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1 Cibernética: disciplina, ideologia e dispositivo de reprodução do capitalismo global. Pedro Cláudio Cunca Bocayuva “A crença na onipotência da tecnologia é a forma específica da ideologia burguesa no capitalismo tardio”. Ernest Mandel 1 A sociedade se reproduz num crescente conjunto técnico de coisas e relações que inclui a utilização técnica do homem _ em outras palavras, a luta pela existência e a exploração do homem e da natureza se tornaram cada vez mais científicas e racionais. O duplo significado de “racionalização” é relevante neste contexto. A gerência científica e a divisão científica do trabalho aumentaram enormemente a produtividade do empreendimento econômico, político e cultural. Resultado: o mais elevado padrão de vida. Ao mesmo tempo e com os mesmos fundamentos, esse mesmo empreendimento racional produziu um padrão de mente e comportamento que justificou e absolveu até mesmo as particularidades mais destrutivas e opressivas do empreendimento. A racionalidade e a manipulação técnico-científica estão fundidas em novas formas de controle social”. Herbert Marcuse 2 “A tese deste livro é a de que a sociedade só pode ser compreendida através de um estudo das mensagens e das facilidades de comunicação de que disponha; e que no futuro desenvolvimento dessas mensagens e facilidades de comunicação, as mensagens entre o homem e as máquinas, entre as máquinas e o homem, e entre a máquina e a máquina, estão destinadas a desempenhar papel cada vez mais importante”. Norbert Wienner 3 Apresentação No plano teórico e na busca de se construir a história do campo das Relações Internacionais, ao mesmo tempo como subárea e como interdisciplina, usamos sempre noções que derivam das mudanças epistemológicas e das noções que nasceram no âmbito das novas ciências e das novas tecnologias, com destaque para as teorias de sistema, informação e computação. Da descoberta do DNA até o processamento digital, da energia nuclear aos processos astrofísicos, o processamento da informação, a vida artificial, a descoberta e a construção de sistemas auto-organizados, todo um imenso arsenal técnico-científico interagiu com a construção de várias interfaces onde as várias linguagens e conceitos tiveram que interagir, servindo de força produtiva de conhecimento, de objetos e de ideologia. Nossa proposta de pesquisa é indicar a força 1 P.351. MANDEL, Ernest. Capitalismo Tardio. São Paulo: Abril Cultural, 1982. 2 P.144. MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional. 5ª Ed- Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. 3 P.16. WIENER, Norbert. Cibernética e sociedade: o uso humano dos seres humanos. São Paulo: Editora Cultrix,1968

Cibernética: disciplina, ideologia e dispositivo de ... · Ou seja o para pensar o Capitalismo global ... caminho de construção da linguagem que unifica saberes e ... O mundo do

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Cibernética: disciplina, ideologia e dispositivo de reprodução do capitalismo global. Pedro Cláudio Cunca Bocayuva

“A crença na onipotência da tecnologia é a forma específica da ideologia burguesa no

capitalismo tardio”.

Ernest Mandel1 “A sociedade se reproduz num crescente conjunto técnico de coisas e relações que

inclui a utilização técnica do homem _ em outras palavras, a luta pela existência e a

exploração do homem e da natureza se tornaram cada vez mais científicas e racionais.

O duplo significado de “racionalização” é relevante neste contexto. A gerência

científica e a divisão científica do trabalho aumentaram enormemente a produtividade

do empreendimento econômico, político e cultural. Resultado: o mais elevado padrão

de vida. Ao mesmo tempo e com os mesmos fundamentos, esse mesmo empreendimento

racional produziu um padrão de mente e comportamento que justificou e absolveu até

mesmo as particularidades mais destrutivas e opressivas do empreendimento. A

racionalidade e a manipulação técnico-científica estão fundidas em novas formas de

controle social”.

Herbert Marcuse2 “A tese deste livro é a de que a sociedade só pode ser compreendida através de um estudo das mensagens e das facilidades de comunicação de que disponha; e que no futuro desenvolvimento dessas mensagens e facilidades de comunicação, as mensagens entre o homem e as máquinas, entre as máquinas e o homem, e entre a máquina e a máquina, estão destinadas a desempenhar papel cada vez mais importante”. Norbert Wienner3

Apresentação No plano teórico e na busca de se construir a história do campo das Relações Internacionais, ao mesmo tempo como subárea e como interdisciplina, usamos sempre noções que derivam das mudanças epistemológicas e das noções que nasceram no âmbito das novas ciências e das novas tecnologias, com destaque para as teorias de sistema, informação e computação. Da descoberta do DNA até o processamento digital, da energia nuclear aos processos astrofísicos, o processamento da informação, a vida artificial, a descoberta e a construção de sistemas auto-organizados, todo um imenso arsenal técnico-científico interagiu com a construção de várias interfaces onde as várias linguagens e conceitos tiveram que interagir, servindo de força produtiva de conhecimento, de objetos e de ideologia. Nossa proposta de pesquisa é indicar a força

1 P.351. MANDEL, Ernest. Capitalismo Tardio. São Paulo: Abril Cultural, 1982. 2 P.144. MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional. 5ª Ed- Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. 3 P.16. WIENER, Norbert. Cibernética e sociedade: o uso humano dos seres humanos. São Paulo: Editora Cultrix,1968

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motriz e o elo genealógico da cibernética4com a globalização. Desta forma, procuramos ao longo desse artigo explicar a ligação entre as disciplinas científicas, a visão de mundo e os dispositivos e tecnologias de poder, na sua relação com a constituição de novas forças produtivas sociais (pelo ciberespaço) do capital global5. Nossa intenção é incorporar a questão científica e tecnológica como objeto de análise crítica no âmbito dos estudos de RI, na sua conexão com a questão da chamada governança global, dadas as interpenetrações, interações e analogias que podem ser depreendidas da importância das tecnociências para pensarmos o sistema mundo em transição, pela via da globalização sustentada em redes e fluxos cibernéticos. A força material da ideologia, a função dos intelectuais na organização da cultura, a política como expressão de uma luta pela visão de mundo capaz de soldar um novo bloco social, de poder e histórico anima a reflexão que vamos apresentar em torno da cibernética6. Se existem elementos materiais reais para pensarmos os processos de transnacionalização do capital, eles se embasam em uma visão de mundo que precisa se afirmar nos quadros reais em que se trava a batalha pela hegemonia global, em torno de um novo senso comum, da linguagem e da ideologia racional-instrumental do mercado. Numa batalha que se liga ao quadro de afirmação da vitória da racionalidade do mercado. Cabe perguntar, onde se apoia a legitimidade do discurso do mercado como resultado e promotor da ação do cálculo racional dos indivíduos? Nos limites de nossa pesquisa pretendemos sugerir que a base da racionalização da sociedade mercantil-capitalista se articula com a modernidade técnico-científica, cujo ápice se encontra na capacidade de agir reflexivamente sobre os próprios efeitos catastróficos e caóticos de sistemas naturais e de sistemas sociais. A cibernética tem uma função essencial na construção desse dispositivo, sendo o núcleo duro do argumento e das práticas que orientam as estratégias de resolução de problemas em conexão com os modos de governar e produzir no capitalismo globalizado.

4 Uma perspectiva de análise genealógica, tendo em conta na relação entre cibernética e máquina abstrata pode ser vista pelo ângulo das várias passagens dos sistemas de máquinas até a formação da máquina abstrata, da produção em rede e do virtual através das operações com algoritmos, das verdadeiras máquinas cibernéticas, o que podemos ver em PASQUINELLI, Matteo. Capitalismo macchinico e plusvalore di rete: note

sull’economia politica della macchina di Turing, http://uninomade.org/capitalismo-macchinico/,2011. 5 Sugerimos um esquema para articular cibernética e globalização como dimensões e dinâmicas que são constituintes das relações sociais e da organização dos poderes na era do capitalismo global. Ou seja o para pensar o Capitalismo global levamos em conta as relações entre: 1. Acumulação flexível+ciberespaço/2.cibernética+revolução passiva/3.circularidade caótica+ajuste espacial+imbricação/4.governança +espetáculo+ controle+semiótica/5.excesso+exceção/ 6 Para um recorte dessas questões vide LIGUORI, Guido e VOZA Pasquale. Dizionario Gramsciano 1926-1937. Roma: Caroci Editore, primeira reimpressão, 2011.

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A forma da revolução passiva7 global (mudança com conservação) expressa na reprodução e continuidade do capitalismo como sistema global exige que o bloco no poder organize sua estratégia de governabilidade global através de uma linguagem que se adéqua ao contexto, ao ambiente construído e às relações sociais de produção que ordenam a reprodução mundializada do capital. Nos anos 40 do século XX foi sistematizada e vulgarizada a noção matricial que ordena a linguagem e gera os conceitos e projetos que apoiam a passagem para um quadro que permite uma interação entre distintas linguagens e disciplinas científicas, que se ligava a uma necessidade de salvar os sistemas sociais e naturais, de controlar a produção e uso da energia, da potência destrutiva, das informações e das mensagens. Assim nascia a cibernética. A gênese da arte de pilotar Da arte grega de pilotar embarcações até a arte de governar no século XXI é longo o caminho de construção da linguagem que unifica saberes e práticas de comando e controle do poder, apoiada na disciplina científica, na ideologia e no discurso unificador e organizador de estratégias de saber-poder com novas tecnologias de organização, investigação, processo e produto. A cibernética é o terreno da circularidade enquanto conceito e projeto, enquanto linguagem e visão de mundo, ela define as condições da nova arquitetura organizacional, dos diagramas em que se apoiam as organizações. A cibernética se desdobra na linguagem dos sistemas autorregulados, da criação das lógicas e protocolos de informação e da criação de máquinas e sistemas de apoio para a tomada de decisão em matéria estratégica, de segurança, de produção e de comunicação. O mundo do controle da informação e da mensagem atravessa e reorganiza os padrões educacionais e culturais, onde o próprio controle e comando dos sistemas e aparatos de produção de conhecimento se tornam aparelhos centrais que modelam as organizações, na passagem para modelos mais sofisticados de hierarquização e fluxo. Identificar esse núcleo inaugural e a formação do que chamaremos de complexo cibernético é processo que pode ser percorrido em pesquisas na Web, mas é de difícil reconhecimento nos estudos e registros acadêmicos formais. Na origem da nova disciplina nas muitas reuniões no pós-segunda guerra mundial (no México, na França e nos EUA) vemos parte da comunidade científica buscar a criação de elos de linguagem comum, de lançamento de experimentos de produção de máquinas e sistemas computacionais, o que nos permite compreender os caminhos tomados pela mundialização através dos seus fluxos, processos de desterritorialização e pela compressão do espaço através da intensidade das ações em redes, pelos circuitos, pelas interfaces, pela virtualização dos diferentes subsistemas de poder. Mudanças que foram se acumulando ao longo dos anos ao ponto de se constituírem como ambiente comum das organizações e das cidades, arquiteturas de imagens, veículos, objetos e edificações marcadas por lógicas crescentemente investidas por uma certa semiótica, espaços carregados de mensagens e de inquietações.

7Para pensar a noção de revolução passiva na contemporaneidade em tensão com o conceito de contra-reforma vide COUTINHO, Carlos Nelson. L’epoca neoliberale: rivoluzione passiva o contrariforma. Bucareste:Romanian Review of Political Sciences and International Relations. Amademiei Române, 2008.

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A cibernética se realiza e interage como componente decisiva da gênese do novo ciberespaço, com suas infovias e redes sociais. O ponto de partida da produção conceitual da visão de mundo esboçada pela cibernética estrutura o elo gerador do complexo que sustenta a forma da globalização, como um significante mestre da reprodução ampliada da acumulação através da constituição de um novo espaço mundial, que se estrutura como meio geográfico tecnológico e comunicacional. O espaço mundial total, da soma de todas as mensagens, da soma de todos os lugares, da soma de todas as conexões de informação é ligado pela acumulação capitalista, pelas cadeias produtivas globais e pelos fluxos de dinâmicas de virtualização. Imagens-informações-finanças são as 3 dinâmicas imateriais que produzem os acontecimentos, na intensidade e ritmo do espetáculo de constituição do espaço global, particularmente do ciberespaço. A velocidade do fluxo caótico, que produz um presente que quebra o ciclo da percepção e da memória histórica, atravessa e reconstrói relações sociais no espaço-tempo das relações derivadas da violência do excesso, que produz a nova escassez como desigualdade renovada, como (des)medida da contemporaneidade. A nova arte de governar A cibernética define as bases de construção de um campo de saber que pode promover a montagem e valorizar o estatuto das práticas das redes verticais de poder de decisão e apropriação do excedente global. Os dispositivos e a leitura cibernética permitem o melhor gerenciamento dos sistemas telemáticos e sua aplicação aos mais variados cenários, adaptando-se e conectando atores dos vários planos espaciais e contextos culturais do desenvolvimento desigual do capitalismo global. O modelo cognitivo que prevalece no mundo científico aceitando as regras de investimento e as opções definidas pelo regime de profusão de programas e projetos, marcados pela linguagem tecnológica, a partir da potência gerada pela formação cultural capitalista, avançou além dos parâmetros da racionalidade do cálculo do progresso linear e incorporou novas concepções de espaço tempo. Para a teoria crítica das relações internacionais que leva em conta os fatores culturais e a base material dos processos da globalização é preciso abordar o núcleo duro, as ideias mestras, os traçados estratégicos das tecnologias de controle tais como apresentadas pelos fundadores da cibernética. Por isso, procuramos examinar a questão da cibernética definindo-a como um conjunto de ideias e aplicações que se desenvolvem como respostas estratégicas para ampliar os modos e as artes de governar e comandar sistemas, máquinas e organismos no sistema mundo em transição. Dentro de uma abordagem de crítica da economia política global, levando em conta a noção de sistema mundo, procuramos pensar a cibernética como expressão cognitiva dominante entre as forças sociais transnacionais (mesmo que cada segmento de núcleo dirigente de empresas e governos atue de maneira parcial, utilizando as máquinas de processamento e os instrumentos de dominação de forma focada e restrita). A cibernética é abordada nesse trabalho como o fundamento, a base para a gramática e a linguagem do paradigma científico e da ideologia (visão e mundo) transmitida pelos cientistas e técnicos desde a segunda metade do século XX, através da qual se legitimam e se constroem os projetos que reproduzem o meio geográfico mundializado, na forma de um meio técnico-científico contemporâneo. A razão instrumental e lógica do mercado é encadeada pelos múltiplos subsistemas de megamáquinas e redes que

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conectam os vários lugares, dependentes das forças sociais e produtivas que nascem do trabalho vivo e da cooperação produtiva das mulheres e homens conectados em algum ponto da rede ou em algum pedaço do planeta. Os vários espaços de encontro e exercício das atividades de poder e de definição de estratégias dependem de estratégias situacionais de comando e controle, que utilizam os múltiplos conceitos e dispositivos gerados pela onda cibernética, que mudou a face dos processos de aprendizagem com base na centralidade da comunicação, e da noção de informação como resultado de (inter)ações e (inter)versões recortadas através das singularidades de relações entre auto-organização e forças ambientais. O espaço de poder global no século XXI é atravessado pelos modos de governar formulados dentro de uma matriz ideológica cultural, matriz que define os conteúdos e a linguagem do projeto de construção da visão de mundo hegemônica. O ponto de partida desse processo é o surgimento da cibernética, que nasce como uma disciplina constituída para lidar com a perda e dispersão de energia em organismos vivos e máquinas, para lidar com os problemas estratégicos de resposta aos ataques aéreos na Segunda Guerra Mundial, como elemento das teorias de informação e aprendizagem no pós-guerra, via mensagens, via retroalimentações, adaptação e feedbacks. A complexidade A cibernética, recuperada e difundida em meio aos cientistas e ao público leigo, se define na afirmação de estratégias de controle de mensagens, informação e comunicação em sistemas vivos e máquinas, e entre eles, impondo-se como um pensamento capaz de lidar com os desafios nascidos da burocratização e crise das economias programadas. Mas seu avanço se deu em conexão com as pesquisas e o desenvolvimento técnico-científico que lidou com as descobertas científicas, problemas físicos, matemáticos, biológicos, comportamentais, com a capacidade de construir modelos de análise e dispositivos que redefiniam os limites e possibilidades do conhecimento humano, o que hoje pode ser articulado pela noção de complexidade8. O que de certa forma permitiu ao sistema capitalista, em processo de mundialização, reestruturar seu modo de desenvolvimento e introduzir a contradição e a incerteza, o ruído e a desordem nos seus dispositivos e na sua dinâmica de reprodução ampliada e de ação estratégica. A autoconfiança do bloco no poder e sua ação de revolução passiva global na era neoliberal tem por base a capacidade que o bloco dominante teve de incorporar a complexidade do mundo ao seu paradigma científico, ao seu modelo cognitivo, indo além das formulações mecanicistas e deterministas. No mesmo processo em que fracassou a dialética atrasada e o determinismo evolucionista próprio ao chamado materialismo dialético. O debate sobre a cibernética e o contexto da Guerra Fria é um capítulo indispensável para pensarmos os limites e os impasses do experimento do socialismo real, num contexto de competição sistêmica onde o capitalismo soube manejar e estimular a fronteira científica e construir um outro patamar de disputa que é o complexo de práticas e ideias envolvidas na emergência da cibernética. A retomada teórica-crítica da questão cibernética se torna ainda mais decisiva com a estruturação produtiva das redes

8Para uma introdução ao tema da complexidade vide MORIN, Edgar. Ciência com consciência. 13ª Ed- Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

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e do ciberespaço, enquanto forma de organização sócio-bio-produtiva, enquanto espaço linguístico comunicativo, enquanto dispositivo de poder econômico, político e militar, enquanto modo de estruturação da vida cotidiana, tanto pelos que inclui, quanto pelos que captura e exclui (territorial e demograficamente) A cibernética é a forma ideológica unificada das interfaces e interações das disciplinas científicas, e a disciplina e o método que resulta das teorias da informação, dos sistemas e das organizações. A cibernética interage e participa enquanto dispositivo cultural e base para o projeto de paradigma científico totalizante, orientador do modo de governar e da forma de lidar com a solução de problemas. Interagindo pelas tecnologias processos e produtos, como um dispositivo adequado ao espaço global das redes, ao ciberespaço _, que emerge no cenário de crise e transição no sistema mundo, em meio aos conflitos, aos ajustes espaciais e as guerras localizadas, ao ritmo de um novo desenvolvimento geográfico desigual do capitalismo global. Por isso, abordar a dimensão hegemônica da consciência reflexiva e do modelo hegemônico expresso pelo complexo da cultura cibernética é um desafio para uma teoria crítica das relações internacionais. O paradigma científico hegemônico, a cibernética, através do bloco social e técnico que produz a marca intelectual da cultura técnica e das engenharias, pela qual os processos produtivos materiais e imateriais se articulam como um senso comum, traduzindo sabres e práticas para o guarda-chuva das novas ciências da informação, dos sistemas. O modelo cognitivo cibernético se projeta na dinâmica subjetiva ligada aos modos de governar e tomar decisões, aos modelos de organização e gestão, as formas de comando e controle da informação através de redes cibernantrópicas (integrando humanos e máquinas). O sistema de valores e lógicas inovadoras, informacionais e sistêmicas, de lidar com as contradições, conflitos e crises imprime sua marca sobre a reprodução social da vida cotidiana. Essa articulação da forma social-técnica prepondera nos distintos blocos históricos nacionais, produzindo os efeitos que observamos pela trasnacionalização de comportamentos, práticas ideias e processos9. Visão de mundo As diferentes formações sociais são atravessadas por um novo senso comum onde a realidade da hegemonia das ciências orienta a formação das tecnologias de poder e produção. A visão de mundo com base na ciência e legitimada pela sua forma produtiva, a da tecnologia, se apresenta como um senso comum. Numa linguagem que se traduz pelas mais diversas esferas e aparelhos de hegemonia, onde o determinismo tecnológico e a sedução dos sistemas de objetos são legitimados pelo discurso da competência e da eficácia, dominando até mesmo os velhos produtos e os velhos saberes “certificados”, investidos pela força da informação, da imagem e da comunicação. A automação, a robótica, a informática se relacionam e se integram com a indústria cultural de massas, com as redes virtuais e com o espetáculo. As tecnologias de poder, os sistemas de programação e os aparelhos de reprodução de consumo são apoiados no enorme poder de difusão, não apenas da cultura tecnificada, mas pela lógica circulante e diferenciada das cibermáquinas, dos ciberdiscursos. A estrutura da vida cotidiana é marcada pelas

9 CASANOVA, Pablo González. As novas ciências e as humanidades da academia à política. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.

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conexões midiáticas e pelos dispositivos que nos fazem seres biônicos. Nos cenários de abundância ou de escassez vemos a profusão de objetos, pode faltar pão e água, mas proliferam armas, imagens e medos com uma intensidade crescente que caracteriza a modernidade líquida. O senso comum da nova globalidade se articula com uma cultura técnico-científica quer absorveu a força do negativo, os referenciais de desequilíbrio e instabilidade, a desordem e o ruído, o caso como parte de um conjunto de conceitos sem os quais o bloco social dominante não produziria a sua ordem, que se expande globalmente. No sistema internacional a estrutura e a agência, as normas e as instituições são sustentados pela práxis dos atores políticos, movimentos sociais, empresas transnacionais, cidades globais, Estados e Organizações Internacionais. Todos os processos sociais mundializados são atravessados pela batalha das ideias, dos discursos e das imagens, ordenados e condicionados enquanto objetos sujeitos aos aparatos de comando e controle cibernéticos, tendo sua estrutura e posição no sistema internacional medida a partir dos resultados da disputa pela produção e apropriação do excedente global10. Vivemos a reconfiguração informacional (cibernética) dos processos espaciais, pela força da dinâmica temporal do novo regime de acumulação flexível global, cuja forma imaterial se combina com a materialidade de processos, movimentos e ritmos que se difundem pelas relações sociais e técnicas de produção, que ganham novos contornos jurídicos e repressivos. A gênese e articulação da cibernética, dessa nova concepção de ciência, ou dessa nova disciplina serve de referencial de construção transversal de várias aplicações nas mais diversas ciências, o que inclui o campo das relações de poder, da economia política do estudo do Estado e da sociedade. O uso da retórica e dos princípios da complexidade a do estudo e implementação de modelos dinâmicos de programação, controle e comando, já se ampliaram para o terreno dos saberes aplicados, das tecnologias de poder. A visão de processar e atuar sobre dinâmicas informacionais e comunicativas e a organização da atuação em redes fazem parte de um processo de “tradução”, de operações de construção política e direção cultural que difundem a linguagem das novas teorias da informação. A visão cibernética ou sistêmica se impõe para a imposição do mercado-informação, das novas formas sociais, ciberespacias, reconhecidas como “naturais” por parte do conjunto cada vez mais amplo de dirigentes, de membros dos blocos dominantes e das grandes empresas, fazendo parte do senso comum existente em agências e redes internacionais e com um impacto crescente nas organizações e governos. Linguagem A nova linguagem interage de maneira eficiente e reflexiva nos subsistemas econômico, científico e de segurança, se retroalimenta pelas tecnologias e modos de governar, se legitima na estrutura semiótica-consumista da vida cotidiana, e desempenha um papel

10 Para os temas do controle e da vigilância a partir de um esforço de análise pelo viés das categorias de biopoder e biopolítica vide MATTELART, Armand. La globalisation de La surveillance. Aux origines de l’ordre sécuritaire. Paris: La Découverte/Poche, 2007.

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estratégico no plano da legitimação ao se colocar como um saber adequado para lidar com a turbulência, e com a crise. A dialética mecanicista e a programação burocrática dos velhos modos de dominação são ultrapassadas no plano teórico e prático pela capacidade e treino de agentes sociais e blocos no poder que incorporaram saberes se autolegitimam até mesmo diante de seu fracasso, na medida em que buscam remodelar e adaptar seus protocolos, sua programação, seus sistemas de leitura e seus modos te atuação anticíclica, mesmo que pela permanente fuga para adiante. Podemos pensar a crise sistêmica de longa duração pela análise dos modos de pensá-la e enfrentá-la por parte dos governos, das empresas e da comunidade científica a partir da nova abordagem apoiada na direção definida pelos estudos relacionados com o conhecimento e a análise dos sistemas complexos, com os modos de lidar com retroalimentações, adaptações e aprendizagem a partir das teorias da informação e da cibernética. A relação entre a ideologia científica (cibernética) e o exercício da hegemonia no sistema internacional se observa na difusão de uma visão de mundo que exige a capacitação de elites, agora preparadas para a gestão estratégica de situações extremas, utilizando ferramentas de simulação, modelos matemáticos, cálculos de probabilidade e estudos de variação em meio a regimes pensados em meio ao caos e incerteza, relacionando a ordem com a permanência de mecanismos de desordem. A partir da amplitude do campo de visão lastreado nessa disciplina científica, do estudo dos sistemas de informação e dos modos de gestão e controle de seres vivos e máquinas, vemos a implementação de sua lógica interdisciplinar para a interpretação de fenômenos complexos (finanças, segurança e meio-ambiente). A cibernética serve de chave para lógicas de ficção e construção estética e mesmo esotérica, mas sua força está na estruturação dos significantes que dão força para as construções discursivas para a formação do novo paradigma de ciência, tecnologia e pesquisa. A sua função de suporte para as estratégias de poder pode ser vista no registro da construção de tecnologias e dispositivos para o enfrentamento da complexidade do real, nas aplicações técnicas e científicas nos processos de tomada de decisão que combinam várias noções teórica e metodologicamente articuladas com apoio em modelos matemáticos. O se completa pela construção de linguagens e sistemas de análise computacional e comunicativa, com destaque para noções como ruído, caos, incerteza, entropia e catástrofe. A cibernética, com toda a sua variedade de definições e aplicações se relaciona com a formulação de práticas e conceitos que permitiram a elaboração de suportes ideológicos e dispositivos corretivos para a restauração e criação de subsistemas para o reequilíbrio das trajetórias macroeconômicas, pelos seus modelos econométricos, pelas suas inovações organizacionais, pelas suas máquinas de guerra. Na análise crítica da economia política global destacamos a importância de vermos a restauração e a revolução passiva do capital pela globalização, na sua relação com os dispositivos e o padrão cognitivo cibernético. A lógica sistêmica da reprodução do capital apoiada na preocupação de um tratamento e enfrentamento das questões e problemas de reprodução sistêmica, pelo trabalho em bloco das elites empresariais, militares e científicas se dá através da construção de uma teoria (cibernética) e de dispositivos técnicos (informacionais, computacionais e comunicacionais) voltados para produzir estratégias de controle, comando e reequilíbrio em sistemas complexos e dinâmicos; nas suas relações com os mais diversos campos de observação, aplicação, construção e experimentação; nas mais diversas áreas de saber científico e atividade social; nos mais diversos contextos e ecossistemas.

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Ideologia A racionalidade técnica e produtiva promove novos usos e condicionamentos na manipulação do espaço de modo a construir os vetores da acumulação ilimitada de capital11. O modo de desenvolvimento sobre o comando do capitalismo financeiro e das redes corporativas transnacionais reconfigura os fluxos e os fixos, ao procurar combinar os sistemas de ação e os sistemas de objetos que constituem o espaço via os territórios usados conforme o resultado das competições, guerras e lutas pelo o poder de dominação para o agenciamento produtivo, material e imaterial dos lugares e, para a hierarquização dos sistemas de alianças, com as divisões das frações do excedente material e simbólico que resulta da montagem de redes de controle e produção. A articulação entre os distintos modos de organização da produção, onde a principal força produtiva são a ciência e a tecnologia, se estrutura através de um modo de desenvolvimento sob o controle da lógica e do padrão do conhecimento cibernético. A circularidade da economia política global se acelera ao ritmo dos processos de comunicação e informação, das inovações organizacionais e produtos inseridos em dinâmicas semióticas (de imagem, espetáculo e marca). Os processos sociais são mediados por dispositivos de avaliação, comando e controle que unificam saberes e técnicas que autolegitimam a relação entre ação e o conhecimento. A primazia do ciclo informacional e técnico se projeta nas máquinas cibernéticas, nos laboratórios biológicos e linguísticos, nas tecnologias de poder que nascem informadas pelas linhas paralelas da cibernética. A cibernética como ideologia, como método interdisciplinar, como visão de mundo, como disciplina científica, como conjunto de dispositivos, aparelhos e projetos aplicados aos diferentes sistemas, de governo, de guerra e de comportamento, precisa ser examinada nas suas diversas dimensões na história social, na história das ciências e das técnicas e no seu impacto relacionado com os complexos de práticas organizacionais, de comando, de governo e de controle. Consideramos a cibernética como um conjunto complexo de respostas para a crise sistêmica aberta nos anos trinta e com a segunda guerra mundial, crise geral do sistema no século XX, cujo conjunto de respostas se articulou com as respostas e projetos científicos e tecnológicos sem os quais o capitalismo global não teria se constituído e lançado bases que vão além dos marcos do capitalismo industrial e do imperialismo. Cibernética e capitalismo global A nossa proposta sugere o caráter articulado da resposta que foi dada no cotidiano da vida social contemporânea com a resposta que foi dada no âmbito do poder econômico e político, combinando os mais diversos efeitos e questões que permitiram ao capitalismo lidar com as suas contradições, assimilar no plano de um novo paradigma de saber poder os novos modos de contestação e luta que emergiram depois do início da crise do Keynesianismo e do fordismo. Existe uma estreita relação entre os modos de produção, os modos de vida, as formas dominantes de saber e a racionalidade tecnocientífica, na combinação entre acumulação flexível, novas tecnologias e novas ciências, organização

11 HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como “ideologia”. Lisboa: Edições 70, 2009.

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em sistemas e redes, entre a emergência da cibernética e a constituição do ciberespaço. Entre os novos paradigmas e linguagens dominantes na produção de C&T, os modos de governar e os modos de organizar a produção e a reprodução social, todos são tributários de um diálogo com as diferentes famílias de processos, produtos, interpretações, conceitos e dispositivos montados sob a cobertura do significante cibernética. Nossa reflexão parte da interrogação sobre a possibilidade da realização de uma crítica ao capitalismo global que opera com base nos mecanismos e aparatos tecnocientíficos. Tendo por foco a identificação da sua ideologia que busca dar continuidade a um processo de produção cultural, de construção de hegemonia no sentido intelectual, via a força material da ideologia construída com base no discurso sobre a centralidade da tecnologia, sintetizado no campo disciplinar da cibernética. Enquanto campo disciplinar esse conjunto de saberes sobre a informação, a comunicação e as relações de comando dos sistemas de máquinas e dos dispositivos técnicos se sintetizam na construção da noção de cibernética. As formas de saber-poder com base na era da acumulação flexível de capital promovem o projeto do neoliberalismo, na medida em que correspondem à teoria e a prática da dominação revestida de consenso no contexto do capitalismo ordenado ao sabor de fluxos de capitais com base em dinâmicas semióticas, imagéticas, imateriais e informacionais que exploram e reordenam o impacto de forças que atuam na produção social do espaço para a sua exploração desigual. Novas fronteiras tecnológicas A cibernética enquanto saber orientador de estratégias de comando via dispositivos linguísticos e maquínicos está na base das tecnologias de poder, que viabilizam a governabilidade em tempos de explosão dos limites das relações de produção, em meio a uma destruição criativa violenta e inflexível realizada a partir das novas forças sociais produtivas do capital. A cibernética opera como o conjunto das regras de gestão e controle das formas sistêmicas de articulação da máquina de acumulação ilimitada de capital que comanda o seu desenvolvimento sócio-espacial desigual. Fazer a critica desse processo pode abrir espaço para novas trajetórias de contra-hegemonia, que desnaturalizem as leituras culturais que atribuem vida aos sistemas autorregulados como motores do capital, onde a racionalidade do desequilíbrio e das contradições é absorvida por processos e dispositivos de recomposição, normalização, captura e eliminação. A cibernética permite lidar de forma paradoxal com o caráter entrópico e caótico dos processos sociais e naturais. O poder global controlado por empresas, estados nacionais e organismos internacionais aprende com os ruídos e as catástrofes, enfrentando as questões bloqueadas pela leitura economicista e determinista, ao mesmo tempo em que cai na repetição, pelo encantamento da sua própria lógica abstrata, construtivista, artificial e experimental. Apesar de seus acertos e avanços em dotar o sistema de capacidade de lidar com crises, não altera o avanço e aprofundamento de catástrofes previsíveis, para as quais constroem dispositivos, montam forças tarefas. Através de intervenções localizadas, ajustes estruturais e eliminações seletivas, buscam retomar os trilhos da ordem, dentro das novas variações detectadas. Os quadros de direção e gestão de organizações e redes vão sempre apostando na resiliência (noção mais em voga), na recomposição e adaptação das formas de vida, com as possibilidades de lidar com os ruídos, a imprevisibilidade e a novas variantes conflituais que emergem nos sistemas sociais (humanos), maquínicos e naturais. A emergência de uma razão ecológica é um

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fator derivado do modo de produção dos conhecimentos dentro de uma visão integrada das ciências. A fronteira biotecnológica, os experimentos, produtos e processos em engenharia genética e a emergência da engenharia genética e se somam a todos os outros campos de inovação técnica e do conhecimento, como a computação/inteligência artificial, a realidade virtual, os avanços na nova física e a energia nuclear, neles o sistema apostou e aposta. O determinismo tecnológico se projeta como uma grande continuidade do século XX, mas a análise crítica da sua relação com a teoria da informação, dos sistemas e a cibernética permitiram mais do que uma crítica aos modos de produção e programação industrialistas, pois que podem permitir uma crítica ao capitalismo na sua versão flexível, global, tardia e semiótica do século XXI. Para absorver novas metáforas e conceitos de luta e contra-hegemonia como o de biopolítica é preciso fazer o trabalho crítico, histórico e genealógico da modelo cognitivo dominante, que deslocou na vida cotidiana, na vida produtiva, no modelo cognitivo dos cientistas e nos modos de governar, para novas articulações de comando e controle. Globalização e tecnociências Na ideologia das tecnociêrncias, os dispositivos organizacionais, os modos de gestão e as bases materiais da produção e do consumo são afetados pelas concepções, limites e possibilidades dados pela ligação entre ciberespaço e cibernética. A infraestrutura e superestrutura se combinam sob a hegemonia da C&T como a força e a forma sócio-técnica. Marcando a hegemonia da orientação de base cibernética quanto a sua centralidade na estruturação dos modos de governar. Nas tecnologias e artes de comandar, de gerir, de governar as empresas e os poderes e aparatos de Estado. De Cingapura aos Estados Unidos, do Brasil à Rússia, do Irã à China, os motivos ideológicos tradicionais, as formações culturais e religiosas são mediadas e atravessadas pelos modelos, dispositivos, tecnologias e valores que são informados pela razão e o discurso cibernético. A relação entre essa afirmação e os modos de consumo e a vida cotidiana se estruturam, pelo desenvolvimento desigual, por via de processos de exclusão, segregação, captura e mesmo de inclusão. O que significa que na esfera do consumo e do acesso, das práticas e do imaginário, os signos da cadeia significante das novas tecnologias, da cibernética e do ciberespaço, são ligados por padrões de desintegração, de desterritorialização. O sistema funciona através de redes descentradas, mas controladas, cuja marca de funcionamento se ordena conforme os ritmos e intensidade das mobilidades, do espetáculo e do gozo, do terror e do medo, onde sujeitos, objetos e imagens se entrecruzam. Onde a carência nasce do excesso e a exceção é atravessada pela excepcionalidade. Onde a urgência e a emergência se manifestam confirmando a trama complexa da produção de uma riqueza medida e confrontada por novas formas jurídicas, e pela sobredeterminação da hiperrealidade ou do espaço construído pela virtualização. Velocidade e permanência interagem na relação entre ritmo-intensidade e circularidade que atravessa e move as pessoas e as coisas, as imagens e os objetos, redefinindo fronteiras e significados, maximizando a demanda por controle. As relações de produção globalizadas na era urbana do capitalismo tardio de consumo operam via dinâmicas comunicativas. Os padrões cognitivos dominantes exigem uma readequação dos sistemas de valores, via hierarquização, indexação e enquadramento

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dos modos de subjetivação com hibridização dos processos que afetam sujeitos e práticas espaços-temporais. O modo de reprodução social, com base em estilos e identidades manejadas vem expandindo o potencial de espetáculo de um mundo unificado. As diferenças entre os lugares, os eventos na sua instantaneidade, os excessos e a intensidade, o espetáculo, as simulações, as densidades e as recombinações se articulam em modos de espacialização, diferentes paisagens e regimes territoriais, com seus agenciamentos e modos de relação variados, numa tensão entre funcionalidade sistêmica em face aos diferentes contextos de forças em movimento, atravessando as redes e fragmentando os territórios de modo a melhor unificar os resultados práticos ligados à produção da mais-valia global. Comando e controle A cibernética é a verdadeira linha de comando e conjunto de procedimentos que atravessa as diversas áreas e setores que produzem decisões estratégicas, que articulam poder proprietário e poder policial, poder de destruição e formas de segregação. No que se refere ao modo de estruturação, organização e controle a cibernética está para a era do capitalismo global como um equivalente ao que o fordismo significava, em termos de estrutura de comando e organização, para a era do capitalismo monopolista industrial organizado. As linhas de continuidade e forças de ruptura são decisivas nos modos de constituição histórica do novo padrão de hegemonia potencial e na sua relação com a expansão das formas de revolução passiva expandida real na atualidade. O modo cibernético de produção do comando e do controle, como tecnologia de poder sobre a estrutura das redes dos aparelhos de Estado, de Ideologia e de Produção, está materializado nos dispositivos de comando técnico sistêmico. A ideologia da era da informação se sustenta na materialidade de práticas de comando de sistemas de informação, onde além de ser a força produtiva principal a ciência e a tecnologia ganham a força de legitimação dos subsistemas de poder e da totalidade da reprodução social. A prática dos dispositivos de saber-poder engendrados ao longo da revolução da informação é confirmada pela esfera do consumo e pela esfera da comunicação. Os requisitos de comando são inculcados e socializados pelos ambientes de aprendizagem, na cultura de gestão e produção de resultados que orienta o funcionamento e a produção de conhecimentos e decisões nos aparatos de ensino e pesquisa. A construção dos operadores do sistema se amplia na aliança e formação de blocos identificados com a cultura do darwinismo cibernético, como pode ser observado nos modos de funcionamento e produção de informação pela imprensa e pelos especialistas. O tipo de formação ideológica que marca a cultura das empresas e dos aparatos estatais, com base na ideia de competição e eficiência mediada pela transparência é orientado pelo cálculo “racional” do capital que, pela cibernética reconhece o caráter destruidor da sua ação. Por força da nova disciplina que unifica os sistemas de informação, a rede e as novas tecnologias com o sentido definido pela cibernética, o capitalismo pode projetar e reprogramar suas capacidades de adaptação em meio a um enorme processo de geração de ameaças e problemas, que não impedem o sistema de redefinir condições para sua continuidade, pela via das quase certezas técnicas que engendra como uma das muitas mercadorias e mensagens que gera. A inteligência tecnológica e os aparatos corporativos buscam recortar as questões de modo a lidar com conflitos e problemas

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através da reformulação periódica de medidas contra os riscos e, pela desmedida na concorrência pela inovação na produção de mercadorias e imagens. Os rumos da programação econômica são avaliados pelos indicadores e mecanismos fabricados para o comando informacional para aprofundar a lógica da acumulação ilimitada de capital. A construção dos indicadores e análise de riscos é parte da cultura política de classe, alimentando as disciplinas da gestão. Um novo conjunto de projeções via computador funcionam como suporte da tecnologia de organização flexível do poder produtivo, complementado pelo conjunto de dispositivos de modelagem estatística geradores de métodos de coerção e controle da vida social. Nossa leitura do fenômeno cibernético faz analogia com a leitura de Gramsci ao falar sobre o capitalismo programado que corresponde ao período de formação do complexo americanismo fordismo12. Pensamos numa economia de controle que substitui uma economia programada industrial, com novos problemas e questões derivadas de uma nova base organizacional. As formas técnicas se apoiam em novos seres e práticas cibernéticas. A nova configuração das relações espaço-tempo com a recomposição das relações de classe combina um trabalho social precarizado com uma estruturação produtiva em rede. As novas tecnologias de processo e produto são organizadas por uma força de trabalho dividida entre o proletariado clássico, um amplo precariado e um novo cognariado, o trabalho degradado se articula com o trabalho imaterial (linguístico-comunicativo). A subjetividade e o corpo são remetabolizados pela nova máquina globalizada que aciona as diversidades, explora as diferenças e entre em choque com as novas resistências. O dispositivo cibernético vem apoiando a concentração e a centralizado do complexo dos saberes e das práticas reprodutivas através da montagem das redes, das mensagens, e das informações que apóiam a nova “grande transformação” mundial, que se dá através da espoliação dos territórios, das moedas e do trabalho pela potência imanente da acumulação de capital. Regime de acumulação e pós-modernidade A conjuntura histórica que se abre com a crise dos pactos estabelecidos no pós-guerra, com a mudança no regime de acumulação, com a expansão das novas forças produtivas impulsionadas pela terceira revolução industrial, a automação flexível e as novas tecnologias, exige uma leitura que identifique a dialética entre legitimação e recursos cognitivos que fazem parte da armadura de reprodução de elementos de quase hegemonia, em meio aos ciclos curtos e ajustes estruturais e espaciais porque passa a economia política internacional na sua forma de economia política global. A cultura pós-moderna das virtualidades, do simulacro e do espetáculo opera com registros que atuam conectando os mais variados subsistemas de dispositivos que permitem ações de reorganização parcial, que configuram as características necessárias para compensar a desmedida gerada pela necessidade de gerar fronteiras e recursos para intensidades de reprodução ampliada que seguem o ritmo dos circuitos do capital financeiro autonomizado em fluxo digital on-line, on-web, 24hs por dia.

12 GRAMSCI, Antonio. Americanismo e Fordismo.Quaderno 22. Introduzione e note di Franco De Felice.

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A partir do esquema montado por Robert Cox13 sobre a formação de ordens mundiais podemos sugerir que: as novas forças sociais (transnacionais) que moldam e interagem com as novas formas de estado (neoliberalismo) e constitui uma nova quase ordem global do novo constitucionalismo do capitalismo global de que nos fala Stephen Gill14. Essa quase ordem em transição permanente funciona com base em limitada capacidade de supremacia, mas com força suficiente para gestar um regime político que se reproduz sem hegemonia, entre a contra-reforma neoliberal e a espiral da revolução cibernética. A capacidade de conduzir uma revolução passiva global depende e se apoia nos mais variados recursos materiais e ideológicos que articulam mercado-ciência-ideologia. A capacidade de reprodução ampliada global da legitimidade do sistema de acumulação ilimitada é reafirmada pela cultura pós-moderna, legitimada pela profusão de objetos e imagens, onde as tecnociências são o duplo do binômio consumo e segurança. O capitalismo global com sua lógica cultural pós-moderna opera através do sistema das relações sociais de produção (regime acumulação flexível) com seus padrões de financiamento, produção, distribuição, circulação e consumo que incidem pelas redes e fluxos sobre os mais diversos processos de espacialização, numa dialética entre desterritorialização e territorialização. O mercado é a mensagem Na contemporaneidade o mercado aparece como estrutura e mensagem, sistema de informação e rede de fluxos que imprime os ritmos e comprime os espaços, na montagem de um capitalismo globalizado que se apóia numa forma ideológica dominante, pela afirmação da centralidade das tecnociências, cuja materialidade e lógica instrumental atravessam a vida cotidiana, colonizando as práticas dos indivíduos e grupos sociais, difundindo imagens e objetos, hierarquizando saberes, mobilizando corpos e desejos num efeito reiterativo que legitima as relações de produção de um regime proprietário levado ao paroxismo. A linguagem e os aparatos de ciência e tecnologia se projetam no mundo das redes e fluxos que dependem de modos de controle, modelos de aprendizagem e recrutamento de quadros, constituindo um novo espírito da gestão do capital, um novo espírito do capitalismo15. O novo ethos individualista e possessivo se apóia em campos de saber, 13 O esquema de Cox se encontra na P138 de COX, Robert. Social Forces, States and World Orders: Beyond InternationalRelations Theory. In Millennium - Journal of International Studies June 1981 vol. 10 no. 2 126-155 14 A definição de capitalismo global que utilizamos leva em conta a montagem de quadros institucionais e jurídicos assemelhados no espaço global , impulso transnacional para garantir as condições de atratividade, segurança e os interesses do bloco social transnacional que se articula pelo ciberespaço global, o mesmo vale para a construção de resistências e estratégias contra-hegemônicas por parte de movimentos sociais e forçar anticapitalistas, vide GILL, Stephen. Power and Resistance in the New World Order. Second fully evised,updated & enlarged edition. London and New York: Macmillan-Palgrave, 2008 15 O processo de institucionalização e legitimação de novos enfoques e estratégias de construção de projetos e programas de pesquisa seguem as linhas da lógica pós-moderna desde o final do século XX. A doutrina do fim das “grandes narrativas”

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dispositivos e aparelhos de dominação, materializado em lógicas de produção e consumo. Os modos de reprodução social são todos atravessados pela emergência de novos sistemas de controle com base nas aplicações das ciências ao conjunto das práticas humanas. O mega projeto de transnacionalização e mundialização do capital tem bases estruturadas através de uma ciência dos dispositivos de comando e controle, que preparou, consolidou e a tecnologia como um verdadeiro aparelho de hegemonia que se expressa pela ideologia do capitalismo tardio estetizada pelas suas formas e variações espaciais que são tão bem delineadas por Edward Soja16 (geografias pós-modernas), Fredric Jameson17 (lógica cultural do capitalismo tardio) e David Harvey18 (condição pós-moderna). O modo de produção capitalista e os seus dispositivos de poder global estão articulados por um complexo de instrumentos e dispositivos que se afirmam as bases “científicas” da “via única” neoliberal. A lógica financeira trabalha sob a forma de projeções que são reiteradas pelo uso continuado de sistemas e dispositivos que seguem modelos e projeções matemáticas, que assimilam o caráter caótico e crítico dos processos de reprodução social ampliada do capital. Identificamos nas relações entre novas ciências, tecnociências e, sua síntese no campo disciplinar da cibernética, como único fator capaz de preparar e mobilizar as capacidades intelectuais e cognitivas, organizar a cultura do bloco social dominante transnacional. O seu componente intelectual de tipo “universal” é ordenado pela via do cimento dado pela ideologia processual e prática que se afirma no primado das tecnologias economicamente orientadas, condição para lidar e fazer avançar as dinâmicas de mundialização. O poder de captura, de subjetivação, próprio do capitalismo tardio se encontra sustentado por um conjunto de saberes que são articulados pela informação como unidade básica, como capital-mercadoria. Isto é, pela mensagem como elemento encadeador e mobilizador das interações e conexões, onde o regime de legitimação e produção da verdade é composto por performances e programas, que compõe a cena dos ambientes inteligentes. Laboratórios, observatórios, centrais de informação, escritórios de empresas, a NASA, a CIA ou a Bolsa de NY, as arquiteturas de interior dessas agências e instituições se parecem, são como as salas de comando das VOYAGER e INTERPRISE da ficção científica. A ciência tem sua expressão teórica e prática no plano das forças produtivas, como tecnologia que nos remete ao campo disciplinar da cibernética que se escreve em todas as direções do espaço telemático no qual tod@s somos navegadores e navegados.

permite que as teorias e linguagens construídas (com base nas novas ciências e nas tecnologias de informação) se coloquem como mais adequadas para definir os horizontes das pesquisas. As práticas de produção de conhecimentos passam a se dar nos marcos da lógica das teconociências, dentro dos parâmetros e recortes de uma ação programada, vide LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1986. 16 SOJA, Edward. Postmodern geographies: the reassertion of space in critical theory. London:Verso, 1989. 17 JAMESON, Fredric. Pós-modernismo ou a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1996. 18 HARVEY, David. A Condição Pós-Moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992.

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Complexo cibernético e capitalismo global O discurso de classe com impacto internacional, mediado pelas diferentes formas de aplicação e alianças em blocos locais e nacionais opera com fator de geração de eficiência e eficácia de modo a promover a lógica de valorização do capital. Ao atravessar a vida social em escala global, agentes da transnacionalização promovem a abordagem ideológica da tecnologia e constroem os sistemas abertos através dos quais procuram articular a “mão invisível” do capital, que opera sobre as bases caóticas e turbulentas. Vivemos o espaço mundo dos desequilíbrios permanentes, com os quais só é possível lidar montando recortes parciais, subsistemas de informação, forças tarefas, produção de novos indicadores e proliferação de mensagens, provendo mecanismos de tomada de decisão, controle e comando de fluxos de bens, de serviços, de títulos e moedas, de capital. Coletando, gerando, processando informação, que se transforma em ação, que se torna objeto de análise, onde conhecimento opera sobre conhecimento, como vetor de comando, como vetor de acumulação, como produção de riqueza, como base para a produção do novo excedente, do novo excluído, das novas configurações do poder em rede19. O novo modelo cognitivo _ que articula os saberes empresariais, governamentais e a comunidade científica com incidência sobre parte dos trabalhadores da rede _, tem base nas abordagens teóricas do caos e da complexidade, o que permite ao sistema fugir para adiante face às crises. As capacidades materiais e cognitivas dos aparatos estatais-militares, corporativos-empresariais, tecnológicos, financeiros e produtivos permitem encadear processos e dar conta dos dispositivos de informação, comunicação e automação, dos circuitos de comando, de modo a lidar com situações de incerteza e risco próprios de todas as dimensões da vida e das práticas humanas. A cibernética se relaciona com essas dimensões de interpretação, simulação e virtualização que tomam a guerra e o mercado como objetos para serem operados por sistemas complexos de informações. Sistemas que permitem a construção de dispositivos e aparelhos capazes de lidar com decisões em meio a dinâmicas de competição, conflito e antagonismo, isto é, com base nos mais diversos processos de perda, dissipação e degradação de energia, informação e poder. O capitalismo global na era do controle digital, da especialização e da automação flexível tem nas tecnociências, nas ciências da informação/computação, nas tecnologias de comunicação, nos novos sistemas e processos biotecnológicos, na micro-física, nos novos modelos matemáticos, na topologia, na inteligência artificial, uma brutal capacidade de mobilizar recursos cognitivos e capacidades de adaptação e abertura de modo a lidar com os efeitos e conseqüências que nascem das contradições que lhe são imanentes. Essas estão materializadas em especial das desigualdades sócio-espaciais de classe, nas segregações étnicas, de sexo e de geração, são aprofundadas nas catástrofes ambientais, na superprodução e na queda da taxa de lucro, nas guerras localizadas, na fome e na competição pelo poder e monopólio sobre as armas nucleares, a moeda e a informação. Na articulação de todas essas dimensões existe um disputa sobre a possibilidade da emergência de uma nova sociedade do conhecimento, marcada por um

19 Os temas apresentados nesse trabalho deveriam ser articulados com um balanço das leituras realizadas a partir dos trabalhos de Manuel Castells e com as várias leituras do capitalismo cognitivo e as lógicas de produção linguístico-comunicativas, como fazem Antonio Negri e todo grupo que começou a colaborar nas revistas Futur Antérieur e depois em Multitudes.

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capital conhecimento que aparece como face positiva da ideologia tecnológica de base cibernética. Complexo cibernético e ordem O complexo de novas ciências20 e das tecnociências se relaciona com os novos aparatos, práticas e objetos que permitem ao sistema operar por inúmeros subsistemas e práticas abertas e dissipativas. O capitalismo incorpora o caos e a complexidade no âmbito do realismo de seus mecanismos de funcionamento e na formação de seu quadro intelectual de competências para governar, dirigir e comandar21. O que não impede que as forças cegas e a razão cínica tenham um papel para criar as justificativas de manutenção da ordem, da criação dos “inimigos” via lógicas de segregação e criminalização do “excedente humano” considerado disfuncional e potencialmente terrorista. Os resíduos sociais e as forças de protesto e resistência entram nos cálculos como sistemas paralelos de controle que acompanham os outros sistemas e lógicas matemáticas e abstratas. A capacidade de articular inúmeros canais, fluxos, subsistemas, espacialidades e hierarquias sociais e de objetos, incide no espaço que passa a ser usado e dominado por modelos instrumentais e técnicos que operam em planos de materialidade e virtualidade que podem contrastar sem que o sistema perca a força. Já que as incertezas, riscos e turbulências exigem sempre a retomada e aperfeiçoamento dos mecanismos tecnocientíficos, assim como, de normas e valores próprios do mercado. O que por analogia é também um espaço semiótico e semiológico, um espaço de informação e de mensagem, baseado na capacidade de construir os modelos de progressão, cálculo e avaliação, dos processos macro-econômicos qu, dependem da capacidade de combinar os modelos econométricos com os mecanismos de análise de riscos. O que orienta as potências do poder do capital a avançar na purificação dos processos. A Ordem e a segurança são fatores que nascem do medo, pois que, na razão cibernética se expressam na combinação do controle com a certeza do desequilíbrio. Articular uma abordagem sistêmica que leve em conta a dimensão de complexidade e, ao mesmo tempo, permita lidar com o poder de produzir e manipular a informação, como instrumento, mercadoria e arma22. 20 Pensar as novas ciências é ver a transformação nas fronteiras e interações entre as disciplina científicas. O efeito extraordinário das pesquisas com o uso de metodologias e ferramentas de processamento. O casamento de conhecimentos que definem novos patamares de investigação, com base em novas relações, que explicam os avanços derivados, por exemplo, da aproximação entre biologia e ciência da computação. Os avanços das abordagens (trans) disciplinares para a elaboração de computadores vivos ou de máquinas biológicos, bem como para as pesquisas do genoma humano são destacados por RIFKIN, Jeremy. O século da biotecnologia. São Paulo: Makron Books, 1999. 21 Para o tema dos processos dissipativos e dos desafios das novas questões espaço-temporais vide PRIGOGINE, Ilya e STENGERS, Isabelle. A nova aliança. 3ª Ed – Brasília: Editora UNB, 1997. 22 O processo de seleção e tratamento da informação dentro de sistemas auto-organizados/autopoiéticos é destacado por LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Petrópolis: Editora Vozes, 2009.

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A força da utopia cibernética está na sua certeza da degradação da energia, sua dupla potência técnica: como o trabalho sobre a organização e transmissão da mensagem, como trabalho de clareza e potência no comando dos processos humanos-maquínicos e nas suas interações, intersecções e interfaces. O mundo das forças e relações emergentes da globalização, das globalidades e das imbricações23 de relações, agências, sujeitos e processos, marcam a cidade global, as redes corporativas e as práticas dos sujeitos nas periferias, todos eles cabem, assim com a guerra, dentro de modos de tratamento e instrumentalização que são presididos por tecnologias e lógicas lingüístico-comunicativas, que nascem do hiperindustrialismo, da crise e da ruptura com os modos de regulação do capitalismo americanisto-fordista. O alcance da crítica à ideologia das tecnociências a partir da reflexão sobre a cibernética parece um caminho profícuo para a construção de uma abordagem da filosofia da tecnologia sob o prisma da teoria crítica, reforçada pela perspectiva da hegemonia24 Isto é, tendo em vista a formação de um bloco de forças alternativo capaz de democratizar e transformar as tecnologias, o que supõe uma abordagem crítica e uma reflexão sobre a estruturação cibernética que organiza os sistemas de controle político e produtivo na era do capitalismo global25. A questão de realizar tarefa de “tradução” crítica da cibernética sob a ótica da filosofia da práxis, desnaturalizando o determinismo tecnológico, parece um horizonte legítimo para a construção de construção de alternativas. Desta forma, pela via da reflexão crítica inaugurada pela chamada filosofia da tecnologia, será possível gerar projetos para lidar com as condições gerais do controle e do poder do capital. Uma espécie de cibernética crítica, que se apoia e amplia os debates sobre tecnologias sociais, deve atuar via criação de sistemas e dispositivos sócio-técnicos com base na complexidade e na abordagem cibernética. A análise das condições de hegemonia da cibernética à serviço do capital é parte das condições de criação de uma nova cultura, que permita a emergência de um novo bloco social e técnico de forças que lidem e valorizem com as contradições geradas pelo ciberespaço. A crítica da visão de mundo que se afirma como resultado da ciência como verdade inscrita no mundo dos objetos e das tecnologias deve sofrer a interrogação metafilosófica ou teórico crítica, de modo a 23 A expressão imbricação aparece na reflexão sobre os novos conjuntos de relações que marcam as transformações espaciais contemporâneas, no desdobramento dos estudos sobre a globalização realizados por SASSEN, Saskia. Critique de l’État. Territoire, autorité et droits, de l”époque médievale à nos jours. Paris:Éditions Demopolis-Le Monde Diplomatique, 2009. 24 Para a reflexão brasileira acerca da crítica ao modelo hegemônico da cultura científica e tecnológica capitalista, em especial ao modelo cognitivo dominante na comunidade científica temos as contribuições sobre a necessidade de um caminho radical der adequação sóciotécnica (AST) , como indicação de uma direção para o movimento de tecnologia social, vide DAGNINO, Renato(Org).Tecnologia Social. Ferramenta para construir outra sociedade. 2ªEd. Campinas: Komedi, 2010. 25 Para a crítica ao determinismo tecnológico no âmbito da construção de uma filosofia da tecnologia e de um horizonte político alternativo vide FEENBERG, Andrew. Transforming technology. A critical theory revisited. New York: Oxford University Press, 2002.

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que pudéssemos avançar na direção da superação das limitações que impedem o avanço do projeto de contra-hegemonia. Uma retomada de projetos emancipatórios precisa se afirmar como contracorrente no âmbito da disputa capaz de mobilizar e atrair os intelectuais, cientistas e técnicos, assim como o conjunto do novo corpo de trabalhadores, atualmente polarizados pelo modelo capitalista global, de um lado pelo consumo dos objetos técnicos e de outro pelo manejo acrítico das tecnologias. O desafio é o de construir uma nova cultura técnica e produtiva que permita lidar com as novas forças e potências produtivas pela via da crítica à ideologia da neutralidade e do poder das tecnologias. A crítica deve permitir a experimentação e a aprendizagem sobre a construção de contra-dispositivos. Outras trajetórias, novos espaços, outros usos, dependem de uma qualificação para o debate sobre “as tecnologias sociais” e a autogestão, que remeta a uma disputa no plano das propostas e da linguagem das novas tecnologias e da cibernética26. Uma critica das novas ciências e da sua implementação por meio das tecnociências, como crítica das relações sociais de produção transformadas pelo novo contexto informacional, comunicacional e mesmo biotecnológico que dá suporte aos mecanismos da lógica cultural, pós-moderna, do capitalismo tardio e da tentativa de espoliação da inteligência coletiva do trabalho pela instituição da propriedade intelectual. Crítica ao fetichismo tecnológico Nascido dos embates dos mecanismos de crise e de guerra no século XX, o saber cibernético assume sua potência e limite na sua tentativa de lidar com as dinâmicas e tendências, de degradação e catástrofe, nos mais diversos âmbitos das práticas humanas. O novo campo disciplinar nascido no quadro da segunda grande guerra mundial e afirmado na guerra fria, acaba projetando modos de análise e dispositivos para lidar com a reprodução do capitalismo, em contexto de prolongação e continuação de uma revolução passiva permanente. O que se manifesta pela afirmação da ciência, do saber e da tecnologia dos sistemas complexos, caóticos e dissipativos, tentando colocar ordem no caos através da batalha em torno dos mecanismos de informação, comunicação. Na batalha pelo controle e pelo comando das potências produtivas, do poder militar e do poder de comunicação na era da automação. No mundo da cibernética o homem unidimensional de Marcuse se torna consciente da sua multi e pluridimensionalidade em meio a ambientes cujas forças e riscos superam as formas sociais e as relações de produção existentes27. O que leva a introduzir nos dispositivos de poder a consciência da necessidade e do caminho forçado na direção da dinâmica de reprodução em quadro de desequilíbrio, como uma dialética negativa forçada que acaba desembocando na via única, na naturalização do mercado-informação. Vemos nessa reflexão, dos (intelectuais) dirigentes do sistema capitalista, um fator de consciência capaz de mobilizar a comunidade dos cientistas, capaz de gerar 26 Parte dessas questões são pontuadas ao longo da vida e da obra de Henri Lefebvre. Nos lmites de nosso debate destaco LEFEBVRE, Henri. Position:contre lês techonocrates em finir avec l!humanité-ficcion. Paris: Éditions Gonthier, 1967. 27 MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional. 5ª Ed- Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.

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um sistema de provas, sabres e estruturas de pesquisa, que se combinam bem com os parelhos de publicidade e marketing, bem como, com os mecanismos de força do sistema jurídico-carcerário e dos aparelhos de segurança militar e policial. Conclusão A cibernética aparece como uma ideologia e uma ciência das interações, das mensagens e das redes de informação e comunicação, que atravessam o sistema das forças produtivas sociais e as relações técnicas de produção no capitalismo global, flexível e em rede. A capacidade da linguagem dispositivo do (ciber)aparato que se reafirma e se reproduz como tecnologia de poder e de produção, pela profusão de produtos, imagens e informações. Processo pelo qual vai constituindo um meio-ambiente técnico-informacional hegemonizado pelos fluxos, objetos e redes. O que entra em choque com todas as linguagens e práticas nascidas das múltiplas espacialidades. Isto é, se choca com as forças sociais que definem demandas, antagonismos, promovem resistências e movimentos, em meio a essa estrutura significante (rede cibernética) que se relaciona com uma ampla gama de significados (informação e mensagem). As corporações, o Estado e a comunidade científica lançam os instrumentos, que agem como base para gerar os insumos para construir as respostas para os processos e ciclos de crise. Essas ações tornam o sistema capaz de acionar dispositivos de revolução passiva e transformismo num quadro de crise orgânica, através do uso do desenvolvimento desigual da mundialização financeirizada. O capitalismo global se expande, via fluxos e redes financeirizadas, via ajuste espacial e através da mudança na composição orgânica do capital com as novas tecnologias da informação e da comunicação, as biotecnologias e a especialização flexível no âmbito de uma nova divisão internacional do trabalho. O fetiche lingüístico da universalidade expansiva do capital, que se monta pela afirmação do discurso tecnológico, em especial o cibernético, exige uma leitura da sua constituição e materialidade. A sua crítica pode ser realizada, como indicamos ao longo desse artigo, a partir de uma análise dos aparelhos ideológicos que sustentam vários discursos e práticas sobre gestão, sustentabilidade, inovação e conhecimento. A crítica deve operar uma “tradução” das tecnociências, da cibernética, na direção da linguagem que permite a formação de uma nova práxis sustentada por um novo bloco social, cujo ponto de partida está no debate sobre as formas de propriedade sobrer o conhecimento, a arte, a vida e a potência produtiva da inteligência nas redes. A nova perspectiva da crítica cibernética permite gerar novos possíveis no plano da vida social animando novas forças sociais, gerando novos contextos e fortalecendo vontades coletivas que sustentam uma concepção crítica da pós-modernidade cultural. A nova cibercultura voltada para a sociedade do conhecimento deve funcionar como um conjunto de práticas de ruptura na direção da auto-regulação, da auto-organização, dirigindo os achados iniciais das novas ciências e tecnologias para o social, o cooperativo, o público e o comum. Uma operação filosófica e cultural de crítica à forma ideológica sustentada na formulação inaugurada pela cibernética, exige o reconhecimento das contradições imanentes aos processos tecnológicos, enquanto estrutura e superestrutura do capitalismo contemporâneo que nos forma e informa, da qual somos produtores e produtos.

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