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PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA GABINETE DE SEGURANÇA INSTITUCIONAL SECRETARIA DE ACOMPANHAMENTO E ESTUDOS INSTITUCIONAIS Brasília Abril / Maio - 2004 CICLO DE ESTUDOS SOBRE A AMAZÔNIA

CICLO DE ESTUDOS SOBRE A AMAZÔNIAdadosabertos.presidencia.gov.br/dataset/a20f69e0-2807... · 2018-05-21 · Ciclo de Estudos sobre a Amazônia Em seguida, José Alberto Cunha Couto

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PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICAGABINETE DE SEGURANÇA INSTITUCIONAL

SECRETARIA DE ACOMPANHAMENTO E ESTUDOS INSTITUCIONAIS

BrasíliaAbril / Maio - 2004

CICLO DE ESTUDOS SOBRE A AMAZÔNIA

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASILPresidente: Luiz Inácio Lula da Silva

GABINETE DE SEGURANÇA INSTITUCIONALMinistro: Jorge Armando Felix

SECRETARIA DE ACOMPANHAMENTO E ESTUDOS INSTITUCIONAISSecretário: José Alberto Cunha Couto

Edição: Secretaria de Acompanhamento e Estudos InstitucionaisEndereço para correspondência:Praça dos Três PoderesPalácio do Planalto, 4° andar, sala 130Brasília - DF CEP 70150 - 900Telefone: (61) 3411 1374 Fax: (61) 3411 1297E-mail: [email protected]

Criação e editoração eletrônica: CT Comunicação LtdaImpressão: Santa Clara Editora - Produção de Livros Ltda A presente publicação expressa a opinião dos autores dos textos e não reflete necessariamente a posição do Gabinete de Segurança Institucional.

C568

CDD 338.981

Ciclo de Estudos sobre a Amazônia (Brasília: 2004). Brasília: Gabinete de Segurança Institucional; Secretaria de Acompanhamento e Estudos Institucionais, 2004.281 p.

1. Amazônia. 2. Desenvolvimento Sustentável. 3. Geopolítica. 4. Fronteira. I. Presidência da República. II. Gabinete de Segurança Institucional

IRelatório da Palestra sobre Desenvolvimento Sustentável da Amazônia ................................................................ 05

IICultivos Ilícitos na Colômbia e Geopolítica Hemisférica ............. 33 Gloria Maria Vargas

IIIProdução de Drogas na Colômbia e Seus Reflexos para a Amazônia Brasileira .............................................................. 61 Rodrigo de Aquino

IVRelatório da Reunião de Estudos .................................................... 71

VAmazônia: uma Área – Pivot para uma Nova Política Brasileira ..................................................................... 95Francisco Carlos Teixeira da Silva

VILimitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica ........................................................................... 135Bertha K. Becker

VIIRelatório do Encontro de Estudos ................................................... 221

Sumário

RelatóRio da PalestRa sobRe desenvolvimento sustentável da amazônia

Relatório da Palestra sobre Desenvolvimento Sustentável da Amazônia

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aPResentação

Com o objetivo de aprofundar os conhecimentos sobre áreas estratégicas de interesse do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (GSI/PR), a Coordenadoria de Estudos da Secretaria de Acompanhamento e Estudos Institucionais (Saei) idealizou o Ciclo de Estudos sobre a Amazônia com uma série de três eventos: Palestra, Reunião e Encontro de Estudos – que reunirá especialistas, pesquisadores, técnicos e estudiosos da temática ambiental que, com seus conhecimen-tos e experiências poderão auxiliar na construção e aprofundamento da referida temática e, dessa forma, contribuir para formulação de políticas e ações de Governo.

O primeiro da série de três eventos foi a Palestra realizada na manhã do dia 15 de abril de 2004, no Auditório de Videodifusão do Pa-lácio do Planalto, que contou com a participação de cerca de 35 pessoas, entre técnicos do Governo, acadêmicos, especialistas e representantes de organizações da sociedade civil organizada.

A palestra abordou o tema Desenvolvimento Sustentável da Amazônia e teve como conferencista Edna Maria Ramos de Castro, Doutora em Ciências Sociais e Professora do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) da Universidade Federal do Pará.

A abertura do evento foi realizada pelo Senhor José Alberto Cunha Couto, Secretário de Acompanhamento e Estudos Institucionais (Saei), que agradeceu a presença dos participantes fazendo referência especial ao Almirante Barbosa, representante do Ministério da Defesa; ao Senhor Flávio Montiel, Diretor de Proteção Ambiental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), e também ao Professor Luiz Aragon, Coordenador Geral do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) da Universidade Federal do Pará.

Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Em seguida, José Alberto Cunha Couto fez uma breve contextu-alização das atividades da Saei dentro da área de atuação da Secretaria Executiva do Conselho de Defesa Nacional, que é um colegiado de Estado, e da Secretaria Executiva da Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional (Creden), que é um Colegiado de Governo.

O Secretário explicou que há temas que são acompanhados pela Saei porque têm potencial de gerar crises para o Governo ou para o Estado, e necessitam de um aprofundamento da área de estudos, esse corpo de conhecimentos é então discutido dentro de câmaras próprias, ou seja, se o assunto é de Estado é encaminhado para o Conselho de Defesa Nacional ou se o assunto diz respeito ao governo, então ele seria encaminhado para a Creden.

Finalizando, ressaltou que a realização dos eventos que têm por objetivo discutir temáticas importantes para as ações governamentais não se restringe apenas às discussões pontuais, ao contrário, apresentam desdobramentos com aplicações concretas dentro das políticas de Estado ou de Governo.

Parte i – apresentação da Professora edna Castro, Pesquisadora do núcleo de altos estudos amazônicos (naea) da univer-sidade Federal do Pará

A Professora iniciou sua apresentação agradecendo ao convite para participar do evento e agradecendo também ao Secretário da Saei, José Alberto Cunha Couto e ao Coordenador de Estudos, José Carlos de Araújo Leitão.

Informou que privilegiaria quatro itens em função da exigüidade do tempo e que iniciaria sua apresentação realizando uma contextua-

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lização sobre a Amazônia, lugar onde desenvolve seu trabalho e sua reflexão acadêmica. Ressaltou as diferentes perspectivas de se perceber a Amazônia e chamou a atenção para os diversos olhares e percepções do contexto amazônico, destacando sua visão de pesquisadora sobre o desenvolvimento, a história, bem como as contradições da região.

Explicou que, em função da complexidade temática optou por dividir a apresentação em quatro temas, que segundo ela, seriam os mais polêmicos em relação à Amazônia:

1. Políticas de Desenvolvimento e Meio Ambiente;Políticas de Desenvolvimento e Meio Ambiente;2. Dinâmicas dos Atores Sociais e Problemas Ambientais;Dinâmicas dos Atores Sociais e Problemas Ambientais;3. Cidades e Meio Ambiente;Cidades e Meio Ambiente;4. A Integração da Pan-Amazônia.A Integração da Pan-Amazônia.

Em relação ao primeiro tema: Políticas de Desenvolvimento e Meio Ambiente, Edna Castro destacou que é o tema sobre o qual o NAEA se debruça e que não dá para pensar o desenvolvimento como algo que subordina o meio ambiente ou pensar em meio ambiente fora do contexto de desenvolvimento e que, portanto, esse binômio representaria a utopia da comunidade científica, da comunidade internacional e da sociedade brasileira há mais de vinte anos.

Traçando uma contextualização histórica dos planos de desen-volvimento para a Amazônia, Edna Castro se reportou aos anos de1970 onde foi retomado o conceito de integração agregado aos programas de colonização, de agricultura e de migração. A abertura dos grandes eixos, dentro de um contexto do programa de integração e de infra-estrutura foram fundamentais para o recorte atual da Amazônia, como a Transamazônica, Cuiabá-Santarém e a Perimetral Norte.

Nos anos de 1980, houve a continuidade de alguns programas, porém com definições importantes a partir do aparecimento de temas

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

relacionados à macro estrutura de macro desenvolvimento. Os impactos ambientais começam a ser percebidos e contestados ou apresentados por diferentes atores e também pelo aparecimento de grandes projetos e os interesses de novas áreas de fronteiras. Nesse contexto, surgem novas dinâmicas socioeconômicas e de territorialidade aparece assim os movimentos sociais que estão presentes em função de uma discussão relacionada ao território, aos recursos e ao fortalecimento de estruturas institucionais como Ongs e outros movimentos, consolidando assim um processo de mudança regional.

O programa Avança Brasil e a revalorização do conceito de inte-gração redefiniram essa matriz dos novos planos de desenvolvimento e da percepção da Amazônia enquanto uma fronteira consolidada.

O que haveria de novo e o que constituiria grandes desafios para pensar a Amazônia nesse novo milênio? Questionou. Para Edna Castro, a percepção atual, sobretudo a partir da década de 1990, é de uma Amazônia mais Pan-Amazônica, embora este debate esteja presente há muito tempo. Destacou que em relação à criação do NAEA, em 1973, o mesmo surgiu como um Curso de Especialização Pan-Amazônico, com alunos de países limítrofes com a Amazônia brasileira. Desde a década de 1970 vem ocorrendo um processo acelerado de integração de mercados com uma nova fase da globalização e isto tudo, estaria ligado a uma outra matriz geopolítica. Conseqüentemente, pensar a Amazônia nessa dimen-são da Pan-Amazônia, da integração de um mercado global, é algo que vai muito além da possibilidade do País de pensar um desenvolvimento interno, dentro do próprio País, ou seja, da Região Amazônica.

O tema seguinte foi Dinâmicas dos Atores Sociais e Problemas Ambientais. Ressaltou que sua análise sobre a dinâmica do desmata-mento está ligada a uma perspectiva metodológica de entender quais seriam os atores que agem no território - ao mesmo tempo regional, nacional e também internacional. Dentro dessa perspectiva metodológica

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é necessário identificar: quais são os interesses que movem esses atores? Quais são os seus projetos e como esses projetos estão levando, ao lon-go dos anos, a um processo de desmatamento, apesar de todo o esforço do Ministério do Meio Ambiente e de todo um conjunto institucional, incluindo as Organizações Não Governamentais?

Declarou que dados obtidos recentemente mostram que de 1978 a 2000, em diferentes estados da Amazônia Legal, o processo de cres-cimento do desmatamento se manteve. Porém, nos Estados do Pará, Rondônia e Mato Grosso esse crescimento foi muito mais acentuado. Já no Amapá e Amazonas, o desmatamento foi menor. Apontou ainda a importância de absorver essa informação - não como um dado estáti-co, mas como um movimento que se expande no Território e que está relacionado com uma história nacional de atores sociais. Haveria um processo de expansão de certas atividades migratórias como a pecuária, a soja e a exploração madeireira.

A questão econômica é fundamental para se entender as diversas variáveis, a dinâmica espacial dos atores sociais e ao mesmo tempo, a dinâmica da própria atividade e do crescimento do País que está direta-mente interligado com a ocupação das novas fronteiras.

Ao expor as áreas de desmatamento analisou que há várias inter-pretações de especialistas e pesquisadores sobre a questão, inclusive de que o desmatamento diminuirá porque as áreas já estão ficando consoli-dadas. O Sudeste do Pará não é mais uma área de fronteira, é uma área de uma economia pecuária já organizada, estruturada, que verticaliza a partir daí toda uma cadeia leiteira, acontecendo o mesmo nos Estados do Maranhão, Goiás e Tocantins.

Há um entendimento de que este processo pode estagnar-se, porém, ele tende a ampliar-se, tanto em termos absolutos como em termos relativos, em função de novas áreas que estão sendo incorporadas à atividade econômica de uma maneira mais célere.

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O estudo desenvolvido pela Sudene e pelo Ministério do Meio Ambiente, publicado em 2002, mostrou que o montante de áreas que ainda podem ser ocupadas equivalem à cerca de 20 milhões de hecta-res, sendo no Mato Grosso, em torno de 10 milhões de hectares. Isto significa que se essas áreas, pensadas como áreas potenciais para soja, se tornarem efetivas, não é possível deduzir se haverá uma redução da taxa de desmatamento uma vez que, há expansão de uma atividade que se direciona para áreas degradadas.

Porém, esta interpretação é também questionável, afirmou. Em relação ao desmatamento para plantação de soja, assegurou que a soja pode não pressionar o desmatamento porque utiliza áreas degradadas. Em compensação, impulsiona a compra de áreas que estão sendo desmatadas por outras atividades, como no caso da pecuária, da extração madeireira ou da mineração. Esta dinâmica reafirmou, precisa ser entendida em sua complexidade para efeito de pensar políticas de desenvolvimento de uma maneira mais correta do ponto de vista ambiental.

Em relação à participação dos Estados, referiu-se aos dados do Ibama, do Inpe e do Ibge que permitem uma análise dos municípios. É importante que se pense essas unidades menores em termos de políticas para que possam ser aplicadas e avaliadas nos municípios.

Ao apresentar um mapa onde exibiu a área denominada “Arco do Desmatamento”, Edna Castro afirmou que o fez para fazer uma referência a um limite que não está graficamente bem representado, mas trata-se de uma área já consolidada.

De acordo com os dados do último Censo do Ibge, a Pesquisadora destacou que realmente diminuiu a migração inter-regional, ou seja, o Sul e o Sudeste não estão indo para o Norte, porém há uma reconfiguração dos fluxos migratórios dentro das mesmas atividades que migraram na década de 1970 e 1980. A velocidade do desmatamento, de acordo com Edna Castro, tende atualmente a ser maior do que foi nas quatro últimas

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décadas. Ressaltou que, a continuar nesse ritmo, provavelmente nossos netos não conhecerão a floresta. Apesar do pouco que restar, nunca irão saber o que foi a beleza dessa região, a riqueza e a biodiversidade da Amazônia.

Edna Castro questionou a relação entre a dinâmica dos atores so-ciais e as novas fronteiras com a questão ambiental. Em seguida, explicou que há uma expansão espacial o qual denominou de “novas fronteiras”, em função do grande número de ocupações. Ressaltou, porém, que não se deve analisar essas ocupações de uma forma homogênea, porque se corre o risco de não perceber as diferenças implícitas.

Em relação às atividades econômicas e novas oportunidades de mercado, Edna Castro enfatizou a pecuária e a soja, mas frisou que é possível fazer uma diversificação muito maior, levando-se em considera-ção todos os projetos energéticos que estão sendo pensados e uma série de serviços que vão aparecer em termos de transporte, de comunicação, de energia, de mineração. São atividades, afirmou, que vão relativizar, juntamente com a pecuária e a soja, a dinâmica de devastação na região nas próximas décadas.

De acordo com a pesquisadora este cenário tem a ver com a ação do Estado e que, portanto, cabe a ele, um papel dinâmico no processo de mudança da região, uma preocupação mais acentuada e rigorosa de avaliar as conseqüências ambientais dos planos nacionais de desenvol-vimento.

Finalizando o item referente às Dinâmicas dos Atores Sociais e Problemas Ambientais, Edna Castro salientou que a análise do desma-tamento está relacionada à questão da integração nacional - último item de sua exposição. Conclamou a uma reflexão sobre o fato de que todos os planos de desenvolvimento que vêm sendo executados ou que estão sendo planejados, se dirigem exatamente para as áreas que são próximas de fronteira e que são menos desmatadas.

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O terceiro tema abordado pela pesquisadora se refere a Cidades e Meio Ambiente. Enfatizou que quando se fala em desmatamento não se deve deixar de discutir a questão da urbanização. Explicou que embora desde o Censo de 1980 houvesse tendências mostrando que a Amazônia carecia de urbanização a taxas expressivas, o último Censo trouxe dados que consolidaram essa idéia.

Afirmou que a Amazônia possui uma das redes urbanas mais deficientes em termos de serviços do Brasil e, com o processo de expansão urbana é ressaltado o problema ambiental que não é mais da ordem do simples debate relacionado às florestas, aos rios, mas sim de uma outra ordem, que é intra-urbana e nas áreas do entorno das cidades.

A Pesquisadora apresentou uma fotografia do Porto de Belém, destacando que, é como gostaria de representar as cidades da Amazô-nia, que são cidades à beira de rios, de igarapés, de lagos. São cidades portuárias, que têm uma cultura, uma relação com a água bem diferente das cidades que nasceram nos eixos rodoviários, como todas as cidades da Transamazônica, da Cuiabá-Santarém e de outras estradas que nasce-ram de garimpos, de plantas de mineração ou de outros projetos nesses últimos 30 ou 40 anos na região.

Lembrou que houve uma tradição de ocupação pelo rio no País inteiro, porém, considerando o manancial de água e toda a rede hidro-gráfica da Amazônia, a questão urbana e o crescimento das cidades exige que se pense esta discussão a partir de uma grade de questões que dizem respeito às especificidades da cultura e do território regional.

Segundo a Pesquisadora, o maior ritmo de crescimento urbano no País, uma média anual de 4,82 no período de 91 a 2001 foi generalizado nos Estados amazônicos. O crescimento das médias e pequenas cidades, de 20 a 250 mil habitantes sofreu um processo maior de absorção de migrantes e de crescimento populacional.

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Houve uma redução do movimento migratório com uma forte diminuição das migrações inter-regionais para a Amazônia, fruto de uma tendência nacional de redução da taxa de crescimento demográfico - para a metade em três décadas - devido ao crescimento vegetativo que revelou taxas menores. Disse, ainda, que o ciclo de forte migração para a Amazônia acabou.

Há uma grande mobilidade populacional entre os estados e muni-cípios Amazônicos e uma migração intra-regional de setores econômicos da área consolidada que é a Amazônia, a exemplo do Tocantins, e de Mato Grosso. Destacou que na Amazônia Legal há uma migração forte de grupos econômicos já capitalizados em direção à região, o que não existia antes, bem como uma maior ocupação externa. Alguns municípios, afirmou, possuem uma taxa de crescimento elevada, uma concentração de população nas cidades de 50 mil habitantes onde, novos núcleos ur-banos têm sido formados.

Em seguida, Edna Castro se referiu aos problemas ambientais urbanos. Afirmou que há uma problemática ambiental de base instalada, isto é, há uma situação social, econômica e de serviços que em si já representa um problema não resolvido em décadas anteriores, e que hoje, com a urbanização, esses problemas são triplicados, dependendo do município e da área analisada. Há uma inadequação da infra-estrutura, de equipamentos urbanos e de esgotos sanitários, nas áreas urbanas.

Afirmou que os rios e igarapés nos maiores centros urbanos da Amazônia, como Belém e Manaus são os grandes depositórios dos esgotos que atravessam as cidades. Os pequenos igarapés são transformados em valas e assim verifica-se a instalação de um grave problema, porque isto tem uma relação direta com a saúde da população.

Ressaltou que os pesquisadores do NAEA se debruçam sobre a questão da saúde, meio ambiente e do lixo nas cidades amazônicas e que a região tem um índice de atendimento de serviços urbanos muito abaixo

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da média brasileira. Enfatizou que esses são apenas alguns indicadores que chamam a atenção para o problema ambiental e no que se refere à formulação e implantação de políticas públicas para a região.

Edna Castro expôs algumas fotos de áreas urbanas e ribeirinhas de Belém e chamou a atenção para a especificidade da região que, de acordo com a pesquisadora, tem a cidade e a área rural conectadas. O município de Belém possui uma profusão de ilhas - em torno de 39 - das quais, o arquipélago da embocadura no Estuário Amazônico, a grande Ilha do Marajó além de uma série de dezenas de ilhas que formam o arquipélago.

Essas ilhas, afirmou, possuem populações que vivem em relação direta com a água. A questão da cultura da água integra o urbano ao rural e é uma particularidade que precisa ser levada em conta porque é um vetor importante também em a relação à saúde e uma série de dimensões da vida urbana e social.

O último tema abordado por Edna Castro foi: A integração da Pan-Amazônia. A Pesquisadora informou que iria se reportar a uma questão que diz respeito ao Governo, à Sociedade civil organizada e à própria Academia, que seria a questão dos planos de integração da Pan-Amazônia e do Brasil.

Informou que levantaria algumas questões importantes ao debate que viria a ser realizado. Ressaltou que todos os itens abordados em sua apresentação têm uma relação direta com a discussão de integração, mes-mo porque o conceito de integração esteve presente em todo o processo de expansão de fronteiras, não só da Amazônia, mas, de todo o País, tendo ocorrido o mesmo em relação aos Estados Unidos e de maneira geral com toda a América. A integração seria então um conceito de base nos planos de desenvolvimento.

A Pesquisadora salientou que no discurso de Getúlio Vargas sobre

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o Rio Amazonas encontra-se uma narrativa fantástica da concepção de integração do País. Essa idéia de um projeto de conquista, de riqueza, de crescimento não é um projeto regional, mas sim nacional, e foi isso, segundo ela, que mobilizou as forças, os bandeirantes, e o desenvolvi-mento de São Paulo, e de outros Estados do Sul.

Seria, a partir dessa perspectiva, que o conceito de integração estaria diretamente ligado a conceito de desenvolvimento. Edna Castro acredita que esse conceito ainda permanece ligado a uma concepção tradicional porque foi desenvolvido junto às teorias de desenvolvimento das décadas de 30, 40, 50 e 60. Citou como exemplo a Teoria do Desen-volvimento e a Teoria do Subdesenvolvimento que tomaram o conceito de integração pela via da industrialização, da substituição de importações ou da infra-estrutura, um elemento chave do desenvolvimento.

Ressaltou que, sob seu ponto de vista o conceito tal qual é uti-lizado nos Planos Nacionais de Desenvolvimento ainda mantém essa fidelidade às teorias que o inspiraram. Edna Castro acredita que deveria haver um interesse em uma concepção diferente da relação do desenvol-vimento com o meio ambiente e que esse entendimento não se refere a uma posição pessoal, mas que é compartilhada por muitos autores que se debruçam sobre a questão.

Afirmou que o Estado Nacional retomou um papel fundamental que esteve presente na década de 1970 e 1980, e menos presente na dé-cada de 1990 com o macro planejamento, pensando o Brasil inteiro e a Amazônia, como espaço de alteração. Destacou que a integração passa pela questão Pan-Amazônica através de todos os planos dos corredores de integração, dos eixos de desenvolvimento e que no fundo são, em boa parte, uma integração pela infra-estrutura física.

Enfatizou ser a integração física fundamental. A população brasileira sonha chegar ao Peru; sair de Belém ou Manaus e chegar à Venezuela, à Caracas. Ressaltou que não se coloca contra a integração,

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apenas questiona se é possível pensar de uma outra forma, se é possível construir um outro pensamento considerando que esta região, queiramos ou não é única no planeta, em termos de biodiversidade, de riqueza aquá-tica, de floresta, enfim de todos os recursos naturais da Amazônia.

O desafio é saber se podemos ou não ser capazes de pensar um outro projeto, porque o projeto atual é da década de 1970, revitalizado. Destacou que a infra-estrutura física é a chave através da qual se conecta todo o sistema intermodal que liga os aeroportos, os portos. Edna Castro destacou a importância da preservação não apenas dos recursos naturais provenientes da floresta, mas, sobretudo da preservação do estoque de culturas da região, das culturas tradicionais que estão se esvaindo.

Observou que em função de seu trabalho viaja muito pela região e tem notado o crescimento das cidades e o deslocamento das populações tradicionais que estão abandonando as áreas anteriormente ocupadas. A população indígena, segundo ela, ainda está em suas terras, porém, a população tradicional ribeirinha está abandonando as áreas que ocupava.

Em relação às populações tradicionais, Edna Castro se referiu ao desaparecimento das parteiras tradicionais na região, em função da não reprodução desse saber entre os jovens. Frisou que apesar da existência de agentes de família, de saúde, há que se valorizar o conhecimento e a atuação da parteira tradicional e de outros saberes intrínsecos à cultura do povo da região. Destacou que a integração física é definitiva, irreversível. É necessário, ressaltou, pensar com antecedência como criar espaços de oportunidade que não sejam necessariamente só em uma única dimensão, de um desenvolvimento pensado tal qual marco estratégico.

Destacou que há uma percepção da Pan-Amazônia como um vazio demográfico, ressaltou, porém que a região possui 20 milhões de habitantes e de uma maneira geral não possui uma produtividade tão baixa que justifique o pensamento construído de que é necessária uma canalização maciça de investimentos para promover o desenvolvimento

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econômico. Segundo ela, é importante o desenvolvimento múltiplo, ou seja, o desenvolvimento econômico aliado a maior tecnologia com maior modernização e isso, assegurou, representa o sonho de todo brasileiro no atual mundo globalizado e justificou que não daria para assumir uma posição contrária a esse fato. Entretanto, enfatizou, não podemos usar estas aspirações como justificativa para um desenvolvimento a qualquer preço, somos suficientemente capazes para poder pensar ou experimentar outros modelos.

Finalizando, Edna Castro lançou algumas perguntas: Como equacionar a fórmula desenvolvimento e meio ambiente? Que modelos permitem incorporar novas alternativas de desenvolvimento? O modelo existente permitiria ou não? Qual o papel do Estado, face às situações de maior complexidade da conjuntura nacional e internacional? E, finalmente, como preservar o patrimônio social, cultural, econômico e ambiental de todos e de todas? De acordo com a Pesquisadora há um desafio ainda maior no novo milênio em função de um caráter político e econômico que se alterou e se tornou mais complexo nos cenários nacional e internacional.

PaRte ii – debates Após a apresentação foi dado início à sessão de debates que foi

conduzida pelo Conselheiro José Carlos de Araújo Leitão, Coordenador de Estudos da Saei.

A primeira pergunta foi formulada por Pedro Luiz Dalcero, Assessor da Presidência da República. Questionou o valor agregado de algumas experiências na região, ou seja, o que traria maior rentabilidade para a economia do País - se iniciativas como a reserva extrativista do

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Acre e outras similares na Amazônia ou uma plantação de soja no Sul do Pará ou no Estado de Mato Grosso. Quis saber ainda o retorno financeiro de uma reserva extrativista na Amazônia e se o NAEA possui uma linha de pesquisa que se debruça sobre a economia da região.

Em seguida, Pedro Dalcero reportou-se à questão da dificuldade do poder público de gerenciar a extensa região Amazônica, tanto em relação ao desenvolvimento de políticas públicas nas áreas de educação, saúde, segurança e infra-estrutura urbana, quanto em relação à defesa do território. Finalizou suas considerações questionando: Como vamos defender esta região? É colocando tropas, é colocando mecanismos de segurança eficazes, ou seria por intermédio do pleno funcionamento do Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam)?

A segunda pessoa a formular uma consideração foi Marcos Afonso Pontes de Souza, então Diretor Administrativo da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). Ressaltou a necessidade de se analisar a Amazônia de uma maneira não mais cartesiana, mas de forma holística no sentido etimológico de totalizante. Destacou que não se pode manter a visão cartesiana do homem animal, do homem floresta, é necessário ter uma visão dialética e dialógica da Amazônia, criar uma sinergia com os países da Amazônia. Enfatizou a necessidade de se trabalhar de forma sinérgica, buscar consensos nas políticas públicas, a exemplo do que vem fazendo a OTCA ao lado das universidades, centros de excelência, Governo e Sociedade Civil Organizada.

Respondendo às perguntas do primeiro bloco Edna Castro inicialmente se reportou à questão da produtividade econômica das diversas culturas na Amazônia. Destacou que em sua palestra chamou a atenção para a construção de um novo projeto de desenvolvimento que não seja único, que incorpore a idéia do múltiplo.

Observou que há, atualmente, uma quantidade enorme de experi-ências bem-sucedidas na Amazônia financiadas nos últimos 30 anos pelo

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Programa Piloto de Proteção às Florestas Tropicais do Brasil (PPG-7), pelo Ministério do Meio Ambiente e por uma série de organismos internacio-nais. Essas experiências, afirmou, conseguiram agregar valor, aumentar a qualidade dos produtos, criar oportunidades de novos empreendimentos.

Citou como exemplo a cadeia produtiva do beneficiamento da castanha que foi experimentada no Amapá, em Trombetas e em Ori-ximiná, no Pará. Com relação à reserva extrativista, a mesma deve ser vista como um importante caminho alternativo que deve ser valorizado e fomentado pelo Estado para que possibilite a inclusão de uma série de atores econômicos e sociais no processo, ao invés de valorizar-se apenas a soja e a pecuária, como acontece atualmente.

Citou como exemplo o município de São Félix do Xingu, que há quinze anos não tinha carne de gado e que muitas vezes essa carne vinha de avião do município de Redenção, em função da estrada às vezes apresentar-se intransitável. Hoje possui mais de 1 milhão de cabeças de gado e é área de expansão de fronteiras.

Concordou que pode ser evitado o risco de uma reprodução de oligarquias na fronteira e de incentivo ao narcotráfico. Referindo-se às pesquisas sobre narcotráfico na fronteira, citou o Pesquisador Roberto Araújo, do Museu Emílio Goeldi, que há cerca de quatro anos vem realizando estudos sobre tráfico na fronteira com a Colômbia e com a Venezuela. Destacou a importância da presença do Estado nas fronteiras e a necessidade de uma atenção especial em relação às questões da água, da floresta e das cabeceiras dos rios da Amazônia que estão todas nos países de fronteira. No que diz respeito à questão do planejamento das ações desenvolvidas na região amazônica, ressaltou que um planeja-mento malfeito redunda na potencialização de inúmeras “Rocinhas”, a exemplo de experiências produzidas em torno de grandes projetos que economicamente são viáveis, porém, o modelo que predominou foi o da percepção única, do desenvolvimento econômico a qualquer preço.

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Enfatizou que o processo de integração tem um custo social e ambiental que deve ser embutido para que haja viabilidade econômica do projeto. A Amazônia, afirmou, é uma região de pobres do Brasil e vem se tornando uma região cada vez mais pobre.

Sobre a integração, sugeriu que não se deve pensar apenas no custo econômico das estradas, da infra-estrutura. É preciso pensar o conjunto, por intermédio de uma percepção holística, dialética, onde entrariam todos esses coeficientes. Como ninguém fez isso nas décadas de 1970 ou 1980, o desafio que se impõe é: ou fazemos neste milênio ou não fazemos mais. Ressaltou que a Amazônia será a região da riqueza e da pobreza.

A pergunta seguinte partiu de Alberto Lourenço, do Ministério do Meio Ambiente, Coordenador do Programa Piloto de Proteção às Florestas Tropicais do Brasil (PPG-7) que se referiu à questão do plane-jamento que vem sendo desenvolvido no âmbito da elaboração do Plano Amazônia Sustentável (PAS). De acordo com o Coordenador do PPG-7, trata-se de um plano diferente, um plano de negociação, que reconhecendo o caráter de baixa institucionalidade, de ausência do Estado, de pouca disposição à cooperação, de antagonismo exacerbado entre diferentes atores, propõe uma estratégia de exposição de conflitos e de negociação pactuada de consensos, para formar de maneira muito rápida uma base institucional que permita a aderência a planos e políticas públicas com maior eficácia.

Ressaltou que desejava ouvir da Professora Edna Castro sua opi-nião sobre esse tipo de abordagem politizada e negociada para um novo planejamento, uma vez que ela fez referência ao planejamento clássico que na Amazônia gerou violência e exacerbação de conflitos.

A pergunta consecutiva do segundo bloco foi de José Alberto da Costa Machado, Coordenador-Geral de Estudos Econômicos e Empre-sariais da Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa). Após

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uma breve explanação sobre a questão da identidade regional amazônica, José Alberto Machado questionou se o surgimento dessa consciência sobre a identidade regional em face de uma certa indiferença nacional para com aquilo que é regional, não traria problemas de rupturas, de conflitos mais sérios que até agora estiveram latentes por uma certa impossibilidade dos atores institucionais da região.

Na seqüência, a Professora Edna Castro respondeu às duas questões apresentadas. Em relação à questão da identidade regional, ressaltou que o conceito de fronteira contestada é o conceito que traz à tona uma história e uma identidade regional. Queixou-se em relação ao fato dos especialistas e técnicos da região não serem ouvidos nem nos níveis macro nem setoriais, por ocasião da elaboração dos Planos de Desenvolvimento para a Amazônia.

Enfatizou que as pessoas que são ouvidas são que falam, estudam e que têm uma competência, mas não são da Amazônia. Frisou que as pessoas que lá trabalham e pesquisam deveriam participar da formulação dos planos e políticas para a região e serem ouvidas.

Afirmou que o planejamento atualmente é realizado de maneira tal que não existe um dimensionamento da população que ocupa um deter-minado espaço. A história cultural da população não é levada em conta, o que dá origem à institucionalização de certas práticas, como a identi-ficação arbitrária de terras levadas a cabo por alguns atores sociais.

Ressaltou que a Academia se debruça sobre atores e temas da história que trabalham a questão da identidade a exemplo dos serin-gueiros; das mulheres quebradeiras de coco de babaçu e das mulheres indígenas. Há uma história regional que baliza a constituição de grupos, de conceitos e de um modo de vida.

Em relação ao Plano Amazônia Sustentável (PAS), Edna Castro ressaltou que o mesmo propõe uma estratégia de exposição de conflitos, de negociação politizada e uma metodologia muito interessante e que

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

tenta recuperar uma história recente das experiências de desenvolvimento sustentável, mas destacou não ser esta a questão central. A força do pro-cesso de mudança vem pela política econômica, explicou e, de acordo com ela, na política econômica macro esses processos são concebidos.

A Pesquisadora acredita que o desenvolvimento tem que estar integrado com a política econômica e que o Governo não pode fazer uma política, um planejamento para a sociedade civil se não incluí-la como ator principal. A sociedade civil, destacou, tem que se organizar, participar ativamente da gestão dos programas nos quais acredita e do planejamento econômico, do contrário vai apenas legitimar um processo econômico.

O bloco seguinte de perguntas foi aberto por Pepeu Garcia, Diretor da Agência de Desenvolvimento da Amazônia (ADA) que perguntou à Professora Edna Castro qual seria a melhor opção para o desenvolvi-mento sustentável da região levando-se em consideração o cultivo de várias culturas, bem como o Zoneamento Ecológico Econômico (ZEE) para a região.

Em seguida, Paulo Moutinho, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), teceu algumas considerações e solicitou à Pro-fessora Edna Castro que comentasse a respeito do papel do Estado no gerenciamento de um bem público e de um recurso estratégico que é a Floresta Amazônica, levando-se em consideração a importância da região no que diz respeito à segurança climática e segurança alimentar do País como um todo. Enfatizou que estudos recentes têm demonstrado que a retirada da cobertura florestal pode reduzir sobremaneira a precipitação, não só na Amazônia, mas também no Sul e Sudeste do País.

Ela destacou a relevância da questão não apenas no plano local, mas também numa dimensão macro regional ou de país, se referindo à floresta como um imenso estoque de carbono que se liberado para a atmosfera, agravaria o efeito estufa.

Relatório da Palestra sobre Desenvolvimento Sustentável da Amazônia

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Abordou ainda a possibilidade de se implementar nos próximos anos uma política de serviços ambientais e a remuneração desses serviços, fazendo com que a Amazônia e o Governo brasileiro prestem um bem não só para quem está na região, mas para o mundo como um todo.

Ressaltou que alguns programas do Governo atual, como o Pró-Ambiente, por exemplo, já levam em consideração a remuneração de serviços ambientais a pequenos agricultores. Chamou também a atenção para a questão da organização social que existe na Amazônia e da capacidade de organização das lideranças. Citou como exemplos recentes encontros que ocorreram na rodovia Santarém-Cuiabá que contaram com a ampla participação de movimentos sociais da região e de autoridades como o Ministro Ciro Gomes, da Integração Nacional e a Ministra Marina Silva, do Meio Ambiente.

Respondendo às perguntas, Edna Castro ressaltou que concordava com a afirmação de que há uma dificuldade de percepção dentro da região em relação à implantação de uma política comum. Haveria, segundo ela, um hermetismo de cada estado, principalmente com relação à economia. No tocante à produtividade de atividades econômicas, como por exem-plo, a cadeia do gado, destacou que há um aumento impressionante da posição do Pará e do Mato Grosso e, que seria importante tentar avaliar economicamente essa produtividade em relação à produtividade de outros setores para analisar a questão da diversidade. Destacou alguns estudos que estão sendo feitos pelo pessoal vinculado ao Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), em Santarém, que mostram como os circuitos de pesca chegam a outros países pelas vias tradicionais de circulação da região.

Afirmou que há uma extensão dessas atividades de geração de economias que não são contabilizadas e que não se tem, sobretudo da pesca, informações sobre a análise econômica do setor. Em relação ao Zoneamento Ecológico Econômico, afirmou que o ideal seria pensar

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

em um zoneamento, que tivesse a ver com uma análise de equipes que percebem essa dinâmica a partir de certas linhas de pesquisa, e também em relação à própria atividade desenvolvida pelos atores locais. Assim haveria uma enorme capacidade organizativa instalada, tanto do ponto de vista político como do econômico.

Se pegarmos, ponderou, várias cadeias de produção, veremos que sobre elas não há controle nem do Estado, nem do município, nem da União. Também não existe uma avaliação completa do ponto de vista de análise de pesquisas.

Com relação à segunda pergunta do bloco, Edna Castro destacou a pertinência da abordagem da floresta como bem público e como recurso estratégico. Não é simplesmente a questão da floresta em pé ou da madeira que está empatando a presença de atividades lucrativas como a pecuária, a soja, o arroz ou o feijão. A floresta apresenta um valor agregado de uma série de recursos e funções de segurança climática, alimentar, social e também de equilíbrio na geopolítica de recursos naturais de abrangência mundial.

Ressaltou que há uma capacidade de organização social que nos permite dizer: grupos que vivem na Amazônia podem ser gestores de processos e de idéias que venham enriquecer a sociedade do futuro. Eles têm uma visão diferente do técnico e do planejador que está no gabinete. Eles possuem, continuou, uma informação que é a informação da expe-riência social, da experiência vivida. Citou como exemplo a experiência de uma enorme clareira na floresta e de uma floresta em pé. Para alguém que vive lá, as duas coisas representam realidades diferentes.

Estas duas situações, porém, explicou, não dão a mesma informa-ção para quem está distante fazendo o planejamento. Quer dizer, a grande clareira, uma grande área desmatada, significa um grande potencial para iniciar uma atividade econômica, e não o que se perdeu como serviços ambientais, sociais, e outros benefícios.

Relatório da Palestra sobre Desenvolvimento Sustentável da Amazônia

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Esta é uma das questões chave que, segundo a pesquisadora, precisa ser levada em consideração quando se fala de floresta e da água, porque muitas vezes, dissociamos água da floresta. Quando falamos de desmatamento, de empobrecimento do solo e de intensificação de uma cultura - uma monocultura - falamos da perda de qualidade da água.

Afirmou que há uma questão geopolítica, uma questão de saúde das relações internacionais do Brasil com os países vizinhos que tem a ver com a preservação da floresta e dos rios. Explicou que as cabeceiras dos rios mais importantes que fluem para as nossas ricas bacias hidro-gráficas vêem dos países vizinhos.

Comentou que a relação entre saúde e meio ambiente se refere a uma sociedade que tem condições de continuar se reproduzindo com qualidade, no sentido de que a saúde não é exclusivamente a saúde humana. Quando nos referimos à saúde, falamos da saúde humana e que tem a ver com o meio ambiente enquanto ecossistema, em uma percepção holística no sentido da importância de se pensar a questão ambiental.

O último bloco de perguntas foi iniciado com a intervenção do Professor Gelio Fregapani, da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Inicialmente, o Professor se referiu às reservas extrativistas que, na sua opinião, não podem ser comparadas aos seringais em função da sazona-lidade e do caráter transitório das mesmas em oposição ao caráter perene dos seringais. Argumentou que, apesar de amar a floresta, acredita que se a floresta for preservada intocável, a população futura a conhecerá, embora não haverá emprego. Enfatizou que analisa a preservação flo-restal dentro de dois cenários: um otimista, que seria o da preservação, em detrimento dos empregos; e outro pessimista, que seria a ocupação e destruição da floresta.

Em seguida, Pedro Dalcero, Assessor da Presidência da República, interveio novamente com o objetivo de propor ao NAEA um programa de trabalho que procure fundir as duas concepções sobre a Amazônia:

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a soberana e a cidadã. Enfatizou que o problema na Amazônia não é a presença de militares (que deveria ter seus efetivos triplicados), mas sim a soja e a reprodução, na Amazônia, de modelos econômicos imitativos. Ressaltou que a reunião estava sendo realizada no Palácio do Planalto sob a coordenação do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e que seria uma excelente oportunidade para arregimentar os atores sociais, o Estado, bem como a sociedade civil para dialogar e buscar um projeto para a Amazônia, inclusive incorporando contribuições de pessoas da região.

Sua proposta para o NAEA seria buscar uma fusão dos diversos discursos, inclusive o da soberania, afirmando não acreditar na interna-cionalização da Amazônia. Finalizando, propôs que o GSI e o NAEA tentem, por intermédio da troca de conhecimentos e experiências com os diversos atores sociais, a reconstrução de um novo discurso que incorpore a soberania e a cidadania.

Respondendo ao último bloco de perguntas, Edna Castro afirmou que se reportaria inicialmente à questão da soja e em seguida se deteria nos questionamentos do Professor Fregapani.

Em relação à produção de soja na Amazônia Legal no período de 1990 a 1999, informou que no Estado de Mato Grosso, a área colhida de um milhão e quinhentos mil hectares expandiu-se para os atuais dois milhões e quinhentos e quarenta e oito mil hectares. De acordo com a Pesquisadora, os Estados que mais aumentaram a produção na última década foram Maranhão, Mato Grosso, Pará e Roraima.

Afirmou que há uma febre de plantação de soja e uma crença na soja como redentora do desenvolvimento. Referiu-se a algumas experi-ências de pesquisas no Mato Grosso e no Mato Grosso do Sul, nas áreas de ciências sociais e ciências econômicas, que mostram um processo de desenvolvimento, uma revolução tecnológica e econômica em curso.

Relatório da Palestra sobre Desenvolvimento Sustentável da Amazônia

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Em relação à abordagem do Professor Fregapani, Edna Castro ressaltou que ambos possuem concepções diferentes no que diz respeito à questão indígena. Destacou que as culturas nunca desaparecem por um processo tranqüilo, há sempre um processo de conflito e de tensão, uma tentativa de resistência. Enfatizou que em sua apresentação não se referiu unicamente ao desaparecimento das culturas, mas sim ao processo de resistência interna, principalmente ao se referir ao desaparecimento da profissão da parteira tradicional na Amazônia.

De acordo com a Pesquisadora, o desaparecimento de culturas está relacionado ao caráter dialético de mudança inerente à própria sociedade. Concluiu afirmando que é necessário se pensar numa sociedade de forma mais eqüitativa e ter consciência da existência de concepções diferentes, mas nem por isso contrárias - a exemplo da concepção soberana e da cidadã. Finalizou afirmando que todos têm direito a uma dignidade na existência e, acima de tudo, de fazer opções.

Encerrando a sessão de debates o mediador, Conselheiro José Carlos de Araújo Leitão informou que faria duas perguntas e teceria alguns comentários.

José Carlos de Araújo Leitão fez referência a algumas afirmações da Professora Edna Castro, a exemplo do desejo do brasileiro de chegar à Venezuela e ao Peru. Em relação à Venezuela, José Carlos lembrou que desde 1998, pela rodovia BR-174, que liga Santarém a Caracas, já é possível chegar à Venezuela. No que diz respeito ao acesso ao Peru, José Carlos não considera que deva ser uma prioridade do Estado brasileiro.

Elogiou a abordagem da Pesquisadora sobre a derrubada de mitos a respeito do vazio demográfico e da questão da baixa produtividade da Amazônia. Achou muito interessante a observação em relação à idéia da geração de riqueza e de pobreza, afirmando que muitas vezes se pensa a Amazônia como um “Éden” de riqueza e se esquece que a mesma pode também produzir pobreza.

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Em relação ao Arco do Desmatamento apresentado pela Pesquisadora, ressaltou que se surpreendeu ao verificar a ausência de referência ao Estado do Acre nesse processo de desmatamento, pelo fato de ter constatado pessoalmente a existência de grandes áreas desmatadas no Estado.

Em seguida, solicitou à Pesquisadora que comentasse a importân-cia de Brasília para a região Norte, sobretudo para a região banhada pelos afluentes da margem direita do Rio Amazonas. A pergunta seguinte de José Carlos de Araújo Leitão se referiu à questão da violência. Afirmou que entre as Unidades da Federação, o Estado do Pará seria hoje um grande foco de violência e quis saber se essa realidade não comprometeria o desenvolvimento sustentável da região. Questionou ainda qual seria o futuro do Estado do Pará.

Respondendo às perguntas formuladas pelo Mediador, Edna Castro afirmou que em relação à importância de Brasília, a localização central da cidade foi fundamental no processo de irradiação para o terri-tório nacional. Em relação à violência, Edna Castro sugeriu o cruzamento das estatísticas de violência com os dados econômicos, de crescimento de atividades e de aumento da população.

Justificou que a violência no Estado do Pará está relacionada à questão das fronteiras e que os municípios com maiores índices de violência são os que apresentam expansão das fronteiras que, de acordo com a Pesquisadora, seriam “terras sem lei”. Em relação ao futuro do Pará, Edna Castro afirmou que não saberia fazer uma previsão. Ressaltou que, como cidadã, acredita que o futuro será resultado da dinâmica que está ocorrendo e dos processos de tantos encontros, pois o Pará é um local onde tem gaúcho, baiano, maranhense, ou seja, um local de encontro de brasileiros. Destacou que quando se fala da cultura e das raízes regionais do Pará, essas, ao mesmo tempo, são nativas da população do interior e também recentes, como os filhos dos pioneiros e dos movimentos em

Relatório da Palestra sobre Desenvolvimento Sustentável da Amazônia

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defesa da Transamazônica e do Xingu. O Estado do Pará representa hoje uma síntese muito particular de pessoas que estão pensando o futuro a partir das práticas, das experiências e dificuldades do presente.

enCeRRamento

Finalizando a reunião, o Conselheiro José Carlos de Araújo Leitão, Coordenador de Estudos da Saei, agradeceu a participação dos presentes e em particular da palestrante, Professora Edna Castro; do Professor Luiz Aragon, Coordenador Geral do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos; e também agradeceu ao Secretário da Saei, José Alberto Cunha Couto e a toda a equipe da Coordenadoria de Estudos.

Cultivos ilíCitos na Colômbia e GeoPolítiCa HemisFéRiCa

Gloria Maria Vargas

Doutora em Geografia. Pesquisadora Associada do Núcleo de Pesquisa em Democratização e Desenvolvimento da Uni-versidade de São Paulo – USP. Pesquisadora Associada do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília – UnB.

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Cultivos Ilícitos na Colômbia e Geopolítica Hemisférica

A Colômbia é a maior produtora de folha de coca, matéria-prima da cocaína, e responsável por uma representativa produção da papoula, usada na produção da heroína. Durante os anos 90, estes cultivos tiveram um expressivo incremento no território colombiano, acompanhado por uma redução dos mesmos nos outros países produtores da região Andina, o Peru e a Bolívia.

Este fenômeno tem sido interpretado de diversas formas, a partir de distintas disciplinas das ciências sociais e sobre diversos ângulos de abordagem. O propósito deste trabalho é contribuir nesse esforço inter-pretativo, consciente de que, em se tratando de um assunto tão complexo e que envolve tantas variáveis, seus resultados serão apenas parciais.

O trabalho está dividido em três partes, consideradas essenciais na compreensão desta problemática e que devem ser tratadas conjuntamente, considerando que formam parte de - se bem que não esgotam - uma cadeia de causalidade que explica a presença e a persistência destes cultivos no território colombiano.

Em primeiro lugar, será feita uma abordagem de algumas condições estruturais que promovem a presença dos cultivos ilícitos. A intenção é separá-las das condições mais conjunturais, mais debatidas e veiculadas nos diferentes meios de comunicação, separando para este propósito as condicionantes estruturais internas, isto é, que respondem a dinâmicas e processo do próprio território colombiano, das externas, que correspondem àquelas cuja arquitetura e controle se encontram fora do território. É assim que trataremos neste sentido do universo da produção e dos entornos criados pelas dinâmicas tanto internas quanto externas, que ao se interceptarem no território colombiano, criam as condições para a reprodução deste fenômeno.

Em segundo lugar, trataremos do universo do consumo. O objetivo em abordar este aspecto é apenas o de fazer algumas colocações para redimensionar a forma como a própria problemática é conceitu-

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

ada e veiculada, no entendimento de que existem condicionantes que determinam a intensidade com que se focalizam estas questões. Neste sentido, será feita uma exposição apenas descritiva de alguns aspectos da demanda.

E por último, será feita uma análise do combate ao fenômeno, o que nos convida a mergulhar no universo da geopolítica e nos revela algu-mas estratégias de política referentes às áreas geográficas da produção, os Andes sul-americanos. Neste item estaremos tratando especificamente do Plano Colômbia e da Iniciativa Regional Andina e das relações destes dois programas com a Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos. Faremos uma abordagem crítica das políticas de combate aos cultivos ilícitos empreendidas até agora, visando identificar algumas razões que explicam o seu pobre desempenho e as conseqüências nega-tivas que têm trazido para as regiões produtoras na Colômbia.

1. o univeRso da PRodução

A produção de folha de coca tem mostrado um aumento signifi-cativo no território colombiano, paralelo a uma tendência a permanecer estável na região Andina como um todo. Isto nos leva a considerar que o aumento da produção em território colombiano deve ser analisado levando-se em conta tanto os condicionantes internos que influenciam sua expansão, quanto os externos, que estariam induzindo uma constante reposição da produção nos outros territórios de cultivo regional. Nos três países produtores apresenta-se uma rotatividade que tem garantido uma produção total regional estável, isto é, as perdas de produção num país são compensadas pelo aumento da produção em outro(s).

Os condicionantes internos dizem respeito a assuntos estruturais que

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Cultivos Ilícitos na Colômbia e Geopolítica Hemisférica

explicam o aparecimento deste tipo de cultivo no território colombiano, que como tal, envolve dinâmicas econômicas, políticas e territoriais do processo social colombiano. No seu desdobramento, a formação territorial colombiana, isto é, o processo de estruturação social e espacial, nos fornece elementos fundamentais para a compreensão das dinâmicas atuais.

Nesse sentido, é necessário compreender algumas características de tal processo. Uma tendência marcante da dinâmica territorial colom-biana é que o poder se materializa de fato em áreas menores que o territó-rio de jurisdição que esse poder reivindica. Na época da Colônia, o poder colonial não controlava a totalidade do território, e em algumas regiões esse controle era disputado (Herrera Angel, 2002). Posteriormente, com a formação do Estado independente, esta tendência continuou, de forma que hoje podemos afirmar que o Estado não exerce o controle sobre todo o território que advoga sob sua jurisdição. Partimos, portanto, da premissa de que o Estado é menor que o território sobre o qual se ergue.

Outra característica da formação territorial colombiana, deriva-da da anterior, é o fato de existirem partes do território onde as formas de organização econômica, social, política e espacial se distanciam da normatividade predominante. Nestes territórios, a população mantém margens de independência política em relação ao Estado.1

Sem dúvida as formas de ocupação territorial tiveram muita influência

1 “A partir de 1740, com o estabelecimento definitivo do vice-reinado da Nova Granada, deu-se uma extensa reforma espacial e político-administrativa que buscou adequar as estruturas desse ordenamento às mudanças operadas dentro da sociedade, em especial à crescente importância demográfica e econômica dos setores mestiços. Apesar dos esforços unificadores do Império, as medidas que foram adotadas não foram uniformes. Nem as respostas que geraram. (...) Parte central das diferenças (entre as regiões) radicava em que, enquanto o mestiço andino tinha sido incorporado à ordem colonial, mediante sua articulação jurisdicional e espacial aos povoados dos índios, o mesmo não tinha acontecido em outras regiões...” (Herrera Angel, 2002: 36).

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

na formação e posterior reprodução destas tendências. Nos Andes predominou um tipo de povoamento e posterior ordenamento espacial relativamente homogêneo, pautado pelos núcleos de povoamento indígenas preexistentes, que foram aproveitados pelos poderes coloniais e incor-porados na nova rede político-administrativa. As áreas rurais deste eixo foram transformadas em fazendas, latifúndios em geral, e em pequenas propriedades que subsistiram da estrutura dos antigos povoados indígenas. Ao longo de todo o eixo este foi o padrão predominante.

A partir da estrutura andina, o território foi sendo ampliado em direção aos quatro pontos cardeais. As outras regiões colombianas, em especial o Sul Amazônico, o Leste Orinoqüense e o Litoral Pacífico, bem como alguns dos vales interandinos, sofreram o processo de ocupação do espaço como produto dos processos sociais ocorridos no eixo Andino. Isto nos dá o parâmetro para analisar os diferentes processos de expansão interna do território.

Pode-se afirmar que é a partir do eixo Andino que a sociedade se consolida e replica suas tendências estruturais de natureza econômica, cultural e política e que se conforma a institucionalidade do País e o Estado. Os movimentos de expansão interna do território mostram estas tendências, desde as primeiras migrações camponesas para o sul, até a abertura dos territórios amazônico e orinoqüense, mais recentemente. Em todos os movimentos de expansão interna se reproduz a tensão entre os novos territórios em formação, difusos e descontínuos, e os espaços centrais deixados para trás, tensão que expressa a dinâmica de inclusão-exclusão existente.

Desta forma, promovia-se a expansão interna do território, só que mediante a abertura de regiões precariamente articuladas ao centro, resultando daí as tensões e o padrão exclusão-inclusão que caracterizaram as dinâmicas nestes territórios em formação.

A condição de marginalidade dada a estas regiões ao longo da

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Cultivos Ilícitos na Colômbia e Geopolítica Hemisférica

vida, tanto colonial quanto republicana, permite-nos afirmar que de fato a Nação colombiana se constrói ao redor do Eixo Andino e alguns dos seus vales, bem como das planícies do Litoral Atlântico. Estes territórios, considerados e tratados como periféricos, eram tidos apenas como reservatórios territoriais, com conotações sociais e culturais negativas, e faziam parte de um imaginário nacional perpassado pelo determinismo ambiental cimentado pelos naturalistas europeus e “criollos”2, dos séculos XVIII e XIX. Correspondiam às Regiões Equinociais e Baixas, consi-deradas atrasadas em relação às Andinas, estas últimas mais parecidas em clima e paisagem às regiões temperadas européias.

Em conseqüência desta racionalidade espacial, consolidou-se um padrão de exclusão e periferização destas regiões, que se refletia tanto no status que ocupavam na hierarquia político-administrativa – até 1992 eram chamadas de “territórios nacionais”, sem autonomia administra-tiva nem fiscal - quanto no tratamento dado pelo Governo central aos seus problemas sociais, principalmente aqueles referentes ao acesso e distribuição da terra e de outros recursos naturais. São estas regiões, marcadas pelo descaso e negligência do Estado e da Nação colombiana, que posteriormente são colonizadas pelas atividades de cultivo de sustâncias ilícitas.

Por outro lado, a dinâmica fundiária consolidou uma estrutura concentrada, em praticamente todo o território. Esta concentração vem se agravando tanto que, segundo o estudo de Agustín Codazzi, de 2002, 0,4% dos proprietários detêm 61,2 % da terra, enquanto que 57,3 % dispõe de apenas 1,7 % da mesma. Assim mesmo estima-se que existem mais de 200.000 camponeses sem terra. Os intentos falidos de fazer uma reforma

2 Os “criollos” eram os filhos de espanhóis nascidos em território americano.

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agrária ao longo dos séculos XIX e XX, alguns dos quais marcaram o começo de períodos de confronto social, põem a descoberto a enorme força destas tendências concentradoras, sustentadas historicamente por setores latifundiários representados nos partidos tradicionais com controle sobre a máquina estatal. As ligações políticas lhes garantem privilégios nas decisões políticas e sua reprodução como grupos de poder.

O controle sobre a estrutura da terra define as funções da mesma, de forma que hoje em dia as melhores terras agrícolas estão destinadas à pecuária. O desrespeito à vocação da terra gera os problemas sociais já conhecidos, pois é uma atividade que não cria emprego rural e induz, portanto, à migração rural-urbana, bem como a uma migração para regiões mais longínquas. A falta de infra-estrutura, de transportes, de comunicações das regiões receptoras das migrações, dificulta sua inserção nas dinâmicas de desenvolvimento regional ou nacional mais amplas.

Outro fator que incide no aumento dos cultivos é sem dúvida a economia política do conflito interno, que cria relações entre os colonos das regiões periféricas e as atividades econômicas das agrupações guer-rilheiras, sustentadas pela folha de coca. O fato de que as áreas de cultivo coincidam com as de controle territorial por parte dos grupos guerrilheiros, em particular das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), coloca estas atividades sob seu comando, cujo sustento financeiro vem destas atividades e com as quais satisfazem suas enormes demandas de logística e infra-estrutura para se manterem ativos e ampliando cada vez mais seu alcance territorial.

Criam-se assim os vínculos – indiretos – entre os plantadores de folha de coca e o conflito armado. É importante considerar também que a economia política do conflito está inserida na lógica do comércio global, tanto de consumo de substâncias ilícitas quanto de mercado negro de armas e de lavagem de dinheiro, elos da cadeia causal que transcendem a parte propriamente produtiva do processo. Existem,

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assim, dimensões fundamentais do negócio que transbordam as fronteiras colombianas e que o alimentam e, nessa medida, alimentam também o conflito interno.

Feitas as considerações sobre os fatores internos, é importante considerar aqueles cujo controle e dinâmicas ultrapassam as fronteiras do País e que incidem dramaticamente na criação das condições que propiciam a presença de cultivos ilícitos. Em primeiro lugar, referimo-nos à lógica econômica do mercado agrícola internacional globalizado. Este modelo vem sofrendo transformações devido principalmente ao colapso dos mecanismos de regulação da economia, que fizeram com que as agroindústrias transnacionais passassem a dominar o mercado destes produtos. Isto causou uma transformação muito grande na agricultura tradicional, tanto nos países centrais quanto periféricos, e induziu os Estados a redefinirem suas políticas, passando da regulação e proteção de seus mercados à assimilação dos novos princípios de organização espacial do comércio global.

Enquanto a eficiência dos mercados de produtos agrícolas aumen-ta, no reverso da moeda vai diminuindo a renda dos produtores, princi-palmente dos pequenos, que ficam numa situação de extrema fragilidade que, muitas vezes, os obriga a abandonar a atividade produtiva.

As dinâmicas territoriais na Colômbia refletem estes novos rear-ranjos induzidos pelas estratégias dos grandes produtores e das grandes multinacionais para controlar a produção e o mercado dos produtos agrí-colas. O mercado passa a ter um papel decisório, praticamente definindo o processo e sua dinâmica, tirando do cenário os pequenos produtores, cuja debilidade financeira e menor produtividade os deixa sem condições de concorrência nesse cenário.

As mudanças nas escalas e intensidades dos intercâmbios comer-ciais agrícolas e nas estruturas institucionais que os regulam, produto da globalização, e nas quais normas de exportação, sanitárias, etc. São

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

ditadas pelas instituições globais como a Organização Mundial do Comércio (OMC), atrelam a produção tanto grande quanto pequena a estas dinâmicas que transbordam as fronteiras do País. Desta maneira, conforma-se uma paisagem comercial mediante a qual se articulam os produtores agrícolas, tanto grandes quanto pequenos, com a voracidade do mercado mundial e com a racionalidade comercial que acaba definindo quem fica e quem sai de cena.

Neste esquema de produção agrícola mundial vão se transferindo segmentos de produção antigamente dominados pelos países do Sul, para os países no Norte. Por exemplo, dos grãos que representam grande parte do comércio mundial agrícola, 80% está nas mãos dos países desenvolvidos. Na produção de carnes e leite e derivados, acontece algo similar. Isto deixa aos países em desenvolvimento uma quantidade cada vez menor de produtos nos quais eles são competitivos nos mercados internacionais, o que significa uma decrescente fatia dos mercados agrícolas mundiais. (Rementería, 2001).

Mesmo que os padrões de comércio agrícola tenham sofrido mudanças nas décadas recentes, os países da América do Sul, em particular os Andinos, continuam perdendo espaços de mercado para o Primeiro Mundo, a exceção ocorrendo unicamente nos setores orientados especificamente para exportação. No caso colombiano, o setor agrícola enfrenta problemas para sua diversificação e recuperação dos mercados perdidos durante a abertura econômica não gradual, ocorrida durante os anos 90.

O caso do café sintetiza esta situação. A grande oferta de café nos mercados mundiais sem um aumento nos padrões de consumo, aliada ao controle dos preços pelos mercados globais, principalmente pelos países do Primeiro Mundo, têm levado os preços deste produto - que vem caindo desde 1980 - aos seus níveis mais baixos nos últimos 30 anos. Na Colômbia os lucros com o café vêm decrescendo em até 50% desde 1992.

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Esta situação, incentivada em grande parte pela quebra do Pacto Cafeeiro em 1990, deixou muitos pequenos produtores do eixo cafeeiro colombiano sem meios de subsistência, o que produziu uma leva de migração desta região para o Sul colombiano, em particular para os departamentos que iniciavam sua produção de folha de coca: Guaviare, Putumayo e Caquetá.

A história de muitos cocaleiros assentados hoje nessas regiões é a de pequenos produtores agrícolas, que com a conjuntura da moderni-zação da agricultura, a abertura econômica e o processo vertiginoso de pauperização do pequeno produtor, migraram para outras regiões em busca de alternativas de subsistência e de vida.3

O anterior está diretamente relacionado com o segundo fator que consideramos determinante no aumento dos cultivos ilícitos, a saber, as políticas agrícolas dos países do Primeiro Mundo e as conseqüências nos preços dos produtos no mercado mundial que essas políticas indu-zem. Dentre elas, a de maior impacto negativo para a Colômbia é sua estrutura fortemente subsidiada4. A política de subsídios é responsável pela distorção dos preços internacionais de commodities e de muitos produtos agrícolas importantes para as economias agrícolas dos países

3 Segundo de Rementería, (op. cit., p. 45) “é significativa a persistência da cooperação internacional multilateral em negar-se a reconhecer que os cultivos ilícitos são a resposta econômica racional à crise agrícola dos países do Terceiro Mundo por causa das políticas agrícolas dos países desenvolvidos. Esta situação chega a ser tão evidente que no último informe anual da JIFE (Junta Internacional de Fiscalización de Estupefacientes), que corresponde ao ano de 2002 e está dedicado ao tema dos cultivos ilícitos e ao desenvolvimento alternativo, jamais se menciona o problema dos mercados agrícolas para a produção alternativa à ilícita. Tampouco há um só parágrafo que informe sobre o problema dos subsídios agrícolas dos países desenvolvidos como causa da crise da agricultura do Terceiro Mundo e de sua conversão - eficiente - à produção de substâncias psicoativas. Deve-se mencionar que em vários informes anteriores da JIFE, este problema era reconhecido e fazia-se algumas recomendações para abordá-lo.”4 Este fato chega a ser tão dramático e reflete de forma tão contundente as assimetrias entre os contextos regionais, que uma vaca européia recebe um subsídio diário de dois dólares, muito mais do que aquilo com que vivem muitos pequenos produtores em países como a Colômbia.

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em desenvolvimento. Devido a esta distorção os produtores rurais de países como a Colômbia não têm condições de competir com os preços subsidiados dos produtos provenientes de países desenvolvidos, que não refletem nem sequer os custos de produção. Isto elimina rapidamente do mercado os pequenos produtores agrícolas e transfere fatias de mercado para os países desenvolvidos.

Discutidos estes fatores estruturais internos e externos, podemos passar a mencionar alguns aspectos que dizem respeito ao consumo destas substâncias, tema muito negligenciado nas análises sobre esta problemática.

2. o univeRso da demanda

O tratamento dado a esta questão pretende apenas ser descritivo, já que para se aprofundar na temática do consumo de substâncias ilícitas teríamos que levar em conta aspectos que estão fora do alcance deste trabalho. Seria necessário analisar a questão desde uma perspectiva cultural, considerando, por exemplo, que aspectos da sociedade moderna conduzem ao anseio de alteração da consciência. Como dito, estas questões transcendem os objetivos e possibilidades teórico-metodológicas do presente trabalho.

No entanto, interessa-nos salientar a pouca visibilidade dada a esta problemática e suas relações com o universo da produção. Nas narrativas sobre o narcotráfico o mais comum é que se considere esta parte da questão como um assunto independente, como se as leis da economia - de oferta e demanda - não regessem sua dinâmica. Nessa medida, realizam-se rigorosas análises sobre a produção, desde aquelas com ênfase em assuntos como área cultivada, tecnologia de produção, redes de distribuição, até aquelas com pretensão antropológica, cuja

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abordagem considera as condições culturais dos povos que cultivam substâncias ilícitas.

Começamos por mostrar alguns dados sobre o consumo de substâncias ilícitas, no quadro a seguir:

Quadro 1 - Consumo de drogas nos últimos anos do decênio de 1990DrogasIlícitas

Cannabis Estimulantes de Tipo

Anfetamínico+

Cocaína Opiáceos Heroína

População Mun-dial (milhões de pessoas) (*) (**)

180 144,1 28,7 14 13,5 9,2

% da População Mundial

3,0 2,4 0,5 0,2 0,2 0,16

% da População Mundial de 15 anos ou mais

4,2 3,4 0,7 0,3 0,3 0,22

(*) Pessoas que tem consumido essas drogas, pelo menos uma vez no ano precedente.(**) Pela tendência ao “policonsumo” de drogas, estas colunas não somam o total mundial.(+) Inclui aos consumidores de anfetaminas (metanfetaminas e anfetaminas), bem como de outras “drogas sintéticas”.Fonte: PNUFID (Programa das Nações Unidas para a Fiscalização Internacional de Drogas): World Drug Report 2000.

A Oficina de Fiscalización de Drogas y Prevención del Delito de las Naciones Unidas (OFDPD) considera que os principais consumidores e produtores dessas drogas (em particular das anfetaminas, as metanfetami-nas e as drogas do grupo do “ecstasy”), na atualidade, estariam localizados no Continente Asiático, na América do Norte (especialmente no Canadá, Estados Unidos e México) e na Europa Ocidental. Esta última região - junto aos Estados Unidos - seria a principal produtora e consumidora mundial de ecstasy, que nos últimos anos tem registrado um maior ritmo de expansão entre os consumidores europeus e estadunidenses.

O aumento do consumo de ecstasy e a expansão mundial do uso

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

de drogas sintéticas têm sido muito grandes durante a última década do século XX, o que leva a reconsiderar as prioridades quanto às substân-cias e seu combate, já que altera o quadro da problemática vinculada ao universo das drogas. Desta forma, enquanto as drogas originadas nas plantas (predominantemente produzidas no Terceiro Mundo) tiveram um discreto aumento de 6% para a cannabis, 5% para a heroína e 3% para a cocaína, entre 1990 e 1999, as drogas sintéticas, em particular as anfetaminas e metanfetaminas, registraram um aumento anual de 30% (PNUFID, 2000).

3. o Combate�� a GueRRa ContRa as dRoGaso Combate�� a GueRRa ContRa as dRoGas

As políticas de combate às drogas têm estado persistentemente focadas no combate à produção, dando toda ênfase ao universo da oferta. No entanto, hoje é evidente que estas políticas estão aquém dos resultados esperados, tanto no que diz respeito a parâmetros quantitativos como área plantada quanto às conseqüências das ações por elas promovidas nas regiões de cultivo nos países Andinos. A forte ênfase na oferta se explica por estas políticas estarem atreladas às prioridades geopolíticas derivadas das sucessivas conceitualizações sobre a segurança nacional realizadas pelos Estados Unidos.

3.1 A Geopolítica da Região

As mudanças na geopolítica mundial com o fim da Guerra Fria desencadearam rearranjos na política dos Estados Unidos no hemisfério americano. Embora nos anos 90 a política externa estadunidense tenha sido marcada por um multilateralismo limitado às áreas de seu maior

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interesse como o comércio e o investimento direto em setores de potencial econômico, o unilateralismo típico das relações com o resto do hemisfério também se manteve. A tradição intervencionista continuaria nos episódios da invasão do Panamá, bem como nas interferências dos processos políticos internos, como o ocorrido recentemente na Venezuela (Herz, 2002).

A ampliação da Agenda de Segurança Nacional dos Estados Unidos durante esta década, ultrapassa os temas tradicionais como o controle da produção, transferência de armamentos e a resolução de disputas de fron-teira. Passa a incluir também fenômenos como a migração, a proteção de fronteiras, o terrorismo e o tráfico de drogas. (�erz, op. cit).(Herz, op. cit).

A partir da agenda de Segurança Nacional e das novas ameaças nela definidas, gera-se uma base geográfica para as ações estratégicas no hemisfério, na qual a região Andina adquire maior importância. Desta forma, a América Central, foco anterior de ações durante a década de 80, cede seu lugar para os Andes sul-americanos, e neles, o narcotráfico se constitui como núcleo conceitual e geográfico das ações no espaço hemisférico. Redesenhado o mapa da segurança hemisférica, a Colômbia, o Peru e a Bolívia se consolidam como o epicentro do fenômeno do tráfico de drogas.

O Plano Colômbia e a Iniciativa Regional Andina (IRA) fazem parte das ações consideradas na Estratégia de Segurança do Governo dos Estados Unidos e definem a orientação geopolítica desse governo para a Colômbia e os países considerados na Iniciativa Regional Andina, a saber: o Panamá, a Venezuela, o Peru, a Bolívia e o Brasil.

É importante compreender o discurso e as práticas geopolíticas que se desprendem da Estratégia de Segurança Nacional para construir as relações causais desta com os Planos Hemisféricos, isto é, com o Plano Colômbia e a Iniciativa Regional Andina.

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

3.1.1 A Estratégia de Segurança Nacional

A Estratégia de Segurança Nacional (2002) está desenhada em torno do princípio de liberdade, cuja garantia é afirmada somente em conexão com a segurança. Portanto, a segurança é o critério mediador de toda a Estratégia que considera como fontes desestabilizadoras o terrorismo e toda atividade ou grupo humano que atente contra a liberdade social, política e econômica da nação estadunidense.

A segurança refere-se não só à população estadunidense e ao seu território, mas também aos interesses do Estado americano além das suas fronteiras. A Estratégia visa derrotar quaisquer ameaças à segurança antes que estas cheguem até as fronteiras ou atinjam os interesses americanos extraterritoriais e, para isso, considera-se a necessidade de intervir nos circuitos das atividades desestabilizadoras.

A Estratégia considera em seguida da exposição da sua filosofia geral, os delineamentos das ações políticas mais concretas com os outros países hemisféricos, reconhecendo a necessidade de trabalhar conjunta-mente para prevenir e conter conflitos regionais. É aqui que são expli-citadas as ações para a região, mais especificamente para a Colômbia.

3.1.2 O Plano Colômbia e a Iniciativa Regional Andina

A Estratégia de Segurança Nacional considera peremptório realizar ações fora do território americano para garantir um entorno hemisférico e mundial seguro.

O documento afirma que partes da América Latina enfrentam conflitos regionais, vindos da violência dos cartéis da droga e de seus cúmplices. A partir desta caracterização, afirma ter desenvolvido uma estratégia ativa para ajudar as Nações Andinas a ajustar suas economias, reforçar suas leis, derrotar as organizações terroristas, e cortar o forne-cimento de drogas aos outros países. Para a Colômbia, concretamente,

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explicita-se a conexão entre os grupos terroristas e a atividade do narcotráfico, que seria a fonte de financiamento destes grupos. A partir deste reconhecimento, afirma-se o compromisso dos Estados Unidos em apoiar o país na defesa das suas instituições democráticas e na derrota dos grupos armados, tanto de esquerda quando de direita, de forma que se consolide a soberania sobre todo o território nacional.

A partir desta conceitualização, as ações de segurança dos Estados Unidos estarão concentradas em dar continuidade e sustentabilidade aos programas já em execução como o “Plano Colômbia” e a “Iniciativa Regional Andina”, dando cada vez maior prioridade à conexão entre a atividade de narcotráfico e a guerrilha. De igual maneira, as atividades de lavagem de ativos serão mais controladas nos países da região.

O Plano Colômbia

O Plano Colômbia nasce como diretriz do Governo do Presidente Andrés Pastrana (1998-2002) e como uma das estratégias da política de paz. As ações se dirigiam às regiões afetadas pelo conflito interno com programas de desenvolvimento alternativo aos cultivos ilícitos, programas de atenção à população deslocada5 e promoção da diminuição da violência em áreas urbanas. Como um processo simultâneo projetava-se a negociação para a paz com os grupos insurgentes, que permitisse o financiamento de projetos setoriais ligados aos acordos logrados (Presidência de la República, 1998). Como complemento a estas iniciativas, a estratégia antinarcóticos era mencionada.

5 Trata-se das populações que, devido aos conflitos envolvendo guerrilha, exército e paramilitares, são obrigadas a se deslocar das suas regiões de origem.

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Muita coisa mudou até chegarmos ao que hoje se conhece como o Plano Colômbia e cujo fim está programado para 2006. Seu conteúdo atual é substancialmente diferente daquele desenhado inicialmente, já que sofreu um redesenho em seu trânsito pelo Departamento de Estado estadunidense durante a administração Clinton. Sua administração considerou que era necessária a elaboração de um plano que permitisse um pacote de ajuda suplementar para o combate ao narcotráfico, que estivesse articulado ao Plano já formulado. Altos funcionários estadunidenses solicitavam uma estratégia integral e assessores do Departamento de Estado colaborariam na elaboração daquela que seria a nova versão do Plano Colômbia.6

O plano foi aprovado no Congresso norte-americano em 20 de outubro de 1999, e nele se solicitou uma ajuda suplementar para Colômbia de 1,6 bi-lhões de dólares ao longo de três anos. Desse montante, 56% seriam destinados à ajuda militar (o chamado “empuje al sur”), 11% para a polícia, 13% para interdição, 8% ao desenvolvimento de culturas alternativas e 12% para direitos humanos e justiça (Embaixada dos Estados Unidos na Colômbia, 1999).

A Iniciativa Regional Andina

A primeira vez que o governo dos Estados Unidos anunciou sua “Iniciativa Andina” foi em 1989, como um plano de cinco anos, dotado com 2,2 bilhões de dólares para o combate à produção de coca. Naquele momento considerava-se que a região Andina estava saindo da década econô-mica “perdida” dos anos 80 e avançando para a democracia. Exceto para os responsáveis pela política antinarcóticos, a região era de pouca importância dentro das prioridades geopolíticas do País do Norte.

Pouco mais de dez anos depois, a região apresenta um perfil indis-

6 Divulgado na imprensa, Diário El Espectador, Bogotá , 11 de outubro de 1999 e 14 de novembro de 1999.

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cutivelmente diferente. A administração do Presidente George W. Bush consolidou uma nova estratégia além do Plano Colômbia, com a pretensão de estendê-lo a toda região e com recursos da ordem de 676 milhões de dólares. Estes recursos foram aprovados na Câmara dos Representantes (23 de julho de 2001) para o orçamento de 2002 e foram batizados com o nome de “Iniciativa Regional Andina” (IRA). Segundo as palavras do Secretário de Estado, Collin Powell, “A nova administração quer regionalizar o conflito colombiano de forma que os países da região reconheçam que o problema é tanto deles quanto da Colômbia”.7

Os países receptores da ajuda são Peru, Equador, Bolívia, Venezuela, Brasil e o Panamá, em ordem de importância na transferência. Embora os países considerados pelo governo dos EUA como produtores sejam a Colôm-bia, o Peru e a Bolívia; o Brasil, a Venezuela e o Panamá são considerados de trânsito do tráfico e, portanto, se ajustam dentro da geografia da iniciativa.

Esta ampliação da escala do Plano Colômbia pareceu ser a forma que o governo estadunidense encontrou para induzir a maior participação das outras nações, Equador, Peru, Brasil, Venezuela e Panamá, nas ações que promoveu e que tiveram pouca acolhida nos países vizinhos desde sua implementação. A estratégia pretende criar o entorno para efetivar uma es-tratégia de divisão de custos, a chamada “burden sharing”. Nesse sentido, a intenção era reforçar a perspectiva de ampliação das práticas de engajamento e expansão para criar uma nova geografia da situação envolvendo os outros países hemisféricos.

No entanto, a Iniciativa Regional Andina não tem conseguido o esperado envolvimento dos países vizinhos. Isto se deve em parte ao fato de que as prioridades de segurança destes países não coincidem com

7 Segundo divulgado no Diário El Tiempo, Bogotá, 13 de março de 2001.

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aquelas para as quais a IRA foi desenhada. As ameaças vindas da Colômbia dizem respeito à operação de grupos armados, migração do conflito para além das fronteiras colombianas, dispersão de culturas ilícitas e problemas ecológicos.

Para o Brasil a situação colombiana é importante já que pode interferir na estabilidade hemisférica e na criação de um entorno econômico favorável para fazer frente aos desafios da globalização e aos das dinâmicas regionais. De igual forma, o Brasil tem dentre suas prioridades a integração da América do Sul, cuja efetivação reivindica países com estabilidade política interna.

De forma geral, é do interesse de todos os países limítrofes, que o conflito colombiano seja mantido dentro das fronteiras do País e assim evitar que se apresente qualquer possibilidade de expansão nos atores locais respectivos. Neste sentido, as preocupações têm escalas diferenciadas se comparadas às estadunidenses e, portanto, estratégias de abordagem também diferentes.

De igual forma, resulta prioritário evitar a infiltração guerrilheira e dos outros atores violentos nos território contíguos. Impedir as incursões destes atores e conter os possíveis impactos das suas ações nas áreas de fronteira são alguns dos objetivos compartilhados por todos os países. Isto se deve ao fato da presença destes atores ser considerada uma ameaça à institucionalidade dos países e representar a possibilidade de práticas como o seqüestro, a chantagem ou a extorsão, e o risco de que se formem redes destas atividades nos países limítrofes.

No entanto, as fronteiras apresentam diferentes graus de sensibilidade ao conflito colombiano determinados pelas dinâmicas já existentes nas suas respectivas áreas de influência nacionais. Este é um ponto importante a ser levado em conta na construção das estratégias de segurança. O valor e a intensidade que os países atribuem a estas ameaças são diferentes e dependem tanto da porosidade das respectivas fronteiras quanto da situação interna de cada país segundo o grau de

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vulnerabilidade que apresenta frente a estes fenômenos.Em termos de política externa, os países vizinhos não estão interessados

em intervir diretamente no caso colombiano. A política adotada até agora tem sido mais de caráter isolacionista do que intervencionista, ao contrário da postura dos Estados Unidos. A leitura que se faz do conflito colombiano é de que se trata de um conflito que não admite facilmente a participação dos países vizinhos. A percepção é de que a situação envolve diversos atores subnacionais, dentre eles, grupos guerrilheiros, grupos paramilitares de direita, militares, governos locais, narcotraficantes, etc. Frente à complexidade desta situação, assume-se que são o Estado e a sociedade colombiana os chamados a resolver estes assuntos de longa trajetória histórica.

Vista desde os diferentes interesses e realidades dos países hemisféricos, a IRA não apresenta as convergências em questões de segurança requeridas para que sejam acolhidas e efetivadas mediante ações pelos seus pretensos protagonistas.

O desafio que se apresenta aos países hemisféricos é o de desenhar e implementar uma política de segurança inserida nas realidades nacional e regional que sirva de alavanca para impulsionar os processos regionais prioritários, e não apenas refletirem as necessidades de segurança dos Estados Unidos.

3.2 O Fracasso dos programas de combate às drogas

Como já se afirmou, as políticas de combate às substâncias ilícitas baseiam-se numa estratégia cujo foco de combate é a produção das mesmas no entendimento de que esta prática faz parte de um elo de causalidade que alimenta o tráfico de drogas, que por sua vez financia as atividades terroristas, consideradas ambas ameaças à segurança dos Estados Unidos.

Nesta ordem de idéias, a presença de cultivos ilícitos alimenta

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

o narcotráfico, que financia as atividades dos grupos guerrilheiros colombianos, hoje na lista de grupos terroristas mundiais. Como afirma claramente a Estratégia de Segurança, os esforços devem se concentrar em intervir nos processos desestabilizadores antes que cheguem até as fronteiras dos Estados Unidos ou que atinjam seus interesses extraterritoriais. Portanto, as ações se focam em suprimir das regiões produtoras a matéria prima que alimenta uma atividade que deve ser impedida de atravessar as fronteiras estadunidenses.

No entanto, esta lógica e as ações que dela derivam, estão muito aquém dos resultados esperados para derrotar o fenômeno em questão. Algumas das razões que consideramos fundamentais para explicar o fracasso desta estratégia na região são as seguintes:

1. Uma estreita conceitualização da questão, que considera o problema localizado fora das fronteiras dos Estados Unidos e, portanto, o seu combate deve realizar-se nesses espaços. Esta visão prioriza os pressupostos de segurança dos Estados Unidos, tal como expostos na sua Estratégia de Segurança, deixando em segunda ordem de importância as outras práticas da atividade do narcotráfico que não aquelas da produção. Estas práticas envolvem as redes de distribuição globais, as redes de distribuição no pró-prio território estadunidense, a lavagem de dinheiro e o consumo. De igual forma, esta abordagem desconhece o contexto social, político e econômico da Colômbia e da região Andina em geral, além das causas que deles se depreendem.

Esta compreensão da problemática leva à separação e fragmentação da dinâmica do narcotráfico em esferas funcionais, a partir de uma racionalização instrumental que visa apenas satisfazer as necessidades de segurança dos Estados Unidos, tal como concebidas nos seus próprios termos.

A lógica linear e segmentada sobre a qual está montada esta visão

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separa conceitual e espacialmente a problemática e constitui, nessa medida, uma justificativa para a concentração espacial das ações de combate. Nesta cadeia, os espaços dedicados a cada parte apresentam uma independência relativa que cria a ilusão de que não pertencem ao mesmo universo causal da problemática e que não compartilham espaços sociais interdependentes. Desta forma, a ênfase colocada na produção fica justificada e a intensidade das ações legitimada.

2. A desconsideração dos contextos espaço-temporais do fenômeno do narcotráfico, isto é, das histórias e geografias dos espaços que alimentam a atividade. Isto nos remete aos aspectos estruturais, considerados inicialmente, aos sujeitos sociais envolvidos e atingidos pelas ações. As estratégias de combate são realizadas com pouca ou nenhuma consideração pelas populações-alvo das práticas de erradicação de forma que os problemas de exclusão social, falta de alternativas econômicas e produtivas, condições territoriais das regiões são negligenciados. Uma vez realizadas as ações de fumigação, erradicação, interdição, estas condições estruturais continuam inalteradas e, em ocasiões, retroalimentadas por dinâmicas contraproducentes que se desprendem dessas ações.8

3. Em terceiro lugar, a excessiva ênfase dada às ações que oferecem resultados imediatos, mais que não são sustentáveis no tempo. Concentram-se os esforços em ações mensuráveis como erradicação e fumigação, interdição, desmantelamento de laboratórios, etc. Estas ações se emolduram em ambiciosos prazos espaço-temporais e mensurações de difícil cumprimento, que acabam criando expectativas que, ao não serem

8 É o caso das fumigações que alteram o potencial produtivo das terras e atrasam, assim, soluções como a substituição de cultivos.

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

atingidas, são altamente contraproducentes para os Planos e para as próprias regiões. Estas são submetidas a controles mais rigorosos e maiores pressões para atingir as metas propostas.

Este estado de coisas mostra como o narcotráfico é definido e respondido como problema em função dos assuntos de segurança dos Estados Unidos, e não em relação à problemática local nem as dos Estados produtores, como se o primeiro argumento fosse suficientemente importante para justificar outros níveis de análise. A exclusividade dos argumentos de segurança na conceitualização destes problemas faz com que se desconheçam realidades sociais, econômicas, políticas, regionais e nacionais e, que em seu lugar, leve-se em conta os assuntos interestatais, sempre que estes enfatizem as prioridades estadunidenses.

As ações desencadeadas a partir desta conceitualização, como a fumigação de cultivos, as interdições, a militarização das populações nas regiões produtoras, entre outras criam novos problemas nas regiões, que se superpõem aos já preexistentes, sem necessariamente trazer as soluções pretendidas. Isto se comprova nos múltiplos estudos que demonstram como a guerra às drogas apenas tem induzido uma alternância e rotatividade dos cultivos nas regiões produtoras, sem diminuir efetivamente a área total cultivada.9

9 O recente informe do Council on Foreign Relations comprova esta visão e confirma a necessidade de se investir em ações que corrijam os problemas estruturais das regiões produtoras nos países Andinos, em particular, na Colômbia. A este respeito, o informe afirma: “... A Comissão considera que a maior fraqueza da atual política estadunidense, tal como está colocada no Plano Colômbia e na Iniciativa Andina, é sua excessiva ênfase nos assuntos de segurança e de combate às drogas, e muito pouca ênfase em estratégias complementares regionais”. ... Esforços devem ser realizados que considerem “um desenvolvimento rural e de fronteiras sustentável, incluída uma reforma agrária estratégica; reformas políticas para fortalecimento da lei e consolidação das instituições democráticas mediante uma maior transparência e confiabilidade; desenvolvimento econômico e comercial que inclua o acesso aos mercados e legítimas oportunidades econômicas; e uma política multilateral contra as drogas que leve em conta a demanda nos países consumi-dores”. (Christman et al., 2004: 11-12)

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Cultivos Ilícitos na Colômbia e Geopolítica Hemisférica

Uma vez que se efetivem as ações desenhadas a partir destas perspectivas, os problemas de pobreza, exclusão social e política, falta de alternativas produtivas, a débil presença estatal continuam existindo, mantendo intacta a estrutura que permitiu a colonização das atividades ilícitas. Isto alimenta o círculo vicioso de pobreza - exclusão social - ilegalidade, criando uma nova fonte de combustão social para o conflito interno. Desta maneira, a política antinarcóticos dos Estados Unidos acaba alimentando as condições internas que propiciam o conflito armado colombiano. A ênfase exclusiva nas questões de segurança estaduniden-ses solapa as causas da problemática e o universo em que esta se dá, distanciando das soluções plausíveis para a Colômbia.

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

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PRodução de dRoGas na Colômbia e seus ReFlexos PaRa a amazônia bRasileiRa

Rodrigo de Aquino

Analista de Informações da Agência Brasileira de Inteligência.

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Produção de Drogas na Colômbia e Seus Reflexos para a Amazônia Brasileira

anteCedentes

Considerada ilegal no início do século XX e substituída por outras drogas, como as anfetaminas, a cocaína começou a ganhar notoriedade e seu uso se disseminou no final dos anos 70 e início dos 80, por influência de movimentos pacifistas e contestatórios da chamada geração “hippie”, pelo menos entre os jovens nos EUA.

A oferta desta droga estava relacionada com a produção da folha de coca na Bolívia, no Peru e na Colômbia. Portanto, o “boom” no consumo da droga gerou amplas oportunidades de enriquecimento para produtores e traficantes sul-americanos. Embora não tivessem o domínio dos cultivos da coca, os traficantes colombianos destacaram-se, na oportunidade, por controlar a parte mais rentável do negócio: as rotas para o tráfico da droga, particularmente aquelas destinadas para o mercado dos EUA. Nesse contexto, ganharam notoriedade os cartéis colombianos, primeiramente o de Medellín e, posteriormente, o de Cali.

Com apoio dos EUA, o governo colombiano conseguiu desarticular os cartéis de Medellín e de Cali durante a década de 90. Entretanto, o tráfico de drogas continuou a ser operado por vários “mini-cartéis” que passaram a dominar a produção, o transporte e a comercialização de cocaína, porém em menor escala se comparadas às operações desenvolvidas pelos cartéis.

Aproveitando essa situação, os cartéis mexicanos passaram a, gradualmente, controlar as rotas para o tráfico de drogas com destino ao mercado norte-americano. Paralelamente, os movimentos guerrilheiros colombianos, que já vinham buscando atuar no negócio do narcotráfico para captar recursos a fim de promover o movimento revolucionário, começaram a ocupar os espaços de poder deixados pelas grandes estruturas criminosas e passaram a apoiar as operações dos “mini-cartéis”.

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Tais condições, aliadas à contínua repressão ao cultivo da coca no Peru e na Bolívia, favoreceram o cultivo da coca na Colômbia, sob proteção de criminosos, paramilitares ou movimentos guerrilheiros, em territórios onde é praticamente nula a presença do Estado colombiano.

Isso provocou alteração no perfil de inserção do País no contexto da economia da droga. Até meados dos anos 80, a Colômbia desem-penhava principalmente o papel de entreposto para processamento e tráfico de cocaína, mas, no final da década passada, iniciou-se tendência para que o cultivo também se concentrasse no País. Como resultado disso, em 2000, a Colômbia passou a concentrar cerca de 70% da coca cultivada nos países Andinos (cerca de 136.000 hectares semeados de coca). Também a conquista dos canais de distribuição para o mercado norte-americano pelos cartéis mexicanos redundou no controle das etapas iniciais e menos rentáveis pelos micro-cartéis, pelos movimentos guerrilheiros e pelos grupos paramilitares colombianos.

As políticas governamentais para reverter esse quadro têm-se polarizado em duas vertentes. A primeira opta pela via militar e tem por objetivo a erradicação dos cultivos ilícitos, recebendo amplo apoio dos EUA, por meio do Plano Colômbia, e consome o grosso dos esforços do Governo colombiano. A segunda, opta pela via social e trata de restaurar a presença do Estado e a coesão social do País por meio do conceito do “desenvolvimento alternativo”, a qual recebe apoio de Organismos Internacionais e Organizações Não-Governamentais.

O combate às drogas pela erradicação de cultivos por meio da cooperação com as Forças Armadas – caracterizada pelo processo de fumigação da área plantada com glifossato – propalado pelos EUA, serve a interesses de congressistas norte-americanos que apresentam constante demanda por resultados efetivos no combate às drogas por meio da redução da oferta aos países Andinos.

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Produção de Drogas na Colômbia e Seus Reflexos para a Amazônia Brasileira

Seguindo essa linha, entre 2000 e 2002, foram fumigados com glifossato 254.586 hectares, mas a área semeada de coca que em 2000 era de 136.200 hectares subiu para 144.400 hectares, em 2002. Além disso, observou-se, à medida que ocorrem as fumigações, há a migração de cultivos, particularmente em direção ao sul na região de fronteira com o Equador, departamentos de Caquetá, Putumayo e Nariño. Segundo relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), o potencial de produção de cocaína permaneceu estável, em aproximadamente 800 toneladas, em 2002. A maior parte da fabricação de cocaína na América do Sul continuava a ter lugar na Colômbia, principalmente em zonas controladas por grupos armados.

No caso das zonas fumigadas, a Agência Americana para Desen-volvimento Internacional (USAID) afirma que cerca de 33 mil famílias receberam ajuda estadunidense dos programas de desenvolvimento alter-nativo. Entretanto, a Defensoria Pública colombiana afirma que desde o início das fumigações cerca de 35 mil famílias foram obrigadas a deixar suas terras devido à fumigação.

PanoRama atual da PRodução de dRoGas na Colômbia, na bolívia e no PeRu

A manutenção da política de fumigação aérea na Colômbia, com amplo apoio dos EUA tem sido apontada como fator determinante para reversão da tendência de aumento na área plantada de coca da Colômbia, embora persistam dúvidas sobre a consistência dos dados apresentados e a sustentabilidade dos índices a longo prazo.

Segundo estimativas do Sistema Integrado de Monitoreo de Cultivos Ilícitos (SIMCI) da Colômbia, em julho de 2003 havia no País

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

cerca de 69 mil hectares cultivados de coca, o que representaria redução de cerca de 50% da área plantada em relação a dados de 2000. A maior parte da redução foi atribuída à política de fumigação aérea. Ainda segundo a entidade, em que pese a redução do cultivo na maioria das zonas afetadas, no departamento de Nariño, na fronteira com o Equador, o cultivo parece ter aumentado.

Em março de 2004, o Departamento de Estado dos EUA divulgou análise na qual afirmava ter observado redução de cerca de 30% na área plantada de coca na Colômbia entre 2001 e 2003, chegando a aproxi-madamente 118 mil hectares. Embora o governo estadunidense tenha divulgado, na mesma ocasião, a redução global das zonas de plantio na Colômbia e a completa erradicação das lavouras na região do Putumayo, há informações de que os produtores abandonaram o cultivo em grandes plantações e adotaram técnicas de plantio em áreas pequenas rodeadas de mata para dificultar a detecção por satélite e a fumigação. A utilização de técnicas de plantio para evitar a fumigação e a visibilidade aérea (aviões e satélites), além de representar uma adaptação às medidas de repressão adotadas, constitui fato que justificaria a manutenção das aspersões por tempo indefinido, resultando na dependência colombiana por recursos norte-americanos.

Além disso, há dados que confirmam a existência de plantações de coca ao longo de estradas em Puerto Asís e Orito, cidades do departa-mento de Putumayo, o que contradiz a posição dos EUA sobre a completa erradicação dos cultivos nesse departamento. Há indícios de que muitas dessas plantações sejam mudas que devem estar prontas para produzir no prazo de dois anos.

Ademais, monitoramento por satélite das plantações de coca na Colômbia, realizado por órgão da ONU, conclui pelo relativo aumento dos cultivos ilícitos no departamento de Vaupés, junto à parte superior da região do território brasileiro conhecida como “Cabeça do Cachorro”.

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Produção de Drogas na Colômbia e Seus Reflexos para a Amazônia Brasileira

No passado, as plantações de coca não vingavam nessa região devido a condições desfavoráveis do terreno e do clima no local. Entretanto, avanços observados na técnica agrícola e nas variantes das plantas usadas para o cultivo têm possibilitado sua adaptação.

Apesar de reconhecer a importância da política de cooperação dos EUA para a redução da área plantada de coca na Colômbia e para a detecção de laboratórios clandestinos, relatório da Junta Interamericana para Fiscalización de Estupefacientes, da ONU, divulgado em 2004, adverte que o êxito dessas atividades pode repercutir em aumento na produção da coca em países produtores como Bolívia e Peru e também no Equador e na Venezuela. Enquanto no Peru a superfície total de cultivos permanece estável; na Bolívia, onde se havia observado redução na área plantada, foi registrado ligeiro aumento em 2002.

No Peru, o êxito das medidas de interdição do tráfico de drogas por via área que contaram com a cooperação dos setores militares e de Inteligência dos EUA forçou, no primeiro momento, a transferência de parte da produção para a Colômbia. Com a interrupção desse programa e a continuidade das medidas repressivas neste País, observou-se o retorno das plantações ilegais de coca em alguns vales peruanos, onde os pro-dutores rurais recebem dos criminosos recursos para investir no plantio e obtém maior rentabilidade na venda das safras, as quais se destinam, principalmente, ao processamento da pasta base de cocaína (pbc), inclusive em laboratórios próximos à fronteira com o Brasil.

Na Bolívia, a despeito do esforço no sentido de combater os cultivos ilegais, a tendência de redução na área plantada não se mostrou sustentável. Dados indicam aumento do plantio em 2002, principalmen-te devido à mudança na política interna em relação à área do Chapare. Além disso, autoridades bolivianas têm encontrado dificuldades em se contrapor à crescente influência da atividade criminosa, notadamente nas cidades fronteiriças com o Brasil, manifestada no aliciamento de

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servidores públicos, membros do Poder Judiciário e forças policiais bo-livianos. Nessa região, é crescente o fluxo de pasta base de cocaína (pbc) que anteriormente alimentava a produção na Colômbia, mas, também devido às medidas repressivas neste país, tem sido desviada para ulterior processamento em laboratórios clandestinos, também nos situados na região da Tríplice Fronteira Guiana–Suriname–Brasil.

a inseRção do bRasil no Contexto ReGional do naRCotRáFiCo e seus ReFlexos PaRa a amazônia bRasileiRa

A inserção do Brasil e de sua porção amazônica no contexto regio-nal do narcotráfico se faz principalmente pela utilização de seu território para o transporte de drogas (pasta base de cocaína e cocaína). Como as principais áreas produtoras de coca estão localizadas na borda ocidental da grande bacia de drenagem do Rio Amazonas, nos altos e médios vales de seus formadores e afluentes no Peru, Bolívia e Colômbia, a bacia hi-drográfica que abastece a região tem sido usada pelos traficantes para o transporte de drogas.

À malha fluvial superpõe-se rede de rodovias e rotas aéreas que permite a interligação entre a costa do Pacífico e o Oceano Atlântico. Além disso, o acesso ao transporte aéreo e rodoviário se faz também pelas estradas secundárias e pistas não controladas em fazendas e povoados disseminados pelo interior do continente.

O principal reflexo da manutenção do atual cenário de produção de drogas na Colômbia e nos países vizinhos para a região amazônica brasileira relaciona-se, portanto, com a utilização do território como passagem para o tráfico de drogas para posterior envio a mercados consumidores estrangeiros e para abastecer o mercado de consumo no Brasil. Em que

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pese a tradicional importância da cocaína, o que se destaca na atualidade é o crescente fluxo de pbc nas rotas que cruzam o Território amazônico.

O tráfico da pbc em Território brasileiro é realizado por vias fluviais, terrestres e aéreas em uma combinação que permite remessas com destino às regiões Norte, Nordeste e Sudeste brasileiras – onde têm sido detectados laboratórios clandestinos de processamento da pbc para produção de “crack” e “merla” – e também para a região da Tríplice Fronteira Guiana–Suriname–Brasil.

Outro efeito para a região Amazônica, derivado da condição de território de passagem para o tráfico de drogas, é o surgimento de focos de criminalidade organizada na região, particularmente quadrilhas e grupos que se articulam para operacionalizar o tráfico de drogas, mas que acabam por se envolver com o tráfico de armas, a prostituição, o tráfico de seres humanos, a prática de extorsão, a corrupção e a “lavagem” de dinheiro. A particularidade da ação desses criminosos na porção amazônica é a possibilidade de se integrarem aos negócios ilícitos desenvolvidos por organizações criminosas que atuam na Colômbia, no Peru e na Bolívia.

Outro ponto que convém destacar nesse quadro se refere à polêmica sobre possibilidade de migração de cultivos ilícitos para a Amazônia brasi-leira. Até o momento, autoridades policiais e de segurança não registraram indícios da existência de plantações de coca, ou variantes geneticamente modificadas da planta, em território brasileiro. Os fatores apontados são de que as condições de solo e clima no local não seriam favoráveis ao cultivo economicamente viável da folha de coca. Entretanto, avanços observados na técnica agrícola e nas variantes das plantas usadas para o cultivo têm possibilitado adaptação dos cultivos para áreas onde não vingavam no passado, como é o caso na região de Vaupés, na Colômbia. Portanto, a tese de que o Brasil estaria imune à migração das plantações de coca poderia apresentar limitações no futuro.

RelatóRio da Reunião de estudos

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Com o objetivo de contribuir na formulação de ações governamentais para a região Amazônica, o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), por intermédio da Secretaria de Acompanhamento e Estudos Institucionais (Saei), promoveu no dia 5 de maio de 2004, no Auditório de Videodifusão do Palácio do Planalto, Reunião de Estudos com cerca de quarenta participantes entre técnicos do Governo, acadêmicos e representantes de organizações da sociedade civil.

Este evento insere-se no âmbito do Ciclo de Estudos sobre a Amazônia – uma série de atividades programadas pela Coordenadoria de Estudos da Saei com o objetivo de discutir questões e perspectivas relacionadas ao desenvolvimento, sustentabilidade e atuação do Estado na região. O tema debatido foi: “A produção de drogas na Colômbia e possíveis reflexos para a região Amazônica brasileira”.

A recepção aos convidados foi realizada pelos representantes da Saei, Ministro José Antonio de Castelo Branco de Macedo Soares, Secretário-Adjunto, que atuou como debatedor na Reunião, e pelo Conselheiro José Carlos de Araújo Leitão, Coordenador de Estudos, mediador responsável pela condução dos debates.

Abordando a temática principal, dois expositores revezaram-se na apresentação e discussão das questões levantadas: Gloria Maria Vargas - Geógrafa colombiana e Doutora em Geografia; e Rodrigo de Aquino - Analista de Informações da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).

Gloria Vargas falou sobre Cultivos Ilícitos na Colômbia e Geopolítica Hemisférica, onde de maneira sucinta abordou o universo da produção (oferta); o universo do consumo (demanda) e a questão do combate aos ilícitos.

Rodrigo de Aquino, por sua vez, apresentou uma contextualização histórica da temática, se reportou ao panorama atual da produção de drogas na Colômbia, Bolívia e Peru e, finalmente, analisou a inserção do Brasil no contexto regional do narcotráfico e seus reflexos para a Amazônia brasileira.

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

PaRte i – aPResentações

A primeira apresentação foi realizada pela Professora Gloria Maria Vargas sob o título Cultivos Ilícitos na Colômbia e Geopolítica Hemisférica. Gloria ressaltou que sua exposição se concentraria numa perspectiva acadêmica em virtude de seu histórico como Professora e Pesquisadora. Destacou que daria prioridade a três questões: Produção, Consumo e Combate a ilícitos, sendo que concentraria a exposição mais na questão da produção e combate, abordaria apenas de maneira superficial a questão do consumo.

Em relação à produção, a Pesquisadora fez um breve histórico sobre a origem do cultivo de ilícitos em território colombiano, a iden-tificação de determinantes – fatores e variáveis que criam um ambiente propício para o cultivo – variáveis conjunturais, que seriam as mais veiculadas pela mídia e as variáveis estruturais, que de acordo com a Pesquisadora, seriam os foco da apresentação.

Dentro do universo da produção (oferta) foram destacados fatores internos e externos e dentro destes, condições estruturais que determina-ram, entre outros fatores a formação territorial colombiana, a exclusão e periferização das regiões. A estrutura fundiária e a falta de infra-estru-tura em relação às atividades econômicas voltadas ao desenvolvimento regional e nacional, bem como a economia política do conflito interno, apresentam-se também como condições estruturais relacionadas ao universo da produção.

Sobre a estrutura fundiária, Gloria citou um estudo recente, de 2002, realizado pelo Instituto Geográfico Colombiano Agustín Codazzi que expõe uma estrutura fundiária extremamente perversa ao mostrar que cerca de 0,4% dos proprietários detêm 61,2% das terras agrícolas do país, ao passo que 57,3% dos produtores ocupam pouco mais de 1,7%

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da terra agrícola disponível. A conseqüência disso é que pelo fato desses pequenos produtores ocuparem as áreas mais longínquas do território colombiano, apresentam uma enorme dificuldade de escoar sua produção pela falta de infra-estrutura, o que facilitaria, sob esse argumento, o cultivo de ilícitos.

Quanto à economia política do conflito interno a mesma diz respeito ao vínculo de sobreposição regional, territorial e espacial entre os colonos deslocados de seus locais de produção e os grupos guerri-lheiros insurgentes, que pelas necessidades financeiras e de infra-estrutura logística dos primeiros, acabam aderindo ao cultivo de ilícitos, estabelecendo-se assim um vínculo entre guerrilheiros e produtores de coca – cocaleiros – que nem sempre são os comercializadores, se constituindo em populações diferenciadas. Essa relação, de acordo com a Pesquisadora, constitui o vínculo entre o conflito interno, o político e a produção de drogas ilegais. Esse contexto sintetiza assim o universo dos fatores internos.

Em relação aos fatores externos, foram destacadas a produção agrícola mundial e as políticas e preços agrícolas, representados pelos subsídios agrícolas oferecidos pelos países de Primeiro Mundo. Gloria Vargas apresentou um pequeno histórico de como ocorreram as mudanças na produção agrícola colombiana, antes eminentemente cafeeira, para uma produção voltada quase que exclusivamente ao cultivo de ilícitos. Essa análise se deu dentro do contexto da queda dos preços do café no mercado internacional e a conseqüente migração dos pequenos produ-tores para outras atividades econômicas, principalmente para o cultivo e produção da coca.

Quanto às políticas agrícolas, a Pesquisadora se referiu especifi-camente aos subsídios que os países de Primeiro Mundo oferecem aos seus produtores, causando enormes distorções nos preços de produtos agrícolas com os quais os países do Terceiro Mundo concorrem no

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mercado internacional. Para exemplificar, foi apresentado um quadro comparativo – com estatísticas da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) – do percentual de exportações mundiais de alguns produtos como: café, açúcar, algodão, milho e gado, no período compreendido entre 1970 – 1999, que mostra uma queda acentuada no percentual das exportações dos referidos produtos pelos países do Terceiro Mundo.

Como ressaltou no início de sua apresentação, em relação ao universo do Consumo a Pesquisadora teceu breves comentários. Apresentou um quadro demonstrativo de consumidores por tipos de drogas e fez uma análise dos números, chegando à conclusão de que o número de consumidores das chamadas drogas artificiais – estimulantes, anfetaminas e meta-anfetaminas – representa o dobro dos consumidores das drogas produzidas com matérias-primas naturais, como a folha da coca e a papoula – cocaína e heroína, respectivamente. Sob essa perspectiva, Gloria Vargas chamou a atenção para o aumento do consu-mo, principalmente nos países desenvolvidos, de drogas como as anfe-taminas e meta-anfetaminas e dentre estas, particularmente o ecstasy.

Finalizando, se reportou à questão do combate ao narcotráfico e cultivo de ilícitos. Os principais pontos destacados foram:

• Estratégia de segurança dos Estados Unidos;• Plano Colômbia;• Regionalização do conflito colombiano.

Em relação à estratégia de segurança dos Estados Unidos, desta-cou que está explicitamente colocado que os fenômenos que constituem ameaça para a Segurança Nacional do país devem ser contidos nos seus lugares de incidência antes que os mesmos cheguem até as fronteiras dos

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Estados Unidos. Dentro desse contexto, de acordo com a Pesquisadora, se delineou o Plano Colômbia.

Em relação ao Plano, fez uma pequena descrição sobre a origem e os objetivos iniciais do mesmo. Destacou o nascimento do Plano Colômbia no Governo do então Presidente Ernesto Samper, no período de 1994 a 1998. No final do Governo, procurou-se uma estratégia, não de combate direto e erradicação dos cultivos ilícitos, mas de pacificação dos territórios que tinham problemas de conflito interno. No desenho original feito pelo Governo colombiano, a questão da erradicação dos cultivos era considerada uma ação secundária, a ação primária era a pacificação dos territórios mais conflituosos. Porém, após o Plano ser submetido à apreciação do Departamento de Estado do Governo americano, houve uma inversão de prioridades, isto é, o que era secundário passou a ser o foco do Plano Colômbia, ou seja, o combate, a erradicação e a contenção dos cultivos ilícitos em território colombiano, enquanto que as ações de pacificação, de desenvolvimento regional, entre outras, ficaram em segundo plano. A Pesquisadora destacou que as principais ações do Plano são basicamente ações de combate à presença de culturas ilícitas por meio de fumigação e erradicação manual.

No que diz respeito à regionalização do conflito destacou a ne-cessidade de se considerar quais são os riscos para os países fronteiriços em função da situação colombiana. Segundo Gloria Vargas, um dos riscos mais pertinentes considerar é a possibilidade de que o conflito interno transborde as fronteiras colombianas, o chamado spill over. Um outro risco diz respeito à incursão de grupos guerrilheiros colombianos em território brasileiro, equatoriano, peruano ou venezuelano, o que de fato, segundo Gloria, já vem ocorrendo. Um terceiro risco diz respeito à dispersão dos próprios cultivos ilícitos, ou seja, a possibilidade dos mesmos migrarem e se fixarem em territórios dos países fronteiriços.

Destacou ainda uma outra possibilidade, o deslocamento da população

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causado pelo conflito interno, bem como as migrações em função da busca de novos horizontes de vida, visto que a população civil é a mais atingida pelo conflito e pelas próprias medidas do Plano Colômbia.

As fumigações em território colombiano representam socialmente uma enorme problemática tanto em termos de saúde pública, quanto em termos de perda da produção de pequenos agricultores, pois não sendo seletiva a fumigação, ela não se restringe à produção dos cocaleiros. No que diz respeito à questão ambiental, já foi comprovada a existência de sérios riscos advindos da fumigação, principalmente quando são utili-zados produtos extremamente nocivos ao meio ambiente.

Em relação à segurança, a Pesquisadora levantou uma questão: Quais seriam os objetivos de segurança dos países Andinos Amazônicos e se seria possível diferenciar esses objetivos, dos objetivos da estratégia nacional dos Estados Unidos? Ressaltou, porém, que o desafio implícito na questão está em procurar estratégias que sejam próprias de nossa realidade e, principalmente, que considerem as nossas particularíssimas condições sociais.

Destacou ainda três aspectos aos quais o Brasil deveria dedicar mais atenção:

• A questão do conflito e da situação colombiana ameaça a estabilidade política regional. Um entorno político estável é extremamente desejável para o Brasil em função da manu-tenção de um ambiente político favorável;

• Manutenção, em função do contexto da globalização, de rela-ções políticas cordiais, procurando empreender esforços para favorecer investimentos externos;

• Criação e consolidação de condições para efetivar uma integra-ção Sul-americana, ou seja, um bloco regional se espelhando talvez no processo da União Européia.

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Em relação ao “combate”, identificou três razões pelas quais os planos que pretendiam combater o narcotráfico e o cultivo de ilícitos fracassaram ou deixaram muito a desejar:

• A separação dos segmentos da problemática numa visão linear que não integra todas as variáveis que são importantes e que devem ser analisadas conjuntamente;

• Desconsideração de condições sociais extremamente complexas onde os sujeitos sociais dessas ações são justamente as pessoas que estão sendo desconsideradas na estratégia;

• Exigência em empreender ações que apresentem resultados imediatos, porém, sem sustentabilidade a longo prazo.

A segunda apresentação com o título “Produção de drogas na Colômbia: reflexos para a Amazônia brasileira” foi realizada pelo Senhor Rodrigo de Aquino, Analista de Informações da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).

Iniciou sua apresentação agradecendo ao convite da Saei e, resumidamente, expôs a metodologia de sua apresentação: os ante-cedentes do problema; o panorama atual da produção de drogas - com foco na questão da coca - em virtude da mesma apresentar-se como o principal problema em relação à Colômbia e, finalmente, a inserção do Brasil no contexto regional do narcotráfico.

Na contextualização histórica da questão destacou que a cocaína, considerada ilegal no início do século XX, começou a ganhar notoriedade e seu uso se disseminou no final dos anos 70 e início da década de 80, por influência de movimentos pacifistas e contestatórios da chamada geração hippie. A oferta dessa droga estava relacionada à produção da folha de coca na Bolívia, Peru e Colômbia. Embora não tivessem o domínio do cultivo da coca, os traficantes colombianos destacaram-se por controlar

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

a parte mais rentável do negócio: as rotas para o tráfico das drogas, particularmente as destinadas para o mercado americano.

Até meados dos anos 80, a Colômbia desempenhava principal-mente o papel de entreposto para o processamento e tráfico de cocaína, mas, no final da década passada, deu-se início à tendência de concen-tração do cultivo no País. Como resultado dessa estratégia, em 2000, a Colômbia passou a concentrar cerca de 70% da coca cultivada nos países andinos – cerca de 136 mil hectares semeados de coca.

As políticas governamentais para reverter esse quadro têm-se polarizado em duas vertentes. A primeira opta pela via militar e tem por objetivo a erradicação dos cultivos ilícitos, recebendo amplo apoio do Governo americano por intermédio do Plano Colômbia e consome boa parte dos esforços do Governo. A segunda opta pela via social e trata de restaurar a presença do Estado e a coesão social do País por meio do conceito de “desenvolvimento alternativo”, a qual recebe apoio de Organismos Internacionais e Organizações Não-Governamentais.

No âmbito da política de combate às drogas que prioriza a erradicação de cultivos por meio da cooperação com as Forças Armadas, entre 2000 e 2002, foram fumigados com glifossato 254.586 hectares, porém a área semeada de coca que em 2000 era de 136.200 hectares subiu para 144.400 hectares em 2002. Além disso, à medida que ocorrem as fumigações, há migração de cultivos, particularmente em direção ao Sul, na região de fronteira com o Equador. Segundo relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), o potencial de produção da cocaína permaneceu estável, em aproximadamente 800 toneladas em 2002.

No caso das zonas fumigadas, a Agência Americana para o Desen-volvimento Internacional (USAID), afirma que cerca de 33 mil famílias receberam ajuda estadunidense dos programas de desenvolvimento alternativo. Entretanto, a Defensoria Pública colombiana afirma que desde o início

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das ações, cerca de 35 mil famílias foram obrigadas a deixar suas terras em conseqüência da fumigação.

Em seguida, abordou o panorama atual da produção de drogas na Colômbia, Bolívia e Peru. A manutenção da política de fumigação aérea na Colômbia, com amplo apoio dos Estados Unidos, tem sido apontada como fator determinante para reversão da tendência de aumento da área plantada com coca. Segundo estimativas do Sistema Integrado de Monitoreo de Cultivos Ilícitos en Colombia (SIMCI), em julho de 2003 havia no país cerca de 69 mil hectares cultivados de coca, o que representaria redução de cerca de 50% da área plantada em relação a dados de 2000. A maior parte da redução foi atribuída à política de fumigação aérea.

Em março de 2004, o Departamento de Estado americano divulgou análise na qual afirmava ter observado redução de cerca de 30% na área plantada de coca na Colômbia entre 2001 e 2003, atingindo 118.547 hectares. Embora o Governo estadunidense tenha divulgado, na mesma ocasião, a redução global das zonas de plantio na Colômbia e a completa erradicação das lavouras na região de Putumayo, há informações de que os produtores abandonaram o cultivo em grandes plantações e adotaram técnicas de plantio em áreas pequenas cercadas de mata para dificultar a detecção por satélite e a conseqüente fumigação.

O monitoramento por satélite das plantações de coca na Colômbia detectou relativo aumento de cultivos ilícitos no departamento de Vaupés, junto à parte superior da região do território brasileiro conhecida como “Cabeça do Cachorro”. No passado as plantações de coca não se desenvol-viam nessa região devido às condições desfavoráveis de terreno e clima. Entretanto, avanços observados nas técnicas agrícolas e nas variantes das plantas usadas para o cultivo têm possibilitado sua adaptação.

No Peru, o êxito das medidas de interdição do tráfico de drogas por via aérea que contaram com a cooperação dos setores militares e de Inteligência dos Estados Unidos forçou, num primeiro momento, a trans-

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ferência de parte da produção para a Colômbia. Com a interrupção desse programa e a continuidade das medidas repressivas no país, observou-se o retorno das plantações ilegais de coca em alguns vales peruanos, onde os produtores rurais recebem dos traficantes recursos para investir no plantio e obtêm assim maior rentabilidade na comercialização das safras, as quais se destinam, principalmente, ao processamento da pasta base de cocaína, inclusive em laboratórios próximos à fronteira com o Brasil.

Na Bolívia, a despeito do esforço no sentido de combater os cultivos ilegais, a tendência de redução na área plantada não se mostrou sustentável. Dados indicam aumento do plantio em 2002, principalmente devido à mudança na política interna em relação à área do Chapare. Além disso, autoridades bolivianas têm encontrado dificuldades em coibir a crescente influência da atividade criminosa, notadamente nas cidades fronteiriças com o Brasil, manifestada no aliciamento de servidores públicos, membros do poder judiciário e forças policiais bolivianas.

Em relação à inserção do Brasil no contexto regional do narcotráfico e seus reflexos para a Amazônia brasileira, destacou que se faz principalmente pela utilização de seu território para o transporte de drogas. Como as principais áreas produtoras de coca estão localizadas na borda ocidental da grande bacia de drenagem do Rio Amazonas, a bacia hidrográfica que abastece a região tem sido usada pelos traficantes para o transporte de drogas.

Expôs alguns slides mostrando as principais rotas de tráfico de drogas tanto fluviais quanto aéreas, bem como as principais pistas de pouso clandestinas. Os slides mostravam principalmente as rotas fluviais de ingresso de drogas no Brasil e rotas fluviais de escoamento de drogas desde a Colômbia, Peru e Bolívia.

Em relação às rotas aéreas, os slides mostravam que as principais pistas clandestinas na Amazônia Legal localizam-se principalmente nos Estados do Pará, Amapá, Roraima, Acre, Rondônia e Amazonas. É importante

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observar, em relação às pistas clandestinas, que muitas delas estão localizadas em Terras Indígenas e Unidades de Conservação, o que gera um problema adicional para se controlar esse tipo de tráfico na região.

Foram mostradas também as principais conexões da rede de trans-porte utilizada pelo narcotráfico, identificando os principais corredores dentro do território brasileiro. O principal corredor das drogas produzidas nos países Andinos - Corredor Norte - entra pelo Amazonas, e distribui para o Pará, de onde segue para outros estados. Um outro importante corredor - Corredor Central - seria a rota que entra a partir de Rondônia, seguindo para o Centro-Oeste e chegando até o Sudeste.

O principal reflexo observado na produção de drogas na Colômbia é a tendência de que a região Amazônica se consolide como corredor do tráfico de drogas pelo fato de não se conseguir reduzir a oferta nos países Andinos. Ressaltou ainda o grande potencial do Brasil como consumidor de drogas, principalmente as regiões Sudeste, Centro-Oeste e Sul.

Um outro aspecto para o qual chama a atenção são os laborató-rios clandestinos para processamento da pasta base de cocaína. Foram identificados vários desses laboratórios nas regiões Norte e Nordeste brasileiras, porém a maior parte deles se localiza na região Sudeste, principalmente em São Paulo e Minas Gerais, onde, não por acaso se localizam as principais indústrias químicas, o que facilitaria a aquisição de precursores químicos, utilizados no processamento da droga. A maior parte da pasta base de cocaína que entra no país para ser processada é destinada à produção de “crack” e “merla”.

Um outro reflexo diz respeito à “economia do tráfico”. Rodrigo acredita que o tráfico de drogas não vem sozinho, está relacionado ao tráfico de armas exatamente nas mesmas rotas utilizadas pelas drogas. Observa-se claramente, uma contrapartida, uma troca que favorece o abastecimento de movimentos insurgentes e a criminalidade organizada que se concentra não só na Colômbia, mas também no Peru, Bolívia,

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Paraguai e Brasil. Aliado a isso, há também o problema da prostituição e do tráfico de seres humanos que está relacionado ao problema da droga e ao advento de grandes pólos da economia da droga em território brasileiro.

Finalizando, abordou uma outra questão que diz respeito aos cultivos ilícitos no Brasil. Destacou que até o momento não foi identificada nenhuma possibilidade de migração do cultivo de coca para a Amazônia brasileira, apesar de sempre se trabalhar com a hipótese da existência de mudas geneticamente modificadas - em função do solo não ser propício ao cultivo de um produto rentável do ponto de vista da qualidade.

Chamou a atenção, porém, para o fato de que os narcotraficantes têm utilizado novas técnicas, até mesmo por intermédio de pesquisas em universidades e em centros de pesquisa para aprimorarem a produção da folha da coca, e diante disso não se pode descartar a possibilidade de que algum dia o Governo brasileiro se depare com um problema dessa natureza na Amazônia.

aPResentação do debatedoR

Após as exposições, foi concedida a palavra ao debatedor, Secretário-Adjunto da Saei, Ministro José Antônio de Castelo Branco de Macedo Soares.

Macedo Soares destacou que seu papel seria o de preparar e estimular o debate. Agradeceu a participação dos palestrantes e elogiou as apresentações da Professora Gloria Vargas e do Analista Rodrigo de Aquino, destacando a sincronia entre as mesmas.

Em relação aos temas abordados pelos expositores, na sua opi-nião, o Brasil se transformou num potencial consumidor de drogas. Em sua análise, isso ocorreu principalmente em função do Brasil servir de

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corredor do tráfico de drogas, ou seja, ser um país de trânsito e que há dez anos isso não representava exatamente um problema para as autori-dades, apesar de ilegal, essa atividade não se apresentava como danosa. Porém, paulatinamente, foram sendo criadas rotas de trânsito onde os serviços que antes eram pagos com dinheiro, passaram a ser pagos com produtos, o que levou à criação de mercados locais.

Referiu-se ainda à questão do transbordo ou spill over, citando um artigo do então Ministro-Chefe do Gabinete de Segurança Institucional, General Alberto Cardoso, publicado no jornal “O Estado de São Paulo”, no dia 16 de outubro de 2000, falando sobre o que preocupava o Brasil em relação ao Plano Colômbia e que, segundo Macedo Soares, continua tão atual quanto na época em que foi publicado.

O debatedor instiga: O que aconteceu que não foi previsto, quatro anos atrás? E continua, subestimaram a capacidade dos criminosos ao vê-los apenas como bandidos e não como empresários dotados de visão e criatividade empresarial e articulados como tal. O transbordo se caracterizou principalmente pelo poder de mobilização e articulação do crime organizado em atividades como, por exemplo, a lavagem de dinheiro.

Finalmente, referiu-se à questão dos laboratórios clandestinos que processam a pasta base de cocaína na região da Tríplice Fronteira - Guiana, Suriname e Brasil - e destacou a necessidade de que seja consi-derado todo um conjunto de variáveis ao tratar de questões relacionadas à política de combate a ilícitos.

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

PaRte ii – debates Os debates foram realizados seguindo a ordem de inscrição dos

interessados, sendo as perguntas dirigidas a um ou a ambos expositores. Após as perguntas, o mediador da Saei, Conselheiro José Carlos de Araújo Leitão, passou a palavra aos expositores que em seguida responderam ao questionamento e esclareceram as dúvidas apresentadas.

Iniciando a rodada de perguntas o Professor Alcides Costa Vaz, Diretor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília - UnB, questionou a afirmação da Professora Gloria Vargas de que as estruturas de poder na Colômbia muitas vezes pretendem um alcance maior do que efetivamente exercem e perguntou, ainda, como enxergar, a partir da dinâmica dos cultivos ilícitos, o elemento de resposta a essa questão na perspectiva de formulação de políticas de segurança para o Brasil.

Em resposta, a Professora Gloria Vargas explicou que a violência colombiana é um fenômeno multidimensional e para ser analisada precisa ser considerada sua mutação histórica, ou seja, ela responde a diferentes causas em diferentes momentos históricos. Explicou que inicialmente, a violência na Colômbia começou por uma questão estritamente político-partidária, que se deu nos anos 50 do século passado, entre conservadores e liberais. Paralelamente, existiam partidos que pretendiam se consolidar pela influência dos comunistas, principalmente no final dos anos 50, mas que tiveram, em algum momento uma expressão armada que são as guerrilhas atuais.

A violência é um fenômeno que tem em algum momento uma relação com o fenômeno do narcotráfico, eles se cruzam, porque um é causa do outro. Gloria afirma, no entanto, ser difícil analisar o fenômeno da violência colombiana unicamente em relação ao narcotráfico.

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Atualmente, a violência se apresenta mais regionalizada e especializada pelas próprias políticas públicas do governo. Algumas regiões que há vinte anos estavam carcomidas pela violência estão hoje em dia mais pacificadas. Não só espacialmente, mas também como fenômeno social, a violência tem uma expressividade muito irregular.

Em relação à segunda parte da pergunta, a Pesquisadora ressaltou que a visão das relações internacionais, bem como, as intenções de futuro do hemisfério sul, têm que ser levadas em conta. Ou seja: que tipo de relação os países sul-americanos pretendem ter no futuro? Esse seria o norte principal para responder que ações seriam necessárias para efetivar um futuro comum. Essa pergunta deveria ser honestamente respondida porque se trata da construção de uma dinâmica respeitando as fronteiras, as diferenças, construindo um sistema de integração que seja favorável a todos e não só aos que têm maiores possibilidades no presente. Seria necessário que houvesse um esforço coletivo.

O Brasil, em particular, tem um papel muito importante a cumprir como potência regional, como país de maior expressividade na região e no contexto internacional. Porém, o Governo brasileiro tem adotado uma política indiferente em relação à problemática colombiana. Apenas recentemente têm-se percebido uma atitude mais pró-ativa da diplomacia brasileira em relação a essa questão.

Em seguida, Rodrigo de Aquino ressaltou que sob seu ponto de vista o problema é basicamente econômico. Não temos como impedir que se cultive coca nos países enquanto 100 libras de coca custam US$ 1 dólar e 100 libras de café custam R$ 0,80. Enquanto isso não for resolvido, qualquer política pública que se desenvolva, estará fadada ao fracasso. Os agricultores que produzem a coca têm acesso a uma diversidade de linhas de crédito dos criminosos, enquanto que a economia formal não consegue garantir nem o crédito, nem o escoamento da produção dos agricultores.

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Por outro lado, o Estado tem que continuar fazendo aquilo que pode fazer, ou seja, tentar minimizar, na medida do possível, com as leis que possui, com as políticas públicas que desenvolve, os efeitos desses crimes no território nacional.

Victor Sucupira, Gerente da Agência Nacional de Águas (ANA), questionou sobre a existência de algum acompanhamento por parte da Abin em relação ao vínculo entre tráfico de animais silvestres, exploração de madeira e tráfico de drogas. Numa segunda pergunta, em relação à Colômbia, quis saber como resolver a questão dos cultivos ilícitos, uma vez que essas iniciativas sempre esbarram na incapacidade do Estado colombiano de enfrentar e resolver essa questão.

Respondendo à pergunta, Rodrigo de Aquino lembrou que a atividade criminosa é um negócio. Então, segundo ele, enquanto hou-ver uma oportunidade onde os criminosos possam obter lucro através de um ato ilícito, seja tráfico de drogas, de armas, de animais silvestres ou exploração ilegal de madeira, eles sempre estarão tirando proveito. Deve haver uma interligação entre as ações. Ressalta, também, que se conseguirmos combater efetivamente o tráfico de drogas e o de armas, que são as principais atividades do crime organizado, sem dúvida alguma, desarticularemos grande parte desse sistema.

Respondendo à segunda pergunta do Gerente da ANA, Gloria Vargas destacou que, sobre a questão de combater a lavagem de dinheiro em lugar de focar a atenção e o esforço na erradicação de cultivos, a resposta não pode ser absoluta. Uma das preocupações deve ser: o que acontecerá com os pequenos produtores cocaleiros que têm uma vida de deslocamentos pelo território colombiano? O que acontecerá com a pequena produção agrícola colombiana? Teria que necessariamente existir alternativas de desenvolvimento, de subsistência para essa numerosa população. As respostas nunca são únicas, na verdade, precisa-se de uma estratégia que se poderia chamar de multifuncional, porque é necessário

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considerar as diferentes ramificações de todo esse fenômeno, todas as suas variáveis.

Em seguida, o Ministro Macedo Soares fez um comentário em relação aos delitos conexos, ou seja, os delitos que vêm junto com o narcotráfico: contrabando de armas, tráfico de precursores – produtos químicos para fabricar cocaína – lavagem de dinheiro, etc. Segundo ele, o Brasil tem um novo delito conexo que três meses atrás ninguém tinha ouvido falar, isto é, o contrabando de caça-níqueis e máquinas de bingo. O Brasil proibiu essas máquinas e agora elas estão migrando para os países vizinhos. O setor econômico brasileiro de caça-níqueis estaria sendo transferido para as cidades de fronteira e junto com ele a atividade de lavagem de dinheiro. Para o Ministro, essa atividade é extraordinariamente dinâmica.

O próximo participante a formular uma pergunta foi o Senhor José Alberto da Costa Machado, Coordenador-Geral da Suframa. Quis saber a opinião da Professora Gloria sobre o papel da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) em relação à cooperação entre os países Pan-Amazônicos no combate ao narcotráfico e quanto à integração de fronteiras por meio de mecanismos econômicos.

Respondendo à pergunta, Gloria Vargas informou que vem acompa-nhando o desdobramento das ações empreendidas pela OTCA e sempre lhe parece que a OTCA tem muitas ambições e pouco poder de realização, ou seja, não se coaduna com a expectativa que cria nos Países Amazônicos. O fato da Secretaria Permanente estar em Brasília é importante no sentido de ter uma maior visibilidade. Ressaltou que a gestão atual está fazendo grandes esforços, mas que, entretanto, continua com várias limitações técnicas, de orçamento, etc.

Na seqüência, o Ministro Macedo Soares comentou que as instituições muitas vezes nascem formalmente antes do tempo e ganham força e razão de ser na medida da evolução da sociedade. Para Macedo Soares, se tivéssemos que fazer o nosso mea-culpa, bastaria olharmos qualquer mapa

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escolar brasileiro e notaríamos que as nossas fronteiras, a linha de limites é cercada de amarelo, cinza ou branco. Nós nos habituamos a achar que o Brasil é uma espécie de ilha flutuando no meio do nada, não conseguimos ver o nosso País inserido na América do Sul. Falta-nos uma escala para sobreviver numa economia integrada, então, assim a OTCA deixaria de ser um sonho de diplomatas e passaria a ser uma ferramenta útil.

Gloria aproveitou também para comentar que em relação à vertente mais pragmática abordada pelo Ministro, a considera muito importante e acha que a visão um tanto utópica, inicialmente, é o que norteia também as ações que vão se convertendo em ações reais e práticas e que vão levando os países a se constituírem em blocos regionais, econômicos, etc. Seria similar ao processo da União Européia, em cima de utopias, mas também em cima de ações muito concretas e pragmáticas. Para a Pesquisadora, as duas dimensões são muito importantes e nenhuma das duas deve colocar um véu de opacidade sobre a outra.

A pergunta seguinte foi do Coronel Reinaldo Silva Simião, represen-tante da Emaer, que quis saber a opinião da Professora Gloria em relação à participação militar no combate às drogas e se a sua pesquisa contemplaria esse aspecto, uma vez que, historicamente, a ação militar sempre foi vista por um viés ideológico.

Gloria Vargas ressaltou que quanto à participação militar, depen-dendo do tipo e do alvo dessa participação, pode ser bem-vinda ou não e, também, em diferentes escalas. De acordo com ela, é óbvio que, para as populações locais, que são alvo direto de algumas ações, isso pode trazer conseqüências nem sempre positivas. Dentro de uma perspectiva de defesa do território, porém, a participação militar não só é bem-vinda, como é absolutamente necessária. Afirma que não faz uma abordagem direta sobre essa temática e que esse não é o foco de sua pesquisa, porém, a considera enquanto mediadora de outras variáveis.

Macedo Soares aproveitou para intervir, ressaltando que um dos

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fatores que identificamos quando analisamos a questão da participação militar é a extraordinária mudança ocorrida nas Forças Armadas colombiana nos últimos cinco anos. Defende que as Forças Armadas brasileira têm que necessariamente se entender com a colombiana. Não podemos ter os colom-bianos lutando contra as drogas, contra o terrorismo e tendo a capacidade de entender certos fenômenos, e do nosso lado, fingirmos que isso não existe.

Em seguida, Janér Tesch, Coordenador-Geral da Abin, quis saber qual a importância do Estado ter como foco estratégico de médio e longo prazo ações preventivas voltadas ao público consumidor de drogas, uma vez que, a diminuição progressiva deste público se refletiria em ações desenvol-vidas nas áreas de segurança, defesa e até mesmo de Inteligência.

Em resposta, Gloria Vargas chamou a atenção para o fato de que, em relação à prevenção e ao consumo, as nossas sociedades ainda não compreendem muito bem porque as pessoas, em diferentes contextos sociais, acabam procurando e tendo o anseio de alterar sua consciência. Isso seria uma questão cultural do Ocidente que teria uma visão mediada por muito preconceito sobre a questão do consumo. Não haveria, segundo ela, uma discussão muito honesta sobre isso e quando há, é sempre em contextos permeados de preconceitos que distorcem os argumentos a favor e contra as possíveis soluções.

Em um outro comentário, o Ministro Macedo Soares lembrou que há alguns anos houve um grande seminário na Secretaria Nacional Antidrogas (Senad) sobre redução da demanda e, com a ajuda da Embaixada Americana, veio uma grande sumidade dos Estados Unidos para ajudar a responder a esta pergunta: Por que as pessoas usam drogas? O professor americano explicou então que havia três razões pelas quais as pessoas usam drogas. A primeira: as drogas funcionam. A segunda: estão disponíveis; e a terceira: uma certa tolerância social com o seu uso. Macedo Soares confessou sua decepção com a resposta, pois lhe pareceu uma explicação reducionista e simplória. Uma ação preventiva, segundo ele, seria mais óbvia, barata e eficiente, entretanto,

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o Brasil ainda não sabe exatamente como agir em relação à prevenção. Em seguida, Coronel João Alfredo Sinício, representante da Senad,

destacou sua satisfação sobre a ênfase dada ao aspecto da prevenção. Segundo ele, seria um ponto fundamental, como também a redução da oferta.

Uma outra questão levantada foi a utilização de uma estratégia diferenciada para a região Amazônica no que diz respeito à imperiosa necessidade da participação dos municípios. Para o Coronel Sinício, essa participação é necessária e importante porque é nesse âmbito que se desen-volvem as ações locais e onde os atores sociais atuam mais ativamente, a exemplo da atuação do Conselho Municipal Antidrogas (Comad).

A penúltima pergunta partiu do Senhor Valdemar Guimarães, Superintendente da ANA, que na verdade, formulou duas perguntas, dirigidas a ambos expositores.

Na pergunta dirigida à Professora Gloria Vargas, quis saber como a Pesquisadora, sendo colombiana, se sentia vendo o Exército Americano que atua ativamente dentro da Colômbia, interferindo diretamente nas ações, subestimando os militares colombianos.

Já ao Rodrigo Aquino, questionou se a presença militar dos Estados Unidos na América do Sul, que não se restringe apenas à Colômbia, mas se estende ao Equador, à Bolívia e que parece cercar o Brasil, não seria pior do que o próprio narcotráfico.

Gloria Vargas respondeu que como colombiana sentia um enorme mal-estar, porque o problema dos cultivos ilícitos e do próprio conflito interno estaria transbordando, como demonstram os processos sociais e políticos endógenos do País, e a cooperação nesse sentido seria mais do que bem-vinda. Porém, ressaltou que uma coisa é cooperação e outra coisa é intervenção. E o que estaria acontecendo hoje na Colômbia seria uma intervenção e, infelizmente, com a conivência do próprio Governo. Ressaltou, porém, que a sociedade e o governo são coisas diferentes e a

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Sociedade colombiana em geral se sente extremamente ferida. A Professora afirmou que dificilmente se encontrará um colombiano que concorde com essa situação de intervenção norte-americana e que a ache ideal e que daí possam advir soluções.

Por sua vez, Rodrigo de Aquino reconheceu que, sob o manto do combate às drogas os Estados Unidos têm cada vez mais, participado de ações conjuntas de cooperação militar na América do Sul e que isso causa preocupação. “Mesmo que estejam bem intencionados, gera sempre uma dúvida de qual seria afinal o objetivo dessa presença. Seria somente ajudar? Ou algo mais que não conseguimos perceber?” Rodrigo afirma que isso gera uma preocupação adicional para os que recebem essa cooperação.

Finalmente, a última pergunta, formulada pelo Senhor Pepeu Garcia, Diretor da Agência de Desenvolvimento da Amazônia (ADA), foi dirigida à Professora Gloria Vargas, questionando como ela via a realidade dentro do Plano Colômbia de um outro Estado tentando substituir o Estado colombiano.

Em sua resposta, a Pesquisadora discordou com veemência, afirmando que não concorda com a caracterização da situação. Não qualifica a situação colombiana como um Estado dentro de um outro Estado, pois existem outras formas de poder e a figura política do Estado vem evoluindo desde o Tratado de Versalhes. Então, a questão não é se há um Estado dentro de outro. O Estado colombiano tem deficiências e nessa medida seria melhor a caracterização de um Estado dependente de outro.

A Pesquisadora explicou que pela sua própria evolução histórica como país periférico, a Colômbia ocupa e ocupou sempre, primeiro como Colônia da Metrópole espanhola, depois como País independente, uma situação periférica. Nessa situação, com a intensificação das relações globais que presenciamos e vivemos hoje, esta condição acentua-se paradoxalmente, sendo reforçada pela globalização.

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Finalizando, Gloria Vargas acredita que esta caracterização não se sustenta em função das estruturas políticas da conformação do Estado colombiano, que tem muito a ver com o poder colonial espanhol que é caracterizado como um Estado. Porém, um Estado com enormes fragilidades, que tem uma condição de dependência em termos políticos e econômicos de um Estado hegemônico extremamente poderoso, os Estados Unidos; além da dinâmica destes últimos vinte anos, que altera sobremaneira as relações, representadas pela própria globalização.

enCeRRamento da Reunião

Ao final do debate, o General Wellington Fonseca, Sub-Chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), parabenizou os expositores pela apresentação e informou que o Gabinete de Segurança Institucional, por meio da Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Conselho de Governo (Creden), estava trabalhando com quatro temas: Terrorismo, Política Nuclear, Faixa de Fronteira e Política Indigenista. Dois desses temas dizem respeito à Amazônia – Faixa de Fronteira e Política Indigenista. Informou ainda que o GSI, no momento, tinha duas operações em curso, uma na área de Roraima e outra em Rondônia, e que essas ações demonstram como a Amazônia está presente no cotidiano do GSI.

Em seguida, o Conselheiro José Carlos de Araújo Leitão ressaltou que a Reunião de Estudos se referia à segunda etapa do Ciclo de Estudos sobre a Amazônia e que o citado ciclo se encerraria no dia 20 de maio com a realização da terceira e última etapa, o Encontro de Estudos.

Finalizando, agradeceu aos expositores e a todos os demais participantes e observou que o Ciclo de Estudos se constitui num espaço de discussão e análise de idéias.

amazônia�� uma áRea – Pivot PaRa uma nova PolítiCa bRasileiRa

Francisco Carlos Teixeira da Silva

Professor Titular de História Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e Coordenador do Laboratório de Estudos do Tempo Presente/ TEMPO/ Universidade do Brasil/UFRJ.

Amazônia: uma Área- Pivot para uma Nova Política Brasileira

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“... a conquista para o domínio posterior da região amazônica foi uma empresa de Portugal, cujos na-vegadores... depois de 1616, com a expulsão dos franceses de São Luis de Maranhão, ocuparam a foz do grande rio” Arthur César de Ferreira Reis.

“E quem poderá patrocinar tão grandiosa empresa, da qual dependem a conversão de inúmeras almas, o enriquecimento da Coroa Real, a defesa e a guarda dos tesouros do Peru...” Cristóbal de Acuña, 1641.

Passados mais de quatro séculos de tamanha preocupação de Portugal pela incorporação da Região Amazônica ao seu império e de tantas lutas pelo estabelecimento de suas fronteiras, voltamo-nos para um texto contemporâneo, na verdade de 2001, de um estrategista internacional ocupado com as mesmas questões:

“O governo brasileiro decidiu, no início dos anos noventa, subvencionar o desmatamento das florestas amazônicas, ameaçando sua integridade. A Amazônia certamente pertence ao Brasil. Mas, se as potências ocidentais fizeram uma exceção ao sacrossanto princípio da soberania dos estados para fazer a guerra na Iugoslávia e ajudar os kossovares (quando o Kossovo pertencia a Iugoslávia ), por que razão não se faria o mesmo contra o Brasil para se apropriar da Amazônia? O pretexto não seria mais a proteção de uma população, mas agora de toda a

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espécie humana. A Amazônia sendo o pulmão da terra, se o Brasil não a protege corretamente, isto torna-se um dever de outros estados: proteger a Amazônia”1

Durante cinco séculos, a história da Amazônia deu-se sob o signo da defesa, ocupação e preocupação obsedante com as fronteiras, como se percebe na simples e, mesmo arbitrária, escolha de textos sobre a região anteriormente apresentados.

“Ocupar” a Amazônia, estabelecer suas fronteiras e se apossar das terras através do estabelecimento de núcleos de povoamento foram os eixos centrais de políticas constantes da Coroa Portuguesa e, depois de 1640, de seu Conselho Ultramarino, chegando a tornar-se um processo sistemático e de sucesso sob o Marquês de Pombal. As preocupações eram tão grandes, em particular visando evitar as “descidas” dos espanhóis através dos Andes e dos holandeses e franceses vindos das Guianas ou através da foz do Rio Amazonas, que Portugal optou pela transformação de toda a região num Estado autônomo, diretamente vinculado a Lisboa: o Estado do Maranhão e do Grão-Pará, primeiro com sede em São Luís e, mais tarde, em Belém.

Somente a ação rápida e cruel do primeiro Imperador com seus mercenários ingleses impediu que toda a Amazônia – o Estado do Grão-Pará – se mantivesse fora do novo Império do Brasil. Mesmo assim, poucos anos depois, uma imensa rebelião social – a Cabanagem – sacudiu durante anos a província, sendo controlada depois de uma verdadeira guerra social, com massacres e fugas para o grande sertão, que acen-tuaram o esvaziamento demográfico da região.

1 BONIFACE, Pascal. Les guerres de demain. Paris, Seuil, 2001, p. 107-108.

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A bem da verdade, somente depois de 1870/80, com o surto da exploração e da exportação da borracha, acompanhado de um forte movimento de migração, principalmente de nordestinos, a Província integrou-se claramente no conjunto do País, vivendo um glorioso tempo de fausto e prosperidade – expresso, por exemplo, nos prédios públicos, praças e jardins - atraindo pela primeira vez, de forma significativa, fluxos migratórios que alterariam profundamente sua configuração social, política e mesmo fisiográfica.

O episódio do Acre, a partir de 1903, direcionou a atenção nacional para um vasto mundo até então intocado: a Amazônia Ocidental.

Após uma clara integração da Amazônia e de seu pleno reconheci-mento mundial como terra brasileira, a região permaneceu como um território exótico para a maioria dos brasileiros, carregada de imagens generosas e temíveis, e com um descompasso notável com o conjunto do País:

“A Amazônia... se ela representa 60% da superfície do Brasil, seu PIB não passa de 5% do PIB nacional, reúne apenas 10% da população urbana e 12% da população total do país, e um pouco mais – 14% dos migrantes recentes, das estradas, do numero de municípios. O único indicador, pouco invejável, para qual a Amazônia supera sua quota de território é o número de mortos em conflitos fundiários...”2

No seu contexto geral, a Amazônia apresentou ainda outras grandes disparidades em face das demais regiões: assistiu a um amplo crescimento demográfico entre 1970 e 2000, da ordem de 172%,

2 Ver THÉRY, Hervé. Amazônia: cenas e cenários. Brasília: UnB, 2004.

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mantendo-se, contudo, como a região menos povoada, com 12% da população nacional (contra 8% em 1970). A densidade demográfica é a mais baixa do País, com 4.18 hab/km2, e o Estado do Amazonas com apenas 1.83 hab/km2 (contra uma densidade nacional de cerca de 20 hab/km2). Dados mais qualitativos apresentam o mesmo recorte de desigualdade: segundo o CNPq, a região conta com apenas 2.7% dos pesquisadores-doutores do País (contra 34.7% de São Paulo), sendo que mais de 50% desses pesquisadores tem sua origem fora da região - talvez a mais importante defasagem atual.

Tais disparidades impactam claramente a formulação, tomada de decisão e elaboração de políticas públicas para a região, acentuando a importação de projetos e de “soluções”, marcadas profundamente pelo tratamento exógeno da região e manutenção do caráter de “conquista”. A necessidade de investimentos fundamentais de C&T na Amazônia talvez sejam, hoje, tão ou mais importante do que abrir estradas, visando principalmente criar uma massa crítica capaz de propor soluções adequadas a uma realidade por tempo demais tratada como terra de conquista3. Para grande parte de suas elites esta disparidade resulta num forte sentimento de desprestígio, expresso na importação de técnicos para os grandes projetos desenvolvidos na região.

Para uma análise detalhada das políticas públicas formuladas para a região sugere-se, antes de fazer um balanço meramente estatístico dos pro-jetos realizados, buscar as bases conceituais que permitiram a formulação de tais projetos. No seu conjunto as formulações teóricas que alicerçam as tomadas de decisão sobre a Amazônia pertencem a um velho conjunto de idéias – algumas formuladas no século XIX – sobre a região, repetindo-se

3 COSTA, Francisco Assis. Ciência, tecnologia e sociedade na Amazônia. Belém: Cejup, 1998.

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com grande freqüência, mitigadas com visões consideradas modernas e que muitas vezes, se combinam e se articulam para alicerçar teoricamente as formulações voltadas para o desenvolvimento regional.

Pensando a amazônia

A grande maioria das formulações teóricas que enquadram os proje-tos de desenvolvimento da Amazônia baseiam-se em visões da região cujas matrizes residem em uma compreensão externa. Eli Lima, Pesquisadora do CPDA/UFRJ, percebeu com clareza as origens, no século XIX – em virtude direta do surto da borracha, do fausto e crise – das visões da Amazônia, centradas num imaginário que se pode denominar de “imagens do sertão”, típico da grande expansão imperialista do século XIX e início do século XX. Na África, na Austrália ou nas Índias, aventureiros, exploradores e missionários embrenhavam-se nas selvas, nos pântanos, escalavam montanhas ou atravessavam desertos completando a obra de unificação do mundo. Nomes como Rudyard Kipling e Joseph Conrad tornaram-se mundialmente conhecidos como narradores do exótico, do bizarro e do original: homens, animais e a flora surgiam como verdadeiras relíquias de um passado remo-to, perdido. Para alguns, como o ficcionista Conan Doyle, surgiram ilhas e mundos perdidos, habitados por homens e animais de um passado, também, irremediavelmente perdido.

O Brasil da República Velha se lançou na conquista dos seus sertões, em vez da busca e das conquistas imperiais no exterior. Voltou-se para o próprio Hinterland: o sertão brasileiro ficava bem aqui, na borda da chamada civilização, bem à margem da história, como escreveu Euclides da Cunha. As questões centrais sobre a Amazônia – suas riquezas, seu caráter inóspito e consumidor de homens através das maleitas; um mundo formado por

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águas; a floresta imensa, muda e vazia; as preocupações com as fronteiras e os limites, tudo isso está nas notas de Euclides da Cunha, quando da Missão Brasileiro-Peruana de Estabelecimento das Fronteiras, organizado durante a sua estada no Acre recém anexado ao País. Aí surgiu literariamente, e como suposto teórico, as visões de um “Paraíso Perdido”, localizado à margem da história.4

O advento do Estado Novo (1937-1945), com seu afã colonizador e integrador, acentuaria o culto de Euclides da Cunha, de sua visão da Amazônia, ora “Paraíso Perdido”, ora “Inferno Verde”, embasando as políticas formuladas para a região. A partir daí, quebrado o monopólio brasileiro da exploração da borracha e fracassado o projeto de Fordlândia e Belterra, iniciado em 1922, pode-se verdadeiramente falar no surgimento de uma “Questão Amazônica” para a República do Brasil. Neste sentido aponta-se algumas das regularidades – os pontos comuns que se repetem nos diversos discursos sobre a Amazônia – e que marcam a “Questão da Amazônia” na história republicana brasileira - como matrizes teóricas do planejamento desenvolvimentista. Segue apresentação de algumas matrizes teóricas, propostas e alguns pré-cenários daí decorrentes para a região.

1. A Matriz securitização da Amazônia: talvez seja a matriz mais antiga, e mais repetitiva, das preocupações sobre a região. Originária do período Colonial, tem suas raízes na preocupação real ou imaginária com a integração nacional do território em face dos riscos de internacionalização. No passado, o risco foi bastante real, com a fundação de estabelecimentos franceses e holandeses na Foz do Amazonas, e com os descimentos dos espanhóis da Audiência de Quito e Lima. Coube ao Marquês de Pombal, no século XVIII,

4 LIMA, Ely et al. De sertões, desertos e espaços incivilizados. Rio de Janeiro: Mauad, 2001, p. 77 e ss.

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garantir a integridade do território, seu povoamento e uma profunda alteração demográfica na região, com a introdução de um forte componente europeu – açoriano, principalmente – na ocupação de cidades-fortes, que deveriam guarnecer a região, como Óbidos, Santarém e vários núcleos na Ilha de Marajó.

No século XIX e XX os riscos de internacionalização foram relativamente baixos, sem grandes aventuras ou intromissões estrangeiras, excetuando-se os planos – recentemente divulgados pelos arquivos americanos – de uma invasão americana contra Belém durante a II Guerra Mundial (e apenas em caso do Brasil apoiar o Terceiro Reich). As demandas da França e da Inglaterra, na área das Guianas, foram resolvidas por arbitramento e a Questão do Acre acabou, em verdade, por engrandecer a região. A figura de Rio Branco, com uma fixação cartográfica notável, foi decisiva no estabelecimento das fronteiras atuais. Na segunda metade do século XX as preocupações com a região voltaram a um patamar elevado – mesmo descontando uma certa paranóia nacionalista – as diversas pretensões internacionais sobre os recursos naturais da região causam preocupação5. A partir dos anos 70, e muito especialmente

5 Em situações diferentes, ao longo dos anos 80 e 90 do século passado, várias autoridades internacionais, com responsabilidade de mando em países desenvolvidos, cometeram impropriedades contra a soberania brasileira na Amazônia. Assim, o Conselho Mundial das Igrejas, em 1981, afirmou em documento público que a soberania brasileira na região é “meramente circunstancial”; M. Thatcher, em 1983, em discurso no G-7 sugeriu a troca da dívida por territórios amazônicos; Al Gore, em 1989, vice-presidente de Clinton e candidato a presidente dos EUA, afirmou “...ao contrário do que os brasileiros pensam, a Amazônia não é deles, mas de todos nós”; François Mitterand referiu-se a Amazônia, em 1989, como um território de soberania relativa; M. Gorbachev, animador de uma Ong sobre a Governança Mundial, sugeriu, em 1992, por sua vez, que o Brasil delegasse a soberania da Amazônia a instituições científicas internacionais; no mesmo ano, John Major, ex-premier britânico chegou a afirmar que seria possível pensar em operações militares para garantir a preservação da região, enquanto Henry Kissinger avançou em direção a montagem de um sistema de pressões e constrangimentos, através de instrumentos estatais exteriores, de Ongs, de empresas e bancos, visando a fragilidade econômica do país, para conseguir objetivos relativos a Amazônia. Devemos ter claro, aqui, que as seguidas referências sobre uma “geopolítica da ditadura militar”, como aparecem em várias obras de ambientalistas visando desqualificar as forças armadas como ator regional, são produto do desconhecimento histórico. A matriz de segurança e defesa precede o regime militar, e em muitos séculos, além de manter-se com extrema atualidade, como vimos. Da mesma forma, países com grandes espaços pouco povoados, como a Federação Russa e a China Popular, elegeram, pós 11 de setembro de 2001, as ameaças transfronteiriças, o narcotráfico e o contrabando, como parte central das chamadas “novas ameaças”.

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após a abertura da Transamazônica e do surto dos grandes projetos, entre 1960 e 1970, a região passou a ser alvo de inúmeras avaliações por parte de instituições internacionais, muito especialmente Ongs. Muitas vezes as alegações eram baseadas em teses, ou evidências, bastante frágeis, como o mito da Amazônia enquanto “pulmão do mundo”. Outras preocupações voltam-se para a defesa da biodiversidade, da floresta do trópico-úmido e das populações indígenas, normalmente acusando instituições nacionais permanentes – como as Forças Armadas – de ação insensível a tais temas, como é uma constante nas reportagens do New York Times ou do Herald Tribune. O texto recentíssimo de Pascal Boniface – citado em epígrafe no início deste artigo – um importante assessor da ONU, demonstra um acirramento das visões sobre a Amazônia e o seu desenvolvimento, provocando um incômodo cruzamento entre a vertente “securitizante” e a vertente conservacionista que explicam e propõem formas de ocupação regional. Destacam-se algumas percepções “securitistas” sobre a região da seguinte forma:

a) Do ponto de vista exclusivamente militar a grande novidade regional é a ampliação do conflito político-militar na Colômbia, com um crescente risco de internacionalização da crise naquele País. Porém, não se constitui um risco imediato ou irremediável. Na verdade não há nenhum grande eixo de acesso rodoviário direto com a Colômbia, sendo o contato bem mais fluvial – Tabatinga/Letícia – ao contrário, dos projetos em curso voltados para Bolívia, Peru e Venezuela, onde os nós rodo-fluviais começam a se adensar com grande êxito. Entre o Brasil e a guerrilha colombiana medeia uma larga zona baixamente povoada, que pode ser entendida de duas formas: ora como espaço de “esponjamento” da guerrilha, ora como espaço de ação das forças nacionais, sem risco de contato direto e/ou constante com zonas urbanas significativas. O principal eixo de contato – através do rio – pode ser

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bem patrulhado e controlado, havendo vontade e meios para isso. De certa forma, isso já vem sendo feito na área de Tabatinga, que passa por um largo surto de crescimento. Talvez, mais preocupante seja a possibilidade de um recrudescimento da ação militar na Colômbia, inclusive com um combate intenso contra cocaleros, originando vagas de refugiados hispanófonos sobre a área fronteiriça. Este se apresenta como um cenário remoto.

b) A maior parte da vertente andina, compreendida enquanto faixa de fronteira, não apresenta nenhum risco militar notável, ou que possa efetivamente gerar preocupações iminentes de segurança. Os governos da Bolívia, Peru e Venezuela são regimes amigos, com relações cada vez mais estreitas com o Mercosul e podendo com o Brasil desenvolver projetos conjuntos de integração na área de infra-estrutura (rodovias, pontes, canais, etc.), alguns já em portfolio do BNDES, além de abertura de vias de mão dupla entre o Pacífico e o Atlântico, atendendo aos interesses de todos os países envolvidos.

Nenhum destes países encontra-se, no momento, em enfrentamento com qualquer tipo de guerrilha local, capaz ou de subverter os regimes estabelecidos, ou de utilizar o território nacional como santuário, refúgio ou trilha de acesso. Assim, as ameaças – aqui apenas esboçadas para Amazônia – devem ter outro caráter ao invés da invasão ou guerrilha clássica, como consta nos manuais. Talvez o dossier das chamadas “novas ameaças mundiais” – tais como o narcotráfico, contrabando de armas, a biopirataria, o terrorismo internacional, sejam elementos bem mais pertinentes para o questionamento em torno das chamadas Faixas de Fronteira.

Historicamente as invasões ou risco de invasão da Amazônia se deram sempre no sentido montante do Rio Amazonas, da foz para os sertões, e nunca inversamente. Nada no cenário da região Andina, num

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espaço de 25 a 30 anos, anuncia uma mudança estratégica neste quadro. Qualquer agressão, como aquela do cenário vislumbrado por Pascal Boniface, se dará no sentido montante, leste/oeste. Assim, a Foz do Amazonas, a região mais densamente habitada e habilitada, permanece como a porta de entrada de todo o território.

Duas possíveis situações de crise são aqui apontadas:

1. O cenário Boniface (assim nomeado por razões óbvias): dar-se-ia por volta de 2035, quando as pesquisas em torno da sintetização de moléculas e/ou fármacos oriundos da flora e fauna movimentariam um mercado mundial de bilhões de dólares e, ao mesmo tempo, a crise de abastecimento de água potável se avolumaria, atingindo milhões de pessoas, dependentes de dutos para sua manutenção. Nestas condições uma coligação internacional, usando como pretexto a defesa do meio-ambiente, utilizaria uma task force, combinando força naval, estações orbitais e submarinos para agir a partir da Foz do Amazonas, e obri-gando o Governo brasileiro a aceitar um estatuto ad hoc de soberania partilhada;

2. O cenário do Arco Indígena: a partir de 2015 a maioria dos regimes estabelecidos nos Países Andinos – Bolívia, Peru, Equador – estariam em mãos de movimentos indígenas, constituídos de cocaleros – e não narcotraficantes – e campesinos, revertendo a dominação de mais de 500 anos das minorias criollas hispânicas. Tais regimes seriam marcados por forte instabilidade, nacionalizações e perda de controle territorial, criando uma zona em “arco de instabilidade” vinda do Sul da Colômbia até o Norte do Paraguai. O impacto das vitórias indígenas na Bolívia e Peru provocaria grande inquietação no Paraguai, onde as autoridades perderiam o controle do território, criando uma terra de ninguém entre o Centro-Oeste brasileiro e o Chaco. Grupos indígenas brasileiros, já

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com forte recuperação demográfica, começariam a aderir ao indianismo militante e revolucionário.

Três sub-tendências, num claro exercício hipotético, poderiam ser identificadas a partir de tais situações:

a) O Brasil teria na sua fronteira um “arco de instabilidade”, onde os seus interesses (principalmente na área de energia, fundamental para a manutenção do eixo industrial São Paulo/Paraná/Santa Catarina) estariam ameaçados. Não se trata de hostilidade – podendo-se manter um perfil cooperante com tais regimes indígenas – mas, de instabilidade, pondo em risco um projeto de crescimento integrado sul-americano. Necessário lidar com uma forte hostilidade antiamericana na região, com possível nacionalização de bens e investimentos estadunidenses e retirada forçada de bases americanas na região;

b) Os Estados Unidos estariam em condições de forçar uma inter-venção preemptiva na região andina, possivelmente na Bolívia, visando evitar a “indiginização” do país. Neste sentido pressionaria o Brasil a agir em conjunto na região, utilizando-se de uma disposição intervencionista de caráter também preemptivo do Chile, que tornar-se-ia a principal base de ação dos Estados Unidos no continente sul-americano;

c) Os Estados Unidos fortaleceriam suas bases ao longo do Arco Indígena da instabilidade, acabando por cercar a Amazônia brasileira de um forte sistema militar, contando com o apoio, ao sul, do Chile e ao norte da Colômbia, ocupada militarmente.

Tais “pré-cenários” apenas esboçados, claramente hipotéticos, talvez até mesmo exagerados, estão infelizmente inscritos na realidade sul-americana e potencializados nos últimos acontecimentos na Bolívia, no Equador e, cada vez mais possível, no Peru e viáveis em caso de manutenção

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da atual política de ação preemptiva enquanto base da Política de Segurança Nacional dos Estados Unidos. A existência, mal dissimulada, de uma vasta rede de operações, vigilância e informação dos Estados Unidos, desde a grande base militar na Guiana – ex-Guiana Inglesa – até os estabelecimentos no Paraguai, reforçam as preocupações existentes.

A atuação da Inteligência americana no país – mesmo através de agências brasileiras – bem como a insistência em internacionalizar a Questão da Tríplice Fronteira, demonstraria o interesse de manter operacional a presença estrangeira em duas regiões estratégicas nacionais, tanto ao Norte, quanto ao Sul da Amazônia, em uma ação de envelopamento logístico.

Não se pode, como algumas vertentes ambientalistas desejariam, eliminar as Forças Armadas, e o fator Segurança Nacional, do equaciona-mento de uma política nacional para a Amazônia. Trata-se, em verdade, de seguir firmemente os princípios estabelecidos na Constituição demo-crática de 1988, onde se fixam claramente as funções institucionais das Forças Armadas. A eliminação das Forças Armadas da região, a limitação de seus movimentos ou sua sujeição a outras instituições (nacionais ou estrangeiras, estatais ou privadas, principalmente aquelas operando na faixa de fronteira) é claramente um desiderato anticonstitucional e uma grave ameaça à qualquer estratégia de dissuasão e/ou presença brasileira na região Norte.

As Forças Armadas são um dos atores fundamentais na região, com uma tradição que passa pelos fortes da Amazônia construídos no século XVIII, pelo papel da Marinha em todo o século XIX – inclusive a garantia de adesão ao processo de Independência - pela ação do Correio Aéreo Nacional (CAN), pela atuação de Cândido Rondon, pelo Projeto que leva seu nome e também por escolhas estratégicas, algumas bastante discutíveis, como a construção de rodovias e os grandes projetos dos anos 70. A mais recente intervenção se deu através do Sistema de

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Proteção da Amazônia (Sipam) e o Sistema de Informação e Vigilância da Amazônia (Sivam), peças fundamentais no enfrentamento das chamadas “novas ameaças”.

2. A Matriz Determinista: boa parte da literatura sobre a Amazônia está profundamente impregnada por um dos muitos tipos de determinismo geográfico, ecológico ou ambientalista, largamente baseado em dois clássicos oriundos da República Velha, marcados pela ambiência cientificista, herdada do século XIX, e do culturalismo de H. Taine, com suas polaridades e díades marcadas por civilização e barbárie, transformadas em chaves de entendimento da região. Trata-se, em primeiro lugar, de Euclides da Cunha, que através da Comissão de Reconhecimento do Alto Purus, patrocinada pelo Ministério do Exterior, percorreu a região, entre 1904 e 1905, enviando sistematica-mente artigos para jornais do Rio de Janeiro. O conjunto de anotações e artigos de Cunha foi publicado em 1909, com o significativo título “À Margem da História”, apresentando ao público culto do Rio de Janeiro um mundo totalmente novo, onde o personagem central era a própria natureza. Um pouco antes, em 1906, Alberto Rangel publicava “Inferno Verde”, um diálogo claro com o próprio Euclides da Cunha (a partir da matéria previamente publicada em jornais), onde as duas visões travavam um duelo sobre a verdadeira natureza da Amazônia. De qualquer forma, a díade barbárie versus civilização é o elemen-to norteador de todo o debate, centrando na natureza – pródiga ou inóspita – o protagonismo da história. Enquanto em “Os Sertões” o homem – mesmo com suas taras e atavismos - era sempre o centro explicativo da história, nos dois textos citados, a natureza, cada vez mais antropomorfizada em suas conseqüências era o ator central em todas as cenas.

Para Euclides da Cunha, influenciado pela leitura das viagens de

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�umboldt e pela literatura ficcional de John Milton e Conan Doyle, a hostilidade natural da região, marcada pelo “mar doce”, pela abundância de águas, pela umidade e o calor, seriam uma prova para o homem brasileiro, porém não se constituiriam em um impedimento para a ocupação local. O objetivo básico era construir as condições para a incorporação da Amazônia à nação, deixar, assim, de estar à margem da História. Tal apego à constru-ção nacional valeu a Euclides da Cunha a total consagração sob o Estado Novo varguista, acabando por transformá-lo no ícone da integração na-cional. Já Alberto Rangel apontou um caminho oposto, sem o refinamento literário euclidiano, e com uma visão que beira o naturalismo cientificista. Surge uma Amazônia insalubre, dos miasmas, uma fonte permanente de histórias prontas para assombrar a imaginação urbana da Belle Époque. O Inferno Verde manteve-se como um eixo central da explicação do atraso, das desigualdades regionais e sociais de toda a região.

Indo além dos aspectos literários, tais obras – por mais diversas que pareçam – fundamentaram amplamente o planejamento e a elabo-ração de políticas públicas, desde o Estado Novo, para a região. Tais textos eram quase tudo o que se possuía sobre a região, em particular antes da criação da Comissão Nacional de Geografia, depois Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Ibge), e acabaram por contaminar todo o planejamento estatal elaborado na época. Ainda durante o Estado Novo, as principais intervenções se deram no âmbito da saúde pública, principalmente através da criação de uma escola de enfermagem em Be-lém do Pará, que deveria, através da multiplicação de seus profissionais (bem mais voltados para o sanitarismo do que para a prática curativa propriamente dita), abrir caminho para os ambiciosos projetos de co-lonização ensejados pelo Estado Novo. Contudo, mesmo este esforço não foi capaz de evitar que as levas de migrantes pobres oriundos do Nordeste e dirigidos para a extração do látex – os famosos “soldados da borracha” – morressem em grande quantidade, vítimas de doenças e

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péssimas condições sanitárias locais. Note-se, de passagem, que grande número das vítimas foram acometidas ainda nos barracões de distribui-ção de trabalho, nos arredores de Belém, antes mesmo da penetração na floresta. Na ocasião houve uma forte intervenção dos Estados Unidos, principalmente através de programas de ajuda, cooperação e formação de técnicos especializados, enviando um bom número de enfermeiras, nutricionistas e assistentes sociais. Assim, a grande ação estatal na região, até avançado os anos 50, centrou-se na instalação de condições sanitárias e na luta contra a insalubridade regional, utilizando-se largamente das estruturas pré-existentes, em especial da chamada “Amazônia dos rios”. Um trabalho recente, realizado na Escola Ana Nery, enfocando a prática da enfermagem local entre 1940 e 1980 mostra, entretanto, uma apro-priação formalista e elitista dos ensinamentos passados pelas monitoras americanas, com ênfase no cuidado com os uniformes, na feitura das camas, na hierarquia interna e no relacionamento, de um lado, com os médicos e, de outro, com auxiliares e serventes, descartando a penetração nos sertões e originando uma nova elite profissional, pronta para delegar atribuições a novas categorias subalternas no interior da clínica.

No seu conjunto, todo o sistema parece ter sido montado para empregar filhas da elite local, com enxovais caros, e sem nenhuma preocupação para com uma real internação nos sertões, visando atender às populações ribeirinhas isoladas.

A partir do final dos anos 50, sob o impacto da Administração JK, e com a inauguração de Brasília, inverte-se radicalmente a abordagem da Questão Amazônica: a “Amazônia dos rios”, com seus eixos e nós voltados para o sentido leste-oeste, passa a ser cruzada por um eixo vertical, rodoviário, no sentido sul-norte, criando novos eixos de adensamento, inaugurando claramente uma nova fase na história da colonização regional. A oposição à construção da Belém/Brasília gerou típicos sentimentos coletivos oriundos da matriz determinista: de um

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lado, uma grande euforia; de outro lado, o deboche expresso na idéia de “estrada das onças”.

Um fato, ou talvez de melhor forma, um procedimento merece ser destacado na gestão JK: a extensão à Amazônia de procedimentos antiburocráticos típicos de sua atuação administrativa. Juscelino Kubitschek, que desconfiava da burocracia estatal, optou sempre pela criação de Grupos de Apoio ou Grupos de Trabalho para gerir os projetos que considerava estratégicos, visando dar velocidade e eficácia a tais procedimentos. Inaugurava-se, de qualquer forma, uma nova fase na ocupação da Amazônia.

3. A Matriz Ambientalista: não cabe aqui fazer uma arqueologia do pensamento ambientalista, tremendamente facetado, com vários e diferentes nuances, muitas vezes em choque entre si. Deve-se destacar, entretanto, a diferença entre o ambientalismo e a matriz determinista, embora ambos possam, em algum momento, possuir sérias vinculações. Cabe apenas assinalar que desde o século XIX, sob o aspecto de preser-vacionismo, existe uma corrente de pensamento voltada para as questões ambientais e que aos poucos originaria um pensamento conservacionista, o ecologismo, o socioambientalismo e até mesmo um técnico-ambien-talismo. O trabalho de Paul Little dá conta plenamente das diversas nuances e aspectos da grande vertente ambientalista, não sendo necessário repetir um trabalho já bastante conhecido e abrangente6. O fundamental aqui é demarcar a grande expansão de uma percepção ambientalista da Amazônia, muito especialmente depois dos anos 60 e 70, sob o impacto

6 LITTLE, Paul. “Ambientalismo e Amazônia: encontros e desencontros”. In: SAYAGO, Doris et al. Amazônia: cenas e cenários. Brasília, UnB, 2004, p. 321 e ss.

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da implantação dos grandes projetos na Amazônia.É a partir de uma forte pretensão cientificista que o pensamento

ambientalista introduz diversos diagnósticos sobre a ocupação e o desen-volvimento da Amazônia, que poderiam ser resumidos numa constatação recente: o impacto negativo da maior parte da intervenção humana na região. Grande parte dos ambientalistas promoveram uma ampla revisão da história da Amazônia, centrando a ênfase de suas análises na impropriedade da colonização européia da região, e dos esforços de povoamento ao tempo do Império – em especial durante o surto da borracha – chegando até a época dos grandes projetos, quase que num rol contínuo de grandes desastres. A idéia central, baseada em estudos de solo, aptidão, climatologia, etc., reside na afirmação do caráter frágil do ecossistema amazônico, montado sobre um equilíbrio dinâmico, auto-sustentado, e de constante feedback. A ação humana de origem européia, e depois nacional, teve o papel de desarticular este frágil equilíbrio local, abrindo o caminho para a desertificação e supressão da biodiversidade da grande floresta. Muito especialmente, a tentativa de ocupar e colonizar a Amazônia teve um custo bastante elevado, já que as condições ecológicas locais não sustentam grandes populações. Tal “apropriação” e “revisão” da história da Amazônia teve uma forte sustentação no caráter rarefeito da população local, desde tempos imemoriais, no seu caráter radial, acompanhando a rede hidrográfica local. Assim, os projetos de ocupação – principalmente os grandes projetos agropecuários – não só estavam fadados ao fracasso, como ainda foram responsáveis pela destruição da riqueza natural local.

Entre os muitos cientistas que defenderam esta “matriz ambientalista” para a compreensão da Amazônia destaca-se, por seus longos anos de estudo e dedicação ao tema e a região, Betty Meggers. Em sua tese central sobre a região, Meggers afirma que o desenvolvimento das sociedades indígenas da região foi limitado pela pobreza do ecossistema,

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que por sua vez impediu o crescimento e o adensamento populacional, bem como a intensificação das ações econômicas. Em clara oposição às noções de “paraíso” e “cornucópia”, a própria natureza amazônica é o fator que limita o crescimento populacional, gera crises de abastecimento e impede o desenvolvimento da região. Vários cientistas brasileiros, entre os quais Francisco Salzano, da UFRGS, e Walter Neves, do Museu Emílio Goeldi, ao lado de pesquisadores estrangeiros, como Anna Roosevelt, do Museu de História Natural de Nova York, apresentam resultados diferentes em relação à fragilidade e inospitalidade do ecossistema local. Anna Roosevelt, por exemplo, contrapõe a essas hipóteses os resultados, ainda parciais, de pesquisas arqueológicas que comprovam ter havido nas várzeas amazônicas, no período pré-colombiano e no pré-contato entre as populações nativas e os europeus, um povoamento extremamente denso em estágio avançado de cultura material e de organização social. Comprova, ainda, a incrível capacidade de adaptação, apropriação e manejo por parte dos grupos sociais – e, que vindos de fora, utilizaram os recursos florestais, pesqueiros e a agricultura de várzea para a sustentação de uma vasta população, organizada em sistemas políticos e sociais complexos. M. �eckenberger chega a afirmar, contrariamente aos preservacionistas, que a Bacia Amazônia sustentou, no período pré-colombiano e no pré-contato, uma população extremamente densa, talvez a maior concentração demográfica das Américas, excetuando-se o México Central. Donald Lanthrop, por sua vez, identifica na área entre Altamira e Santarém um dos berços mundiais da agricultura, com a domesticação de dois padrões agrícolas de grande sucesso: a associação raiz/tubérculos, com ênfase na mandioca, e a associação milho/feijões, que da região Amazônica teriam colonizado os Andes, através dos rios; avançado para o Sul e, através do Caribe, chegado até a Meso-América.

Da mesma forma, pesquisas arqueológicas modernas, realizadas na área de atuação das civilizações Maia e Azteca começam a derrubar

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a tese do colapso ecológico da civilização Maia. A explicação clássica, de que as florestas úmidas do México, Guatemala e Belize não seriam capazes de sustentar uma população densa, e em expansão constante, começam a ser desmentidas pelas novas descobertas arqueológicas. Os testemunhos arqueológicos mostram que as Cidades-Estados maias em constante guerra não conseguiram reunir as condições de unificação política, sendo superadas e conquistadas pelos povos Aztecas, com uma tecnologia militar superior e uma organização política mais eficiente. O Império Azteca teria, contudo, adotado as mesmas práticas agrícolas dos Maias, capazes e suficientes para manter o império funcionando até a conquista espanhola no século XVI.

Mesmo as afirmações comumente repetidas sobre o equilíbrio instável do ecossistema amazônico, produto de milhares de anos de feedback, de auto-reciclagem da floresta, parecem largamente caducas em áreas centrais da Amazônia, muito especialmente em eco-regiões homogêneas de grande valor econômico. Assim, as grandes florestas de castanheiras e os imensos coqueirais de babaçu surgem, após várias pesquisas, como produto da ação humana, uma intervenção planejada e substituta da floresta primária, e que foi capaz de assegurar grande sucesso econômico e ecológico. Tratam-se, em verdade, de florestas plantadas dentro da floresta e de caráter bastante recente em relação à historia natural da região. Grande parte da área teria sido claramente transformada pela ação humana, fazendo com que a dis-tinção clássica entre “paisagem natural” e “paisagem cultural” tenha que ser abandonada para amplas regiões específicas da Amazônia. Não se trata, evidentemente, de negar o caráter auto-sustentado da paisagem tal qual existe hoje. Trata-se, em verdade, de demonstrar que a ação humana pode, e foi, algumas vezes benéfica em relação ao manejo floresta, dependendo singularmente das escolhas feitas, em especial do tipo de complexo cul-tural-tecnológico aplicado ao manejo da floresta. Neste sentido a “lenda negra” da Amazônia não seria fatalmente verdadeira. Fanshawe defende,

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por exemplo, que a Guiana, área considerada de cobertura original, dificil-mente teria qualquer mata primária, dada a longa e disseminada atividade horticultural indígena. Prance e Schubart puderam comprovar, através de vestígios de carvão e cacos de cerâmica, que as campinas abertas do Rio Negro, seguidamente consideradas como produto de solos específicos – e exemplo de um cenário negativo futuro – eram, na verdade, o resultado de sucessivas queimadas que teriam sincopado definitivamente o processo de sucessão ecológica há mais de mil anos. Warren Dean, num outro cenário – a Mata Atlântica paulista e os campos abertos do Planalto Paulista – pôde constatar que a paisagem florestal encontrada pelos Jesuítas ao chegar a Piratininga já era o produto da ação secular da agricultura indígena, nada tendo de floresta primária. Um outro exemplo, ainda na Amazônia, da ação humana são as matas de bambu, que representam cerca de 85.000 km2, plantadas ainda num período pré-colombiano. A mata chamada apête (cerrado em língua kaiapó), no Sul do Pará, Tocantins e Norte do Mato Grosso, surge como produto direto do plantio indígena. Da mesma forma as imensas matas de castanhais, a Bertholletia excelsa, com cerca de 8.000 km2 em torno de Marabá, no Pará. Mas, a maior extensão de paisagem homogênea criada intencionalmente são as matas de babaçu – cerca de 196.370 km2 – na Amazônia Legal. Para William Balé cerca de 389.370 km2 de matas da Amazônia são constituídas por florestas alteradas ou plantadas, com destaque para o cacau, bambu, castanhais, a mata de cipó, entre outras, ocupando cerca de 11.8% das terras firmes da Amazônia – uma área equivalente à Alemanha e Suíça juntas.

A importância de tais trabalhos reside em comprovar que a própria floresta – no seu trecho homogêneo, plantado, e na sua relação dinâmica com o trecho típico do trópico-úmido – recuperou e/ou reinventou um modelo de sustentabilidade e troca de biodiversidade, mantendo-se como uma paisagem rica e diversa. Evidentemente, tais resultados advêm de uma prática silvestre e de um tipo de manejo plurissecular – talvez

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anterior ao século V a.C. – das populações locais, e muito diverso da utilização de pacotes tecnológicos estranhos ao saber local, típicos, por exemplo, das frentes de expansão7.

Aqui se destaca muito claramente a valorização, em todo este processo, de um saber tradicional, local, rico em imagens e técnicas capazes de lidar com sustentabilidade do meio-ambiente, em vez de aferrar-se a uma visão ambientalista fixista da natureza. A valorização dos saberes locais é, nesse sentido, a chave ou ponto de partida para uma visão auto-sustentada da ocupação e do desenvolvimento da região. Evidentemente, há que se levar em conta as formas culturais e sociais da ocupação: entre o sistema de adensamento urbano das várzeas, como descrito por Anna Roosevelt, e as grandes metrópoles modernas impondo estratégias de sustentabilidade diferentes. O grande desafio reside, exatamente, aí: Como realizar uma apropriação extensiva de práticas e saberes tradicionais numa sociedade moderna de massas?

De qualquer forma, os exemplos históricos de alteração e criação de novos subsistemas ecológicos na Amazônia servem para advertir e informar ações futuras. Tais bosques alterados ou plantados são bons exemplos de perturbações em sistemas estáveis que geram mudanças de padrão em direções não-lineares e não-previstas. Talvez se deva abandonar um determinismo evolucionista contido em boa parte do pensamento ambientalista, de tipo linear, típico das previsões e cenários pessimistas em favor de um modelo de evolução não-linear, como por exemplo contido na Teoria do Caos. Assim, é possível pensar em novos sistemas

7 Ver TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. História das Paisagens. In: CARDOSO, Ciro et al.In: CARDOSO, Ciro et al. Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 203 e ss.

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originados historicamente da ação humana na Amazônia, sob condições históricas específicas, e que se tornaram, por sua vez, sistemas estáveis e formam ecossistemas passíveis de novas intervenções perturbadoras e que não guardam relações com as condições sensíveis iniciais. Neste momento, ao trazer um novo suporte teórico e novas evidências empíricas, questiona-se a própria matriz do pensamento ambientalista, ainda marcado pelo evolucionismo e o romantismo típicos do século XIX. Assim, a distinção entre paisagem natural e paisagem cultural, tão ao gosto do romantismo – que informa os primeiros passos do pensamento conservacionista – deveria ceder lugar a uma abordagem em termos de continuum e de movimentos sistêmicos não-lineares.

Uma das dificuldades daí decorrentes é o próprio caráter de várias instituições e Ongs dedicadas ao ambientalismo. Na maioria das vezes, trata-se de pesquisadores importantes, sérios e sinceramente dedicados aos seus trabalhos e ao bem-estar local. Contudo, falta o questionamento de seus próprios fundamentos epistemológicos, uma discussão sobre o campo científico, suas origens e suas vinculações políticas, voluntárias ou não. Nestes casos, raros felizmente, a carrei-ra, a pesquisa e, principalmente, a prática social daí decorrente transformam-se em missão e destino, assumindo formas tremendamente salvacionistas.

Em outras ocasiões interesses estranhos mesclam-se com práticas sinceras e importantes, originando sérios desvios de interesses. Ongs, como World Wide Fund For Nature, possui entre seus principais financiadores empresas e instituições que possuem interesses econômicos na região e, paradoxalmente, são grandes poluidores do meio-ambiente, tais como a Shell, Anglo-American Corp., Barclays Bank, Westminster Bank ou Rotschild & Sons. Mesmo em seus quadros, constam como membros de honra ou honorários grandes nomes da aristocracia européia, em especial britânica: todos defensores

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ferrenhos da crudelíssima caça à raposa. Outras instituições, britânicas, escandinavas ou americanas, firmam seu silêncio frente a práticas como a caça às baleias, inclusive no santuário proposto no Atlântico Sul, ou a terrível matança de bebês-foca, ou ainda frente às práticas pesqueiras devastadoras dos japoneses. Outras instituições, como a SelvaViva, presente no Acre, dedicam-se a elaborar catálogos de fito-fármacos e de espécies animais, em associação com grandes multinacionais como a Bayer, CibaGeyger e Johnson & Johnson.

Estes são exemplos pontuais, que de forma alguma atingem a maioria das instituições em campo na Amazônia, mas que demonstram claramente uma profunda confusão de interesses e objetivos.

Em si mesma, a tese central ambientalista é de imensa relevância para o desenvolvimento do bem-estar social na região. Entendida, tal como formula o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), como desenvolvimento sustentável, centrado em (a) manutenção dos processos ecológicos fundamentais; (b) preservação da diversidade genética; (c) utilização sustentada dos empreendimentos regionais, as preocupações ambientalistas são uma base inarredável para o de-senvolvimento da região, e de qualquer desenvolvimento que busque o bem-estar social, tanto na Amazônia, quanto na Patagônia, no Alasca ou na Floresta Negra. Devem-se ser exigidas de todos os empreendi-mentos realizados em áreas naturais sensíveis, inclusive para o uso dos oceanos, do Ártico e da Antártida e, na ocupação do espaço exterior.

4. A Matriz Desenvolvimentista: foi a partir dos anos 60, no bojo dos esforços de integração nacional desenvolvidos pela Administração JK que a Amazônia transformou-se em foco de uma política nacional. Embora Vargas já tivesse se voltado para a região, suas principais preocupações voltavam-se para o Brasil Central, com a multiplicação de projetos de colonização e a re-divisão territorial, criando os chama-

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dos “territórios federais”, e multiplicando municípios, como forma de adensar o povoamento da região8. A abertura da Belém-Brasília e, mais tarde, os grandes projetos, em especial as rodovias, do final dos anos 60 e 70, mudaram definitivamente a fisionomia da Amazônia. Uma das características centrais da ação desenvolvimentista na região foi a su-peração da dependência única face aos eixos e pontos nodais ancorados em cidades à beira-rio. O eixo central de ocupação, um vetor histórico da penetração na região, era, desde o início da colonização portuguesa, o percurso do grande rio e seus afluentes à montante, com o vetor leste-oeste, mantendo-se assim durante os quatro séculos seguintes.

A partir dos anos 60 este vetor cede em importância face a uma intervenção humana de duplo impacto geopolítico: a construção de um eixo rodoviário – primeiro impacto o fato de ser uma rodovia – com o sentido sul-norte, o segundo impacto – representado pela Belém/Brasília.

A criação do INPA, em 1952 – uma resposta a uma iniciativa da ONU, visando criar um Instituto Internacional da Amazônia, instalado na região e sob soberania internacional - bem como a constante atuação do Museu Emílio Goeldi marcam os dois principais – e até avançado dos anos 80 – únicos centros nacionais de pensamento sobre a Amazônia localizados na região. É um marco fundamental do seu desenvolvimento. Mais tarde, no bojo da ação dos grandes projetos – anos 60 e 70 – surge a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), em 1966, e a Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa), em 1967. Muitos dos grandes empreendimentos regionais tiveram suas origens neste momento, tais como o Projeto Jarí; os projetos de colonização na Transamazônica e na Cuiabá-Porto Velho; as hidrelétricas de Tucuruí e

8 Ver LINHARES, M. Y. ;TEIXEIRA DA SILVA, F. C. Terra prometida. Rio de Janeiro: Campus, 2000.

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Balbina; o Programa Grande Carajás; a Ferrovia Carajás-São Luís; as indústrias de alumínio de Barcarena e outros.

Nos anos 70 surge uma nova intervenção: a BR-364 – Cuiabá/Santarém – e a Transamazônica, indo da Paraíba até os contrafortes andinos. Nos anos 90, em especial através da retomada da Perimetral Norte sob a forma do Projeto Calha Norte, acentua-se a percepção geopo-lítica leste-oeste, embora várias outras intervenções tenham sido feitas sem qualquer avaliação de conjunto ou busca de complementaridade.

Na verdade não havia um projeto conjunto ou objetivos claramente formulados que definissem os vetores geopolíticos da intervenção do Poder nacional na Amazônia. As duas tendências: leste-oeste e a sul-norte continuaram a suceder-se sem quaisquer avaliações de conjunto ou um plano-diretor de investimentos e de intervenção social, sem falar num zoneamento realmente eficaz e orientador da ação pública9.

Ocorre que a expansão econômica, o avanço da fronteira e a bus-ca de conexões praticáveis em direção aos países limítrofes, acabaram por alterar fortemente a percepção geopolítica leste-oeste, em favor de uma maior vivificação dos eixos sul-norte. O eixo Araguaia/Tocantins, a BR-163, a BR-319, a BR-174, bem como a ampliação da estrada de ferro de Imperatriz, além do eixo Manaus-Venezuela e Amapá-Guiana demonstram um contínuo avanço do sul sobre o norte, com a incorpo-ração de amplas áreas econômicas através de eixos montados em torno da frente de expansão vinda do sul. Assim, a “Amazônia das estradas” contrapõem-se à “Amazônia dos rios” – nem sempre permitindo as fantásticas possibilidades de complementaridade e de exploração de hidrovias - criando vetores novos, consolidando alguns nós de

9 Ver XIMENES, Tereza. Cenários da industrialização na Amazônia. Belém: Unamaz, 1995.

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adensamento – abandonando outros, muito especialmente os eixos ferroviários originados na República Velha e no Estado Novo – e apontando para um adensamento da verticalidade na margem sul e, simultaneamente, na margem norte da macro-região.

De qualquer forma – como um resultado inesperado da falta de planejamento – a ocupação da região resultou na construção de um quadrilátero viário, composto de vias fluviais e rodoviárias marcado por três grandes eixos leste-oeste, como paralelas geopolíticas da região: o grande rio ao centro, um vetor na margem esquerda e outro na margem direita, ainda, é claro, de forma incipiente.

Todo desenvolvimento futuro deve ter firmemente em perspectiva a existência de tais estruturas e também evitar superposicionamentos, além de um cuidadoso planejamento dos eixos verticais, de acesso ao Caribe/Pacífico, visando dar um caráter racional ao xadrez que se anuncia.

Neste sentido, constata-se que a abertura de novos eixos viários, com vetores novos, aponta claramente para a possibilidade da Amazônia transformar-se, em três décadas, na área-pivot, para retomar uma expressão cara da geopolítica, da integração sul-americana: o eixo Cuiabá - Porto Velho - Manaus poderá ser facilmente conectado, numa ponta, com São Paulo e a partir daí com todo o Mercosul, e ao norte, com Caracas, abrindo o Caribe e a Panamericana em direção ao Canal do Panamá; da mesma forma, o eixo Belém - Brasília conectando-se, ao sul, com Belo Horizonte e Rio de Janeiro, e ao norte, com o Amapá e daí para as Guianas.

Assim, avançando as obras de infra-estrutura na fronteira com a Venezuela, e talvez na Guiana, o Brasil abre uma via alternativa a Carretera Panamericana, integra uma poderosa economia regional – a Venezuela – ao sistema amazônico e, ao mesmo tempo, acessa o Pacífico. Da mesma forma, os eixos sul-norte abrem a região aos fluxos demográficos oriundos do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná – onde existe

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uma forte tradição de exportação das formas familiares da pequena produção, processo já em curso e cuja ponta já atinge Roraima – além dos grandes investimentos agro-pecuários de São Paulo e Paraná.

O eixo leste-oeste, seja através dos rios, seja através das estradas dos anos 70, centrava-se principalmente na preocupação de transferir excedentes de população do Nordeste para a Amazônia, procurando simultaneamente diminuir a tensão social numa área “velha” e ocupar uma área nova. O traçado sul-norte, por sua vez, garantiu a formação de uma paisagem diferenciada, menos cabocla e, portanto menos “invi-sível” ao desenvolvimento; este vetor reproduziu uma paisagem mais empreendedora, mesmo que ainda sob a forma de pequena produção familiar, na qual Rondônia é um bom exemplo do processo rápido de povoamento e que talvez, seja o futuro de Roraima, prenunciando tensões sociais ainda mais graves naquele Estado. De qualquer forma, nesta margem sul da macro-região, já bastante tocada pelos vetores sul-norte reproduziu-se a forte tensão entre pequena produção familiar, posse intrusiva e grandes projetos agro-pecuários, dando à região o triste perfil de área de maior tensão de conflitos de origem fundiária do País, em especial Rondônia e Sul do Pará. Na verdade, o aden-samento demográfico, ao longo das margens sul/sudoeste e leste da região – Rondônia/Tocantins/Sul do Pará – criaram uma longa faixa de conflitos fundiários - o arco dos conflitos – sem qualquer reso-lução à vista. Mantendo-se os eixos de ocupação sul-norte um cenário semelhante tende a se reproduzir no Acre – os sinais da crise fundiária já são bastante visíveis - no Amazonas Ocidental e Roraima. Assim, uma intervenção imediata, com planos regionais de Reforma Agrária e Colonização, é primordial para que o desenvolvimento da Amazônia ocidental não reproduza o caráter de terra sem lei de algumas regiões do Pará e Rondônia (El Dourado de Carajás, Corumbiara, Reserva Roosevelt, etc...), com o claro agravante de envolver dois outros componentes bastante explosivos:

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a situação de fronteira e a existência de extensas Terras Indígenas.Deve-se entender, ainda, que qualquer processo de ocupação

e desenvolvimento da Amazônia, tendo como um dos seus aspectos a frente pioneira agrícola terá nas populações organizadas sob a forma da pequena produção familiar – em clara expansão demográfica de tipo “chayanoviano” nas áreas velhas do País – uma das pontas mais dinâ-micas de expansão do povoamento. A frente pioneira, de perfil familiar e chayanoviano, realiza tal processo histórico através de baixo investimento de capitais, de tecnologia e uso extensivo de trabalho e terra, o modelo clássico da colonização espontânea no Brasil. Assim, para a maior parte da população rural em fase de estabelecimento na região a floresta será entendida, sempre, como capital disponível para ser transformada em renda – principalmente em função da madeira nela contida10. Assim, a derrubada aleatória da floresta, muitas vezes para produzir só tabuado ou carvão, surge como a formação de um capital inicial fundamental para o sucesso da empresa agrária familiar – desprovida de poupança própria e/ou incapaz de acessar as linhas formais de crédito – e em fase de implantação, quando mais se fragiliza enquanto empresa dotada de cálculo econômico autônomo. O planejamento da ocupação pioneira, alterando o seu próprio perfil histórico, e um forte aporte de micro e médio-crédito voltado para tais populações, é uma intervenção urgente e necessária, e que pode redundar na adoção de um manejo sustentado da floresta.

O risco de abandono de tais populações, além da agudização do conflito social, reside na destruição do ecossistema, na perda irremediável de suas riquezas naturais e numa péssima visão externa do país, capaz de

10 SAYAGO, Doris et al. Op. cit., p. 21Op. cit., p. 21

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gerar revolta internacional contra a soberania nacional na região11.Vários países, inclusive o pré-candidato democrata nas eleições

presidenciais americanas, já levantam a questão do chamado dumping ecológico, abrindo caminho para retaliações aduaneiras, práticas prote-cionistas e recusa de acordos-quadros que podem facilmente prejudicar as exportações agrícolas brasileiras.

A vigilância, a prevenção e o planejamento ecológico da região são, contudo, muito precários, com a produção constante de notícias contrárias à boa visão do País e da sua gestão regional. Conflitos fun-diários, conflitos indígenas, desmatamento e acidentes ecológicos são temas constantes sobre a Amazônia.

Nos anos 70, grandes projetos, muitos absolutamente estranhos à ecologia local, acabaram por causar um forte impacto negativo, tanto em âmbito nacional quanto internacional, como o Projeto Jarí ou os empreendimentos da Icomi, no Amapá, trazendo a Amazônia para o debate político internacional. A partir da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, em 1972, onde reinou um clima de críticas ao Brasil, foi criada, no ano seguinte, a Secretaria Especial de Meio Am-biente (SEMA), matriz de uma série de organismos visando à vigilância e ao planejamento das intervenções no meio ambiente brasileiro, em especial na Amazônia, passando pela criação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), em 1989, culminando na criação do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama) e do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).

Contudo, as possibilidades de uma ação concreta são ainda

11 Ver MEDEIROS, Leonilde et al. A formação dos assentamentos rurais no Brasil. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1999.

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bastante reduzidas. Um estudo recente nos mostra, por exemplo, que o conjunto das - Organizações Estaduais de Meio Ambiente (Oema´s) - possui pouco mais de 2.000 funcionários para toda a região (enquanto São Paulo, sozinho, ocupa 6.000 funcionários, contra 18.000 em todo o País). Grande parte da defesa do meio ambiente, em face de tamanha ausência do Poder Executivo estadual e federal na região, tem sido diri-gida pelo Ministério Público, onde, é claro, os meios estão disponíveis. Concorda-se plenamente, com várias entidades e pesquisadores, como Marcel Bursztyn, que alertam para o fato de ser impossível fazer gestão ambiental apenas com ações de comando e controle.

Evidentemente estas são fragilidades que apontam claramente para crises num futuro imediato12.

amazônia�� qual desenvolvimento?

Embora haja um amplo consenso nacional, inclusive entre brasi-leiros amazônidas e não amazônidas, sobre o caráter nacional brasileiro da região, e na comunhão dos interesses nacionais maiores, tais como democracia, bem-estar social, crescimento econômico e justiça social, não se tem clareza sobre quais os objetivos de um projeto ou programa nacional para a Amazônia. Não se refere a idéias pontuais de garantir fronteiras, traçar estradas ou adensar o povoamento. Estes serão os meios, as ferramentas, para um projeto bem maior e que ainda não parece formulado. O que queremos para a Amazônia, nós brasileiros em

12 BURSZTYN, Maria Augusta. Aspectos legais e institucionais da gestão ambiental da Amazônia. In:BURSZTYN, Maria Augusta. Aspectos legais e institucionais da gestão ambiental da Amazônia. In: SAYAGO, Doris. Op. cit., p. 276.

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geral, e os amazônidas, em especial? Qual o patamar demográfico a ser alcançado como o necessário e adequado? Qual o projeto econômico a ser sustentado? Em que direção, qual o eixo de transporte, que as obras de infra-estrutura devem avançar? Em 19/05/2004, o MEC anunciou a criação de cinco novas universidades federais na região... Quais os estudos de viabilidade que foram feitos para se chegar ao número cinco? Qual o diagnóstico do ensino básico na região? Por que não melhorar e substantivar as já existentes e, fundamentalmente, que cursos universitários devem ser instalados na região enquanto parataxe de uma política pública de caráter nacional?

A histórica e proverbial displicência brasileira para com o planejamento de longo prazo parece, no caso da Amazônia, ter chegado ao paroxismo. Hoje, o conjunto de órgãos federais voltados para a região demonstra objetivos contraditórios, e mesmo francamente opostos (como por exemplo, Ministério da Justiça, a própria Funai, Polícia Federal, Ibama no tocante, por exemplo, a situação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol ou da atuação na Reserva Roosevelt). Mesmo sendo dramático, para não dizer cômico, tantos desacertos táticos e conjunturais, a situação pode evoluir para um estágio dramático em se tratando do planejamento estrutural de caráter pluridecenal. Na verdade, não há uma Amazônia e seus cenários para o ano de 2035 – louve-se aqui os autores de um estudo recente realizado pela UnB – que possam claramente informar e corrigir as políticas públicas federais estaduais para a região.

Sem a formulação de um projeto de longa duração e sua “cenariza-ção” ampla e flexível, os investimentos feitos – inclusive os atuais – correm o risco de serem perdidos. Mais grave ainda é a situação em virtude do cenário mundial, pós-Guerra Fria e, claro, na atual situação de contenção orçamentária. Neste sentido, deve-se buscar um amplo consenso sobre um cenário possível para a Amazônia em 2035, reunindo para tanto os mais diversos atores sociais e políticos, locais, regionais e nacionais.

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Contudo, se tem um importante ponto de partida: a vigência consensual da democracia representativa no País. Nas últimas eleições o atual Presidente, e seu partido, receberam uma significativa votação desta região, inclusive com a defesa de itens programáticos pertinentes à mesma. Os pontos fundamentais do Programa do PT para região não são, contudo, originais, fazem parte de uma pauta que liga, nas próprias palavras do Presidente da República, diversos momentos da história re-publicana do País: o desenvolvimentismo de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek; os grandes projetos de integração do Regime Militar e a promessa de desenvolvimento com justiça social do próprio PT. Assim, com a obrigação de corrigir erros e ingenuidades anteriores, a Repúbli-ca possui um projeto informal para a região, do que se depreende do programa político das últimas décadas, a saber:

a) a integração nacional da região, através do desenvolvimento e do bem-estar social;

b) a integração do Brasil aos países limítrofes, tendo a Amazônia como área-pivot;

c) a manutenção da soberania nacional sobre todo o território, ponto aceito com euforia pela população amazônida;

d) o respeito pelo patrimônio ambiental, em suas diversas manifestações;

e) o orgulho nacional pela existência da Amazônia, de seu patrimônio étnico, cultural e histórico.

Estes pontos não apresentam quaisquer constestações – seja no nível local, regional ou nacional – diferindo assim o Brasil de vários outros países, inclusive vizinhos, onde existem movimentos de rebeldia política ou nacional, disputas de fronteira e exigências separatistas. É evidente que o consenso nacional sobre tais pontos não implica a aceita-

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ção, automática, de um conteúdo único dos mesmos e, tão pouco, de um modus operandi homogêneo. Representa, no nível local ou regional, o respeito pelo patrimônio ambiental, apropriado de forma diferenciada por grupos sociais diversos, como índios, agricultores, garimpeiros, população urbana, etc. Trata-se, neste momento, de buscar o aprofundamento de tal consenso e as formas de sua implantação. A cada um dos itens citados abaixo, quando possível identificá-los, caberá um longo processo de debate e de consolidação.

1. A integração nacional da região, através do desenvolvimento e do bem-estar social, implica na adoção de um modelo de desenvolvi-mento regional, que mesmo não sendo uma camisa de força totalitária, norteará os investimentos e ações públicas na região. Qual seria este modelo, ou muito melhor quais seriam estes modelos e sua re-regionalização? Apresentam-se algumas atividades já em vigor:

• Modelo industrial-urbano, centrado na eletrônica e na química de cosméticos e fito-fármacos;

• A grande empresa agro-pecuária;• A grande empresa florestal;• As atividades pesqueiras, extremamente diversas e fundamentais

como fonte de proteína animal para a região; • A pequena produção familiar;• Os núcleos de alta tecnologia;• As empresas de mineração;• As empresas energéticas, com seus diferenciais de tipo

hidrelétrico, de energia fóssil e de biomassa.

Todas estas são atividades em curso precisam ser vistas a partir das possibilidades de auto-sustentabilidade e de ganhos decorrentes da implantação regional, atendendo a um zoneamento técnico rigoroso,

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ao mesmo tempo que, se somem às possibilidades gerais de geração de bem-estar social. De qualquer maneira, a reestruturação da base produtiva regional, superando a apropriação mental e cultural da floresta, enquanto um capital disponível, sem ônus, bem como a atividade primária danosa e pouco agregadora de valor, deverão estar circunscritas, de forma a apontar nas próximas décadas sua completa superação. Atualmente, talvez estas sejam as últimas oportunidades para tal ação, tendo em vista a manutenção por mais de uma década do baixo crescimento nacional. A retomada do crescimento acelerada, sem a assunção política de tais imperativos, representará um retorno em face da exploração predatória em toda a região.

2. A integração do Brasil aos países limítrofes, tendo a Amazônia como área-pivot: a consolidação dessa possibilidade, bastante real e já em curso, depende claramente do traçado viário a ser sustentado na região. Tendo o Brasil um passivo escandaloso em termos de rodovias, sabendo-se do custo de manutenção das mesmas e do impacto normal-mente negativo, sobre o meioambiente, a abertura de estradas deve ser cuidadosamente estudada em função dos:

• Objetivos nacionais permanentes visando a integração sul-americana;

• Objetivos e interesses regionais em direcionar seus processos de integração;

• Impactos ambientais daí decorrentes.

Assim, para muitos segmentos sociais e grupos de interesse locais, a integração sul-americana apresenta-se de forma diferenciada e con-templa objetivos diversos. A conexão de Manaus e sua Zona Industrial, com os mercados venezuelanos (abastecidos com petrodólares) ou com

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São Paulo e a partir daí com o Mercosul, representará, simultaneamente, uma integração nacional, sul-americana e um desenvolvimento com bem-estar. Já a expansão da malha rodoviária em direção ao Nordeste pode não apresentar as mesmas vantagens e, até mesmo, agudizar conflitos sociais historicamente formados em outras regiões.

3. A manutenção da soberania nacional sobre todo o território, ponto aceito com euforia pela população amazônida: histórica e cultu-ralmente a população amazônida é, e se sente, brasileira, não havendo problemas na relação do nacional com o regional, neste contexto. As tentativas acadêmicas de olhar a Amazônia através dos textos de Antonio Gramsci sobre o Mezzogiorno italiano – grande modismo universitário - carecem de qualquer fundamentação histórica. Naquela época, a Itália era um país perpassado pelo sentimento autonomista e, quiçá, pelo separatismo (exemplificando, hoje: a Liga Lombarda, pedindo a criação da República Paduana no norte italiano). Desde o Segundo Reinado, antes da Itália existir como Estado-Nação, a Amazônia se sentia brasileira. Assim, as análises regionalistas radicalizantes carecem de base histórica, permitindo apenas vislumbrar pobreza histórica de seus autores e um mau uso de Gramsci. Da mesma forma, abandonando um militantismo do tipo “A Amazônia é Nossa” e uma ingenuidade, ou irresponsabilidade, do tipo “... isso é paúra de militar”, a integração Sul-americana tendo a Amazônia como área-pivot é uma imperiosidade nacional. Neste sentido, os interesses locais, regionais e dos diversos grupos étnicos e sociais presentes na região devem estar em parataxe, em sincronia, com os interesses nacionais permanentes consoli-dados na Constituição Cidadã de 1988.

A formulação da política nacional de defesa para a Amazônia, evoluindo da doutrina de lassidão ou usura para uma doutrina da presença apresenta, hoje, uma série de graves inconvenientes. À luz das ações da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) na ex-Iugoslávia e,

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depois, dos Estados Unidos no Iraque, questiona-se sobre a crença de um combate limitado e circunscrito geograficamente. �oje, não há razões para um agressor vindo da fachada atlântica aceitar os termos do combate (por exemplo, a “libertação” de Kosovo foi feita através de maciços bombardeios contra Belgrado, capital da Sérvia, com a ação terrestre só acontecendo quando os sérvios aceitaram os termos da Otan). Contudo, este é um tema complexo e que escapa ao objetivo do texto.

Percebe-se que uma importante forma de dissuasão é o estreitamento e adensamento das redes de ensino básico, a circulação de jovens num Projeto Rondon reinventado e a expansão dos diversos campi universitários, em vez de criação de novas superestruturas universitárias, inchadas de funcionários e cursos de história, filosofia, arquivologia, pedagogia, etc...

Um conjunto chamado de “novas ameaças” (contrabando – armas, drogas, biopirataria – e o narcotráfico), aparece como uma típica ameaça denominada de transfronteiriça, nos novos manuais de guerra assimétrica após 11 de setembro de 2001. Particularmente os corredores de comércio e passagem de drogas ameaçam a integridade e o bem-estar da população regional, além de afrontar o Estado-Nação e fragilizá-lo nas relações internacionais. Assim, os principais corredores de drogas devem ser fechados (as áreas da Cabeça do Cachorro/Rio Negro/Xiê/Içana; Vale do Javari/Alto Solimões; Suriname/Amapá/Pará – via de acesso da cocaína – bem como Bolívia/Brasiléia/Epitaciolândia, no Acre, São áreas que merecem uma ação muito mais intensa das autoridades federais, únicas aparelhadas para lidar com um agente poderoso e desestruturador).

Uma das discussões mais politizadas e que atinge diretamente, embora não exclusivamente, a região é a questão indígena, o estatuto das reservas e a extensão de suas terras. No seu conjunto, as terras indígenas atingem, hoje, 11.01% do território nacional para um contingente de cerca de 326 mil pessoas, ocupando um espaço superior às dimensões da Alemanha, Espanha e Portugal juntos e localizam-se, largamente, nas Faixas de Fronteira,

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despertando grande ansiedade nos meios responsáveis pela Segurança Nacional e pelo combate às chamadas “novas ameaças”.

A discussão vai além da Questão da Amazônia e faz parte de um debate sobre integração, contato e desenvolvimento autônomo, bastante alterado em termos históricos pelas disposições da Constituição de 1988. Salienta-se para a discussão o artigo publicado no PADECEME, por Valério Stumpf Trindade13, extremamente bem documentado e com articulações sociais, políticas e econômicas bastante adequadas.

4. O respeito pelo patrimônio ambiental, em suas diversas manifestações: trata-se aqui de adensar a rede científica e tecnológica na região, tendo como pontos de apoio às instituições já existentes, como o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Museu Emílio Goeldi, o Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (Naea), entre outros. A extrema carência em que vivem importantes instituições locais, talvez o Museu Emílio Goeldi seja o melhor exemplo, desanima as novas gerações e desmobiliza os pesquisadores existentes, que tendem a migrar para o eixo centro-sul, com perdas tremendas para a região. Uma política coerente e de intervenção imediata na região deve agrupar a capacidade e a expertise já existentes em nível nacional e projetá-las, com metas previamente discutidas, para uma ação regional decisiva. A criação de pelo menos cinco “aldeias da ciência”, em regiões estratégicas da Amazônia, atendendo às variações ambientais, sociais e étnicas, conectadas a uma Universidade da Amazônia, enquanto um superinstituto virtual, é imperioso. Tais “aldeias da ciência”, uma evolução pró-ativa dos diversos campi dos anos 70, devem agrupar agências como

13 TRINDADE, Valério Stumpf. A questão indígena: uma breve análise. In: PADECEME, Rio de Janeiro, n.7, p. 17-28, 2004.

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Embrapa, Funai, Ibama, CNPq, Fundações de Apoio à Pesquisa (Fap´s) estaduais e institutos vários de pesquisa (como Fiocruz, Butantã, Vital Brasil, etc.), para o exercício local de experimentações e testes, além de receber pesquisadores brasileiros e estrangeiros para realização de trabalhos de campo, como teses e projetos. Entende-se que um esforço concentrado pode ser assumido pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), convertido à idéia estratégica de dotar a Amazônia de uma expertise de primeira linha, evitando os entraves burocráticos tradicionais e os ritos que “entopem” a universidade de atividades-meio, pesando de forma insuportável sobre as finalidades científicas.

5. O orgulho nacional pela existência da Amazônia, de seu patrimônio étnico, cultural e histórico: trata-se aqui de um objetivo fácil, do qual todo brasileiro já se orgulha e que nos aparece em todo seu esplendor nos desfiles de carnaval do Rio de Janeiro, que celebram a Amazônia brasileira, e nos desfiles do Boi de Parintins, que celebram a brasilidade da Amazônia. Sem a menor dúvida, programas e conteúdos didáticos podem claramente ser mais bem dimensionados, permitindo uma saudável combinação entre o local, o regional e o nacional, dando aos jovens e adolescentes uma dimensão mais ampla e plural do sentido de ser brasileiro. O Serviço Militar desem-penha um papel central, cuja demanda é crescente e de grande relevância social. A ampliação da rede pública de educação, com um atendimento de melhor qualidade para as crianças, e a disponibilidade do Serviço Militar para todo jovem brasileiro que assim o deseje são peças fundamentais da integração nacional. Uma escola pública de boa qualidade, com banheiros, refeitórios e biblioteca – onde instrução e as regras da boa conduta social, inclusive onde os cuidados médico-sanitários estejam previstos – é essencial para forjar pessoas ativas, livres e capazes de escolhas autônomas. Tudo o que um projeto nacional para a Amazônia necessita.

limitações ao exeRCíCio da sobeRania na ReGião amazôniCa

Bertha K. Becker

Professora Emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Professora, Pesquisadora e Coordenadora do Laboratório de Gestão do Território junto ao Departamento de Geografia da UFRJ.

Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

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intRodução

É intensa a controvérsia atual sobre o conceito e a prática da soberania em face às rápidas e fortes transformações no mundo contemporâneo.

A revolução científico-tecnológica, especialmente na microeletrônica e na comunicação, está na raiz das transformações na natureza dos Estados-Nação e da soberania. Não se trata de uma nova técnica, mas sim de uma nova forma de produção e, portanto, de organização social e política baseada na informação e no conhecimento que ocorre no contexto da reestruturação do sistema econômico (Castells, 1999). Sua essência é a velocidade acelerada, a inovação contínua, capaz de alterar não só o setor tecno-produtivo civil e militar, como também as relações sociais e de poder. Seus veículos são as redes transnacionais de circulação e comunicação que sustentam fluxos financeiros, mercantis e informacionais trans-Estados e transfronteiras. Redes e fluxos que a um só tempo permitem a unificação do mercado mundial e a diferenciação espacial pela seletividade dos territórios (Becker, 1995).

O fim da Guerra Fria – com a queda do muro de Berlim, em 1989, e a derrocada da URSS, em 1991 – contribuíram sobremaneira para a abertura das relações internacionais.

A partir daí, os Estados soberanos passam a ter grande participação em organizações internacionais e a aceitar práticas comuns no comércio, na proteção ambiental e nas questões de cidadania. Instituiu-se, de forma velada, uma concepção de intervenção em nome do bem comum. Embora haja relativo consenso quanto a perdas de soberania pelo Estado-Nação, há discordância quanto à intensidade da perda.

Assume-se neste texto, que não se trata do fim dos Estados-Nação nem da soberania estatal. Mas há que entendê-los como processos e que como tal, se ajustam às transformações que ocorrem no mundo mudando

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de natureza e de funções. A soberania de um Estado será mais garantida quando mais cedo e melhor se ajustar às novas condições.

A interdependência global não se resume à unificação de mercados. Ela envolve também a interconexão das arenas políticas nacionais e internacionais rompendo, ou pelo menos diluindo, as dicotomias: direito-coerção; direito do Estado – Direito Internacional; e faces interna/externa da soberania.

O Direito Internacional é utilizado para acobertar a crescente coerção velada, que tenta modificá-lo, mas são os próprios Estados soberanos que tentam alterá-lo. Aceitando normas reconhecidas mutuamente, os Estados constituem uma nova forma de soberania integrada por uma série de organismos nacionais e internacionais vinculados por uma única lógica de mando (uma forma de soberania em que o poder é desigual visto que as normas dependem dos interesses dos Estados mais poderosos, configurando um contexto de tensão e disputa).

Quanto à dupla face da soberania, os movimentos sociais internos, tendem a se internacionalizar, constituindo uma séria vulnerabilidade para os Estados, particularmente na América Latina onde são mais intensos.

No contexto da globalização, portanto, se fortalece a geopolítica sob uma nova perspectiva. Não se trata mais tanto da conquista de territórios, mas sim, da acentuação de múltiplas formas de pressão que visam influenciar a tomada de decisão sobre o uso dos territórios dos Estados soberanos. A imposição de agendas, ou seja, o poder da agenda, torna-se um instrumento-chave em muitas das formas de pressão associada à ajuda financeira. Cabe ainda registrar em tão complexo contexto que, na questão ambiental, onde as limitações ao exercício da soberania na Amazônia são mais sentidas, há que discernir a geopolítica ecológica da consciência ecológica e social.

Uma característica do mundo contemporâneo é a imbricação das práticas e atores que estabelecem ou tentam estabelecer limitações ao exercício da soberania. Em atenção ao roteiro solicitado para este trabalho,

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tais limitações são analisadas segundo o nível de coerção em quatro seções: 1°) limitações aceitas por ratificação de acordos internacionais; 2°) limitações aceitas pelas restrições de preservação do meio ambiente e da biodiversidade; 3°) por pressões sofridas de lideranças políticas mundiais, organismos políticos e comunidades científicas; 4°) por pressões internas/externas de Organizações Não Governamentais.

1. limitações aCeitas PoR RatiFiCação de aCoRdos inteRnaCionais

As limitações sobre a soberania brasileira na Amazônia aceitas por ratificação de acordos constituem um caso exemplar das conexões entre direito/força e Direito do Estado/Direito Internacional.

Por sua própria natureza, a interdependência ecológica é global, tornando-se excelente pretexto para justificar a intervenção internacional. E a Amazônia tornou-se alvo dessa pretensão. Direitos Humanos e patrimônio cultural, por sua vez, são evocados na questão indígena.

A intervenção internacional tem diferentes sentidos: a) como coerção, que varia desde seus níveis mais brandos no exercício da influência política até a violência física, com uma finalidade humanitária ou de ataque, ou seja, há uma escala de coerção ou eficácia das ações externas em influenciar os assuntos internos de um Estado, em oposição ao poder de direito; b) inter-venção como direito, considerando que os ideais e os Direitos Humanos são construções conceituais datadas.

De acordo com Bobbio (1992) a intervenção é um direito porque as condições sociais em mudança assim o exigem e, ao mesmo tempo, é uma força autorizada socialmente para garantir esse direito. O meio ambiente passa, assim, a ter um direito próprio, historicamente reconhecido, e isso lhe

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possibilita contar com um poder de coerção igualmente legítimo. Direito e coerção tornam-se na intervenção internacional, as duas faces de uma mesma moeda, uma sustentando a outra. O mesmo raciocínio parece subjacente ao trato dos grupos indígenas.

Coerção e direito no meio ambiente se manifestam na relação entre Direito Nacional e Direito Internacional através dos acordos e convenções internacionais, a mais eficaz das ações externas quando aceita por um Estado soberano, como é o caso do Brasil em relação à Amazônia.

Cabe, de início, desvelar os fatores subjacentes à questão ambiental na região.

amazônia, “Heartland” ecológico do Planeta

Mitos e imagens simplificadas sobre a Amazônia têm surgido da História reaparecendo hoje sob novas feições. Mas sob o fascínio exercido pela natureza sobre o imaginário social, sempre residiram motivações econômicas e geopolíticas cuja atuação depende de condições tecnológicas e financeiras.

O controle de posições estratégicas está na raiz da apropriação e ma-nutenção da Amazônia sob a soberania brasileira. Hoje, relações e conceitos são redefinidos pela ação conjugada de dois elementos (Becker, 1995):

1. AA revolução científico-tecnológica, que cria uma nova forma de produzir, cujas matérias-primas são a informação e o conhecimento, transfor-mados em fontes de produtividade econômica e de poder político;

2. AA crise ambiental, talvez a principal restrição à expansão do Capitalismo sob formas convencionais de produzir (Daly, 1991), que impõe novos padrões relacionais com a natureza e os recursos econômicos.

Redes e fluxos transfronteiras escapam ao controle do Estado, assim como a multiplicação de formas de autorganização, a reorientação das ajudas

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multi e bilaterais que se descentralizam, destinando-se à escala local e globaliza-se a questão ambiental.

Tal associação jaz sob a configuração de uma nova divisão territorial do trabalho e uma nova geopolítica, respondendo pela expansão das fronteiras de acumulação e pelos sistemas espaciais de controle. São, sobretudo, redes técnicas de comunicação, particularmente as de telecomunicação, e não mais apenas a circulação marítima e terrestre, que viabilizam essa transformação. Não se trata mais da apropriação direta de territórios desconhecidos pela expansão do povoamento. O domínio da informação e do conhecimento tornou-se o cerne do poder.

A virtualidade de fluxos e redes que sustentam a riqueza circulante não significa, contudo, a dissolução do espaço geográfico, do valor estratégico do mar, da terra e dos recursos naturais, ou seja, da riqueza in situ. A natureza é reavaliada e, tal qual a moeda, valorizada como informação sobre a vida e recursos potenciais.

A nova forma de produzir, por um lado, tenta tornar-se independen-te da base de recursos utilizando menor volume de matérias-primas e de energia, maior volume de informação e conhecimento, e produzindo novos materiais. A valorização dos elementos naturais se realiza num outro patamar, condicionada por novas tecnologias. É o caso, sobretudo, da natureza como fonte de informação para a biotecnologia, apoiada na decodificação, leitura e instrumentalização da biodiversidade. Também é o caso da possibilidade teórica ainda não solucionada da utilização de isótopos de hidrogênio como insumo energético. Em outras palavras, a natureza é valorizada como capital de realização atual ou futura e como fonte de poder para a ciência contempo-rânea (Becker, 1995).

Se os fluxos financeiros são globais, os estoques de natureza estão localizados em territórios de Estados ou em espaços ainda não regulamentados juridicamente. A apropriação da decisão sobre o uso de territórios e ambientes como reservas de valor, isto é, sem uso produtivo imediato, torna-se uma forma

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

de controlar o capital natural para o futuro. Constitui-se, assim, um novo com-ponente na disputa entre as potências – detentoras da tecnologia – pelo controle dos estoques de natureza localizados, sobretudo, nos países periféricos e em espaços não apropriados, configurando um novo “Tordesilhas”, ecológico.

A disputa das potências pelas novas fronteiras incide vigorosamente sobre o Brasil. Três grandes Eldorados podem ser reconhecidos contem-poraneamente: os Fundos Oceânicos, não regulamentados juridicamente; a Antártida, partilhada entre as potências; e a Amazônia, único a pertencer, em sua maior parte, a um só Estado Nacional.

Quando a tecnologia de satélites permitiu ao homem olhar a Terra a partir do cosmos, tomou-se consciência da unidade do globo como um bem comum, cujo uso deve repousar numa responsabilidade comum. Percebeu-se, também, que a natureza se tornara um bem escasso. Colocou-se então o desafio ecológico como dupla questão, de sobrevivência da humanidade e da valorização do capital natural. Sendo assim, a Amazônia se tornou símbolo desse desafio e campo de investigação vital para a ciência.

É fácil perceber a importância da riqueza in situ da Amazônia, verda-deiro heartland ecológico (Fig. 1). Correspondendo a 1/20 da superfície da Terra e a 2/5 da América do Sul, a Amazônia sul-americana contém 1/5 da disponibilidade mundial de água doce, 1/3 das reservas mundiais de florestas latifoliadas e somente 3,5 milésimos da população mundial. 63,4 % da Ama-zônia Sul-americana estão sob soberania brasileira, correspondendo a mais da metade do território nacional. O Brasil, hoje, é o país de maior megadiver-sidade no planeta, significando novos recursos genéticos e princípios ativos biológicos de grande interesse para o mercado e relevância social. Contudo, é importante reconhecer que a Amazônia não é um espaço vazio. Ela passou por profundas transformações estruturais nas últimas décadas do século XX e grandes diferenciações internas. Em 2000, contava com cerca de 20 milhões de habitantes – 70% deles concentrados em núcleos urbanos.

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Figura 1 - Mapa da Vegetação da América do Sul

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Não é uma situação nova ver a Amazônia como uma área de atração, percebida que foi historicamente, como gigantesco empório de matérias-primas. Atualmente, no limiar de uma grande transformação, novos espaços de experiências e expectativas se abrem para o capital natural com base nos avanços da biologia molecular e da biotecnologia.

Em nível do espaço geográfico, territorial, a valorização estraté-gica da Amazônia como heartland ecológico, fundamenta-se (Becker, 1999): 1) na extensão territorial, tal como proposto por Mackinder, bem como em sua autodefesa, representada, no caso, pelo “fator amazônico” constituído pelas imensas distâncias e pela cobertura da massa florestal que, até agora, bloquearam a ocupação. E no novo significado por ela adquirido, o de um duplo patrimônio: o de terras propriamente dito e o de um imenso capital natural, cuja expressão máxima é a biodiversidade; 2) na nova posição geográfica estratégica como entroncamento dos novos blocos de poder norte-americano, europeu e asiático; 3) na sua identidade cultural que, fundada na diversidade social, constitui inestimável fonte de saber local e de conhecimento ímpar sobre a natureza tropical e a biodiversidade; 4) no potencial e na oportunidade que representa, para a ciência mundial, a promoção do avanço da biotecnologia e a utilização alternativa de recursos naturais; 5) last but not least, na ampliação das comunicações e da própria circulação (de informação, dinheiro, negócios) permitida pelas redes de telecomunicações que conectam pontos do território horizontalmente, com outros pontos e, verticalmente com o espaço nacional e transnacional.

Por outro lado, na representação simbólico-cultural a valorização do heartland amazônico está condicionada pela centralidade que tem hoje no mundo a biodiversidade e a sustentabilidade. Desde a década de 70, a questão dos limites ao crescimento econômico se metamorfoseou na preocupação com a sustentabilidade da Terra como locus da vida. Para um desafio ecológico de dupla face - a valorização do capital natural e a

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sobrevivência humana - a Amazônia tornou-se o símbolo maior. Diversos movimentos ambientalistas corporificados em Organizações Não Governamentais (Ongs) estendem amplamente suas redes no heartland graças às telecomunicações, penetrando decisivamente no imaginário planetário.

Na raiz da questão ambiental jazem, portanto, duas lógicas: a) a lógica da acumulação, que valoriza a natureza como capital natural de realização futura, ou seja, reserva de valor sem uso produtivo ime-diato; b) a lógica civilizatória ou cultural, que valoriza a natureza como fundamento da vida. Duas lógicas, muito diversas, mas que convergem para um mesmo projeto de preservação da natureza.

A questão ecológica passa, assim, a fazer parte da agenda geopolítica global. Vários são os Estados e organizações prontos a “defender” o heartland, refletindo o quadro da globalização contem-porânea. Mas isso não invalida parafrasear Mackinder: “quem dominar o heartland ecológico, dominará o capital natural do futuro”.

O discurso pela defesa do heartland se baseia no bem comum: a proteção da biodiversidade, a contenção do desflorestamento para a sobrevivência do planeta e a ajuda às populações tradicionais, embora com a expressiva omissão da necessidade de mecanismos destinados à proteção de seu capital cultural.

Inicialmente, as ações eram localizadas. Os EUA pressionaram o Japão a não dar recursos para o término da rodovia BR-364 que, ligando Rio Branco a Pucalpa, no Peru, aceleraria a conexão com o Pacífico; e o Japão, na ocasião, era o terceiro maior investidor no Brasil. Por sua vez, os países europeus, particularmente França, Alemanha e Inglaterra, reagiram tentando restringir a hegemonia norte-americana.

Na medida em que a disputa entre as potências é aguçada, surgem

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novas formas de tentar superar os conflitos entre si, de pressionar os países periféricos e de assumir o controle da decisão sobre territórios, ou seja, tentativas de chegar a um consenso. A mais explícita delas são as convenções internacionais.

as imposições da agenda internacional ambiental

Agendas internacionais constituem um dos mais importantes instrumentos de coerção no mundo contemporâneo. Elas definem o que vai ou não ser discutido, excluindo várias questões de importância que permanecem à margem da discussão. No caso do meio ambiente, trata-se de estabelecer as regras de monitoramento global do ambiente do planeta a partir de decisões dos governos em fóruns das Nações. A definição da agenda das reuniões é, na verdade, estabelecida pelos países centrais e já vem pronta, resultando numa imposição, forma velada de coerção.

Os três principais elementos da agenda internacional sobre o meio ambiente se configuraram:

a) Aquecimento da atmosfera e efeito estufa. A agenda se modificou de uma proposta de cooperação em pesquisas, medidas de controle, troca de informações e transferência de tecnologia (Convenção de Viena, 1985), para o compromisso de reduzir 50% da produção de CFC (cloro-flúor-carbono) em um ano, (Protocolo de Montreal, 1987); e, posteriormente, para a exigência de eliminação total da produção e de produtos que usam o CFC (Conferência de Londres, 1989). Compreende-se porque o Brasil não participou desses acordos e o porquê China, México e Índia declara-ram não poder frear seu desenvolvimento para aplacar problemas gerados pelos países centrais. Vários organismos de pesquisa sobre o clima global foram criados, destacando-se o Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas (IPCC), com três grupos de trabalho, um dos quais dirigido

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pelo assistente da Secretaria de Estado dos EUA. Um dos resultados desse painel foi a criação de um verdadeiro mercado de emissão de carbono.

b) Meio ambiente e desenvolvimento. Esta foi a preocupação do Relatório Brundtland (1983-87) denominado “Nosso Futuro Comum”, elaborado a pedido do Secretário Geral das Nações Unidas por uma comissão independente, cujas formulações seguem dois conceitos básicos: desenvolvimento sustentável e um sistema econômico internacional mais equilibrado.

c) Biodiversidade. A questão que se coloca é a da propriedade de biodiversidade e de como atribuir valor às espécies animais e vegetais retiradas da Amazônia.

A Conferência para o Ambiente Global e Resposta Humana para o Desenvolvimento Sustentável (Tóquio, setembro de 1989), retomou os três temas.

Essas manifestações tomaram corpo na Cúpula Mundial da Terra, realizada no Rio de Janeiro, em 1992. Oficialmente denominada Confe-rência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (CNUMAD), contudo, mais conhecida por ECO-92, a CNUMAD foi a conferência mais importante, no que diz respeito a tentativa de pro-mover o desenvolvimento e conter a destruição do meio ambiente. Ela foi promissora no sentido de efetivamente ter contado com a ação da sociedade, governo e comunidade internacional e, sobretudo, por ter conseguido impedir a ingerência internacional na Amazônia – o grande tema subjacente à Conferência – graças a um extraordinário trabalho de diplomacia brasileira (Becker, 1993).

Na ECO-92 foi aprovada, por consenso, a Agenda 21 – volu-moso documento de 40 capítulos programáticos e mais de 300 páginas – foram adotadas uma Declaração de Princípios Florestais, bem como a

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Convenção sobre Biodiversidade Biológica e a Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas. Como primeiro grande encontro global após a Guerra Fria que reuniu a consciência e a geopolítica ecológicas, resultou em alguns pontos positivos, tais como: o asseguramento da soberania dos Estados sobre os recursos naturais, a associação da biodiversidade com a biotecnologia na Convenção que criou uma base jurídica mínima para a sua utilização e a desnaturalização da questão ambiental, humanizada pelo reconhecimento da imperiosidade de nela serem consideradas os problemas sociais.

Com a Agenda 21, referendou-se o conceito de desenvolvimento sustentável, que passou a ser o marco de referência para a estratégia de desenvolvimento em longo prazo.

Contudo, tais iniciativas promissoras não escaparam da desigualdade do poder e do caráter de coerção que foram crescentemente assumindo no contexto de mudança global liderada pelos EUA.

De acordo com Brundtland (1987), o desenvolvimento sustentável (Brundtland, 1987) foi amplamente difundido, incorporado pela ONU e demais organismos internacionais – do Banco Mundial à Unicef – e com mais lentidão pelos governos. Porém, não é um conceito claro. Foi endereçado, sobretudo, aos países periféricos como tentativa de conter a expansão do padrão de consumo dos centros desenvolvidos em seus territórios, interpretação que é corroborada pelas propostas de contenção de seu crescimento demográfico e de alternativas de desenvolvimento baseadas em práticas de pequena escala, capazes de fixar a população no campo e, certamente, de impedir, a emigração para os países do Norte. Na verdade, é uma proposta para regular o uso do território no Sul e, como tal, um instrumento político. Ademais, não há um presente comum e, muito mais difícil será alcançar um “futuro comum” no curto e médio prazo (Becker, 1993).

Alguns Estados realizaram um esforço para elaborar uma Agenda

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21, inclusive o Brasil, sem resultados significativos, tanto no plano interno como externo. Enquanto essa agenda permanece etérea e de difícil assimilação, as convenções se arrastam por infindáveis reuniões tornando necessário em cada uma de suas respectivas reuniões ganhar verdadeiras guerras contra pontos capciosos contidos nos complexos documentos trazidos à consideração. Tal situação expressa dois processos em curso:

a) A falsidade do discurso do bem coletivo pela sustentabilidade, na medida em que as convenções se transformam em fóruns globais de regulação do mercado da natureza;

b) O interesse das potências em dominar esse mercado num contexto de intenso esforço dos EUA pela unipolaridade.

Com efeito, na passagem para o terceiro milênio, acentua-se a lógica da acumulação em detrimento da lógica civilizatória, com um crescente processo de mercantilização de elementos da natureza. Em outras pala-vras, o capital natural tende a deixar de ser reserva de valor, começando a ser utilizado. Elementos da natureza são transformados em mercadorias fictícias – fictícias porque não foram produzidas para venda no mercado (Polanyi,1944). Através dessa ficção, geram-se mercados reais cuja regu-lação é tentada através de acordos globais. (Becker, 2001).

O “mercado do ar” está intimamente relacionado à busca de nova matriz energética. Ele se baseia na captura do carbono pela vegetação e seu instrumento principal é o Protocolo de Quioto. A comercialização de créditos de carbono em nível global é a forma proposta para as in-dústrias dos países centrais compensarem suas emissões maciças - os maiores emissores de dióxido de carbono (CO2) devido à combustão do carvão e de derivados do petróleo que provocam efeito estufa - através de investimentos na preservação e/ou replantio de florestas em países periféricos para absorção do CO2.

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Segundo a Conferência de Quioto, os países centrais industrializados, responsáveis históricos pela poluição, deveriam alcançar a meta de re-dução de 5.2% do total de emissões segundo níveis de 1990. A questão é o enorme custo desse processo, demandando mudanças radicais nas indústrias para que se adaptem rapidamente aos limites de emissão estabelecidos e adotem tecnologias energéticas limpas. A comercialização internacional de créditos de seqüestro ou redução de gases causadores do efeito estufa foi a solução encontrada para reduzir o custo global do processo. Países ou empresas que conseguirem reduzir as emissões abaixo de suas metas poderão vender este crédito para outro país ou empresa que não conseguir.

Para os países periféricos, e para o Brasil em particular, o uso de fontes de energia limpa, como a hidrelétrica, a solar ou a eólica, a de biocombustíveis e a da biomassa vegetal, constituem grande potencial, a que se soma a possibilidade de usar a absorção de CO2 na vegetação para compensar a emissão de outros países. Assim, em vez de cortar diretamente as próprias emissões, um país como os EUA que, sozinho, emite 25% de carbono do mundo, pagaria sua cota de 7% através de “créditos-carbono”. Além disso, investimentos florestais em países periféricos são muito mais baratos. Por exemplo: custa cerca de 150 dólares para uma empresa como a BP-AMCO emitir menos uma tonelada de carbono de uma sofisticada plataforma de petróleo no Mar do Norte; quando ela poderia conseguir uma redução igual de carbono por 15 centavos em um projeto de reflorestamento na Bolívia.

Os conflitos embutidos na construção do “mercado do ar” são intensos, ocorrendo entre as potências – quanto à redução do grau de emissão e aos limites de compra de créditos – e entre os países centrais e os periféricos – quanto à contabilização das emissões e a inserção ou não das florestas primárias. Este debate verifica-se mesmo internamente no Brasil.

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O “mercado do ar”, centrado na troca de crédito de carbono, é o que mais se concretizou. As opções mais aceitas para o seqüestro do carbono são os projetos de plantio de florestas, vários já instalados no Brasil e vinculados, sobretudo, a interesses de grandes corporações petrolíferas com mediação do Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BIRD) e do Estado francês, implementados por Ongs nacionais e/ou inter-nacionais. Exemplos da implantação do mercado de ar na Amazônia são: 1) o replantio de florestas em 10.000 ha em Cotriguaçu, no Norte de Mato Grosso, pela empresa francesa Peugeot, que atua com o Office National des Forêts International e a Onge a Ong Pró-Natura; 2) a empresa de energia in-glesa AES Barry, sediada em Barry, no País de Gales, que testa um projeto piloto em 60.000 ha na ilha do Bananal em Tocantins, em associação com uma Ong, universidades brasileiras e estrangeiras e a Secretaria do Meio Ambiente de Tocantins; 3) o financiamento, por parte do Prototype Carbon Found (PCF), de um projeto de biomassa para gerar energia à empresa Mil Madeireira, do Grupo Gethal, em Itacoatiara, visando o seqüestro de carbono; 4) um estudo sobre a Linha de Base para seqüestro do carbono na Amazônia está sendo implantado pela Ong Instituto Ecológica (Bananal, TO), com financiamento dos Países Baixos.

Muitas outras iniciativas, embora não divulgadas e nem sempre na escala de empresas, estão em curso na região. É o caso do aproveitamento do potencial para projetos de seqüestro de carbono no âmbito do Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais Brasileiras (PP-G7), iniciativa do Banco Mundial que, com seus próprios fundos, desenvolve um projeto com esta finalidade para comunidades que estão trabalhando com Sistemas Agro-Florestais (SAFs).

Vários outros projetos de seqüestro de carbono estão localizados fora da Amazônia, como por exemplo: Central and South West Corporation de Dallas, uma das maiores operadoras de energia nos EUA que, com a mediação da Ong Nature Conservancy, comprou 7.000 ha da Reserva Serra do

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Itaquí, no Paraná, repassando o projeto para a Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental; o Fundo Protótipo de Carbono do Banco Mundial que, associado à empresa Plantar, de Curvelo (MG), visa produzir ferro gusa com carvão vegetal proveniente de florestas renováveis certificadas em 23.000 ha; e o BIRD comprando parte dos créditos de carbo-no e vendendo-os a empresas investidoras no Banco como a Mitsubishi, Marubeni, Ontario Electric Power, BP-AMCO e Shell, entre outras.

Não há dúvida de que bons negócios poderiam ser implementados com a mercantilização do ar. Contudo, há outra ordem de questões, a ser considerada:

a) O risco social de transformar o ar em mercadoria fictícia, cujoO risco social de transformar o ar em mercadoria fictícia, cujo destino seria dirigido exclusivamente pelos mecanismos de mercado;

b) OO risco de privatização e internacionalização do território nacional pela compra e/ou controle de grandes tratos de terra e, sobre-tudo, pelo controle do uso do território no caso de inclusão das florestas originais no Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL).

Já o “mercado da vida”, expresso na questão da biodiversidade, é ainda mais complexo, pelo menos por duas razões. Primeiro, porque, à diferença do ar, a diversidade da vida é também um fenômeno humano, pois tem localização geográfica e formas de apropriação particulares, o que a insere, necessariamente, no contexto das relações sociais. Essa condição implica reconhecer que há diferentes projetos para a biodiversidade, correspondentes à variedade de significados e de meios disponíveis das sociedades, em diferentes escalas geográficas.

A segunda razão decorre da própria Convenção sobre Diversidade Biológica. Por um lado, ela antes priorizou os riscos e as necessidades de preservação da biodiversidade mundial do que a distribuição de seus

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benefícios para os habitantes dos ecossistemas; por outro, na Cúpula da Terra, os recursos biológicos foram declarados patrimônios nacionais, afirmando-se o direito soberano dos Estados de explorar seus próprios recursos. A afirmação desse direito, porém, não foi acompanhada do devido esclarecimento sobre os direitos de propriedade.

Os investimentos de capital internacional, ainda incipientes, são dominantes no mercado da vida na Amazônia. Grandes corporações e/ou empresas lideram o mercado e os eco-negócios vinculados à biodiver-sidade; entre estes, porém, multiplicam-se os pequenos projetos, muito deles nascidos nos Projetos Demonstrativos (PDA), implantados pelo PP-G7 com a cooperação internacional. As redes de parcerias são extre-mamente complexas em todos os casos, fato que, associado à dispersão dos projetos, resulta em grande dificuldade de obtenção de informação sobre esse processo.

O PP-G7 e o Banco Mundial têm importante papel na origem dessas iniciativas. Em 2000, o Banco elaborou um plano estratégico para Envolvimento do Setor Privado, e iniciativas comunitárias que foram objeto de um relatório em 2001. Tal plano baseou-se em várias experiências feitas para promover negócios sustentáveis no âmbito do PP-G7.

Quanto ao mercado da vida, o mais expressivo projeto para uso da biodiversidade foi o Programa Brasileiro de Ecologia Molecular para o Uso Sustentado da Biodiversidade (PROBEM), que resultou na construção do Centro de Biotecnologia da Amazônia (CBA), em Manaus, ainda sem a equipe de pesquisadores necessária para o seu funcionamento. No entanto, enquanto nas altas esferas decisórias a indefinição perdura e nesse espaço indefinido a biopirataria avança, emergem e se multiplicam iniciativas visando usufruir negócios com o uso sustentável da natureza.

Por sua vez, o projeto Eco-Finanças foi lançado em setembro de 2000 pela Ong Amigos da Terra, numa inédita parceria com a Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, transformando o Brasil no 3º país do mundo

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– após os EUA e a Holanda – a desenvolver um projeto que incorpora os temas ambientais no mundo financeiro.

Para a sociedade amazônica e brasileira, a valorização dos recursos genéticos exige regras de controle sobre seu acesso, que ainda estão em discussão no Brasil. Exige também, a distribuição dos seus benefícios para a população que com ela convive. Por enquanto, o acesso à biodiversidade é livre, favorecendo a “biopirataria”, o que indica a necessidade urgente da regulação desse mercado e do empenho em utilizá-la com tecnologias avançadas. Para tanto, a união dos países amazônicos é essencial.

Por fim, quanto ao “mercado da água”, é ainda incipiente. Uma multiplicidade de agências das Nações Unidas, financiamentos do Banco Mundial e Comissões que visam coordenar ações não têm conseguido resultados. Sua valorização reside na ameaça de escassez decorrente do forte crescimento do consumo, a tal ponto que é considerada como o “ouro azul”, capaz de, à semelhança do petróleo no século XX, instigar guerras no século XXI.

Ao crescimento demográfico se imputa a causa da catástrofe prevista. Na verdade, existem efetivamente regiões áridas. Porém, mas o maior problema não é o crescimento demográfico, mas sim a gestão do recurso, de modo a estender os serviços de abastecimento e esgotamento sanitário às grandes massas que deles não usufruem. Ademais, as previsões apoca-lípticas e seus argumentos não se aplicam de forma alguma à Amazônia, que detém grande percentual da água doce do planeta e baixo consumo. É claro que uma melhor gestão contra o desperdício é fundamental para todos. Mas há que se ter em mente as condições diversificadas do planeta, para evitar imposições globais que não atendam aos interesses nacionais e regionais.

O Brasil tem conseguido enfrentar muito bem as imposições das agendas internacionais:

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- NoNo Protocolo de Quioto, propôs o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) em substituição à proposta do Presidente Clinton de “voluntary agreement”; ou seja, a adesão voluntária dos países periféricos ao Protocolo, proposta inconcebível para o seu necessário crescimento;

- NaNa Convenção sobre Diversidade Biológica, conseguiu reverter a tentativa de transformar a Amazônia em Patrimônio da Humanidade, proposta feita pela Unesco, mediante a aceitação da biodiversidade como insumo industrial para a biotecnologia; no início da Convenção conseguiu rejeitar a proposta de ampliar em 10% a área protegida da Amazônia; contribuiu para amenizar a concepção preservacionista da Convenção, a ela se agregando o desenvolvimento sustentável e a repartição dos benefícios do uso da biodiversidade pelas populações locais.

A agressividade recente dos EUA afetou esse quadro, esvaziando a carteira da ONU, do Global Environmental Fund (GEF) e o próprio uso sustentável dos recursos, fortalecendo a feição preservacionista do meio ambiente. É assim que a proposta de ampliação da Área Protegida da Amazônia, sustentada pela WWF e pelo Banco Mundial, retornou e foi aceita na Convenção sobre Diversidade Biológica, já estando em implantação no Brasil como Projeto ARPA. Significa a ampliação dos re-cortes territoriais imobilizados na região, pois só a muito custo o Governo brasileiro conseguiu introduzir no Projeto uma pequena extensão de Áreas Protegidas de Uso Direto – 90.000 km2 – enquanto áreas preservadas novas correspondem a 285.000 km2 e 125.000 km2 serão acrescidas às já existentes.

Revela-se o duplo jogo realizado pelos EUA para controle do uso do território do planeta. Por um lado, recusa-se a assinar o Protocolo de Quioto para sustentar sua base energética, intimamente associada aos investimentos nos sumidouros de carbono por suas empresas e financiamentos do Banco

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Mundial. Por outro lado, pressiona pela preservação de estoques de natureza, garantindo reservas de valor em biodiversidade e em água.

É importante registrar que a década de 1990 se caracterizou por megaconferências mundiais da ONU que trataram de alguns dos principais problemas econômicos, sociais e ambientais contemporâneos, procurando um consenso internacional para enfrentá-los, problemas que, embora tratados de modo dissociado, têm íntima relação com o meio ambiente. Destaca-se, entre elas, a realizada em Monterrey, México, em março de 2002 – a Conferência Internacional sobre Financiamento para o Desenvolvimento – que marcou uma extrema aproximação entre a ONU, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Realizada às vésperas da Cúpula da Terra de 2002, em Johanesburgo, e anunciando o aumento da ajuda norte-americana a ser incluída gra-dativamente nos orçamentos vindouros dos EUA, cuja eficácia para os países mais pobres é discutível, a Conferência de Monterrey desviou o foco da preocupação ambiental.

Pressões das potências, sobretudo dos EUA, sob documentos complexos e conferências repetitivas que não ofereceram solução dos problemas, a multiplicidade de acordos bilaterais sobre os mais diversos temas, configuraram-se como verdadeiras estratégias nas megaconferên-cias da ONU, e resultaram no fracasso da Cúpula da Terra de Johanes-burgo. Ao que tudo indica, o movimento pela sustentabilidade parece ter regredido, e mesmo sua retórica, em face do subjacente processo de mercantilização da natureza.

Cresce assim, a consciência quanto ao absurdo de promover o desenvolvimento com retórica ou até com algum financiamento e, ao mesmo tempo, levantar barreiras contra a importação de bens que os países periféricos e emergentes conseguem produzir com mais eficiência. Em lugar de obter numa cúpula o compromisso de todos os governos de “fomentar o comércio internacional como motor de desenvolvimento

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(parágrafo 4 da Declaração Final de Monterrey)”, não seria mais rele-vante na luta contra a pobreza reforçar a própria Organização Mundial do Comércio contra o assalto dos protecionistas que alimentam boa parte do movimento antiglobalização? (Hoffmann, 2002)

Enfim, as convenções são tentativas de implementar formas de governabilidade global sobre o ambiente planetário mediante o estabe-lecimento de regimes globais, sistemas de “normas e regras específicas por um instrumento multilateral legal entre Estados para regular ações nacionais numa dada questão”. (Porter e Brown, 1991).

Um balanço da problemática revela que a Amazônia tem servido de laboratório para o desenvolvimento de outros Estados, pois os custos da conservação são nacionais enquanto os benefícios são para todos. De nada adianta tentar controlar a biopirataria, se não podemos saber com certeza se o que foi tirado é mesmo do país. Os avanços na pesquisa e na biotecnologia são cruciais para assegurar os benefícios da riqueza do patrimônio natural para o país. As estratégias para tanto são: agregar valor e comercializar os produtos regionais, fortalecer o Centro de Biotecnologia da Amazônia (CBA) em Manaus – que deveria ser mais flexível, como uma organização social de direito público e operação privada – e estimular iniciativas como a do Instituto Genius, implantado pela parceria Gradiente/Nokia, que não só inova na tecno-logia como ministra aulas na Universidade.

a Convenção sobre Comunidades indígenas

Se a soberania do Estado persiste, entende-se a coexistêntia das Forças Armadas com a presença das comunidades indígenas nas fronteiras internacionais no contexto da interdependência global.

Quando a mesma etnia encontra-se nos dois lados da fronteira,

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essa situação poderia, em longo prazo, justificar uma interferência internacional para declarar uma “zona neutra”, relativizando a soberania dos Estados fronteiriços. As vivificações das fronteiras, no sentido de demarcação física ficam pouco caracterizadas nesses casos, sendo necessário ter bem caracterizado os elementos nacionais de ambos os lados. A essa preocupação se soma a da presença das Ongs e sua influência política.

Por outro lado, há uma crescente conscientização mundial e nacional quanto à necessidade de reconhecer os direitos de povos indígenas e tribais e seu rico patrimônio cultural. Certamente, há também interesses geopolíticos em utilizar essa consciência como forma de limitar a soberania dos Estados.

Um esforço positivo vem sendo feito para aproximação e diálogo entre as Forças Armadas e os índios. Em 2001, na Conferência Mundial das Nações Unidas Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Conexa, realizada em Durban, na África do Sul, a Convenção no 169 de 1989, da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais em países inde-pendentes, foi aprovada e o Brasil ratificou a convenção através do Decreto Legislativo no 143/02. Na ocasião, o Instituto Socioambiental (ISA) apresentou um código de conduta entre índios e militares que se transformou em uma medida governamental formalizada no documento oficial da delegação brasileira (ISA, 2004).

A polêmica se reacendeu com a assinatura do Decreto n° 4.412 pelo então Presidente Fernando Henrique Cardoso, em 2002, dispondo sobre a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal em terras indígenas, incluindo liberdade de trânsito e acesso, instalação e manutenção de unidades militares e policiais, equipamentos de fiscalização, implantação de programas, projetos de controle e proteção da fronteira. Instituições governamentais

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declararam a inconstitucionalidade do Decreto e as organizações indígenas reagiram através de múltiplos documentos.

As principais críticas ao Decreto residem no fato de ele ter contrariado os termos da convenção da OIT, não realizando consulta prévia aos povos indígenas envolvidos e não estabelecendo regras de convívio entre militares e índios. Cabe aqui chamar a atenção para a diferenciação existente no grupo indígena. As reações foram, sobretudo, dos grupos mais organizados, situados na Fronteira Norte e dentro deles há também diferenciações. Enquanto a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) enfatiza a necessidade de definir regras de convivência entre militares e índios, apresentando várias sugestões úteis, o Conselho Indígena de Roraima (CIR) é bem mais agressivo, reclama contra a criação dos Municípios de Pacaraima e Uiramutã em Terra Indígena (TI) reconhecida, a invasão de rizicultores em 1994 após a identificação da área, a sobre-posição de Unidades de Conservação (UCs) em TI com forte crítica do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) no sentido de proibir as atividades tradicionais dos índios como no Parque Nacional Monte Roraima e de favorecer outros atores, realizando assim, uma denúncia à Organização dos Estados Americanos (OEA) por fatos ocorridos há anos.

O avanço, no sentido de retornar o diálogo, prosseguiu e a Portaria nº 20 de 02/04/03, do Ministério da Defesa, foi uma grande abertura do Exército na definição de novas diretrizes de relacionamento com os índios, pois atacou uma série de sugestões apresentadas pela FOIRN e se tornou uma grande esperança para avançar na solução dos conflitos.

Algumas considerações podem ser feitas quanto à questão. É, sem dúvida, necessária a presença das Forças Armadas e da Polícia Federal nas fronteiras e na TI a fim de garantir a soberania e a

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Segurança Nacional e os índios têm o privilégio de verem suas terras demarcadas. Mas as reivindicações indígenas, em sua maioria, são bastante aceitáveis, não cogitam constituir um Estado autônomo, nem tem possibilidade para tanto, pois dependem da proteção do Estado brasileiro para sobreviver, e sua representatividade é muito relativa e não aceita por todos. O avanço no diálogo é, portanto, o caminho certo.

Algumas considerações podem ser feitas considerando o novo contexto mundial:

a) A vivificação das fronteiras hoje não pode ser vista comoA vivificação das fronteiras hoje não pode ser vista como mera implantação de barreiras físicas. Sabe-se que, as fronteiras são faixas de interação entre Estados e nacionalidades distintas, à borda do espaço nacional consolidado, e assim orientadas para fora, enquanto os limites são um fator de separação de unidades políticas soberanas. Hoje, contudo, os limites se fluidificam através de múltiplas redes transfronteiras, redes lícitas, ilícitas e informais, que podem alcançar grandes extensões além do território nacional, embora nele se originando. As comunidades indígenas de mesma etnia nas fronteiras de países vizinhos constituem importantes redes de parentesco e de trocas informais que vivificam as fronteiras;

b) A presença de uma só etnia em ambos os lados deA presença de uma só etnia em ambos os lados de fronteira pode significar importante componente na integração da Amazônia Sul-americana, mormente tendo em vista a ampliação do Mercosul como contraponto à Área de Livre Comércio das Américas (ALCA);

c) Cabe ao Estado fortalecer sua presença na fronteira, sobretudoCabe ao Estado fortalecer sua presença na fronteira, sobretudo ampliando a proteção aos índios, em termos de serviços que necessitam,

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e considerando a diversidade dos grupos e respectivas demandas;

d) O Estado conta agora com poderoso instrumento cujoO Estado conta agora com poderoso instrumento cujo uso deve ser intensificado – o Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam) – que permite uma fiscalização ampla à distância; ele vem treinando os funcionários dos postos da Fundação Nacional do Índio (Funai), e pode também ser utilizado no diálogo diretamente com os índios;

A situação de regulação e controle das Terras Indígenas é bastante indefinida, sobretudo na Amazônia, para o que contribui a superposição da malha administrativa, das áreas protegidas e da Faixa de Fronteira, todas elas oficiais. A definição da regulamentação da Faixa de Fronteira pode ser importante instrumento de superação de superposições e conflitos.

2. RestRições aCeitas de PReseRvação do meio ambiente e da biodiveRsidade

Restrições aceitas são ações externas capazes de influenciar assuntos internos de um Estado soberano, correspondendo aos mais baixos níveis de coerção, na medida em que deixam maior espaço para a tomada de decisões por parte do Estado soberano. Discursos, veiculação de opiniões e ajuda econômica podem ser consideradas formas de coerção que, dependendo de sua capacidade de influir, passam a ser aceitas pelo Estado soberano (Nye Jr., 1997).

Os conflitos assinalados geraram um processo de politização da questão ambiental (Becker, 1997; Le Prestre, 2000), revelando que, na prática, o meio ambiente não é só objeto, é também um

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

instrumento das ações políticas. De acordo com o Dicionário de Política, a politização da questão ambiental se dá por dois fatores: a irreversibilidade dos fenômenos, isto é, um ponto de não retorno, situação da qual é impossível sair simplesmente retrocedendo nos passos que a constituíram; e a diferenciação entre quem decide e quem é afetado pelas decisões que deixam de ser regidas por questões de ordem tecno-econômica e são transportadas para a esfera da disputa de forças, ou seja, da política (cf Conti, 1986, apud Tilio Neto, 2003).

A intervenção como direito faz surgir a noção de ingerência, fundamentada na opinião pública internacional. Em outras palavras, a ingerência é uma necessidade de cooperação internacional baseada no direito da humanidade à sobrevivência e não ameaça a soberania no sentido de destruí-la, mas de reordená-la em face das novas exi-gências. A ingerência intervém na redução dos os efeitos perversos de um emprego abusivo de soberania estatal, a mais importante sendo a ecológica, pois que se refere à manutenção da vida no planeta e é urgente (Bachelet, 1995).

Este processo é patente na Amazônia, onde a intensa veiculação de opiniões pela mídia internacional e ajuda econômica influenciaram uma profunda mudança na política regional a partir de meados da década de 1980. A variável ambiental – entendida como recursos naturais, patrimônio natural e cultural, conhecimento e práticas sociais – foi definitivamente incluída no discurso e na elaboração da política regional. Este processo resultou em novos modos de posse e uso do território, recortes específicos na região.

Dada a intensidade dessas formas de coerção, estas não podem ser tratadas isoladamente dos atores e instrumentos de ajuda econômica que as sustentam, pois são eles que lhes atribuem poder.

Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

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discursos e opiniões�� tentativas de ingerência

Difundidos pela mídia internacionalmente, discursos e opiniões causam forte impacto embasando uma ameaça de ingerência, ao colocar o Brasil como vilão ambiental e questionar sua capacidade de manter uma Amazônia sustentável. A tentativa de criar uma soberania compartilhada na Amazônia, ou mesmo uma soberania global, é o cerne dessa pressão, tal como será visto em algumas propostas a seguir (Mendes, 2001):

• “Se os países subdesenvolvidos não conseguem pagar suas dívidas externas, que vendam suas riquezas, seus territórios e suas fábricas”. (Margareth Tatcher, Primeira-Ministra britânica, 1983).

• “Ao contrário do que os brasileiros pensam, a Amazônia não é deles, mas de todos nós”. (Al Gore, Senador e hoje Vice-Presidente dos Estados Unidos, 1989).

• “O Brasil precisa aceitar uma soberania relativa sobre a Amazônia”. (François Mitterrand, Presidente da França, 1989).

• “O Brasil deve delegar parte dos seus direitos sobre a Amazônia aos organismos internacionais competentes”. (Mikhail Gorbatchev, Presidente da então União Soviética, 1992).

• “A Amazônia é um patrimônio da humanidade. A posse dessa imensa área pelos países (amazônicos) é meramente circunstancial”. (Conselho Mundial de Igrejas Cristãs, Genebra, 1992).

O Brasil conseguiu impedir a realização dessas propostas,

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

que se esvaneceram, mas deixaram como resultado influência na opinião pública e recortes territoriais na região como reservas da Biosfera, implicando uma restrição ao seu uso.

Mais recentemente, se firmou o discurso – e mais do que isso, também ações nos países vizinhos – do combate às drogas, “War on Drugs”. A resposta brasileira à ingerência ambiental e militar, se fez, sobretudo, através de instrumentos poderosos, os projetos Sistema de Proteção da Amazônia/Sistema de Vigilância da Ama-zônia (Sipam/Sivam) que, em nome da proteção ao meio ambiente, constituiu-se de fato, como sinalização da capacidade do Estado em controlar e manter seu território.

Finalmente, a preocupação com os Direitos Humanos trouxe à tona com vigor a questão dos grupos indígenas, que se incorporou à questão ambiental na opinião e no discurso em âmbito mundial.

Pressões nacionais, e principalmente internacionais, oficiais ou não de discursos e opiniões se intensificaram em meados da década de 1980 com as imagens das queimadas na Amazônia que causaram impacto maior do que outros desastres ambientais contem-porâneos. O ano de 1989, por sua vez, foi um marco na acentuação das pressões, em decorrência da repercussão mundial do assassinato do seringueiro e líder sindicalista Chico Mendes, em dezembro de 1988, que acrescentou uma dimensão social ao debate em torno do desmatamento na região. Este fato deu visibilidade à luta política de outros segmentos sociais, não só os seringueiros como também os povos indígenas, que sobrevivem do uso dos recursos naturais renováveis e necessitavam defender seus territórios tradicionais ameaçados pelo avanço de pecuaristas e madeireiros.

Desde então, conservação ambiental e sobrevivência da cultura indígena tornaram-se indissociáveis. A reivindicação de seus territórios por seringueiros e índios foi recontextualizada à luz

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da preocupação mundial em torno da conservação ambiental, que apoiou novos focos de legitimação do poder no interior do território nacional.

Caberia ainda aqui menção a outras pressões provenientes de supostas articulações para internacionalizar a Amazônia. São exemplos: a circulação do mapa que retira a Amazônia e o Pantanal do território e da soberania nacionais, e as elocubrações da Trilateral.

Restrições aceitas através da ajuda econômica

Os bancos multilaterais exercem papel fundamental nas restrições aceitas de preservação do meio ambiente e da biodiversidade. Contudo, a liderança nesse processo é do Banco Mundial.

De início, o Banco Mundial e o Banco Internacional de Desenvolvimento, que financiaram os grandes projetos na região, deram uma guinada nos rumos da política de financiamento. O Banco Mundial foi a primeira instituição internacional a estabelecer políticas explícitas com respeito às limitações de riscos ambientais nos projetos que financia. A partir de 1987, planejou a criação de um Departamento do Meio Ambiente, a obtenção de recursos para efetuar estudos do meio ambiente e decidiu dobrar os fundos que destina a projetos florestais “bem concebidos” do ponto de vista ambiental.

A disposição de incrementar os financiamentos para pesquisas na Amazônia veio, contudo, acompanhada de restrições à liberação dos financiamentos no caso de agressão ambiental, como o da BR-364 (recusando um empréstimo de US$ 150 milhões).

Caminharam nessa direção os projetos de conversão de dívida externa por natureza, significando a compra de títulos da dívida por

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cerca de 30 % de seu valor e o pagamento investido na proteção ambiental, como feito na Bolívia e na Costa Rica. Significa cancelar parte da dívida externa colocando uma parte do território nacional fora do circuito produtivo. A pressão se institucionalizou através da ajuda econômica.

Também em resposta a pressões externas e internas, o Brasil tomou uma série de medidas institucionais que se sucederam rapi-damente, culminando com a criação do Ibama (1989), do Ministério do Meio Ambiente e da Amazônia Legal, e com a aceitação de dois programas de ajuda econômica que constituíram um marco na política de preservação do meio ambiente e da biodiversidade.

Em ambos, foi patente a liderança do Banco Mundial (BIRD). O Programa Nacional de Meio Ambiente (PNMA, 1990/91), recebeu US$ 17 milhões como empréstimo do Banco Mundial para execução de ações que conduzissem à melhor gestão ambiental. A influência do PNMA tornou-se extremamente significativa na medida em que permitiu a contratação de grande número de técnicos, particularmente no Ministério do Meio Ambiente (MMA), que fortaleceram concepções e ações voltadas para a preservação ambiental.

Mas é o Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais Brasileiras (PP-G7) é o mais importante instrumento na restrição aceita de preservação ambiental. Expressa uma forma de pressão pela união das potências, que não os acordos internacionais, mas sim através de programas multilaterais de ajuda econômica. Trata-se de alianças temporárias para atuar em espaços e questões específicas, situadas nas interfaces de interesses das potências, as “shifting coalitions” no plano estratégico-militar. A face civil dessa aliança é a cooperação internacional, cujo melhor exemplo na área ambiental é o PP-G7.

O PP-G7 foi negociado em Genebra em 1991 e formalmente

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lançado em 1992. Passou a ser operacionalizado em 1994. Inicialmente foi financiado pela União Européia (UE), Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, Estados Unidos e Reino Unido e administrado pelo Banco Mundial, com investimentos previstos de US$ 250 milhões, pelos países doadores e pela contrapartida brasileira. É o maior programa ambiental implementado em um só país. Constitui um instrumento de desregulação patente nos objetivos de preservação dos recursos genéticos e contenção do desmatamento, bem como na ênfase que atribui à participação das Ongs como contraponto para controle da aplicação do programa. Todos os projetos do PP-G7 se materializam no território segundo um modelo endógeno, ie, voltado para a população local, com aproveitamento de recursos locais.

O maior contribuinte do PP-G7 é a Alemanha, com quase 50% do total, seguida da União Européia (UE), do próprio Brasil – como contrapartida – e da Inglaterra. Na virada do milênio, novas promessas de doação foram efetuadas. Em 1998, o total despendido foi de US$ 55.8 milhões, não levando em consideração os aportes do Rain Forest Trust Fund (RFTF). Contando com os novos recursos comprometidos e com os do RFTF, o total em 2003 ascendia a US$ 409.54 milhões, de acordo com o Relatório Financeiro do Banco Mundial de 2003. Ainda segundo o Banco, os devedores contribuíram ou se comprometeram firmemente com essas doações, correspondendo a um aumento de 38% em relação à proposta original e o Brasil também ampliou sua participação. Mas o crescimento dos recursos se deve em grande parte a ganhos de juros e ao câmbio, graças à valorização do euro em relação ao dólar. A Tabela 1 demonstra o crescimento no volume de recursos e a participação dos Estados no total.

16�

Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Tabela 1: Crescimento no volume de recursos e a participação dos EstadosPara Projetos

Para o Rain Forest Trust

Para Projetos Contratados

Comprometidos ou Indicados

Total

Fonte US$ MilhõesAlemanha 19.35 126.83 65.09 211.27União Européia 14.05 46.87 8.05 68.97Reino Unido 2.32 25.07 0.00 27.39EUA 6.25 3.95 5.10 15.30Holanda 4.88 3.25 - 8.14Japão 6.80 0.45 - 7.25Itália 3.85 0.00 - 3.85França - 1.44 - 1.44Canadá 0.74 - - 0.74Brasil - Governo - 30.38 9.61 39.99Brasil - Comunidades - 11.50 13.70 25.20

Total 58.25 249.74 101.55 409.54Dos quais - externos 58.25 207.86 78.24 344.35Dos quais - brasileiros - 41.88 23.31 65.19

Fonte: PP-G7 Financial Report 2003 – World Bank

De fato, o desembolso para os projetos vem gradativamente decrescendo desde 1997 e, sobretudo, em 2000. Em 2003, representou menos da metade do total de recursos. Grande parte dos recursos perma-necem sem investimento e/ou gastos com a própria estrutura burocrática do Banco Mundial referente ao PP-G7. O Banco calcula que gastos diversos, que não em projetos, somaram US$ 28.7 milhões em 2003.

Um outro aspecto a considerar quanto ao PP-G7, é a estratégia em favorecer os projetos associados aos recursos naturais (política e pesquisa) e projetos de apoio a segmentos sociais historicamente

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excluídos no processo de ocupação regional, mediante doação seletiva para os projetos.

A Tabela 2 demonstra a queda nos desembolsos para projetos provenientes de fontes externas e a prioridade por elas atribuída: política de recursos naturais, projetos demonstrativos (PDA), centros de ciência e pesquisa dirigida, e terras e projetos indígenas.

Tabela 2 – Desembolso para Projetos – Fontes ExternasProjeto 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 Total

Projetos Demostrativos 2.20 3.70 5.40 3.4 4.10 2.70 3.60 1.30 1.30 27.70

Corretores Ecológicos 0.20 0.20 0.40

Reservas Extrativistas 0.60 3.3 2.60 2.00 0.20 0.40 0.20 0.20 10.00

Prevenção do Fogo 1 0.60 0.40 1.00

Prevenção do Fogo 2 0.20 0.40 0.30 0.9

Gestão da Várzea 0.10 0.20 0.60 0.20 1.0

Gestão dos Recursos Florestais

1.00 0.60 1.80 1.60 1.30 6.30

Terras Indígenas 0.90 5.00 0.20 1.90 0.50 0.80 0.80 0.80 11.10

Projeto Demonstrativo em Terras Indígenas

0.10 0.40 0.50

Monitoramento e Análise

0.40 0.20 0.60

Política de Recursos Naturais

1.00 3.10 2.70 6.80 5.40 7.70 3.80 4.10 1.80 36.60

Coordenação pelo Governo Brasileiro

0.60 0.20 0.80

Centros de CI e Pesquisa Dirigida

1.60 4.60 7.10 2.70 2.60 1.50 0.00 0.90 0.30 21.20

Apoio ao GTA 1 0.20 0.20

Apoio ao GTA 2 0.10 0.40 0.50

Apoio à Rede Mata Atlântica

0.10 0.10 0.10 0.30

Apoio a Negócios Sustentáveis

0.50 0.50

Total 5.40 15.80 22.80 15.70 15.60 14.40 11.40 10.90 7.10 119.60Fonte: PP-G7 Financial report 2003 – World Bank

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Novas tendências se configuram no PP-G7 que, segundo propostas para sua segunda fase, seria denominado Programa Brasileiro de Proteção e Uso Sustentável das Florestas Tropicais, desvelando a insistência do Banco em passar a responsabilidade (ownership) do Programa para o Brasil e a sua crescente intenção de se desligar, retornando às suas funções como banco, bem coerente com o processo de mercantilização da natureza.

Em suma, trata-se de uma coalizão temporária entre potências que gerou uma parceria com o Governo brasileiro, gerida pelo Banco Mundial, com forte poder de decisão sobre o uso do território.

Restrições aceitas ao uso do território

Discursos, opiniões e ajuda econômica se expressaram em restrições, de fato, à decisão sobre o uso do território sob duas formas: a) novos recortes territoriais correspondentes a multiplicações de vários tipos de áreas prote-gidas; b) reativação e defesa das fronteiras internacionais pela presença de grandes extensões de áreas protegidas. Nesses processos, fortaleceram-se a presença de novos atores, tanto as populações tradicionais quanto as Ongs.

a) Os novos recortes territoriais significam, por um lado, proteção da natureza, da biodiversidade e das populações tradicionais; por outro, retiram extensas parcelas do território do circuito produtivo nacional e restringem a plena decisão do Estado brasileiro sobre o uso do território.

Em nível territorial, as restrições associadas às ações ambientalistas orientam-se para um modelo endógeno, que visa a preservação ou o uso dos recursos naturais pelas populações locais. A origem dessa tendência reside em movimentos sociais, mas foi o PP-G7 que se transformou no grande in-dutor dos projetos endógenos através de uma estratégia descentralizada que envolve as principais reivindicações sociais. E, finalmente, a tendência foi institucionalizada na política do Ministério do Meio Ambiente (MMA).

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Dentre as formas endógenas destacam-se as Áreas Protegidas, constituídas por Terras Indígenas e Unidades de Conservação, bem como os projetos comunitários alternativos.

Áreas indígenas só adquirem expressão efetiva e explicitamente territorial após sua delimitação e demarcação. Elas se caracterizam, em termos geográficos, como recortes que representam uma categoria jurídica de organi-zação do espaço definida pelo Estatuto do Índio (Lei nº 6.001, de 10/12/1973). O Estatuto do Índio está defasado em relação às normas constitucionais, uma nova versão encontra-se em processo de tramitação no Congresso Nacional. Muitas vezes os recortes são delimitados por coordenadas geográficas, linhas virtuais, dificultando a identificação de seus limites pelas comunidades autóc-tones, favorecendo as invasões de grupos econômicos e os conflitos.

As comunidades indígenas estão organizadas em 44 associações sob coordenação da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB). O Governo brasileiro começou a aceitar essa premissa a partir da possibilidade de financiamento externo para ações de proteção ao meio ambiente na Amazônia, implicando a demarcação e a homologação de muitas e extensas áreas indígenas. Delineou-se, assim, progressivamente uma nova política indigenista.

Hoje, as populações indígenas constituem, atores fundamentais no cenário político regional, tendo aumentado progressivamente sua população, sua autonomia e seu poder de barganha frente ao Estado e aos grupos econô-micos, graças à sua organização, à Funai e ao apoio financeiro e técnico de Ongs e de instituições estrangeiras, sobretudo o KFW e a GTZ alemãs.

Em 1992, 57.5% da extensão total das terras indígenas estavam demarcadas, 23.4% delimitadas e 19% ainda em fase de identificação (CEDI, segundo ISA, 1996). O reconhecimento das áreas indígenas teve então grande impulso. O Governo tomou medidas significativas para assegurar o direito de posse da terra às populações indígenas. Entre 1995 e dezembro de 1998 a Administração Cardoso reconheceu 58 Reservas Indígenas em cerca de 26

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

milhões de ha e demarcou 115 Reservas, representando uma área de mais de 311.000 km2. Em dezembro de 1998, o Ministério da Justiça assinou a demarcação oficial de 22 Reservas Indígenas e reconheceu oficialmente os limites de outras 13, principalmente através de financiamentos do PP-G7. Cer-ca de 73 das Reservas Indígenas do País estão agora totalmente demarcadas, representando 78% da área total de reservas nacionais (Tabela 3).

Tabela 3 - Terras Indígenas em julho de 1999.Situação Estágio Número Área (km2) % da área em

relação ao totalDemarcadas Registradas 300 721.943,09 74,24

Ratificadas 31 34.929,08 3,59Demarcadas 21 2.921,19 0,30

Subtotal 352 759.753,36 78,13

Em Demarcação Delimitadas 41 174.948,54 17,99Identificadas 23 37.708,11 3,88

Subtotal 64 212.656,65 21,87

A serem demarcadas

A serem identificadas

145 0 0,00

Subtotal 145 0 0,00Total 561 972.450,01 100

Fonte: Funai/DAF – Diretoria de Assuntos Fundiários, julho de 1999.

A política governamental tenta, assim, solucionar um impasse que divide a sociedade brasileira e gerar um potencial de parceria com essas populações, até então não aproveitado, por falta de um diálogo e de uma negociação adequada. Novos desafios foram também gerados.�ouve então dificuldades na demarcação das terras: a invasão por grandes proprietários, madeireiras – sobretudo à procura das reservas de mogno de alto valor – prospectores de minerais, posseiros, assim como o setor público, para construção de estradas,

Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

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hidrelétricas e criação de novos Municípios; conflitos de terra com os governos estaduais, como ainda é o caso da Raposa Serra do Sol em Roraima e, sobretudo, a questão secular do grau de autonomia das comunidades indígenas considerado aceitável para não afrontar a soberania nacional.

As Unidades de Conservação são áreas geográficas delimitadas com a finalidade estrita de conservação ou preservação para fins científicos, culturais e recreativos, definidos por dispositivos legais para guardar e proteger amostras significativas dos diferentes ecossistemas do país (Ibama, 1991).

Relações estreitas com a União, através da Funai e do Ibama, são traços comuns às áreas protegidas. Dentre as UCs destacam-se a criação das Reservas Extrativistas (Resex) – fruto da luta dos seringueiros por sua sobrevivência na floresta, contra a expansão dos fazendeiros de gado – e os projetos de colonização do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Apoiado inicialmente pela Igreja Católica, e posteriormente pelos sindicatos rurais, o projeto foi incorporado pelo PP-G7 em quatro Resex amazônicas e hoje conta com uma variada rede de parceiros internacionais. Em 1994, o Governo criou nove Resex, sendo oito na Amazônia e uma em Santa Catarina. Atualmente existem 18 Resex na Amazônia.

Assim como a demarcação de terras indígenas, o modelo das Resex é igualmente um marco histórico: a concessão de terras pelo Governo federal às populações caboclas, num país historicamente marcado pelo latifúndio. Um modelo original de gestão, baseado na estreita relação sociedade-Estado, foi também concebido para a Resex. Combina o poder da União como proprietária da terra e responsável pela Resex, com o poder da comunidade através das associações de moradores, que são responsáveis pelos contratos de uso, e o dos grupos de famílias, encarregados da gestão econômica e dos recursos. Certamente este modelo é um dos experimentos que mais preserva a biodiversidade, embora o extrativismo seja uma fraca base econômica para a sustentação da população. �oje, intensifica-se o movimento para agregar valor à extração da seringa, castanha, frutos, e mesmo da madeira através do manejo florestal.

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Há também iniciativas conservacionistas que não partiram da base. Um exemplo de experimento que se realiza diretamente a partir de interesses científicos e preservacionistas é o Projeto Mamirauá, localizado na Várzea do Médio Vale do Solimões. Trata-se de uma área com extraordinária riqueza em águas, cujo entorno ocorre a maior reserva mundial de floresta inundada, habitat de muitas espécies raras. O objetivo central do projeto é a pesquisa científica das espécies endêmicas da fauna, raras e ameaçadas de extinção. Além de criar uma extensa Unidade de Conservação (UC) com Estação Ecológica (ESEC), uma Ong – a Sociedade Civil Mamirauá – flexibiliza a administração. Cientistas, Ongs e agências internacionais dão suporte técnico e financeiro, participando ativamente do planejamento e da pesquisa. A humanização do experimento, incorporando os 4.650 habitantes locais – numa área de 11.240 km2 – necessária para o conhecimento do território e da vida local, contrapôs-se ao conceito de ESEC, gerando uma nova categoria de UC, a Reserva de Desenvolvimento Sustentável, Mamirauá, que hoje também é uma unidade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Uma audaciosa proposta de UC (1996) concebida “de cima” foi a dos Corredores de Conservação ou Ecológicos, que corresponde a uma revolução no planejamento em conservação. Ao invés de ilhas de conservação, estabelecem-se estruturas em rede, agregando às ilhas suas zonas-tampão bem como outras áreas sob graus variados de utilização humana, e considerando as inter-relações entre o mosaico de áreas protegidas. Trata-se de grandes extensões de ecossistemas florestais biologicamente prioritários em números de cinco para a Amazônia, cada um deles com áreas muito superior a de vários países europeus. Por enquanto, a proposta ainda não foi aprovada e, ao que tudo indica, se reduzirá ao Corredor Central (a noroeste de Manaus).

Em 2002, consolidou-se o compromisso assumido pelo Governo brasileiro em 1998 de proteger pelo menos 10% das florestas amazônicas, em resposta à iniciativa mundial “Florestas para a Vida” da Rede World Wildlife

Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

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Fund (WWF). Durante a Rio + 10, na África do Sul, foi lançado o Programa Áreas Protegidas da Amazônia (ARPA), a maior iniciativa conjunta de conservação de florestas tropicais da �istória, cujos principais parceiros são o Governo brasileiro, a WWF – Brasil, o GEF e o Banco Mundial.

O Programa protegerá 500 mil km2 da Amazônia até 2012, a um custo estimado de US$ 395 milhões, significando transformar 12% das florestas amazônicas em parques ou reservas extrativistas. As metas do Programa ARPA até 2012 são (WWF, Edição Especial, set/2002, Secretaria da Amazônia/MMA, 04/2002):

a) Criar 285 mil kmCriar 285 mil km2 de novas áreas de proteção integral (parques nacionais, reservas biológicas e estações ecológicas);

b) Implementar os 125 mil kmImplementar os 125 mil km2 de áreas de proteção integral já exis-tentes;

c) Criar 90 mil kmCriar 90 mil km2 de áreas de uso sustentável comunitário (recursos extrativistas e reservas de desenvolvimento sustentável);

d) Estabelecer, pela primeira vez no Brasil, um Fundo Fiduciário, cujoEstabelecer, pela primeira vez no Brasil, um Fundo Fiduciário, cujo rendimento será usado para financiar os custos de manutenção e proteção das áreas.

Em suma, a meta do ARPA é triplicar as áreas de proteção integral e uso comunitário em uma década, sendo muito mais de proteção integral (285 mil km2 novas + 125 mil km2 já existentes), do que de uso sustentável (apenas 90 mil km2). Aliás, a proposta inicial visava exclusivamente a criação e consolidação de UCs de Proteção Integral e só por decisão do Governo brasileiro foram incluídas as UCs de uso sustentável. O Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque, maior do mundo em área florestal tropical, foi criado em 22 de agosto de 2002, já como resultado do ARPA. Quando

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

atingidas as metas do ARPA, estará protegida uma parcela da Amazônia de dimensão equivalente ao território da Espanha, ou seja, 3.6 % das florestas tropicais remanescentes no mundo.

A política de proteção à natureza amazônica caminha, portanto, a passos largos. Se forem somadas às novas, as já existentes áreas de proteção integral e as de uso sustentável, bem como as terras indígenas, o total protegido deve alcançar mais de 30% da região. (Figura 2)

Figura 2 - Amazônia Legal - Áreas Protegidas

b) A reativação e necessidade de defesa das fronteiras decorrem de múltiplos fatores, mas também de extensas Áreas Protegidas nelas localizadas, muitas vezes com superposição de Terras Indígenas e Unidades de Conservação. (Figura 3)

Áreas ProtegidasUnidades de Conservação

Uso Direto

Uso Indireto

Terras Indígenasobs: em alguns casos existe sobreposição entre os diferentes tipos de áreas protegidas

Legenda

quilômetros150 1500 300

Cidades PrincipaisCapitais EstaduaisLimite Amazônia LegalLimite EstadualLimite InternacionalRodovias PavimentadasRios Principais

Fonte: Ministério do Meio AmbienteOrganização e Elaboração: Claudio Stenner - 2002

*unidades de conservação de uso direto e indireto(estaduais e federais) e terras indígenas

Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

177

Figura 3 - Zona de Fronteira

17�

Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

As relações transfronteiriças constituem hoje um tema prioritário para o Brasil e, particularmente, para a Amazônia. Faixa de interpenetração de estruturas econômicas e sócio-políticas distintas, as fronteiras são áreas de instabilidade onde podem surgir reações e conflitos a partir tanto das populações locais como de pressões externas. A imprevisibilidade é, assim, feição marcante das fronteiras, para o que contribui a multiplicidade de atores, de redes técnicas e de políticas que nelas incidem. Representam, assim, desafios concretos na consolidação da soberania dos Estados (Becker, 2004).

Tais desafios são particularmente inquietantes na fronteira Amazônica – o mais extenso segmento fronteira do Brasil – em face de sua extensão, distância do centro de poder nacional e dificuldade de acesso, dificultando seu necessário controle, sobretudo, hoje sob o impacto de novos atores econômicos, sociais e políticos com interesses diversos, em grande parte ilegais, que nela encontram terreno fértil para sua atuação.

Não se tem aqui a intenção de analisar a questão da fronteira in-ternacional, na medida em que não foi solicitada para este trabalho, mas tão somente apontar a importância da presença das Áreas Protegidas aí localizadas. Este fato gera conflitos entre duas ordens de competência administrativa que se justapõem e recortam o território: a ordem federativa – Estados e Municípios – e aquela ditada pela legislação protetora do meio ambiente, as Áreas Protegidas. Um expressivo número de Municípios têm seu território não só regulado pela malha político-administrativa submetida ao poder da União e/ou dos Estados, mas também pela legislação ambiental que quebra, de algum modo, a ordenação hierarquizada da ordem federativa dominante. Esse conflito, contudo, não incide uniformemente na região, conforme mostra a Tabela 4 (Figueiredo, 1998).

Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

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Tabela 4 - Municípios com Áreas Federais e/ou Estaduais de Legislação Especial – Amazônia Legal – 1996

Unidades da Federação

Números de Municípios 1995(a)

Municípios com terras indígenas e/ou de conservação1996(b)

Participação de municípios com áreas de legislação especial/total(b/a)(%)

Amazonas 62 50 80,6Pará 128 47 36,7Rondônia 40 25 62,5Acre 22 16 72,7Roraima 8 8 100,0Amapá 15 10 66,6Maranhão 109 20 18,3Tocantins 123 20 16,3Mato Grosso 117 43 36,7Amazônia Legal 624 244 39,1

FONTE: Anuário Estatístico do Brasil, 1995 e Arquivo Gráfico de Áreas Especiais (atualizado entre abril/maio de 1996), DETRE/DGC/IBGE. (arquivo atualizado em dezembro de 1995)

A tabela evidencia as desigualdades no tocante à justaposição das duas malhas, revelando a importância que assumiu nos Estados de Roraima, Amazonas e Acre, e em meados da década de 1990, também no Amapá e Rondônia. A similaridade nos períodos da demarcação de Terras Indígenas e de Unidades de Conservação na Amazônia, revelou o impulso único, fundamentado no discurso ambientalista, que norteou o processo de reconhecimento legal dessas unidades.

Em 2002, a distribuição espacial das Terras Indígenas e Unidades de Conservação no território amazônico desenhou um grande arco de proteção legal ao longo da fronteira política nacional indo desde Rondônia, passando pelo Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá, o que faz dessa nova malha territorial uma questão não só de âmbito interno à federação brasileira como, necessariamente, uma

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questão externa, de enorme valor estratégico nas relações mantidas pelo Brasil com a América Latina e o mundo.

Com efeito, algumas das Terras Indígenas delimitadas na Amazônia brasileira, tais como as dos Yanomami, em Roraima e Amazonas e as dos Tikuna, no Amazonas, envolvem territórios transfronteiriços na Venezuela, Colômbia e Peru, o que empresta à questão indígena um sentido não apenas nacional e sul-americano, mas também reforça, o caráter mundial dado ao patrimônio ambiental/cultural contido nessa região.

Nesse sentido, a Amazônia torna-se sujeita não só a pressões resultantes da tensão característica das relações estabelecidas no interior da federação brasileira, como de poderosas pressões políticas (e econômicas) internacionais em favor da conservação do meio ambiente amazônico.

No arco transfronteiriço localizam-se grande parte dos Municípios que possuem mais de 50% de seu território inserido em áreas sob legislação especial, sejam elas Terras Indígenas e/ou Unidades de Conservação. Municípios com extensos territórios, como São Gabriel da Cachoeira e Atalaia do Norte, no Estado do Amazonas, destacam-se, nesse conjunto, ao possuir mais de 75% de sua superfície no interior dessas áreas legalmente delimitadas. Por sua vez, o acelerado processo de divisão municipal tem concorrido, também, para ampliar o número de Municípios incluídos nessa faixa de elevado comprometimento territorial, como é o caso de Alto Alegre e Uiramutã, no Estado de Roraima. Tampouco é possível esquecer os conflitos decorrentes da necessidade da implantação de infraestrutura que ameaçam as Áreas Protegidas.

A consolidação da soberania brasileira nas fronteiras inter-nacionais da Amazônia é, portanto, desafiada também por restrições à decisão sobre o uso do território. Nas fronteiras internacionais,

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tais restrições são decorrência de fatores externos – narcotráfico, convulsões políticas nos países vizinhos, onde é crescente a presença militar dos EUA e também da União Européia – bem como de fato-res internos – justaposição de ordens administrativas e extensão de Áreas Protegidas que acentuam a problemática da exclusão de áreas do circuito produtivo e da eventual autonomia dos grupos indígenas e os conflitos a eles inerentes.

As Forças Armadas têm um papel fundamental no controle das fronteiras. Os Projetos Sipam/Sivam, recém desmembrados e o Programa Calha Norte, que apesar de suas dificuldades, têm tem sido em grande parte responsável pela presença constante do Estado bra-sileiro na Amazônia Setentrional, tendo sido recentemente resgatado com nova abordagem (PCN, 2001) são suas maiores expressões. As iniciativas para integração da Amazônia sul-americana são promis-soras, assim como a Operação Cobra, pois que a Polícia Federal e a Receita Federal têm função crescente no controle das fronteiras (Becker, 2004).

Para que as ações nas fronteiras sejam eficazes na manutenção da integridade do território nacional e na garantia da soberania no Estado brasileiro, é necessário promover o desenvolvimento ampliando, o conhecimento sobre a sua dinâmica, reconhecendo sua diferenciação, suas potencialidades e um esforço conjunto e coordenado das instituições governamentais sem descartar diferentes formas de parceria com a sociedade civil. Ao lado de políticas institucionalizadas, outras formas mais simples e especificamente dirigidas ao estreitamento de iniciativas locais podem ser decisivas. É o caso da consolidação das cidades gêmeas na fronteira (Coelho, 1992) e também o de um novo olhar sobre a questão indígena.

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3. PRessões de lideRanças PolítiCas mundiais, oRGanismos e Comunidades CientíFiCas inteRnaCionais

Nesta seção tomou-se a liberdade de alterar a ordem dos atores proposta. Isto porque esses atores estão intimamente associados em intrincada rede sob comando de lideranças políticas.

Essa questão também revela as conexões Direito Internacional - Direito Nacional, direito-coerção. Por um lado, as potências se coligam para pressionar, como no caso dos acordos internacionais e do PP-G7. Por outro, têm estratégias individuais, atuando através de múltiplos braços, entre os quais organismos internacionais nelas sediados ou submetidos à sua influência.

Por essa razão, serão aqui tratados, em conjunto, as lideranças políticas e os organismos internacionais, e em separado as comunidades científicas, que têm certa autonomia baseada na legitimidade da pesquisa.

lideranças Políticas e organismos internacionais

Contudo, a aliança temporária das potências nos acordos interna-cionais e no PP-G7, não eliminou suas estratégias individuais de trans-gressão para controle da Amazônia, que vale a pena desvelar. (Becker, B.(Becker, B. e Bartholo, R. 1999).

O traço marcante de diferenciação nas estratégias das potências é o diálogo direto ou não com as instituições nacionais. Enquanto a Alemanha, a Inglaterra e a Holanda atuam através de instituições governamentais e Organizações Não Governamentais, e têm, também, um diálogo com o Governo brasileiro, enquanto que, até recentemente, os EUA não dialo-gavam com o Governo brasileiro.

Em comum, as potências têm o fato de agir associando o poder

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financeiro através de seus organismos internacionais e de agendas associadas à pesquisa científica.

A maior liderança política é dos EUA, cuja ação configura uma estratégia de dupla face, que combina formas coercitivas veladas e explícitas.

(a) A coerção explícita: “War on Drugs” e o Sivam como resposta do Governo brasileiro.

A forma coercitiva mais explícita, de caráter paramilitar, é a tentativa de intervir diretamente no território, através da “War on Drugs” por ação da agência governamental Drug Enforcement Administration (DEA). Para tanto, sustentou a montagem de uma série de localidades de operação avançada nos países amazônicos vizinhos. Em resposta à essa ação, impedindo sua extensão à Amazônia brasileira e em nome da defesa do meio ambiente, os militares bra-sileiros criaram um grande projeto de controle regional baseado em tecnologia moderna, o Sipam/Sivam, que posteriormente se desmembrou, originando Sistemas de Proteção e de Vigilância da Amazônia.

Previsto para ser implantado em cinco anos, com um custo total de US$ 1,4 bilhões e necessitando de tecnologia avançada, esse Projeto fez acordo com a Raytheon, graças às facilidades de financiamento que acompanhavam a proposta americana. Pela primeira vez, após 15 anos, o Eximbank americano voltou a fazer um empréstimo ao Brasil, e com grandes facilidades, respondendo por 85% do financiamento. Foi através do financiamento do Projeto Sivam que os EUA conseguiram participar, de alguma forma, no War on Drugs (guerra às drogas) no Brasil. E a Amazônia entra, no século XXI sob o comando de um sofisticado sistema de informação. Após anos de controvérsia, finalmente, o sistema foi inaugurado em julho de 2002. A grande novidade foi colocar parte do sistema – Sipam – sob subordinação da Casa Civil da Presidência da República, enquanto o Sivam permaneceu subordinado ao Ministério da Defesa. Reconheceu-se, assim, a dupla face do sistema: a face militar, de vigilância do

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tráfego aéreo e fiscalização de superfície, fundamental para a segurança das fronteiras; e a face civil, que coleta, armazena e difunde dados e informações fundamentais para o conhecimento do território. Ademais, os radares e sensores do sistema têm grande alcance e monitorarão parte da Amazônia que não pertence ao Brasil, e representantes da Colômbia, Peru e Bolívia já manifestaram o interesse de seus países em receber sistematicamente informações colhidas pelo Sivam/Sipam. O sistema constitui, assim, um instrumento de grande potencial para intercâmbio com os países amazônicos, sobretudo em face da perspectiva de resgate do Tratado de Cooperação Amazônica e da a instalação de seu Secretariado permanentemente em Brasília.

(b) A coerção velada. No que tange diretamente à proteção da biodi-versidade predominam formas de coerção velada, associadas à uma segunda característica da estratégia norte-americana: a modesta atuação do Governo americano que, na verdade, age através de uma intrincada rede de agentes, aparentemente independentes, mas por ele comandado. São agências, univer-sidades, firmas e Ongs, além do Banco Mundial, que se constituem em braços civis do Governo americano, conectados diretamente às comunidades locais numa política que tem nítido contorno anti-Estado brasileiro.

A modéstia da The U. S. Agency for International Development (USAID) caracteriza a atuação do Governo americano na questão ambiental. Mas todo esforço por avaliar o significado relativo das ações americanas deve incluir os investimentos efetuados pelos múltiplos agentes citados.

A política de investimentos ambientais da USAID até recentemente se fez com projetos executados através de seus agentes e em convênio, sobretu-do, com Ongs, evitando repassar recursos para o Governo brasileiro através de canais componentes do Ministério das Relações Exteriores. A USAID apresenta duas justificativas para tal procedimento: o rompimento do acordo militar Brasil-EUA, que levou o Governo Carter à decisão de encerrar as ati-vidades da USAID no Brasil; e o fato do Brasil ter alterado sua posição para

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“advanced developing country” levando o Governo americano a deslocar o seu auxílio para países mais pobres da América Latina e África.

Em 1990, o Congresso norte-americano autorizou a USAID a imple-mentar um programa para a questão da mudança climática global (GCC) em países-chave, inclusive o Brasil e, em 1996, foi criado o Projeto de Gestão Ambiental Integrada, uma continuação do GCC focalizado na conservação da biodiversidade e energia renovável. Ambos enfatizam a redução do desmatamento e da emissão de CO2. E só em 1997 os EUA fizeram uma doação para o PP-G7.

A Tabela 5 resume o papel dos braços civis do Governo americano na Amazônia e seus parceiros brasileiros.

Tabela 5 - USAID’s Program Activities in the AmazonImplementing Agency Funding

1996 - 97Number of

ProjectsPartners

World Wildlife Found 6.788,570 9 IMAZON; Local Rural Works Union; FVA. Local communities

Woods Hole Research Center 2.922,581 4 USDA/Forest Service; IPAM Local community

The Nature Conservancy 867,000 * 1 IBAMA and SOS Amazonian

University of Florida (Gainesville) 3.004,226 2 Local communities

Smithsonian Institution 575,172 1 INPA

Tropical Forest Foundation 100,000 1 USDA/Forest Service

Contributions to Multilateral Environmental Programs

The World Bank 1 Obligated contribution to the Rainforest Trust Fund G 7

The World Bank 1 G-7; INPA and Museu GoeldiSource: The Agency for International Development USAID/BRAZIL ENVIROMENTAL PROGRAM - USAID, 1997* Funding includes one project outside the Amazon.** Contribution given by President Clinton in October 1997, to the science-technology component of G-7.

Um dos braços civis dos EUA é a World Wildlife Fund (WWF),

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em aliança com a União Européia. Quase 95% do financiamento de projetos da WWF no Brasil, até meados dos anos noventa, se originaram dos EUA e, uma pequena parte, do Canadá, mas hoje as fontes da Europa tendem a superar estes países. Em 1998, o total de recursos para a proteção do meio ambiente destinados à América Latina e ao Caribe pela WWF foi de 20 milhões de dólares, sendo 5 milhões só para o Brasil (aproximadamente 50% correspondendo a fontes dos EUA e Canadá, e 50% a fontes européias). O novo quadro está associado a uma redefinição estratégica da WWF que, para superar a dispersão de ações, reduziu seus programas e projetos principais para quatro, visando otimizar técnicos e efeitos. Tal reorientação é fruto de um trabalho de três anos de uma equipe de mais de 200 cientistas, que dividiu o planeta em 800 regiões, definidas pela densidade de interações ecológicas, priorizando as chamadas “Global 200” mais importantes. A América Latina e o Caribe contêm 53 dessas ecorregiões.

A passagem do Brasil à categoria de organização nacional da WWF, em 1996, representou a transferência de boa parte dos projetos para o país, além de uma reorientação de postura fundamental: não permanecer apenas na denúncia, mas mostrar alternativas.

A face ambiental do Banco Mundial (BIRD) é outro componente da coerção velada dos EUA. A implantação de uma extensa malha constituída de múltiplas redes e projetos de desenvolvimento na década de 1970, no Brasil, foi possível graças aos empréstimos do Banco Mundial. Mas na década de 1980, o Banco deixou de apoiar projetos governamentais de desenvolvimento e começou a financiar projetos ambientais, sendo hoje o maior financiador para conservação e gestão ambiental no Brasil e nos países periféricos.

Os fundos de financiamento têm papel central na definição e implantação da agenda ambiental do BIRD que, no Brasil, está voltado

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para três áreas: desenvolvimento sustentável, conservação da biodiversidade e mudanças climáticas.

Na área de biodiversidade, o BIRD é uma das agências financiadoras do Fundo Mundial para o Meio Ambiente (Global Environment Facility - GEF), financia projetos visando a conservação da diversidade, redu-ção de emissões e substâncias que afetam o clima e gestão de águas internacionais. Dois projetos estão em execução com apoio do GEF: o PROBIO e o FUNBIO. O Projeto de Conservação e Utilização Susten-tável da Biodiversidade Brasileira (PROBIO) realizou avaliações em nível de bioma, indicando 900 áreas prioritárias para conservação da biodiversidade no país, 510 delas consideradas de extrema importância, que influenciam no delineamento e consolidação de políticas públicas. Na Amazônia, destacam-se os Projetos ARPA e Corredores Ecológicos; a influência na concepção da Estratégia Nacional/Política Nacional de Biodiversidade “através do engajamento político, apoio institucional e capacitação técnica e gerencial das equipes vinculadas ao MMA com essa atribuição” (Moreira, 2002), bem como na Política Nacional de Florestas; a influência e a ação para a elaboração do Projeto de Lei que normatiza o acesso a Recursos Genéticos, em discussão no Legislativo. Já o Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (FUNBIO) foi criado como uma organização independente para captação, potencialização e distri-buição de recursos para projetos nessa temática.

A União Européia é o segundo maior contribuinte do PP-G7. Contribui com cerca de 23% do total e acompanha, de forma velada, as pressões dos EUA, apesar de procurar transmitir uma imagem de postura diferente e mesmo de conflito. Este fato é corroborado, por exemplo, no Plano Colômbia, do qual participa. Individualmente, a Alemanha é o Estado mais atuante na região, guardando autonomia em relação aos EUA. Como maior contribuinte do PP-G7, fornece 41% do total, sua cooperação foi decisiva na demarcação das Terras Indígenas, nos projetos sobre a

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

várzea amazônica, e seus organismos básicos de ação são o Gesellsschaft für Technische Zussammenarbeit (GTZ) e o Kreditanstalt Für Wiederausban (KFW) sempre associados, demonstrando a estreita conexão entre a coo-peração técnica e o banco de financiamento, respectivamente.

Com atuação de menor visibilidade, segue-se a Inglaterra, que acompanha a política norte-americana. O organismo através do qual atua é o Department For International Development (DFID), antiga Overseas Development Agency. Realizando doações para áreas protegidas voltadas para pesquisa, mudou seu foco nos últimos três anos para a erradicação da pobreza e, finalmente, em 2003, retirou sua atuação do Brasil. A França atua via comunidade científica através do Centre de Coopération Internationale en Recherche Agronomique pour le Développment (CIRAD) e do Institut de Recherches pour le Développment (IRD), antiga Office pour la Recherche Scientiphique et Technique d’Outremer (ORSTOM). A atuação do Japão é explícita através da Japanese Agency for International Cooperation (JAICA), sobretudo em projetos de compra de terras e colonização (inclusive com japoneses) no cerrado, e velada na apropriação da biodiversidade.

Não há como não registrar o quão significativa é a mudança de nome, na década de 1990, das antigas agências de controle das colônias ultramarinas da Inglaterra e da França, hoje organismos de proteção ambiental e de desenvolvimento sustentável.

Via de regra, os organismos citados envolvem pesquisa, gerando verdadeiros “paraísos experimentais” para cientistas. Tem-se como exemplo o DFID, que participa com a WWF da Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Mamirauá, já referida.

Caberia ainda, nesta seção, lembrar a importância das grandes empresas farmacêuticas multinacionais, também elas sediadas nos países líderes citados, interessados diretamente no banco genético. Apesar de tensões entre si, elas formam de fato, uma coalizão de interesses. O Programa Brasileiro de Ecologia Molecular da Biodiversidade

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Amazônica (PROBEM), em suas negociações, comprovou o interesse das empresas norte-americanas, alemãs, suíças e inglesas. E a Croda, famosa multinacional inglesa, já está instalada em Manaus produzindo extratos vegetais.

Pressões de Comunidades Científicas: a Cooperação internacional

Por várias vezes neste texto, afirmou-se que informação e conhe-cimento científico e tecnológico situam-se no cerne do poder contempo-râneo. A exemplo dessa afirmativa é o recente incidente provocado pelos EUA quanto à inspeção rotineira da Agência Internacional de Energia Atômica nas Indústrias Nucleares do Brasil, localizadas em Resende, no Estado do Rio de Janeiro. Tendo o Brasil muito corretamente negado a vistoria das ultracentrífugas responsáveis pela tecnologia brasileira de enriquecimento do urânio, foi comparado, pelos EUA, ao “eixo do mal”.

Aliás, o incidente congrega vários elementos que compõem afrontas à soberania contemporaneamente: além da disputa por segredos tecnológicos, influência na opinião pública mundial contra o Brasil e pressão visando o desgaste político da posição brasileira nas negociações da ALCA.

Na Amazônia, os interesses mundiais em Ciência e Tecnologia (C&T) atuam sob duas formas de pressões:

a) A forma oficial explícita, constituída de parcerias entre comu-nidades científicas institucionalizadas pelos governos dos respectivos parceiros, seja em grandes projetos multilaterais, seja em projetos bilaterais;

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b) A forma não oficial, sob a rubrica de auxílio a projetos para proteção da natureza, mas envolvendo pesquisadores, desde projetos financiados por agências de desenvolvimento e bancos estrangeiros, doações para projetos comunitários, à biopirataria.

A pressão institucionalizada de comunidades científicas corres-ponde à cooperação internacional. É difícil obter informação e analisar pressões advindas dos projetos bilaterais entre pesquisadores de insti-tuições nacionais e estrangeiras, devido ao seu grande número e à sua fragmentação temática e geográfica. Ao que tudo indica, correspondem predominantemente a interesses legítimos dos pesquisadores.

Já os grandes projetos multilaterais têm objetivo explícito de ampliar a informação e o conhecimento sobre o meio ambiente amazônico para benefício do planeta e, ao mesmo tempo, são instrumentos que fortalecem a influência e a liderança dos parceiros internacionais, exercendo pressões através de dois elementos associados: o financiamento da pesquisa, extremamente sedutor num país que carece de recursos para esse fim, e a imposição da agenda científica assegurada pelos termos de referência dos projetos.

Dois grandes projetos multilaterais se destacam: o PP-G7, e o Large Scale Biosphere-Atmosphere Experiment in Amazonia (LBA). Em ambos, apesar da multilateralidade, a liderança é dos EUA.

• O PP-G7, como referido em seção anterior, inicialmente inclui em seus múltiplos componentes o Subprograma de Ciência e Tecnologia com dois projetos: Centros de Ciência (CC) e Projetos de Pesquisa Dirigida (PPD) que, posteriormente, foram integrados (Becker 2002). O objetivo inicial do Subprograma era promover a geração e disseminação de conhecimentos científicos e tecnológicos relevantes para a conservação e o desenvolvimento na região Amazônica.

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Coordenado pela Secretaria Técnica do Ministério da Ciência e Tecnologia, e tendo na Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) seu agente financeiro, o subprograma de C&T foi um dos que mais rapidamente executou as atividades previstas e utilizou os recursos a ele alocados. Em 1997, doações suplementares foram comprometidas pelos doadores e em 1998 o Governo brasileiro alocou recursos extras, excedendo de muito a contrapartida prevista.

O objetivo dos investimentos nos CC foi o fortalecimento institucional através de melhoria de infra-estrutura e do planejamento estratégico em dois centros regionais eleitos – o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e o Museu Paraense Emilio Goeldi (MPEG). Em 1990, o projeto foi dado como concluído. Quanto aos PPD, duas chamadas foram realizadas, uma em 1995 e outra em 1998.

Os investimentos nos CC foram muito exitosos, permitindo-lhes intensificar o número de seus doutores, sua produção, suas parcerias e alcançar um padrão científico de nível internacional. Os PPD, contudo, não tiveram o mesmo êxito. Dentre as restrições a eles apresentadas destacam-se a falta de integração com os objetivos do PP-G7 e a necessidade de uma maior consideração. Enfim, o componente PPD teve como principal problema o fato de não ter sido efetivamente “dirigido”, de acordo com a agenda do PP-G7, constituindo reclamação contínua dos doadores.

Em face dos problemas apontados e da mudança no contexto global e nos interesses dos doadores e do BIRD, estabeleceu-se uma nova estratégia em 2001, com vistas à sua Fase II. Reconhecendo grandes mudanças nas políticas brasileiras relacionadas às florestas, a nova estratégia possui dois pontos básicos: reduz a ênfase preservacionista, reconhecendo a importância do desenvolvimento das populações que vivem na floresta, propondo que o sucesso do Programa não seja medido apenas pela redução da taxa de desmatamento, mas sim por ampliação de sua escala de atuação e de sua influência nas políticas públicas; enfatiza

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a descentralização, envolvendo não só as Ongs, mas os Estados e Municípios, bem como o setor privado. Ao mesmo tempo, contraditoriamente, insistiu no discurso de transferir para o Governo brasileiro o “ownership” do Programa. Configurou-se então um quadro de iniciativas autônomas que dificultaram um aprendizado cumulativo das pesquisas e uma ação coordenada pelo Ministério da Ciência e da Tecnologia (MCT). Enquanto se prepara o terreno para o Programa, o Banco e os doadores lideram diretamente com diferentes segmentos sociais.

Não há como negar que o PP-G7 contribuiu com a C&T regional, sobretudo, com o fortalecimento dos CC. Mas os critérios de financiamento não são condizentes com a implantação de uma estratégia articulada de C&T na Amazônia. Por um lado, cessou o financiamento dos CC e, por outro, várias fontes financiam um mesmo projeto por várias vezes. Segundo interesses específicos dos doadores, nem sempre condizentes com as prioridades regionais. Por sua vez, a definição das prioridades regionais de pesquisa é prejudicada pela multiplicidade de demandas provenientes de segmentos governamentais, institucionais e dos grandes programas regionais.

• O segundo grande projeto multilateral de cooperação internacional é o LBA. Recentemente implantado, o LBA expressa a consolidação de um processo de globalização da pesquisa. O mais flagrante elemento desse processo é o Programa Global Environmental Change sob comando do International Council of Scientific Unions (ICSU) que se situa acima de todas as Uniões Internacionais de pesquisa de diferentes campos do conhecimento.

A ênfase do grande Programa Global Environmental Change é dada a pesquisas sobre o meio ambiente e biodiversidade, em múltiplos programas.

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Só recentemente a dimensão humana foi nele incorporada. As pesquisas em âmbito global através de parcerias constituem, sem dúvida, uma inovação necessária ao avanço no conhecimento sobre o planeta. Contudo, duas questões se colocam do ponto de vista da autonomia do financiamento e da imposição da agenda: a fragmentação das pesquisas é maior em virtude da sua própria escala de abrangência em termos geográficos e de temas; os pesquisadores em parceria, são “pinçados” e engajados em projetos globais, nem sempre coincidentes com os respectivos interesses nacionais, muitas vezes sem ter plena consciência do contexto em que estão inseridos. O controle da informação é ponto nevrálgico da cooperação internacional, pois os parceiros têm informação apenas parcial, sobre as suas participações, e não sobre o projeto total resultante de múltiplas parcerias.

Enfim, a cooperação internacional é hoje imprescindível para o desenvolvimento de C&T na Amazônia, como no mundo, em geral. No caso em pauta, assumiu autonomia excessiva, em parte porque não foi bem negociada na definição da agenda e no seu financiamento.

Há, portanto, que se efetuar o enquadramento da cooperação internacional.

Embora imprescindível ao desenvolvimento da C&T na Amazônia, assumiu na região tentando compatibilizar a estratégia de participação da comunidade científica internacional com o desenvolvimento de projetos também de interesse do Brasil e de suas instituições. Para tanto, algumas estratégias podem ser sugeridas:

• O controle da informação. Se os projetos, inseridos em programas internacionais e/ou globais têm informação apenas parcial da sua participação, as múltiplas informações e conhecimentos parciais são agregados alhures, o acesso à informação e ao conhecimento do conjunto do projeto deve ser exigido em geral e em cada projeto, estabelecendo-se as regras das parcerias;

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

• A conscientização dos pesquisadores sobre a globalização de pesquisas é imprescindível;

• Nada poderá ser feito sem o fortalecimento do MCT, incluindo a negociação, a tomada de decisão, a definição da agenda e o apoio a projetos que persigam as prioridades estabelecidas.

4. PRessões inteRnas/exteRnas de oRGanizações não GoveRnamentais

A interconexão das arenas políticas nacional e internacional, e das faces internas/externas da soberania tem sua manifestação mais clara nas Organizações Não-Governamentais (Ongs), que, na Amazônia estão presentes em todas as outras formas de restrições e pressões assinaladas. Via de regra, atuam em conjunto com outros atores, particularmente as organizações religiosas, que podem ou não estar presentes.

Constituem a forma não oficial de acesso à informação como apontado na seção anterior, atuando em projetos elaborados a partir “de baixo”. E, mais importante, atuam diretamente junto à população, constituindo forte influência política, e não divulgam a informação sobre seus parceiros e sobre os recursos que recebem. À semelhança da comunidade científica estrangeira, alcançaram autonomia excessiva na região.

É difícil, portanto, conhecer o número exato de Ongs que atuam na Amazônia, suas origens e suas funções. A partir de estudos pioneiros de Fernandes, R. C. e Carneiro, L. P. (1991) e Landim, L. (1993), é possível, assinalar para o universo de entidades, algumas características básicas reveladoras de seu papel no início da década de 1990.

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1 - O caráter recente e dinâmico, manifesto no enorme cresci-mento a partir da década de 1960 e, particularmente nos anos 80 (pelos menos 50% do total são posteriores a 1980), quando o crescimento revela não apenas a criação de novas como a resemantização de antigas como “ecológicas ou ambientalistas”.

2 - A independência em relação ao Estado. Tem o papel de mediadoras, pequenas organizações microarticuladoras que circulam em espaços fortemente condicionados pela força de organizações maiores, sem fins lucrativos, mas que não se confundem com institui-ções filantrópicas. Ser pequeno é um valor em termos de eficiência, agilidade e autenticidade afirmada a vantagem comparativa das micro organizações frente às grandes estruturas. A maioria identifica como suas principais funções as de assessoria, seguida de pesquisa e formação/educação. Neste universo variado, o grupo que mais se aproxima de um conjunto estruturado é o de serviços de assessoria e apoio ao Movimento Popular (AMP).

3 - A organização em redes transnacionais. Sua existência está condicionada à cooperação internacional na medida em que são independentes do Estado, estão na contramão do mercado e não são instituições filantrópicas. São parcerias voltadas para dilemas globais, tratando-se de uma rede de redes, de abrangência planetária. As articulações dominantes, estabelecidas segundo a importância dos financiamentos recebidos para 102 Ongs, são: Alemanha (57), �olanda (53), EUA (42), Inglaterra (31), Canadá (28), França (27), Suíça (20); entre 15 a 10, figuram Irlanda, Itália e Bélgica, e abaixo de 10 a Suécia, Áustria, Espanha, Dinamarca, Portugal, Finlândia e Luxemburgo.

4 - O predomínio de agências protestantes é inconteste. Têm grande importância orçamentária para quase a metade das Ongs - 45% da amostra

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

de 102 Ongs – enquanto as agências católicas têm importância apenas para 25% da amostra.

Ao que tudo indica, trata-se de um novo ator versátil, capaz de agilizar - imprimir velocidade - à transformação, contornando a rigidez da máquina do Estado, com quem pode ou não realizar parceria.

Sua existência hoje continua condicionada à cooperação interna-cional assim como persiste sua dupla face – apoio – à proteção ao meio ambiente e às populações excluídas e, por outro lado, independência do Estado e acesso à informação sobre a natureza amazônica e o saber local. Pelo menos duas observações devem ser feitas quanto a essa sensível questão, a seguir discutidas.

a articulação das Faces interna/externa da soberania

A proliferação de Ongs na Amazônia foi possível, em grande parte, porque encontra um terreno fértil para sua atuação, decorrente dos conflitos de terra e de território nas décadas de 1970 e 1980 que geraram fortes movimentos sociais das populações locais, e decorrente também da ausência do Estado em face das dificuldades de controle de tão extensa região.

Resultam elas da combinação de processos e atores atuantes em várias escalas geográficas, a saber:

a) A resistência de populações tradicionais à expropriação deA resistência de populações tradicionais à expropriação de seus territórios e identidades. A expressão maior dessa resistência é Chico Mendes, líder do “empate” dos seringueiros, mas não menos importantes foram as reivindicações de índios, ribeirinhos e de ex-colonos que se endogeneizaram na região;

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b) O esgotamento do nacional-desenvolvimentismo e a crise doO esgotamento do nacional-desenvolvimentismo e a crise do Estado brasileiro. O ano de 1985 é um marco desse processo, quando o último grande projeto associado à doutrina do Desenvolvimento e Segurança foi implantado Figura 4 o Projeto Calha Norte – ao mesmo tempo em que se cria o Conselho Nacional dos Seringueiros, símbolo da resistência social;

c) A pressão ambientalista nacional e internacional, contraA pressão ambientalista nacional e internacional, contra o uso predatório da natureza e por um novo padrão de desenvolvi-mento, sustentável, novo e poderoso agente de mudanças através da cooperação internacional financeira e técnica, presente em todos os projetos ambientalistas;

d) A resposta do Governo brasileiro a essas pressões atravésA resposta do Governo brasileiro a essas pressões através da aceitação de projetos e programas em parceria com atores inter-nacionais, da criação do Ministério do Meio Ambiente (1993) e de uma política ambiental.

Vale ressaltar a importância da organização da sociedade civil nesse processo. Os conflitos das décadas de 70 e 80 se transfiguraram, organizando-se em projetos de desenvolvimento conservacionistas, elaborados a partir “de baixo”. Para sua sobrevivência, os grupos sociais utilizam redes transnacionais, que viabilizam parcerias exter-nas com Ongs, igrejas, partidos políticos e governos. Em conjunto, destacam-se duas novas entidades na organização da sociedade civil: o Grupo de Trabalho Amazônico (GTA) que agrega mais de 300 asso-ciações, e a Confederação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira ( COIAB) com 44 associações.

Ao contrário da política das décadas anteriores, a política ambiental visa o desenvolvimento sustentável, fundamentando-se numa ação descentralizada e participativa para proteção da natureza, uso

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sustentável dos recursos naturais e melhoria da qualidade de vida das populações locais. Certamente, há também interesses de controle da informação sobre o saber local e o próprio território pelos parceiros nacionais e internacionais.

Em nível territorial, as ações ambientalistas orientam-se para um modelo endógeno. Se a origem dessa tendência reside nos movimentos sociais, foi o PP-G7 que se transformou no grande indutor dos projetos endógenos, através de uma estratégia descentralizada que envolve as principais reivindicações sociais.

Iniciativas inovadoras de populações tradicionais tiveram como objetivo garantir a sobrevivência mediante a manutenção do acesso à terra e à floresta, e a Igreja Católica contribuiu decisivamente para esse propósito, seguida do apoio dos sindicatos. A proteção da biodiversidade tornou-se um segundo objetivo, explícito, à medida que recebeu apoio variado de Ongs, organizações religiosas e agências governamentais, internacionais. Nesse processo, transformaram-se em “sentinelas da floresta”, mas também geraram novas estratégias de posse e gestão da terra, novas formas de uso e proteção da biodiversidade, e mesmo novos conceitos. A prática social precedendo, mesmo, a investigação científica. Hoje, tais iniciativas tendem também a se consolidar.

Informações obtidas em pesquisa direta, no campo, permitem exemplificar a ação das Ongs junto às populações locais, valendo registrar que, via de regra, sua presença se dá em conjunto com outros atores internacionais.

No caso dos seringueiros, o movimento social se consolidou em 1985, com a criação do Conselho Nacional dos Seringueiros. A Resex Chico Mendes (AC) contou a partir da década de 1980 com novos aliados e, em 1994, tinha os seguintes convênios: Fundação Mc Arthur, Health Unlimited, Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), International Development Research Centre (IDRC), Oxfam, Miserior,

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Fundação Konrad Adenauer, WWF, Embaixadas da Suíça e da Áustria, além de colaborações de organizações nacionais como o Bndes, a USP e a Unicamp, e a Fundação Gaia (Murrieta e Rueda, 1995).

É nos projetos comunitários alternativos da produção familiar, hoje denominado de modelo socioambiental, que se pode verificar a atuação complexa das Ongs com outros atores, ou seja, das redes de parcerias (Becker, 2002).

• Predomínio das relações locais-globais no contato da floresta com áreas povoadas.

Duas situações se incluem nesse modelo: o vale do Rio Acre e Silves, no Estado do Amazonas.

O Estado do Acre é um dos que apresenta maior concentração de projetos na Amazônia. Sua localização estratégica como baluarte de defesa da floresta, no contato com a frente mais avançada da expansão colonizadora influiu na resistência dos seringueiros e ex-colonos à sua expropriação, e atraiu os interesses ambientalistas legítimos (e geopolíticos...), ainda mais considerando que se trata de uma fronteira política com outros países amazônicos.

Dois elementos se destacam no vale do Rio Acre:

1 - uma cadeia hierarquizada e complexa das redes de relações, identificando-se os produtores organizados em associações, os parceiros externos (estaduais, nacionais e internacionais) e as organizações inter-mediárias entre estes e os produtores;

2 – a força da organização local, expressa na multiplicidade de associações e, sobretudo, na presença daquelas organizações intermediárias, legado da luta dos seringueiros, do trabalho de base da Igreja Católica, e hoje, do forte apoio do governo estadual.

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

As organizações intermediárias são importantes mediadoras das redes de parcerias, para elas convergindo grande parte do apoio financeiro e técnico que é repassado para as associações de produtores. São de natureza não governamental, como o Centro de Trabalhadores da Amazônia (CTA), e o Grupo de Pesquisa e Extensão do Acre (PESACRE), ou ainda associativa, no caso da Central de Associações de Pequenos Produtores de Epitaciolândia e Brasiléia (CAPEB). A força sindical e representativa tem peso importante. Sua maior expressão é o Conselho Nacional de Seringueiros (CNS), com forte influência no Conselho Nacional das Populações Tradicionais (CNPT), integrante do Ibama, e na Resex Xapuri (locus de Chico Mendes), importante núcleo extrativista. Os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais de várias cidades apóiam outras associações. Vale registrar que algumas associações alcançaram dinamismo suficiente para atrair diretamente alguns parceiros, sem mediação, inclusive empresários industriais.

O PESACRE tem cinco parceiros internacionais: USAID, Universidade da Flórida através do Programa de Proteção do Meio Ambiente e das Comunidades Indígenas (PMACI), Unicef, PP-G7 (nacional/internacional) e o Comité Catholique Contre la Faim et pour le Développement (CCFD). As relações em nível nacional se efetuam com o Incra, Ibama e Embrapa, dado o caráter ambiental dos projetos, e em nível regional com o Basa (Banco da Amazônia, S. A.). Ressalta-se as importantes relações com instituições estaduais locais, envolvendo o governo do Acre, a Universidade do Acre, a Ong SOS Amazônia, e o próprio CTA, além da Igreja Católica e a Agroindústria Brial.

O CTA, sediado em Rio Branco, através do Projeto de Assentamento Agro-Extrativista (PAE) em Porto Dias realiza a mediação com uma associação de seringueiros no Baixo Acre. Cinco de seus parceiros são internacionais: Forest Stewardship Council (FSC), através do

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Imaflora; PP-G7; BID; WWF e a organização religiosa holandesa Novibe. O Incra e o MMA são parceiros nacionais, o Grupo de Trabalho Amazônico (GTA) é em nível regional, e em nível estadual a Fundação de Tecnologia do Estado do Acre (Funtac) e a Igreja Católica. Mediadora no Alto Acre, a CAPEB conta com o apoio internacional da WWF e da Miserior, ambas da Alemanha; do CNPT, em nível nacional; da Nutrimetal (PA), em nível regional; e da Secretaria de Agricultura, em nível local, articulada a três associações de pequenos produtores e seringueiros. Porém, a mais importante organização mediadora no Alto Acre talvez seja a Associação Extrativista da Resex Chico Mendes, de Xapuri, que congrega quase cinqüenta associações de produtores em três associações maiores: Amorex, Amoreb e Amoreab.

É digna de nota a presença pouco expressiva das relações na escala nacional, que se resumem ao CNPT, Incra, Ibama, Embrapa (em alguns projetos apenas) e a Secretaria de Coordenação da Amazônia/Ministério do Meio Ambiente (SCA/MMA), bem como na escala regional, representada pelo GTA, CNS e o Basa. Em contrapartida, os apoios estaduais/locais são bastante expressivos, envolvendo não só os núcleos mediadores como também o governo e a Universidade do Acre, sindicatos, igreja, Funtac, Ongs (incluindo a SOS Amazônia), prefeituras e mesmo o empresariado industrial.

É possível visualizar, portanto, o predomínio de redes de relações locais/globais no Vale do Rio Acre contornando as escalas regionais e, sobretudo, a nacional. Deve-se reforçar, contudo, que entre as forças locais o governo estadual é parceiro fundamental.

A cidade de Silves, no Amazonas, evoluiu sobre um sítio peculiar: uma ilha fluvial. A defesa dos recursos pesqueiros ameaçados pelos grandes barcos de pesca comercial – os geleiros – gerou o conflito e a resistência dos ribeirinhos. A partir de movimentos sociais fundou-se a Ong Associação de Silves para Preservação Ambiental e Cultural

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

(ASPAC), que conseguiu pressionar o governo municipal para criar reservas ecológicas nos rios e, finalmente, foi reconhecida como iniciativa promissora para o turismo ecológico. As redes de parceria tiveram importante papel no pequeno empreendimento turístico gerido pela população local e por elas denominado de “ecoturismo caboclo”. O apoio básico na resistência inicial, durante a década de 1980, foi dado pela Igreja Católica e pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Silves, a que se somou o apoio da Prefeitura local. Logo a iniciativa atraiu outros parceiros: em nível internacional o PP-G7, o WWF, os Governos da Áustria e da Suécia (doações) e o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), que embora com sede em Santarém e Belém tem importantes aportes técnicos e financeiros internacionais; em nível nacional o Ibama; no regional o GTA e o Instituto de Permacultura da Amazônia.

• Parcerias Bem Distribuídas em Áreas de Povoamento Consolidado (RO).

Um dos mais bem sucedidos e conhecidos projetos alternativos é o Reflorestamento Econômico Consorciado e Adensado (RECA), localizado em Rondônia, afetado intensamente pela colonização. A iniciativa contou com redes de relações bastante variadas. Dentre os parceiros em nível internacional, além do PP-G7 e do PMACI, a Igreja Católica tem papel crucial na implementação do projeto: CCFD (França) e o CEBEMO (Holanda), tendo como mediador o CERES (RJ) para o financiamento holandês. A Fundação Ford apoiou também pesquisas realizadas pela Universidade do Acre em colaboração com parceiros nacionais – Incra, o CNPT, o Ibama – e regionais como o CNS e o Basa. Possui também financiamento do Fundo Constitucional de Financiamento do Norte (FNO) e apoio do Ministério da Agricultura (Denacoop – Departamento de Cooperativismo e Associativismo

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Rural) em nível nacional, bem como do PESACRE, das Ongs Poema (regional) e SOS Amazônia (local). No final do ano 2000, agregava 260 associados, e mais 50 se candidatavam à Associação.

As redes de relações no RECA parecem bem distribuídas quanto às diversas escalas geográficas: seis parceiros internacionais, seis nacionais, três regionais, ressaltando as relações com organizações do Estado do Acre.

• A força das parcerias estaduais-locais em áreas florestais.

Tratam-se de redes mais simples, as duas situações analisa-das: o Vale do Purus no Acre, a outra localizada em plena floresta no Município de Laranjal do Jari, no Amapá.

No Vale do Purus (Município de Sena Madureira - AC) não há até o momento parceria nem com os mediadores estaduais – CTA e PESACRE – nem com o espaço global. Pelo contrário, ressaltam as parcerias com a Prefeitura local, com o Governo estadual – através de suas secretarias de Agricultura e Extrativismo (Seater) e de Produ-ção; e com as instituições nacionais - Incra, Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater) – e instituições nacionais de fi-nanciamento ao pequeno produtor – Programa Nacional de Fortale-cimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e FNO. Sena Madureira é sede da primeira usina de processamento da borracha para fabricação de pneus Pirelli (SP). As redes de relações são, portanto, bem menos complexas dominando as relações locais/nacionais.

As Resexs de Laranjal do Jari (AP), à margem do avanço da colonização e das estradas, permanecem com base no extrativismo. As duas Resex – Cooperativa Mista Extrativista de Agricultores de Laranjal do Jari (Comaja) e Cooperativa Mista Agroextrativista do Rio Iratapuru (Comaru) – têm estrutura semelhante – comandam duas

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associações, são articuladas entre si – e, ao contrário do Acre, onde poderosas centrais realizam a mediação com os produtores, nelas a ação do governo estadual se faz diretamente com as Resex, e são poucas as redes de parceiros.

Tais levantamentos permitem identificar três modelos quanto ao predomínio das relações locais-globais, estaduais-locais e bem distribuídas, ficando patente que as relações com a União são rela-tivamente mais reduzidas, em face das parcerias internacionais e de âmbito local (Figura 4).

A análise desses projetos revela que a iniciativa política foi o germe dos projetos, e que as redes de parcerias têm papel fundamental na mobilização da população e na sua existência através do apoio técnico e financeiro. Colocam-se dois problemas quanto ao modelo socioambiental: a) as redes de parceria não favorecem a sua consoli-dação como empreendimento econômico sustentável, deixando o ônus da implantação da infra-estrutura e da agregação de valor à produção para o Estado brasileiro; b) o pretendido desenvolvimento endógeno é desafiado pelo assistencialismo provido pelos parceiros, colocando em dúvida o grau de autonomia alcançado pelas populações.

Enfim, o modelo socioambiental é um sucesso político, mas não econômico, e não pode ser reconhecido como solução geral para o desenvolvimento da Amazônia. Tampouco há que tratá-lo como um corpo estranho, mas sim como uma inovação cujo isolamento deve ser rompido mediante sua articulação com as políticas públicas federais, regionais e estaduais.

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Figura 4 - Modelos de Redes e Parcerias

As-sociações/

Cooperativas

Relações Globais-LocaisSilves/Vale do Acre

Relações Estaduais-LocaisVale do Purus/ Amapá

Relações Bem DistribuídasRECA - Reflorestamento Econômico Consorciado e Adesado

Organização: Bertha BeckerElaboração: Claudio Stenner

Nacional Estadual

Regional

Internacional TrabalhadorAssociações/Cooperativas

Local(Associações Mediadoras)

Regional

Trabalhador

Nacional

Estadual

Internacional

Regional

Nacional Internacional

Associações/Cooperativas Trabalhador

Local(Associações Mediadoras)

Modelos de Redes de Parcerias

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Vale registrar o significativo movimento social que vem ocorrendo no Acre na fronteira tripartite Brasil-Peru-Bolívia, com a participação de Ongs e de pesquisadores nacionais e estrangeiros.

A fronteira agrícola do sudoeste da Amazônia, ao se expandir em direção à fronteira da Bolívia e penetrar na faixa boliviana, criou uma nova realidade transfronteiriça, gerando uma dinâmica de fluxos entre as comunidades localizadas em cada um dos lados. Assis Brasil geminou-se a Iñapi (ou Inãpari) no Peru e Brasiléia a Cubija, na Bolívia, onde brasileiros, moradores dos Municípios de Brasiléia e Epitaciolândia, vão trabalhar.

É grande também a atividade de extrativismo, feita por brasileiros em áreas bolivianas, gerando um fluxo permanente de pessoas e de negócios entre os dois países. Pelo fato de Cubija constituir uma zona de livre comércio, a população brasileira se desloca para o outro lado a fim de adquirir produtos importados e, com isso, o comércio do lado brasileiro acaba sendo prejudicado com a concorrência.

Na verdade, por sua localização, o Acre está mais isolado da Ama-zônia brasileira do que do Peru e da Bolívia. Num raio de 750 km, há uma população rarefeita em direção a Manaus a partir do Acre, enquanto a população vizinha de Madre de Diós (Peru) e Pando (Bolívia) é muito maior. As regiões de Madre de Diós, Acre e Pando, formam, assim, o coração da Amazônia Sul-Ocidental, cujas iniciais formam a sigla MAP (Brown F. e Brilhante, S, 2002), território que é afetado profundamente pela pobreza, enfermidades e analfabetismo. Nesse espaço, avanços nos planos de integração regional geram crescentes demandas sobre os recursos naturais e provocam degradação dos ecossistemas.

Para amenizar esta situação, busca-se a integração de iniciativas inovadoras, visando o desenvolvimento e a proteção ambiental. Uma primeira reunião se realizou em Rio Branco, em 2000 (MAP I), e a segunda em Puerto Maldonado, em 2001 (MAP II). No ano de 2002, o

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MAP III se realizou em Cobija, quando se buscaram novos caminhos baseados nos princípios do desenvolvimento sustentável contidos nos grandes fóruns sobre a questão, bem como no Tratado de Cooperação Amazônica e na Declaração dos Direitos Humanos (MAP, 2002).

O MAP III congregou 160 participantes dos três países, com 53 representantes de instituições estaduais, universitárias, Ongs e organizações internacionais. A Carta de Cobija, dirigida aos governos e às sociedades, apresenta 20 recomendações. A par do intercâmbio de informações, do envolvimento de técnicos, da capacitação pessoal e de projetos con-juntos, por meio de acordos de longo prazo que promovam a integra-ção trinacional, essa carta propõe a criação de instituições regulares, como o plano trinacional de manejo integral da Bacia do Rio Acre, o Instituto Trinacional de Direito Amazônico, a Universidade de Floresta e um centro trinacional para celebrar as manifestações étnicas da região na confluência de Assis Brasil, Bolpebra e Inãpari.

É, portanto, na fronteira acreana que parecem mais avançadas as iniciativas locais para a integração continental.

ongs e ongs

Sob a bandeira da proteção ambiental, ou mecanismos suposta-mente compensatórios pelo não uso do capital (seqüestro do carbono), ou ainda visando o desenvolvimento sustentável, as Ongs não constituem um todo homogêneo; pelo contrário, diferem quanto ao seu objetivo, modo de atuação e transparência. Tal distinção é fundamental para embasar uma estratégia para lidar com elas. Via de regra, a sua diferenciação se baseia no fato de serem Ongs de pesquisa ou não, mas esta classificação não é satisfatória do ponto de vista da soberania. Não dispondo de documentação para efetuar uma classificação adequada, é possível propor como critério,

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

o grau de interferência externa na definição e implementação de suas agendas. Segundo esse critério, distinguem-se alguns exemplos:

1) Ongs cuja agenda é diretamente dirigida por potências líderes, verdadeiras sucursais no Brasil. Várias Ongs atuam sob a liderança dos EUA. A mais significativa desse grupo é a World Wildlife Fund (WWF), uma Ong global com dupla liderança, um exemplo de comunhão entre os EUA e a União Européia (UE). É a maior organização conservacionista do globo, atuando em 120 países. Criada há mais de 35 anos, a WWF tem hoje 5.000.000 de afiliados, com 1.500.000 norte-americanos ocupando o primeiro lugar, mais de 300.000 ingleses e cerca de 30% da população da Holanda. Integram a rede da WWF 27 organizações nacionais autônomas, e um colegiado internacional (podendo participar membros das diferentes organizações nacionais), com várias divisões, dirige a organização. Arrecada 180 milhões de dólares por ano, se somada a contribuição de sócios, fundações, corporações e governos.

Está sediada na Suíça, possuindo uma sub-sede em Washington, destinada às ações na América Latina e Caribe. Quase 95% do financia-mento de projetos da WWF no Brasil até os últimos 4 anos, se originaram dos EUA e, uma pequena parte, do Canadá. Hoje, as fontes da Europa tendem a superá-las. Em 1998, o total de recursos para a proteção do meio ambiente destinados à América Latina e ao Caribe pela WWF foi de 20 milhões de dólares, sendo 5 milhões só para o Brasil (aproximada-mente 50 % correspondendo a fontes dos EUA e Canadá, e 50 % a fontes européias). O novo quadro está associado a uma redefinição estratégica da WWF que para superar a dispersão de ações, reduziu seus programas e projetos principais para 4, visando otimizar técnicos e efeitos. Tal reorientação é fruto de um trabalho de três anos de uma equipe de mais de 200 cientistas, que dividiu o planeta em 800 regiões, definidas pela densidade de interações ecológicas, priorizando as chamadas “Global

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200” mais importantes. A América Latina e o Caribe contêm 53 dessas ecorregiões.

A passagem do Brasil à categoria de organização nacional da WWF, em 1996, representou a transferência de boa parte dos projetos para o País, e também maior projeção e representatividade, além de uma reorientação de postura fundamental: não permanecer apenas na denúncia, mas mostrar alternativas, ou seja, influir nas políticas públicas.

2) Ongs que têm fortes laços com o exterior mas cuja agenda não é dirigida de fora, contemplando interesses regionais. São bastante diferenciadas como, por exemplo: a) a Ong Amigos da Terra, em seu programa para a Amazônia é voltada para o desenvolvimento regional; é a que mais acompanha os eventos no conjunto da região, realizando críticas, mas contribuindo com estímulo a várias iniciativas – combate ao fogo, uso econômico dos recursos naturais (os Econegócios) – hoje, reduziu a conexão com sua homônima de âmbito global, sendo a ela apenas afiliada; b) o IMAZON é uma Ong de pesquisa, tendo recebido financiamento da USAID e parcerias, sobretudo, com universidades norte-americanas. Realizou contribuição original no estudo sobre a exploração madeireira na Amazônia. Ambas têm forte influência no MMA.

3) Ongs antigas, gestadas no Brasil no bojo da reação da Igreja e dos estudantes contra o regime militar, orientadas para apoio a grupos sociais excluídos. É o caso da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), com ampla atuação no território visando a produção familiar, e do Instituto Socioambiental (ISA), cujo foco de atenção são as comunidades indígenas, particularmente no Alto Rio Negro, onde participou da demarcação das terras indígenas.

4) Outras Ongs voltadas para os grupos indígenas são o Conselho

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Indigenista Missionário (CIMI) e o Oxfam, mas com atuação bem menos extensa; em conjunto com outras organizações religiosas como a Miserior, Novibe, corroboram a importância dessas organizações na Amazônia, individualmente, ou em conjunto com outros parceiros.

5) Ongs de várias dimensões, que atuam de forma dispersa em múltiplos projetos, de âmbito local ou regional, seja para estimular pro-jetos alternativos, como aquelas citadas nas redes de parcerias e muitas outras não devidamente conhecidas, seja para investimentos em seqüestro do carbono, como é o caso do Instituto Ecológico na Ilha do Bananal, financiado pela Inglaterra, e parceria da Igreja Luterana.

Se em suas origens no Brasil no início da década de 1970, as Ongs surgiram de uma reunião promovida por organizações religiosas – CME, protestante suíça; CCFD, católica francesa; e Desenvolvimento e Paz (equivalente canadense do CCFD) – logo receberam apoio dos EUA, pelo Peace Corps e Catholic Relief Service, de cunho econômico, que estimularam a sua profissionalização e, na década de 1980, multiplicaram-se as agências internacionais. Segundo alguns, seria útil distinguir as agências européias e canadenses – CCFD, CME, Desenvolvimento e Paz, Oxfam e ICCO – mais independentes dos seus governos e ligadas ao ativismo sindical de seus países, e as agências norte-americanas, fundamentalmente ligadas à política externa do governo americano (Landim, 1993; Bouclet, 2003).

Enfim, parece que as Ongs têm se transformado em anos recentes. “Locus” de expressão de identidades locais fortes, representação política das populações desfavorecidas, e expressão local de interesses internacionais, elas hoje estão em busca de novas formas de atuação para se conciliar com as realidades do mercado. Boa parte de seus recursos é proveniente da prestação de serviços, na medida em que são reconhecidas pelo Estado e pelas empresas, se tornaram interlocutores incontornáveis

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na definição de políticas públicas (Bouclet, 2003).Verdadeiro “mercado da solidariedade” se estabelece com a glo-

balização, gerando forte competitividade entre as Ongs. Resta saber se essa mudança vem ocorrendo no Brasil.

Ao que tudo indica, na Amazônia, as grandes Ongs estão se orientando cada vez mais para a pesquisa capaz de influir nas políticas públicas. É o que se verifica hoje com a intenção do Governo em transformar a rodovia Cuiabá/Santarém em um exemplo de estrada indutora de desenvolvimento. Em nome de pesquisas para a sustenta-bilidade, IPAM e ISA receberam US$ 1.500.000,00 do consórcio da USAID estabelecido para esse fim, e o IPAM recebeu mais um milhão de euros da UE. Contudo, a UE ofereceu seis milhões de euros para o MMA, com a mesma finalidade.

Enquanto isso, os pesquisadores brasileiros ainda que desejem, não podem contribuir por absoluta carência de recursos. A vulnerabilidade do Brasil é patente neste caso: o setor privado vai participar dos custos da pavimentação da rodovia, mas os custos das pesquisas – e, portanto, o delineamento da estratégia – virá de doações estrangeiras.

ConsideRações Finais

Embora uma tendência suspeita difunda a idéia de que os Estados-Nação chegaram ao seu fim, assim como suas soberanias, é patente que, pelo contrário, os Estados soberanos permanecem, embora sob nova forma de soberania que eles mesmos constroem, e que os afeta profun-damente devido à desigualdade do poder entre eles.

Há, sem dúvida, toda a sorte de intervenções internacionais – desde os discursos aos acordos em fóruns globais – influindo na tomada de

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

decisões sobre o uso do território amazônico, sobre as quais percebe-se a histórica cobiça internacional sobre a região. Há anos atrás, foi até apresentada à Assembléia Geral das Nações Unidas, projeto de resolução que, na prática, submetia a região a uma espécie de protetorado da própria ONU. Hoje, a ONU está esvaziada e são os Estados líderes que pressionam os demais, no caso do Brasil; destacando-se os Estados Unidos com seus múltiplos braços, sobretudo organismos econômicos e Ongs, seguidos de forma mais velada, da UE, Inglaterra e Alemanha, além da Holanda, Noruega que sustentam Ongs e organizações religiosas.

A informação sobre a natureza amazônica – particularmente a biodiversidade e o saber local – e a mobilização política de grupos sociais são objetivos centrais da ação externa. Há uma nítida e crescente tendência, através da cooperação internacional – financeira, técnica e de pesquisa – e suas agendas, influir nas políticas públicas.

Entretanto, parte das intervenções enquadra-se no processo de politização da natureza, isto é, não tem como objeto diretamente a Amazônia, mas sim a utilizam para pressionar a tomada de decisão e o controle do desenvolvimento (ou do não desenvolvimento) nacional, e de suas posições de autonomia como é o caso do Mercosul como contra-ponto à ALCA, defesa dos avanços em C&T, entre outras. Isto porque, apesar do forte recuo econômico nas últimas décadas e da fragilidade do Estado, o Brasil ainda é uma potência regional com peso no comércio mundial, presença atuante em organismos internacionais, grande massa de consumidores e liderança na América do Sul.

O grande problema quanto à soberania reside, assim, no poder econômico dos Estados Líderes e na possibilidade de se estabelecerem acordos desfavoráveis ao país. É a dívida externa que realiza a sangria dos recursos nacionais e contribui para fragilizar o Estado. E, se os Estados participam de uma construção da nova forma de soberania, cabe uma atitude mais firme para enfrentar a questão. A recente proposta brasileira

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de não incluir os investimentos em infra-estrutura no rol da dívida é uma importantíssima inovação.

Tal atitude terá repercussões diretas sobre o exercício da soberania na Amazônia, onde o maior problema é a fragilidade das instituições, tanto em termos de recursos financeiros, de pessoal, quanto de poder de comando. Deseja-se aqui chamar a atenção para dois fatos. Primeiro, o Brasil tem enfrentado com desenvoltura e sucesso as imposições da agenda internacional e as formas veladas de coerção quanto à Amazônia. A veracidade dessa afirmativa é clara quando se comparam as formas de intervenção na América Central e na Faixa do Pacífico Sul-americana. Enquanto nessas áreas a intervenção se faz com crescente presença militar através de localidades de operação avançada, cujo exemplo maior é o plano Colômbia, no Brasil as intervenções se fazem através da cooperação internacional, em grande parte porque o Estado respondeu adequadamente à intervenção militar no território amazônico, tanto em nível dos fóruns globais como em nível de projetos, como o Sivam, e agora a integração da Amazônia sul-americana, resgatando o Tratado de Cooperação Amazônica e fortalecendo o Mercosul.

O segundo fato a ressaltar é que o “calcanhar-de-aquiles” no exercício da soberania sobre a Amazônia reside na interconexão das faces interna/externa da soberania. O Brasil e a Amazônia, em particular, constitui uma presa fácil para os interesses externos devido à conscien-tização política, às crescentes reivindicações sociais e às organizações da sociedade civil. A ajuda econômica e técnica através dos projetos multilaterais e bilaterais e de Ongs e organizações religiosas, com suas agendas, têm, assim, amplo espaço de manobra fortalecendo iniciativas políticas internas mediante parcerias locais-globais e gerando recortes territoriais na Amazônia, que de alguma forma, escapam à decisão nacional sobre seu uso. A expressão mais clara desse processo é a polêmica sobre as terras indígenas em áreas de fronteiras.

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Esta situação não é exclusiva do Brasil, mas atinge também países como os Latino-americanos que foram colônia, se forjaram como sociedades autoritárias e, cuja construção do Estado é recente, afetando suas funções de controle do território e da população. Tais características afetam o exercício da soberania, bem como a segurança do Estado, na medida em que a insegurança emana de dentro de suas fronteiras, mas certamente transborda para o exterior.

A face interna da soberania foi sempre negligenciada no Brasil e hoje se torna particularmente importante, inclusive na Amazônia, que não é um vazio demográfico e sim uma região com 20 milhões de habitantes, onde a sociedade civil se organizou como nunca antes veri-ficado. E mais, os movimentos sociais estão se internacionalizando e a América Latina é o berço desses movimentos. Ao contrário da Europa e dos EUA que caminham para governos de direita, na América Latina se elegeram governos de centro-esquerda, e os movimentos sociais tendem a se unir e se difundir, como ocorreu no Fórum Social de Porto Alegre, alternativo ao de Davos.

Se esses movimentos têm uma face democrática, a falta de diálogo reduz a governabilidade e afeta a soberania. As teorias sobre segurança do Estado indicam que há dois modos de buscar assegurá-la: diminuição da ameaça na sua origem – daí a cooperação e a participação nos orga-nismos globais – e diminuição da vulnerabilidade interna frente a uma determinada ameaça. Esta indicação se aplica à soberania, tanto para o Brasil como para a Amazônia.

Como acima assinalado, o Brasil enfrenta muito bem as ameaças externas, e deve reduzir sua vulnerabilidade interna. Sob um outro ângulo, o que os movimentos sociais na Amazônia (e no Brasil) na verdade reivindicam é uma maior presença do Estado. É na sua ausência que os atores externos se instalam, suprindo o que o Estado não pode oferecer.

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A presença do Estado de Direito na Amazônia é, portanto, con-dição básica para reduzir sua vulnerabilidade e assegurar o exercício da soberania. Para tanto, é necessário e urgente um olhar pra dentro e algumas sugestões são apresentadas a partir da análise efetuada neste texto: a) substituir a política de ocupação da Amazônia por uma política de consolidação do desenvolvimento, pois a região já possui uma dinâ-mica própria e tem grandes e variadas demandas econômicas e sociais; b) reconhecer as diversidades econômica, social e cultural, já que o povo, componente básico da soberania, não é um todo homogêneo, embora constitua uma unidade; c) suprir carências básicas da população, que variam segundo os grupos sociais, bem como na zona rural e na cida-de e nas sub-regiões. Chama a atenção o fato da Amazônia, como de resto o Brasil, ser uma região urbanizada, com 70% de sua população vivendo em núcleos urbanos, muitos deles sem a menor infra-estrutura. Os movimentos sociais são justamente mais intensos nessas cidades. Tal situação sugere uma estratégia de consolidação das cidades que, afinal, são também os centros de comando das relações intra-regionais; d) quanto aos custos da presença do Estado, uma nova atitude quanto à dívida pode tornar disponíveis recursos para esse fim. Contudo, uma outra negociação é necessária, tendo em vista um fato que passa, via de regra, despercebido: as limitações aceitas e as pressões para proteção do meio ambiente, tanto nas Áreas Protegidas quanto nos projetos comunitários se fazem em benefício de todos, do bem comum. Entretanto, os custos dessa proteção são nacionais, de fato anulando a ajuda econômica, e a conta desses custos deve ser apresentada; e) Ongs necessitariam de maior controle. É possível algum mecanismo de controle sobre os produtos de sua atuação? Por exemplo, registro de presença e ações nos Municípios onde atuam e apresentação de relatórios aos órgãos competentes dos governos estaduais e mesmo federais, dependendo do âmbito de sua ação. Ademais, se o Governo brasileiro realiza um grande esforço para gerar um

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novo modelo de implantação de estradas na BR-163, não seria lícito que as Ongs que receberam milhões de dólares para o mesmo fim, participem desse esforço? O ativismo de certas Ongs é o mais pernicioso. Hoje, não só influem na sociedade como competem com pesquisadores nacionais e influem na política ambiental. Estão, através da pesquisa e do ativismo social, ocupando o lugar do poder público. Um investimento massivo em C&T é prioritário para gerar um pensamento autônomo no país; f) a presença das Forças Armadas nas fronteiras é, sem sombra de dúvida, necessária. Há que enfatizar a diferença entre Terras Indígenas e Unidades de Conservação. No caso das UCs, se constituem uma forma de restrição ao uso do território, podem ser vistas também pelo ângulo positivo do exercício da soberania na medida em que asseguram o domínio do Estado sobre as florestas e a terra. Quanto às terras indígenas, compreende-se a preferência por territórios descontínuos, multiétnicos, com presença não indígena e não inclusão dos rios estratégicos, como aconteceu na demar-cação das Terras Indígenas do Médio e Alto Rio Negro. A fim de atender reivindicações plausíveis dos grupos indígenas, e entender os índios como atores na vivificação das fronteiras, retomar o encargo de serviços de saúde e educação – que foram transferidos para outros – e criar normas claras para o uso dos recursos existentes em suas terras, com sua participação, são medidas que poderiam fortalecer a presença do Estado e evitar explorações ilegais em suas terras. Deve ser lembrado que se a demarcação de suas terras era uma reivindicação essencial dos grupos indígenas, hoje a nova demanda é por desenvolvimento. Nas fronteiras superpõem-se três malhas territoriais oficiais: a malha administrativa (Estados e Municípios), a malha ambiental das áreas protegidas, e a faixa de fronteira. Ao que tudo indica, a regulamentação da faixa de fronteira seria um instrumento essencial de ordenamento do território estabelecendo normas de utilização da terra e dos recursos naturais; g) o reconhecimento de que terras e florestas são bens públicos e trunfos do poder do Estado indica que o aproveitamento

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da fantástica biodiversidade amazônica é urgente para o bem da popula-ção amazônica e brasileira. O Brasil já fez três importantes revoluções tecnológicas: exploração do petróleo em águas profundas, transformação da cana-de-açúcar em combustível, e aproveitamento do cerrado para a cultura da soja. É hora de realizar uma revolução tecnológica para o bioma Amazônia, utilizando a biodiversidade em todos os níveis – dos fármacos à agregação de valor nas florestas – gerando cadeias produtivas capazes de fornecer uma base econômica estável e competitiva para a população, inclusive indígena.

Contudo, a cooperação internacional sob variadas formas é um instrumento de coerção velada. Mas o diálogo, a diplomacia e, parti-cularmente, o fortalecimento dos canais com a sociedade civil, podem transformar a coerção velada em instrumento de mudança. A sinergia a partir de estratégias concertadas das instituições públicas é, portanto, essencial. Nesse sentido cabe lembrar o papel do Exército democrático que, historicamente, foi das raras instituições a manter sintonia com a face interna da soberania, tendo aproximação com as comunidades indígenas e importante ação social, e hoje a Nação espera não só que se mantenha, mas que em conjunto com as demais Forças, possa se fortalecer.

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RelatóRio do enContRo de estudos

Relatório do Encontro de Estudos

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A reunião de técnicos do Governo, Organizações Não Governamentais que atuam na região, especialistas ambientais e acadêmicos, denominada Encontro de Estudos, encerrou oficialmente o Ciclo de Estudos sobre a Amazônia – uma série de três reuniões que teve como objetivo colocar em pauta, no âmbito das decisões estratégicas do governo, a temática da Amazônia, bem como questões daí advindas.

Cronologicamente, ocorreu a realização de Palestra no dia 15 de abril; a Reunião de Estudos, no dia 05 de maio e, finalizando o Ciclo, o Encontro de Estudos, realizado no dia 20 de maio de 2004, no auditório de videodifusão do Palácio do Planalto.

O Encontro de Estudos, que reuniu cerca de 50 pessoas, além de representar a síntese dessa série de reuniões, teve como objetivo a discussão de alguns temas polêmicos, a exemplo da presença do Estado na região Amazônica; a presença das Forças Armadas; a questão da soberania nacional, além é claro, da infra-estrutura de transportes, o “calcanhar-de-aquiles” da região.

A reunião foi aberta pelo Senhor José Alberto Cunha Couto, Secretário de Acompanhamento e Estudos Institucionais do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (SAEI/GSI), que destacou que o evento encerrava o Ciclo de Estudos iniciado em 15 de abril e chamou a atenção dos participantes para o fato de que, quando da realização dos debates, eles se sentissem à vontade para emitir suas opiniões pessoais, não necessariamente posicionamentos institucionais, pois o objetivo do encontro era ampliar o intercâmbio de idéias sobre a questão amazônica.

Em seguida, o Tenente Coronel Joarez Alves Pereira Júnior, Assessor da Saei, forneceu algumas orientações acerca da metodologia utilizada na reunião, informando que as apresentações dos palestrantes seriam divididas em dois grupos e que ao final das mesmas, haveria um debate. Destacou que o Encontro de Estudos representava a última

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etapa do Ciclo de Estudos sobre a Amazônia e que a denominação de Estudos se referia à proposta de o mesmo se constituir em um espaço de análise e troca de conhecimentos e que a audiência era formada por um público diversificado.

aPResentações e debates

O primeiro conferencista a discorrer sobre a temática proposta foi o Professor Titular de História Moderna e Contemporânea da UFRJ, Francisco Carlos Teixeira da Silva, cujo título da apresentação foi Amazônia: Uma questão e várias Abordagens, onde inicialmente se deteve numa breve contextualização histórica sobre a questão amazônica.

Teixeira afirmou que mesmo após uma clara integração da Amazônia e de seu pleno reconhecimento mundial como terra brasileira, a região permanece como um território exótico para a maioria dos brasileiros, carregada de imagens generosas e temíveis, e com um descompasso notável com o conjunto do País. Citou alguns dados em relação à Amazônia: por exemplo, a Amazônia representa 60% da superfície do Brasil, seu PIB não passa de 5% do PIB nacional, reúne apenas 10% da população urbana e 12% da população total do País. Ressaltou que o único indicador, pouco invejável, para qual a Amazônia supera sua quota de território é o número de mortos em conflitos fundiários.

No seu contexto geral, afirmou, a Amazônia apresenta ainda outras grandes disparidades em face das demais regiões: assistiu a um amplo crescimento demográfico entre 1970 e 2000, da ordem de 172%, mantendo-se, contudo como a região menos povoada, com 12% da população nacional (contra 8% em 1970). Conseqüentemente, as densidades

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demográficas são as mais baixas do País, com 4.18 hab/km2, chegando no Estado do Amazonas a apenas 1.83 hab/km2 (contra uma densidade nacional de cerca de 20 hab/km2). Da mesma forma, afirmou, dados mais qualitativos apresentam o mesmo recorte da desigualdade: segundo o CNPq a região conta com apenas 2.7% dos pesquisadores-doutores do país (contra 34.7% de São Paulo, por exemplo), sendo que mesmos estes possuem em mais de 50%, origem fora da região, talvez a mais importante defasagem atual da região.

De acordo com Francisco Teixeira, tais disparidades impactam claramente a formulação, tomada de decisão e a elaboração de políticas públicas para a região, acentuando a importação de projetos e de “soluções”, marcadas profundamente pelo tratamento exógeno da Amazônia e a ma-nutenção do caráter de “conquista” das formulações de políticas públicas para a região Amazônica. A necessidade de investimentos fundamentais em Ciência e Tecnologia talvez seja, hoje, segundo o Pesquisador, tão ou mais importante do que abrir estradas.

O Pesquisador afirmou que, no seu conjunto, as formulações teóricas que alicerçam a tomada de decisão sobre a Amazônia pertencem a um velho conjunto de idéias sobre a região, repetindo-se com grande freqüência, mitigadas com visões consideradas modernas e que no mais das vezes, se combinam e se articulam para alicerçar teoricamente as formulações voltadas para o desenvolvimento regional.

Observou que a grande maioria das formulações teóricas que enquadram os projetos de desenvolvimento da Amazônia baseia-se em visões da região cujas matrizes residem em uma compreensão externa. Citou o trabalho de Eli Lima, pesquisadora do CPDA/UFRJ, que pôde perceber com clareza as origens, no século XIX – em virtude direta do surto da borracha, de seu ápice e crise – das visões da Amazônia, centradas num imaginário que, segundo ele, pode-se denominar “imagens do sertão”, típico da grande expansão imperialista do século XIX e início do século XX.

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Destacou que o Brasil da República Velha se lançou na conquista de seus sertões, em vez da busca e das conquistas imperiais no exterior. As questões centrais sobre a Amazônia – suas riquezas, seu caráter inóspito e consumidor de homens através das maleitas; um mundo formado por águas; a floresta imensa, muda e vazia; as preocupações com as fronteiras e os limites, tudo isso esteve, segundo ele, nas notas de Euclides da Cunha, quando da Missão Brasileiro-Peruana de estabelecimento das fronteiras, organizado durante a estada no Acre, recém-anexado ao País.

Afirmou que o advento do Estado Novo (1937-1945), com seu afã colonizador e integrador acentuaram o culto de Euclides da Cunha, de sua visão da Amazônia, ora “Paraíso Perdido”, ora “Inferno Verde”, embasando as políticas formuladas para a região. A partir daí, quebrado o monopólio brasileiro da exploração da borracha e fracassado o projeto de Fordlândia e Belterra, iniciado em 1922, pode-se verdadeiramente falar no surgimento de uma “questão amazônica” para o Brasil. Neste sentido, afirmou, é possível apontar algumas das regularidades – os pontos comuns que se repetem nos diversos discursos sobre a Amazônia – e que marcam a “Questão da Amazônia” na história republicana brasileira como matrizes teóricas do planejamento desenvolvimentista.

Francisco Carlos Teixeira expôs algumas matrizes teóricas para a região, suas propostas e alguns pré-cenários daí decorrentes:

1. AMatriz securitização daAmazônia:A Matriz securitização da Amazônia: esta talvez seja a matriz mais antiga, e mais repetitiva, das preocupações sobre a região. Originária do período Colonial tem suas raízes na preocupação real ou imaginária com a integração nacional do território em virtude dos riscos de inter-nacionalização. Nos séculos XIX e XX, os riscos de internacionalização foram relativamente baixos, sem grandes aventuras ou intromissões estrangeiras, excetuando-se os planos – recentemente divulgados pelos arquivos americanos – de uma invasão americana contra Belém durante

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a II Guerra Mundial. As demandas da França e da Inglaterra, na área das Guianas, foram resolvidas por arbitramento e a Questão do Acre acabou, em verdade, por engrandecer a região. Na segunda metade do século XX, as preocupações com a região voltaram a um patamar elevado – mesmo descontando uma certa paranóia nacionalista – as diversas pretensões internacionais sobre os recursos naturais da região causam preocupação. A partir dos anos 70, e muito especialmente após a abertura da Transamazônica e do surto dos grandes projetos, entre 1960 e 1970, a região passou a ser alvo de inúmeras avaliações por parte de instituições internacionais, muito especialmente Ongs. Muitas vezes as alegações eram baseadas em teses, ou evidências, bastante frágeis, como o mito da Amazônia enquanto “pulmão do mundo”. Teixeira afirmou ainda que outras preocupações voltaram-se para a defesa da biodiversidade, da floresta do trópico-úmido e das populações indígenas, normalmente acusando instituições nacionais permanentes – como as Forças Armadas – de ação insensível a tais temas, como em reportagem recente do New York Times. Citou ainda um recente texto de Pascal Boniface, importante assessor da ONU, que demonstra um acirramento das visões sobre a Amazônia e o seu desenvolvimento, provocando um incômodo cruza-mento entre a vertente “securitizante” e a vertente conservacionista que explicam e propõem formas de ocupação regional.

Destacou algumas das percepções “securitistas” sobre a região:

• Do ponto de vista exclusivamente militar a grande novidade regional é a ampliação do conflito político-militar na Colômbia, com um crescente risco de internacionalização da crise naquele País. Porém, não se constitui num risco imediato ou irremediável. Na verdade, explicou, não há nenhum grande eixo de acesso rodoviário direto com a Colômbia, sendo o contato bem mais fluvial – Tabatinga/Letícia – ao contrário,

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por exemplo, dos projetos em curso voltados para Bolívia, Peru e Venezuela, onde os nós rodo-fluviais começam a se adensar com grande êxito. O principal eixo de contato – através do rio – pode ser bem patrulhado e controlado, havendo vontade e meios para isso. Talvez mais preocupante seja a possibilidade de um recrudescimento da ação militar na Colômbia, inclusive com um combate intenso contra cocaleros, originando vagas de refugiados hispanófonos sobre a área fronteiriça. Este, contudo, é um cenário remoto.

• A maior parte da vertente Andina, compreendida enquanto faixa de fronteira, não apresenta nenhum risco militar notável, ou que possa efetivamente gerar preocupações iminentes de segurança. Os Governos da Bolívia, Peru e Venezuela são regimes amigos, com relações cada vez mais estreitas com o Mercosul e com quem o Brasil pode desenvolver projetos conjuntos de integração na área de infra-estrutura (rodovias, pontes, canais, etc...), alguns já em portfolio do BNDES, além de aberturas de vias de mão dupla entre o Pacífico e o Atlântico, atendendo aos interesses de todos os países envolvidos.

• Nenhum destes países encontra-se, no momento, em enfren-tamento com qualquer tipo de guerrilha local, capaz de subverter os regimes estabelecidos, ou de utilizar o território nacional como santuário, refúgio ou trilha de acesso. Talvez o dossier das chamadas novas ameaças mundiais – tais como o narcotráfico, contrabando de armas, biopirataria, ou o terrorismo internacional, sejam elementos bem mais pertinentes para o questionamento em torno das chamadas Faixas de Fronteira.

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O Pesquisador afirmou que, historicamente, as invasões ou risco de invasão da Amazônia se deram sempre no sentido montante do Rio Amazonas, da foz para os sertões, e nunca inversamente. Nada no cenário da região, num espaço de 25 a 30 anos, anuncia uma mudança estratégica neste quadro. Qualquer agressão, como a sugerida por Pascal Boniface, se daria no sentido montante, leste/oeste. Assim, a Foz do Amazonas, a região mais densamente habitada e habilitada da região permanece como a porta de entrada de todo o território.

Neste sentido, apontou, dois cenários possíveis:

a) O cenário Boniface:O cenário Boniface: dar-se-ia por volta de 2035, quando as pesquisas em torno da sintetização de moléculas e/ou fármacos oriundos da flora e fauna movimentariam um mercado mundial de bilhões de dólares e, ao mesmo tempo, a crise de abastecimento de água potável aumentaria, atingindo milhões de pessoas, dependentes de dutos para sua manutenção. Nestas condições, uma coligação internacional usando como pretexto a defesa do meio ambiente, utilizaria uma task force, combinando força naval, estações orbitais e submarinos para agir a partir da Foz do Amazonas;

b) O cenário do Arco Indígena:O cenário do Arco Indígena: a partir de 2015 a maioria dos regimes estabelecidos nos países Andinos – Bolívia, Peru, Equador – estariam em mãos de movimentos indígenas, constituídos de cocaleros – não narcotraficantes – e campesinos, revertendo a dominação de mais de 500 anos das minorias criollas hispânicas. Tais regimes seriam marcados por forte instabilidade, nacionalizações e perda de controle territorial, criando uma zona em “arco de instabilidade” vinda do sul da Colômbia até o norte do Paraguai. O impacto das vitórias indígenas provocaria grande inquietação no Paraguai, onde as autoridades perderiam o controle do território, criando uma terra de ninguém entre o Centro-Oeste brasileiro e o Chaco. Grupos indígenas brasileiros, já com forte

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recuperação demográfica, começariam a aderir ao indianismo militante e revolucionário.

Francisco Teixeira ressaltou que a partir daí, num claro exercício hipotético, três sub-tendências, podem ser identificadas:

• O Brasil teria na sua fronteira um “arco de instabilidade”, onde os interesses (principalmente na área de energia, fundamental para a manutenção do eixo industrial São Paulo/Santa Catarina) estariam ameaçados. Não se trata de hostilidade – pode-se manter um perfil cooperante com tais regimes indígenas – mas, de instabilidade, pondo em risco um projeto de crescimento integrado sul-americano. Seria necessário lidar com uma forte hostilidade antiamericana na região, com possível nacionalização de bens e investimentos estadunidenses e retirada forçada de bases americanas na região;

• Os Estados Unidos estariam em condições de forçar uma intervenção preemptiva na região Andina, possivelmente na Bolívia, visando evitar a indigenização do País. Neste sentido, pressionaria o Brasil a agir em conjunto na região, utilizando-se de uma disposição intervencionista de caráter também preemptivo do Chile, que tornar-se-ia a principal base de ação dos Estados Unidos no Continente Sul-Americano.

• Os Estados Unidos fortaleceriam suas bases ao longo do “Arco Indígena da Instabilidade”, acabando por cercar a Amazônia brasileira de um forte sistema militar, contando com o apoio, ao Sul, do Chile e ao Norte, da Colômbia, ocupada militarmente.

De acordo com o Pesquisador, tais cenários, apenas esboçados, claramente hipotéticos, talvez até mesmo exagerados, mas infelizmente

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inscritos na realidade sul-americana e potencializados nos últimos acon-tecimentos na Bolívia, no Equador e, cada vez mais possível, no Peru são viáveis em caso de manutenção da atual política de ação preemptiva enquanto base da Política de Segurança Nacional dos Estados Unidos. A existência mal dissimulada, de uma vasta rede de operações, vigilância e informação dos Estados Unidos, desde a grande base militar na Guiana – ex Guiana inglesa – até os estabelecimentos no Paraguai, reforçam as preocupações existentes.

Afirmou ainda que a atuação da Inteligência americana no País – mesmo através de agências brasileiras – bem como a insistência em internacionalizar a questão da Tríplice Fronteira, demonstram o interesse de manter de forma operacional a presença estrangeira em duas regiões estratégicas nacionais, tanto ao Norte, quanto ao Sul da Amazônia.

Ressaltou que não se pode, como algumas vertentes ambientalistas desejariam, eliminar as Forças Armadas, e o fator Segurança Nacional, do equacionamento de uma política nacional para a Amazônia. Trata-se, em verdade, afirmou, de seguir claramente os princípios estabelecidos na Constituição democrática de 1988, onde se fixam claramente as funções institucionais das Forças Armadas. Neste sentido, a eliminação das Forças Armadas da região, a limitação de seus movimentos ou sua sujeição a outras instituições (nacionais ou estrangeiras, estatais ou privadas) é claramente um desiderato anticonstitucional.

De acordo com Francisco Teixeira, as Forças Armadas são um dos atores fundamentais na região, com uma tradição que passa pelos fortes da Amazônia, pela ação do Correio Aéreo Nacional, pela atuação de Cândido Rondon, pelo Projeto que leva seu nome e também por escolhas estratégicas bastante discutíveis, como a construção de rodovias e os grandes projetos dos anos 70. A mais recente intervenção deu-se através do Sistema de Proteção da Amazônia (Sipam) e o Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam), peças fundamentais no enfrentamento das chamadas “novas ameaças”.

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2. A Matriz Determinista: Segundo Francisco Teixeira, boa parte da literatura sobre a Amazônia está profundamente impregnada por um dos muitos tipos de determinismo geográfico, ecológico ou ambien-talista, largamente baseado em dois clássicos oriundos da “República Velha”, marcados pela ambiência cientificista herdada do século XIX, e do culturalismo de H. Taine, com suas polaridades e díades marcadas por civilização e barbárie, transformadas em chaves de entendimento da região. Trata-se, em primeiro lugar, de Euclides da Cunha, que através da Comissão de Reconhecimento do Alto Purus, patrocinada pelo Ministério do Exterior, percorreu a região, entre 1904 e 1905, enviando sistemati-camente artigos para jornais do Rio de Janeiro. O conjunto de anotações e artigos de Cunha foi publicado em 1909, com o significativo título “À Margem da História”, apresentando ao público culto do Rio de Janeiro um mundo totalmente novo, onde o personagem central era a própria natureza. Um pouco antes, em 1906, Alberto Rangel publicava “Inferno Verde”, um diálogo claro com o próprio Euclides da Cunha (a partir da matéria previamente publicada em jornais), onde as duas visões travavam um duelo sobre a verdadeira natureza da Amazônia. De qualquer forma, a díade barbárie versus civilização é o elemento norteador de todo o debate, centrando na natureza – pródiga ou inóspita – o protagonismo da história. Enquanto em “Os Sertões” o homem – mesmo com suas taras e atavismos - é sempre o centro explicativo da história, nos dois textos citados, a natureza, cada vez mais antropomorfizada em suas conseqüências é o ator central em todas as cenas.

A partir do final dos anos 50, sob o impacto da Administração JK, e com a inauguração de Brasília, inverte-se radicalmente a abor-dagem da questão amazônica: a “Amazônia dos rios”, com seus eixos e nós voltados para o sentido Leste/Oeste, passa a ser cruzada por um eixo vertical, rodoviário, no sentido Sul/Norte, criando outros eixos de adensamento, inaugurando claramente uma nova fase na história da

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colonização regional. A oposição à construção da Belém/Brasília gerou típicos sentimentos coletivos oriundos da matriz determinista: de um lado, uma grande euforia; de outro lado, o deboche expresso na idéia de “estrada das onças”.

Um fato, ou talvez de melhor forma, um procedimento merece ser destacado na gestão JK: a extensão à Amazônia de procedimentos anti-burocráticos típicos de sua atuação administrativa. JK, que desconfiava da burocracia estatal, optou sempre pela criação de Grupos de Apoio ou Grupos de Trabalho para gerir os projetos que considerava estratégicos, visando dar velocidade e eficácia a tais procedimentos. Inaugurava-se, de qualquer forma, segundo Francisco Teixeira uma nova fase na ocupação da Amazônia.

3. A Matriz Ambientalista: O Pesquisador chamou a atenção para a diferença entre o ambientalismo e a matriz determinista, muito embora ambos possam, em algum momento, possuir sérias vinculações. Destacou que desde o século XIX, sob o aspecto de preservacionismo, existiu uma corrente de pensamento voltada para as questões ambientais e que aos poucos originaria um pensamento conservacionista, o ecologismo, o socioambientalismo e mesmo um técnico-ambientalismo. Afirmou que o trabalho de Paul Little dá conta plenamente das diversas nuances e aspectos da grande vertente ambientalista. É fundamental demarcar a grande expansão de uma percepção ambientalista da Amazônia, muito especialmente depois dos anos 60 e 70, sob o impacto da implantação dos grandes projetos na Amazônia.

Segundo ele, é a partir de uma forte pretensão cientificista que o pensamento ambientalista introduz diversos diagnósticos sobre a ocupação e o desenvolvimento da Amazônia, que podem ser resumidos numa constatação recente: o impacto negativo da maior parte da intervenção humana na região.

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Ressaltou que grande parte dos ambientalistas promove uma ampla revisão da história da Amazônia, centrando a ênfase de suas análises na impropriedade da colonização européia da região, como ainda, dos esforços de povoamento ao tempo do Império, em especial, durante o surto da borracha. A idéia central enfatizou, baseada em estudos de solo, aptidão, climatologia, reside na afirmação do caráter frágil do ecossistema amazônico, montado sobre um equilíbrio dinâmico, auto-sustentado, e de constante feedback. A ação humana de origem européia, e depois nacional, teria o papel de desarticular este frágil equilíbrio, abrindo o caminho para a desertificação e supressão da biodiversidade local. Especialmente, a tentativa de ocupar e colonizar a Amazônia teria um custo bastante elevado, já que as condições ecológicas locais não sustentariam grandes populações.

Afirmou que entre os muitos cientistas que defenderam esta “matriz ambientalista” para a compreensão da Amazônia destaca-se por seus longos anos de estudo e dedicação ao tema e à região, a cientista Betty Meggers. Em sua tese central sobre a região, Meggers afirmou que o desenvolvimento das sociedades indígenas da região foi limitado pela pobreza do ecossistema, que por sua vez impediu o crescimento e o adensamento populacional, bem como a intensificação das ações econô-micas. Em clara oposição às noções de “paraíso” e “cornucópia”, a própria natureza amazônica seria o fator que limita o crescimento populacional, gera crises de abastecimento e impede o desenvolvimento da região.

Da mesma forma, acrescentou, pesquisas arqueológicas modernas, realizadas na área de atuação das civilizações Maia e Asteca começam a derrubar a tese do colapso ecológico da civilização Maia. A explicação clássica, de que as florestas úmidas do México, Guatemala e Belize não seriam capazes de sustentar uma população densa em expansão constante começam a ser desmentidas pelas novas descobertas arqueológicas. Em verdade, os testemunhos arqueológicos mostram que as Cidades-

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Estados Maias em constante guerra não conseguiram reunir as condições de unificação política, sendo superadas e conquistadas pelos povos Astecas, com uma tecnologia militar superior e uma organização política mais eficiente.

Destacou que mesmo as afirmações comumente repetidas sobre o equilíbrio instável do ecossistema amazônico, produto de milhares de anos de feedback, de auto-reciclagem da floresta, parecem largamente caducas em áreas centrais da Amazônia, muito especialmente em ecorregiões homogêneas de grande valor econômico. Assim, as grandes florestas de castanheiras e os imensos coqueirais de babaçu surgem, após várias pesquisas, como produto da ação humana, uma intervenção planejada e substituta da floresta primária, e que foi capaz de assegurar grande sucesso econômico e ecológico.

Ressaltou que se tratam, em verdade, de florestas plantadas dentro da floresta e de caráter bastante recente em relação à história natural da região. Grande parte da área teria sido claramente transformada pela ação humana, fazendo com que a distinção clássica entre paisagem natural e paisagem cultural tenha que ser abandonada para amplas regiões específicas da Amazônia. Como exemplo, citou as matas de bambu, que representam cerca de 85.000 km2, plantadas ainda num período Pré-Colombiano. A mata chamada apête (cerrado em língua kaiapó), no sul do Pará, Tocantins e Norte do Mato Grosso, surge como produto direto do plantio indígena. Da mesma forma, as imensas matas de castanhais, a Bertholletia excelsa, com cerca de 8.000 km2 em torno de Marabá, no Pará. Mas, a maior extensão de paisagem homogênea criada intencionalmente são as matas de babaçu – cerca de 196.370 km2 – na Amazônia Legal.

Francisco Teixeira destacou a necessidade de valorização do saber tradicional, local, rico em imagens e técnicas capazes de lidar com sustentabilidade com o meio ambiente, em vez de aferrar-se a uma visão ambientalista fixista da natureza. A valorização dos saberes locais é, nesse

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sentido, a chave ou ponto de partida para uma visão auto-sustentada da ocupação e do desenvolvimento da região. Há que se levar em conta as formas culturais e sociais da ocupação: entre o sistema de adensamento urbano das várzeas e as grandes metrópoles modernas, impondo estra-tégias de sustentabilidade diferentes. O grande desafio, afirmou, reside exatamente aí: como realizar uma apropriação extensiva de práticas e saberes tradicionais numa sociedade moderna de massas.

De qualquer forma, os exemplos históricos de alteração e criação de outros subsistemas ecológicos na Amazônia servem para advertir e informar ações futuras. Tais bosques alterados ou plantados são bons exemplos de perturbações em sistemas estáveis que geram mudanças de padrão em direções não-previstas. Talvez se deva, afirmou, abandonar um determinismo evolucionista contido em boa parte do pensamento ambientalista, de tipo linear, típico das previsões e cenários pessimistas em favor de um modelo de evolução não-linear, como, por exemplo, contido na Teoria do Caos. Pode-se, assim, pensar em novos sistemas originados historicamente da ação humana na Amazônia, sob as condições históricas específicas, e que se tornaram, por sua vez, sistemas estáveis e formam ecossistemas passíveis de novas intervenções perturbadoras e que não guardam relações com as condições sensíveis iniciais.

4. A Matriz Desenvolvimentista: foi a partir dos anos 60, no bojo dos esforços de integração nacional desenvolvidos pela Administração JK que a Amazônia transformou-se em foco de uma política nacional. Embora Vargas já tivesse se voltado para a região, suas principais preocupações centraram-se no Brasil Central, com a multiplicação de projetos de colonização e a redivisão territorial, criando os chamados “territórios federais”, e multiplicando municípios, como forma de adensar o povoamento da região. A abertura da Belém-Brasília e, mais tarde, os grandes projetos, em especial as rodovias, do final dos anos 60 e 70,

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mudaram definitivamente a fisionomia da Amazônia. Uma das caracte-rísticas centrais da ação desenvolvimentista na região foi a superação da dependência única em virtude dos eixos e pontos nodais ancorados em cidades à beira-rio. O eixo central de ocupação, um vetor histórico da penetração na região, era, desde o início da colonização portuguesa, o percurso do grande rio e seus afluentes à montante, com o vetor leste/oeste, mantendo-se assim durante os quatro séculos seguintes.

A partir dos anos 60, este vetor cede em importância em função de uma intervenção humana de duplo impacto geopolítico: a construção de um eixo rodoviário – primeiro impacto o fato de ser uma rodovia – com o sentido sul/norte – este, o segundo impacto – representado pela Belém/Brasília.

A criação do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), em 1952 – uma resposta a uma iniciativa da ONU, visando criar um Instituto Internacional da Amazônia, instalado na região e sob soberania internacional – bem como a constante atuação do Museu Emílio Goeldi marcaram os dois principais – e até meados dos anos 80 – únicos centros nacionais de pensamento sobre a Amazônia, localizados na região. Isto, sem dúvida nenhuma, afirmou, foi um marco fundamental do desenvolvimento da região. Mais tarde, no bojo da ação dos grandes projetos – anos 60/70 – surgem a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), em 1966, e a Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa), em 1967. Muitos dos grandes empreendimentos regionais tiveram suas origens neste momento, tais como o Projeto Jarí; os projetos de colonização na Transamazônica e na Cuiabá-Porto Velho; as hidrelétricas de Tucuruí e Balbina; o Programa Grande Carajás; a Ferrovia Carajás-São Luís; as indústrias de alumínio de Barcarena, etc...

Nos anos 70, surgiu uma nova intervenção, também de caráter geopolítico: a BR-364 – Cuiabá/Santarém – e a Transamazônica, indo da Paraíba até os contrafortes Andinos. Nos anos 90, em especial através

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da retomada da Perimetral Norte sob a forma do Projeto Calha Norte, acentuou-se a percepção geopolítica leste/oeste, embora várias outras intervenções tenham sido feitas sem qualquer avaliação de conjunto ou busca de complementaridade.

Na verdade, não havia um projeto de conjunto ou objetivos cla-ramente formulados que pudessem definir os vetores geopolíticos claros da intervenção do Poder nacional na Amazônia. As duas tendências: leste/oeste e a sul/norte continuaram a suceder-se sem quaisquer avaliações de conjunto ou um plano-diretor de investimentos e de intervenção social, sem falar num zoneamento realmente eficaz e orientador da ação pública.

De qualquer forma – como um resultado inesperado da falta de planejamento – a ocupação da região resultou na construção de um quadrilátero viário, composto de vias fluviais e rodoviárias marcado por três grandes eixos leste/oeste, como paralelas geopolíticas da região: o grande rio ao centro, um vetor na margem esquerda e outro na margem direita, ainda, é claro, de forma incipiente.

Ressaltou que todo desenvolvimento futuro deve ter firmemente em perspectiva a existência de tais estruturas e evitar superposiciona-mentos, além de um cuidadoso planejamento dos eixos verticais, de acesso ao Caribe/Pacífico, visando dar um caráter racional ao xadrez que se anuncia.

É neste sentido, frisou, que podemos constatar que a abertura de novos eixos viários, com vetores novos, aponta claramente para a possibilidade da Amazônia transformar-se, em três décadas, na área-pivot, para retomar uma expressão cara da geopolítica, da integração sul-americana: o eixo Cuiabá/PortoVelho/Manaus poderá ser facilmente conectado, em uma ponta, com São Paulo e daí a todo o Mercosul, e ao norte, com Caracas, abrindo o Caribe e a Panamericana em direção ao Canal do Panamá; da mesma forma, o eixo Belém-Brasília conecta-se,

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ao sul, com Belo Horizonte e Rio de Janeiro, e ao norte, com o Amapá e daí para as Guianas.

Assim, avançando as obras de infra-estrutura na fronteira com a Venezuela, e talvez com a Guiana, o Brasil abre uma via alternativa a Carretera Panamericana, integra uma poderosa economia regional – a Venezuela – ao sistema amazônico e, ao mesmo tempo, acessa o Pacífico. Da mesma forma, os eixos sul/norte abrem a região aos fluxos demo-gráficos oriundos do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná – onde existe uma forte tradição de exportação das formas familiares da pequena produção, processo já em curso e cuja ponta já atinge Roraima – além dos grandes investimentos agropecuários de São Paulo e Paraná.

O eixo leste/oeste seja através dos rios, seja através das estradas dos anos 70, centrava-se principalmente na preocupação de transferir excedentes de população do Nordeste para a Amazônia, procurando simultaneamente diminuir a tensão social numa área “velha” e ocupar uma área nova. O traçado sul/norte, por sua vez, garantiu a formação de uma paisagem diferenciada, menos cabocla e, portanto menos “invisível” ao desenvolvimento; este vetor reproduziu uma paisagem mais empreen-dedora, mesmo que ainda sob a forma de pequena produção familiar, na qual Rondônia é um bom exemplo do processo rápido de povoamento e que talvez, seja o futuro de Roraima, prenunciando tensões sociais ainda mais graves naquele Estado.

De qualquer forma, na margem sul da macro-região, já bastante tocada pelos vetores sul/norte, reproduziu-se a forte tensão entre pequena produção familiar, posse intrusiva e grandes projetos agro-pecuários, dando à região o triste perfil de área de maior tensão de conflitos de origem fundiária do País, em especial Rondônia e sul do Pará. Na verdade, o adensamento demográfico, ao longo das margens sul/sudoeste e leste da região – Rondônia/Tocantins/Sul do Pará – criou uma longa faixa de conflitos fundiários, sem qualquer resolução à vista.

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Mantendo-se os eixos de ocupação sul-norte um cenário semelhante tenderia a se reproduzir no Acre – os sinais da crise fundiária já são bastante visíveis – no Amazonas ocidental e Roraima. Assim, uma inter-venção imediata, com planos regionais de Reforma Agrária e Coloniza-ção, são primordiais para que o desenvolvimento da Amazônia ocidental não reproduza o caráter de “terra sem lei” de algumas regiões do Pará e Rondônia (El Dourado de Carajás, Corumbiara, Reserva Roosevelt, etc..), com o claro agravante de envolver dois outros componentes bastante explosivos: a situação de fronteira e a existência de extensas Terras Indígenas.

Deve-se entender, ainda, que qualquer processo de ocupação e desenvolvimento da Amazônia, tendo como um dos seus aspectos a frente pioneira agrícola, terá nas populações organizadas sob a forma da pequena produção familiar – em clara expansão demográfica de tipo chayanoviano nas áreas “velhas” do País – uma das pontas mais dinâmi-cas de expansão do povoamento. A frente pioneira, de perfil familiar e chayanoviano, realiza tal processo histórico através de baixo investimento de capitais, de tecnologia e uso extensivo de trabalho e terra, o modelo clássico da colonização espontânea no Brasil.

Assim, para a maior parte da população rural em fase de estabe-lecimento na região a floresta será entendida, sempre, como capital disponível para ser transformada em renda – uma advertência clara de vários pesquisadores da região, como Doris Sayago – principalmente em função da madeira nela contida. Assim, a derrubada aleatória da floresta, muitas vezes para produzir só tabuado ou carvão, surge como a formação de um capital inicial fundamental para o sucesso da empresa agrária familiar – desprovida de poupança própria e/ou incapaz de acessar as linhas formais de crédito – e em fase de implantação, quando mais se fragiliza.

Francisco Teixeira ressaltou que o planejamento da ocupação pioneira, alterando o seu próprio perfil histórico, e um forte aporte de micro

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e médio-crédito voltado para tais populações é uma intervenção urgente e necessária, e que poderá redundar na adoção de um manejo sustentado da floresta.

O risco de abandono de tais populações, além da agudização do conflito social, alertou, residiria na destruição do ecossistema, na perda irremediável de suas riquezas naturais e em uma péssima visão externa do país, capaz de gerar revolta internacional contra a soberania nacional na região.

Nos anos 70, continuou, grandes projetos, muitos absolutamente estranhos à ecologia local, acabaram por causar um forte impacto negativo, tanto em âmbito nacional quanto internacional, como o Projeto Jarí ou os empreendimentos da Icomi, no Amapá, trazendo a Amazônia para o debate político internacional.

A partir da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, em 1972, onde reinou um clima de críticas ao Brasil, foi criada, no ano seguinte, a Secretaria Especial de Meio Ambiente (Sema), matriz de uma série de organismos visando à vigilância e o planejamento das intervenções no meio ambiente brasileiro, em especial na Amazônia, passando pela criação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em 1989, culminando na criação do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama)

Contudo, segundo o Pesquisador, as possibilidades de uma ação concreta são ainda bastante reduzidas. Um estudo recente mostra, por exemplo, que o conjunto de Organizações Estaduais de Meio Ambiente (Oema´s) possui pouco mais de 2 mil funcionários para toda a região (levando-se em conta, por exemplo, São Paulo, que sozinho ocupa 6 mil funcionários, contra 18 mil em todo o País). Grande parte da defesa do meio ambiente, em virtude de tamanha ausência do Poder Executivo estadual e federal na região, tem sido dirigida pelo Ministério Público, onde os meios estão disponíveis.

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Em seguida à apresentação do Professor Francisco Carlos Teixeira, o Conselheiro José Carlos de Araújo Leitão, Coordenador de Estudos da Saei, deu início à apresentação dos debatedores. A primeira debatedora a fazer sua intervenção foi Lia Osorio Machado, Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Após agradecer à equipe da Saei o convite para participar do evento, a Pesquisadora ressaltou que em função da limitação do tempo, se deteria em apenas um aspecto da apresentação do Professor Francisco Teixeira, a matriz de securitização.

Lia Machado destacou que no Governo anterior houve uma escolha política, hoje comum na maioria dos países, que é passar todo o prestígio da chamada alta política dos Estados Nacionais que era representada aqui e em outros lugares pelo Ministério das Relações Exteriores, Exército, Marinha e Aeronáutica para o que chamou Serviço de Inteligência, representado principalmente pela Receita Federal e Polícia Federal. Então, afirmou, houve uma baixa de prestígio das antigas instituições da alta política e, esse Governo, aparentemente, está tentando retomar isso, voltando o peso para a alta política. Afirmou que o Governo vai encontrar um grande problema porque não se trata apenas de uma questão de decisão, dependendo de vários outros fatores básicos sobre os quais o Governo não exerce controle absoluto.

Afirmou que o discurso de defesa de soberania é um discurso válido porque o nacionalismo é uma ideologia ainda forte, mas afirmou ser um discurso que tem se apoiado em armas e o Brasil, segundo ela, não tem os elementos reais e materiais para defender a soberania do ponto de vista de armas. Teria então que se fortalecer no campo das idéias.

Em relação à soberania, destacou a necessidade de fazer algumas considerações. Ressaltou que uma das prerrogativas, mesmo em Estados como o Brasil, seria a criação de territórios especiais. Ou seja, esses territórios seriam entendidos como uma forma de soberania, na

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verdade, muito mais do que defesa da linha de fronteira. O Território Federal deveria voltar a ser um instrumento que fosse mobilizado para colocar maior presença no território das instituições governamentais e a possibilidade de facilitar conexões entre essas instituições, que em geral, operam paralelamente na Amazônia. A segunda consideração dentro da matriz da securitização seria a reformulação da Segurança Nacional. Todos os princípios do Conselho de Defesa Nacional seriam baseados na defesa das fronteiras. Nesse sentido, a criação dos territórios fortaleceria a presença do Estado.

Uma outra consideração foi a questão da mudança de uma concepção de visão simplista para uma visão voltada para a complexidade. Ou seja, considerar qualquer região como um sistema aberto, que tem trocas constantes que o Estado não controla, não pode controlar e nunca controlou. O que na verdade existe, afirmou, é apenas um monitoramen-to, onde são estabelecidos limites a ações a que o Estado não consegue pôr um fim, como é o caso do tráfico de drogas, de armas, contrabando, enfim, de toda uma série de ilícitos.

Um outro ponto ressaltado por Lia Machado foi a concepção da Segurança Nacional. A Pesquisadora afirmou que, necessariamente, terá que haver uma mudança no que hoje é denominado Espaço de Fluxo versus Espaço de Lugar. Enfatizou que, antigamente, toda a Segurança Nacional era fundamentada no Espaço de Lugar. Ou seja, traçavam-se os limites e estabelecia-se um território para defendê-lo. Em contrapartida, Espaços de Fluxo são redes, que ultrapassam as linhas de fronteiras.

A Pesquisadora chamou também a atenção para a questão do Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam). Afirmou que este seria o momento de adotar políticas que fortalecessem o referido sistema. Deixou claro, porém, que o Sivam não defende a soberania, que se trata apenas de um sistema de monitoramento. Um outro alvo da abordagem da pesquisadora foi o Projeto Calha Norte que, segundo afirmou, nunca

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saiu do papel. Destacou que para alavancar o projeto, seria necessário, acima de tudo, definir áreas estratégicas dentro do mesmo e que isso deveria ser feito por etapas, para em seguida estabelecer-se prioridades de atuação, como por exemplo, uma atuação efetiva na área denominada “Cabeça do Cachorro”.

Ainda se referindo à questão da mudança de visão, ressaltou que as ameaças não podem ser interpretadas sempre, como ameaças externas, ao contrário, devem ser analisadas dentro de um contexto considerando inclusive a ameaça do ponto de vista interno. Isto é, os movimentos, mudanças, frustrações, expectativas, dificuldades de alcançar objetivos, multidiversidade de visões, a identidade nacional, enfim, são elementos passíveis de serem observados como ameaças internas. Em determina-dos momentos, afirmou, o indivíduo é nacionalista e em outros momen-tos importa mais a questão da sua sobrevivência e realização de suas expectativas. Entrar em contato com o outro lado seja americano, ou o que for, não representa problema para a população se o que está em jogo é a sobrevivência e a realização das suas aspirações. As pessoas querem participar, se incluir, não desejam ser somente meros espectadores.

Enfatizou que isso é uma questão que muda também os princípios da Segurança Nacional, porque o Estado terá que olhar não apenas o Espaço do Lugar, Espaço do Fluxo, mas, fundamentalmente, entender os fluxos. E, dentro desses fluxos existem não só pessoas, contrabando ou drogas, mas, sobretudo, idéias. Então como é que o Estado vai reagir contra isso? Questionou.

O Estado, de acordo com Lia Machado, terá que mudar toda uma estrutura de concepção. É preciso devolver a securitização ao nome Segurança Nacional. Nesse momento, como se apresenta, não pode ser chamada de Segurança Nacional, observou.

Finalizando sua apresentação, Lia Machado destacou que o Brasil, hoje, está ocupando, praticamente, todos os países vizinhos. Afirmou

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que os brasileiros são agressivos, no sentido de ocupação de território na América do Sul e que não se trata apenas de defesa de fronteiras, mas em alguns casos, de invasão de território alheio. Disse ainda que, quando o Presidente do BNDES, Carlos Lessa, afirmou que o Brasil deveria financiar estradas do outro lado, ele estava absolutamente correto, pois do outro lado tem brasileiro e isso o Estado tem que entender e aceitar.

A intervenção seguinte foi do Vice-Almirante Murillo de Moraes Rêgo Correa Barbosa, Diretor do Departamento de Política e Estratégia da Secretaria de Política, Estratégia e Política Internacional do Minis-tério da Defesa, que informou que em função da exigüidade do tempo se concentraria na questão da Política de Defesa Nacional, no que se refere à Amazônia.

Referiu-se aos dados apresentados pelo Professor Francisco Teixeira sobre a Amazônia e declarou-se extremamente preocupado com os mesmos. Relatou que, recentemente, em um seminário patrocinado pelo Ministério da Defesa, em Itaipava (RJ), um renomado cientista político, fez um questionamento sobre a Amazônia: Por que vocês se preocupam tanto com a Amazônia, se lá só estão concentrados 5% do PIB e 12% da população brasileira?

Afirmou que em termos de política internacional, a Amazônia não é totalmente entendida e indagou porque a Amazônia é vulnerável. Referiu-se ainda a uma pesquisa divulgada em alguns jornais locais da Amazônia em 2000 ou em 2001, que afirmava que cerca de 11% da população pesquisada afirmava que não se incomodava em mudar a sua nacionalidade, ou seja, não se importava em continuar sendo brasileira ou não, desde que recebesse uma maior assistência do Estado. Isso, segundo o Vice-Almirante Barbosa, é um dado extremamente preocupante para o Governo brasileiro. Destacou que a pesquisa citada revela o desestímulo e a frustração daqueles que vivem na região em função da falta de assistência e amparo do Estado.

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Em relação à Política de Defesa Nacional destacou que a Amazô-nia é uma das grandes prioridades para o Ministério da Defesa. Ressaltou que a Defesa Nacional não é um instrumento, puramente militar, mas que possui duas vertentes, a militar e a civil. Para o Vice-Almirante Barbosa, a presença do Exército e de seus pelotões é extremamente importante porque cria formas de concentração. A Marinha também, afirmou, tem participação extremamente importante, principalmente por intermédio dos seus navios de assistência hospitalar.

Em relação à presença civil destacou que é mais difícil mantê-la na região, exceto por intermédio do desenvolvimento e da vivificação. Explicou que o Estado brasileiro só irá a vários pontos da região Amazô-nica se houver uma demanda de trabalho por estado e mesmo onde existe demanda, torna-se muito difícil a atuação. Exemplificando, questionou: Como é que a Funai vai estar presente em todas as comunidades indí-genas na Amazônia? Ressaltou que há alguns anos a Funasa desistiu de prestar assistência direta aos índios e começou o trabalho de terceirização porque não conseguia prestar o auxílio necessário, em função do difícil acesso. Chamou a atenção para a questão do acesso à região, ressaltando que é mais fácil para o Exército do que para outras instituições, estar presente na região.

Referiu-se ainda à Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa) como sendo um importante instrumento para o desenvolvimento da região, além do Projeto Calha Norte. Em relação ao Projeto Calha Norte, afirmou que, ao contrário do que a Professora Lia Machado sugeriu, o mesmo vem ganhando novo fôlego nos últimos anos. Lembrou que o projeto estava escalado para ser extinto em 1999, mas por uma grande ação do Ministro da Defesa na época, em função de o projeto ter sido remanejado para o Ministério, acabou sendo recuperado e, hoje, já conta com recursos expressivos dentro da linha orçamentária do ministério, segundo ele, algo em torno de 67 milhões, beneficiado por emendas

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parlamentares no Congresso Nacional pelo fato de possuir uma credibilidade política muito grande.

Afirmou que, do ponto de vista militar, o Exército e as Forças Armadas têm planos ambiciosos para a Amazônia. O Exército, explicou, tem um plano de levar para a Amazônia mais algumas brigadas, nesses próximos quatro ou cinco anos. A área da Cabeça do Cachorro será uma área contemplada, com a ativação, em agosto de 2004, de uma brigada em São Gabriel da Cachoeira. Informou que a Força Aérea está terminando de implementar um núcleo de Base Aérea em São Gabriel da Cachoeira, justamente, para dar uma assistência maior, na área da Cabeça do Cachorro. Além do mais, continuou, o Exército vai criar, no Estado do Acre, uma nova brigada com novos pelotões de fronteira, isso, segundo ele, reforça a efetiva atuação militar para o segmento da Política de Defesa Nacional desenvolvida pelo Exército, apesar das restrições financeiras e orçamen-tárias enfrentadas pelo Ministério da Defesa.

Em relação às Unidades de Conservação localizadas nas áreas de fronteira e à ampliação das Terras Indígenas, afirmou encarar essas políticas com uma certa reserva, em função da vulnerabilidade a que ficaria exposto o território brasileiro pelo fato de criar-se um cinturão desabitado ao redor do Brasil.

Referiu-se ainda às discussões iniciadas pelo Gabinete de Segurança Institucional no sentido de colaborar com a construção de uma nova política indigenista, o que, segundo ele, propiciaria a avaliação de um novo modelo, a exemplo da vivificação e desenvolvimento das comunidades indígenas nas unidades de conservação.

O debatedor seguinte foi José Olavo Coimbra de Castro, Coordenador-Geral de Recursos Humanos da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Iniciou sua intervenção informando que restringi-ria sua abordagem à sua experiência de vida e que tentaria fazê-lo de maneira didática.

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Ressaltou que o Professor Francisco Carlos fez uma análise baseada em cenários e essa análise prospectiva está, fundamentalmente, ligada ao fato de os mesmos serem passíveis de modificações. Ou seja, esse desejo de mudança atuará na medida em que ao avaliarmos esses cenários verificarmos nossos objetivos e, de acordo com nossas priori-dades, procedermos à sua alteração. Naturalmente, enfatizou, há que se considerar os meios ou a capacidade dos meios disponíveis para realizar essas ações para chegarmos a mudar o cenário positivo ou negativo da forma que nos interessa.

Enfatizou que para a composição da aplicação do poder é necessário analisar três aspectos: Recursos Humanos, Território e Instituições. Com relação aos Recursos �umanos afirmou a necessidade de considerar que a região não conta com recursos humanos suficientes e que sejam preparados para atuar em projetos de longo prazo, criando envolvimento com as realidades locais. Normalmente essas lideranças são de fora da área. A formação desses talentos, também, sofre muito com a falta de estrutura para a sua preparação.

Em relação ao ensino profissionalizante existem poucas Escolas Técnicas Federais e particulares, além do Sistema “S”, formado entre outros por: Senai, Senac e Sesc e fundações como a do Centro de Análise e Pesquisa e Divulgação Tecnológica, a Fucap. Afirmou que a região possui alguns centros formadores ligados aos pólos industriais da Amazônia, à Zona Franca de Manaus e a região, naturalmente, conta com instituições públicas e privadas de Ensino Superior. Destacou que a primeira constatação é que há que se investir na preparação e no desenvolvimento desses talentos e elaborar políticas que possibilitem a sua permanência na região.

Segundo José Olavo de Castro, quando fazemos a análise relacionada à terra, ao território, percebemos nos diagnósticos consul-tados que alguns apresentam informações que denunciam a falta de

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atualização dos dados. Quando se trata do Sivam/Sipam um dos aspectos que percebemos é que, recentemente, o grande evento dentro de tais sistemas foi a incorporação da base de dados do Ibge.

Em relação às instituições, afirmou que elas existem para coordenar a convivência e disciplinar o conjunto das atividades daqueles que lá estão. Afirmou que num governo que trata do diagnóstico e estratégia do Plano Amazônia Sustentável, a questão do quadro institucional é descrita da seguinte maneira: subsistem, anacronicamente, quase quarenta anos de experimento e desenvolvimento regional numa terra pouco auspiciosa aos esforços de coordenação. Isso, afirmou, nos leva a discutir a aplicação do poder seja no âmbito do Governo federal, seja com respeito às relações liberativas estabelecidas na Constituição de 88 e, mesmo quanto à própria regulamentação da Constituição. Usou dois casos para exemplificar: a Questão Indígena, onde o governo aplicou em torno de 50 milhões – apesar de bastante consideráveis – só aproveitou 56% de todo o investimento e custeio destinado ao Comando do Exército.

Afirmou ainda que, além desses recursos, os índios, hoje, detêm, de acordo com a Norma Constitucional, 12% do território nacional, porém, num contraponto, na maioria dos casos, a situação em que vivem é de extrema pobreza. Disse que essa situação é decorrente de uma série de fatores e que alguns poderiam ser oportunamente debatidos.

Inicialmente, citou o Artigo 231 da Constituição, que segundo ele, veio mudar, radicalmente, o papel da Funai. Até 1988, afirmou, a missão da Funai era integrar os índios à sociedade. Hoje, com o reconhecimento da organização social, costumes, línguas, crenças, tradições e, inclusive, dos direitos originais sobre as terras que, tradicionalmente, ocupam, o que temos, efetivamente, explicou, é um aumento da importância dessas populações de maneira justa, porém, com algumas contradições.

Citou como exemplo a não regulamentação dos parágrafos

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terceiro, que trata dos recursos hídricos e mineração, e do sexto, que trata de relevante interesse público da União nas terras indígenas. Isso, de acordo com José Olavo de Castro, criou limitações, seja para a uti-lização econômica pelos próprios índios, seja para o desenvolvimento do País. Esse esvaziamento do papel da Funai, afirmou, tem uma outra face visível, ou seja, a transferência das atribuições relativas à saúde e à educação, para Ministérios e Organizações Não Governamentais.

Em relação às Organizações Não-Governamentais, afirmou que, em alguns momentos, essas organizações, mesmo recebendo recursos do Governo, se contrapõem a ele. Outro aspecto destacado diz respei-to às estimativas da Funai quanto ao número de índios em território brasileiro. Segundo José Olavo de Castro, a Funai chegou a afirmar a existência de cerca de 345 mil índios, porém, no censo de 2000, o Ibge afirmou que 730 mil pessoas declararam-se índias. Naturalmente, segundo Olavo de Castro, essa declaração tem a ver com a decorrência dos Direitos Constitucionais que foram assegurados e a valorização da identidade cultural indígena.

Outro exemplo citado diz respeito ao problema das funções assemelhadas de coordenação e, no caso específico da Amazônia, de iniciativas de desenvolvimento regional. Explicou que essa realidade pode ser exemplificada com a superposição de funções de três grandes órgãos existentes na região, no caso, a Agência de Desenvolvimento da Amazônia, a Superintendência de Desenvolvimento da Zona Franca de Manaus e a Secretaria de Coordenação da Amazônia, do Ministério do Meio Ambiente, com superposição em vários momentos.

Encerrando a primeira rodada com os debatedores, o Procurador Vicente Gomes da Silva fez sua intervenção. Iniciou agradecendo o convite e anunciou que traria questões pragmáticas. Destacou ainda que faria uma contextualização das questões ambientais com o exercício da soberania na Amazônia.

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Ressaltou que para compreender melhor as questões que estão postas, seria necessário conhecer um pouco mais do contexto jurídico, do cenário e da estrutura que foi concebida a partir de 1988, e para isso, se reportou à questão do Direito Ambiental.

Segundo Vicente Gomes, o Direito Ambiental é um Direito Difuso, de uso comum do povo. É um direito que permeia, que orga-niza e transita por todos os outros ramos de direito. É um direito da coletividade, do povo, é um direito que antecede e que capitaliza todos os outros ramos do direito.

Afirmou que o Direito Ambiental possui conceitos mais difusos e mais abertos e é preciso que a doutrina e a jurisprudência construam isso para poder assegurar, efetivamente, os interesses da coletivida-de. Ressaltou que esse conceito que vem do Artigo 225 que traz essa perspectiva, bem como, dos Artigos 23 e 24 da Constituição, onde o legislador constituinte criou algumas regras, entre as quais a da repar-tição político-administrativa das competências, das matérias comuns, que servem tanto para a União quanto para os Estados e Municípios e criou, também, no Artigo 24, a possibilidade recursional de os Estados e, inclusive os Municípios, de forma mais residual, legislarem sobre matéria ambiental.

De acordo com Vicente Gomes, isso representa, do ponto de vista da execução, da criação e aplicação de instrumentos comuns de controle desta política, uma certa dificuldade cotidiana, especialmente, dos saldos ambientais. Afirmou que o poder da execução para o governo federal, governos estaduais e municipais, muitas vezes, traz, a duplicação de ações, de custos, e, de conflitos técnicos e políticos da perspectiva dos órgãos governamentais, porque a competência está atrelada à execução de uma política ambiental.

Em relação à competência legislativa, afirmou que há uma certa proliferação de Leis Estaduais e que nem sempre as mesmas

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têm preocupação com a harmonia, ou seja, há legislações que, com freqüência, entram na competência federal e vice-versa.

Apontou o que segundo ele seriam problemas cotidianos no Brasil: em primeiro lugar, afirmou que Legislação Ambiental fixa os mesmos conceitos das admissões para todo o Brasil, não levando em considera-ção as especificidades locais. �á, segundo ele, a necessidade de tratar desigualmente, os desiguais.

Citou como exemplo a Área de Preservação Permanente (APP) prevista no Artigo 1º e 2º da Medida Provisória nº 2.166, de 24 de agosto de 2001, que não seria compatível com os rios e o pantanal, inclusive, denominados lagos e várzeas. Afirmou que essa indiferença em relação às especificidades regionais significa condenar uma norma ao fracasso.

Com respeito ao manejo florestal, afirmou que só pode ser reali-zado em área de até 2.500 hectares e que pela Constituição só poderá ser autorizada a exploração de recursos naturais em propriedades públicas em áreas de até 2.500 hectares, salvo, se o Congresso Nacional autorizar uma área maior.

No que se refere à exploração mineral em terras indígenas, Vicente Gomes afirmou não ser possível a prática dessa atividade por falta de regulamentação do Artigo 231 da Constituição Federal que diz que é necessária Lei Complementar, o que tem originado inúmeros conflitos. Citou como exemplo o caso da reserva Roosevelt, onde foram assassinados 29 garimpeiros.

Em seguida a um pequeno intervalo, foi dado início a um segundo debate, desta vez com a participação da plenária.

O primeiro participante a manifestar sua opinião foi Paulo Moutinho, Coordenador de Pesquisa do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia. Ele se referiu principalmente à questão da ausência do Estado na região.

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Questionou também a questão das fronteiras de ocupação da Amazônia, que segundo ele, necessitam de estratégias diferentes. Abordou ainda a questão da segurança climática e alimentar do País.

Solicitou ao Professor Francisco Teixeira que fizesse um comen-tário em relação ao fato de estarmos entrando em um outro momento de abordagem sobre as questões amazônicas, bem como as perspectivas e os parâmetros que as alimentam.

Respondendo às questões levantadas, Francisco Teixeira chamou a atenção para o fato de o Brasil se encontrar numa situação muito especial em relação à Amazônia, uma situação, segundo ele, única. Destacou que desde os anos 30, o Brasil tem crescido a taxas históricas de 7%. Ressaltou que as decisões a serem tomadas agora são fundamentais para corrigir, elaborar, e reajustar procedimentos de crescimento intenso e que as deman-das, inclusive, do conjunto nacional e do conjunto Sul-americano podem ser muito grandes sobre a Amazônia, fazendo com que a possibilidade dos cenários de degradação se imponham em detrimento de cenários de desenvolvimento auto-sustentável. Ressaltou ainda a necessidade de arregimentar atores locais da região para participarem de todo o processo de discussão que se fizer necessário.

Destacou ser imperativo tornar claro que a Amazônia faz parte de um complexo nacional e que os objetivos propostos terão necessaria-mente que estar alinhados com as necessidades regionais. Afirmou ser imprescindível buscar um equilíbrio entre as metas e objetivos nacionais e os da própria região.

Em seguida, Vicente Gomes interveio afirmando ser necessário contextualizar a aplicação das leis. Referiu-se ainda aos planos de manejo sustentável e à exploração racional de madeira da região.

Logo após, houve a participação de Paulo Machado Guimarães, Assessor Jurídico do Conselho Indigenista Missionário (CIMI); de Joenia

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Batista de Carvalho, Advogada representante do Conselho Indígena de Roraima (CIR) e de Vanessa Fleischfrsser, da Secretaria de Coordenação da Amazônia do Ministério do Meio Ambiente.

Paulo Machado afirmou sua preocupação em relação às interven-ções da Professora Lia Machado e do Vice-Almirante Murillo Barbosa, bem como, do Professor Castro. O tema, segundo ele, suscita uma preocupação no que diz respeito à formulação da suposta existência de limitações à presença do Estado, fundamentalmente, como posto em razão da demarcação das Terras Indígenas. Afirmou que a intervenção do Vice-Almirante Murillo Barbosa, bem como a do Professor Castro remetem a esta preocupação, e solicitou ainda um comentário dos debatedores, no sentido da inexistência de limitação sobre o aspecto constitucional legal e a presença do Estado, no que diz respeito às Terras Indígenas.

Destacou que o fato de existirem Terras Indígenas na Faixa de Fronteira não limita, como jamais limitou, a presença das Forças Armadas. O que existe, afirmou, é uma polêmica de ordem constitucional em razão de um ato normativo baixado pelo Governo passado e que vem sendo mantido pelo atual Governo, no que diz respeito à construção e a expansão de Batalhões Especiais ou mesmo de postos das Polícias Federais em Terras Indígenas localizadas em Faixa de Fronteira.

Joenia, Advogada e Presidente do Conselho Indígena de Roraima, afirmou, em relação às abordagens anteriormente citadas, ter ficado extremamente preocupada como indígena e também como advogada. De acordo com Joenia, existe uma ausência de diálogo no que diz respeito aos serviços essenciais prestados pelo Estado nas Áreas de Fronteira. Afirmou que Roraima faz fronteira com a Venezuela e que é necessário respeitar a visão de integração regional e a visão da diversidade.

Questionou se os povos indígenas seriam pobres ou se foram empobrecidos. Ressaltou que os povos indígenas foram os primeiros

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brasileiros do País e que desejam estabelecer parcerias. Mostrou-se preocupada em relação à ampliação da presença de instituições como a Polícia Federal nas terras indígenas. Afirmou ainda que o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) publicou portaria que exclui os povos indígenas das discussões envolvendo os interesses dos mesmos.

Em relação a esta temática, solicitou que os integrantes da mesa tecessem comentários relacionados a algumas preocupações, a exemplo de como as Forças Armadas contribuíram para fomentar um diálogo entre as instituições e as lideranças, organizações e unidades indígenas, ação que, de acordo com ela, tem a finalidade de evitar demandas judiciais ao promover a inclusão das populações indígenas nos debates e discussões.

Completando a terceira participação do primeiro bloco, Vanessa Fleischfrsser, Chefe de Gabinete da Secretaria de Coordenação da Amazônia do Ministério do Meio Ambiente, iniciou sua intervenção afirmando que iria se reportar ao Plano Amazônia Sustentável (PAS).

Abordou ainda a questão da duplicação de atribuições no que se refere à Agência de Desenvolvimento da Amazônia (ADA); ao Ministério da Integração Nacional e à Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa) e destacou que está havendo uma reformulação e que as insti-tuições referidas possuem papéis diferentes.

Afirmou que a população da Amazônia é, em sua grande maioria, urbana, portanto, a população-alvo dos programas para a região, segundo ela, representa a minoria. De acordo com Vanessa, o Estado do Amazonas apresentou o maior índice de crescimento entre todos os Estados brasileiros no ano de 2000 e destacou a necessidade da população excluída da região ser alvo das políticas públicas governamentais.

Em seguida, o Vice-Almirante Barbosa solicitou o desejo de fazer algumas considerações a respeito da abordagem feita pelo representante do CIMI, Paulo Machado Guimarães.

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Em relação ao Decreto 4.412, de 7 de outubro de 2002, que dispõe sobre a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal em Terras Indígenas, mencionado por Paulo Machado, explicou que o mesmo foi publicado e que houve uma série de manifestações contestando a constitucionalidade dele, principalmente por parte de Organizações Não-Governamentais, e em particular, pelo CIMI.

Salientou que a Política de Defesa Nacional não é das Forças Armadas, mas sim do Estado e que, ao contrário do que apregoam algumas Ongs, as Forças Armadas não desejam acabar com as Terras Indígenas, desejam, isto sim, demarcá-las e homologá-las. Afirmou que existe uma grande parcela da população indígena que deseja uma convivência harmoniosa com culturas não-indígenas.

Contestou a argumentação de Paulo Machado quanto ao fato de as populações indígenas não estarem de acordo quanto à demarcação e homologação de terras e no que diz respeito aos índios serem contra as Forças Armadas, afirmou que isto não condiz com a realidade.

Em relação à ocupação de terras pelas Forças Armadas, defendeu a ocupação de grandes áreas desabitadas, principalmente as áreas de fronteira, com o objetivo de promover um eficiente sistema de controle e monitoramento dessas áreas, evitando torná-las vulneráveis.

Em relação à sugestão de Paulo Machado quanto às Forças Armadas adotarem um sistema de monitoramento remoto, utilizando-se do Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam), o Vice-Almirante Barbosa classificou como absolutamente impossível, justificando que os custos advindos daí seriam muito altos, além do fato de, segundo ele, ser absolutamente impossível vigiar dois milhões de quilômetros quadrados de maneira virtual, ou seja, sem a presença física das Forças Armadas na região.

No que diz respeito aos comentários da Advogada Joenia, o

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Vice-Almirante destacou que o diálogo com as populações indígenas é uma preocupação constante das Forças Armadas e que o pensamento da cúpula do Ministério da Defesa é preservar e respeitar a cultura das populações indígenas.

Em seguida, o Professor Castro fez uso da palavra afirmando que seria conciso e que se deteria exclusivamente a responder os questiona-mentos dirigidos a ele.

Ressaltou que o primeiro aspecto para o qual gostaria de chamar a atenção seria em relação à execução pelo Estado, da vontade coletiva. Afirmou ser necessária uma ampla discussão sobre o assunto, destacando que nessas discussões há que se considerar a questão de perspectivas, ou seja, de cenários futuros.

Em relação ao crescimento demográfico e a densidade popula-cional indígena, referiu-se aos números apresentados pela Funai e pelo censo de 2000, do Ibge, que seriam respectivamente 350 e 730 mil, fazendo uma ressalva de que, em relação aos números do Ibge, o mesmo leva em consideração as populações indígenas que habitam os grandes centros urbanos.

Respondendo aos questionamentos da Advogada Joenia, o Professor Castro ressaltou que seus comentários não seriam fruto de uma posição institucional, mas sim de um processo de vivência na região. Ressaltou que existem hoje cerca de 180 línguas, 215 etnias e 604 Terras Indígenas em 12% do território nacional e que dentro de cada uma dessas etnias há opiniões divergentes em relação a vários aspectos culturais, como a utilização de luz elétrica, o desejo de assistir televisão e que a cultura jovem atuaria nessas comunidades com resultados importantes neste processo.

Em relação ao Plano Amazônia Sustentável (PAS), afirmou que o

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relatório que analisou é de outubro de 2003 e que apesar da reformulação que sofrerá, sua opinião pessoal é de que há superposição de atribuições no referido Plano.

Reiterou que cabe ao Estado coordenar a vontade coletiva de incor-porar toda a cultura indígena como parte da cultura da população brasileira como um todo e que todo trabalho, seja do Estado, seja das organizações da sociedade civil, deve basear-se numa visão prospectiva, ou seja, uma visão de futuro.

Após a sessão de debates foi realizado um intervalo para o almoço, sendo retomadas as apresentações e debates num segundo momento da Reunião, no período da tarde.

A segunda parte da Reunião iniciou-se com a apresentação da Professora Bertha Becker, Professora Emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Inicialmente, Bertha Becker agradeceu o convite recebido pelo Gabinete de Segurança Institucional e a oportunidade de diálogo.

O primeiro tema abordado foi a questão da Soberania, classificado por Bertha como um tema extremamente controvertido, tanto conceitual-mente quanto na prática, devido à interdependência crescente do Mundo Contemporâneo, baseada por um lado na revolução científica e tecnológica e particularmente, na microeletrônica e na comunicação, e que gerou a possibilidade de fluxo e redes transfronteiras, trans-estradas e que não se refere, apenas à técnica e sim a uma nova forma de produção.

Em uma breve contextualização sobre a perda relativa da soberania, Bertha considerou o fim da Guerra Fria que, segundo ela, abriu extraor-dinariamente as relações internacionais. Nesse contexto, afirmou, houve uma crescente participação dos Estados nos organismos internacionais e os Estados começaram a aceitar práticas comuns no comércio, na proteção ambiental, em relação à cidadania e com isso houve perdas de soberania.

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Para Bertha Becker, os Estados e a própria soberania têm que ser entendidos como processos que mudam de natureza, de funções, se ajustando às transformações do mundo, na medida em que os séculos passam. Afirmou que a interdependência global não se resume à unificação de mercados, envolve a interconexão das arenas políticas nacionais e internacionais.

Atualmente, o que estamos observando, afirmou, é uma certa dimen-são das dicotomias, dos pressupostos básicos da soberania, ou seja, direito, força, Direito do Estado, Direito Internacional, essa interconexão, gera uma situação extremamente complexa no sentido de entender como assegurar a soberania e a Amazônia é um caso exemplar dessas interconexões e de certa diluição desses elementos, desses pressupostos básicos.

Nesse contexto, afirmou, se fortalece a geopolítica, não mais através da conquista de territórios, mas ao contrário, acentuando a exacerbação de toda sorte de pressões para influir na tomada de decisão sobre o uso do território e o desenvolvimento dos Estados.

Ressaltou que vivemos um contexto extremamente complexo no qual é necessário discernir entre utopia ecológica, geopolítica ecológica e consciência ecológica social. A geopolítica contemporânea estabelece as limitações ao exercício da soberania. Explicou que com o objetivo de ser didática, dividiria sua apresentação em quatro sessões, expostas a seguir:

1. Limitações Aceitas por Ratificação de Acordos Internacionais.

2. Restrições Aceitas de Preservação do Meio Ambiente e da Biodiversidade.

3. Pressões de Organismos Internacionais, Comunidades Científicas e Lideranças Políticas Mundiais.

4. Pressões Internas/Externas de Organizações Não-Governamentais

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Em relação ao primeiro tópico, Limitações Aceitas por Ratificação de Acordos Internacionais observou que vemos, claramente aí a interação entre Direito e Força e Direito do Estado e Direito Internacional. A interação e conflito juntos e essas limitações, aceitas por ratificações de acordos, seriam as mais sérias restrições, ou pelo menos, deveriam ser.

Frisou que na revolução científico-tecnológica a informação é o cerne do poder e é extremamente preocupante que o Brasil não tenha dado atenção suficiente a esse tema.

De acordo com Bertha Becker, a virtualidade de fluxos em redes que sustentam a riqueza circulante não elimina o valor estratégico da riqueza localizada no território e valorizada também, por causa da água, classificada por Bertha Becker como o ouro azul do século XXI.

Explicou que, quando afirma que a Amazônia é o Heartland ecológico do planeta quer dizer que o Brasil é o país de maior mega-diversidade, significando novos recursos genéticos e princípios ativos biológicos de grande interesse para o mercado e relevância social. É importante, contudo, reconhecer que a Amazônia não é um espaço vazio e passou por profundas transformações estruturais nas últimas décadas do século XX.

Com um mapa da Amazônia Legal, destacando o povoamento e as macrorregiões, Bertha chamou a atenção para a área denominada “Arco do Desmatamento”, sugerindo a mudança de nome da área em função de apresentar-se atualmente como uma região de povoamento consolidado.

Ressaltou que se deve pensar a Amazônia como uma região que tem suas demandas, que tem uma dinâmica própria e que se faz necessário mudar a idéia de política de ocupação da Amazônia, porque ela está ocupada desde os primórdios com populações indígenas, missionários, e até mesmo, por intermédio do projeto de integração nacional.

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Chamou a atenção também para o que classificou como o “Poder de Agenda”. Segundo Bertha, esse Poder de Agenda no mundo atual se apresenta como um dos instrumentos mais eficazes na pressão geopolítica, afirmando que o que está na agenda é discutido, o que não está na agenda nem chega a figurar na pauta de discussão.

Evidentemente, afirmou, terão mais força e poder os países que naturalmente possuam maior poder de agendamento, ou seja, de incluir na agenda global os temas que mais se adequem aos seus interesses.

Então, explicou, é fundamental ter negociações adequadas porque, geralmente, as agendas já vêm orientadas de acordo com os interesses externos e é nos elementos da Agenda Ambiental, que temas como o aquecimento da atmosfera, o efeito estufa, o meio ambiente e a biodiversidade foram corporificados na ECO 92, no Rio de Janeiro.

Destacou que a Agenda 21 promoveu o esforço de muitos países, que o principal resultado da Rio 92 foi a popularização do conceito do Desenvolvimento Sustentável e que houve um papel muito importante da diplomacia brasileira, no sentido, de tirar o foco excessivo da Amazônia e também, no sentido de humanizar a questão ambiental.

Frisou que a introdução do Desenvolvimento Sustentável foi muito promissora no sentido da humanização da Agenda e que, basica-mente, o Desenvolvimento Sustentável é um processo de mudança e não se enquadra num modelo predeterminado, em função da necessidade de reconhecer as condições específicas de cada grupo para poder traçar a trajetória de um povo.

Referiu-se ainda ao que denominou “Mercado da Água”, que segundo ela é ainda incipiente. Afirmou que existe uma multiplicidade de agências das Nações Unidas, financiamentos do Banco Mundial e Comissões que visam coordenar ações, porém, não têm conseguido resultados efetivos. Sua valorização, afirmou, reside na ameaça de

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

escassez decorrente do forte crescimento do consumo, a tal ponto que é considerada como o “ouro azul”, capaz de, à semelhança do petróleo no século XX, instigar guerras no século XXI.

Afirmou acreditar que o Brasil tem se saído muito bem nas convenções da biodiversidade, do clima e que hoje estamos observando uma volta dos Estados Unidos, no sentido de uma postura bem mais agressiva no que se refere à biodiversidade e ao protecionismo. Ressaltou que é muito visível o jogo duplo que os Estados Unidos fazem nos organismos e agências internacionais.

Em relação ao Decreto 4.412, de 7 de outubro de 2002, que dispõe sobre a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal em Terras Indígenas, ressaltou o fato de o mesmo ter contrariado a legislação no sentido de não ter consultado, previamente, os grupos indígenas e não ter estabelecido regras de conduta.

Em relação ao tópico seguinte, Restrições Aceitas de Preservação do Meio Ambiente e da Biodiversidade, ressaltou que o processo de politização da natureza não é apenas o objeto direto das pressões, é também um instrumento de pressões para atingir o próprio Brasil e o desenvolvimento brasileiro.

No que se refere à fronteira, Bertha destacou sua preocupação com o tema no sentido de território porque, justamente, na área de fronteira existe uma imensa extensão de áreas protegidas e de Terras Indígenas, às vezes, segundo ela, superpostas.

Destacou que se deteria um pouco na abordagem sobre a vivificação das fronteiras. Afirmou que os grupos indígenas têm, às vezes, a mesma etnia de um lado e de outro da fronteira e que são elementos centrais de vivificação das mesmas.

Observou que no Alto Solimões e no Oiapoque a movimentação de um lado para o outro é contínua e que são trocas informais que vivificam a

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fronteira, embora cada um deles sinta que faz parte do Brasil, da Colômbia, da Guiana Francesa.

Afirmou que os índios vão até a Guiana Francesa em busca de benefícios sociais concedidos pelo Governo francês e que depois retornam ao Brasil. Destacou ser este um movimento de vivificação ao contrário.

Em relação à questão do Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam), afirmou que temos que começar a pensar mais em termos de tecnologia e não de desflorestamento. Afirmou que a Funai já desenvolve atualmente programas de treinamento em informática, voltados às populações indígenas.

Destacou que em que pesem os programas multilaterais, as potências continuam a ter as suas estratégias particulares, individuais, ou seja, o projeto multilateral não elimina a ação individual.

Em relação à cooperação internacional, Bertha acredita que ela tem sido mais aplicada, com uma autonomia excessiva, e que atua através de recursos financeiros que, segundo ela, são extremamente sedutores, ao contrário dos pesquisadores brasileiros que não dispõem de recursos financeiros e, menos ainda, de poder de agenda.

Sugeriu que o Ministério da Ciência e Tecnologia desenvolva um mecanismo de controle, em função de estarmos vivendo um processo de globalização na pesquisa, mantida pela integração de todas as uniões científicas do Mundo.

Afirmou que os pesquisadores têm os mesmos modus operandi em diferentes partes do mundo e têm as suas parcerias com os países, no entanto, questionou quem é que fica com o resultado global das pesquisas realizadas. Defendeu a realização de pesquisas na região e a cooperação internacional, porém, com a ressalva de haver uma negociação clara, com o Governo brasileiro em relação ao controle das informações.

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Em relação às Pressões Internas e Externas das Ongs, afirmou que as mesmas representam a manifestação mais clara da interconexão das políticas nacionais e internacionais, das faces interna e externa da soberania. São, afirmou, extremamente complexas, são redes de redes e é muito difícil saber o número exato dos financiamentos, inclusive, porque as Ongs não costumam divulgar esse tipo de informação.

�á, afirmou, uma sociedade muito sofrida na Amazônia. A pobreza e a desapropriação de terras durante a expansão em torno da integração possibilitou que grupos se reunissem em redes de organizações da socie-dade civil para se defender, obtendo então o apoio de Ongs internacionais e nacionais. Destacou que o primeiro grande apoio a todos esses grupos foi da Igreja Católica e depois dos sindicatos.

Chamou ainda a atenção para a importância da organização da sociedade civil. Informou que realizou uma pesquisa de campo que mostra muito bem o perfil da organização social das Ongs, ressaltando, porém, que as mesmas não são homogêneas. Elas são muito diferenciadas entre si.

Do ponto de vista da soberania, sugeriu, como critério para a atuação de Ongs internacionais, um envolvimento efetivo com o desenvolvimento regional, com programas regionais e não são só globais. Destacou que há uma tendência mundial de prestação de serviços pelas Ongs e uma extrema competitividade entre elas.

Voltando à questão da cooperação internacional, ressaltou que a mesma tem tido crescente influência na implementação de políticas públicas, do ponto de vista financeiro, técnico e científico.

Em relação às Pressões Externas as quais denominou “Politização da Natureza”, explicou que o Brasil, apesar de todo o recuo que teve na sua posição econômica, ainda é considerado uma potência regional, com presença ativa nos organismos internacionais e liderança na América do Sul.

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No que se refere à Agenda Internacional, chamou a atenção para o fato de que o Brasil enfrenta com grande desenvoltura e com grande sucesso as imposições da Agenda Internacional Ambiental.

No que diz respeito às formas de coerção, observou que a maior demonstração, é que a incidência da globalização do Brasil se faz através da cooperação internacional, enquanto que na América Central e na faixa do Pacífico a incidência da globalização se fez através da presença militar crescente.

Destacou que o Sivam foi uma ferramenta muito importante nesse processo, e acredita que o mesmo poderá ser responsável por maior integração Sul-Americana. Afirmou que o principal desafio para o exercício da soberania sobre a Amazônia reside na interconexão das suas faces interna e externa.

Explicou que houve uma grande conscientização política, que a população apresenta reivindicações sociais, se organizou como sociedade civil e, isso não só no Brasil, mas em todos os países Latino-Americanos.

Chamou a atenção para o que classificou como internacionalismo de movimentos sociais, a exemplo do Fórum Social Mundial (FSM) e ainda para a questão da substituição da política de ocupação pela conscientização e desenvolvimento. Destacou a importância de se reconhecer não apenas a Biodiversidade, mas também, a sociodiversidade, ou seja, suprir carências básicas.

Ressaltou que se o Governo investir um pouco mais na conta dos Fundos de Proteção Ambiental, poderá suprir um pouco das carências das populações em relação à Saúde e à Educação. Chamou a atenção para a questão da urbanização, ressaltando que a Amazônia é floresta urbanizada, ou seja, 70% da população vive em núcleos urbanos e que esses núcleos representam o comando da vida política e econômica da região.

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Em relação à atuação de algumas Ongs, acredita que deve haver um investimento maciço em ciência e tecnologia, em função da necessidade de um pensamento autônomo. Destacou que a liberdade intelectual está diretamente relacionada ao investimento nacional em pesquisa, caso contrário, alertou, caminharemos sempre a reboque de modelos externos.

Em relação às Terras Indígenas, acredita que algumas reivin-dicações são absolutamente plausíveis, a exemplo do diálogo que o exército vem mantendo com as populações indígenas. Destacou que os grupos indígenas estão numa nova fase, porque a grande reivindicação deles não é mais a demarcação das terras; hoje a nova demanda seria por desenvolvimento.

Lembrou que existem na área de fronteira, três malhas administrativas superpostas. Uma malha administrativa oficial de Municípios e Estados, uma malha ambiental de áreas protegidas e finalmente, a Faixa de Fronteira. Acredita que o Estado deve trabalhar na regulamentação da Faixa de Fronteira, promovendo uma regulamentação efetiva do uso dos recursos nessa área, o que poderia auxiliar na superação de superposições e conflitos.

Finalizando, salientou estar convencida que só iremos resolver, realmente, o problema da Amazônia quando passarmos para uma postura de consolidação do desenvolvimento. Além da construção de uma massa crítica, é necessário que os pesquisadores empreendam uma revolução tecnológica para o uso da biodiversidade em todo os seus níveis, que vai dos fármacos aos cosméticos e extratos que já estão sendo produzidos, agregando valor aos produtos da floresta.

Afirmou que, ao gerar cadeias produtivas da floresta para os centros de biotecnologia, estaríamos aproveitando um patrimônio enorme e riquíssimo para o bem da população da Amazônia e do Brasil. Destacou não ser possível que o Governo fomente apenas outras áreas de produção como a soja e a pecuária em detrimento de um enorme potencial de produtos da floresta.

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Afirmou que a produção de soja e a pecuária contam hoje com um sistema de logística muito avançado, muito rápido e que está entrando floresta adentro. Se não mudarmos nossa visão, afirmou, vamos perder um patrimônio riquíssimo e a oportunidade de utilizar a biodiversidade para gerar cadeias produtivas, que vão oferecer melhores condições de vida, renda e emprego para grupos da floresta. Acredita que a cooperação internacional é uma forma velada de coerção, mas que a diplomacia, o diálogo e, principalmente, os canais comunicantes com a sociedade civil podem transformar essa ação em verdadeira cooperação, em clima de mudança, que é o que verdadeiramente almejamos - uma mudança coletiva.

Após a apresentação da Professora Bertha Becker foi aberta uma sessão de debates com os integrantes da mesa. O primeiro a se pronunciar foi o Procurador Vicente Gomes da Silva que afirmou que há um sentimento claro de que a sociedade está buscando modelos diferentes para a região Amazônica e questionou se estaríamos construindo mecanismos e instrumentos compatíveis, em uma velocidade necessária e ainda se estaríamos criando esse sistema de idéias e respostas de acordo com a riqueza que o Brasil possui e em consonância com as demandas da sociedade.

Afirmou concordar plenamente com a Professora Bertha quando ela afirma que precisamos dar velocidade aos instrumentos de ciência e tecnologia, que seriam um dos mecanismos para que a conservação e preservação de recursos naturais venham suprir as demandas e as necessidades da população amazônica.

Em seguida, foi a vez do Professor Castro tecer suas considerações. Inicialmente, com relação à soberania afirmou que todos os órgãos que estavam presentes naquele Encontro possuíam alguma interferência no

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

processo decisório sobre a Amazônia. Assim sendo, mostra-se fundamental que comecem um trabalho de integração de suas ações. Essa dificuldade de integração, afirmou, é uma dificuldade cristalina na Amazônia.

Em relação às idéias levantadas afirmou que podemos concluir que o Brasil possui alguma capacidade de pressão e constrangimento e que temos muita coisa a oferecer dentro da agenda, levando-se em conside-ração o fato de termos 12% do nosso Território como área à disposição das comunidades indígenas, além de muitas outras áreas preservadas.

Apresentou um quadro, segundo ele, esquemático, expondo as áreas preservadas da Amazônia onde mostrou a localização dos corre-dores ecológicos lembrando que, juridicamente, eles não estão instala-dos, porém, já fazem parte de um projeto completo, desenvolvido, em condições de ser aprovado.

Em seguida, o representante do Ministério da Defesa, o Vice-Almi-

rante Barbosa fez uso da palavra. Explicou que um dos itens que abordaria seria a questão das limitações do exercício da soberania na região Amazônica impostas pela legislação nacional.

Afirmou termos em nossa Constituição artigos que tratam do meio ambiente, artigos que tratam de Terras Indígenas e artigos que tratam da Defesa Nacional e eles, mais ou menos, concorrem de uma maneira democrática dentro da nossa Política Nacional. Acontece, afirmou, que a Defesa Nacional é a que menos desperta prioridade, hoje, somos um País, extremamente, pacífico, há mais de 130 anos que não temos envolvimento em nenhuma ação bélica diretamente motivada por nós, então, sob esse aspecto, estaríamos sofrendo pressões no sentido de desprezar a Defesa Nacional.

Referiu-se à afirmação do Professor Francisco Teixeira que teria mencionado o fato da necessidade de as Forças Armadas se tornarem

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defensoras do Meio Ambiente e da Segurança Pública em detrimento da Segurança do Estado. Afirmou que nesse contexto, a Defesa Nacional e a Soberania Nacional ficam afetadas.

Lembrou que há dois anos quando estava sendo discutida a extensão da Faixa de Fronteira, o Ministério da Defesa chegou a propor ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI) que fosse criada uma faixa não de 150 km, mas de 50 km, porém, foi verificada a impossibilidade da proposta pelo fato de que muitas unidades de conservação já tinham sido criadas e muitas Terras Indígenas já tinham sido homologadas ou demarcadas.

Destacou que na VII Conferência das Partes sobre a Biodiversidade Biológica foi apresentado um conceito de áreas de proteção transfronteiriça. Afirmou que classifica esse conceito como extremamente perigoso e nesse contexto, ressaltou, o relatório do deputado Eriberto Faria seria bem-vindo porque acabaria com esse problema. Observou que nas áreas de fronteira há índios Ianomâmi de um lado e de outro; índios Macuxi de um lado e de outro. Reafirmou sua preocupação em relação às conseqüências das ações de criação de áreas de proteção transfronteiriças.

Concordou com a Professora Bertha Becker em relação ao controle das Ongs. Afirmou que o controle é uma atividade extremamente difícil porque elas estão pulverizadas na Amazônia inteira, mas acredita que essa presença incontrolada das Ongs afeta a soberania nacional.

Outro aspecto ressaltado diz respeito ao controle das pesquisas. Afirmou que, freqüentemente, o Ministério da Defesa recebe do Ministério da Ciência e Tecnologia alguns processos que solicitam a permissão de pesquisadores estrangeiros para realizarem pesquisas na Amazônia, na Faixa de Fronteira. Informou que a Marinha tem um processo de pesquisa no mar e que há sempre um observador da Marinha em qualquer navio que tenha acesso ao material coletado. Acredita que, se em cada pesquisa feita por pesquisadores estrangeiros tivéssemos a

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

presença de um pesquisador brasileiro, evitaríamos muitas ações lesivas ao patrimônio biocientífico brasileiro.

Informou que em junho de 2003, foi criado um Grupo de Trabalho Permanente e Interministerial voltado às questões do desmatamento. Talvez, explicou, seja o primeiro esforço coletivo de Governo envolvendo 14 Ministérios, para ações contra o desmatamento, principalmente, na faixa denominada Arco do Fogo. Esse projeto destacou, envolve cerca de 140 ações já listadas, entrando atualmente na fase de execução.

Afirmou acreditar que até o próximo ano, em termos de índice de desmatamento, já teremos resultados mais positivos e que com isso o Estado terá dado uma resposta em relação ao alvo principal das críticas em relação à Amazônia, ou seja, a questão do desmatamento.

Continuando a sessão de debates com os palestrantes, a Professora

Lia Machado fez sua intervenção. Iniciou fazendo um questionamento: Por que não se divide a Amazônia? Por que não acabar com a Amazônia?

Afirmou que os Estados que fazem parte da Amazônia a apóiam em função do interesse em receber recursos da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), bem como outras instituições como Ongs, grupos indígenas e o próprio Estado brasileiro, que tem seus interesses, argumentos e justificativas para a manutenção da Amazônia.

Segundo Lia Machado, o principal argumento utilizado para a manutenção da Amazônia é a Segurança Nacional, enfatizou, porém, que observa formas repetidas e desgastadas de lidar com a questão.

Em relação ao Ciclo de Estudos acredita que o mesmo tem como objetivo reunir pessoas que possuam defesas de suas próprias posições, todas elas, provavelmente, legítimas. Afirmou que antigamente o Estado costumava reivindicar legitimidade e soberania. Infelizmente, hoje, isso

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não é mais dado ao Estado, que vai ter que se reformular para manter a sua legitimidade. É necessário ao Estado empreender um processo de negociação com outros grupos. Acredita que isso é bom, é uma questão de avanço social da humanidade.

Observou que o Brasil criou uma rede social, a exemplo dos bene-fícios recebidos hoje pelas populações indígenas, e que em função disso, muitos índios dos outros países estariam vindo para o lado brasileiro para obter benefícios, inclusive, alguns têm filhos no lado brasileiro e depois voltam para o outro lado da fronteira.

Finalizando, abordou a questão da linha de fronteira, defendendo as zonas de integração fronteiriça. De acordo com Lia Machado para se resolver os problemas de legitimidade de Estado e Soberania é necessária a criação de comitês de fronteira. Informou que o Ministério da Integração Nacional propôs enormes sub-regiões na Faixa de Fronteira, cada uma com um comitê de fronteira e um fórum sub-regional. Questionou ainda a não integração das ações do Ministério da Defesa e do Ministério da Integração Nacional.

Na seqüência, o Conselheiro José Carlos registrou a presença do Secretário Executivo do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), General Wellington Fonseca, e observou que iria se referir aos comentários da Professora Lia Machado.

Comentou que em alguns países, particularmente na Bolívia, onde esteve durante três anos, a presença brasileira é vista por alguns segmentos da sociedade civil, como uma invasão brasileira.

Em relação a Rio 92, informou que foi membro da Delegação Brasileira naquele evento e que em meados dos anos de 1990 e 1991 o Brasil sofria, no exterior, o fogo cruzado de uma imensa campanha contra o Brasil e que tinha a Amazônia como foco principal. Afirmou

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

que éramos acusados, largamente, de desmatamento, de maus tratos ao meio ambiente, de crimes ecológicos, enfim, de uma série de ações criminosas contra o meio ambiente.

Afirmou que a Conferência das Nações Unidas para Meio Ambiente e Desenvolvimento que era o nome oficial, porém, batizada pela Imprensa de Eco-92, representou um momento muito especial de esforço diplomático vitorioso que resultou numa Conferência que até hoje é referência e marca importantíssima no cenário da diplomacia multilateral.

Solicitou à Professora Bertha Becker que aprofundasse a idéia da não assinatura do Protocolo de Quioto pelos Estados Unidos.

Após um pequeno intervalo, o Conselheiro José Carlos forneceu algumas orientações em relação à condução dos debates informando que a Professora Bertha Becker responderia, inicialmente, aos questionamentos que ficaram pendentes do bloco anterior e em seguida, o debate seria aberto à participação da plenária.

Inicialmente, Bertha Becker reportou-se à pergunta do Procurador Vicente Gomes, onde o mesmo questiona sobre os instrumentos que estão sendo criados para um novo modelo.

Em relação à segurança e soberania afirmou que os Estados participam dos organismos internacionais porque eles tentam, ao parti-cipar, reduzir a ameaça na sua origem. Destacou que temos que reduzir a nossa vulnerabilidade a certas ameaças.

Respondendo à pergunta de Vicente Gomes, afirmou que se referiu a uma revolução tecnológica, não a movimentos sustentáveis vagos. Informou que o Brasil já fez três revoluções tecnológicas extremamente importantes. Uma, foi o aproveitamento do petróleo em águas profundas, que foi segundo ela uma revolução tecnológica brasileira de suma importância. A outra, afirmou, foi na Mata Atlântica transformando cana-de-açúcar em

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combustível com tecnologia 100% brasileira. E finalmente, a terceira foi no Cerrado, que só tinha lavouras de matas ciliares e foi através de uma verdadeira revolução tecnológica que a Embrapa, participando ativamente, conseguiu aproveitar o cerrado para a cultura de soja.

Afirmou que é o momento de fazer uma revolução tecnológica na Amazônia. Revolução de aproveitamento da biodiversidade em todos os níveis, desde os fármacos aos cosméticos.

No que se refere aos instrumentos utilizados na revolução tecnológica, fez menção a uma parceria com os laboratórios da Fiocruz, que segundo Bertha, possuem instalações em Manaus, mas que estão vazias, ressaltando que existe o prédio, mas que necessita de técnicos para funcionar.

A respeito da abordagem do Professor Castro, concordou que todos nós interferimos no processo decisório. Em relação às Forças Armadas, afirmou que nunca pensou em não tê-las. Em relação às Ongs, esclareceu que elas são muito diferenciadas e que seria necessário a existência de mecanismos que possibilitassem ao Estado ter um controle sobre os procedimentos adotados por essas instituições, principalmente as inter-nacionais, ressaltou, porém, que não se referia ao controle físico, mas sim a um controle operacional.

No que diz respeito à divisão da Amazônia, explicou que anterior-mente, já havia proposto acabar com a Amazônia Legal porque, segundo ela, essa representação nunca foi uma unidade, mas sim uma construção geopolítica de uma época. Reafirmou sua opinião, porém, deixou claro que isso é uma decisão política do Governo.

Em relação à proposta de acabar com a Amazônia, Bertha Becker se posicionou contrária à mesma, ressaltou, porém, que é simpática à idéia da divisão da Amazônia e da extinção da divisão geopolítica denominada Amazônia Legal.

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Após a intervenção da Professora Bertha Becker, o Conselheiro José Carlos deu início à participação da plenária no debate.

O primeiro participante a se manifestar foi José Alberto da Costa Machado, Coordenador-Geral da Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa), que explicou que é Professor das disciplinas Formação Econômica da Amazônia e Economia Contemporânea e que trabalha com desenvolvimento sustentável na Amazônia há bastante tempo. Em relação à região, afirmou que conhece a intimidade dos rios, da floresta, dos mitos e lendas e que não apenas conhece, mas, sobretudo, vive essa realidade cotidianamente e por isso fica extremamente preocupado quando escuta intermináveis explanações sobre o que classificou como Amazônia virtual.

Segundo José Alberto Machado, essa Amazônia virtual é formada por mapas e conceitos acadêmicos que não substituem o conhecimento e a percepção dos que lá vivem, mas, que infelizmente, as políticas públicas e as ações são definidas, tomando como base, na maioria das vezes, exatamente essa Amazônia virtual, apresentada por acadêmicos e pesquisadores de fora da Amazônia.

Afirmou que a maioria dos projetos para a Amazônia é concebida por ilustres estudiosos e pesquisadores das principais universidades brasileiras e estrangeiras e, no entanto, o conhecimento de especialistas e pesquisadores da região é em sua grande maioria, ignorado, apesar, de na Amazônia existirem excelentes profissionais e pesquisadores qualificados.

Ressaltou ser fundamental que o Governo e outras instituições, ao proporem políticas voltadas à região, ouçam as opiniões da população amazônida. Fundamentou sua argumentação exemplificando a atuação da Fundação Getúlio Vargas que teria publicado, recentemente, uma obra produzida por técnicos e pesquisadores da região sobre o desenvolvimento local.

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Destacou haver bastante pensamento para a Amazônia e sobre a Amazônia, porém, muito pouco desse pensamento é oriundo da Amazônia. Cada setor nacional, afirmou, vê a Amazônia a partir dos seus próprios interesses e imagina a elaboração de um projeto salvacionista, o que, segundo Alberto Machado, acaba interferindo naquilo que está, pouco a pouco, sendo construído na região.

Reportou-se à abordagem da Professora Bertha Becker, onde ela reafirma o caráter e a identidade da Amazônia. Fez referência a um artigo de sua autoria intitulado, A Identidade Amazônica em Perigo, onde aborda a questão freqüentemente discutida que diz respeito à divisão ou a extinção da Amazônia.

Ressaltou a importância da Suframa como agente de desenvolvi-mento da Amazônia, citando alguns dados que, segundo ele, mostram a estrutura e a importância do órgão para a região. Afirmou que a Suframa possui um faturamento de cerca de R$ 30 bilhões de reais por ano; emprega 70 mil pessoas; financia pelo menos cinco programas de doutorado; oito de mestrado e cerca de vinte especializações como fruto da estruturação da área de pesquisa na região Amazônica.

É responsável, continuou, por 60% da arrecadação que a União faz na região Norte. No período em que o Estado esteve completamente ausente da Amazônia, a Suframa foi, segundo ele, a única fonte de rendimento federal para a região.

Destacou que se sente incomodado com o alto grau de desco-nhecimento das autoridades, e mesmo de alguns especialistas, sobre a região e que esse desconhecimento se reflete nos resultados, de maneira geral pouco satisfatórios, das políticas implementadas na Amazônia.

Chamou a atenção para o que classificou de ausência do Estado na região, afirmando que a população se ressente de não se ver contem-plada com políticas comprometidas com suas reais necessidades.

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Finalizando sua intervenção, José Alberto Machado sugeriu que o Estado deveria fortalecer o município como forma de restabelecer sua força, seja por intermédio de parcerias em programas e projetos, seja por intermédio de uma política de capacitação e qualificação de recursos humanos.

O próximo a manifestar sua opinião foi Pepeu Garcia, Diretor da Agência de Desenvolvimento da Amazônia (ADA). A exemplo do participante anterior, Pepeu Garcia destacou a falta de atenção do Estado com a região, citou Marabá como o município com maior índice de assentamentos do País e enumerou as várias áreas carentes de uma maior presença do Estado, como saúde, educação, saneamento e segurança pública.

Ressaltou que concorda com a posição defendida por alguns especialistas em relação à existência de várias amazônias e defendeu ainda a desmistificação da região.

Em relação à abordagem feita pela Professora Bertha Becker sobre a necessidade de uma revolução tecnológica para a Amazônia, Pepeu Garcia mostrou-se inteiramente de acordo, ressaltando que de nada adianta a Amazônia ser considerada o celeiro ou o pulmão do mundo se na prática, em termos de desenvolvimento tecnológico, continua vivendo como vivia há vinte anos.

Finalizando, parabenizou o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), por intermédio da Secretaria de Acompanhamento e Estudos Institu-cionais (Saei), em particular o Secretário José Alberto Cunha Couto e o Con-selheiro José Carlos de Araújo Leitão, bem como a equipe da Coordenadoria de Estudos, pela realização do Ciclo de Estudos sobre a Amazônia e ressaltou que colocaria um desafio à coordenação de promover o aprofundamento dos estudos, levando a discussão para dentro da Amazônia.

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Em seguida, Paulo Moutinho, Coordenador de Pesquisa do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, se confessou ansioso pela realização do próximo Ciclo de Estudos e lembrou que quando há abertura de espaço para o diálogo e ocorre a derrubada de alguns preconceitos isso acaba facilitando a interação entre o governo e a sociedade e conseqüentemente, as políticas voltadas para um deter-minado segmento - no caso a Amazônia - têm mais probabilidades de serem bem-sucedidas.

De acordo com Paulo Moutinho, um evento dessa natureza possibilita, ao compararmos os discursos do Poder Público e da Sociedade Civil Organizada, chegarmos à conclusão de que há mais pontos de consenso do que de discordância em relação às políticas e ações necessárias.

Em relação às organizações da sociedade civil, Paulo Moutinho acredita que o segmento alcançou um tal nível de organização e desen-volvimento que hoje já possui um espaço legitimado junto à sociedade e ao próprio Governo, ressaltando que, principalmente em relação à Amazônia, há uma demanda muito grande em relação às Ongs dedicadas a essa questão.

O último participante da plenária a fazer sua intervenção foi Paulo Machado Guimarães, Assessor Jurídico do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), que em nome de sua instituição agradeceu ao convite do Gabinete de Segurança Institucional para participar do Ciclo de Estudos sobre a Amazônia e ressaltou o pioneirismo da iniciativa que colocou em pauta um tema, segundo ele, não muito discutido fora da esfera de Governo, ou seja, a possibilidade da existência de limi-tações ao exercício da soberania na região Amazônica impostas pela Legislação Nacional.

Afirmou que do ponto de vista profissional defende a solução

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constitucional no que diz respeito às Terras Indígenas. Ressaltou ainda que jamais defendeu que as Forças Armadas não tivessem atividades na Faixa de Fronteira e reafirmou a importância de se estabelecer uma agenda de debates no que se refere à soberania do Estado.

Finalizando, parabenizou a Coordenadoria de Estudos da Secretaria de Acompanhamento e Estudos Institucionais do GSI pela iniciativa de promover um debate relevante, tanto no que diz respeito à soberania nacional, quanto ao que se refere às populações indígenas da Amazônia.

Finalizadas as intervenções da plenária, passou-se para um breve comentário dos integrantes da mesa. A primeira a manifestar-se foi a Professora Bertha Becker.

Em relação aos comentários de que os principais especialistas em Amazônia são de fora da Amazônia e que, portanto, não a conhece-riam, Bertha Becker afirmou que o habitante da região, normalmente, conhece apenas a área de seu entorno, isto é, a área em que vive e que por ser uma região muita extensa, não seria exagero afirmar que existem várias Amazônias, o que por si só já traria dificuldades para um conhe-cimento completo da região.

Afirmou que em função dos longos anos de trabalho como Pesquisadora da região, possui uma visão mais completa, mais inte-grada da Amazônia e que isso a habilita a formular alguns conceitos sobre a região.

Em relação à densidade demográfica, chamou a atenção para o grande vazio nas áreas em que é realizado o cultivo de soja, em oposição às áreas urbanas que apresentam uma grande concentração populacional.

Em seguida, o Procurador Vicente Gomes referiu-se à inexistência

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no Brasil de um projeto voltado para a ocupação e exploração do solo. Concordou com as afirmações da Professora Bertha Becker de que a Amazônia necessita urgentemente de um processo de inovação tecnológica.

Finalmente, destacou que apenas alguns Estados, entre eles Rondônia, dispõem atualmente de um sistema de Zoneamento Ecológico Econômico (ZEE).

Por sua vez, o Vice-Almirante Barbosa refutou a argumentação apresentada pelo representante do CIMI, Paulo Machado Guimarães, em relação às limitações constitucionais impostas à Defesa Nacional. Referiu-se aos Decretos 4.411 e 4.412 e reafirmou não identificar qualquer imposição à Defesa Nacional, expressa na Constituição Federal.

enCeRRamento

Antes de passar a palavra ao Secretário da Saei, o Conselheiro José Carlos lembrou aos participantes que estava se encerrando ali o Ciclo de Estudos da Amazônia, iniciado em 15 de abril com a presença da Professora Edna Castro, Pesquisadora da UFPA, tendo continuidade no dia 05 de maio, com a presença da Professora Gloria Vargas, Pesquisadora do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (CDS/UnB), e do Rodrigo de Aquino, Analista de Informações da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).

Em seguida, agradeceu a presença e a participação dos conferencistas e debatedores e elogiou o desempenho e a qualidade das apresentações e intervenções, tanto dos palestrantes, quanto dos convidados que participaram dos debates.

Finalmente, agradeceu à equipe da Coordenadoria de Estudos:

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Márcio Buzanelli, Tenente Coronel Joarez Alves Pereira Júnior, Paula Lima e Regina Vieweger, ressaltando que sem a colaboração e o empenho da equipe não teria sido possível a realização do Ciclo de Estudos.

Para encerrar a reunião, foi passada a palavra ao Secretário da Saei, José Alberto Cunha Couto, que destacou se sentir honrado em participar do evento e explicou que, a exemplo das reuniões que discutiram a questão indígena e que posteriormente se transformou em uma publicação, a Coordenadoria de Estudos da Saei pretende sistematizar as discussões do Ciclo de Estudos sobre a Amazônia e em seguida transformá-las em uma publicação que servirá de apoio à elaboração e implementação das políticas públicas voltadas à região Amazônica.

ConsideRações Finais

Ao encerrar-se o Ciclo de Estudos sobre a Amazônia – série de três eventos que reuniu diversos atores sociais envolvidos com a temática da Amazônia – a Coordenadoria de Estudos da Saei mostrou que é possível envolver vários segmentos sociais em torno da discussão de políticas públicas e ações governamentais.

Cerca de cem pessoas, entre pesquisadores, acadêmicos, especialistas, técnicos do Governo, representantes indígenas e represen-tantes de organizações da sociedade civil, participaram das três reuniões que compuseram o Ciclo de Estudos, apresentando sugestões, expondo pontos de vistas, fazendo críticas às políticas implementadas, tecendo comentários, ou simplesmente assistindo aos debates que se seguiam às apresentações.

É desnecessário salientar as divergências que emergiram dos debates, fruto de experiências pessoais, diversidades regionais, posições

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ideológicas, entretanto, torna-se fundamental ressaltar o consenso existente entre todos os que participaram do Ciclo de Estudos, sobre a importância de o Governo, por intermédio do Gabinete de Segurança Institucional, ter promovido essa iniciativa.

Vale reproduzir aqui um comentário feito por um participante – Paulo Moutinho, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) – ao se referir à realização do Ciclo de Estudos: “Quando há abertura de espaço para o diálogo e ocorre a derrubada de alguns preconceitos isso acaba facilitando a interação entre o Governo e a Sociedade e, conseqüentemente, as políticas voltadas para um determinado segmento - no caso, a Amazônia - têm mais probabilidades de serem bem-sucedidas”.