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e-book.br EDITORA UNIVERSITÁRIA DO LIVRO DIGITAL Cid SeixaS JORGE e a identidade negro-mestiça AMADO https://issuu.com/e-book.br/docs/ja

Cid SeixaS JORGE · de Alencar, ao eleger o índio como herói da nova narrativa romântica, macaqueou o homem das matas como um cavaleiro europeu, pleno de bravura e valores cristão

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DO L IV RO DIGITAL

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Os livros eletrôni-cos da coleção E-Poket, conforme o tí-tulo já indica, têmcomo característica otamanho reduzido, si-milar às pequenas co-leções de bolso. Nocaso presente, o for-mato e-poket foi de-senvolvido para serlido, com todo con-forto visual, em celu-lares e outros equipa-mentos de telas comtamanho diminuto.

Desconstruir a he-rança colonial euro-peia e fortalecer aautoestima da gentemestiça – ou do povobrasileiro – é o queJorge Amado come-çou a fazer, a partirdos anos 70, por en-tre as frestas da histó-ria contada e por en-tre as festas dos sen-tidos incendiados natempestade do texto.

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CONSELHO EDITORIAL:Alana El Fahl (UEFS)

Cid Seixas (UFBA | UEFS)Ester Ma de Figueiredo Souza (UESB)

Francisco Ferreira de Lima (UEFS)Moanna Brito S. Fraga (UFBA)

Endereços deste e-book:https://issuu.com/e-book.br/docs/ja

www.e-book.uefs.brwww.linguagens.ufba.br

Fonte: Original-Garamond 14Formato: 100 x 170 mmNúmero de páginas: 40

Salvador, 2019

Coleçãoe-poket

Pintura de capa:Clovis Graciano, Capoeira, 1963

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“Território habitado poruma nação de caboclos epardos, cafuzos, gente depouca pabulagem e demuito agir”.

Jorge Amado

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A partir dos anos 70, a obra deJorge Amado desenvolve, de for-ma consequente e definida, umavertente identitária da nacionalida-de destinada a substituir a figurado índio, idealizada por Alencar,pelo negro real e palpável que con-seguiu afirmar a sua cultura, a des-peito do aniquilamento do sujeitopropiciado pela escravidão. Cen-trando a noção de valor de um povomestiço para além da história ofi-cial, Amado realiza na década se-

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guinte, em obras como Tocaiagrande e O sumiço da santa, a gran-de síntese do que foi esboçado nosanos 70, ressignificando as obrasque caracterizaram os chamadosAnos 30.

* * *

Para começo de conversa, criou-lo que se preza é crioulo mesmo.E mestiço é mestiço. Se alguém mechamar de híbrido, eu boto a mãeno meio. Eu sou é mestiço, more-no, brasileiro. Quase branco, qua-se preto, como já dizia um poetada mestiçagem, naquele rap sobreo Pelô. Essa história de hibridismoé conversa pra boi dormir, papo pratouro sentado, ou boi capado. Hí-brido é filho de mula. Mas mulanão tem filho. Híbrido, no mundo

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do animal humano, não existe; ealém de não existir é estéril. Praencurtar a conversa, crioulo é cri-oulo, como diz seu José dos San-tos. Quem não gostar que se mudepara os Estados Unidos, que é umpaís politicamente correto. Que faztudo politicamente correto, inva-de e destrói, corretamente, os paí-ses de gente morena que é praNova Iorque não vir a ser invadidapor um bando de pobres e pardos.

Fiquem lá, portanto, com ohibridismo de vocês, que eu ficopor aqui, pelo mundo crioulo daBahia, com tudo que ele tem debom e que, um dia, ainda vai con-tar a História, a partir deste lugarmestiço. Do jeito que o velho Jor-ge há muito começou a contar.

* * *

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Jorge Amado se vale da sátira edo humor para compor uma crô-nica de costumes do viver baiano,afirmando a identidade e os valo-res do povo mestiço. Convém pro-por, como premissa, que se veja emalguns dos seus livros um virtualprojeto de desconstrução do euro-centrismo. Chamo de virtual pro-jeto – desatrelando o termo da suaacepção científica e formal – por-que, embora diluído por entre osjogos da fantasia, ele contém to-das as condições essenciais à suarealização no ato da leitura.

Atenuar a hiberbólica herançacolonial europeia e fortalecer aautoestima da gente mestiça – oudo povo brasileiro – é o que JorgeAmado começou a fazer, sistema-ticamente, a partir dos anos 70, porentre as frestas da história conta-

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da e por entre as festas dos senti-dos – incendiados pela tempestadedo texto. O apimentado, o gordu-roso e o farto uso de frutos africa-nos, ao contrário de diminuir o va-lor da obra amadiana, como queriauma prestigiada vertente da críticauniversitária, vieram a se imporcomo elementos definidores de umvalor identitário já simbolizado nascoisas da cozinha por GilbertoFreire.

Contrária à obra da juventude,que obedecia aos cânones do rea-lismo comprometido com a pala-vra de ordem do Partido Comu-nista, a obra da maturidade de Jor-ge Amado propõe uma espécie denegação anárquica ou, melhor, dereapropriação dos princípios soci-alistas que nortearam o romancede 30. Tal processo romanesco foi

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ressignificado nos anos 70, fazen-do irromper uma prática criadoramenos presa aos princípios doutri-nários de uma ideologia e libertados cânones do que era compreen-dido como alta literatura.

É evidente que essa guinada,marcada pelo discreto charme daburguesia e exercida mediante a re-jeição de limites à criação artística,desencadearia a reação dos intelec-tuais “progressistas”, que trocaramo jogo de corpo da capoeira peloreumatismo mental, resultandoem formas de preconceito. A par-tir daí, alguns estudiosos de for-mação socialista passaram a ver oescritor Jorge Amado como umaespécie de desertor da causa do pro-letariado. Depois de aderir, comfervor juvenil e sem nenhuma crí-tica, aos princípios do realismo

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socialista, Jorge Amado se deixatomar pelo desencanto (esta é, tal-vez, a palavra apropriada: desencan-to) que se apoderou da esquerdaapós a necrose do totalitarismostalinista. Os crimes do autorita-rismo foram expostos aos olhos daapreciação pública e, nesse balançode perdas e ganhos, mesmo semexecração e sem anátema, houvequem descobrisse que os fins nãojustificam os meios.

E a luciferina luz do dia claroferiu a consciência, anunciando:

– “O sonho acabou.”– Algumtempo depois, outra geração maisnova do que a sua, a dos anos ses-senta, também repetiu o patéticoachado perdido: – “O sonho aca-bou.”

Outros, no entanto, continua-ram impermeáveis ao senso do lu-

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gar comum: OS FINS NÃO JUSTIFICAM.Mas continuaram usando todos osmeios para chegar aos fins sonhados.

Considerado esse quadro, porque após a década de sessenta ocor-reu a contestação do valor da obraamadiana? Até a metade do séculoXX, o arrebatamento pelo seu tex-to era quase unânime, vindo, emseguida, um gradativo obscureci-mento crítico. Nos anos setenta,sua obra conheceu verdadeiro mas-sacre, tanto do ponto de vista po-lítico quanto cultural. No Brasil, aexemplo do que ocorreu nos Esta-dos Unidos, setores envolvidoscom questões raciais apontaram aapologia da mestiçagem no univer-so de Jorge Amado como misturaimpura, ou como apagamento dapureza racial negra.

– Êpa, rei! Eparrei, minha mãeguerreira! Okê Aro, meu pai caça-

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dor. Saravá, Mutalambô. Epa Babá,dono da minha cabeça. Loroyê,mojubá.

Este filme já passou em algumlugar. E deu no que não deu: a euge-nia nazista.

De um lado e do outro, o mitoda pureza étnica gera segregação.Não é exagero afirmar que a obrade Jorge Amado chegou a ser re-jeitada por duas razões contrárias:de um lado, os feitores da purezaafricana desconfiavam da constru-ção romanesca de uma civilizaçãonegro-mestiça (vendo na mestiça-gem o embranquecimento); dooutro lado, arianos e quase bran-cos não toleravam a elevação donegro e do mestiço à categoria míti-ca de herói incondicional (vendo naexaltação da mestiçagem a apolo-gia de raças até então ocupantes de

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espaços exclusivamente periféricosou subalternos).

A valorização de uma mitologiacrioula pela obra amadiana punhaem pé de igualdade velhos mitoseuropeus e nossos novos mitosafro-brasileiros. Valores – querfossem eles politicamente corretosou não, machistas, patriarcais, oudesconstrutores do estabelecido –valores integrantes dos costumeshíbridos da nossa gente constituí-ram ao que chamo de “mitologiacrioula” da obra amadiana.

Se a cultura dos becos e botecosda Bahia propunha como ideal su-premo do imaginário machista e dodesejo das fêmeas; se tal culturafalocêntrica propunha um homemcapaz de conquistar várias mulhe-res, esse macho arquetípico, o mes-tiço, é tomado como proto-herói

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pícaro do romance de Jorge Ama-do. Para ele, usar uma moeda co-mum com o fim de exaltar o povonegro era admissível, mesmo queessa moeda fosse falsa, porque elevisava a um fim, conforme a práti-ca legitimada (a um custo altíssi-mo) pelas palavras de ordem doPartido. Assim, verdades eramaceitas a custo de mentiras.

Se, como contraponto da opres-são representada pelo preconceitoracial, o mulato procura ridiculari-zar sexualmente o branco de neve– atribuindo a ele diminutas di-mensões do sétimo anão e genera-lizando a exaltação dos própriosdotes, nas dimensões do pau-brasil–, Amado pega o mote e caracteri-za seus heróis negro-mestiçoscomo portadores de avantajadostotens de safadeza.

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Se a mulher ariana é vista comoinsossa e dessexualizada, devotaanêmica de incensos e velas quei-madas, Amado pinta a mulatacomo exuberante caçadora de de-sejos – e também como suculentacaça.

Galhofa mais matreira não po-deria haver à castidade cristã quealicerça a hipocrisia da civilizaçãoocidental. Surge deste jogo picares-co, em resposta ou em contrapontoao maniqueísmo da civilização do-minante, o simplismo estratégicoda obra amadiana, onde todos osnegros e negras são bons, vigoro-sos e sexualmente privilegiados.

Essa metonímia cultural, essacaricatura de costumes que funci-ona como afirmação da autoes-tima, porque retirada de uma mo-eda corrente altamente cotada nas

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ruas da velha Bahia, foi apontadapelos críticos mais severos comouma imperdoável forma de reduci-onismo. Como Ivo viu a uva, quan-do queria ver a uva, Ivo foi peniten-ciado por ter visto a uva. Quandohavia bananas, pepinos, cenouras,nabos, enfim toda uma variedadevegetal para gostos diversos.

Em outras palavras, claramentedenotativas: como Jorge Amadoutilizou, entre outros, um aspectoanedótico, folclórico, para, atravésdessa metonímia transformada emalegoria, pintar um retrato de va-lorização do negro, os antagonis-tas de tal intento preferiam que eletivesse realçado outras qualidadesque não essas. Talvez achassemmelhor que ele tivesse realçado nonegro as qualidades mais admira-das pela civilização europeia, dei-

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xando de lado qualidades totemi-zadas pela cultura crioula da Bahia.

No século XIX, um outro cons-trutor da identidade nacional, Joséde Alencar, ao eleger o índio comoherói da nova narrativa romântica,macaqueou o homem das matascomo um cavaleiro europeu, plenode bravura e valores cristão. Ora,não se podia exigir do grande es-critor cearense, educado dentro dosprincípios do seu tempo, ultrapas-sar tais limites e ir buscar as ver-dades do outro. Desde as grandesnavegações do Século XVI o ho-mem demonstra sua total incapa-cidade de ver o outro com os olhosda alteridade. Mas no século seguin-te, Jorge Amado soube viver a vidapopular baiana e incorporar seusvalores, os valores negro-mestiços.

Se assim não fosse é que pode-ríamos contestar a inteireza do seu

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intento – e com boas razões. Sabe-mos que a cultura impõe preceitose preconceitos, mutáveis em vári-os tempos. Se, hoje, a academiarevaloriza a obra de Jorge Amado,convém lembrar que, há vinte outrinta anos atrás, os cursos de Li-teratura das universidades baianas,seu lugar de origem, não dedica-vam nenhuma disciplina ao estudodos livros do maior contador dehistórias da raça brasileira.

Hoje, estudos de gênero admi-tem observar o lugar da mulher nosromances de Jorge Amado, estu-dos étnicos percorrem a constru-ção do orgulho negro e mestiço,estudos culturais encontram im-portantes estratégias de descoloni-zação do pensamento.

Voltando à pergunta acima for-mulada: Por que a obra desse con-tador de histórias da civilização

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mestiça atravessou turbulências ecalmarias, quedas e baixas na bolsade valores da crítica da cultura?

Uma hipótese é que isso decor-re do fato de Jorge Amado ter sido,de início, um fiel tradutor dos prin-cípios e mandamentos do stali-nismo soviético, para em seguidaabandoná-los em favor do flertemais aberto com os festins da pe-quena burguesia. Se o romancistados primeiros livros escrevia paracomunista nenhum botar defeito,ao se desligar das imposições doPartido, ele experimentou a liber-dade absoluta de criar, renuncian-do inclusive ao princípio segundoo qual a literatura deve pôr em pri-meiro plano a sua função de cons-trutora e forma do conhecimento.Livre para criar, Amado procura a

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antítese da obra engajada: a litera-tura feita para divertir.

Por entre o riso solto e a narra-tiva de aparência meramente ane-dótica, o romancista produz o me-lhor da sua obra, ocultando eentremostrando, velando e revelan-do o compromisso social por en-tre as dobras de um tecido alegre.Do discurso marcado pelo cumpri-mento de tarefas partidárias, evo-luiu para um discurso pleno de sen-tidos, armadilhas, sugestões earremedilhos.

Ora, o leitor habituado ao ro-mance de tese, onde a mensagempolítica sobrepujava o jogo do pra-zer, veria o novo figurino amadianocom a mesma suspeita dirigida àfigura intelectual do ex-comunis-ta. Deixar o Partido por discordardas suas práticas era um fato con-

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siderado equivalente à traição aosseus princípios. Daí a metralhado-ra giratória do patrulhamento tervarrido a obra de Jorge Amado,estimulando-o a aprofundar odistanciamento com as práticas di-tadas pela estética marxista desfi-gurada na União Soviética dos anosde ferro.

Comparado a outro grande es-critor da geração de 30, GracilianoRamos, observa-se que Amado deuessa guinada radical porque tam-bém foi radical o seu comprome-timento com as tarefas intelectu-ais ditadas pelo Partido. Gracilianoproduziu as primeiras obras com aliberdade criadora e o rigor artísti-co exigidos por um projeto estéti-co durável; menos sujeito, portan-to, às limitações do realismo socia-lista ditado de cima para baixo. Jor-

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ge pagou tributo à adesão açodadaà ideologia do proletariado.

Passados os fatos traumáticosde uma história político-literária,podemos reler os acontecimentose, principalmente, podemos ler otexto de Jorge Amado com olhoslimpos e enxutos de amores e ódi-os cruzados.

Dois romances da maturidadedo escritor podem ser tomadoscomo obras de síntese das suasgrandes vertentes temáticas: TocaiaGrande, que tem como subtítuloesclarecedor A face obscura, e Osumiço da santa, também seguidode um subtítulo: Uma história defeitiçaria.

Tocaia Grande, publicado em1984, retoma a saga do cacau e omundo dos coronéis, mostrando oinício de uma cultura que produ-

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ziu riquezas hoje perdidas, a cul-tura grapiúna. Mas Adonias Filho,outro romancista da região, ressal-tou que, além do cacau, o sul daBahia produz escritores. Se a rique-za, colhida dos frutos, viu a saframinguar; a riqueza dos sentidos,construída pelos escritores, perdu-ra como restauração de um tempomítico de fartura.

Em Tocaia Grande, Jorge Ama-do volta à terra adubada de sanguee suor, onde heroísmo, vilania, usu-ra e miséria se completam em tor-no da exploração do homem. Aspalavras de pórtico do livro, espé-cie de epígrafe a si mesmo, são asseguintes:

“Digo não quando dizem simem coro uníssono. Quero des-

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cobrir e revelar a face obscura,aquela que foi varrida dos com-pêndios de História por infamee degradante; quero descer aorenegado começo, sentir a con-sistência do barro amassado comlama e sangue, capaz de enfren-tar e superar a violência, a ambi-ção, a mesquinhez, as leis dohomem civilizado. Quero con-tar do amor impuro, quando ain-da não se erguera um altar paraa virtude. Digo não quando di-zem sim, não tenho outro com-promisso.”

No painel traçado em TocaiaGrande, o maniqueísmo dos pri-meiros romances que punha, de umlado, os proprietários, representan-tes do mal, e do outro os trabalha-dores, encarnando o bem, é que-

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brado pela exaltação do desbra-vamento pioneiro de alguns coro-néis, responsáveis por um impor-tante ciclo da economia e da cultu-ra brasileiras. Aí, Jorge Amadorompe com a ingenuidade dos ro-mances da juventude e pinta o re-trato dos homens como tais; su-jeitos a vícios, grandezas e miséri-as. E em meio a isso, ressalta a vi-tória suja dos canalhas e a gênesedo poder sustentado na vilania ena traição. O foco é ampliado doregional para a microfísica do po-der, conferindo ao particular umadimensão metonímica capaz detorná-lo universal.

“Quero descobrir e revelar a faceobscura, aquela que foi varrida doscompêndios de História por infa-me e degradante; quero descer aorenegado começo” – é a sua pro-

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posta de flagrar a origem e a con-solidação dos poderes legitimadospela História dos vencedores. Con-vém lembrar que, entre as décadasde 70 e 80, os tentáculos do golpemilitar de 64, apoiado pelos nor-te-americanos, pareciam indestru-tíveis.

Em outro romance de síntese damaturidade, O sumiço da santa,escrito entre 1987 e 1988, ele diluientre o picaresco e o riso deslavadodos arremedilhos e presepadas umaanálise desarmada e penetrante doaniquilamento de valores e vícioseuropeus diante da olvidada e ine-xorável contribuição africana.

Ao trocar o nome inicial do li-vro, A guerra dos santos, de aspec-to épico e grandiloquente por umprosaico O sumiço da santa: Umahistória de feitiçaria, Jorge Amado

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encena diante do leitor o papel dojogral alegre que se diverte ao fa-zer os outros se divertirem. Oumelhor: que se diverte ao despis-tar o divertido leitor.

A solenidade trágica do discur-so literário valorizado pelo realis-mo socialista é substituído peloaparente “sorriso da sociedade”,pela fingida farsa do despreocupa-do burguês.

Mas esse texto, O sumiço dasanta, entremostra que seu autornão é somente um escritor diver-tido. É um feiticeiro fingido queesconde os poderes do seu ebó. Otema é, na verdade, uma guerra dedemiurgos, de deuses poderosos,um confronto de culturas e raçasem busca de caminhos e de identi-dades.

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O realismo mágico da escritaamadiana converte-se em alegoriaépica de um povo. O alegóricopresentifica a insubmissão de umacultura e transforma os pretensosobjetos de submissão de um povoescravizado em construtores deuma outra e insubmissa cultura: acultura crioula de um país mesti-ço.

De um lado os valores da civili-zação europeia cristã, representa-dos pelo padre espanhol José An-tonio Hernandez; do outro lado, achamada “gentinha”, a “ralé”, oscavalos de encantados trazidos daÁfrica nos porões dos navios ne-greiros, a gente morena da Bahia,seus orixás, suas crenças, sua éticaadversa à moral dos colonizadores.

O narrador dos romances de Jor-ge Amado, às vezes, cínica e ironi-

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camente, simula a perspectiva dodominador, dos bem-nascidos do-nos da terra e dos desígnios do céu.A escolha vocabular marcada pelopreconceito das expressões usuaispara designar os párias da pátriaganha relevo em confronto com agesta plebeia, o canto das façanhasde heróis anônimos. Ironia eexaltação épica perpassam o textonuma fusão insólita: aquilo que eledesigna, entre jocoso e sério, de“romance baiano”.

A gente negro-mestiça, que cor-responde a mais de oitenta por cen-to da população da Cidade da Ba-hia, metrópole inaugural do Bra-sil, é um fator decisivo na forma-ção do povo brasileiro. Por issomesmo, o negro constitui o heróiplural da narrativa amadiana. As-

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sim como os poetas épicos e dra-máticos da tradição europeia esta-belecem um discurso recorrente aosmitos e costumes da cultura greco-romana, o texto amadiano se ins-taura como diálogo intertextualcom o substrato popular de umacivilização nascida na Bahia: osmitos e tradições dos descenden-tes de príncipes e súditos africa-nos trazidos como escravos.

A moral, a religião e outros ele-mentos constituintes da culturabaiana, ao oscilarem entre as liçõesdo colonizador europeu e as ale-gres práticas dos becos e botecosmestiços, são untados pelo azeitee pelos mistérios concretos trans-postos da velha África. Com jeitode gesta crioula, o realismo fantás-tico e maravilhoso, ou a farsa má-

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gica e mística dos orixás e santossincretizados, converte-se em can-to épico de afirmação de um povomestiço, cafuzo, caburé. Eu, tu, ele– nós.

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a narrativa clássica

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Fonte: Original-Garamond 14Formato: 100 x 170 mmNúmero de páginas: 40Salvador, maio de 2019

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Cid Seixas é pro-fessor titular da Uni-versidade Federal daBahia e da Universi-dade Estadual de Fei-ra de Santana. Publi-cou diversos livros ecentenas de artigos,tendo orientado tesesde dourorado e dis-sertações de mestra-do. Antes de se dedi-car ao ensino, traba-lhou como jornalista,de onde vem sua pre-ferência pelos textosbreves e de alcancepelo leitor comum.

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JORGE AMADOe a identidade negro-mestiçaJORGE AMADOe a identidade negro-mestiça

Desconstruir a herança colonialeuropeia e fortalecer a autoestimada gente mestiça – ou do povo bra-sileiro – é o que Jorge Amado co-meçou a fazer, a partir dos anos70, por entre as frestas da históriacontada e por entre as festas dossentidos incendiados na tempesta-de do texto.