaécontrárioàtotalidadedanossa história”. Churchill era um fomentador de guerra, ao passo queChamberlain tinha razão: “Chamberlain estava planejando para o futuro,Churchill para o Armagedom.” “A Grã-Bretanha entrara na guerra em1939 em um espasmo de indignação farisaica, convencida de que, comoumaGrandePotência, era seudeverderrotaraAlemanhanazista.”TantoantesquantodepoisdaquedadaFrançaeantesdabatalhadaInglaterra,“aos olhos de muitas pessoas sensatas, havia chegado o momento de sepensarembuscarumacordocomHitler”.QuandoHitler invadiuaRússia,houve outra suprema “oportunidade que Churchill deixou escapar”.Conseqüentemente,Churchill“ajudouasuscitaroespectrodeumaameaçaqueeraaindamaiordoqueaqueelehaviaeliminado”.DeixandodeladoaquestãodeumarranjodepazcomumHitlervitoriososerdealgummodopossível, quantomais conveniente ou duradouro, Charmley não percebe,ou não deseja perceber, o que Churchill percebeu no início da guerra (equeeucoloqueiempalavrasanteriormente):ou todaaEuropadominadapela Alemanha, ou a parte oriental da Europa dominada pela Rússia; emetadedaEuropaeramelhordoquenada.OconhecimentodeCharmleysobreaSegundaGuerraMundialéfalhoelimitado.

Istome leva à segunda de iciência de Charmley: o caráter seletivo daargumentação e do material.13 O livro é apenas parcialmente “uma

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biogra ia política”, como declara o subtítulo. Charmley gasta longoscapítulosepáginasarespeitodapsiquedeChurchill.“OautodidatismodeChurchill ... não proporcionou nenhum treinamento para aprender apensar, a confrontar argumentos e a avaliar as próprias idéias emcomparação com as dos outros.” Ele se caracterizava pelo “egoísmo eingenuidade”. “Tal egoísmo é comum nas crianças, mas em geral sedissipou com o tempo ao se chegar à idade adulta.” “A verdade erainconveniente para a sua versão da história.” “Ele sempre tendia a setornar escravo das próprias idéias e presumir que proferir uma fraseinteligente era resolver um problema.” “Teatral como era, andandopomposamente pelos locais de bombardeios com olhares ferozes etaurinos de desa io, ummaciço charuto irmemente cravado na boca, eletornou-se o mítico 'Good oleWinnie'.” (Ninguém jamais o chamou de oleWinnie.) Etc. etc. Isto não é o revisionismo próprio de um historiador; éumadifamaçãofeitaporumpanfleteiro.

InquietantetemsidoaacolhidadolivrodeCharmleyentredefensoresdo Terceiro Reich na Alemanha, Áustria, Hungria e em outros locais. Opesado tomo impressionou alguns pelo mero tamanho e “bagagemerudita”. Serviu de pedreira que muitas pessoas detestáveis pudessemcavar para os seus propósitos especiais. Recebeu críticas, mas não sededicouatençãosu icienteaosdetalhes,inclusivemuitoserrosefetivos,namaioriaresultantesdasalegaçõesespeciaisdeCharmley.Issomeconduzàterceira de iciência de Charmley: o emprego das fontes. As indicaçõesestão latentes nosmuitosmilhares de notas— cinqüenta e umapáginas,emtipomuitomiúdo.Ali,muitasvezessorrateiramente,eleinsereataquesahistoriadoresdequemdiscorda,aomesmotempoemqueelogiaaquelescomquemconcorda.MartinGilbert,obiógrafoo icialdeChurchill,“publicaapenasexcertos[deumdocumento]quecorroboramasuatese”. (Ri-seoroto do esfarrapado!) Ao americano Kimball, cujos comentários sobre acorrespondência entre Churchill e Roosevelt incluem inúmeros erros,Charmleyconfereoepíte-tode“Homero”—masa inalainterpretaçãodorelacionamento entre Churchill e Roosevelt feita por Kimball comfreqüência se harmoniza com a de Charmley. Uma indicação maisdeplorável do uso das fontes por Charmley se acha na não raradependência em relação a David Irving. (Ele cita Irving muitas vezes,principalmentenasnotas,mas Irving é omitidono índice.) Comoopai deChurchill, que era “ inanciado pelos amigos judeus”, Winston era“certamente inanciado por judeus ricos” e bancado por um “sionistaardoroso”. Tudo isso Charmley pegou em Irving. “Assim, foi Churchill a

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'ajudaalugada' [palavrasde IrvingusadasporCharmley]paraumgrupode pressão judeu que, considerando os interesses judeus superiores aosdo Império britânico, estava decidido a envolver esse Império em umaguerra,embene íciopróprio?”Eleembuteemumanotadepédepágina:“O sr. Irving é citado somente quando as suas fontes foram veri icadas eparecemfidedignas....Esteautoradmiraaaplicação,aenergiaeacoragemdosr.Irving,aindaquedivirjadassuasconclusões.”AdiferençaentreJohnCharmleyeDavid Irvingpodeserumadiferençadegrau; talveznãosejasuficienteparaumadiferençaemqualidade.

Churchill possuía defeitos. Tolerava bajuladores e oportunistasacorriam para o seu lado quando isso parecia conveniente. Sua maiorvirtude era a magnanimidade. “O que passou passou”, dizia ele,repetidamente. Ele perdoou muitos, muito e com facilidade. Comfreqüência se comoviaatéas lágrimas,dasquaisnão seenvergonhava.Ailhaescreveu-lheem1965: “Naordemnaturaldascoisas,di icilmenteosseus descendentes devem herdar o seu gênio — mas eu esperosinceramentequeelespossamcompartilhardealgummodoasqualidadesdoseucoração.”14

1RobertRhodesJames,Churchill:AStudyinFailure,1900-1939.NovaYork,1970,p.66.2ComtodoorespeitodevidoaFisher,grandepartedissoaplicava-seaoseuplanoaudacioso,àsuaalternativaaDardanelosassimcomoao impasseemFlandresenaFrança.FisherpropôsenviaraEsquadra Nacional para águas alemãs, bloqueando o canal de Kiel, em seguida contornando aDinamarca até oBáltico, desembarcandonas praias planas daPomerânia, amenos de 145kmdeBerlim,colocandoemterra irmesoldadosbritânicosemaisdecemmilsoldadosrussos.Umplanoprovavelmentefadadoafracassar,exatamentecomofoiodesembarquebritâniconaHolandacomtropasbritânicaserussas,em1799.3 Durante 1919e 1921, Churchill reduziu drasticamente os então ambiciosos planos do Estado-MaiordaAeronáuticaempelomenos80%.(Talvezsejainteressanteobservarqueseupai,derestoumnacionalistarazoavelmentemilitante,tentarareduzirasverbasdoExércitoedaMarinhavinteecincoanosantes,quandoeraministrodasFinanças,oque levouàsuademissãodogabinetedeSalisbury.)4James,Churchill,p.234.5CitadoporRobertRhodesJamesem“ThePolitian”,in ChurchillRevised:ACriticaiAssessment.NovaYork,1969,p.l13-4.6LordeRandolphChurchill.Londres,1906,1:341.7A.J.P.Taylor,EnglishHistory:1914-1945.Oxford,1965,p.404.8Umpontoimportante.VerRoyJenkins,Churchill.NovaYork,2001,p.299.9 Deve-se observar que esse homem competente havia sido partidário de Oswald Mosley e umrespeitoso admirador da Alemanha de Hitler até setembro de 1939. Winston Churchill nãocompreendia a Alemanha e a cultura alemã em geral, quanto mais o nacional-socialismo emparticular. ... Talvez ele fosse guiado, pelomenos emparte, por suas ambiçõespessoais não sódeescrever a história como de moldá-la.... Embora a glória da Grã-Bretanha e de Churchill tenhaterminadoem1945,osmitos sobreChurchill e suaépocaperdurarãoemummundomuitomais

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em desordem do que a Grã-Bretanha parece haver estado na sua 'hora mais gloriosa'”. Em“Churchill and Hitler, 1940: Peace or War?”, artigo de Bernd in R.A.C. Parker (org.), WinstonChurchill: Studies in States-manship. Londres, 1995, p.96. Observe-se que: cada uma das frasescitadas é altamentequestionável; em todoo artigo,Bernd se ia emCharmley; istonão foi escritoporumhistoriadordedireitaalemão!10 Exemplos. Andreas Hillgruber: as propostas de Hitler à Grã-Bretanha foram “feitas a sério” e“subjetivamente,honestas”,inHitlersStrategie (1965,p.144,n.l),mastambémemoutrasobrasdeHillgruber—odesejodeChurchill eradestruir aPrússia e aAlemanha.OhistoriadornavalKarlKlee: Churchill “não previu que a [sua] política só levaria à substituição de uma Alemanha fortepelopoderesmagadordaRússia”.OhistoriadordiplomáticoMartinBernd:“OverdadeiromotivodeChurchillparasededicarà lutacontraHitlereaAlemanha,bemcomooseuobjetivopolítico inal,aindaécontroverso.11AaversãodeChurchillao“prussianismo”surgiuduranteeapóssuavisitaaBerlim,em1909.12Naquelemomento, tantoChurchillquantoGeorgeKennanexpressaramopiniõesquenãoeramdemodoalgumpopularesouaceitas.Kennanjulgavanecessárioenfatizarosperigosdocomunismoagressivo e expansivo; Churchill, os perigos de uma divisão rigidamente cristalizada da Europa.Pouco depois, o próprio Kennan desiludiu-se com a ideologização e militarização de sucessivosgovernos americanos. (É agradável registrar que, no momento em que escrevo, a reputação deambospermanecealta.)13 O general Mackesy foi um comandante britânico excessivamente cauteloso na desastrosacampanha da Noruega (pela qual Churchill foi pelo menos em parte responsável), em 1940.ChurchillcriticouMackesy(emduasfrases)nassuasMemóriasdeGuerra.Piers, ilhodeMackesyehistoriador, foi o primeiro orientador universitário de Charmley, “quem pela primeira vez memostrouoqueumhistoriadorpoderiaser”.Em O imdaglóriahácincopáginasedezreferênciasàdiscussãodeChurchillcomaquelegeneralincompetente;aopassoquehásomenteumaúnicafrasesobreopactoentreHitlereStálin,em1939,eumaoutrafrasesobreafugaparaaInglaterra,em1941,deRudolfHess(queeraauxiliardeHitler)nesse livroemqueumadastesesprincipaiséapotencialidadedapazcomHitlernaépoca.Umaproporçãomuitopeculiarparaumhistoriador.14CitadoemMartinGilbert,WinstonS.Churchill.Boston,1988,8:1365.

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Duasbiografiasrecentes

No primeiro ano do século XXI, foram publicadas duas biogra iassigni icativas deChurchill. Elas sãodiferentes; as inspirações dos autorespara escrevê-las foramdiferentes.Mas talvez esse seja omotivo por queelas são signi icativas. Por que esse interesse contínuo por Churchill? Oque atrai um político democrata liberal (antes trabalhista), ou umhistoriador pro issional cujos livros precedentes foram dedicados àhistóriabritânicaemséculosanteriores?

Churchill, de Roy Jenkins, é essencialmente uma biogra ia política.1Churchill: Um estudo sobre a grandeza, de Geoffrey Best, é um estudo decaráter. Jenkins havia escrito uma volumosa biogra ia de Gladstone.QuandocomeçouChurchill,escreveelenofinal,

eu pensava que Gladstone era, por uma estreita margem, o homem mais importante, semdúvidaoespécimemaisnotáveldahumanidade.Enquantoescreviaestelivro,mudeideopinião.Agora considero Churchill— com todas as suas idiossincrasias, complacências, infan-tilidadesocasionais,mas também com seu gênio, tenacidade e persistente capacidade, certo ou errado,bem-sucedidooumalogrado,desermaiordoqueavida—comooserhumanomaisimportantequejáocupouDowningStreet,10.2(912)

“Um estudo sobre a grandeza” é o subtítulo do excelente livro de Best.Contudo,oqueégrandeza?Quetipodegrandeza?

Logonocomeçodolivro,Jenkinsestimaonúmerodosqueescreveramsobre Churchill como “algo entre cinqüenta e cem” (IX). Em 2001, umbibliotecárioinformou-meque,“emumsentidoamplo,ouseja,nãoapenasbiogra ias,mastambémobrasdehistória, icção, literaturajuvenileobrasquepodemsersobreelesmastambémsobreoutrosindivíduos”,oslivrossobreChurchillnosEstadosUnidosmontavama283;noCanadá,206;naGrã-Bretanha,652;naBibliotecadoCongresso,736.Emcadaumadessasestatísticas (inclusive na Grã-Bretanha), os livros sobre Hitler são maisnumerosos do que os sobre Churchill, freqüentemente na proporção dedois para um; o mesmo se dá com livros sobre Roosevelt (exceto no

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CanadáenaGrã-Bretanha);comexceçãodaBibliotecadoCongresso,Stálinicaemquartolugar,atrásdeChurchill.Háumsingularsoproderealidadenessas estatísticas computadorizadas e de resto inexpressivas. Se nãofosseHitler, na história da Grã-Bretanha (sem falar domundo) Churchillteria sido uma igura talvez interessante, mas sem dúvida secundária, enóspodemospresumirqueRoyJenkinsnãooteriaescolhidoparatemadeuma biogra iamonumental, como izera comGladstone e Asquith. Se nãofosseHitler...Durantemuitotempo,amaioriadaspessoasestevepropensaaacharque,naturalmente,Churchill foicorajosoeresolutoem1940,masa inalHitlerestavafadadoaperderaguerra.Queelenãoestavafadadoaperdê-la,queem1940e1941elechegoumuitopertodevencê-la,tem-setornado aos poucos evidente para mais pessoas do que algunshistoriadoresmilitares especialistas. Churchill tinha profunda consciênciadisso—oqueexplicagrandepartedasuaestratégia,inclusiveaconstanteereceosaadmiraçãopelacapacidadecombativadosalemães.

Veri ica-se uma tendência recente a descrever Churchill comocomplicado e esquivo. Complicado ele pode ter sido, mas esquivo? Deformaalguma.Hitler,Roosevelt,StálinerammuitomaisreservadosdoqueChurchill, que “soltava” muitas das suas idéias e con-jeturas maisprofundas para os auxiliares, na verdade para quem mais estivesseouvindo. Como expressa Jenkins: “A vida de Churchill era singularmentedestituídadeinibiçãoesigilo”(xi).Issofoi,éedecertocontinuaaserumavantagemparaseusbiógrafos.

Noprefácio,Jenkinsescreve:“Possopelomenosreivindicarseroúnicooctogenário que se aventurou a escrever sobre Churchill.” Seu livro éexcessivamente longo, mas não há muita coisa envelhecida oudesconjuntada no texto. O ouvido de Jenkins não revela nenhuma dasde iciências auditivas da velhice; ele sabe perfeitamente a quem prestaratenção e, depois, a quem citar e quando. (Churchill, cerca de 1907:“Recuso-mea icartrancadoemumcentrodedistribuiçãodesopaparaospobres com a sra. Sidney Webb” [108]. 3) Jenkins tem algumas frasesmemoráveis de sua autoria (por exemplo, a decisão de Churchill deafundar os navios de guerra franceses em Oran: “Praticamente ninguémmaismexeria emnaviosdemarimbondos,preferindoesperarvagamentepelomelhor”[624].)

À frase do prefácio antesmencionada, Jenkins acrescenta: “Creio queposso também reivindicar ter acumulado a mais vasta experiênciaparlamentar eministerial entre seus biógrafos.” Sim,mas isto é de certaforma problemático. No início da carreira, Churchill, segundo Jenkins,

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“revelavalevessinaisdeincontinênciaparlamentar”(74).Háindicaçõesdeincontinência literárianesse livro. Jenkinsexibedemaisseuconhecimentode história parlamentar; citações em excesso de Gladstone e Asquith;comparações em excesso de aritmética eleitoral; há longas páginas quetratam não de Churchill, mas do Partido Conservador; há informaçõesdemais sobre o relacionamento de Churchill com seu agente literário,Revés(ecomasra.Revés).Hátambémumasurpreendenteintromissãodeamericanismos recentes, assim como expressões francesas, comfreqüênciadesnecessáriaseàsvezesgrafadaserradamente.

Isso não importa muito. O livro poderia ter sido enxugado, mas seuméritoprincipaléumacompreensãodacomplexidadedeChurchill—não,esquivamento não! (Sobre os seus pais: “É extraordinário que o ilho dedois libertinos tão inveterados tenha feito um dos casamentos maisfamososdahistóriapeladuraçãoe idelidade”[136].)Emtodoserhumanoexiste uma dualidade, mas uma apreciação equilibrada disso é talvez amelhor indicaçãodo talentodeumbiógrafo. Jenkins entende isso. Eis umexcelenteexemplodecomoeletrataoqueétalvez adualidadenocaráterdeChurchill: o hedonista e o guerreiro. Emdezembrode 1944Churchill,abatidoeexausto,decidiuabrirmãodeumNatalsossegadocomafamíliaevoouparaumcenáriofrioesombrionaGrécia.Essefoi,paraJenkins,

otriunfododeversobreoprazereisso,apesardoseusgostoscomo-distas,erapartedopadrãoda sua vida. Sempre que os dois entravam em con lito frontal, se a questão fosse de fatoimportante, ele sempre cedia ao lado do dever. E isso, como uma série de explicações óbvias,contémumagrandepartedaverdade,masnãoasuatotalidade.Odeversempreteveumaliadoextremamentepoderososoba formadoseudesejodeestarnocentrodosacontecimentos,dasuapreferênciapeloperigoaotédio,peloriscoàinércia.(771)

Isso é muito adequado. Jenkins também conhece as limitações de algunsdoscríticoscontemporâneosdeChurchill.Naquelediamaisdramático,18de junhode 1940, dia igualmente de umdosmais importantes discursosdeChurchill,JenkinscitaoacrimoniosoAlecCadogan:“Winstonnãoestálá—estavaescrevendooseudiscurso.”“ElebempoderiaterreclamadoqueLincoln não se dedicou a algum assunto secundário da Casa Branca namanhãdoDiscursodeGettysburg”(621).Eletambémtemrazãoarespeitodos diários de Alanbrooke: “A exasperação de Brooke com Churchill,emboracombinadacomrespeitosubjacente,àsvezesseconjugavacomasua aspereza natural para tornar os seus comentários sobre o primeiro-ministroexcessivamenteseveros”(734-5).

Jenkins conheceuChurchill, durantedécadasesteveenvolvidonavidapolíticabritânica.Best,atualmenteprofessoraposentadodeOxford,nunca

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seencontroucomChurchill—anãosermentalmente,masissofeztodaadiferençadomundo.Quandoeramuito jovem,Best admiravaChurchill e,quase meio século depois, decidiu escrever uma biogra ia do veneradoídolo. No entanto, o seu livro não é uma hagiogra ia,mas uma realizaçãoluminosa.Ele leuere letiu. “E,durantetodosessesanos,nãopudedeixardemedarcontadeque[Churchill]éumapersonalidademaiscomplexae,em alguns aspectos, mais contraditória do que, lá no princípio, eu teriaimaginadopossível”(x).Churchillcertavezdisse:“Eunãoteria feitonadase não houvesse cometido erros.” De forma pertinente, este é o lema dolivro de Best: talvez a melhor biogra ia em um volume — e nãoexcessivamentelonga—deChurchill.

É muito bem escrita, abrangente e caracteriza-se pela simplicidade esegurança do autor — uma combinação atraente e incomum dequalidades. “Julguei conveniente adotar as apreciações de outros autoresquando eles expressaramas coisasmelhor do que eu poderia fazê-lo ou,dealgumamaneira,expressaram-nasprimeiro. ...Comrelaçãoaosmuitosaspectos da vida de Churchill que se tornaram temas de persistentecontrovérsia, porém, tive a satisfação de chegar às minhas própriasconclusões”(xi).UmdospontosporeleenfatizadoséqueChurchillfoiumlíder de guerra democrático, que respeitava o Gabinete de Guerra e aCâmaradosComuns.

Há pelo menos duas qualidades incomuns noChurchill de Best. Umadelaséoseu interessepeloChurchillprivadoepelasuavida familiar,deque trata extensamente. Eis, por exemplo, uma excelente descrição deChurchillnofinaldadécadade1920:

Em termos pessoais, ele estava então com cinqüenta e tantos anos e ganhara uma aparênciamais impressionante do que quando eramais jovem. O corpo era um tantomais volumoso, acabeçabastantegrandeecalvasobreocorpoeramenosdesproporcionaldoqueoutrorahaviasido; o rosto eramais gordo, transmitindo prontamente a expressão rechonchuda emaliciosaquefavoreciaaimpressãodequeeleerasemprebem-humoradoeamávelparacomtodos.Narealidade,elenemsempreeraamávelparacomtodos.(142)

BestdáumaênfasevaliosaeimportanteàpessoadeClementineChurchille ao que ela signi icou para o marido. Com freqüência ela foi umain luência estabilizadora durante a vida de Churchill. Foi um casamentoextraordinário. Houve problemasmomentâneos, às vezesmagistralmenteresumidos por Best: “Churchill apreciou imensamente o período noAlmirantado. (Quanto Clementine o apreciou é um outro assunto)” (43).MasoamordeChurchillpelaesposaperdurou,embora“fosseprofundoedesinteressado desde o princípio ... demonstrado aos integrantes

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materialistas e banais da sociedade eduardina pelo casamento com umajovemrelativamentepobre”.(Bestcita,dentreoutros,BeatriceWebb,que,mirabile dictu, escreveu no seu diário em 1908 haver almoçado “comWinstonC.easuanoiva—umadamaencantadora,bem-educadaebonita,além disso séria, mas não rica, de forma alguma um bom partido, o quehonraWinston”)(29).

A outra qualidade, talvez incomum, do estudo de caráter de Bestprovémdoconhecimentodeliteraturadesseeruditoprofessor(comojáseevidenciara no seu excelenteA Grã-Bretanha em meados do períodovitoriano, 1971). Ele compreende como as palavras e expressões de umromancista,oudeumpoeta,podemenriquecerumanarrativahistórica—comoescreveucertavezAlfredDuffCooper,“oolharpenetrantedogêniopodediscernirmuitodoquepermaneceesquivoàspesquisaspacientesdeum historiador”. As pesquisas e leituras de Geoffrey Best foram semdúvidapacientes,mas ele tambémpossuía o olhar—e o ouvido—paradescobrir e responder às palavras penetrantes do gênio. Assim nanarração evocativa do funeral de Churchill, que ele conclui com umareminiscênciaqueeudeixaraescaparnasminhaslembrançascomqueseencerraráestelivro.“Paraosmilhõescujoelocomofuneraltinhadeseratelevisão,omomentomaisinesquecívelfoiprovavelmente(comoporcertofoiparamim)osgrandesguindastesaolongodamargemsuldotrechodorioentreaPontedaTorreeaPontedeLondres,abaixandoosmastrosemreverência enquanto a lancha passava, 'como gigantes curvados emapreensiva meditação'” (327).“Como gigantes curvados em apreensivameditação”! Essas foram as palavras de Churchill ao descrever o gravedeslocamentodosgrandesnaviosdaPrimeiraFrotapelocanaldaMancha,em28dejulhode1914.ElasdevemterproduzidoumacentelhanoolhardeBestnaquelaescuratardedejaneiroem1965;devemtersoadoemseuouvidoquandoeleestavapousandoacaneta,aoconcluiro livro.Elesabiareconhecerumapassagemimortal.

1RoyJenkins,Churchill.Londres,2001;GeoffreyBest,Churchill:AStudyinGreatness.Londres,2001.2Endereçodaresidênciaoficialdoprimeiro-ministroinglês,emLondres.(N.T.)3 Beatrice (1858-1943) e Sidney Webb (1859-1947), economistas ingleses integrantes daSociedadeFabianaedoisdospioneirosdomovimentosocialistabritânico,cujasidéiasinspirariamapolítica inanceiraesocialdosliberaisprogressistase,emúltimainstância,osurgimentodoPartidoTrabalhista.(N.T.)

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OfuneraldeChurchill

Churchill morreu em 24 de janeiro de 1965 (exatamente setenta anosdepois do pai, que morrera em 1895). Eu era professor-visitante naUniversidadedeToulouse,naFrança.FuisubitamenteimpelidoavoaratéLondres, para o funeral de Churchill. Minha esposa não teve permissãoparavoar,masleveimeu ilho,entãocomoitoanos,paraquetivesseasuarecordação de um importante acontecimento histórico. Eis o meu relato,muitopessoaletalvezexcessivamentesentimental,dosnossostrêsdiasemLondres.

29dejaneiroSexta-feira

É uma Londresmuito parada, um diamonótono. Nenhuma impressão demultidões, nenhum alvoroço, nenhuma sensação de algo importante eformal.Mesmonoaeroportonãohámuitaspessoas;éumdiadechegadainvernal;osreiseprimeiros-ministrossãoconduzidosporchoferes,rápidae silenciosamente; é pequena aquela correria de capas impermeáveis esolasdeborrachaem tornodeles, de fotógrafosdesalinhados e comsuascâmeras gulosas pendentes. Os ingleses sabemmuito bem como tirar decena as pessoas importantes, de forma rápida e e iciente. Ainda assim, émuitodiferentedaatmosferadecoroaçõesemjunhoemesmodeexéquiasreais.

Esse ônibus cinza do aeroporto, pelos subúrbios a oeste da grandecidade. Éuma longa emonótona chegada, por entre o que, não fazmuitotempo, eram ileirasde casas sólidas e respeitáveis,masqueapresentamalgumasdasmarcasexterioresdedecadênciasocial.Nãohámuitotráfegonessafortemisturadeneveechuva.Passamospelosenormesedi íciosdealumínio, retos e impassíveis, erguidos pelas irmas de construção,

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indistinguíveis dos edi ícios americanos. Em seguida, de forma bastanteinesperada,pertodo imdanovarodoviadeconcreto, ileirasdeedi íciosdetijolomarrom,ummardecasasinglesasvitorianas,depoisdacinzentaedesolada nebulosidade continental da auto-estrada. As luzes brilhamamarelasagora,emmeioaonevoeiro,àsonzehorasdamanhã.Eemtodaparteoque,paraumescritor,deveserumadascoisasmaisevocativasdetodas:asinscriçõesdeLondres.Asplacasderuaseosnomesdaslojas,asparadasdeônibuseos letreirospúblicos,amaiorianaquele játradicionale muito inglês sem-serifa moderno que Eric Gill criou, suponho que em1928,paraosistemadetransportesdeLondresequefoi,defato,umadaspoucasrealizaçõesadmiráveisdoespíritocriativo inglêsentreasguerras.De todos os países que eu conheço, a Inglaterra tem osmais admiráveisletreirospúblicos.

Aprincípio,écuriosoqueassimseja,paraumpovoquenãoéretóriconem intelectual. Pensando bem, talvez não seja tão surpreendente. Essepovo,comtodasassuas tradiçõesdoAntigoTestamento,nãoérealmenteum povo farisaico: ao respeito pela Lei se mescla um traço profundo doamor pela Palavra. É por isso que “Pér ida Albião” é, na realidade, umaexpressãoequivocada;éporissoqueessaéanaçãodeShakespeare;éporisso que esse povo compreendeu Churchill quando ele precisava sercompreendido,naquelemomentodramáticodasualongaexistência.

Mashámuitopoucossinaisdofuneralagora,menosdevinteequatrohorasantesdoseuinício.

Asbandeirasestãoameiopau,naturalmente.Masnãohátantasassim.Meio-dia. Saímos do hotel, sem saber ao certo para onde seguiremos

agora.Ainda cai neve com chuva e está cinzento. O Hyde Park estende-se,

verde, molhado e vazio. O tráfego na rua principal diminuiu a umaintensidade de tarde de domingo; muitos táxis vazios e só os ônibusvermelhos passam, arrastando-se sem estrondo, muito semelhantes asolteironasinglesasdeclassemédiaquechegaramàmaturidadenaépocado rei Eduardo, com um porte de rainha Alexandra, e agora comfreqüênciaoscobradoressãomoçaserapazesnegros.

Caminhamos com certa hesitação para leste, contra o vento. É entãoque se notam as muitas e diferentes bandeiras nacionais, a meio pau,hasteadas nos edi ícios. Esse trecho, há cinqüenta anos as casas eapartamentos de uma rica classemédia alta, durante o curto período de

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Peter Pan Kensington, aloja agora muitos consulados; os pavilhões demuitosnovosedesconhecidospaísesafricanoseaestrelavermelhadeTitooscilandoaovento.(EletambémdevemuitoaChurchill.)

Há também algo mais. Algo que se destaca, amenamente, das casasbrancasdeKensington,comosseusinterioresfluorescenteseburocráticosagora em mau estado. Esse algo acha-se acima dos pensamentosimportunos e desagradáveis sobre o que os James Barries e a inevitávelreaçãocontraeles—Bloomsbury,umpoucodepois— izeramaoespíritodaInglaterra.Oedi ícioqueagoraalojaalegaçãoholandesa.Éumedi íciode apartamentos grande e vermelho, construído no estilo rainha Ana,segundo suponho, por volta de 1910; as empenas curvas e brancas dotelhado têm uma in luência holandesa, embora isso seja certamente porcoincidência. Recuada da calçada, atrás de um muro baixo e de umpequenopátiocomcascalho,essacasapermanececomoumgrandenavioestável, ancorado para sempre. As paredes de tijolo têm um matiz deverme-lhão;aexemplodetodasascores,essaimpressãoéinseparáveldaassociação que a acompanha, a de pequenos cômodos no interior,silenciosos e avermelhados, com mobília escura e confortável e guarda-fogosdelareiradelatão.Acimadaentrada,comotimbreostentandooselodosReaisPaísesBaixos,ondulaabandeiraburguesadaHolanda,comsuasfaixashorizontaisvermelha,brancaeazul,ameiopau,deluto.

Ela icaapoucascentenasdemetrosdeHydeParkGate,outracasadetijolos vermelhos, aindamais inglesa, ondeWinston Chur-chill morreu. Eagora, pela primeira vez, sou dominado pela espécie de emoção que secompõedememóriahistóricaeassociaçãopessoal.EssacasadeLondres,alegação holandesa e Churchill — são, todos os três, um monumento dedecência, mesclados agora na minha mente e diante dos meus olhos.Grandeza, tolerância, solidez e decência — isso é o que elesrepresentavam. Casas como essa escoraram o agora tão periclitanteedi ício demil anos de civilização européia, durante a sua última grandefaseprotestante,noroesteeburguesa.Holandae Inglaterra.MarlborougheChurchill;Holanda,aprimeiraInglaterra;Inglaterra,asegundaHolanda;cômodosmarrons aquecidos e rainhaAna eduardina; nações de famílias,governadas por famílias reais, pelos decentes e despretensiosos. Osholandeses sentem a morte de Churchill, eles compreendem como eletentousalvarumdeterminadotipodecivilização.

Dacasadalegaçãoholandesa,seguimosagoraparaWestmins-terHall.

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O táxi roda junto a uma ila sem im. Damos com ela de repente, emMillbank,estendendo-sedesdeoNewPalaceYardedeWestminsterHall;asmilhares de pessoas permanecem em ordem e sérias, encolhidas pelofrio, arrastando os pés devagar, rente às grades de ferro, seguindo porMillbank;depoisafilasevoltaparadentro,atravessandoopequenojardimplano entre a rua e a extremidade leste deWestminster e amargem dorio;depoiselasevoltaparatrásdenovo,umpoucomaisespalhada,porémlonga, muito longa. Percorre todo o caminho até a Ponte Lambeth. Issolevaráhoras.Meu ilhodeoitoanosestáusandomeiasdealgodão.Aindaassim,vamosver.Comumafriasensaçãodevazionoestômago,pagootáxinaPonteLambethecáestamos,nafila.

Éuma ila aceitável porque está andando.O vento estáhorrivelmentefrio, soprando da super ície cinzenta do Tâmisa, mas não há aquelasensaçãodedesesperançadaimpaciênciademocrática,comonasvezesemqueseprecisa icarparadoeesperar,e icarparadoeesperar,duranteoque dá a impressão de minutos in indáveis sem explicação. Estouespantadocomadistânciaqueavançamosemquinzeminutos,comoa ilajá se encomprida atrás de nós. E é uma ila aceitável porque é uma ilainglesa, disciplinada e afável, sem acotovelamento. Após quinze minutos,seiquechegaremosao im.Atrásdenós,umgrupodemeninasdecolégio,com cachecóis inacreditavelmente longos, estão brincando e de vez emquando soltando risinhos, mas seja como for isso não parece deslocadoaqui: uma gravidade carrancuda e constrangida pareceria deslocada.Ficamos parados e caminhamos, e icamos parados e caminhamos,rodeadosporumadiversidadedepessoas,namaioriadaclasseoperária,talvez faxineiras. Devem saber que nós não somos ingleses. Paul quercontar-lhes que voamos de Toulouse para o funeral, mas eu consigodissuadi-lo.Nósnãosomosingleses.Vimporcausadaminhaconvicçãoderespeito e do meu sentimento de gratidão: sugerir que nos admirassemcomprometeriaaconvicçãoeosentimento.

Posteriormente os jornais escreveram que a multidão identi icou-secom o espírito da década de 1940, que houve uma grande ondademocrática de ingleses, com homens de chapéu-coco e mulhereselegantes que icaram na ila com a gente dos bairros pobres e osestivadores.Talvez.Eunãotenhoconhecimentodisso.Podetersidoassim,nos frios ins de tarde e à noite, nos bares e casas de chá atrás deWestminster,ondeos fragmentosenregeladosdamultidão iamrecuperarasforçascomumacanecaquentedequalquercoisa.Amaneiracomovejoessa ilaéadegrupospálidosdepessoasdiferentes,umacolchacomprida

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e multicor, composta de retalhos de multiforme humanidade: alunas,operários,homensdenegóciosemulheresdaclassemédiaconservadora,empertigadas e com agasalhos baratos, alguns estrangeiros aqui e ali,inclusivealgunsrostosmorenos,paquistanesesoumalaiossorridentes.Porum momento, sinto uma leve irritação: o queeles estão fazendo aqui?Meros curiosos,querendoestarpresentesàs cerimôniasdoGrandeGuruImperial?Maslogodescartoaidéia,porqueémesquinhaeinsensata:nestevento frio, emmeio aeste jardim gelado, durante tantas horas, é errado,absolutamente errado, questionar motivos. Os trabalhadores. Jácompletamos a primeira volta na ila e as pessoas estão conversando. Asfaxineiras. (Mas elas são faxineiras?) Com velhos casacos de tweedesverdeado, cachecóis de lã marrom, os óculos pequenos pousados nasmaçãsdosrostospálidos,osdentesestragados,asbocas inas. “Euestavaaquiem1940.”“LáestavaacatedraldesãoPaulocomtodaaCityardendoem volta.” Mas essas são lembranças-padrão que foram repetidas semparar,presumivelmentenosjornaisdurantetodaestasemana.Quantodaslembranças é verdade? Quanto é uma mistura de associações? Nãoimporta. O que importa é que elas vieram, nesse frio, embora não sejacerimônia nem coroação, cemmil trabalhadores da Inglaterra, com a suaafabilidade e os rostos nodosos, movidos mais por um sentimento aindavivo do que pela memória — até o esquife de um homem que não osconduziu a uma grande vitória, mas que os salvou da pior das derrotaspossíveis,docolapsodoamor-próprioinglês.

Agora as suas casas são aquecidas, as televisões funcionam e elesvivem melhor do que antes... Melhor — bem, de certa forma. E elespercebem também a maleabilidade transitória desse conforto, os velhostrabalhadoresdavelhaInglaterra,osintegrantescansadosdaraçadailhamesmo nessa era do avião; ainda integrantes, não fragmentos; egoístasmascomamor-próprio;destituídosdeimaginaçãomasbelos.Belos.Umdia,quando as últimas porções da beleza verde da Inglaterra houveremdesaparecido ou estiveremmeticulosamentemuradas pelos planejadoresou antiquários, essa antiga beleza verde ainda existirá. Penso que é overdefundodecobredoscoraçõesdostrabalhadoresdaInglaterra.

Masaclassemédia tambémestáaqui.Eomeucoraçãoseenternececomela.

Re iro-meàclassemédiaenãoaosmembrosmaiselegantesdaclassemédia alta. Re iro-me aos homens com casacos inos, mulheres de faces

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ossudas e olhos azuis que já viveram mais tempo do que viverão,aprumados e cansados; não me re iro aos ilhos de Saki, os homens emulheres do antigo mundo de Evelyn Waugh e do mundo tedioso deAnthonyPowell.Nãoprecisodescrevê-los.Re iro-meàspessoasqueforamoutroraaespinhadorsaldaInglaterra.

Éalgoestranho:maseles, osdefensoresdoPartidoConservadoredoantigoEspíritoImperialedoPaísCertoouErrado,nãoforamaquelesparaquem Churchill signi icou mais. Como todos os verdadeiros grandesseigneurs, Churchill estava mais próximo da aristocracia e também dasclassesbaixasdapopulação.Das classesbaixasnãoporque tivesse emsimuito do demagogo vulgar (mundano ele podia ser, mas raramentevulgar), mas porque as classes baixas às vezes o compreendiamintuitivamente,mesmonostermosdele,noníveldele.(Emumcinejornal,vicertavezumrápidogestodeChurchillquenãoconsigoesquecer.EleestápassandopelasruínasdeumaruadaáreamaispobredeLondres,depoisde umdos bombardeios. Pessoas, inclusive umamulher, como cabelo aovento, comoo espírito de umaBoadicea proletária, corremdas ruínas nasua direção, reúnem-se à sua volta, enquanto ele avança em meio aoentulho,decartola,sobretudoebengala,fumandocomoseuincomparávelsorriso.Quandoumadelasseaproximacorrendo,elelhebatedelevenascostas com o braço esquerdo, com um gesto de “Pronto, pronto! Pronto,pronto!”. É um gesto corriqueiro, displicente, condescendente e amigável.Porummomento,percebe-seaquelesentimentodecon iançaesegurançaquesódeterminadosavôsconseguemproporcionar.)

Foinessaépoca—outubrode1940?—queogelocinzentonorostodaclasse média derreteu o bastante para revelar uma faceta racial do seuverdadeiro eu. Ele infundiu uma espécie de sentido ao longo declíniodessas pessoas, de Kensington a Kensington. Elas não eram o bando degente carrancuda que se saiu bem na primeira guerra; mas era,encaremos o fato, o povo de Baldwin e de Cham-berlain, persistente edestituído de imaginação, comum tipo estreito de patriotismo que já nãobastava. Na década de 1930, não era tão-somente uma roda de escassospolíticos germanó ilos que descon iava de Churchill, era a outroranumerosaclassemédiadaInglaterraque,intuitivamente,descon iavadele.Eram as pessoas que tinhamuma con iança natural nos Chamberlains. Abelicosidade, a retórica, o talento, a franco ilia e os americanismos deChurchill—essaseramascoisasaqueelasseesquivavam,constrangida,persistente e timidamente. Então, em 1940, tudo isso passou como umrelâmpago.Mesmoentãoelasnãoocompreendiamtotalmente;masnesse

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país do bom senso isso era então irrelevante e é ainda irrelevante. Pois,após a guerra, foi essa classemédia reduzida, esgotada e dolorosamentevivida que continuou a acreditar em algumas das mais antigas virtudespatrióticas,adespeitodequãoobsoletaselaspareciamter icado.Lentaeintuitivamente, “pelos ossos” — os seus ossos aquecidos por essesentimentoduranteosanosdegélidaausteridadedodeclíniobritânico—,as suas mentes receberam Churchill, com a sua prosa e através dasMemóriasdeGuerra.

Oh, esta tímida raça de homens emulheres, como eles são diferentesdas classes médias das outras nações, dos burgueses do continenteeuropeu! Eles são tímidos porque são afáveis. Afabilida-de não é aindagenerosidade,assimcomoimparcialidadenãoéinteiramentehonestidade.Mas ainda é domeio dos seus ilhos que um dia pode apresentar-se uminglês zangado e generoso, em uma outra importante hora sombria dacivilização,umanjovingadorquelembreChurchill.

Agora, na suamorte, a pompa signi icamenos para essas pessoas doque para os outros; não são o poder e a ostentação, as bandeiras e asbandasqueas impressionam,maselas, talvezpelaprimeiravez, têmumacompreensãoíntimadamagnanimidadedessehomemagoramorto.Agora,na morte, ele lhes pertence talvez ainda mais do que a qualquer outrapessoanaInglaterra.Agora 1940 está próximo: os furgões dos voluntários. Afastamo-nos doTâmisa; estamos na ila avançando devagar em direção aMill-bank. Trêsvelhos fugões azuis de um serviço de voluntários estão estacionados nogramado e algumasmulheres baixas e velhas nos saúdam com copos depapel, oferecendo chá preto e extrato de carne. Dois dos furgõesapresentam estas inscrições em tinta branca esmaecida: “Londres 1940-44.Coventry1940.Bristol1941.”Agora1940estápróximoeoruídosurdodalongafilapareceterdiminuído.

Talvez seja apropriadoo fatodeadelegaçãoamericananesse funeralde Churchill, devido a alguma espécie de complicação e confusão deWashington,serapagadaedesegundaclasse.Éapropriadoporque1940nãotemgrandesigni icadoparaosamericanos.Éumanocrítico,umadatahistórica, uma associação intensa e pungente para a Grã-Bretanha e aEuropa, não para os Estados Unidos. Havia, é claro, o americanismoromântico de Churchill, a ajuda extremamente necessária que Rooseveltdecidiu oferecer-lhe na época, a simpatia, o interesse, a boa vontade quemilhões de americanos tiveram para com o esforço da Grã-Bretanha noinaldaqueleverão.Mas1940eraaindaoaugedaguerraeuropéia,antes

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que os Estados Unidos, a Rússia e o Japão entrassem em cena; era agrande e opressiva crise da civilização da Europa mais que “Ocidente”(palavra ressuscitada às pressas e colocada em circulação só após 1945)ou, como tal, dasNaçõesUnidas.Hitler,Mussolini, Stálin, os japoneses, osoportunistas,assimcomoosinimigosdosjudeus,osanglófobosdasclassesmédiasbaixas,osuntuososfuncionáriosespanhóisassimcomoas incultasmassas camponesas da Rússia — todos eles desfrutaram suassatisfaçõeszinhasmesquinhas ao testemunharem as humilhações da Grã-Bretanha. O lado oposto era encarnado por Churchill, clara esimplesmente.Foibomsabernaqueleverão—enãosóparaosbritânicos— que a luta era inevitável; que mesmo nesse século em que tudo estáobscurecidopelalengalengaviscosadasrelaçõespúblicas,aindahaviadoiscampostãopróximosaBemxMalnaslutasterrestresdasnações.

Tudo isso afetou os Estados Unidos apenas indiretamente. Isso éverdadeiroatéemrelaçãoaosimportantesdiscursosinglesesdeChurchillnaquelesanos.Apesardopoderevocativodamesma—oumelhor,quaseamesma—língua,suagranderesoluçãodejunhoejulhotevesigni icadomuito mais para determinados europeus do que para americanos. Digo“determinados europeus” porque, naquela época, muitos deles eramapenasminoriasinsigni icantes,osquesabiamqueviviamnastrevas,queviveram para ver Hitler triunfante, que experimentaram o rápidodesabamento de uma nova espécie de noite de chumbo sobre o seuentardeceroutrora civilizado.Eles eramosquemaisprecisavamdaqueleespírito de desa io, de inspiração e de autocon iança britânica que sóChurchillpodiaproporcionar.

WestminsterHall. Primeiro, há a sensação de alívio do frio, da neve e dovento diminuindo em um instante; mistura-se àquela outra sensação dealívioporestarterminadaalongaefriamarcha.Aqui,pelaprimeiravez,osgestos dos policiais sãomais rápidos. Amultidãoprecipita-se adiante porummomento,muitosladoalado,nosdegraus—eláestamos,organizadosem duas ileiras, em um salão. Já estamos seguindo para a esquerda. Émuito simples. Naquele salão imenso, sob as traves góticas inglesas, umaessamuitoalta,comoumagrandelápidetalhadaempretofosco,eocaixãosob uma ampla e generosa bandeira britânica. O resto é o que seesperaria: os quatro fuzileiros reais postados como estátuas e ascompridasvelasardendo.

Assim seguimos, muito depressa agora. E, à medida que nos

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aproximamos,perceboqueessaétalvezpropositalmentemaisaltaquedehábito, razão por que é tão adequada. Ali jaz um senhor corpulento cujacarnecomeçaraasedissolverjáháalgumtempo.Eleamavamuitoavidaetornouavidapossívelparamuitosdenósporquetinhaumacrençamuitoantigaemuitofortenaspossibilidadesdadecênciahumanaedagrandezahumana.Ahistórianãoéumregistrodavida,masaprópriavida:poisnãosomos animaishumanosnemescravosperpétuos.Na longa, lenta e tristemúsica da humanidade, ele certa vez fez soar uma nota nobre e inglesaquealgunsdenóstiveramabênçãodeouvirelembrar.

Então,escadaacimae,diantedenós,vemosaportaabertaporondeasmultidõespassamem ila e imediatamente sedispersam, absorvidaspeloluxo da Londres cotidiana.Mas: instintivamente, no alto da escada, cadaumdenóssevolta,porummomento.Escrevo“nós”porque,pelaprimeiraeúnicavez,sentiquepossoescreverissosinceramente:pornãoseringlês,minha tristeza era diferente da deles, mas nesse momento — essemomentomuito individual,vistoquenãohá,curiosamente,nemumpingode reação psíquica de massa nesse voltar-se para trás — estamostotalmente unidos. De novo a essa elevada, as velas ardendo, os quatroguardas cerimoniais e a bandeira cobrindo o caixão, tudo brilhandotenuementena luz fracaqueentrapelaampla janela, comospequenosereconstituídos vitrais desinteressantes. Talvez não seja a cena que éinesquecível:éaocasião.Adeus,Churchill.Adeus,Impériobritânico.Adeus,paiespiritual.Demuitos.Inclusiveeu.

30dejaneiroSábado

Trinta de janeiro. Pensamentos ao amanhecer. Nesse dia FranklinRooseveltnasceuem1882eAdolfHitlerchegouaopodernaAlemanha,hátrintaedoisanos.

Roosevelt e Hitler morreram no mesmo mês, em abril de 1945.Churchill sobreviveuaelesvinteanos.SeurelacionamentocomRooseveltfoicomplexo:umamisturadeafeiçãogenuína(porpartedeChurchill,sim),um irme reconhecimento das obrigações, um senso de lealdadejuntamentecomoqueeraumarelutânciacaracterísticadeChurchillemsebater por determinadas coisas. É di ícil dizer quais eram as fontes maisprofundas da sua incomum deferên-cia para com Roosevelt durante osdois últimos anos da guerra; sua convicção absoluta da necessidade da

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benevolência americana para com a Grã-Bretanha, juntamente com umacerta fadiga, in luenciaram nisso. Roosevelt, por sua vez, era apersonalidade mais limitada dos dois — não devido ao “jovialaristocratismo” americano que às vezes lhe transparecia no rosto (dissoChurchill gostava),mas devido a um certo constrangimento em relação aChurchill (eemrelaçãoàGrã-Bretanha,àEuropa,àhistória)—ummistode sentimentos de inferioridade e de superioridade, os subprodutos deuma atitude intelectual rooseveltiana que professava considerar o séculoXX o Século dos Estados Unidos e do Homem Comum: nesses termos,Churchilleraumesplêndidotóri,uma iguraquasedickensia-na.EssefoiomesmotipodemiopiaamericanaquelevouOliverWendellHolmesajulgarHarold Laski como o cérebro mais notável da Inglaterra. Contudo, pelomenosem1940,ocoraçãodeRooseveltestavanolugarcerto.DaítambémapermanentegratidãodeChurchill.

MuitosetemescritosobrearelaçãodeamoreódioporpartedeHitlerpara com a Inglaterra. Na realidade, esse tema é exagerado. Esse gêniomaligno,capazdegrandes lampejos instintivosdepercepçãoao lidarcomalgumas das forçasmotrizes de diversas características nacionais, nuncacompreendeu os ingleses emenos ainda compreendeu Churchill. Ele nãocompreendeuque,por trásdoAtéAquiENadaAlém,haviaalgomaisdoque um pragmatismo obstinado; não conseguiu compreender as origensromânticas do senti-mentalismo inglês; confundiu a valentia de Churchillcommerabravata; a combinaçãopeculiardedeterminação edisplicênciadeChurchill foiumadaspoucascoisasquepermanecerammuitoalémdoalcancedamenteimpetuosaeenérgicadeHitler.

Churchill e Hitler foram, seja como for, os dois protagonistas da fasedramática da última guerra, ainda que Roosevelt e Stálin tenhamdesempenhadoospapéisdecisivosnafaseépica,nofim.

Umrapazteriaditoontem:“EsperemosqueHitlerpossaentenderissoagora.”

Mas as multidões não são grandes. Quatro, cinco ileiras no máximo. Ecomo estão silenciosas. Acordamos cedo, em um amanhecer escuro, nosvestimos e caminhamos atéGloucesterRoad.As ruas têmumaatmosferasossegada de domingo. Alguns cartazes educados informando aosmotoristasquealgumasdaspontesdoTâmisa icarão fechadas,devidoaofuneral.Mas ometrô está funcionando—ometrô, com seus assentos deplush da cor de bolo de uvas, com seu cheiro peculiar de carvão e

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chocolate. Na estação de Westmins-ter, subimos à super ície, caindo nasgarras da enorme multidão — e extremamente silenciosa, mais de umahoraantesdasaídaprevistadocortejodoNewPalaceYard.

Liposteriormenteeouvicomentários,noaviãodevoltaaParis,deumfamoso repórter americano, de que o que o impressionara era o orgulhoda multidão, que esse era um dia de grande orgulho íntimo, que nessasemanaopovodaInglaterraserecompuseraeexibiraumafaceorgulhosaaomundo, no seu luto.Não foi isso que eu vi. Talvez certos estrangeiros,repórteres de televisão americanos sentissem isso, devido a algumas dassuas idéias preconcebidas; mas estrangeiros, e em especial americanos(issoéestranho), tendema confundir a reserva inglesa comumaespéciedearrogância,emvezdeentenderoqueelaé:a timidez intrínsecadessepovo.Vimenosorgulhodoqueuma espécie de resignaçãodisciplinada etristeza respeitosa: uma tristeza repleta da recordação do passado paraaquelesquetinhamlembrançasde1940;e,paraosjovens,repletadeumrespeito estranho e vago, quase medieval, por uma igura distante elendária, alguém afastado até da geração dos seus pais, alguém comverdadeiraautoridade,alguémquepodiamrespeitar...Issofoiestranho.Osjornais também observaram: o grande número de jovens nas multidões,jovensbárbarosdecabelocompridoerosto triste,embuscadealgo,comosseusestranhosolhoslacrimosos.

Quanto aos outros, amor-próprio mais do que orgulho, e um amor-próprio matizado com a sensação do tempo que passa. Havia nisso umtênue iodepercepçãoresignadadequepara essa Inglaterra,nasituaçãoatual,ageraçãodeChurchilleravelhademais,queele foiohomemcertonahoracerta,masnãoparaopresentecinzento,di íciletécnico.Nãocreioquehajamuitos ingleses, inclusive conservadores, que encarema eleiçãode julho de 1945 que tirou Churchill do poder como uma espécie dedesgraçanacional.Eles têmumsentimento instintivodequeeleeramaiscertoparaaguerradoqueparaoperíodopós-guerra. (E issoéverdade,de certo modo: com todos os seus grandes dons, com sua grandecompreensão da história mundial, sua grande perspicácia paramovimentos, ligações, correspondências, tendências,Churchillnãoeraumbom diplomata — especialmente quando se tratava de lidar com osamericanos...)

Uma geração Churchill: na realidade, isso não existiu. Eden,Beaverbrook, Macmillan, Duff Cooper... Duff Cooper estava próximo deChurchill em espírito, porém nunca ocupou mais do que uma posiçãosecundária.Ochoquequedomina todaa Inglaterranessemomentoéver

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Macmillan,Éden,Attleedentreosquecarregamo féretro.Comopareceminfinitamentevelhos!Attleeestádupiamenteencurvado.Eletemdesentar-se no vento frio, com um grande sobretudo preto, protegidocuidadosamente por um alto o icial da Guarda Real. Depois, por ummomento, Eden— também in initamente velho, in initamente cansado—curva-se sobre Attlee com uma espécie de grande solicitude. Issomostracomo estamos agora distantes dos Dias de Churchill, da época dacaricaturadeLow,emmaiode1940,“Estamostodoscomvocê,Winston!”—Attlee,Bevin,Morrison,Greenwood, todoselesarregaçandoasmangasemarchandoemumalarga ilaatrásdeChurchill.Lowdesenhou-os(comomelembrobemdaquelacaricatura)comumtrajeumtantoprosaico;elespareciamrepresentantessindicaisinglesescomroupasdomingueiras.Maseles eram, naquele momento, a última e melhor esperança digna deconfiança,osrepresentantessindicaisdacivilizaçãoeuropéia.

Os pilotos da RAF escoltando o caixão. “Nunca no campo do con litohumano tantosdeveram tanto a tãopoucos.” Isso foi, até certo ponto, umexagerodeChurchill.(Asuaretóricade1940nemsempreeraexagerada,o trecho “Nós lutaremos nas ruas”, por exemplo: existem testemunhas aquem ele dissera em maio que, se os alemães desembarcassem einvestissem contra Londres, ele iria com um fuzil para a guarita, naextremidade de Downing Street, e atiraria neles até o im.) A batalha daInglaterra teria sido vencida sem o apoio americano? Não me re iro aoapoio material, que naquela hora não era decisivo. Re iro-me aoconhecimento, porpartedeChurchill, dopovoda Inglaterra e domundo,dequeosEstadosUnidosestavamseafastandodaneutralidade,eparaolado deles. E os números anunciados em 1940eram exagerados. “Vocêsempre pode levar um deles consigo”: os pilotos da RAFde fato levarammais de um deles, porém não cinco ou seis. A contagem foi um poucomenordoquedoisparaum.Aindaassim,foiapropriadofazercomqueoso iciais das esquadrilhas de caça de 1940 formassem a primeira escolta.Eles sãoagoraavôs,namaioria:o iciaisde instrução ligeiramenteobesos,em pací icos postos de comando. Não é di ícil imaginar-lhes as casas desubúrbio,oshábitos,asfamílias.Nosrostos,elesnãotêmnadadasmarcasdos heróis de Valhalla. Em 1940 apenas cumpriram o seu dever, diriameles.Agoratambém.

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Oo icialpolonês.Eleestánamultidão,comoseurostoeslavoeenrugado,um deselegante terno preto, usando as itas de suas medalhas. Assim,tambémessehomemveioprestarasuahomenagem.DurantemuitotempoospolonesesexiladosguardaramrancordeChurchill.Tiveramrazãoparaisso.Desdeoprincípio,ChurchilljulgounecessáriotransigircomStálin.Elequeria deixar os russos icarem coma parte leste daPolônia até a LinhaCurzon (oumelhor, Linha Lloyd George), em troca de uma concordânciarussa comumgovernopolonês simpático aos russos,mas livre.Nisso elefracassou:no im,Stálinconseguiutantoafronteiraquantoogovernoquedesejava, uma grande Ucrânia Soviética e um regime comunistasubserviente em Varsóvia. Em Ialta, Churchill igualmente se bateu pelacausa da Polônia e perdeu (ele ganhou quanto à França, em vez disso).Depois de perder, não se abalou e foi adiante em defesa de Ialta naCâmara dos Comuns. Como devem ter sido penosos para os corajososexilados poloneses, com o seu grande exército ferido, esses meses naarruinadapaisagemdeLondresem1945!Duranteseisanos,eleshaviamlutado e derramado o seu sangue em três continentes e, no im, foramabandonados: numerosos exércitos russos instalados para sempre naterrível paisagem do seu devastado país, e com a aquiescência deChurchill. (Osexilados iugoslavostiverampiorsorte:ChurchillcolocaraassuasfichasnobandoleiroTitobemantesdofimdaguerra.)

AohomenagearChurchill,umjornaldemocrata-cristãoalemãodeBonnescreveu, dentre outras coisas, que ele foi não obstante responsável peladivisãodaEuropa,aopermitirqueStálinavançassemuitoatéocentrodocontinente.Noentanto, issoé totalmenteerrado.Churchill tentousalvaroque podia. Pelomenos a sua idéia básica estava correta, como estava defatoem1915,nocasodeDardanelos,aindaquenãoconseguissecolocá-laemprática—em1915,porcausadogovernobritânico;em1943-45,porcausa da descon iança do governo americano. Churchill sabia que haviaum preço a ser pago na Europa oriental pela contribuição russa para aderrota da Alemanha; além disso, conhecia os russos melhor do queRooseveltesabiaqueessepreçodeviaser ixadodeantemão,poiscomosrussos não bastavam adiamentos de coisas desagradáveis nem vagasdeclaraçõesdeboavontade.Ele estavamaispreocupado comosdestinostrágicos da Polônia do que Roosevelt, que estava, na pior das hipóteses,preocupado comos seus eleitorespolono-americanos, eHull, que alegavaindignação moral ao se recusar a participar de Partilhas Territoriais. Equando em outubro de 1944 Chur-chill, exasperado com a protelaçãoamericana,reuniu-secomStálinedividiucomele,emumafolhadepapel,

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orestodaEuropaoriental,sóumapessoasimplóriaouumtipoespecialdepolemista pode enxergar nisso a prova de uma DiplomaciaMaquiavélicaTradicionalePér ida:poisnaquelaoportunidade, comode fatoemoutrasocasiões, o que Churchill fez foi tentar salvar o que era possível. E eleconseguiu. Assegurou que os russos não interfeririam na Grécia, quedepois salvoudeuma tomada comunista.O seu apoio aTito tambémdeulucros, de certo modo: contribuiu para que Tito percebesse a suaindependência. Sem dúvida, isso o tornoumenos dependente de Stálin eajudouapossibilitaroseufuturoafastamentodeMoscou.MesmoaPolôniacontinuouaserumanação,a inaldecontas—longedeserindependentemas, ainda assim, uma nação e um Estado numa época em que Stálinpoderia ter feito o que desejasse naquela parte da Europa: ele nãoincorporouaPolôniaàRússia,afinal.

Nesse sentido, Churchill também era um grande europeu. Mas comodevem ter sido amargos e infelizes esses anos de exílio para homens emulherescomoestepolonêsossudoe inexpressivo,sozinho jáhámaisdeduas décadas nessa Londres cinzenta e impassível! No entanto, ele estáaqui, nessa rua gélida, em silêncio e imperturbável. Quais devem ser ospensamentos e as lembranças que ardem lentamente naquela cabeçaenrugadaeesgotadapelaguerra!Equandoleionojornal,nodiaseguinte,que a Polônia (quer dizer, a Polônia comunista) foi a única nação daEuropa oriental representada por um ministro do governo e que ele sesentou na catedral de são Paulo entre os convidados o iciais, como osvelhos líderes da reserva do exército nacional polonês, Anders e Bór-Komorowski, achei que isso era tão-somente adequado e justo e que, aoenviar os convites a esses homens, os britânicos tinham, instintivamente,feitodenovoacoisacerta(enãoapenasoqueeradevido).

Os monarcas do noroeste da Europa. Olavo da Noruega (rubicun-do),Frederico da Dinamarca (afável), Balduíno da Bélgica (ainda parecendoum estudante), João de Luxemburgo (espantosamente parecido comOttode Habsburgo), rainha Juliana (surpreendentemente pesada). É corretoque eles estejam aqui. Há vinte e cinco anos Churchill salvou os seuspaíses.

E, assim, essa é uma triste cerimônia familiar. Eles têm um instintivolaço dememória comElizabeth, que, como alguns deles, eramuito jovemnaquela época. Eles sabem o que devem a esse grande cidadão agoramorto. O importante não é que todos esses representantes da realeza

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estejam rendendo sua homenagem junto ao esquife de um estadista. Oimportante, mais uma vez, é a lembrança de 1940: aquelas noitesestonteantes e intensas demaio e junho, luminosas e fatais, daquele ano.Por quatro vezes em seis semanas, o rei Jorge e a rainha dirigiram-se ànoite à Estação Victo-ria, para dar as boas-vindas a monarcas epresidentesdaEuropaemfuga,comdignidade,solidariedadeesolicitude.Os ataques aéreos alemães ainda não haviam começado e o céu emLondres era imensamente azul, ao contrário daquelas nuvenspretas quese elevaram dos incêndios de Bergen, Roterdã, Antuérpia. Nos hotéis deLondres, essas personalidades reais da Europa eram cercadas dedelicadeza e cortesia, pelas lores já murchando de uma civilização. Elasvieram para serem assim acolhidas no que seria então sua última casainsular.

São homens e mulheres respeitáveis, esses monarcas constitucionaisdas pequenas nações democráticas do noroeste da Europa. Por ummomento, enquanto icam parados, alguns pouco à vontade, nos degrausda Catedral de São Paulo, eles são uma família para si mesmos.Representamaquelasregiõesdomundoondeaindahámuitosmovimentosativosparaumtipomaisantigodehumanitarismo.Nomapadesuper íciedomundo, eles representamo feixe central de decência, essesmonarcasburgueses do noroeste da Europa. Churchill sabia disso: pois era ummonarquistanãoapenaspor sentimento,maspor causado seuprofundoentendimentohistórico.Emummundoórfão,essesmonarcassãofontedeumacertaforçaedeumacertainspiração.Quevivamereinempormuitotempo! Que a sua presidência sobre as tardes de domingo da Europaocidentalsejaprolongada!

Acima deles, destaca-se agora de Gaulle. “O Guardião da França”: assimChurchilloviuemjunhode1940.OguardiãodeumanovaEuropa,então?Havia nisso algo de certo. Suapresença é régia: natural, semamais leveostentação. Lá está ele, com o pesado sobretudo do exército francês quenão lhe assenta bem, piscando de vez em quando, colocando os óculos,inclinando-se para o príncipe João de Luxemburgo, dizendo algo comumar que re lete familiari-dade e solicitude. Muitas pessoas nessa grandereuniãorealolhamparaelecomfreqüência.Posteriormente,osjornaisdeLondres o descrevem com termos de admiração e respeito irrestritos.Muito pouco daquela inquieta antipatia disfarçada com que algunsamericanosvêemdeGaulle.Mas,nãoobstanteasdiscussõesentreambos

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e a frase do fardo pesado da Cruz de Lorraine, Churchill compreendia erespeitava de Gaulle; no que dizia respeito às concepções de história (etambémdanaturezahumana)deambos,ChurchilledeGaulle,doislíderesnacionaisdadireita,tinhammaisemcomumdoqueChurchilleRoosevelt.Isso é o que a maioria dos intelectuais não conseguiu entender: que em1940 os mais verdadeiros antago-nistas do hitlerismo eram homens dadireita, não da esquerda. Churchill e de Gaulle, cada um representandoumacertaespéciesoberbadepatriotismo,nãointernacionalismo.

Um grupo desordenado de franceses. Eles, assim como grupos daDinamarca e de outros lugares, voaram para cá representando aResistência dos seus países. As bandeiras tricolores da França tremulamvistosamenteenquantoo caixãoé levado.Essas cores, juntamente comaspoucasbandeirasvermelhascomcruzesbrancasdaDinamarca, iluminamporummomentoosmatizessombriosdocortejo,sobosfrioseescurecidosedi ícios imperiais de Whitehall. Eles são um grupo desordenado dehomens emulheres, marchando desorganizadamente como em qualquerdes ile cívico francês, muitos deles barrigudos, com óculos sem aros:pequenosfonctionnaires e propriétaires (um velho francês com umaangelicalbarbabrancacaminhadesajeitadamente,orostorosado,agitandoumabandeiraenorme).

Os franceses devemmuito a Churchill. Infelizmente, nãomuitos delesreconhecemisso.(DeGaullereconhece:apesardoscon litos,desavençaseargumentosarrogantesnassuasMemórias,eledefatoescreveuumafrasedecisivaa irmandoque,semChurchill,eleeaFrançaLivrenãoteriamsidonada, nada. “Náufrago da desolação,” escreveu ele, “nas praias daInglaterra, o que eu poderia ter feito sem a ajuda dele?”) É curioso que,enquantoemoutroslugaresdaEuropaostraidoresnacionaiseospolíticosfascistaseramosgermanó ilos,naFrançaopartidodarendição,opartidonacionalista,eraconstituídodeanglófobos.Aanglofobia,nãoagermano i-lia, eraaexplicaçãoparao comportamentoeasatitudesdePétain,Laval,Darlan. Eles tiveram razões para descon iar de Chamberlain;lamentavelmente, descon iaramaindamais de Churchill. Aquela propostaextraordinária e imponderada, mas genuína, de uma União Anglo-Francesa,apresentadaporChurchillem16dejunhode1940,foiumadasdeclarações mais estranhas da história moderna e da história da Grã-Bretanha.Churchillsemprefoiumfrancó i-lo.Issotransparecenãosónosseus grandes gestos generosos de 1940 (aquela inigualável transmissão

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radiofônica para a França, em outubro: Dieu protège la France!), como namaneiracomosebateupelaFrançaepordeGaullecincoanosdepois,emIalta,eseisanosantesde1940,quandodiscursounaCâmaradosComuns:“GraçasaDeuspeloexército francês!”,disseele. (Eletambémreparounoaborrecimento e na incredulidade extremos nos rostos dosparlamentares.) Isso foimais do que uma escolha política para Churchill.Ele pertencia a uma geração de ingleses aristocratas e re inados que,chegando àmaturidade na era eduardina, era, dentre todas as geraçõesinglesas,amaisconhecedoradahistóriapolíticadocontinenteeuropeueamais profundamente a inada com os encantos e inezas da culturafrancesa.Churchillnuncafoipropensoaadotarumaopinião ilistéiasobrea Europa, nemmesmo quando o continente estava arruinado, quando osgovernosdosantigosEstadosdaEuropaocidentalhaviamse reduzidoaopapeldesuplicantesmaltrapilhos,quandopareciaqueosEstadosUnidos,a Grã-Bretanha e a Rússia governariam o mundo. A repugnância aoradicalismo municipal de Birmingham dos Chamberlains era parteessencial da sua repugnância às inclinações e simpatias germânicasdaquele tipo de classe média britânica. (Suas inclinações artísticasre letiam igualmente essas tendências: a faltade interessepelamúsica, ofato de pintar àmaneira dos impressionistas franceses.) Ao contrário dealgunsdosseuscontemporâneoseduardinos,afranco iliadeChurchilleramais do que um gosto adquirido por determinados prazeres suaves ecivilizados. Ele admirava imensamente Joana d'Arc e Napoleão, dois dosmaiores adversários da Inglaterra. Entendeu um pouco do que D.H.Lawrence certa vez observou, que o Reno era uma fronteira peculiar doespíritoeuropeu.Acreditavanaaliança,nanecessáriaaliança,desãoJorgecom são Denis e representava aquela efêmera fusão de espírito anglo-francesa que, com elegância e displicência, marcou alguns dos maiselevadosníveisdecivilizaçãoeuropéianoiníciodoséculoXX.

A família Churchill. Apesar das inclinações aristocráticas (dentre elas acaracterística de boa linhagem da impaciência: a mais aristocrática emenosproveitosadas suas características),Churchill tinhaumaprofundacompreensão das virtudes pacientes da vida familiar patrícia, daquelefragmentodecivilizaçãoburguesa.Éprecisoconheceralgodaaristocraciainglesaparareconhecercomoissoeraforadocomum.Assim,abelezaeadignidade com que essa família caminha atrás do caixão é uma apoteoseviva dos ideais pessoais dele. Nem um traço daquele orgulho contrafeito

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quetornariaafamíliaumcentrodeatenção.Suicídio,divórcio,degradação,tudosedissolveu.Nãohásinaisdasdevastaçõesdavida,somenteaquie-tude trágica da disciplina no rosto pálido e adornado com jóias de SarahChurchill. (Ela tem agora cinqüenta anos!) O pai teria icado apreensivocomelahoje.

Nessediade sábado,opovobritânicochorauma iguradoportedeDavique é sepultada com a pompa e o reconhecimento dignos de um grandepatriarcadoAntigoTestamento.Porsersábado,opresidentedeIsraelnãopôdeandardecarro;eletevedecaminharatéaCatedraldeSãoPaulo.

Isso é também adequado à ocasião. Os dirigentes do Estado de Israelcaminhando,pequenosesolenes,paraofuneraldeChurchill.Enormessãoas dívidas que o povo de Israel teve, ainda tem, para com Churchill. Nãoestou pensando no apoio que ele deu ao Estado judeu, que remonta amuito tempo. É, totalmente, uma dívida unilateral. Ao contrário deRoosevelt, Churchill devia pouco ao apoio político judeu. Ele tinha poucosinteressesparticularesemapoiarIsrael;eleeraumnovoreiCirosemumaEster.EleenxergouomalencarnadoemHitlerdepronto, imediatamente.Então ergueu-se como um heróimitológico, mais alto naquelesmeses de1940 quando o futuro da decência humana estava em jogo, e quando opovo judeu e a cristandade estavam do mesmo lado, que era o ladoencarnado por ele, que era o lado dele. É por esse motivo que nenhumintelectual judeu jamais deveria chamar Churchill de “um esplêndidoanacronismo”; é por esse motivo que todo católico consciencio-so deviaprestar homenagem a esse inglês que, em um momento supremo,enxergouomalcomaindamaisnitidezdoqueopapa.

OcortejochegouaoTâmisa.Somos informados de que é o im do funeral o icial e que, daqui em

diante, a marcha privada do enterro diz respeito à família Churchill. Narealidade,nãoháfronteiraentreasduasporçõesdocortejo.Masamarchaestásediluindo.Asmultidõessãomenosnumerosas.Naspontes,fechadasao tráfego, elas não têmmais de três ileiras e algumas sairão correndopelaextensãodaponte,paraacompanharocursodaslanchasnaságuas.

E édevido àdissoluçãodo cortejo real naCityque, de algummodo, ofuneral icamais triste emais pungente. Ouve-se o gemido das gaitas defoles, entoandoum lamento fúnebrepelo rio gelado,maso efeito agora é

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apenas aleatório. Há algo muito triste no aspecto desse rio e na lanchapequenae simplesque levaráo caixãodeChurchill rioacima.Dizemqueele próprio, nas instruções que deixou para o funeral, quis que o caixãofosse conduzido pelo Tâmisa acima, como foi o de Nelson. Mas como oTâmisa de agora é diferente do da época de Nelson, ou mesmo deWellington! Há duzentos anos, o próprio Canaletto pintou-o e admirou-o,quando ele era um grande rio verde, amplo e rico como o império, comjardins e férteis terraços nas margens. Agora é uma corrente cinza eestreitada, com apenas tênues lembranças do oceano cujas marésespumosas se lançam terra adentro em noites escuras; a outrora valiosafrota do porto de Londres ica dispersa e mais rio abaixo. Um navio deguerra, mesmo um contratorpedeiro, já não poderia subir o rio parabuscar Churchill. AHavengore é uma lancha usada para trabalhoshidrográficospelaadministraçãodoportodeLondres.

Velozmente, ela desliza pelo rio frio e estreitado acima, con inado porarmazéns, barcaças e guindastes. E, como é pequena, o caixão coberto eagora protegido por aquela bandeira grande e encantadora ica visívelparatodos.

O trem. Em um automóvel preto, simplesmente, o caixão é conduzido aotrem.Asmultidões sãoagoradispersas;mas, aindaassim, aquele silêncioimenso,portodaLondres.

Até aqui, tudo que se relaciona com a organização do funeral foiimponente e apropriado; agora se tornou apropriado em um sentidofamiliar.Osilênciodomeio-diadograndesaguãodeferrodaferrovia,porexemplo. EstaçãoWaterloo. Aquele silvo irme e contínuo, peculiarmenteinglês, da locomotiva a vapor. Na extremidade oposta da estação, outrostrens estão parados e as pessoas em movimento, o tráfego habitual desábado da Estrada de Ferro Britânica. O trem é apropriado: reaviva aslembranças eduardinas, o gosto patrício inglês pelo conforto da época deChurchill: aquelesvagõesPullmanbritânicoscordemanteigae chocolate,inclusive o bagagei-ro emque aGuardaReal Irlandesa colocará o caixão,pintadode cremeemarrom; inclusiveobrevevislumbredasmesas, comtoalhas brancas e pequenas luminárias franjadas de amarelo, em umvagão-restauranteparaa família; inclusivea sólida locomotiva.No cortejoocorre agora a sensação dos pequenos transtornos de uma reuniãofamiliar: o garçomdoPullman, postado de forma respeitosamas pouco àvontadenajaquetacurtaebranca,onervosismodoagenteferroviárioque

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consulta demais o relógio porque, pela primeira vez, esse horáriocontroladocomperfeiçãoestáumoudoisminutosatrasado.

Em seguida — e como isso é apropriado —, a locomotiva soa duasvezes.Osomdoapitoé,aomesmotempo,melancólicoeestridente.Osilvoregular das válvulas a vapor permanece o mesmo; não há nenhumresfolegar dramático enquanto o trem ganha velocidade e desliza daestaçãodeferroparaaluzfracadosoldatardedesábadonooeste.

Em um minuto, o ronco surdo se extingue; a extremidade do últimovagão some; então,pelaprimeiravez, estamos facea face comovaziodatarde.

Naquela tardeenoanoitecer, caminheipelasruasepraçasdessagrandecidade.

Tudoretomavaoseucurso:osteatros,cinemaselojasestavamabertos,as partidas de futebol eram disputadas e havia corrida nos parquesmolhados, as multidões enchiam as ruas, mas a sensação de silênciopermanecia. Não captei nada daquela íntima e disfarçada expansão dealívioquetantasvezessesegueafuneraiseoutrasocasiõesdecerimônia.Tenho certeza de que nesse dia houve poucas reuniões nas casasaristocráticas; que, emvez disso, aomesmo tempo, o silêncio interior eraalgoopressivo.

Haviaagora,emLondres,umpoucodaquelenevoeiroamareloque,nofrio, faz comque nos lembremos do que sabemos sobre o século XIX: daLondres imperial com as grandes pedras romanas do calçamento, oscortejosnegrosdemilharesdetáxiseasgrandesaglomeraçõesdepessoasnas sombras frias dos edi ícios clássicos de pedra, construídos por umaraça imperial. Esse anoitecer escuro e luminoso de Londres estava maispróximode,digamos,1875doquede1935.Agoraa cidadeestava cheia,mais cheia do que um século antes, no entanto havia um sentimento devazio, oumelhor, um vazio de sentimento: algo desaparecera do espíritodesses edi ícios imperiais. Trafalgar Square estava vivamente iluminada,mas não eram a Coluna de Nelson e os leões que eram estranhos; era oArco do Almirantado, essa construção eduardina simétrica com aorgulhosa inscrição latina talhada, grande e funda, sobre as pistas fervi-lhantes:elepareciaagoraantigoevazio.

Foipor causadeChurchill queo terrível vaticíniodeMacaulay 1 aindanão se realiza, que turistas vindos da Nova Zelândia e postados sobre aPonte de Londres podem contemplar uma grande metrópole viva e não

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meramente algumas construções destrudas. Londres ergueu-se de suasruínas parciais e os monumentos imperiais, iluminados por projetores epelos letreiros sobrenaturais dos cinemas, ainda resistem. Mas era umamultidãoaesmoquerodopiavaentreelesnesseanoitecersilencioso.

Nesse meio tempo, comi um sanduíche em um local chamado “Bocó”[Wimpy]. A garçonete, com um uniforme marrom bocó, era bem inglesa,com o rosto parecido com o de um esquilo, a timidez e a incompetênciaadolescente. Pensei nos gerentes de publicidade com caras gordas e nosbandos de relações-públicas que determinam nomes como Bocó, queespalham o cheeseburger por toda a Grã-Bretanha, e o produto inal doseuturbilhãopublicitárioamericanoéumbocóbritânicomedíocre.

Entra um homem, na faixa dos quarenta anos e de óculos, com umbigode cinza-amareladoe aboca caída, entreumcachecolde lã e o rostomaduroecansado.Ele talvez tivessesidoprofessoremumaescolapobreemMidlands. Ele examinou por algum tempo o cardápio de plástico. Emseguida, disse à garçonete: “Um bocó, por favor.” Enquanto dizia isso,passou-lhe pelo rosto uma sombra de embaraço, um frêmito deperturbação resignada. Achei que eu tivesse detectado um pouco damesma coisa também no rosto pálido, de resto quase inexpressivo, dapequena garçonete.Esse embaraço eles compartilhavam. Rodeado porbocós,pelasujeirametálicabaratadepratosdeplásticoepelasrevistasdesexo, nomeio desse vasto processo de liquefação rala, aquele frêmito deembaraço era um tênue sinal da resistência atávica da raça: um tênuesinal,masnãoobstanteumsinal—umbrilho fraco,masaindaassimumbrilhodoantigofogo,deumaespéciedebrasasobascinzas.

31dejaneiroDomingo

Osjornaisdedomingo.Nosossegodamanhã,osjornaisdedomingo.(TodootédionacivilizaçãodasgrandescidadesanglófonasnoséculoXXacha-selatentenessastrêspalavrasenassuasassociações:jornaisdedomingo.)

Oslongosrelatosdofuneraldeontemeasexcelentesfotogra iasestãoalimas,de formaumtantosurpreendente,osartigosnãosãomuitobons.Há lapsosmesmonos detalhes evocativos—umdos jovens editorialistasdizendo,porexemplo,que,quandoalanchaseafastoudocaisdaPontedaTorre,“umabandaatacouestrepitosa-menteamelodiaqueeraumaúltima'fanfarronice'ligadaaChur-chill:'RuleBritannia'”.Comoissoéincorreto,o

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estrépitoemvezdolamentoabafadoportodaalongaextensãoaquática,ea “última fanfarronice ligada a Churchill”, como se não tivesse sido algoin initamentediferente emelancólico.Há igualmente coisas comoo artigodo diretor de Estudos Ingleses (na realidade, um sempre dispostointelectualdeNovaYork)noChurchillCollege(narealidade,umaintituiçãode lorde Snow), que conclui com uma verdadeira frase da indústriapublicitária americana: “Recebendo os meios, o Churchill College podefazerasuapartedoempolganteserviço.”

Ao longodasemana,osarticulistascaptarammuitosdos fragmentoseum pouco da atmosfera do acontecimento, mas as remi-niscências têmentãoumacuriosaespéciede fadiganervosa.Osmais inteligentesdentreos comentaristas escrevem que esse funeral foi de fato uma ocasiãoorgulhosa e cerimonial, mas a última ocasião para algo que éirrevogavelmente passado, a última vez em que Londres foi a capital domundo—vistoque,depoisdessaúltimahomenagemsoleneàsglóriasdeum passado imperial britânico, os corriqueiros dias úteis de umaInglaterra modesta e reduzida começam mais uma vez. Isso pode serverdade,mas não explica totalmente esse leve embaraço nos panegíricosdealgunsdosautoresmais jovensemaisperceptivos.Creioque conheçoasorigensdesse embaraçode sentimento: é a consciência, especialmentedaquelesquecresceramnosanospós-guerra,dequeavitóriadeChurchillnaSegundaGuerraMundialfoi,afinaldecontas,umavitóriamedíocre.

Isso pode ser igualmente verdade. Mas esse reconhecimentointelectual, incomodamente à espreita sob as impressões imediatas daocasião,nãoestáde fatoemcon lito,porexceção,comossentimentosdaspessoas:osensodegratidãodessepovoimpassíveldaInglaterraqueestáincontaminadopornostalgiaouautocomisera-ção,porquetempoucoavercomaglóriadavitória.ÉasensaçãodequeChurchillos salvoudaderrotamais do que a consciência de que ele conduziu a Grã-Bretanha à vitória.Isso,creioeu,éoqueexplicaaausênciadequalquerparceladexenofobianostálgicaentreaspessoas—asquais,aindamaisdoqueosjornalistas,osestadistas e, claro, os intelectuais, podem ter íntima certeza do quanto aInglaterraestevepróximadacalamidadeem1940.

Agora isso parece ser bastante óbvio, mas poucas pessoas, creio eu,compreendemosseuspresságioshistóricos.

Para a maioria das pessoas, na Inglaterra assim como no exterior, adécada de 1930 é, em retrospecto, algo como um episódio um tantoinacreditável, uma era de estupidez ilistéia. A geraçãomais velha que aatravessou não está inclinada a analisá-la de formaminuciosa, em parte

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devido ao feliz hábitomental britânico de considerar que “o que passoupassou”, em parte devido à menos auspiciosa relutância britânica deencarar determinadas verdades desagradáveis. Para a geração maisjovem, é ainda mais um exemplo da miopia das classes governantesdaquele período. A conseqüência dessas convicções é que Churchillapareceu,emumaépocadegrandea lição,paraharmonizaroespíritodaInglaterracomasuacondiçãonormal.

Mas foi realmente assim? Quando se considera a involução da Grã-Bretanha durante o meio século passado, tem-se a impressão de que alassidãoéqueeraacondiçãonormal,nosanosvinteetrinta,etambémnosanoscinqüentaesessenta.AsLeisBonarassimcomoasLeisLansburys,osgeneraisestúpidosde1917eostolosdoVotodaPazde1935,oespíritodeHarold Laski assim como as Grandes Idéias de lorde Snow, o que elestiveram, o que eles têm, em comum com Churchill? Numa das poucasfrasesfelizesdentreoscomentáriosposterioresaofuneral,asra.RebeccaWest escreveu que se lembra de Churchill na década de 1920resplandecente de vitalidade, como se esta tivesse sido derramada sobreele com um balde. Isso numa época em que o espírito da Inglaterracomeçaraacheirarachocolateaguado.

Isso não signi ica que Churchill estivesse completamente isolado,absolutamente sozinho: ele estava em assintonia com oTimes, estava emassintonia com “os tempos” (o que quer que isso seja), porémhavia algomais—elesabiaquepodia levarconsigoumpovo inteiro,em1940.Essafoiumadasgrandesdiferenças,naquelaépoca,entreChurchilledeGaulle.Masmesmo isso não signi ica que 1940 tenha representado a Inglaterrana sua condição normal. E as pessoas sabem disso melhor do que osintelectuais. Daí o seu profundo e emocionado pesar. Elas sabem comoassomou, em 1940, a possibilidade de algo que é ainda indizível e talvezinconcebível: que a Inglaterra, apesar da situação insular, apesar dasriquezasdoentãoImpério,apesardoauxíliodosEstadosUnidos,podiadefato tersucumbidoantea forteedecididaAlemanha,porquea Inglaterrajá então se achava na parte inal de um longo período de lassidão e deabdicação,porquenoespíritodaInglaterra,entãocomoagora,avitalidadedasaspiraçõesbruxuleavamuitofraca.

Paraageraçãoatual,pareceinconcebívelqueHitlerpudessedealgummodo ter vencido a guerra. Para os intelectuais, ele representa umepisódio estranho e talvez fascinante, bárbaro e reacionário, de umaloucura temporária indo contra a vasta corrente do século XX, contra alongaevastahistóriadoprogressomecânico.AInglaterra,juntamentecom

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osEstadosUnidos, aUniãoSoviética e asForçasProgressistasdomundo,estava fadada a derrotar o fascismo: estadistas tolos e estúpidos einteresses egoístas levaram-na para junto de grandes calamidadesdolorosas,aoqueChurchill,queapenasfezemgrandeestilooquetinhadeserfeitodequalquerjeito,restabeleceuoequilíbriodarazãoedavirtudedemocrática compalavras e gestos shakesperianos; esse erao seupapel;isso foi tudo. Mas não foi assim, de jeito nenhum. As pessoas ainda nãosabemcomoHitleresuascoorteschegarampertodevenceraguerraem1940.Algunshomensemulheresquesãomaisatentosaosmovimentosesentimentos de vastasmassas na Europa sabem dissomelhor do que osintelectuais, inclusive certos historiadores pro issionais; e a gente comumdaInglaterraqueviveuduranteaguerratambémpercebeissomelhor.

Elespodiamtersidoderrotados.Asuahistóriainsularteriachegadoaoim. O seu amor-próprio teria desaparecido de initivamente. Churchillsalvou-os desse destino, e, ao fazê-lo, havia recorrido para elas. É umaprovadadecênciaedobomsensodopovoinglêsquenãoestivesse,enãoestejaagora, inchadodeorgulhoaolembraraquelesdias,equeosilêncioque imperou sobre o funeral de Churchill re lita o seu agora profundosentimentodesilenciosagratidãoaeleporterfeitoisso.

Vários dos homens que agora escrevem sobre a vida de Churchilldizem que ele esteve na suamelhor forma, demáxima coragem, quandoestava sozinho na década de 1930, a solitária Cassan-dra política, atrombeta de alarme, a voz no deserto. Essa é uma proposição discutível.Churchill,emborapartedeumaminoriareduzida,nãoestavainteiramentesozinhonadécadade1930.Tinhaaseudisporalgumascolunasdejornalehá,sejacomofor,umadiferençaentresedizeroquesepensaquandonãose ocupa cargo o icial algum e entre conduzir uma nação parcialmentearmada, impelida pelo instinto, em um caminho orgulhoso de desa iodianteda fortepossibilidadedodesastre. E: é de fato verdadequeHitlerpoderia tersidodetidocom facilidadeem1938ouem1936,naépocadeMuniqueouna épocadaRenânia?Não tenho tanta certezadisso. É claroque Churchill tinha razão. Mas quem o teria seguido em 1936? Baldwinnão. Chamberlain não. Os liberais não. Os trabalhistas não. Os sindicatosnão. Os fabianistas não. Os socialistas não. Os paci istas não. A FrentePopular não. A Comunidade Britânica não. Os americanos não. Rooseveltnão.Eporquê?

Por quê? Por que eles — um enorme, um heterogêneoeles —descon iavam tanto de Churchill? Comuma descon iança emocional tantoquanto intelectual, cujos ecos subsistiram com força na Inglaterra até

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seremabafadospelofogodeartilhariaemplenoverãode1940equeviriaasedesencadeardenovo,noladoopostodooceano,maistardenaguerra.Eles, todos eles, descon iavam de Churchill porque não era possívelenquadrá-lo em uma categoria. Ele era o tipo de pessoa que asmediocridades instintivamente temem. “Ele não é equilibrado”, dizia arespeitabilidade conservadora. “Ele é um reacionário”, dizia aintelectualidade progressista. Mas no fundo as origens da descon iançaerammaisoumenosasmesmas.NevilleChamberlaineEleanorRoosevelt,HaroldLaskieEdwardStettiniusdescon iavamdeChurchillpelosmesmosmotivos humanos. Ele não possuía o tipo de inteligência que agrada ossupervisores da Universidade de Harvard e os diretores de escolasfemininas na Nova Inglaterra. Na época em que começou a deblaterarcontra o perigo alemão de Hitler, Churchill foi repudiado não só pelomutismo imperturbável dos partidários de Baldwin e Chamberlain; foinessa época que Harold Laski escreveu que Hitler não passava de uminstrumento nas mãos do capitalismo alemão, foi nessa época que AlgerHiss era o principal conselheiro da Comissão Nye, que investigava osdelitos do militarismo britânico remanescentes da Primeira GuerraMundial; dez anos depois, o mesmo Hiss iria sentar-se à direita deRoosevelt namesade Ialta, como seu comprido e ávido rostodequacre,aquelacaradeintelectual,calculista,contra-feitaepresunçosa.

“Um esplêndido anacronismo”, escreveu um intelectual britânico numdos jornais de domingo, tentando reconstituir a sua atitude em relação aChurchillduranteaguerra.Quemeram—equemsão—ospropagadoresde anacronismos, os verdadeiros reacionários? Não eram eles os queacreditavam (e que ainda acreditam) que a história é um processo devastos desenvolvimentos econômicos? Que vaticinaram que Hitler nãopoderiaempreenderaguerraporque,comodemonstravamasestatísticas,empoucas semanas ele icaria sempetróleo ou estanho ou borracha?AsmesmaspessoasquejulgaramdeantemãoqueoseugovernonãodurariaemfacedaOposiçãoConjuntadaClasseOperáriaAlemã?NãofoiChurchillquem imediatamentecompreendeuqueHitlereraumaencarnaçãomuitomoderna de ummal muito antigo, Churchill que quase sempre sabia deformaintuitivaoqueerarealmentenovoeoqueerarealmentevelho?

UmhomemchamadoHenry Fairlie escreveuno SundayTele-gragh: “Osr. A.J.P. Taylor a irmou, na semana passada, que os historiadores dofuturodesconsiderariamporsuacontaeriscoocontatoespiritualqueumhomem alcançou em 1940 com o resto dos seus compatriotas. ... Se o sr.Taylornãotemreceiodefalarem'contatoespiritual',nãovejomotivopara

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alguémterreceiodefalaremumavisão.”“Receio”éadequado.PeloamordeDeus,porquealguémdeveriaterreceiodeadmitiraexistênciadealgoque era uma questão de espírito, algo que não era uma questão de“produção”,oudeestatísticade “opinião”? Issonãoémaiso resultadodetimidezracial;éumaespéciededeturpadoacanhamentodamente.Éessetriunfo tardio de Josiah Bounderby, que abateu tanto o espírito daInglaterraqueChurchill tevedevir socorrê-loquandocorriaperigo:essailoso iadeBounderbyque,hojeespalhadaemnomedeFreudedeMarx(comoé curiosoqueambosestejamsepultadosaquiemLondres), circulaagoranessaterra?2Oquerestaentão,paraaInglaterra,nessedomingo?Otique nervoso no rosto do homem quando pediu um bocó. A reservaessencial e inextirpável gravada no coração das moças e mulheres daInglaterramesmo quando folheiam omais recente livro ou revista sobresexo.Essaquietudededomingo.

Aomeio-diaassistimosàmissaemumaigrejacatólicaromananaHighStreet, emKensington.Nãoéuma igrejamuitograciosa, recuadaentreascasas de tijolo marrom. Estava repleta de gente: alguns poloneses e, nobancoàfrentedonosso,ascabeçasgravesesolícitasdeoutroseuropeus,masamaioriadacongregaçãoerainglesa,ingleseseinglesasin initamentesérios, com os ilhos. Vivendo durante a última fase do episódioprotestante,dolongoeinfelizcapítulodocatolicismoromanonaInglaterra,com as antigas suspeitas e a descon iança se dissipando, com areconciliaçãosendoestabelecida,essescatólicosingleses,talvezmelhordoquequaisqueroutroscatólicosnomundoocidental, sabemoquesigni icasercristãoemumaterrapós-cristã.

Nesse povo que anunciou a idade moderna existe ainda um traçomístico, quase medieval, um traço que tem sido parte essencial do seuprotestantismo, do seu puritanismo, da sua Revolução Industrial, dosocialismo inglês. Está lá nesse traço vivo de catolicismo inglês que, noséculo XX — paradoxo curioso na história espiritual da Inglaterra —,tornou-seumadasmais fortescorrentesocultasdeumpeculiarmododeser inglês.Serperseguidopelocéuerauma formadeexpressá-lo—masnão foram só os Gerards Manleys Hopkinses que sentiram isso. MesmoAleister Crowley. OuMalcolmMuggeridge. Perseguido pela percepção deSatãoudeDeusdeumaformapós-moderna,novaevelha,preocupado,aocontráriodemuitosoutrospovosdacivilizaçãoocidental, comarealidadeobse-dantedotemadeondeviemoseparaondevamos.Mesmoagora.

Em seguida, o almoço emuma casa inglesa; icamos por algum tempoali,amistosamente;depoisdisso,oventofrioaçoitandoosjornaisrasgados

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nosvãosdasportas;pelatardefoscadedomingoepelasruaslargasatéatorre de aço do terminal aéreo, com dizeres em muitas línguas. Em umaviãoestrangeiro,subimosatéocéudeinvernoaoanoitecer.

Noaviãoquenteetórpido,denovoosjornaisdedomingo.Onomedele.Churchill. Como o próprio som e a forma do nome se ajustavam a ele!Rabugento, aristocrático, sardento devido ao sol. O som arredondado evigoroso da primeira sílaba, produzido comos lábios enroscando-se parafalarexatamentecomoosdele,oarenchendoasbochechasdeummeninodoséculoXVIIcomumsomjovemeclerical.Arabugicetorna-ohumanoejocoso, em vez de clerical (mas, por outro lado, o som da palavra inglesachurchétãomaisatraente,maisarredondado,doqueogóticoguturalfortedeKirche,doqueofrioéglisedaleiromana,doqueoceltaásperoesurdokell).Arabugicesedissolve,deformaafável,nasegundasílaba.Essasílabainal nada temde indiferente. É curta, lustrosa, até brilhante, aquele somprimaveril de um córrego.O somdonome completo é tanto sério quantojocoso: tem um encanto viril, é como as fontes barrocas de Blenheim.(Inglês mais do que britânico; um nome inglês cujo portador está agorasepultado em solo inglês; solo inglês com camadas romanas, saxãs enormandas;uminglêsquetinhaumanoçãoampla,românticaeexageradadomodo de ser britânico, talvez precisamente porque não fosse escocêsnem galês.) O feitio do nome também, como o feitio da sua compleição:compacta, ligeiramente corpulenta, mas com o bruxuleio de uma jóiasolitária, vistosa. A segunda parte a lautada e cilíndrica conferindo formaclara ao arredondado da primeira. Usando o chapéu preto de 1940, eleparecia de vez em quando aquela cúpula da Catedral de São Paulo.Churchill.Churchill.

1 Lorde Macaulay (Thomas Babington, 1800-1859) “vaticinou” em 1840 que um dia “algumviajante daNova Zelândia, emmeio a uma vasta solidão, se postaria sobre um arco quebrado daPontedeLondresparadesenharasruínas[daCatedral]deSãoPaulo”.(N.T.)2 Josiah Bounderby: personagem de Charles Dickens {Tempos di íceis, 1854) emblemático dahipocrisiaedafalsamodéstia.(N.T.)