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Caderno Espaço Feminino, v. 17, n. 01, Jan./JuL. 2007 135 Cidadania, identidade e multiculturalismo Cidadania, identidade e multiculturalismo Cidadania, identidade e multiculturalismo Cidadania, identidade e multiculturalismo Cidadania, identidade e multiculturalismo Márcio Mucedula Aguiar * Resumo: O argumento desenvolvido neste artigo procura demonstrar a necessidade de incorporar a discussão das diferenças no conceito de cidadania. No Brasil, a diferença étnico-racial sempre foi geradora de desigualdades entre brancos e negros. A construção de um conceito de cidadania que leve em consideração tal fenômeno certamente contribuirá para diminuir as desigualdades entre brancos e negros no Brasil. O argumento é construído a partir da leitura do texto “A Questão Judaíca” de Karl Marx bem como pela incorporação de autores clássicos das ciências Sociais como Pierre Bourdie e Louis Althusser. Palavras-Chave: Cidadania. Multiculturalismo. Identidade. Movimento Negro. Abstract: The proposed argument aims to demonstrate the need for incorporating the discussion about differences in the concept of citizenship. In Brazil, the ethnic-racial discussion has always promoted inequality among white and black people. The formation of a concept of citizenship which takes those differences into consideration will certainly contribute to reduce inequalities among white and black people in Brazil. The argument is set up from the reading of “On the Jewish Question” by Karl Marx and some Social Science classical authors, such as Pierre Bourdie and Louis Althusser as well. Keywords: Citizenship. Multiculturalism. Identity. Black People Movement. * Márcio Mucedula Aguiar, Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos. Atualmente professor no Centro Universitário do Triângulo, Faculdade Católica e na União das Faculdades Aplicadas.

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Caderno Espaço Feminino, v. 17, n. 01, Jan./JuL. 2007 135

Cidadania, identidade e multiculturalismoCidadania, identidade e multiculturalismoCidadania, identidade e multiculturalismoCidadania, identidade e multiculturalismoCidadania, identidade e multiculturalismo

Márcio Mucedula Aguiar*

Resumo: O argumento desenvolvido neste artigo procurademonstrar a necessidade de incorporar a discussão dasdiferenças no conceito de cidadania. No Brasil, a diferençaétnico-racial sempre foi geradora de desigualdades entrebrancos e negros. A construção de um conceito de cidadaniaque leve em consideração tal fenômeno certamentecontribuirá para diminuir as desigualdades entre brancos enegros no Brasil. O argumento é construído a partir da leiturado texto “A Questão Judaíca” de Karl Marx bem como pelaincorporação de autores clássicos das ciências Sociais comoPierre Bourdie e Louis Althusser.

Palavras-Chave: Cidadania. Multiculturalismo. Identidade.Movimento Negro.

Abstract: The proposed argument aims to demonstrate theneed for incorporating the discussion about differences in theconcept of citizenship. In Brazil, the ethnic-racial discussionhas always promoted inequality among white and black people.The formation of a concept of citizenship which takes thosedifferences into consideration will certainly contribute to reduceinequalities among white and black people in Brazil. Theargument is set up from the reading of “On the JewishQuestion” by Karl Marx and some Social Science classicalauthors, such as Pierre Bourdie and Louis Althusser as well.

Keywords: Citizenship. Multiculturalism. Identity. BlackPeople Movement.

* Márcio Mucedula Aguiar, Doutor em Ciências Sociais pelaUniversidade Federal de São Carlos. Atualmente professor noCentro Universitário do Triângulo, Faculdade Católica e na Uniãodas Faculdades Aplicadas.

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Uma das demandas fundamentais da eracontemporânea é a construção de uma cidadania queleve à incorporação, reconhecimento e respeito àdiferença. A discussão sobre os limites da cidadaniaem cumprir essa função não é nova nas CiênciasSociais. Uma das críticas mais contundentes aos limitesda cidadania é desenvolvida por Karl Marx. Este textotem como objetivo discutir e apresentar as principaisobjeções levantadas por Marx em sua análise dachamada “questão judaica” e, a seguir, fazer umparalelo entre essas objeções e as reivindicações maisatuais dos grupos feministas, negros que lutam pelaconstrução de uma cidadania que incorpore asdiferenças.

Para ilustrar melhor o argumento utilizo reflexõesde Louis Althusser e Pierre Bouerdieu que nosfornecem elementos para pensar o processo deformação da identidade social e sua relação com asdemandas mais atuais da construção de uma cidadaniaque respeite as diferenças. Utilizo também algumasreflexões acerca da constituição do movimento negroe sua luta pela criação de uma sociedade que reconheçae garanta a diversidade étnico-racial no Brasil.

A Questão Judaica e os Limites da CidadaniaA Questão Judaica e os Limites da CidadaniaA Questão Judaica e os Limites da CidadaniaA Questão Judaica e os Limites da CidadaniaA Questão Judaica e os Limites da Cidadania

Uma das grandes conquistas da revolução francesafoi a implantação de um conjunto de direitos queestabelecem a igualdade entre os vários grupos sociaisque compõem determinada sociedade. A ascensão daburguesia coincide com a luta desta classe contra osprivilégios da nobreza, buscando uma igualdade efetivano plano jurídico, como também a liberdade.

Mas, será que a cidadania nesse contextoefetivamente levou à igualdade e à liberdade ? Estapassou a ser uma questão central não só para a classeoperária como também para os vários grupos sociaisque lutam por uma maior participação na sociedade.A análise de um dos textos clássicos deste tema poderá

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elucidar questões que ainda são atuais. Karl Marx faz acrítica do conceito de cidadania a partir da análise daquestão judaica.1

Para Bruno Bauer os judeus seriam egoístas, poisexigiam direitos especiais enquanto judeus.Consideravam-se membros de um povo eleito e comisso mantinham-se à margem da humanidade, comesperanças de um futuro que nada tinha a ver com ofuturo da humanidade. A Alemanha era um Estadocristão, portanto, um Estado em que pertencer à religiãocristã era condição necessária para ser cidadão. Quandoeste Estado cristão concede direitos aos judeus querequerem a cidadania ele não abre mão de sua essência,pois permanece cristão da mesma forma que o judeuao ser emancipado, mas, segundo Bauer, enquanto oEstado e os judeus permanecerem no seu princípioreligioso é impossível haver emancipação.

Para Marx, Bauer como um bom hegeliano resolvea questão formulando o problema da emancipação efazendo a sua crítica, mas em termos ideais. Na suaanálise a antítese fundamental entre cristãos e judeus éa religiosa. Tão logo judeus e cristãos reconheçam suareligião como fases do desenvolvimento do espíritohumano já não se enfrentarão no plano religioso, masno plano crítico científico e humano. A emancipaçãoreligiosa será condição necessária para a emancipaçãopolítica. Nesse sentido, os judeus deveriam lutar pelosdireitos iguais entre os homens na esfera política e nãopela manutenção de sua religião.

Para Marx o problema da análise de Bauer consistebasicamente em confundir a emancipação política oucidadania com a emancipação humana. Os direitosde cidadania mesmo num Estado liberto dopreconceito religioso mantém ainda a separação entreos homens, pois apesar de haver a igualdade políticaos homens ainda continuam religiosos no plano davida privada. Nesse sentido, a essência da religião nãose opõe à perfeição do Estado político, o Estado podeser livre sem que o homem se torne livre e, apesar da

1 MARX, Karl. A QuestãoJudaica. São Paulo: Moraes,1991.

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separação entre o Estado e a religião, o homem aindacontinua alienado. A religião promove oreconhecimento do homem enquanto homem atravésde um mediador, no caso de Cristo, que é mediadorentre o homem e a divindade. Da mesma forma oEstado passa a ser o mediador entre o homem eliberdade. Apesar do Estado constituir a diferençareligiosa como não política ela continua existindo;prova disso é a grande quantidade de religiõesexistentes na América anglo-saxonica.

Apesar do Estado Político anular a propriedadeprivada e suprimir a questão da riqueza para o sufrágiouniversal, elas ainda continuam a existir e fazer diferençaentre os homens:

...O Estado como tal, anula, por exemplo, a propriedade privada.O homem declara abolida a propriedade privada de modo políticoquando suprime o aspecto riqueza para o direito de sufrágio ativoe passivo, como já se fez em muitos Estados norte-americanos.....Não obstante, a anulação política da propriedade privada, aocontrário e longe de destruir a propriedade privada, a pressupõe. OEstado anula, ao seu modo as diferenças de nascimento, de statussocial, de cultura e de ocupação, ao declarar o nascimento, o statussocial, a cultura como diferenças não políticas, ao proclamar todomembro do povo, sem atender a estas diferenças, co-participante dasoberania popular em base de igualdade, ao abordar todos oselementos da vida real do povo do ponto de vista do Estado. Contudo,o Estado deixa que a propriedade privada, a cultura e a ocupaçãoatuem ao seu modo, isto é, como propriedade privada, como culturae como ocupação, e façam valer sua natureza especial. Longe deacabar com estas diferenças de fato, o Estado só existe sobre taispremissas, só se sente como Estado político e só faz valer suageneralidade em contraposição a esses elementos seus. ...2

Observa-se que a cidadania política ou aemancipação política apesar de proclamar as diferençascomo não políticas, acaba deixando que elas atuemna vida social de forma a gerar desigualdades mesmoque o Estado no seu arcabouço legal proclame a

2 MARX, Karl. Op. Cit. p. 24 e25.

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igualdade política. A cidadania aparece como umadas lutas de vários movimentos sociais; no caso domovimento negro, busca-se lutar por uma efetivacidadania para a população negra, apesar do Estadotambém declarar que a tonalidade de pele não possuinenhuma conotação para vida social, pois, perante oEstado brancos e negros são cidadãos.

Para Marx apesar da emancipação política criarcondições para igualdade, essa igualdade é apenasformal. O homem parece estar dividido entre sua vidaenquanto indivíduo e sua vida enquanto membro dacomunidade política. Ironizando os autores datradição hegeliana ele diz que os homens levam umavida celestial e outra terrena. A celestial seria a vidados homens enquanto cidadãos enquanto a terrena éa vida prática em que continuam separados com asdiferenças gerando desigualdades entre eles. Nomomento do sufrágio universal, teoricamente, todosos indivíduos são iguais. Na prática, percebe-se queos grupos economicamente dominantes têm maiorpoder no apoio aos seus candidatos e na eleição dosmesmos. Portanto, apesar dos homens pertencerem àcomunidade política que teoricamente busca o interessegeral, na vida real as diferenças de riquezas, nascimento,cultura, fazem diferença. Hoje em dia poderia seracrescentado que o conceito de cidadania também nãoconsegue resolver as desigualdades provenientes deetnia, gênero entre outras diferenças e, com isso,emancipação política transforma-se em meraaparência de igualdade.

Da mesma forma que o direito de liberdade acabajustificando o direito de propriedade, que é o direitodo ser humano de dispor do patrimônio sem atenderos demais homens, ao direito de liberdade liga-setambém o direito de segurança que coloca ainviolabilidade da pessoa humana na sua integridadefísica, mas que também serve para a proteção dopatrimônio ou propriedade privada. Para Marxnenhum dos direitos humanos ultrapassa o egoísmo

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do homem burguês, que visa apenas o seu interesseparticular, necessariamente está dissociado dacomunidade política. Existe, portanto, uma contradiçãoentre interesse particular e interesse geral, e os chamadosdireitos humanos não conseguem escapar dessacontradição.

Enfim, a emancipação política apesar de ser umavanço, ainda é apenas uma etapa da emancipaçãohumana. Apesar de promover a igualdade e liberdade,ela só existe no plano formal. As desigualdades sociaiscontinuam existindo em função da forma desigualcom que é distribuída a propriedade privada. Marxavança firmemente na discussão sobre os limites dacidadania, deixando claro que a mesma não conseguepromover efetivamente os valores que se propõe.Segundo ele, existe uma crítica arguta ao Estadoresultante do processo histórico de formação docapitalismo. Apesar da cidadania ser um avanço elaainda não consegue promover a igualdade efetiva dosgrupos sociais. Como diria Norberto Bobbio3, existeuma distinção entre democracia formal e democraciasubstancial. A democracia formal é aquela apregoadapelos direitos que existem em nossa legislação.Observando, por exemplo, nossa constituição verifica-se que ela é uma das mais democráticas, pois emtermos de direitos avançou muito. Porém, a realidadeé muito diferente. Nossa sociedade é profundamentedesigual, e a diferença entre os vários grupos quecompõem a sociedade brasileira é às vezes gritante.As desigualdades entre negros e brancos no país sãoum exemplo disso. Para que houvesse umademocracia substancial seria necessário uma melhordistribuição dos recursos econômicos, o que afetarianossa vida social não havendo uma distância tão grandedos grupos sociais que compõem a sociedadebrasileira. Neste sentido, pode-se dizer que ademocracia só existe quando a forma correspondeao conteúdo. Os direitos existentes no papel devemencontrar efetividade na prática social.

3 BOBBIO, N. Estado, Governo,Sociedade; para uma teoria geralda política. Rio de Janeiro:Paz e Terra, 1987. p. 155 à157.

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Apesar do avanço na crítica ao conceito decidadania Marx não consegue romper com o conceitode indivíduo. Quando fala em emancipação humanaele se refere a uma situação social em que as váriasdiferenças foram suprimidas em nome de um homemgeral. O que seria esse homem geral ou indivíduo?Será que tal conceito consegue contemplar asespecificidades dos grupos sociais?

A Diferença e a Crítica da ModernidadeA Diferença e a Crítica da ModernidadeA Diferença e a Crítica da ModernidadeA Diferença e a Crítica da ModernidadeA Diferença e a Crítica da Modernidade

Benhabib e Cornell4 mostram como o surgimentodo movimento feminista e a chamada nova esquerdalevam a uma reestruturação teórica a partir daperspectiva feminista. Poderíamos ampliar, não só omovimento feminista, como o movimento negro eoutros movimentos que colocam problemas aosconceitos desenvolvidos pela tradição ocidental depensamento. Tais movimentos acabam por questionaras categorias fundamentais da metodologia, ciência eteorias ocidentais. Para essas autoras há umanecessidade de mudança do paradigma marxista parao pensamento feminista. O que seria esse chamadoindivíduo portador da razão e que busca a liberdade ?Será que ele possui gênero, cor, cultura ? Será que taisdiferenças têm alguma atuação na formação do seueu e da posição social ?

Para essas autoras torna-se necessário uma mudançado paradigma marxista de pensamento que possacontemplar as reivindicações dos grupos feministas.Pode-se observar que o marxismo ortodoxo possuialguns pressupostos: o materialismo histórico enquantociência busca generalizações semelhantes a leis; essaconcepção coloca que as transformações sociais sãodeterminadas em última análise pelas relações deprodução; que a consciência de grupo está ligada àposição ocupada na esfera econômica e nesse sentidoas classes sociais são os atores coletivos maisimportantes.

4 BENHABIB, S.; CORNELL.Feminismo como crítica daModernidade. Rio de Janeiro:Paz e Terra, 1987.

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Segundo essas autoras a tradição do pensamentoocidental é marcada pela construção de um conceitode razão deontológico. O pensamento ocidental fazuma distinção entre o sujeito e o conhecimento. Oconhecimento torna-se possível devido à existência deum sujeito que é portador da razão. Ele existeindependentemente das condições históricas e é umacategoria universal. Tal conceito é semelhante aoconceito de indivíduo que aparece nas teoriascontratualistas. Um indivíduo portador da razãopercebe a necessidade da criação de um contrato socialpara que sua existência seja garantida por meio dacriação do Estado.

A chamada razão deontológica acaba por reduziros conceitos à sua essência deixando de lado aparticularidade. O próprio conceito de cidadania nãoleva em consideração as particularidades dos váriosgrupos sociais. Portanto, essa razão como conceitodeontológico é incapaz de pensar a diferença eparticularidades sem reduzi-las à irracionalidade. Paraas autoras a dicotomia entre vida pública e privadanão é capaz de perceber as especificidades e os anseios,fruto da condição de gênero. A Esfera Pública de umaforma geral foi identificada como o locus do indivíduona busca do bem comum contribuindo para o bemgeral. Enquanto isso, a esfera privada foi identificadacomo o espaço do amor e da afeição. De certa forma,a esfera pública é o espaço da razão enquanto a esferaprivada é o espaço por excelência da família. Ou seja,à mulher cabe confinar-se ao espaço privado, pois énesse locus que se realiza a socialização dos filhos,atividade praticamente identificada ao papel da mulher.As mulheres passam a ser “naturalmente” confinadasà esfera de vida privada. Portanto, torna-se necessáriouma redefinição das categorias ‘público’ e ‘privado’ ea incorporação de padrões de comportamento eemocionalidade que antes eram identificados aofeminino e “confinados” à esfera privada.

Ao questionar o conceito deontológico de razão e

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a dicotomia pública e privada o feminismo acabatambém por demonstrar que o princípio normativoe dispositivo institucional da teoria política liberal nãoconsegue lidar com as diferenças. O conceito deindivíduo (persona público) é prejudicado peladesigualdade, assimetria e dominação que permeia aidentidade privada desse sujeito dotado de gênero. Oenfoque liberal do eu tem a perda da compreensãodo eu dotado de gênero, e poderíamos ampliar, o eumarcado pela identidade étnico-racial. A crítica dofeminismo coincide, dessa forma, com uma série deargumentos que permitem questionar o pensamentoocidental. Esse conjunto de argumentos acaba porbuscar uma nova concepção de ciência que Semprini5,por exemplo, caracteriza como epistemologiaMulticultural.

Semprini caracteriza essa epistemologia a partir dealguns pressupostos: a realidade é uma construção; asinterpretações são subjetivas; os valores são relativose o conhecimento é um fato político. Um dospressupostos do pensamento ocidental é a separaçãoentre sujeito e conhecimento, a realidade que existeindependente da representação que o sujeito faz damesma. Parafraseando um grande autor os fatos sociaisdevem ser tratados como coisa6. A objetividade écondição necessária para análise da realidade, o sujeitotem que fazer a distinção entre a objetividade esubjetividade. A epistemologia multicultural critica essepressuposto uma vez que tal objetividade deve servista como uma descrição dessa realidade sendo que,no máximo, deve ser vista como uma versão possíveldentre outras sobre o objeto de conhecimento.

Já que a realidade não é algo objetivo, asinterpretações subjetivas estão amplamentecondicionadas pela posição social do agente e pelasua identidade social. Nesse sentido, a interpretaçãopassa a ser algo essencialmente individual. A essacaracterística acrescenta-se a relatividade dos valoressociais e torna-se difícil estabelecer um plano de

5 SEMPRINI, Andrea. Multi-culturalismo. Bauru: Edusc,1999. p. 83 à 85.

6 DURKHEIM. Emile. AsRegras do Método Sociológico.São Paulo: Nacional, 1990.p.13.

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objetividade que escape ao condicionamento daposição do sujeito. Portanto, a verdade estáfundamentada numa história pessoal ou emconvenções coletivas. Com isso, ainda segundoSemprini, torna-se necessário relativizar qualquerjulgamento de valor. Como conseqüência dessespressupostos o conhecimento é um fato político, pois,qualquer visão sobre a realidade está marcada pelojogo de forças entre os grupos, que buscam o poderno interior do sistema.

A incorporação das diferenças na explicação davida social pode ser observada na discussão deBoaventura Souza Santos7 sob a necessidade da‘esquerda’ adotar uma concepção de direitos humanosque incorpore o multiculturalismo. Para o autor, ofim do Socialismo real colocou problemas sérios sobrea questão da emancipação e regulação normativa dosgrupos sociais. Ele entende que a tarefa central dapolítica emancipatória do nosso tempo é tentar buscaruma concepção de direitos humanos baseada numdiálogo intercultural entre os diversos povos e culturasque transcenda e busque a universalidade sem deixarde respeitar as particularidades. Tal transformação sóocorrerá na medida em que esse diálogo for feito apartir de algumas premissas.

A primeira premissa é a necessidade de superaçãodo debate entre universalismo e particularismo. Nessadiscussão não pode haver tal polarização, pois estaprejudicaria uma concepção emancipatória dos direitoshumanos. Apesar de todas as culturas serem relativas,para Boaventura, o relativismo enquanto atitudefilosófica é incorreto. No outro pólo pode-se observarque todas as culturas aspiram preocupações e valoresuniversais, mas também o universalismo enquantoatitude filosófica também é incorreto. Para evitar talarmadilha o autor propõe que contra o universalismohá de se propor diálogos interculturais entre os váriospovos. Para evitar também o relativismo absoluto háde se desenvolver critérios políticos que distingam a

7 SANTOS, BoaventuraSouza. Por uma concepçãomulticultural de direitoshumanos. In: FELDMAN-BIANCO,Bela; CAPINHA,Graça. Identidades: estudos decultura e poder. São Paulo:Hucite, 2000. p. 19-40.

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política progressista da política conservadora. Torna-se imprescindível que este diálogo leve a coligaçõestransnacionais que busquem valores ou exigênciasmáximas e não se limite apenas ao “possível”.

A segunda premissa é a de que apesar de todas asculturas possuírem concepções de dignidade humana,nem todas elas a concebem em termos de direitoshumanos e, portanto, torna-se imprescindívelidentificar quais são as preocupações comuns entre asdiversas culturas.

A terceira premissa para o autor, e no nossoentender a mais importante, é a idéia de que as culturassão incompletas e problemáticas na sua concepção dedireitos humanos. Nenhuma cultura por maisdesenvolvida que seja possui uma capacidade deresolver todos os problemas, pois se assim o fossenão haveria pluralidade de culturas. É essa idéia decompletude que levou a uma série de intolerâncias.Veja-se quanta barbárie foi resultado do conceitoocidental de civilização. Em nome de tal conceito váriospovos foram exterminados. Na busca de um únicopadrão civilizatório os povos ocidentais impuseramvalores acreditando que os mesmos eram os maiscompletos.

A quarta premissa é a de que todas as culturaspossuem versões diferentes sobre a dignidade humana,algumas são mais amplas e outras nem tanto. Oocidente, por exemplo, possui duas concepções dedireitos humanos que são divergentes, uma de cunholiberal e outra de cunho marxista. Uma acaba dandoprioridade aos direitos cívicos e políticos e a outra dáprioridade aos direitos sociais e econômicos. Énecessário, pois, perceber qual delas amplia areciprocidade entre as culturas.

A última premissa é a que todas as culturas tendema distribuir as pessoas e os grupos sociais em doisprincípios competitivos. Um é a igualdade e o outro éa diferença. A igualdade opera por meio de umahierarquia entre unidades homogêneas. Pode-se citar

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como exemplo a hierarquia cidadão/estrangeiro. Já adiferença opera por meio das hierarquias entrediferenças e identidades consideradas unidas, comopor exemplo, a hierarquia entre etnias ou raças. Osdois princípios não se sobrepõem, pois nem todas asigualdades são idênticas e nem todas as diferençasdesiguais.

Essas são premissas de um diálogo intercultural sobre a dignidadehumana que pode levar, eventualmente, a uma concepção mestiçade direitos humanos, uma concepção que, em vez de recorrer afalsos universalismos, se organiza como uma constelação de sentidoslocais, mutuamente inteligíveis, e se constitui em redes de referênciasnormativas capacitantes.8

Boaventura propõe um diálogo cultural baseadona premissa de uma hermenêutica diatópica. Oconceito parte da idéia de que os topoi de uma culturapor mais fortes que sejam, são incompletos quanto àprópria cultura que pertencem. Essa incompletude nãoé percebida uma vez que a aspiração da totalidade detodas as culturas acaba levando a que se tome a partepelo todo. Para o autor o objetivo da hermenêuticadiatópica não é atingir a completude, mas levar aosinterlocutores o diálogo e a consciência da incomple-tude de seus topois.

Para Boaventura, para que isso seja atingido deve-se buscar:

...das diferentes versões de uma dada cultura, deve ser escolhidaaquela que representa o círculo mais amplo de reciprocidade dentredessa cultura, a versão que vai mais longe no reconhecimento dooutro...o mesmo procedimento deve ser adotado na cultura ocidental.Das duas versões de direitos humanos existentes na nossa cultura– a liberal e a marxista – a marxista deve ser adotada, pois ampliapara os domínios econômico e social a igualdade que a versãoliberal apenas considera legítima no domínio político...uma vezque todas as culturas tendem a distribuir pessoas e grupos deacordo com dois princípios concorrentes de igualdade e diferença,

8 Ibidem, p. 30.

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as pessoas tem o direito a ser iguais quando a diferença osinferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade osdescaracteriza.9

Percebe-se que tal visão explicitada por Boaventurapode ser utilizada na concepção de cidadania ou seja,uma cidadania que busque levar a igualdade entre osdiversos grupos sociais que compõem umadeterminada sociedade. É perceptível no casobrasileiro em que a diferença inferioriza e, assim, acidadania precisa ser incorporada à questão étnico-racial. Se nossa cidadania não avançar incorporandotal diferença para evitar que ela leve à desigualdadetorna-se impossível uma cidadania efetiva no país.Assim, só a superação desse dilema pode levar à efetivademocratização no Brasil.

Ideologia, Interpelação e CidadaniaIdeologia, Interpelação e CidadaniaIdeologia, Interpelação e CidadaniaIdeologia, Interpelação e CidadaniaIdeologia, Interpelação e Cidadania

Dando continuidade ao argumento desenvolvidono texto acerca da necessidade de incorporação dasdiferenças na questão da cidadania para que ela se torneefetiva, há de se acrescentar um problema que ocorreno Brasil e que dificulta a luta do movimento negrona busca da efetiva cidadania: o mito da democraciaracial. Na obra de Gilberto Freyre10, esse mito écaracterizado pela crença que a miscigenação praticadaentre brancos, negros e índios no Brasil levou a umadiminuição dos antagonismos sociais desses grupos.

Acredita-se que a miscigenação no plano biológicose traduziu numa maior democratização das relaçõesdos diversos grupos sociais que compõem a sociedadebrasileira. Esse mito agiu e ainda age poderosamentena desmobilização da sociedade na luta contra o racismoe da discriminação. Afinal, o mito age no sentido decolocar o Brasil como um modelo de relações sociaisentre grupos diferentes, que pode ser, por exemplo,como contraponto ao racismo “virulento” que existenos Estados Unidos. Tal mito acaba por encobrir as

9 Idem, p. 37. Os grifos sãomeus.

10 FREYRE, G. Casa Grande&Senzala. Rio de Janeiro:Record, 1989. Ver especial-mente prefácio.

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relações hierárquicas e desiguais existentes entre brancose negros em nosso país. Associado ao mito dademocracia racial existe uma estratificação sócio racialque estabelece dois pólos a saber, de um lado o negroe de outro o branco.11 sendo que entre esses dois pólosexiste uma variedade de gradientes. A cor da pessoaquanto mais próxima da branca maiores serão as suaschances de mobilidade social. Com isso os mulatostendem a ter maiores chances de mobilidade social queas pessoas que possuem um gradiente de cor maispróxima da cor negra.

Associada a essa estratificação sócio-racial pode-se observar um conjunto de representações e imagensdepreciativas do elemento negro na sociedade queacaba fazendo com que as pessoas que possuemorigem africana tenham um auto-referencial negativode si mesmas, acabando por negarem suaascendência12. Este se torna um problema de difícilsuperação numa sociedade em que predominamvalores como padrões de beleza brancos e queassociam a razão ao elemento branco. Aos negros aindacabem, no imaginário popular, atividades de caráterfísico. Os espaços socialmente delimitados estãorelacionados ao esporte e às artes.

Portanto, um dos grandes problemas que omovimento negro enfrenta no decorrer da históriabrasileira é a falta de adesão às suas propostas. Paraos elementos de cor branca, tais movimentos sãoresponsáveis pela criação do racismo, uma vez que omovimento negro acabaria por criar uma espécie deracismo ao contrário. O negro, de vítima passa a serresponsável pela situação social em que se encontra.Nesse encaminhamento, conforme os negrosascendem socialmente passam por um processo de“branqueamento social” tendendo a se negar enquantonegros. Com isso a luta do movimento negro passa aser a busca de um conceito de cidadania que abarqueas especificidades de uma população quehistoricamente foi marginalizada e excluída.

11 FERNANDES,F. A integraçãodo negro na Sociedade de Classes.São Paulo: Ática,1978.

12 Para um um maior aprofun-damento desta interpre-tação ver : FANNON, F. Pelenegra, máscaras brancas. Porto:A.Ferreira, sd.

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Louis Althusser em sua análise dos aparelhosideológicos do Estado nós fornece alguns elementosimportantes para entender a construção da identidadedos grupos sociais, e como tal construção estárelacionada ao conceito de interpelação. Ao analisar osistema capitalista ele observa que a condição últimade qualquer sistema produtivo é a reprodução dassuas condições de produção. O sistema capitalistapara conseguir continuar existindo precisa reproduziras forças produtivas como também as relações deprodução existentes. Segundo o autor, a reproduçãoda força de trabalho é assegurada pelos salários pagosà classe trabalhadora. Mas, para que essa força detrabalho seja reproduzida ela deve ser feita através deuma qualificação da força de trabalho. A reproduçãoda força de trabalho não se dá mais no local dotrabalho, mas por meio do sistema escolar capitalista,como também em outras instituições e instâncias.

A escola é o local onde se aprende a ler, escrever,contar e em última análise as técnicas e os elementosde uma “cultura científica” necessária para que a mão-de-obra seja incorporada ao mercado de trabalho.Além desses elementos, aprende-se também as regrasde bom comportamento, regras de moral econsciência cívica. O indivíduo apreende desde cedoa socialização necessária para sua incorporação aomercado de trabalho como também é feito o trabalhode “condicionamento” e aceitação do sistemacapitalista como algo natural e necessário da vida social.De certa forma aprende-se na escola a saber mandarnos operários, como também a saber obedecer asordens sem questioná-las. A socialização proporci-onada pela escola existe no sentido de reproduzir asubmissão às regras vigentes. A escola como tambémoutras instituições do Estado como a Igreja e oExército, segundo Althusser, fornecem o “know-how”necessário que assegure a submissão do indivíduo auma ideologia dominante.

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A reprodução da força de trabalho evidencia, como condição sinequa non, não somente a reprodução de sua “qualificação” mastambém a reprodução de sua submissão à ideologia dominante, ouda “prática” desta ideologia, devendo ficar claro que não bastadizer: “não somente mas também”, pois a reprodução da qualificaçãoda força de trabalho assegura em e sob as formas de submissãoideológica.13

Para reforçar seu argumento Althusser buscaelucidar sua interpretação com a análise e crítica daobra de Marx. Segundo ele, para Marx, a estrutura detoda sociedade é constituída por níveis e instânciasarticuladas. Essa estrutura forma os níveis e instânciase pode ser caracterizada de um lado por umainfraestrutura e de outro uma superestrutura. Ainfraestrutura é a base econômica, ou seja, as forçasprodutivas e as relações de produção do modo deprodução capitalista. A superestrutura pode sercaracterizada por dois níveis ou instâncias: a instânciajurídico-política, que são basicamente o Direito e oEstado, e a esfera ideológica que pode ser caracterizadacom as distintas ideologias, religiosas, moral, jurídicae política. A base ou infraestrutura condiciona asuperestrutura. Dito de outra forma, as formasideológicas são condicionadas pela forma deorganização da produção.

Apesar disso ainda existe uma certa autonomiarelativa da superestrutura em relação à base, ou seja,na visão de Althusser existe uma ação de retorno dasuperestrutura sobre a base. Com isso ele passa aanalisar o Estado que é concebido como um aparelhorepressivo. Em última análise o Estado é a máquinaque permite à classe dominante assegurar suadominação sobre a classe operária. Essa concepçãosegundo o autor aparece nos escritos de Marx noManifesto como também no 18 Brumário.

...O Estado é uma “máquina” de repressão que permite às classesdominantes ( no século XIX à classe burguesa e à classe dos

13 ALTHUSSER, L. AparelhosIdeológicos doEstado. Rio deJaneiro: Graal, 1985. p. 59.

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grandes latifundiários) assegurar sua dominação sobre a classeoperária, para submetê-la ao processo de extorsão da mais-valia (quer dizer, à exploração capitalista).14

Para entender ainda melhor Althusser também faz a distinçãoentre Estado e Aparelho de Estado: “....O Estado é, antes demais nada, o que os clássicos do marxismo chamaram de o aparelhode Estado. Este termo compreende: não somente o aparelhoespecializado (no sentido estrito), cuja existência e necessidadereconhecemos pelas exigências da prática jurídica, a saber: a política– os tribunais – e as prisões; mas também o exército, que intervémdiretamente como força repressiva de apoio em última instânciadiretamente como força repressiva de apoio em última instância (oproletariado pagou com seu sangue esta experiência) quando apolícia e seus órgãos auxiliares são “ultrapassados pelosacontecimentos”; e acima deste conjunto, o chefe do Estado, oGoverno e a Administração.15

Para Althusser toda luta política gira em torno datomada e manutenção do Estado. Com isso torna-senecessário fazer a distinção entre poder do Estado eaparelho do Estado. O objetivo da luta de classes é abusca do poder do Estado. Os aparelhos do Estadonão se confundem com o Aparelho repressivo doEstado (governo, administração, exército, a polícia, ostribunais, as prisões etc.), pois tais aparelhos funcionampor meio da violência em situações limites. Os aparelhosdo Estado podem ser chamados de aparelhosideológicos, que são as diversas instituições que seapresentam de forma distintas e especializadas.

Os Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE) quepodemos citar em suas diversas modalidades são osAIE religiosos (as diferentes igrejas), A AIE escolar,familiar, jurídico, político, sindical, de informação(imprensa, rádio, televisão) e cultural. Percebe-se quea maior parte desses aparelhos ideológicos está nodomínio privado enquanto os repressivos estão nodomínio público. De certa forma o Estado não é nempúblico e nem privado, mas é a condição da distinção

14 Ibidem, p. 62.

15 Idem, p. 63.

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do público e privado. Os Aparelhos Ideológicos doEstado funcionam por meio da ideologia. As váriasinstituições que os compõem têm o papel deinculcamento das ideologias que mantém e reproduzemo tipo de sistema capitalista. Nenhuma classe social podedeter o poder de Estado sem exercer a hegemoniasobre os Aparelhos Ideológicos do Estado. Nestesentido a luta política não se resume apenas na tomadado poder do Estado, mas principalmente, tal luta semanifesta pela busca do domínio ideológico que é agrande responsável pela aceitação passiva e submissado modo de produção capitalista.

Portanto, a reprodução das relações de produçãoé assegurada pelo exercício de poder por meio dosaparelhos ideológicos do Estado e do aparelhorepressivo. Dessa forma o Estado consegue se imporde várias maneiras. Quando ocorre uma greve, porexemplo, ele pode, além de mobilizar o seu aparatorepressivo, manipular a opinião pública sobre omovimento pelos meios de comunicação de massasque criam uma certa imagem a ser direcionada para apopulação, de forma que ela perceba o movimentosegundo os seus interesses. No Brasil, esta questãoparece estar bem clara na maneira como o governose relaciona com o movimento dos trabalhadores sem-terra. Quando os trabalhadores invadem as terras, oEstado utiliza do seu aparato repressivo e, ultimamente,por meio de uma série de propagandas na imprensa,utiliza da ideologia para descredenciá-los perante aopinião pública. As invasões são caracterizadas comoviolentas e prejudiciais para a reforma agrária no país.

Um outro exemplo pode ser citado com relaçãoao mito da democracia racial. O Estado brasileiro atébem pouco tempo contribuía para a manutenção dessemito por meio da escola. A versão ensinada às criançasera de que o processo de colonização no Brasil se deua partir do encontro harmônico entre as três raças.Com isso desde pequenas, as crianças aprendiam aacreditar nesse mito. Uma das questões levantadas pelo

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movimento negro era a necessidade de mudança noslivros didáticos como também do currículo escolarpara que não contribuíssem ainda mais paramanutenção do racismo e discriminação. Nesse sentidoa análise de Althusser é extremamente elucidativaquanto às formas de manutenção do poder e papelda ideologia nesse processo.

Para esclarecer um pouco mais a discussão torna-se necessário, segundo Althusser, retomar um poucoà análise sobre a questão da ideologia em Marx. Ainda,segundo o autor, Marx concebia a ideologia comoum sistema de idéias, representações que dominam o“espírito” de um homem ou grupo social. Para secriar uma teoria das ideologias era necessário buscá-lana história das formações sociais. Na Ideologia Alemã,esse conceito aparecia como um sonho, ilusão ou nada;a realidade aparecia como algo totalmente oposto àsua representação. Nesse sentido, para Marx, a ideologiaera uma bricolage imaginária constituída pelos resíduosda história concreta dos indivíduos. Na Ideologia Alemã,para Althusser a ideologia nada mais é que puro sonhoe também não possui história, no sentido de não teruma história propriamente sua.

Na percepção e análise de Althusser desse conceito,a ideologia possui uma história sua, mas por outrolado, em geral não tem história. A ideologia possuiuma estrutura e funcionamento que fazem dela umarealidade não-historica. A ideologia não tem história edeve ser relacionada à proposição de Freud de que oinconsciente é eterno:

....as ideologias têm uma história sua (embora seja ela, em últimainstância, determinada pela luta de classes); e por outro lado,acredito poder sustentar ao mesmo tempo que a ideologia em geralnão tem história, não em um sentido negativo ( o de que a históriaestá fora dela), mas no sentido positivo. .... a ideologia tem umaestrutura e um funcionamento tais que fazem dela uma realidadenão histórica, isto é, omnihistórica, no sentido em que esta estruturae este funcionamento apresentam da mesma forma imutável em

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toda sua história, no sentido do manifesto define a história comohistória da luta de classes, ou seja, história das sociedades declasse.16

Observemos como ele relaciona ideologia einconsciente:

Se eterno significa, não a transcendência a toda história (temporal),mas ominipresença, transhistórica e portanto imutabilidade emsua forma em toda extensão da história, eu retomarei palavra porpalavra da expressão de Freud e direi: a ideologia é eterna, como oinconsciente. E acrescentarei que esta aproximação me pareceteoricamente justificada pelo fato de que a eternidade do inconscientenão deixa de ter relação com a eternidade da ideologia em geral.17

Althusser elabora algumas teses sobre a estrutura efuncionamento da ideologia. A primeira delasconsidera a ideologia como uma representaçãoimaginária dos indivíduos com suas condições reaisde existência. Partindo de tal pressuposto, por quesegundo Althusser os homens necessitariam dessatransposição imaginária? Em uma resposta simplistapoderia ser colocado que existe um grupo de homenscínicos que assentam sua dominação e exploração dopovo sobre uma representação falseada do mundo.A segunda interpretação possível seria a de que oshomens fazem uma representação imaginária de suascondições de existência por que as mesmas são em sialienadas. Na visão de Althusser não são as condiçõesreais de existência, seu mundo real que os homensrepresentam na ideologia. O que é nelas de fatorepresentado é sua relação com as condições reais deexistência. Nesse sentido, é a natureza imaginária dessarelação que sustenta toda a deformação imaginária.Portanto, a ideologia representa não o sistema dasrelações reais que governa a existência dos homens,mas a relação imaginária destes indivíduos com asrelações reais sob as quais vivem. A ideologia possuiuma existência real, pois sempre existe em um

16 Idem, p. 84.

17 Idem, p. 85.

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Aparelho Ideológico de Estado. A representaçãoideológica é feita pelo sujeito dotado de umaconsciência que crê nas idéias que sua consciência lheinspira, imprimindo nos atos de sua prática materialtais representações enquanto sujeito livre. As idéiasdesaparecem como tais, a sua existência está inscritanos atos e práticas regulados por rituais definidos pelosAparelhos Ideológicos do Estado. Os rituais existentesnos AIE prescrevem atos materiais de um sujeito queage conscientemente segundo sua crença. Para o autora esta formulação deve-se acrescentar as seguintesnoções: sujeito, consciência, crença e atos. Só existeprática por meio e sob uma ideologia, e esta só existepor sua vez pelo sujeito e para o sujeito. Com issochegamos ao aspecto que interessa à presente discussão:na visão de Althusser a ideologia tem por funçãointerpelar os indivíduos enquanto sujeitos. Ou dito deoutra forma, a ideologia tem por função constituirindivíduos concretos em sujeitos.

A ideologia age ou funciona de tal forma que“recruta” sujeitos dentre os indivíduos, ou transformaindivíduos em sujeitos. Tal operação de recrutamentoAlthusser chama de interpelação. Quando o indivíduoé interpelado e se reconhece na interpelação, ele setorna sujeito. O exemplo utilizado por Althusser paraexplicar o fenômeno da interpelação é sobre aideologia religiosa cristã. Segundo o autor a religiãoconvoca as pessoas para servir a “Deus”. A ideologiacristã se dirige aos indivíduos para transformá-los emsujeitos. Ela interpela os indivíduos e faz o indivíduose reconhecer enquanto sujeito que foi convocado por“Deus”. De indivíduo ele passa a ser sujeito ativo. Todaideologia na visão do autor tem um centro, um lugarabsoluto ocupado pelo sujeito absoluto que interpelauma infinidade de indivíduos como sujeitos.

Resumindo Althusser diria: A ideologia tem comofunção a interpelação dos indivíduos em sujeitos; levao sujeito à submissão da mesma; leva também aoreconhecimento entre sujeitos e ideologia. Para os

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sujeitos há uma garantia de que tudo está bem se ossujeitos se reconhecem e agem de acordo com talqualidade. Na acepção da modernidade o sujeito éconsiderado uma subjetividade livre, centro deiniciativas, autor e responsável pelos seus atos. Althusserdesmistifica tal concepção ao mostrar como aideologia age sobre o indivíduo e o condiciona.

Em nossa percepção o conceito de interpelaçãopode ser utilizado para constituir uma possível estratégiado movimento negro em busca de uma cidadania queincorpore suas demandas. Em nossa visão só um fortemovimento de grande representatividade social podepressionar o governo à criação de políticas públicasespecíficas para a população negra que reverta o quadrode desigualdade social no país. Nesse sentido énecessário que esse movimento crie uma ideologia queinterpele os indivíduos para as suas propostas. Ou seja,que transforme os indivíduos em sujeitos ativos domovimento. No caso brasileiro, o mito da democraciaracial exerce um grande papel desmobilizador na lutacontra o racismo e a discriminação. Só será possíveluma estratégia de luta que seja feita em função de umaideologia que leve a população negra e branca a seidentificar com o problema da discriminação eracismo. Um problema a ser enfrentado na busca dessaideologia são as grandes diferenças que os grupossociais possuem entre si em termos de valores, estilosde vida, gostos e posições que ocupam no interior dasociedade não só na população negra como tambémentre os brancos. Pierre Bourdie é um dos teóricosque nos fornecem elementos para entender talproblema.

A questão do HabitusA questão do HabitusA questão do HabitusA questão do HabitusA questão do Habitus

Para Bourdie18 o mundo social pode ser explicadopor três modos de conhecimento: o conhecimentofenomenológico, o conhecimento objetivista e oconhecimento praxiológico. No conhecimento

18 BOURDIE, P. Esboço deuma teoria prática. In:PIERRE BOURDIE, ColeçãoGrandes Cientistas Sociais, SãoPaulo: Ática, 1994.

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fenomenológico, a verdade é extraída da experiênciaprimeira do mundo social. O mundo social éapreendido como natural e evidente, sobre o qual nãose precisa pensar. As representações são resultantes dasprimeiras impressões que a consciência forma darealidade. Na forma de conhecimento objetivista, asrelações objetivas da realidade estruturam práticas erepresentações das práticas e, portanto, há possibilidadede ruptura entre o conhecimento entre as primeirasrepresentações que se fazem da realidade e oconhecimento objetivo. Quanto ao conhecimentopraxiológico, este não busca só o sistema de relaçõesobjetivas, mas também as relações dialéticas entre as estruturase as disposições estruturadas as quais se atualizam e tendema reproduzi-la. Nessa concepção há um duplo processode interação entre exteriorização e interioridade. O autorprocura fazer uma crítica ao objetivismo doestruturalismo principalmente do modelo da lingüísticade Saussure. Na visão objetivista parece que acomunicação só existe se os agentes estão objetivamenteafinados de modo a associar o mesmo sentido aomesmo signo. Na visão objetivista do estruturalismo aspráticas e interpretações só são possíveis se relacionadasa um mesmo sistema de relações constantes,independentes das consciências e vontade individuais eirredutíveis na sua execução prática. A lingüísticaSaussuriana privilegia a estrutura do signo em detrimentode suas funções práticas que não se reduzem jamais àsfunções de comunicação e conhecimento. Só se permiteperceber se as propriedades estruturais da mensagem,emissor e receptor são impessoais e intercambiáveis.Quando se passa da estrutura da língua para as funçõesque ela preenche, percebe-se que o uso que delas fazemos agentes e o contexto em que é usada, são importantes.Um erro desse tipo de análise seria atribuir aos grupose instituições, disposições que só se podem construirnas consciências individuais. Tal análise acaba fazendodo sentido objetivo das práticas o fim subjetivo dosujeito.

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Segundo o autor, é necessária uma ruptura com oobjetivismo metódico. O realismo da estrutura implicanuma visão de relações objetivas em totalidades jáconstituídas, fora da história, do indivíduo e do grupo.Nesse sentido, torna-se necessária a construção de umateoria da prática. Passar do opus operatum ao modos operandi.Tentar buscar o modo de engendramento das práticas.Buscar a dialética da interioridade e exterioridade.Explicar a interiorização da exterioridade e aexteriorização da interioridade. As estruturasconstitutivas de um tipo particular de meio ( condiçõesmateriais de existência) que são regularidadesassociadas ao meio, produzem Habitus. O Habituspara Bourdie, seria um sistema de disposições, umprincípio gerador e estruturador das práticas e dasrepresentações que podem ser objetivamente reguladase regulares sem ser produto de obediência às regras.São adaptações aos fins sem supor a intenção conscientedos fins. São ações orquestradas sem ser o produtoda ação organizadora de um regente. O habitus estáno princípio de encadeamento das ações que sãoobjetivamente organizadas como estratégia.

Pode-se perceber uma crítica não só aoestruturalismo como também à escola da ação racional.Na verdade, para o autor, os agentes não ajustamconscientemente suas aspirações a uma avaliação exatade suas chances de sucesso. A avaliação que os agentesfazem de suas aspirações de sucesso faz antever aexistência de um campo de sabedoria semi-formal:ditados, lugares comuns, preceitos éticos, princípiosinconsciente do ethos, que levam a uma disposição gerale transponível. Portanto, as práticas estão ajustadas àschances objetivas. Disposições duravelmente inculcadaspelas condições objetivas engendram aspiraçõescompatíveis com as condições objetivas. Para Bourdietais disposições levam a “recusar o recusado e a amar oinevitável”. O conflito de gerações, por exemplo, nãoopõe classes de pessoas separadas naturalmente pelaidade, mas habitus que são produtos de diferentes

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modos de engendramento. Portanto torna-senecessário abandonar teorias que tornam a prática umareação mecânica. Não se pode reduzir interaçõesobjetivas das obras humanas a intenções conscientesdeliberadas dos seus autores. Tal prática é informadapela relação dialética entre a situação em que estáinserida a pessoa e o habitus de seu grupo. Para explicara prática é necessário relacioná-la à estrutura objetivaque define condições sociais de produção de umdeterminado habitus. A identidade de condições deexistência tende a produzir um sistema de disposiçõessemelhantes. Cada agente quer saiba ou não, é produtore reprodutor do sentido objetivo. Enquanto produtoda história o habitus produz práticas individuais ecoletivas que produzem história. O princípio dacontinuidade e regularidade que o objetivismo concedeao mundo social sem explicá-lo é o sistema dedisposição do passado que sobreviveu no atual eperpetua-se no futuro.

As ações coletivas são produtos de uma conjuntura,conjunção necessária das disposições e acontecimentosobjetivos. A oposição entre indivíduo e sociedadedificulta a construção dialética entre estrutura e habitus.A classe social deve ser analisada como habitus de classeque seria um sistema de disposições comuns a todosos participantes da mesma estrutura. As estruturasobjetivas inculcam através das experiências o sentidoda realidade. E o habitus é o sistema subjetivo nãoindividual de estruturas internalizadas, mas esquemasde percepção, concepção comuns a todos os nichosdo mesmo grupo ou classe.

No caso brasileiro, uma das dificuldades paracriação de uma ideologia que unifique os vários grupossociais da população negra, são os habitus diferentesgerados por situações objetivas diferenciadas dessamesma população. Se a grande maioria encontra-seexcluída e marginalizada, há alguns segmentos quepossuem uma situação objetiva bem diferente. Comisso os habitus desses grupos são diferenciados pois

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possuem valores, percepções e concepções de mundodiferenciadas que dificultam a sua unificação enquantoum grupo com uma estratégia comum. A percepçãodo racismo e a discriminação bem como a estratégiade luta para enfrentá-lo tendem a serem diferentesconforme a posição social que a pessoa ocupa. Comcerteza a forma de perceber o racismo é diferente,por exemplo, entre um empregado doméstico e umdentista negro. A posição e o grupo social em queambos se encontram implicará em habitusdiferenciados e, com isso, estratégias de luta contra adiscriminação e racismo diferenciadas.

Nas palavras de Bourdie:

É sua posição presente e passada na estrutura social que osindivíduos, entendidos como pessoas físicas, transportam com eles,em todo tempo e lugar sob a forma de habitus. Os indivíduos“vestem” os habitus como hábitos, assim como o hábito faz omonge, isto é, faz a pessoa social, com todas as disposições que são,ao mesmo tempo, marcas da posição social e, portanto, da distânciasocial entre as posições objetivas, entre as pessoas sociaisconjunturalmente aproximadas (no espaço físico, que não é espaçosocial) e a reafirmação dessa distância e das condutas exigidaspara “guardar as distâncias” ou maninpulá-las estratégica,simbólica ou realmente, reduzi-las (coisa mais fácil para odominante que o dominado), aumentá-las ou simplesmente mantê-las (evitando “deixar-se levar”, “familiarizar-se”, em poucaspalavras, “guardando o seu lugar” ou, ao contrário, “evitandopermitir-se...”, “tomar liberdade de...”, enfim, “ficando no seulugar).19

Ainda segundo Bourdie20, a análise estruturalistalevou a um avanço no sentido de mostrar que nomundo social e não apenas nos sistemas simbólico, delinguagem e mito, existem estruturas objetivasindependentemente da consciência e da vontade dosagentes, que são capazes de orientar ou coagir práticase representações. Mas, apesar do avanço, é precisosuperá-la no sentido de criar o que Bourdie chama de

19 Ibidem, p. 75

20 BOURDIE, P. Espaço sociale poder simbólico. In:Coisas Ditas . São Paulo:Brasiliense, 1990. p.149.

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construtivismo estruturalista. Tal postura implicará embuscar a gênese social dos esquemas de percepção,pensamento e ação que são os habitus e por outro ladobuscar as estruturas sociais (campos e grupos) que asengendram.

De uma maneira geral, as Ciências Sociais segundoBourdie oscilam entre o objetivismo e o subjetivismo.De um lado procura tratar os fenômenos sociaisenquanto “coisas” e de outro reduzir o mundo socialàs representações que deles fazem os agentes. Naverdade essas duas posturas não estão contrapostas,mas são momentos da análise que estão numa relaçãodialética. O conceito de espaço social pode ser utilizadocomo tentativa dessa ruptura. De certa forma pode-se comparar o espaço social com o espaço geográfico.

...Mas esse espaço é construído de tal maneira que, quanto maispróximos estiverem os grupos ou instituições ali situados, maispropriedades eles terão em comum, quanto mais afastados, menospropriedades em comum eles terão. As distâncias espaciais – nopapel – coincidem com as distâncias sociais.21

Segundo Bourdie, o erro de Marx foi tratar asclasses sociais no papel como classes reais, ou seja,concluir que da homogeneidade objetiva das condiçõese condicionamento que decorrem da identidade deposição no espaço social surge um grupo unificadoenquanto classe. Da mesma forma apesar da maioriada população negra encontrar-se em condições deextrema desvantagem na posição ocupada no espaçosocial, nem por isso devido a tais condições objetivasela se aglutinou num bloco único de luta contra oracismo. Na visão de Bourdie, a noção de espaço socialpermite escapar desse erro tendo inclusive apossibilidade de explicar como se processaria aunificação desses indivíduos num grupo, pois osindivíduos que tendem a se constituir em grupos sãoos que estão mais próximos no espaço social. Nessesentido os grupos que estão por fazer não estão dados

21 Ibidem, p.153.

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na realidade social. O movimento negro ainda está porfazer a unificação dos vários grupos sociais em tornode uma identidade que possibilite a luta contra o racismoe discriminação e a busca de uma cidadania multicultural.

A análise de Bourdie nos mostra que as disposiçõesdos agentes, seus habitus, e as estruturas mentais pormeio dos quais eles apreendem o mundo social sãoem essência produto de interiorização das estruturasdo mundo social. Nesse sentido as representações dosagentes variam segundo sua posição e segundo seushabitus como sistemas de esquemas de percepção eapreciação. O habitus é ao mesmo tempo um sistemade produção de práticas e um sistema de esquemasde percepção e apreciação dos produtos.

As relações objetivas do mundo social levam a quealguns grupos sociais tenham mais poder na obtençãoe distribuição dos recursos sociais. Com isso o poderresultante da posição ocupada objetivamente por umgrupo social transforma-se em poder simbólico. Otratamento destinado a uma pessoa depende muitode como outro a classifica. Suponhamos que umapessoa resolva comprar em uma determinada loja.Dependendo de seus trajes, da forma de falar e daprofissão ocupada, ela receberá um determinadotratamento. Com certeza um médico será tratado deforma muito mais distinta que um trabalhador braçal.Portanto, sua posição nas estruturas objetivas implicaránum certo poder simbólico.

Para Bourdie

Esses poderes sociais fundamentais são de acordo com minhaspesquisas empíricas, o capital econômico, em suas diferentes formas,e o capital cultural, além do capital simbólico, forma de que serevestem as diferentes espécies de capital quando percebidas ereconhecidas como legítimas. Assim, os agentes estão distribuídosno espaço social global de capital que eles possuem sob diferentesespécies, e, na segunda dimensão, de acordo com a estrutura de seucapital, isto é, de acordo com o peso relativo das diferentes espéciesde capital, econômico, e cultural, no volume total de seu capital.2222 BOURDIE, P. Op. Cit. p.154.

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Nesse sentido, um movimento social tem maischances de aglutinar as pessoas que estão num mesmosetor do espaço social que possuem recursos similares.Na visão de Bourdie nas sociedades mais avançadasdo ponto de vista econômico, a diferenciação emtermos econômicos e sociais é ainda mais forte, masisso não impede que os grupos sociais possam seorganizar em estratégias comuns, apesar depertencerem a setores do espaço social diferenciados.Pois, “....a força das diferenças econômicas e sociaisnunca é tamanha a ponto de impedir que se possaorganizar agentes segundo outros princípios de divisão– étnicos, religiosos ou nacionais, por exemplo.23”

Há de se encontrar um princípio que oriente a lutado Movimento Negro na construção de umaidentidade que possibilite a articulação dos váriossegmentos sociais que compõem a populaçãobrasileira.

A luta do Movimento Negro não é só uma lutapor recursos materiais, mas uma luta pelo podersimbólico. Seus grupos precisam lutar pela visibilidadesocial tornando manifesto suas aspirações econstruindo uma imagem que possa ser manipuladaao seu favor.

...Para mudar o mundo, é preciso mudar as maneiras de fazer omundo, isto é a visão de mundo e as operações práticas pelas quaisos grupos são produzidos e reproduzidos....Primeiramente, comotoda forma de discurso performativo, o poder simbólico deve estarfundado na posse do capital simbólico. O poder de impor às outrasmente uma visão, antiga ou nova, das divisões sociais depende daautoridade social adquirida nas lutas anteriores. O CapitalSimbólico é um crédito, é o poder atribuído àqueles que obtiveramreconhecimento suficiente para ter condição impor reconhecimento:assim, o poder de constituição de um grupo, através da mobilização,ou de fazer existir por procuração, falando por ele enquantoporta-voz autorizado, só pode ser obtido ao término de um longoprocesso de institucionalização, ao término do qual é instituídoum mandatário, que recebe do grupo o poder de fazer o grupo.24

23 Ibidem, p. 160.

24 Ibidem, p. 166.

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O poder de um movimento social se mede porsua capacidade em ter visibilidade e reconhecimentosocial. As divisões sociais são fruto das lutas entre osdiversos grupos no espaço social. Um grupo tem tantomais poder quanto maior for sua capacidade de tornarexplicitas as divisões sociais implícitas. O MovimentoNegro terá força quando conseguir demonstrar queo lugar social reservado para o negro na sociedade éinjusto e desigual e, portanto, necessária a suamodificação.

A teoria do espaço social torna-se um bominstrumental para entender a luta dos movimentossociais pelo seu reconhecimento e, portanto, pode serutilizada para interpretar as estratégias necessárias paraque o Movimento Negro consiga uma cidadania querespeite e garanta os direitos de uma grande parcelada população brasileira, excluída historicamente nopassado e que ainda continua numa situação difícil nopresente. A cidadania necessita ser construída a partirde uma perspectiva em que as diferenças sejamrespeitadas e não geradoras de desigualdades.

Considerações FinaisConsiderações FinaisConsiderações FinaisConsiderações FinaisConsiderações Finais

Este trabalho teve como objetivo fazer uma críticaao conceito de cidadania que não incorpora asespecificidades dos vários grupos sociais quecompõem a sociedade, tendo em vista principalmentea necessidade de um conceito de cidadania queincorpore a questão étnico-racial. Atualmente existeuma demanda por parte do Movimento Negronacional da necessidade da criação de políticasespecíficas para a população negra no sentido dediminuir a grande desigualdade social existente entrebrancos e negros no Brasil. Há também a necessidadede uma postura mais ativa do Estado brasileiro nocombate ao racismo e discriminação no país.

O texto procurou demonstrar que isso ocorrerána medida em que se crie um conceito de cidadania

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multicultural. Ou seja, um conceito de cidadania queevite que as diferenças sejam fonte de desigualdade.Num país em que predomina a crença da existênciade uma democracia racial, o Movimento Negro temextrema dificuldade no sentido de articular váriosgrupos sociais no combate ao racismo e discriminação,bem como discutir políticas específicas que visempromover a população negra no Brasil. A busca deuma cidadania multicultural, passa necessariamente porum processo de construção de uma identidade socialque mobilize a população negra e sensibilize os demaisgrupos sociais para criação de um estado de direitoque diminua as desigualdades entre brancos e negrosno Brasil. Buscou-se utilizar dos conceitosdesenvolvidos nas ciências sociais que ajudam acompreender como se dá a formação da identidadesocial, e como a construção dessa identidade énecessária para a mobilização da sociedade naconstrução de um novo tipo de cidadania. Este novoconceito de cidadania deve ser buscado com aincorporação da discussão atual do multiculturalismo.Os novos movimentos sociais demonstraram comoa questão das diferenças precisa ser contempladaatualmente para evitar que tais diferenças sejamgeradoras de desigualdade entre os grupos sociais. Ouseja, as questões de gênero, de etnia-raça, de idade edas especificidades de uma forma geral, precisam serarticuladas num conceito de cidadania que evite queessas diferenças sejam fontes de desigualdade social.

Os conceitos de interpelação bem como de espaçosocial são conceitos elucidativos que nos fornecempistas para compreender as estratégias de construçãodos grupos sociais e sua visibilidade na sociedade. Taisconceitos nos mostram que o sucesso dos grupossociais na luta por seus objetivos passa necessariamentepela construção de sua visibilidade como grupossociais, bem como pela mudança das visões que asociedade possui dos mesmos. O Movimento Negrosó obterá sucesso em seus objetivos na medida em

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que tenha maior visibilidade social e mude as visõesque ainda persistem no Brasil sobre o negro. Talmudança só se dará quando parcelas cada vez maioresda população forem convencidas da necessidade deum novo tipo de cidadania que respeite as diferençase especificidades dos vários grupos sociais.

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