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Caminhando junto com a Sociedade C i d a d a n i a & M e i o A m b i e n t e C i d a d a n i a & M e i o A m b i e n t e Revista o N 16 - 2008 Publicação AMAZÔNIA Floresta, clima e desmatamento Meio ambiente A erosão da biodiversidade A privatização da água Aquecimento global DESAFIOS Lei Áurea e escravidão rural A favelização da Terra 2,5 bilhões sem saneamento REFLEXÃO Roberto Malvezzi “Nordeste terminal” Nordeste terminal Frei Betto “Alimentos: artigos de luxo” Alimentos: artigos de luxo ALIMENTO Catástrofe em câmara lenta Planeta de famélicos e obesos Governos: a opção pela fome

Cidadania & Meio Ambiente · Planeta favela A maior parte da população mundial não vive no que normalmente entendemos por cidades, mas em imensos subúrbios sem infra-estrutura

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Caminhando junto com a SociedadeCidadania & Meio AmbienteCidadania & Meio AmbienteR

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oN 16 - 2008

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AMAZÔNIA Floresta, clima e desmatamento■

Meio ambiente A erosão da biodiversidade■

A privatização da água■

Aquecimento global■

DESAFIOS Lei Áurea e escravidão rural■

A favelização da Terra■

2,5 bilhões sem saneamento■

REFLEXÃORoberto Malvezzi “Nordeste terminal”Nordeste terminalFrei Betto “Alimentos: artigos de luxo”Alimentos: artigos de luxo

ALIMENTO Catástrofe em câmara lenta ■

Planeta de famélicos e obesos■

Governos: a opção pela fome■

A revista Cidadania & Meio Ambienteé uma publicação da Câmara de CulturaRua São José, 90, 11o andar, grupo1106Centro – 20.010-020 – Rio de Janeiro/RJTelefax (55-21) 2432-8961 • 2487-4128

[email protected]

Editado e impresso no Brasil.

A Revista Cidadania & Meio Ambiente não seresponsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos

em matérias e artigos assinados. É proibida areprodução dos artigos publicados nesta edição sem

a devida solicitação por carta ou via e-mail aosrespectivos autores.

E D I T O R I A L

Caros Amigos,

Nosso tão maltratado planeta conta atualmente com 6,7 bilhões dehabitantes e produz mais de dois bilhões de toneladas de grãos: qua-se um quilo por pessoa e por dia! Se a mãe Terra produz o suficientepara alimentar a todos, por que 800 milhões de pessoas não comemo suficiente e estão condenadas a morrer de subnutrição?

Para entender a gênese do crescente paradoxo saciedade/fome na so-ciedade contemporânea fomos buscar as visões de três especialistasna questão. As análises de Ladislau Dowbon, Michel Mora e MárioJosé de Lima dissecam os móbiles da atual “crise alimentar global”,que produz famélicos e obesos num tempo em que o “pão nosso decada dia” não é mais um direito fundamental. Aliás, a degradação dosdireitos humanos e ambientais atinge outro bem essencial à vida – aágua. A dilapidação inconseqüente do patrimônio natural e a mercanti-lização da água prometem para 2025 dois terços da população mundi-al sem ter o que beber - uma previsão inaceitável e vergonhosa!

Outra aberração: as metrópoles do Terceiro Mundo estão sendo asfixia-das pela lógica suicida do modelo de gestão de “desenvolvimento insus-tentável”, que prima pela exclusão. O processo de favelização analisadopelo urbanista e historiador Mark Davis desenha um novo cenário geo-político que escapa a previsões otimistas. Outro desafio gigantesco paraa saúde das megalópolis será garantir o acesso ao saneamento básico deque carece quase metade da população mundial.

Não bastasse a desonrosa sujeição da humanidade ao domínio econô-mico e político dos poucos controladores da produção de alimento ede distribuição de água, os Direitos Humanos são minados pelaescravização, em especial no Brasil – 120 após a decretação da Lei Áu-rea. Leonardo Sakamoto revela como o modelo de produção baseadona mão-de-obra escrava implantado nos tempos coloniais se adaptoue sobrevive em nossas comunidades de trabalhadores rurais.

Esperamos que os desafios analisados nesta edição despertem a consci-ência social e ecológica necessária à defesa – e salvação – da Terra.

Helio CarneiroEditor

Visite o portal EcoDebate[Cidadania & Meio Ambiente]

www.ecodebate.com.brUma ferramenta de incentivo ao

conhecimento e à reflexão através denotícias, informações, artigos de opinião

e artigos técnicos, sempre discutindocidadania e meio ambiente,

de forma transversal e analítica.

Colaboraram nesta edição

Ladislau DowborMiguel Mora

Mário José de LimaMarisa Tohver e Paulo Moutinho

Laurence CaramelAna Echevenguá

Leonardo SakamotoMike Davis

Henrique CortezRoberto Malvezzi (Gogó)

Frei Betto

Diretora

Editor

Subeditor

Projeto Gráfico

Revisão

Regina [email protected]

Hélio [email protected]

Henrique [email protected]

Lucia H. [email protected]

Vanise Macedo

Nº 16 – 2008Capa: Hazelbrae - Rio Amazonas

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Alimento: catástrofe em câmara lentaAs aventuras especulativas, a má distribuição e o consumo irracional de alimentos, e o mau manejoda água contribuem para acelerar os problemas da fome no mundo contemporâneo. Qual a saídapara o reequilíbrio social? Entrevista com Ladislau Dowbor/IHU On-Line

Um planeta de famélicos e de obesosA reunião da FAO para tratar da crise alimentar global destacou que o problema agrava-se pelaconcentração da distribuição de alimentos e de matérias-primas, e à produção em mãos de poucase poderosas empresas de agronegócio. Por Miguel Mora

Uma porta para o nadaBuscar reorganizar a produção de alimentos, primeiramente em atendimento às carências nacionais,parece mesmo fora do propósito dos governos que se revezam, e a conseqüência é o aumento dafome e da pobreza mundiais. Por Mário José de Lima

Floresta, clima e desmatamentoO experimento “Seca Floresta” revela que caso as previsões de mudança climática global se concretizem,a Floresta Amazônica – já ameaçada pelo desmatamento e pelo avanço do agronegócio – está fadadaao colapso. Por Marisa Tohver e Paulo Moutinho/IPAM

Erosão da biodiversidade: urgência mundialA urbanização, a padronização das práticas agrícolas, a poluição, a proliferação de espéciesinvasoras introduzidas em decorrência do comércio e a mudança climática são as principais causasdo esgotamento da diversidade biológica. Por Laurence Caramel

A privatização da águaEssencial à vida, a água está deixando de ser bem de domínio público e direito humano indispensável.A mercantilização da água já é uma realidade e, segundo o Banco Mundial, em 2025, dois terços dapopulação mundial sofrerão com a falta de água. Por Ana Echevenguá

Por que a Lei Áurea não representou a abolição definitivaO fim da escravidão legal no Brasil não foi acompanhado de políticas públicas e de mudançasestruturais visando a inclusão dos trabalhadores. Por isso, os trabalhadores rurais do Brasil aindavivem sob a ameaça do cativeiro. Por Leonardo Sakamoto

Alimentos: artigos de luxoQuem de nós imaginou entrar numa butique para comprar arroz, feijão, verduras e carne? Nãoestamos longe disso. O preço médio dos alimentos triplicou nos últimos 12 meses. Por Frei Betto

Planeta favelaA maior parte da população mundial não vive no que normalmente entendemos por cidades, masem imensos subúrbios sem infra-estrutura e serviços, que se tornaram o novo cenário geopolíticodecisivo. Entrevista com Mike Davis/ComCiência

Nordeste terminalA Agência Nacional de Águas aponta uma crise generalizada de abastecimento em mais de 1300municípios nordestinos se não forem feitas, até 2015, as obras necessárias para evitar o caoshídrico. Por Roberto Malvezzi (Gogó)

2,5 bilhões sem saneamentoPesquisa realizada pela OMS e pelo UNICEF revela que quase metade da população mundial sofrecom a falta de acesso a saneamento básico, e que 1,2 bilhão defecam ao ar livre – a práticasanitária de maior risco à saúde pública. Por OMS/UNICEF

Aquecimento global: a batalha já está perdida?Precisamos vencer a luta contra nós mesmos ou perderemos muito mais do que apenas o nossoperdulário padrão de consumo. Por Henrique Cortez

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As aventuras especulativas com os alimentos,a má distribuição alimentícia, o consumo irracionale o mau manejo da água contribuem para aceleraros problemas da fome no mundo contemporâneo.

Para o pesquisador Ladislau Dowbor,as produções energéticas e alimentares precisam estar

associadas à pequena e à média agriculturas.Essa pode ser a saída para o reequilíbrio social.

CATÁSTROFE EM CÂMARA LENTAALIMENTO

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Entrevista com Ladislau Dowbor/IHU On-Line

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IHU ON-LINE – O SENHOR JÁ AFIRMARAAO IHU ON-LINE QUE NÃO HÁ INSUFICI-ÊNCIA DE PRODUÇÃO DE ALIMENTOS E SIM,MAU USO DESSES ALIMENTOS E MÁ DISTRI-BUIÇÃO. É A ISSO QUE O SENHOR ATRIBUI ACRISE DE ALIMENTOS NO MUNDO?LADISLAU DOWBOR – Temos 6,7 bi-lhões de habitantes e produzimosmais de dois bilhões de toneladas degrãos, o que significa que produzi-mos quase um quilo de grãos porpessoa e por dia no planeta, ampla-mente suficiente para alimentar a to-dos. Há diversos processos que es-tão convergindo para criar dificulda-des, alguns de curto prazo, outrosmais estruturais.

■■■■■ ESPECULAÇÃO – De imediato, a cri-se financeira provocada pelas aven-turas especulativas dos investidoresinstitucionais (norte-americanos, em particular) está desviandofundos anteriormente aplicados na área especulativa imobiliáriapara aplicações consideradas mais seguras; para os especulado-res, investir no mercado de futuros de grãos parece seguro. Ouseja, já se está especulando com os alimentos, e a alocação defundos especulativos, nessa área, eleva os preços.

Um movimento mais amplo e de fundo está puxando grãos aloca-dos para a alimentação à produção de biocombustíveis, movi-mento particularmente forte nos Estados Unidos, que utilizammilho para esse fim, o que, além de antieconômico (o balançoenergético do biocombustível de milho não é interessante), pu-xou para cima os preços.

A especulação se realimenta neste processo, prevendo que have-rá falta de grãos, aprofundando essa falta ao apostar na alta depreços. A alta de preços dificulta o acesso à comida por parte dosmais pobres, cerca de 800 milhões de pessoas no mundo que nãocomem o suficiente.

■■■■■ CONSUMO ASIÁTICO – Convergem ainda para esse problema aspressões sobre o mercado de alimentos que resulta do aumentode consumo na Ásia, em particular na China. Lá, boa parte dapopulação está passando do consumo direto de grãos para ummais sofisticado (grãos que alimentam galinhas ou porcos, porexemplo), o que desvia grãos para a alimentação animal. Em ou-tros termos, há uma crescente demanda sobre os alimentos noplaneta. O mundo tem 75 milhões de habitantes a mais a cada ano;na maioria deles, pobres. A pressão sobre os preços gera maispobres, não por falta de alimento, mas por se tornar objeto deespeculação e de consumo irracional.

■■■■■ DESPERDÍCIO DE ÁGUA – Outra linha de preocupação resulta domau manejo de água. Na visão de Lester Brown(1), há uma crescen-te preocupação com o esgotamento dos lençóis freáticos, pois asmodernas tecnologias permitem extrair água em grandes volumes,muito mais rápido do que a capacidade de reposição por águas dechuva. A longo prazo, o problema pode ser dramaticamente agrava-do pelo derretimento dos gelos na Ásia Central, onde as grandes

cadeias de montanhas, com suas ge-leiras, constituem a principal base dealimentação dos grandes rios, amea-çando a civilização do arroz. Assim,os problemas convergem, e o merca-do não consegue regular o proces-so; pelo contrário, tende a agravar osdesequilíbrios.

IHU – ESSA CRISE PODE GERAR OUTRAS?EM QUE INTENSIDADE?L.D. – Há cientistas que falam emslow motion catastrophe, catástrofeem câmara lenta. Essa visão fica bemexplícita no documento Internatio-nal Assessment of AgriculturalKnowledge, Science and Technolo-gy for Development (IAASTD)(2),que acabou de ser aprovado em Jo-hannesburgo, no último 15 de abril.Ele foi resultado de três anos de pes-

quisa de centenas de especialistas em agricultura no mundo,com participação dos principais centros de pesquisa acadêmi-cos e empresariais, além de organizações internacionais, como oBanco Mundial.

As conclusões são de que a simples expansão da monoculturaextensiva, com quimização e irrigação em grande escala, está noslevando a impasses estruturais. É o modelo que está desequilibra-do, ao destruir as bases da agricultura familiar que ainda ocupa ametade da população mundial. Sementes caras e monopolizadas,circuitos comerciais cartelizados, tecnologias pesadas desenvol-vidas apenas para a monocultura de grande escala, esterilizaçãodos solos por excessiva quimização, esgotamento dos aqüífe-ros... Todas essas tendências são hoje apresentadas na sua di-mensão de círculo vicioso desestruturador.

As propostas do documento vão no sentido do bom senso, de seapoiar a agricultura familiar e as estruturas sociais de sobrevivên-cia rural, além da revalorização das tecnologias inovadoras quepossam ser articuladas com processos tradicionais.

IHU – POR QUE O PLANETA COMEÇA A APRESENTAR SINAIS DE CAOS NO QUESE REFERE A QUESTÕES SOCIAIS E AMBIENTAIS? ELAS ESTÃO INTERLIGADAS?L.D. – O planeta, hoje, reconhece apenas um mecanismo regula-dor – o mercado. Este deixou de ser fluido; torna-se cada vez maisviscoso na medida em que poucos grupos mundiais controlamgargalos do processo, como, por exemplo, o acesso a sementes, eagem de forma pró-cíclica nos preços, ao negociarem gigantescosvolumes. O balanço energético desse tipo de agricultura é irracio-nal (energy-in/energy-out).

Quando os grandes produtores de um país vêem os preços su-birem no mercado internacional, passam a se desinteressar pe-las necessidades alimentares da própria população. O sistemairá precisar recorrer a mecanismos conhecidos, mas que foramdesestruturados pelos grandes grupos e que consistem, essen-cialmente, em planejar e organizar a segurança alimentar comoprioridade planetária.

Temos 6,7 bilhõesde habitantes

e produzimos maisde dois bilhões

de toneladas de grãos:quase um quilo porpessoa e por dia.

O que é suficiente paraalimentar a todos.

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IHU – É POSSÍVEL CONCILIAR A PLAN-TAÇÃO DE COMMODITIES PARA PRODU-ZIR BIOCOMBUSTÍVEIS E, AO MESMO TEM-PO, GARANTIR O CONSUMO SEGURO DEALIMENTOS?L.D. – No Brasil, tal problema nãose coloca. As opções brasileiras re-sidem essencialmente na cana-de-açúcar, a qual apresenta um balançoenergético muito favorável e umaocupação de terra perfeitamentesustentável. O Brasil possui, hoje, amaior reserva de terra parada do pla-neta e imensas reservas de água.Grupos internacionais já estão com-prando grandes extensões de terrasno cerrado, preparando-se para a es-peculação com a escassez. Um con-trole nesta área seria razoável.

Mas a cana tem como evoluir no pró-prio Sudeste, ocupando áreas suba-proveitadas, hoje ocupadas pelapecuária extensiva que constitui es-sencialmente um gigantesco suba-proveitamento de terras.

A tensão no Brasil entre o biocom-bustível e o alimento é perfeitamen-te manejável, mas corremos o riscode que a busca de alternativas ener-géticas gere, aqui, um novo cicloagroexportador que trará dólares eriqueza para poucos. Associar a pro-dução energética à alimentar, base-ando-se na pequena e na média agri-cultura, pode dar um fôlego novo aoreequilíbrio social de que o mundorural brasileiro tanto precisa.

IHU – POR QUE HÁ TANTOS CONFLI-TOS ENTRE A PRODUÇÃO DE ALIMENTOS

E A DE ENERGIA?L.D. – A origem deve-se a uma políti-ca errada nos Estados Unidos. A longo prazo, precisamos pensarque tanto os EUA como a Europa estão definindo a obrigatorieda-de de mistura de biocombustíveis, em proporções crescentes, aoscombustíveis à base de petróleo, e a pressão deverá continuar.Entre a demanda dos proprietários de carros no mundo e a deman-da dos pobres que querem comer, não tenho dúvida quanto a quemterá maior força de pressão.

IHU – O BRASIL PODE CONTRIBUIR PARA A REDUÇÃO DO PREÇO MUNDIALDE ALIMENTOS TENDO EM VISTA TODOS OS SEUS RECURSOS NATURAIS? QUAL

A IMPORTÂNCIA ECONÔMICA E A SOCIAL DO PAÍS, NESSE CONTEXTO?L.D. – O Brasil tem terra, água, tecnologia, capacidade de organi-zação. Tem escala para influir, mas não para decidir.

IHU – DE QUE OUTRAS MANEIRAS A ENERGIA LIMPA PODE SER PRODUZI-

DA, SEM COMPROMETER OS ALIMENTOS EGERAR UMA POSSÍVEL ESCASSEZ DE COMI-DA NO MUNDO?L.D. – Cada fonte deve ser estuda-da de maneira integrada. A soja geraapenas um emprego em 200 hecta-res; o óleo de palma é mais produti-vo e gera um emprego em 10. Paracada opção, precisamos levar em con-ta o balanço energético, as exigênci-as de água, a geração de emprego,os impactos ambientais e sobre a or-ganização social de cada região.

No Brasil, para equilibrar as tensões,criamos um Ministério da Agricultura(que olha basicamente o agronegó-cio) e o Ministério do Desenvolvi-mento Agrário (que lida com a massados produtores de alimentos para omercado interno). A agricultura não éapenas um mecanismo econômico deinsumo-produto, mas uma base devida e de organização social. As pes-soas esquecem que 17 milhões traba-lham na agricultura brasileira, enquan-to a totalidade dos empregos indus-triais é de 13 milhões. Quem trabalhano campo mora no campo, precisa demeio social, comunicação, transpor-te, redes de apoio (crédito, energia,tecnologia, formação, comunicação,comercialização, estocagem etc.).

A simples expansão da monoculturaapenas expulsa as pessoas do cam-po, gerando novos dramas nas peri-ferias urbanas. O Brasil é muito gran-de e diferenciado. É importante de-senvolver políticas locais integradase coerentes com o contexto e com osrecursos disponíveis. ■

Ladislau Dowbor é formado em Economia Política, pela Universidadede Lausanne, na Suíça, doutor em Ciências Econômicas, pela Escola Cen-tral de Planejamento e Estatística de Varsóvia, na Polônia, e economista eprofessor do Programa de Pós-graduação em Administração (PPG) daPontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Mais artigos epublicações na página pessoal do pesquisador – http://dowbor.orgEntrevista publicada pelo IHU On-line, 18/05/2008 [IHU On-line é publi-cado pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade do Valedo Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul.] epelo portal EcoDebate – www.ecodebate.com.br – em 19/05/08.

(1)Lester Brown – Fundador do WWI-Worldwatch Institute(www.worldwatch.org) e Presidente do EPI-Earth Policy Institute(www.earth-policy.org).(2) Ver relatório e outros estudos realizados pela organização emwww.agassessment.org

Para evitar a catástrofe,

é essencial planejar

e organizar a segurança

alimentar como prioridade.

A pressão sobre os preços

gera mais pobres, não por

falta de alimento, mas por se

tornar objeto de especulação

e de consumo irracional.

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A reunião da FAO para tratar da crise alimentarglobal destacou que o problema agrava-se pela

concentração da distribuição de alimentose de matérias-primas, e à produção em mãos

de poucas e poderosas empresas de agronegócio.Assim, os pobres e as crianças

são os que mais sofrem com a crise alimentar.

Miguel Mora – Artigo publicado em ElPaís (03/06/08). A tradução é do Cepat.Publicado pelo IHU On-line, 05/06/2008[IHU On-line é publicado pelo InstitutoHumanitas Unisinos - IHU, da Universidadedo Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em SãoLeopoldo, no Rio Grande do Sul]. Publicadono www.ecodebate.com.br em 06/06/08.

por Miguel Mora

Cinqüenta chefes de Estado e de Governo, 150 ministros de Agricultura e cerca de 20 responsáveis por

instituições supranacionais reuniram-seno início de junho, na sede da FAO (Orga-nização das Nações Unidas para a Agri-cultura e a Alimentação), em Roma, pararesolverem a crise alimentar global queameaça milhões de pessoas.

O rascunho das conclusões da reunião,ao qual os países estabelecem os últimosretoques por grupos regionais, desenhaum futuro “de imenso sofrimento huma-no, assim como de descontentamentosocial e de instabilidade política, que ame-açam colocar em perigo os desenvolvi-mentos econômico e social.”

FAMÉLICOS E OBESOS

Um dado facilitado pela FAO resume gra-ficamente a situação:% do lado infeliz – 820 milhões de ci-dadãos passam fome; entre eles, 178 mi-lhões de crianças desnutridas.% do lado afortunado – um bilhão deseres humanos sofre de sobrepeso; des-ses, 300 milhões já se tornaram obesos.

No relatório apresentado à reunião, a FAOadmite que os dados da fome não varia-ram desde 1990, o que leva à certeza deque as políticas desenvolvidas até agoraforam um fracasso. O estudo atribui a cri-se à mudança climática, à escassez de ce-reais (a produção está no mesmo patamardesde 1983), ao aumento da demanda naChina e na Índia, ao preço do petróleo, àelaboração de biocombustíveis, à espe-culação que domina os mercados de fu-turos de sementes e matérias-primas e a

uma política agrícola e comercial proteci-onista e não-solidária.

Há muitos problemas diferentes que, se nãoforem resolvidos rapidamente, podem pio-rar o panorama. Segundo a Oxfam (umafundação de caridade internacional comsede em Oxford, no Reino Unido), se ospaíses continuarem investindo em biocom-bustíveis, e não em alimentos para o con-sumo humano, em 2025 haverá 600 milhõesa mais de esfomeados no mundo.

Um fenômeno recente começa a preocuparos especialistas: junto à desnutrição quegrassa em uma parte do mundo, a má ali-mentação começa a causar estragos naoutra metade. No México, o número de pes-soas obesas e com sobrepeso duplicouentre a população mais pobre, entre 1988 e1998. O percentual atinge, hoje, 60%.

“VAMPIROS MUNDIAIS” DOS ALIMENTOS

A culpa, destacam diversas Organizaçõesnão-governamentais (ONGs) que participamda reunião, não é tanto dos países, mas deum modelo liberal em que mandam as multi-nacionais e os intermediários. Segundo An-tonio Onorati, da Crocevia, “...os preços agrí-colas são decididos pelos grandes distri-buidores, cadeias como Auchan ou Wal-Mart que compram diretamente dos produ-tores e ganham a fatia maior do preço final.”

Marco de Ponte, secretário-geral italianoda “Ajuda e Ação” tornou pública a listadas cinco empresas que controlam mais de80% do mercado de cereais, com os lucrosde 2007: Cargill (36%), Archer DanielsMidland (67%), ConAgra (30%), Bunge(49%) e Dreyfuss (19% em 2006).

Outro setor em expansão é o dos produto-res de sementes, herbicidas e pesticidas::Monsanto, Bayer, Dupont, Basf, Dow,Potashcorp. “A globalização alterou a rela-ção comercial da agricultura”, explicaAlberto López, representante espanhol naFAO. “O capital que antes especulava emimobiliárias está hoje na compra de futurosde matérias-primas. A demanda cresceumuito rapidamente, e é necessário conter oimpacto facilitando a distribuição, a eficá-cia produtiva e o consumo responsável.”

A FAO propõe soluções a curto, médio elongo prazos: mais dinheiro, mais ajudaaos países pobres, um comércio mais jus-to, melhor coordenação entre as institui-ções e as ONGs, potencializar a produçãoem pequena escala, orientada ao consu-mo local e regional.

Entretanto, os preços cada vez mais al-tos dos alimentos agravam o problemapara a parte mais frágil da cadeia – a in-fância. A organização “Médicos semFronteiras” exige, em Roma, ajuda imedi-ata para as 20 milhões de crianças quesofrem de desnutrição aguda. “Nas últi-mas semanas, vimos um aumento brutalde casos na Etiópia, onde já há 120.000crianças em situação de emergência mé-dica”, lembra Javier Sancho. ■

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UMAPORTAPARA

Por Mário José de Lima

Buscar reorganizar a produção de

alimentos, primeiramente em

atendimento às carências nacionais,

Acrise energética terminoupor empurrar os preços daeconomia de forma a promover uma reorientaçãonas estruturas produtivas

na agricultura mundo afora. Chacoalharam-se as condições de produção de alimentosbásicos, mudando as expectativas dos ne-gócios futuros e sinalizando a possibilida-de de mais uma grave crise a se abater so-bre a população mundial. O que devemoster em mente é que a situação de hoje põe apossibilidade de a falta de alimentos atingirou, melhor dizendo, ampliar a faixa da popu-lação já carente de alimentos. Para uma par-cela significativa da população mundial, hámuito tempo as condições de subnutriçãosão uma marca de sua realidade.

Segundo estimam as Nações Unidas, dasseis bilhões de pessoas que vivem hojeno planeta, algo próximo a um bilhão sofrede fome crônica. Mas esse número é umaestimativa grosseira, pois negligencia osque sofrem de deficiências de vitaminas ede nutrientes e de outras formas de sub-nutrição. O número total de desnutridosou de carentes críticos de nutrientes está,provavelmente, próximo aos três bilhões –cerca da metade da humanidade. A severi-

dade dessa situação torna-se clara pelaestimativa das Nações Unidas de um anoatrás: em média, 18.000 crianças morrem,diariamente, em conseqüência direta ouindireta da subnutrição.

FOME NOS EUA E MUNDO AFORA

A carência de produção raramente podeser tomada como a razão pela qual as pes-soas estão famintas. Isso pode ser vistomais claramente nos Estados Unidos; lá, adespeito de a produção ser maior do que apopulação necessita, a fome permanececomo um sério problema. De acordo com oDepartamento de Agricultura dos EstadosUnidos, em 2006, 35 milhões de pessoasviviam em famílias sob condições de inse-gurança alimentar, incluindo 13 milhões decrianças. Devido à carência de alimentos,adultos, vivendo em 12 milhões de famíli-as, não podiam comer refeições balancea-das e sete milhões de famílias tinham por-ções menores ou não contavam com umaou mais refeições diárias. Em aproximada-mente cinco milhões de famílias, as crian-ças não dispõem de alimento suficiente,em algum momento durante o ano.

Em artigo recente, Fred Magdoff(Monthly Review, maio, 2008), que diz ser

rotina a fome antes desta crise, chama aatenção para o fato de que, nos paísespobres, não é incomum que grandes pro-visões e alimentos mal distribuídos exis-tam em meio à disseminada e persistentefome. Magdoff recorre a dois exemplospresentes na imprensa mundial, ratifican-do sua afirmação: primeiramente, um arti-go, de pouco tempo atrás, no New YorkTimes, contando uma história com o títu-lo “Pobres na Índia morrem de fomequando trigo em excesso apodrece” (02/12/2002); o outro, uma manchete no WallStreet Journal, expressando, em 2004, “Ne-cessidade em meio à abundância, umparadoxo indiano: grande colheita efome crescente” (25/06/2004).

Não estamos distantes da situação indica-da e até enfrentamos estados mais gravesde subnutrição na realidade brasileira. Asoscilações nas condições de fornecimentode alimentos no mundo repercutiram emnosso mercado interno de forma intensa,empurrando os preços e criando situaçõesde desabastecimento de produtos básicos.

AGRONEGÓCIO E DÉFICIT ALIMENTAR

Eis uma situação inusitada para um paísdetentor de gigantescas reservas de re-

parece mesmo fora do propósito dos governos que se revezam.

NADAO

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Mario José de Lima é professor deEconomia da PUC. Artigo publicadooriginalmente pelo Correio da Cidadania –www.correiocidadania.com.br – e porwww.ecodebate.com.br em 31/05/2008.

cursos naturais e população excedente deformação recente. A forte expansão dascidades brasileiras é resultado da intensae rápida mecanização pela qual passou aagricultura brasileira nos últimos trintaanos. À medida que se promovia a reor-ganização produtiva que se desdobroudesde o final dos anos 60, impondo umnovo padrão tecnológico à agricultura,operaram-se mudanças importantes naestrutura da propriedade fundiária do país.

O fortalecimento da agricultura de basecapitalista, apoiada pela mecanização, pelouso intenso de adubos químicos e de ou-tros recursos de mesma base no combate

às pragas, mais o uso de sementes geneti-camente transformadas, implica a expan-são das unidades produtivas e o esmaga-mento da pequena produção de base fa-miliar. Aliado a isso, ocorre o avanço so-bre o controle da cadeia produtiva dasmatérias oriundas de produção agrícola esobre as estruturas de comercialização.

Associada à formação e ao aprofundamen-to das relações capitalistas na agricultu-ra, ampliam-se os contingentes de migran-tes orientados para as áreas urbanas, for-talecendo o número das unidades familia-res dependentes do mercado para se abas-tecerem de alimentos.

Em função das condições de emprego nascidades, é nestas parcelas da populaçãoque se encontra o maior déficit alimentar.São famílias que não conseguem acompa-nhar o comportamento altista dos preçosdos alimentos.

Por outro lado, parcela importante dos re-cursos apropriados pela grande empresaagrícola é orientada à produção de algumamercadoria que integre a pauta dos negóci-os internacionais. Uma faixa importante daprodução que se desenvolveu com os des-

dobramentos da fronteira agrícola brasileira,desde o final dos anos 60, é formada pelaprodução de uma das mais valorizadas com-modities da atualidade – a soja. A rota deplantio dessa leguminosa é a da destruiçãoda Floresta Amazônica. Apoiada nos avan-ços da tecnologia agronômica e no desen-volvimento de novas variedades, a produ-ção de soja alcança, com elevados níveis deprodutividade, as regiões tropicais.

O GOVERNO E O AGRONEGÓCIO

A Amazônia experimenta, agora, a intensi-ficação da pressão que se desdobra desdeos anos 60 sobre sua reserva florestal e deterras, ao tempo que sua população é em-

purrada para áreas urbanas a ponto deassistir ao esvaziamento das regiões agrí-colas. Em cerca de duas décadas, a estru-tura de distribuição populacional é postaao contrário, e mais de 70% da populaçãoalcançam as áreas urbanas. Ampliam-seas necessidades de abastecimento pelomercado sem que existam condições ge-radoras de emprego e de renda para cen-tenas de milhares de famílias deslocadas.Ou seja, haverá mais famílias submetidasà miséria e à subnutrição.

Nesses dias, o Presidente da Repúblicaanunciou uma estratégia de luta contra acrise alimentar. Para ampliar a angústia dequem vive o flagelo da fome, em sua fala, eleanunciou que prepara o país para se servirdos preços altos dos alimentos. O fato decentrar as medidas governamentais nos ní-veis de rentabilidade possíveis graças aospreços elevados deixa de lado os interessesda população – ou de sua maior parcela. Ogrupo presente na reunião presidencial éesclarecedor: além dos ministros, haviaempresários do agronegócio.

O país perde, com a atitude do governo, aoportunidade de enfrentar três graves pro-blemas da atualidade mundial, e particular-

mente nacional: a crise alimentar e as ques-tões do desemprego e do ambiente. Tives-se Sua Excelência centrado suas preocu-pações a esses três temas, teria encontra-do, na pequena e na média produção, umcaminho seguro para a construção de umquadro de estabilidade e de desenvolvi-mento sociais. Contudo, buscar reorgani-zar a produção nacional de alimentos, pri-meiramente em atendimento às carênciasdas populações nacionais, parece mesmofora do propósito dos governos que se re-vezam desde os últimos vinte anos. Princi-palmente ao explicitarem a estratégia naci-onal de construir uma nova inserção nasrelações internacionais, abandonando o

objetivo de ampliação do mer-cado nacional.

A busca em “aproveitar” ascondições de rentabilidadepara melhorar a posição na-cional nas relações interna-cionais corresponde a am-pliar a base da produçãopara atender ao mercado in-ternacional.

A conseqüência de tal estra-tégia é que, em última instância, estare-mos colando os preços internos aos in-ternacionais, como já acontece com ascommodities presentes nas nossas expor-tações. Ou seja, dados os níveis corren-tes do poder de compra das populaçõesnacionais, ou pelo menos a maior parcelapopulacional, estaremos contribuindopara dificultar, ainda mais, o acesso aomercado de alimentos.

Essa crença exacerbada no poder do ca-pital esquece as raízes da crise – e seusmatizes – vivenciada pela humanidadenos dias atuais. Os governos do mundolaboram no esquecimento das grandes cri-ses, inclusive a que lançou o mundo nosdesastres maiores do século XX; toda-via, os brasileiros, notadamente os maisnovos, laboram no esquecimento da his-tória recente das transformações capita-listas no país e dos seus resultados sobreas populações nacionais. ■

GALERIA DA FOME (da esq. para dir.):

1. Dhaka/India. Foto:Uncultured2. Escultura anti-pobreza/Coréia. Foto: Kaspian3. Cebu City/Filipinas. Foto: Zerone Eric Ouano4. Senegal. Foto: Elrentaplats5. Menina de rua em São Francisco/EUA. Foto: Femuruy6. África. Foto: Breezs Debris

10

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AZ

ÔN

IA

CLIMA e DESMATAMENTOCom a chancela doInstituto de Pesquisa

Ambiental daAmazônia (IPAM),

o experimento“Seca Floresta”revela que caso

as previsõesde mudança

do clima globalse concretizem, a

Floresta Amazônica– já tão ameaçada

pelo desmatamentoe pelo avanço

descontrolado doagronegócio – estáfadada ao colapso.

Se a humanidade tivesse de pagarpelos serviços ambientais presta-dos pelas florestas tropicais – seja

pelo controle climático, seja pelo ciclode carbono –, logo descobriria o verda-deiro custo de sua devastação. Elas re-ciclam, em média, 8% do carbono globalpresente na atmosfera. Parece pouco,mas trata-se de um processo crucial àvida na Terra.

FLORESTA

foto: 0ug&0r0byn

E fazem isso simplesmente por existirem:por meio da fotossíntese, as plantas ab-sorvem o CO

2 presente na atmosfera e acu-

mulam biomassa na forma de troncos, raí-zes e folhas. Tornam-se, assim, armazénsgigantes de carbono. Qualquer distúrbionesses “armazéns”, como os resultantesdo desmatamento, tem efeito no ciclo decarbono global e gera impactos negativossobre a atmosfera do planeta.

EL NIÑO:

ESTIAGEM

E INCÊNDIOS

Existem também dis-túrbios menos visí-veis. Um caso comumé o dos episódios deseca mais intensa doque o normal que serepetem com certa re-gularidade na RegiãoAmazônica. A princi-pal causa é a ocorrên-cia do fenômeno cli-mático conhecidocomo El Niño. Ele sur-ge do aquecimentodas águas de superfí-cie do Oceano Pacífi-co, na altura da costado Peru. Durante osanos em que ocorre ElNiño, mais de 35% daAmazônia brasileirasão afetados por umaestiagem intensa.

Com o avanço do aquecimento do plane-ta, a tendência é que ocorrências de ElNiño fiquem mais freqüentes e severas.

Para se ter uma idéia do efeito desses episó-dios intensos de seca, influenciados poresse fenômeno climático, a redução de chu-va, num ano, pode chegar a 60%, favore-cendo os incêndios florestais. A contribui-ção estimada dos incêndios florestais para

por Marisa Tohver e Paulo Moutinho/IPAM

Cidadania&MeioAmbiente 11

Marisa Tohver e Paulo Moutinho –Do Instituto de Pesquisa Ambiental daAmazônia (IPAM). Publicado no portalEcoDebate (05/05/08). Recomendamos avisita ao site do IPAM –www.climaedesmatamento.org.br –organização ambiental não-governamentalfundada em 1995 com a missão de contribuirpara um processo de desenvolvimento daAmazônia que atenda às aspirações sociais eeconômicas da população e, ao mesmotempo, mantenha a integridade funcional dosecossistemas da região.

as emissões amazônicas de gases de efeitoestufa, somente durante El Niño de 1998,foi, em média, de 200 milhões de toneladasde carbono (o equivalente ao emitido ao sederrubar por completo a floresta). Naqueleano, 30% das florestas da região estavamsob elevado risco de incêndio. O fogo atin-giu, nesse mesmo ano, uma área de 1,3 mi-lhões de hectares de floresta no estado deRoraima e outros 2,5 milhões no sul do Paráe no norte de Mato Grosso.

AMAZÔNIA:

USINA PROCESSADORA DE CO2

Cerca de 200 bilhões de toneladas de car-bono estão estocadas na vegetação tro-pical que cobre o planeta. A fotossíntese,realizada pela vegetação florestal, absor-ve uma quantidade enorme de carbono daatmosfera a cada ano. Somente a FlorestaAmazônica é capaz de absorver seis bi-lhões de toneladas, o equivalente a 10%da fotossíntese das terras do mundo.

A maior parte dessa absorção é compensa-da, contudo, pela liberação de carbono pormeio da decomposição da matéria orgâni-ca e pela respiração da própria floresta. Aparte restante pode estar sendo absorvidapela mata, transformando-se em um sumi-douro de carbono (estudos recentes de-monstram que a floresta ainda está cres-cendo, ou seja, absorvendo carbono).

Apesar de o papel de sumidouro das flores-tas tropicais ainda ser polêmico no meio ci-entífico, são sua degradação e derrubadaque geram grandes impactos sobre o clima.O desmatamento tropical tem resultado emgrandes emissões de gases do efeito estufa(GEE), especialmente o gás carbônico (CO

2).

O PROJETO SECA FLORESTA

Numa área de um hectare, na Floresta Na-cional do Tapajós, no Pará, o Instituto dePesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM)– em parceria com a Empresa Brasileira dePesquisa Agropecuária (Embrapa), com oInstituto Brasileiro do Meio Ambiente edos Recursos Naturais Renováveis (Iba-ma) e com o The Woods Hole ResearchCenter – desenvolveu um experimento iné-dito para avaliar como o clima de seca e ocalor previsto para a Amazônia com o agra-vamento da mudança climática global afe-tariam a floresta nativa. Parte do “Progra-ma Cenários para a Amazônia”, o projetotinha o objetivo de induzir a seca na flores-ta e entender a resposta da vegetação a

uma seca produzida, artificialmente, em umhectare (100 X 100 metros) de floresta.

O primeiro desafio do projeto, iniciado em1999, foi evitar que a água da chuva chegas-se ao solo. A solução para esse problema foicobrir a floresta com mais de seis mil painéisde plástico, simulando um telhado. Acopla-do a eles, construiu-se um sistema de ca-lhas forradas com plástico de modo a permi-tir o escoamento da água para uma área dis-tante. Os painéis conseguiram desviar apro-ximadamente 65% da chuva que caiu sobrea região durante o período em que estive-ram instalados – nas épocas chuvosas detodos os anos, entre 2000 e 2004.

A parcela coberta pelos painéis foi compa-rada a outra, também de um hectare, querecebeu chuva normalmente e foi usadacomo controle do experimento. As diferen-ças entre as duas partes indicaram o queaconteceria em uma área de floresta caso asmudanças globais levassem a secas prolon-gadas nas regiões tropicais.

Sabe-se que as florestas possuem mecanis-mos fisiológicos que permitem suportar a faltade chuva em curto prazo. Em um ano commenos chuva, as plantas fecham os estôma-tos – aberturas nas folhas que permitem a tro-ca de gases e água com a atmosfera. Tal estra-tégia evita que a planta enfrente um estressehídrico ao perder água para a atmosfera. Alémdisso, as árvores maiores, com raízes profun-das, beneficiam-se do estoque subterrâneo deágua, que chega a mais de 10 metros no solo eé reposto, anualmente, durante os períodoschuvosos. No entanto, uma seca que se es-tenda de um ano para o outro deixa as grandesárvores em situação de risco.

RESULTADOS INQUIETANTES

Os resultados do “Seca Floresta” mostramque, após três anos consecutivos de secasimulada, a mortalidade das árvores de gran-

de porte aumentou em escala assustadora.Na parcela protegida pelos painéis, a mortali-dade de árvores de porte médio (tronco comdiâmetros entre 10 e 30 centímetros) foi trêsvezes maior do que na parte de controle. Paraas árvores grandes (de diâmetros acima de 30centímetros), a taxa de mortalidade foi cincovezes maior se comparada ao controle.

Curiosamente, as plantas menores não fo-ram tão afetadas: as taxas de mortalidadesão comparáveis nas duas parcelas para asárvores com tronco de diâmetro abaixo decinco centímetros. A hipótese para essefenômeno é que as pequenas, por possuí-rem copas menores para sustentar, podemaproveitar a água que cai na superfície dosolo – e, assim, o líquido deixa de correrpara o subsolo e de alimentar as árvoresmaiores. A substituição das árvores demaior porte pelo crescimento das menores,porém, não compensou a mortalidade dasprimeiras. Ao fim do experimento,contabilizou-se uma perda de 10% da po-pulação de plantas de grande porte.

Os cálculos indicam que as árvores mor-tas na parcela protegida pelos painéis, aose decomporem, podem liberar três vezesmais carbono do que o volume seqüestra-do pela fotossíntese das árvores na par-cela de controle. Ou seja, não só deixarãode seqüestrar carbono, como passarão aemitir. Além disso, a parcela submetida àseca prolongada fica mais vulnerável aofogo e levaria mais de oito anos para serecuperar totalmente – no caso de inexis-tência de novos períodos de seca severa.

As implicações de uma seca severa e pro-longada sobre uma área maior – por exem-plo, por toda a Amazônia – são desconheci-das. Mas os resultados do “Seca Floresta”apontam para o colapso da floresta, mesmoque intacta, caso se concretizem as previ-sões de mudança do clima global. ■

Cerca de 200 bilhões

de toneladas

de carbono estão

estocadas na

vegetação tropical

que cobre o planeta.

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EROSÃO

por Laurence Caramel

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A urbanização, a padronização das práticas agrícolas,a poluição, a proliferação de espécies invasoras introduzidas

em decorrência do comércio e a mudança climática sãoas principais causas do esgotamento da diversidade biológica,

fundamental à sobrevivência das sociedades humanas.

BIODIVERSIDADE:URGÊNCIA MUNDIAL

da

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Um “IPCC da biodiversidade”.Essa é uma das propostas surgidas na Con-ferência da ONU sobre a biodiversidade,também conhecida como 9ª Conferência dasPartes sobre a Biodiversidade da ONU (COP9), que se realizou em Bonn, em maio passa-do. A criação do “IPCC da biodiversidade”,similar ao IPCC (Painel Intergovernamentalpara Mudanças Climáticas), responderia àfragmentação das informações sobre a bio-diversidade, e seus relatórios dariam um im-pacto maior ao tema. A Conferência aconte-ce 16 anos depois da Cúpula da Terra doRio, realizada em 1992.

A Conferência da Organização das NaçõesUnidas (ONU) sobre a biodiversidade, con-cluída no dia 30 de maio, em Bonn (Alema-nha), reafirmou o objetivo de frear o ritmo dedesaparecimento das espécies e dos ecos-sistemas até 2010. Portanto, ninguém maisjulga realista o compromisso tomado há seisanos pela comunidade internacional. Ummamífero de cada quatro, um pássaro decada oito e um terço dos anfíbios estão ame-açados, segundo a União Mundial pela Con-servação da Natureza. A biodiversidade fazparte, ao lado do clima e da luta contra adesertificação, das três prioridades escolhi-das na Cúpula da Terra no Rio, em 1992.

S.O.S DIVERSIDADE BIOLÓGICA

Durante duas semanas, em Bonn, mais de5 mil especialistas de 191 países traçaramum quadro sombrio de uma situação quali-ficada por alguns como “crise silenciosa”.Enquanto a mudança climática ocupa otopo da agenda internacional, o desafio queconstitui a preservação da diversidade bi-ológica continua amplamente ignorado.Portanto, trata-se de não agir simplesmen-te para “salvar os pandas e os tigres”, comolembrou o comissário europeu do ambien-te, Stavros Dimas, mas de não esgotar “umcapital natural”, fundamental à sobrevivên-cia das sociedades humanas.

Como sinal de que o momento é grave, oeconomista indiano Pavan Sukhdev foi en-carregado de fazer um trabalho de avalia-ção da biodiversidade comparável àquelerealizado pelo britânico Nicholas Stern so-bre a mudança climática em 2006, cujasconclusões levaram os governos a enca-rarem o tema mais a sério.

Sukhdev, desde que saiu do departamentode mercados do Deutsche Bank, na Índia,milita numa das grandes associações de

Laurence Caramel – Publicada em Le Mon-de (03/06/2008), no IHU On-line (06/06/2008– tradução do Cepat) [IHU On-line é publica-do pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU,da Universidade do Vale do Rio dos Sinos –Unisinos, em São Leopoldo] e no portal Eco-Debate (07/06/2008).

conservação do país. Em Bonn, ele revelouos primeiros resultados de seu estudo: oempobrecimento biológico custará dois tri-lhões de dólares por ano, ou seja, algo emtorno de 6% do Produto Interno Bruto (PIB)mundial. A urbanização, a padronização daspráticas agrícolas, a poluição, a proliferaçãode espécies invasoras introduzidas em de-corrência do comércio e a mudança climáti-ca são as principais causas do fenômeno.

Entretanto, os 191 países reunidos em Bonnnão chegaram a essa constatação. Por inici-ativa da Alemanha, um mecanismo de finan-ciamento dos ares protegidos deveria serposto em prática. A chanceler Ângela Merkelprometeu 500 milhões de euros até 2012.

Áreas protegidas poderiam ser instauradasem alto-mar, um espaço que até agora não ésubmetido à regulamentação alguma.

Um grupo de pesquisa, que reúne os me-lhores especialistas da biodiversidade, de-verá ser formado em 2009. Até lá, trata-sede se munir, em termos mundiais, de uminstrumento de conhecimento tão compe-tente quanto o Painel Intergovernamentalpara Mudanças Climáticas (IPCC). Por ou-tro lado, uma moratória sobre a fertilizaçãodos oceanos com ferro foi adotada. Essatécnica está sendo proposta para diminuira quantidade de CO

2 na atmosfera. Algu-

mas pesquisas mostram que o lançamentode ferro no oceano pode estimular o cres-cimento do plâncton. Em Bonn, foi solici-tado que os Estados proibissem a práticaenquanto não houver estudos comprovan-do seus possíveis efeitos negativos.

RECURSOS GENÉTICOS:

TRATADO SOBRE UTILIZAÇÃO SÓ EM 2010

Enfim, deu-se um passo para a instauraçãode um tratado internacional sobre a utiliza-ção dos recursos genéticos. Um roteiro foiadotado para chegar a um acordo em 2010.Esse dossiê constitui um dos pontos maisconflituosos nas relações entre os paísesem desenvolvimento (onde se concentra oessencial da riqueza biológica) e os indus-trializados (freqüentemente acusados de“biopirataria” pelos primeiros).

Ainda que o documento de Bonn seja pru-dente em relação ao assunto, parece que secaminha para a criação de um certificado deorigem dos genes cobiçados pelas indústri-as farmacêuticas, de cosméticos, mas tam-bém pelas grandes produtoras de semen-tes. Por conseguinte, a remuneração espe-rada em troca pelos países do sul será maisfácil de estabelecer. Atualmente, apenas cer-ca de 60 países têm uma legislação que re-gulamenta a bioprospecção. ■

e um terço dos anfíbios

estão ameaçados

de extinção.

Um pássaro

de cada oito,

um mamíferode cada quatro,

Legendas e créditos da fotosCoral (Anthosoa) – Foto: MshaiAlbatros de sobrancelha preta (Thalassarchemelanophris) – Foto: Pablo CaceresJaguatirica (Leopardus pardalis mitis) – Foto:Ana CottaPerereca (Hyla izecksoni) – Foto: Carf

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14

Por Ana Echevenguá

Essencial para a vida,

a água está deixando

de ser um tesouro

natural, bem de

domínio público

e direito humano

indispensável.

A mercantilização

da água já é uma

realidade e, segundo

o Banco Mundial,

em 2025, dois terços

da população mundial

sofrerão com

a falta de água.

“A memória dói e ensina: os recursos na-turais não-renováveis vão sem dizeradeus e jamais voltam.” Eduardo Galeano

No nosso cotidiano, somos bombardea-dos com as seguintes informações, assus-tadoras, sobre o futuro da água:

■ Acesso universal à água limpa é vital àsaúde pública. Mas a oferta de água e deserviços de saneamento básico e de saú-de pública não mais satisfaz às necessi-dades da população, que cresce de formavertiginosa.■ Mais de 1 bilhão de pessoas, principal-mente no mundo em desenvolvimento,não tem acesso à água.■ Aproximadamente 2,4 bilhões de pes-soas não têm acesso aos serviços desaúde pública.

PRIVATIZAÇÃODA

ÁGUA■ Mais de 2 milhões de crianças morrem,ao ano, pela falta de acesso à água limpa eaos serviços de saúde pública.■ O Banco Mundial predisse que, em 2025,dois terços da população mundial sofre-rão com a falta de água.■ Água pré-paga implica a exclusão doconsumidor de baixa renda.■ A água é um monopólio natural, e seumercado é dominado por algumas com-panhias multinacionais, sem competiçãode mercado.■ A privatização da água pode destruirmais de 6 bilhões de pessoas do mundo.

A despeito dessas informações ruins, hátextos com boas notícias. Eduardo Galea-no, escritor e jornalista uruguaio, autor deAs Veias Abertas da América Latina eMemórias do Fogo, escreveu um artigo

estupendo – Bolívia, o país que quer exis-tir, cujo trecho reproduzo:

“Em 2000, um caso único no mundo: umalocalidade “desprivatizou” a água. A cha-mada “guerra da água” ocorreu em Co-chabamba. Os camponeses marcharam,saindo dos vales, e bloquearam a cidade,e também a cidade se rebelou. Respon-dendo com balas e gás lacrimogêneo, ogoverno decretou o estado de sítio. Masa rebelião coletiva continuou, impossívelde parar, até que, na investida final, a águafoi arrancada das mãos da empresaBechtel, e as pessoas recuperaram a irri-gação de seus corpos e de suas planta-ções. (A Bechtel, com sede na Califórnia,agora recebe o consolo do PresidenteGeorge W. Bush, que a presenteia comcontratos milionários no Iraque.)”

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Ana Echevenguá, advogada ambientalista,coordenadora do programa Eco& Ação.E-mail: [email protected]. Publicado emwww.ecodebate.com.br em 13/09/07.

Claro que a privatização da água é umarealidade. E onera, de imediato, o acesso aesse recurso vital, em especial em paísesdo terceiro e do quarto mundos – onde arenda per capita é menos que U$2/dia.

Por isso, os efeitos da privatização sãonefastos:■ Devastam o mundo em desenvolvimen-to, forçando as pessoas a escolherem en-tre comida ou água;■ Proliferam doenças e epidemias, e au-mentam os riscos de morte.

Se o impacto social dessa majoração mata,trata-se de uma política homicida! E qual-quer forma encorajadora de propagaçãode doença e de morte é condenável.

Paralelo a isso, temos outros dois proble-mas relacionados ao acesso à água: o au-mento vertiginoso da população mundial ea redução da provisão de água no planeta.

Todo esse desastre proporciona às gran-des corporações multinacionais a oportu-nidade de lucro certo. A revista Fortunepassou a denominar a água como o “óleodo século XXI”, pois quem controlar talrecurso terá, nas mãos, amplos podereseconômico e político.

AS REGRAS DO FMIE DO BANCO MUNDIAL

A política estrutural do Fundo MonetárioInternacional (FMI) e do Banco Mundialincentiva o controle da água. Por meio da“condicionalidade cruzada”, esses orga-nismos impõem aos países pobres ou su-bordinados a privatização e a mercantili-zação da água em troca de empréstimos.

Assim, eles não autorizam empréstimosque propiciem o acesso universal à águae ao saneamento básico. Ao contrário;seus empréstimos condicionam os gover-nos à privatização. Como?■ Favorecendo as companhias multinaci-onais de água ao fomentarem programasde privatização de água (o Banco Mundi-al prega que o setor privado é mais efici-ente que o público, além de melhor capa-citado para solucionar crises);■ Exigindo que os governos carentessubstituam o subsídio público pela co-brança integral dos custos com o sanea-mento básico. Com isso, os consumido-res têm de pagar o preço total dos servi-ços de água;

A água seráo “óleo do século XXI”:quem controlar este

recurso terá,nas mãos, amplos

poderes econômicoe político.

■ Exigindo que os governos privatizem aágua sem qualquer estudo local fundamen-tado e sem a oitiva dos administrados.

A FALÁCIA DA PRIVATIZAÇÃOQuando os serviços de água são privati-zados, há uma falsa percepção de que ofardo financeiro passou do setor públicoao privado. A empresa promete consertose melhorias; enfim, alardeia o que não vaicumprir. Ela não investe em reestrutura-ção e em expansão dos meios para utiliza-ção e tratamento de água. Em geral, trans-fere algumas das responsabilidades assu-midas a terceiros, por meio de arrendamen-tos, de uma administração terceirizada ede contratos de serviço destituídos dequaisquer investimentos.

Ora, isso era esperado! Se a privatizaçãojá implicou assolamentos econômico esocioambiental em outros setores, prova-velmente, o mesmo ocorrerá com o con-trole de sistemas de água.

CONCLUSÃOA água pode ser tratada como mercado-ria? A teoria afirma que não. Para Frederi-co Mayor, ex-diretor-geral da UNESCO(1987-99), “Esta fonte rara, essencial paraa vida, deve ser considerada como um te-souro natural que faz parte da herança co-mum da humanidade”.

O Comitê de Direitos Econômicos, Sociaise Culturais da Organização das NaçõesUnidas (ONU) declarou, em Genebra, em27 de novembro de 2002, o acesso à águacomo um direito humano indispensável.Afirmou ainda que a água é um bem públi-co, social e cultural; ou seja, um produtofundamental à vida e à saúde, e não umproduto básico de caráter econômico.

Infelizmente, essa declaração, que não temforça de lei, não foi assimilada pelos deten-tores do poder mundial. Eles insistem emtransferir o controle dos recursos hídricosdo setor público para o setor privado.

Ora, se a água é uma necessidade básicado ser humano, um direito humano funda-mental, sua propriedade não pode ser en-tregue a ninguém. Sequer a entidades cujoúnico propósito é a maximização de lucros.Se isso ocorrer, cada ser vivo é diretamen-te prejudicado. E estará sujeito à morte.

O QUE PODEMOS FAZER, ENTÃO?1. Precisamos recusar quaisquer formas deprivatização, de mercantilização e de comer-cialização baseadas no “valor econômico”da água. A água é um bem de domínio pú-blico. Há muitas pessoas importantes apoi-ando essa causa. Junte-se a elas!2. Devemos canalizar energia e recursospara proteger e conservar o manancial lo-cal existente para socorrer as populaçõesvulneráveis, incentivar o controle de po-luição e fomentar a conscientização pú-blica sobre essa crise iminente que ame-aça a vida.3. Além disso, podemos exigir novas pos-turas do FMI e do Banco Mundial. Seuscontratos de empréstimos não devem im-por condições abusivas e ilegais que exi-jam a privatização de serviços de água.

Cabe a eles financiar ajuda. Países em de-senvolvimento não precisam de novos dé-bitos. Carecem de auxílio na elaboraçãode projetos visando à reabilitação da saú-de pública e à expansão dos serviços deágua e de saneamento básico. Isso é umaquestão de saúde pública, diretamente re-lacionada à sadia qualidade de vida. ■

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O

por Leonardo Sakamoto

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O fim da escravidão legal no Brasil não foiacompanhado de políticas públicas e mudançasestruturais visando à inclusão dos trabalhadores.

Por isso, para além dos efeitos da Lei Áurea, que completa 120 anos, trabalhadores rurais do Brasil

ainda vivem, hoje, sob a ameaça do cativeiro.

POR QUEA LEI ÁUREA

NÃO REPRESENTOUA ABOLIÇÃODEFINITIVA

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Cidadania&MeioAmbiente 19

Em 2008, comemoram-se os 120 anosda Lei Áurea, quando o Estado brasileiro passou a considerar ilegal o

direito de propriedade de um ser humanosobre outro. Contudo, o ato da princesaIsabel não foi a causa do fim do regimeescravista no país, mas o final (posterga-do, ao máximo) de um processo que co-meçou com a proibição do tráfico negrei-ro entre a África e o Brasil. E contou coma instituição de garantias prévias para queos proprietários rurais tivessem mão-de-obra farta e à disposição, mesmo após aassinatura que condenou o trabalho es-cravo à ilegalidade.

Para entender esse processo, portanto, énecessário voltar no tempo e recorrer aosacontecimentos do início do século XIX. Nãoapenas àqueles decorrentes da mudança dafamília real para o Brasil, mas também à ex-pansão da Inglaterra industrial pelo mundo.

O EXPANSIONISMO INGLÊSE A ESCRAVIDÃOCom a invasão das tropas napoleônicas,a Coroa Portuguesa passou a dependerdos ingleses para retomar seu país e ga-rantir sua própria segurança no Rio deJaneiro, além da proteção das colônias.Não é de se estranhar, então, que a Ingla-terra, interessada em tornar o Brasil e ascolônias espanholas do Prata e do Pacífi-co mercados para seus produtos manufa-turados e fontes baratas de matérias-pri-mas, pressionasse por melhores condiçõescomerciais. O Tratado de Navegação eComércio, assinado em 1810, dois anosapós a abertura dos portos às nações es-trangeiras, foi instituído nesse sentido. Porum tempo, os ingleses passaram a usu-fruir de uma taxa de importação (15%)menor que a própria tarifação imposta aosprodutos portugueses (16%).

Junto a esse acordo foi assinado outroentre as duas coroas. Pelo Tratado de Ali-ança e Amizade, Portugal comprometia-sea limitar o tráfico de escravos entre suascolônias. A bem da verdade, isso não cau-sou grande impacto na economia brasilei-ra, pois o comércio português de escra-vos já estava restrito aos seus própriosdomínios na África. Mas foi um dos pri-meiros indícios do que viria a ser o com-portamento inglês, nas décadas seguin-tes. Prova disso é que, no Congresso deViena, cinco anos mais tarde, pressiona-do pelos ingleses, Portugal concordou em

proibir o tráfico de seres humanos em re-giões acima da linha do Equador. A medi-da colocava de fora desse sistema comer-cial um dos principais fornecedores demão-de-obra para o Brasil – a Costa daMina, na África Ocidental. O acordo veioganhar “força de lei” após a inclusão dascanhoneiras ao papel assinado, por meiode uma cláusula adicional, inserida anosmais tarde, que dava à Inglaterra o direitode abordar, em alto-mar, embarcações sus-peitas de transportarem cativos e deapreendê-las.

A despeito dos acordos internacionais,tanto a Coroa Portuguesa quanto o go-verno imperial brasileiro que a sucedeunão tornaram efetivas essas promessas deencerrar o tráfico. A Inglaterra, que teveum papel de mediação no processo de in-dependência do Brasil, continuou pressi-onando a nova administração, com medi-das duras, para acabar com o tráfico ne-greiro. Exigiu, em um tratado de 1826, rati-ficado em 1827, que o país proibisse ocomércio humano em três anos. Em 1831,o Brasil realmente promulgou a lei proi-bindo o tráfico de pessoas da África edeclarou livres os cativos que desembar-cassem após aquela data. É claro que a leipermaneceu como letra-morta, em funçãodo fortalecimento da influência dos pro-prietários rurais após a abdicação do Im-perador Pedro I, no mesmo ano.

ESCRAVIDÃO:BASE DAS ATIVIDADES ECONÔMICAS

Pois, como afirmou Caio Prado Júnior, aescravidão constituía a mola mestra davida do país, repousando sobre ela todas

as atividades econômicas. A produção na-cional, voltada para atender às necessida-des de gêneros alimentícios (como o café)e de matérias-primas para uma Europa emplena marcha industrial, dependia do tra-balho servil. Em decorrência disso, pormais que houvesse um crescente descon-tentamento da opinião pública esclareci-da com relação ao trabalho escravo, eraenérgica a defesa de sua manutenção pelosetor produtivo. Afinal de contas, nãohavia no horizonte visível uma opção (quenão desmontasse o sistema) para substi-tuir esse tipo de mão-de-obra. E a importa-ção era a única forma de suprir o aumentoda demanda por força de trabalho e mes-mo sua reposição, haja vista que a repro-dução da mão-de-obra escrava em cati-veiro era insignificante.

Na sociedade escravista, o trabalhador nãopossuía a propriedade de sua força de tra-balho. Não tinha liberdade para vendê-la aquem garantisse melhores remunerações oucondições de subsistência; estava atado auma pessoa ou empresa pelo tempo de suavida. Era mercadoria. E, por ser mercadoria,também era patrimônio. A riqueza de umhomem era comumente medida pela quan-tidade de escravos que possuía. Mas con-figurava-se como um patrimônio de natu-reza diferente, comprado pelo fazendeiroem um mercado de força de trabalho, doqual acabava por ser dependente e refém.

O escravo-mercadoria tornava-se objetode lucro pelo comércio internacional an-tes mesmo de começar a produzir. Ao in-vestir determinada soma de dinheiro nacompra de força de trabalho, um fazendei-ro tinha em mente que teria de buscar umretorno equivalente ou superior à quanti-dade de recursos necessários à manuten-ção da mão-de-obra, somada aos recur-sos que ele investiu em sua compra, maisa taxa de juros que ganharia caso inves-tisse o mesmo valor no mercado. Casocontrário, o negócio não valeria a pena.

Na primeira metade do século XIX já erapossível prever que o fim da escravidãono Brasil seria apenas uma questão de tem-po. Tanto as pressões externas quanto asinternas apontavam para uma mudança notipo da força de trabalho utilizada na pro-dução, o que, sem dúvida alguma, era con-dição fundamental aos desenvolvimentoseconômico e social do país. A dúvida se-ria como e quando a mudança aconteceria

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A importação era

a única forma de

suprir o aumento da

demanda por força

de trabalho e mesmo

sua reposição, já

que a reprodução da

mão-de-obra escrava

em cativeiro era

insignificante.

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e a qual custo – toda alteração no cursode um sistema tem um custo, que é pon-derado pelos gestores no momento detomar decisões quanto à adoção de políti-cas. Um fator interno que contribuiu paraque esse balanço de fatores pendessepara o fim do tráfico foi a situação expostapelo sociólogo José de Souza Martins. Oscomerciantes de escravos haviam se tor-nado proeminentes figuras financeiras,tendo os proprietários rurais do país comoseus devedores. A sujeição econômica aessa classe, que já não gozava de boa re-putação e imagem na sociedade, trazia in-satisfação aos produtores.

Vale lembrar que, externamente, o país jáenfrentava problemas com a abordageminternacional de seus navios, sendo elestransportadores de escravos ou não. A jus-tificativa de impedir o tráfico era usadamesmo quando as embarcações estavamde acordo com os acordos ingleses. Em1845, o parlamento inglês aprovou o BillAberdeen, declarando legal o aprisiona-mento de qualquer embarcação utilizadano tráfico e a sujeição de seus ocupantesao julgamento por pirataria. Os navioseram caçados não apenas em alto-mar, mastambém em águas abrigadas do Brasil enos seus portos.

LEI DE TERRAS:A EXCLUSÃO SOCIAL E ECONÔMICA

Em 1850, o governo brasileiro finalmenteadotou ações eficazes para coibir o tráfi-co transatlântico de escravos, com a ado-ção de leis e ações. Os resultados pude-ram ser sentidos rapidamente: em 1849, 54mil escravos entraram no país. O númerocaiu para 23 mil, em 1850; 3 mil, em 1851;pouco mais de 700, em 1852, até acabar,então, definitivamente.

Nos anos seguintes, foram tomadas medidaspela libertação de crianças e de sexagenários.Isso, na verdade, serviu apenas como distra-ção, postergando o fim da escravidão. Osescravos que conseguiam chegar aos 60 anosjá não tinham condições de trabalho e eramum “estorvo” financeiro para muitos fazen-deiros que os sustentavam. Já os filhos dosescravos não possuíam autonomia para vi-verem sozinhos. Muitos, até completarem 18anos, foram tutelados (e explorados) pelosproprietários de seus pais. Além disso, umacorrente de tráfico interno vendia escravosdo Nordeste para suprir a crescente produ-ção de café, no Sudeste.

Todavia, por mais que fosse postergada,com o fim do tráfico transatlântico, a pro-priedade legal sobre seres humanos esta-va com os dias contados. Em questão deanos, centenas de milhares de pessoastornaram-se livres para ocuparem terrasvirgens – que o país tinha de sobra – eproduzirem para si próprias, em um siste-ma possivelmente de campesinato.

Mas quem trabalharia para as fazendas?Como garantir mão-de-obra após a aboliçãototal? Vislumbrando que, mantida a estruturafundiária do país, o final da escravidão pode-ria representar um colapso dos grandes pro-dutores rurais, o governo brasileiro criou for-mas de garantir que poucos mantivessemacesso aos meios de produção. A Lei de Ter-ras foi aprovada poucas semanas após a ex-tinção do tráfico de escravos, em 1850; e elacriou mecanismos para a regularização fundi-ária. As terras devolutas passaram para asmãos do Estado, que passaria a vendê-las, enão doá-las, como era feito até então.

O custo da terra começou a existir, mas nãoera significativo para os fazendeiros, quedispunham de capital para a ampliação deseus domínios – ainda mais com os exce-dentes que deixaram de ser invertidos como fim do tráfico. Porém, era o suficiente paradeixar ex-escravos e pobres de fora do pro-cesso legal. Da mesma forma, a lei proibiaque imigrantes que tiveram suas passagensfinanciadas para virem ao Brasil (ato co-

mum na política de imigração) comprassemterras até três anos após sua chegada. Ouseja, mantinha a força de trabalho à dispo-sição do serviço do capital.

Os preceitos da lei não foram necessaria-mente respeitados, principalmente por quempossuía recursos para isso. Afinal, ela nãohavia sido criada para impor ao capitalismobrasileiro um problema, e sim para garantirseu florescimento. De acordo com EmíliaViotti da Costa, os ocupantes de terras e ospossuidores de títulos de sesmarias fica-ram sujeitos à legitimação de seus direitos,o que foi feito em 1854, por meio do “regis-tro paroquial”. O documento validava aocupação da terra até essa data. Assim,nasceu uma indústria de falsificação de tí-tulos de propriedades, com a participaçãode cartórios. Familiar aos proprietários deterra, os procedimentos para isso eram ina-tingíveis ao ex-escravo ou ao imigrante, pordesconhecimento ou falta de recursos fi-nanceiros para subornar alguém.

Com o trabalho cativo, a terra poderia es-tar à disposição para livre ocupação. Po-rém, com o trabalho livre, o acesso a elaprecisava ser restringido. A existência deterras livres garantia produtores indepen-dentes e dificultava a centralização docapital e da produção baseada na explora-ção do trabalho. Com o fim do tráfico e olivre mercado de trabalho despontando nohorizonte, o governo brasileiro foi obriga-do a tomar medidas para impedir o acessoà terra, mantendo a mão-de-obra reprimi-da e alijada de seus meios de produção.

Dessa maneira, a Lei de Terras, nascidado fim do tráfico de escravos, está na ori-gem da atual exploração do trabalhadorrural e, portanto, da escravidão contem-porânea. As legislações que se sucede-ram a ela trataram do assunto apenas rea-firmando medidas para garantir a existên-cia de um contingente reserva de mão-de-obra sem acesso à terra, mantendo baixoo nível de remuneração e de condições detrabalho. Com a Lei de 1850 estava for-matada uma nova estrutura – em substi-tuição àquela que seria extinta em maio de1888 – para sujeitar os trabalhadores.

O PÓS-LEI ÁUREA: LIBERDADE PARA OCAPITAL E SERVIDÃO POR DÍVIDAPorém, ela também resolveu outro proble-ma crucial: ao dificultar o acesso à terra elegalizar a posse, criou valor para algo que

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Libertos, os filhos

de escravos não

possuíam autonomia

para viverem sozinhos.

Até completarem

18 anos eram tutelados

(e explorados)

pelos proprietários

de seus pais.

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Na sociedade

escravista,

o trabalhador

não possuía

a propriedade

de sua força

de trabalho:

estava atado pelo

tempo de sua vida.

Era mercadoria.

até então não o possuía – a terra. Comonão era um objeto passível de ser comer-cializado, a fazenda consistia, em um pri-meiro momento, no locus onde ocorria aexploração e, dali em diante, no trabalhoacumulado dos escravos – traduzido emmercadorias e benfeitorias. Martins expli-ca que a lei possibilitou, dessa forma, atransferência da garantia dada ao merca-do de crédito da propriedade dos escra-vos à propriedade da terra. Esse momentofoi decisivo. O trabalho, liberto da condi-ção de renda capitalizada, deixou de fazerparte do capital para se contrapor a ele.Não era mais preciso comprar a capacida-de de gerar riqueza; com o fim do direito àpropriedade privada sobre seres humanos,o capital também ganhou a liberdade; coma diferença de que poderia usufruí-la me-lhor do que os antigos escravos.

No dia 13 de maio de 1888, com a Lei Áu-rea, o Estado deixou de reconhecer o di-reito de propriedade de uma pessoa sobreoutra. Contudo, isso não significou quetodas as relações de trabalho nas socie-dades regidas pelo capital passariam a serguiadas por regras de compra e venda daforça de trabalho mediante assalariamen-to, com remuneração suficiente para a ma-nutenção do trabalhador e de sua família.

O fim da escravidão não representou amelhoria na qualidade de vida de muitostrabalhadores rurais, uma vez que o de-senvolvimento de um número considerá-vel de fazendas continuou a se alimentarde formas de exploração semelhantes aoperíodo escravocrata. Na verdade, nãoapenas no momento da acumulação pri-mitiva originária – historicamente realiza-da em função de recursos naturais e daforça de trabalho –, mas ao longo do tem-po, como forma de garantir uma margemde lucro maior ao empreendimento oumesmo lhe dar competitividade para aconcorrência no mercado.

Dois casos de utilização de formas de ex-ploração semelhantes ao trabalho escra-vo, mas que não envolvem propriedadelegal de um ser humano sobre outro, tor-naram-se referência no pós-Lei Áurea. Oprimeiro é o dos nordestinos levados atrabalharem na florescente indústria daborracha, na Amazônia. O segundo, o doscolonos estrangeiros trazidos às fazen-das de café do interior do estado de SãoPaulo. Pela descrição da situação, é pos-

sível constatar que há um padrão na for-ma de exploração desses trabalhadores,que continua praticamente o mesmo nosdias de hoje – a servidão por endivida-mento ilegal. Como esse modelo repetia-se em diversos países, ele foi objetivo dediscussões internacionais e definido emconvenções da Organização Internacio-nal do Trabalho.

Após 1850, as exportações de borrachacresceram, no Brasil, devido ao aumentoda demanda internacional pelo produto,após o desenvolvimento do processo devulcanização, maximizando sua resistên-cia e ampliando as possibilidades de mol-dagem. Entre 1881 e 1890, o produto re-presentava 8% do total de exportações dopaís e ocupava o terceiro lugar entre osmais vendidos. Vinte anos depois (1901-1910), a borracha passou a 28% do totalde exportações. Isso levou o luxo à regiãoamazônica, onde estavam concentradosos seringais – riqueza esta extraída do tra-balho de migrantes nordestinos, muitosdeles fugidos da seca que atingiu o Nor-deste entre 1877 e 1880. O relato de CaioPrado Júnior vale para aquela época, mastambém descreve esse padrão que conti-nua até os dias de hoje:

“As dívidas começam logo ao ser con-tratado: ele adquire a crédito os instru-mentos que utilizará, e que, embora

muito rudimentares, estão acima desuas posses em regra nulas. Freqüen-temente estará ainda devendo as des-pesas de passagem desde sua terra na-tiva até o seringal. Estas dívidas inici-ais nunca se saldarão porque semprehaverá meios de fazer as despesas dostrabalhadores ultrapassarem seus ma-gros salários. E quando isto ainda nãobasta, um hábil jogo de contas, que aignorância do seringueiro analfabetonão pode perceber, completará a ma-nobra. Enquanto deve, o trabalhadornão pode abandonar o seu patrão cre-dor; existe entre os proprietários umcompromisso sagrado de não aceita-rem a seu serviço empregados com dí-vidas para com outro e não-saldadas.”E utilizava-se a força para manter o tra-balhador no serviço.

A EXPLORAÇÃO DEGRADANTEDO COLONATO DO CAFÉCom o final do tráfico negreiro, deu-se oinício da implantação de regimes de par-ceria em várias fazendas de café, trazendocolonos europeus para o serviço. Vale lem-brar que a escravidão não era apenas ummodo de produção. Historicamente, esta-va enraizada em toda a sociedade, que gi-rava em torno dela. Portanto, era claro quea relação fazendeiro/escravo demoraria aser substituída pela de patrão/emprega-do, tanto ideologicamente quanto na prá-tica – e talvez nunca venha a se realizarplenamente! Um exemplo citado por Joséde Souza Martins é o da firma Vergueiro &Cia, que contratou imigrantes para execu-tar o serviço:

“Na parceria, conforme o contrato as-sinado com os colonos suíços, “ven-dido o café por Vergueiro & Cia perten-cerá a estes a metade do seu produtolíquido, e a outra metade ao (…) colo-no. Entretanto, o parceiro era oneradoem várias despesas, a principal dasquais era o pagamento do transporte egastos de viagem dele e de toda a suafamília, além da sua manutenção até osprimeiros resultados do seu trabalho.Diversos procedimentos agravavam osdébitos, como a manipulação das taxascambiais, juros sobre adiantamentos,preços excessivos cobrados no arma-zém (em comparação com os preços dascidades próximas), além de vários abu-sos e restrições que, no caso da [fa-zenda] Ibicaba, logo levaram a uma re-

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PARA SABER MAIS:

◗ História do Brasil, de Bóris Fausto◗ História econômica do Brasil, de Caio Prado Júnior◗ Política de terras no Brasil e nos Estados Unidos, de Emília Viotti da Costa◗ O cativeiro da terra, de José de Souza Martins◗ Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional: o negro na sociedade escravocrata doRio Grande do Sul, de Fernando Henrique

Ilustrações: Jean Baptiste Debret

Leonardo Sakamoto –Jornalista e doutor em Ciên-cia Política pela Universida-de de São Paulo, além de co-ordenador da ONG RepórterBrasil e da Agência de Notí-cias Repórter Brasil.

Brasília - O jornalista e cien-tista político LeonardoSakamoto recebe o PrêmioCombate ao Trabalho Escra-vo 2006 de cinco instituições(OIT, Anamatra, ANPT, ANPRe Ajufe), na categoria Perso-

belião. Esses recursos protelavam aremissão dos débitos dos colonos, pro-telando a servidão virtual em que seencontravam.”

O colono não entrava no mercado de tra-balho livre para vender sua força. E, seestivesse insatisfeito com o patrão, teriade procurar outro que comprasse suas dí-vidas. Perante a lei, estavam livres; con-tudo, economicamente, eram similares aescravos. A experiência da Vergueiro &Cia gerou insatisfação por parte dos colo-nos, criou temor nos fazendeiros (receo-sos de que insurreições como a ocorridanessa fazenda, em 1856, se repetissem) etambém desconfiança de outros paísesfornecedores de mão-de-obra.

Situações como essa se repetiram ao longode décadas, até que a prática da imigraçãopara o colonato estabelecesse um modusoperandi que contou com a participação dogoverno. Este passou a subvencionar otransporte dos estrangeiros de seu país deorigem até o Brasil, diminuindo os proble-mas com o endividamento. Os colonos es-peravam obter, pelo trabalho nas fazendasde café, recursos suficientes para adquiri-rem sua própria terra. O colonato passou aser visto e incentivado como uma etapa ne-cessária à independência econômica.

A exploração degradante e ilegal do traba-lho continuou, portanto. Ao analisar a si-tuação do colonato do café entre o final doséculo XIX e início do seguinte, no Brasil,Martins afirmou que a propriedade capita-lista da terra assegurava ao fazendeiro asujeição do trabalho e, ao mesmo tempo, aexploração ilegal de seres humanos.

Apesar de trabalharem para a fazenda, oscolonos atuavam como arrendatários, fi-cando cada grupo com um pedaço da re-gião, cuidando do cafezal e entregando oproduto para o proprietário da terra. Paraisso, eram remunerados abaixo do valorde seu serviço e de forma insuficiente paragarantir a subsistência. Como conseqü-ência, tinham que utilizar as terras entreos cafezais, ou próximas deles, para pro-duzirem seus alimentos. O trabalho absor-vido na formação da fazenda de café eraconvertido em capital na forma de cafe-zais. Dessa forma, ela produzia, a partir derelações não-capitalistas de produção,boa parte de seu capital.Durante todo o século XX, a servidão

por dívida utilizada contra os seringuei-ros e os primeiros imigrantes do café con-solidou-se como uma das formas empre-gadas para reprimir a força de trabalhonas situações de expansão do capitalsobre formas não-capitalistas de produ-ção. Não há estimativas confiáveis donúmero de escravos no país, atualmente.Alguns levantamentos falam de 25 mil;outros, de 40 mil. O fato é que, de 1995até hoje, mais de 30 mil pessoas já foramlibertadas em operações dos grupos mó-veis de fiscalização do Governo Federal,

responsáveis por apurarem denúncias elibertarem trabalhadores.

Para além dos efeitos da Lei Áurea, que com-pleta 120 anos, trabalhadores rurais do Bra-sil ainda vivem, hoje, sob a ameaça do cati-veiro. Mudaram-se os rótulos; ficaram asgarrafas. Marx afirmava que o “morto apo-dera-se do vivo”. Com base na permanênciada escravidão sob outras formas, constata-se que não são apenas as velhas formas quese inserem nas novas, mas as novas recor-rem às velhas sempre que possível. ■

nalidade, como destaque no combate a esse tipo de crime. Foto: Antonio Cruz/ ABr

Brasília (08/05/06) - Ato na Câmara dos Deputados pede aprovação de proposta deemenda à Constituição (PEC) contra o trabalho escravo. Foto: Antônio Cruz/ABr

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artigos de

No ano passado, os donos domundo investiram na indústriada morte — a fabricação de ar-

mamentos — US$ 1,34 trilhão, 45% a maisdo que há 10 anos, segundo o InstitutoInternacional de Pesquisa para a Paz. Emgastos militares, os governos aplicaram2,5% do PIB mundial. Por cada habitantedo planeta, US$ 202 foram destinados aalimentar as bestas do Apocalipse commísseis, bombas, minas e artefatos nucle-ares. Em resumo: segundo a FAO, com-parado com os gastos em alimentos, ovalor consumido pelos armamentos su-perou-os 191 vezes!

Em 2007, os EUA faturaram 45% da vendade armas no mundo. Esse mercado é, hoje,dominado por 41 empresas estaduniden-ses e 34 da Europa Ocidental. Nos últi-mos 10 anos, os gastos militares dos EUAaumentaram 65%, ultrapassando o que seinvestiu na Segunda Guerra Mundial. É opreço das intervenções no Iraque e noAfeganistão.

Além dessa desproporção brutal entreo que se investe na morte (armas) e oque se aplica na vida (alimentos), a cri-se do petróleo, com o barril acima deUS$130, eleva assustadoramente o va-lor dos alimentos. Nos últimos 50 anos,industrializou-se a agricultura, o queaumentou em 250% a colheita mundialde cereais. Isso não significa que setornaram mais baratos e chegaram àboca dos famintos.

A agricultura passou a consumir petróleo naforma de fertilizantes (eles representam umterço do consumo de energia na lavoura etiveram aumento, nos últimos 12 meses, de130%), pesticidas, máquinas agrícolas, sis-temas de irrigação e transporte — dos ca-minhões que fazem chegar o alimento no mer-cado ao motoqueiro entregador de pizza.

Quem de nós imaginou entrar numa butique para comprar arroz, feijão, verduras e carne? Não estamos longe disso. O preço médio dos alimentos triplicou nos últimos 12 meses.

ALIMENTOS... artigos de LUXO

Frei Betto – Escritor, autor de Calendáriodo poder (Rocco), entre outros livros.Artigo originalmente publicado pelo CorreioBraziliense (20/06/08) e inserido no portalwww.ecodebate.com.br em 21/06/08.

por Frei Betto

A agricultura industrializada consome 50 ve-zes mais energia que a agricultura tradicional,pois 95% de todos os nossos produtos ali-mentícios exigem utilização de petróleo. Ape-nas para criar uma única vaca e entregá-la nomercado esvaziam-se seis barris de petróleo,cada um contendo 158,9 litros.

A elevação do preço do petróleo abre umnovo e vasto mercado para os produtosagrícolas. Antes, eles eram destinados aoconsumo humano. Agora, são tambémvoltados a nutrir máquinas e veículos. Opreço do petróleo tabela o de alimentossimplesmente porque Se o valor de com-bustível de um produto agrícola exceder oseu valor como alimento, ele será conver-tido em agrocombustível.

Quem vai investir na produção de açúcarse, com a mesma cana, se obtém mais lucrogerando etanol? É óbvio: o açúcar não de-saparecerá da prateleira dos supermerca-dos. Apenas será oferecido como artigo deluxo, para compensar os investimentos dequem deixou de produzir agrocombustível.

Não se trata de ser contra o etanol, e sim deser a favor da produção de alimentos, demodo que sejam acessíveis à renda médiamensal do brasileiro, que é de R$ 873,00. Eninguém ignora o regime de trabalho escra-vo e semi-escravo que predomina nos ca-naviais do Brasil, conforme recente denún-cia da Anistia Internacional. Aliás, é urgenteque o Congresso Nacional aprove a PEC438/2001 contra o trabalho escravo. Infeliz-mente, o Planalto acaba de editar a medidaprovisória que desobriga o registro em car-teira até três meses de trabalho. Quantosbóias-frias não ficarão, agora, condenadosao regime perpétuo — e legal — de trimes-tralidade laboral sem direitos trabalhistas?

Algumas empresas de produção de etanolobrigam os trabalhadores a colher até 15 to-

neladas de cana por dia e pagam o salário,não por horas trabalhadas, mas por quanti-dade colhida. Segundo especialistas, tal es-forço causa sérios problemas de coluna, câim-bras, tendinites, doenças nas vias respirató-rias devido à fuligem da cana, deformaçõesnos pés em razão do uso dos “sapatões”, eencurtamento das cordas vocais por forçado pescoço curvado durante o trabalho.

Na colheita, os trabalhadores são acometi-dos de sudorese em virtude das altas tem-peraturas e do excessivo esforço. Para cadatonelada de cana é preciso desferir mil gol-pes de facão. Os salários pagos por produ-ção são insuficientes para lhes garantir ali-mentação adequada, pois, além dos gastoscom aluguéis e transporte dos locais de ori-gem até o interior de São Paulo e de Minas,remetem parte do que recebem às famílias.

O regime atual de trabalho reduz o tempode vida útil dos cortadores em 12 anos.Em 1850, quando o tráfico de escravos eralivre e a oferta de mão-de-obra abundan-te, a vida útil desses trabalhadores eratambém de 10 a 12 anos. A partir da proibi-ção de importar negros, o melhor trata-mento dispensado aos escravos ampliousua vida útil de 15 a 20 anos.

Se o governo federal deseja promover ocrescimento econômico com desenvolvi-mento sustentável, sem antagonizar es-sas duas metas de nosso processo civili-zatório, é preciso evitar os males aponta-dos acima e fazer a reforma agrária, demodo a multiplicar as áreas destinadas àprodução de alimentos, contrabalançan-do com as que, hoje, são ocupadas peloagrocombustível. ■

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EN

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EV

IS

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PLANETA

OS SUBÚRBIOS DAS CIDADES

DO TERCEIRO MUNDO SÃO O NOVO

CENÁRIO GEOPOLÍTICO DECISIVO

ela primeira vez na história da humanidade, a população

urbana superará em número a população rural.

Entretanto, a maior parte dessas pessoas não vive no que

FAVELA

Pnormalmente entendemos por cidades, mas em imensos

subúrbios sem infra-estrutura e serviços, os quais escapam a

qualquer conceituação tradicional. Em Planet of slums – traduzido

como Planeta favela(1), e mote desta entrevista – o urbanista,

historiador e ativista político Mike Davis aborda o processo de

favelização e empobrecimento das cidades do terceiro mundo.

Entrevista com Mikle Davis/ComCiência

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COMCIÊNCIA – NA SUA DESCRIÇÃO DE UMA

NOVA “GEOGRAFIA PÓS-URBANA”, O SENHOR

UTILIZA UM VOCABULÁRIO INOVADOR: COR-

REDORES REGIONAIS, CONURBAÇÕES DIFUSAS,

REDES POLICÊNTRICAS, PERIURBANIZAÇÃO...

Mike Davis – Trata-se de uma lingua-gem em pleno processo de desenvolvimen-to e é nela que apenas reside o consenso.Os debates mais interessantes têm surgi-do a partir do estudo da urbanização nosul da China, Indonésia e no sudeste daÁsia e giram, principalmente, em torno danatureza da periurbanização na periferia dasgrandes cidades do terceiro mundo. Comeste termo refiro-me ao lugar no qual ocampo e a cidade se encontram, e a per-gunta que se coloca é: estamos diante deuma fase temporária de um processo com-plexo e dinâmico ou esta natureza híbridaserá mantida ao longo do tempo?

A nova realidade periurbana apresentauma mistura muito complexa de subúrbiospobres, deslocados do centro das cida-des e, no meio deles, pequenos enclavesde classe média, freqüentemente de cons-trução recente e com muros. Nessa periur-banização encontramos também trabalha-dores rurais atraídos pela manufatura debaixa remuneração e moradores dos cen-tros urbanos que se deslocam diariamentepara trabalhar na indústria agrícola.

Curiosamente, este fenômeno despertoutambém o interesse de analistas militares do Pentágono, que consi-deram essas periferias labirínticas um dos grandes desafios com oqual irá se deparar o futuro com tecnologias bélicas e projetosimperialistas. Após uma época em que se centraram no estudo dosmétodos de gestão empresarial moderna – o just-in-time e o modeloWal Mart – esses militares parecem estar agora obcecados com aarquitetura e o planejamento urbano.

Os Estados Unidos desenvolveram uma grande capacidade paradestruir os sistemas urbanos clássicos, mas não tiveram nenhumêxito nas “Sader Cities” do mundo. O caso de Falluja (Iraque) ésintomático: depois que a destroçaram com tanques de guerra ebombas cluster, os mesmos insurgentes com os quais se quis acabara reocuparam quando acabou a ofensiva. Acredito que tanto a es-querda quanto a direita concordam que os subúrbios das cidades doterceiro mundo são o novo cenário geopolítico decisivo.

QUAL É A REPRESENTAÇÃO CULTURAL MAIS ADEQUADA PARA OS SUBÚRBIOS

DO TERCEIRO MUNDO QUE O SENHOR DESCREVE EM PLANETA FAVELA?

M.D. – Se o filme Blade Runner foi um dia o ícone do futurourbano, o Blade runner dos subúrbios é Black hawk down (2).

Reconheço que não posso deixar de vê-lo: sua entrada em cena esua coreografia são incríveis. O filme representa com perfeiçãoesta nova fronteira da civilização: a “missão do homem branco”nos subúrbios do terceiro mundo e seus exércitos ameaçadores

Tanto a esquerda

quanto a direita

concordam que os

subúrbios das cidades

do terceiro mundo

são o novo cenário

geopolítico decisivo.

com aspecto de videogame, enfren-tando-se com heróicos tecnoguerrei-ros e com os cavaleiros da Força Del-ta. É claro que, do ponto de vista mo-ral, é um filme aterrador: é como umvideogame no qual é impossível con-tar todos os somalis que morrem.

Além disso, a realidade é que os bran-cos não são maioria entre os cavalei-ros deslocados para o estrangeiro:são americanos, sim, mas quase to-dos eles são também procedentesdos subúrbios. O novo imperialismo,como o velho, tem essa vantagem: ametrópole é tão violenta e aloja tantapobreza concentrada que produz ex-celentes guerreiros para este tipo decampanha militar.

Um professor que tive escreveu umlivro magnífico que mostrava, contratodo prognóstico, que nas vitórias nascampanhas militares do Império Britâ-nico o fator decisivo não era a tecno-logia armamentista, mas a habilidadedos soldados britânicos no corpo-a-corpo com a baioneta, uma habilidadeque era conseqüência direta da bruta-lidade da vida cotidiana nos bairrosbaixos ingleses.

PARA ALÉM DO GIRO EM TORNO DA VIO-

LÊNCIA E DA INSURGÊNCIA, ESTÁ SURGIN-

DO ALGUM SISTEMA DE AUTOGOVERNO NOS SUBÚRBIOS?

M.D. – A organização nos subúrbios é extraordinariamente diversa.Em uma mesma cidade latino-americana, por exemplo, existem desdeigrejas pentecostais, até Sendero Luminoso, passando por organiza-ções reformistas e ONGs neoliberais. A popularidade de uns e outroscoletivos varia muito rapidamente e é muito difícil encontrar umatendência geral. O que está claro é que na última década os pobres –e refiro-me não apenas aos dos bairros urbanos clássicos que jámostravam níveis altos de organização, mas também aos novos po-bres das periferias – têm se organizado em grande escala, seja emuma cidade iraquiana como Sader City ou em Buenos Aires.

Os movimentos sociais organizados colocaram sobre a mesa rei-vindicações de participação política e econômica sem preceden-tes, que impulsionaram um avanço na democracia formal. Semdúvida, em geral os votos têm pouca relevância: os sistemas fis-cais do terceiro mundo são, com raras exceções, tão regressivose corruptos, e dispõem de tão poucos recursos, que é quaseimpossível colocar em marcha uma redistribuição real.

Ademais, inclusive naquelas cidades em que existe maior grau departicipação nas eleições, o poder real é transferido para agênci-as executivas, autoridades industriais e entidades de desenvolvi-mento de todo tipo, sobre as quais os cidadãos não têm nenhumcontrole, e que tendem a ser meros veículos locais dos investi-

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(1) Planeta Favela, Boitempo Editorial, posfácio de Erminia Maricato,2006, 272 pp.)(2) Black hawk down (Falcão negro em perigo) é um filme dirigido porRidley Scott em 2001, que retrata uma força de elite americana enviadapara capturar militares locais durante a guerra civil da Somália (1993).

Mike Davis é prof. no Dpto. de História da Univ. da Califórnia, em Irvine,

mentos do BancoMundial. A via demo-crática em direção aocontrole das cidades –e, sobretudo, dos recur-sos necessários pararealizar as reformas ur-banas – segue sendoincrivelmente difícil.

Em quase todos os pro-gramas governamentaisou estatais que procu-ram abordar a pobrezaurbana, o subúrbio po-bre é compreendidocomo um simples sub-produto da superpopu-lação. Não tenho nenhu-ma confiança no concei-to de superpopulação. Aquestão fundamentalnão é se a população temaumentado muito, mascomo fechar a equaçãode ter, por um lado, a jus-tiça social e o direito aum nível de vida decen-te e, por outro lado, a sustentabilidade ambiental. Não há pessoasdemais no mundo, o que existe é, obviamente, um consumo excessi-vo de recursos não renováveis.

Claro que a solução deve passar pela própria cidade: as cidades verda-deiramente urbanas são os sistemas mais eficientes, ambientalmentefalando, que criamos para a vida em comum. Oferecem altos níveis devida por meio do espaço e do luxo públicos, ou permitem satisfazernecessidades que o modelo de consumo privado suburbano não podepermitir-se. O problema básico da urbanização mundial atual é que nãotem nada a ver com o urbanismo clássico. O autêntico desafio é conse-guir que a cidade seja melhor como cidade. Planeta favela dá razão aossociólogos que assinalaram nos anos 50 e 60 os problemas da subur-banização norte-americana: ocupação caótica do território, incrementodos tempos de deslocamento do domicílio ao trabalho e dos recursosassociados a esse deslocamento, deterioração da qualidade do ar efalta de equipamentos urbanos clássicos.

MAS NÃO EXISTEM CIDADES EXCESSIVAMENTE POVOADAS PARA UM EN-

TORNO ESCASSO EM RECURSOS, NO QUAL ESTÃO IMPLANTADAS?

MD - A inviabilidade de uma megacidade tem menos a ver com onúmero de pessoas que vivem nela do que com seu modo de con-sumir: se são reutilizados e reciclados os recursos e se compartilhao espaço público, então é viável. Tem que se levar em conta que apegada ecológica varia muitíssimo segundo os grupos sociais. NaCalifórnia, por exemplo, a ala direita dos movimentos conservacio-nistas sustenta que há uma enorme onda de imigrantes mexicanosque é responsável pelos congestionamentos e pela poluição, oque é completamente absurdo: não existe população com menorpegada ecológica ou que tenda a utilizar o espaço público de formamais intensa que os imigrantes da América Latina. O verdadeiro

problema são os brancos quepasseiam em seus carrinhosde golfe pelos cento e dezcampos que existem em Coa-chella Valley. Em outras pala-vras, um homem da minha ida-de, ocioso, pode estar usan-do dez, vinte ou trinta vezesmais recursos que uma chica-na que tenta seguir adiantecom sua família num aparta-mento do centro da cidade.

Não se pode deixar levar pelopânico do crescimento da po-pulação ou da chegada dosimigrantes; o que se deve fa-zer é pensar como se podemfomentar as atitudes do urba-nismo para conseguir, porexemplo, que subúrbios comoos de Los Angeles funcionemcomo uma cidade no sentidoclássico. Também se deve res-peitar a necessidade absolutade conservar as zonas verdese as reservas ambientais semas quais as cidades não po-

dem funcionar. A tendência atual em todo o mundo é que os pobresbusquem acomodação em zonas úmidas (de mananciais) de impor-tância vital, que se instalem em espaços abertos cruciais para ometabolismo da cidade. Aí está o exemplo de Bombaim, onde osmais pobres assentaram-se em um Parque Nacional adjacente eque, de vez em quando, são comidos pelos leopardos, ou de SãoPaulo, onde se empregam enormes quantidades de substânciasquímicas para purificar a água para se livrar de uma batalha perdidacontra a poluição na cabeceira de suas fontes de abastecimento.Se se permite esse tipo de crescimento, se são perdidas zonasverdes e os espaços abertos, os aqüíferos são bombeados atéesgotá-los e se são contaminados os rios, danifica-se fatalmente aecologia da cidade. ■

editor da New Left Review, ensaísta, jornalis-ta e autor de Ecologia do medo, Holocaustoscoloniais, e Cidade de quartzo: escavando ofuturo em Los Angeles. Suas publicações sãoreferências no meio acadêmico. Entrevista pu-blicada originalmente em BLDGblog (//bldgblog.blogspot.com) e na ComCiência(www.comciencia.br – tradução livre de Mar-ta Kanashiro da versão em espanhol publica-da pelo Instituto Argentino para o Desenvol-vimento Econômico - www.iade.org.ar

A grande questão atual é:como conciliar a justiça social

e o direito a um nível de vida decenteà sustentabilidade ambiental.

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Cidadania&MeioAmbiente 27

Segundo as últimas informações de quemestuda o aquecimento global, em termosde Brasil, o pior vai sobrar mesmo para oNordeste:■ A pluviosidade vai diminuir em 25%;■ O rio São Francisco perderá 26% de seuvolume de águas;■ A temperatura do Nordeste vai aumen-tar cinco graus. Por conseqüência, o fa-tor evaporação, que hoje é de três milíme-tros por cada milímetro de precipitação –chove do chão para as nuvens –, tende aaumentar substancialmente a cada graude aquecimento.■ E este vai enfraquecer os ventos no ser-tão, configurando uma queda do poten-cial eólico em 60%.

Ao perder água, o São Francisco ficarásem capacidade de gerar energia. Essabagatela estimada deve acontecer se nãose fizer verdadeira uma previsão pior, ade James E. Lovelock(1): o sertão nor-destino tornar-se uma área absoluta-mente inabitável, caso a concentraçãode CO

2 na atmosfera chegue a 500 ppm

(parte por milhão).

A única “promessa boa” que nos fazem éque a região será ainda mais propícia paraplantar cana. A tragédia nordestina de sé-culos – a devastação da Mata Atlântica,as concentrações de terra e de poder, as

por Roberto Malvezzi (Gogó)

Roberto Malvezzi (Gogó) é assessor da Co-missão Pastoral da Terra - CPT, colaboradore articulista do portal EcoDebate. Publicadoem www.ecodebate.com.br em 05/06/08.

(1) James Ephraim Lovelock é pesquisadorindependente e ambientalista que vive naCornualha (oeste da Inglaterra). A hipótesede Gaia foi sugerida por Lovelock, com basenos estudos de Lynn Margulis, para explicaro comportamento sistêmico do planeta Terra.A Terra é vista, nesta teoria, como umsuperorganismo.(2) Roberto Mangabeira Unger – É advogadoe, desde outubro de 2007, é Ministro Extraordi-nário de Assuntos Estratégicos do Brasil.(3) Chicó e João Grilo – personagens daobra “O Auto da Compadecida”, peça de tea-tro, em forma de auto, em três atos, escrita em1955 por Ariano Suassuna.

NORDESTE

conseqüentes exclusão e miséria da po-pulação litorânea – parece ter apenas umaúnica solução.

Claro que as possibilidades acima são ce-nários.... Nesses primeiros dias de junho,choveu 1.500 milímetros na região doCariri. Isso é pluviosidade de região tem-perada, não de semi-árido, que vai até 800milímetros por ano. Mas o planeta está emtranse, e prevenir cenários é a inteligênciamínima que se exige de dirigentes políti-cos. Nossa proposta e nossas lutas pelaconvivência com o semi-árido simples-mente estão com a corda no pescoço.

Para “melhorar a situação”, estão fazen-do a transposição do São Francisco, e aBahia promete irrigar 510 mil hectares decana no vale, consumindo 510 metros cú-bicos de água por segundo. Provavelmen-te a água virá da região amazônica, comoquer o Mangabeira Unger(2) ou o pessoalque clama pela transposição do Tocantinspara o São Francisco.

Ninguém olha para o diagnóstico huma-no feito pela ANA (Agência Nacional deÁguas) que nos promete crise generaliza-da de abastecimento em mais de 1300 mu-nicípios nordestinos se não forem feitas,até 2015, as obras necessárias para evitaro caos hídrico.

O orçamento da transposição está devi-damente calculado e em operacionalidade.Quanto às adutoras necessárias para sa-ciar a sede humana, sequer uma está pre-vista para ser iniciada.

Nenhuma novidade. Nem Ariano Suassu-na – com Chicó e João Grilo(3) dando gol-pe em pistoleiro e ainda protegidos porNossa Senhora – é tão surreal quanto apolítica brasileira nordestina!

Quanto ao Nordeste e seu povo, bem, pareceque vamos evaporar ao sol, num forró monu-mental animado por Lampião e seu bando.■

A Agência Nacional de Águas apontauma crise generalizada de abastecimento em mais de 1300 municípios nordestinosse não forem feitas, até 2015, as obras necessárias para evitar o caos hídrico.

TERMINAL

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Pesquisa realizada pela OMS e pelo UNICEF mostra que quase metade da populaçãomundial sofre com a falta de acesso a saneamento básico, e que 1,2 bilhão defecamao ar livre – a prática sanitária de maior risco –, embora cresça o número de pessoasque recebem água potável.

por OMS/UNICEF

O relatório Progress on Drinking Water andSanitation – Special Focus on Sanitation(Progressos sobre Água Potável e Sanea-mento – Enfoque Especial no Saneamento),do Programa Conjunto OMS/UNICEF deMonitoramento do Abastecimento de Águae Saneamento, divulgado em junho último,avalia – pela primeira vez – os progressosglobais, regionais e nacionais em relação aouso de um inovador conceito escada. Esseconceito revela práticas de saneamento commaior detalhe, permitindo aos especialistasrealçar as tendências no uso de instalações

SANEAMENTOSEM

sanitárias melhoradas, partilhadas e não-melhoradas, e a tendência quanto à práticada defecação ao ar livre.

De maneira similar, quando aplicado à águapotável, esse conceito revela a porcenta-gem da população mundial que utiliza águacanalizada para uma habitação, terreno ouquintal; outras fontes melhoradas de água,tais como as bombas manuais; e fontes nãomelhoradas. Globalmente, o número depessoas que não têm acesso a uma fontemelhorada de água potável² desceu abaixo

de um bilhão desde a primeira coleta dedados em 1990. Atualmente, 87% da popu-lação mundial têm acesso a fontes melho-radas de água potável, e, se forem manti-das as tendências atuais, até 2015, essaproporção vai superar os 90%.

O número de pessoas que, em todo o mundo,praticam a defecação ao ar livre diminuiu de24% ,em 1990, para 18%, em 2006. O relatóriosublinha também as disparidades dentro dasfronteiras nacionais, especialmente entre osmoradores do campo e os da cidade. No mun-

2,5BILHÕES

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NÚMERO DE VASOS SANITÁRIOS NECESSÁRIOS PARA ATINGIR A META DE SANEAMENTO EM 2015

A FIM DE REDUZIR À METADE A PROPORÇÃO DE PESSOAS SEM ACESSO SUSTENTÁVEL AO SANITARISMO

Nº DE INSTALAÇÕESPOR 1000 DOMICÍLIOS

INSTALAÇÕES SANITÁRIASA CONSTRUIR ATÉ 2015

MENOS DE 100

100 - 200

200 - 300

MAIS DE 300

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NOTAS

1 – Saneamento melhorado refere-se a qualquerinstalação sanitária que, de maneira higiênica,separe os dejetos humanos do meio ambiente.2 – Fontes melhoradas de água potável signi-fica que a fonte de água potável está protegidada contaminação fecal e química.

Programa Conjunto OMS/UNICEF deMonitoramento do Abastecimento de Água eSaneamento – Publicado pelo Boletim Diárionº 278 ONU-Brasil. Para mais informações:Kate Donovan, UNICEF Mídia, Nova Iorque

CRIANÇAS: AS MAIORES VÍTIMAS DA FALTADE SANEAMENTO NO BRASIL

A relação direta entre acesso ao saneamento e saúde das populações é uma dasconclusões da pesquisa Saneamento e Saúde divulgada em maio último pela Fun-dação Getúlio Vargas (FGV). O estudo revela que crianças até seis anos de idade semacesso à rede de esgoto têm 32% de chances maiores de morrer.

■ Apenas 46,77% da população brasileira têm acesso ao esgotamento sanitário.

■ A taxa de mortalidade de crianças de um a seis anos, de 1995 a 1999, era de3,75% entre a população que não possuía acesso à rede de esgoto, e de 2,35%,entre a população que possuía. Entre 2001 e 2006, os números são 2,89% e 2,25%,respectivamente.

■ Um agravante para essa situação: a taxa de redução da pobreza avança quatrovezes mais rápido do que o acesso ao saneamento. Nesse ritmo, seriam necessáriosmais 56 anos para atingir-se a Meta do Milênio (reduzir pela metade o déficit dosaneamento). Há 14 anos, o esgotamento sanitário brindava apenas 36,02% dapopulação, cujo crescimento no mesmo período foi de 10%.

■ O dado sobre o saneamento leva em consideração apenas os domicílios em que oesgoto é coletado por redes, descartando aqueles que possuem fossas sépticas –solução que o Ministério das Cidades considera adequada para o destino dosdejetos, elevando o percentual brasileiro de coleta para quase 90%.

Todos os dados e os cruzamentos da pesquisa são baseados na última PesquisaNacional por Amostra de Domicílios (Pnad) e estão disponíveis no site www3.fgv.br/ibrecps/trata_fase2/index.htm

Fonte: Trata Brasil – Saneamento, Educação, Trabalho e Turismo. Da Agência Brasil. Publi-cado no Portal Ecodebate em 21/05/08.

do, há quatro vezes mais pessoas que vivemem áreas rurais – aproximadamente 746 mi-lhões – sem acesso a fontes de água melhora-das, se comparadas com os cerca de 137 mi-lhões de moradores urbanos.

O saneamento deficiente ameaça a sobrevi-vência das crianças dado que um ambientecontaminado por resíduos fecais está direta-mente ligado às doenças diarréicas, uma dasprincipais causas de morte de crianças me-nores de 5 anos. É muito difícil garantir umambiente limpo quando a defecação ao arlivre é praticada, mesmo que seja só por umapequena parte da população.

“Se as tendências atuais se mantiverem, omundo ficará aquém da meta do saneamen-to dos Objetivos de Desenvolvimento doMilênio para mais de 700 milhões de pesso-as. Sem melhoramentos profundos, os pre-juízos serão enormes”, adverte Ann M.Veneman, diretora executiva da UNICEF.

Não obstante as estatísticas alarmantes, cadavez mais pessoas usam instalações sanitáriasmelhoradas – aquelas que garantem a elimi-nação dos excrementos de modo a impedirque provoquem doenças por meio da conta-minação dos alimentos e das fontes de água.Embora a defecação ao ar livre esteja em declí-nio globalmente, 18% da população mundial,totalizando 1,2 bilhão de pessoas, continua apraticá-la. No sul da Ásia, cerca de 778 mi-lhões de pessoas continuam com essa práti-ca sanitária tão arriscada.

“Atualmente já se dispõe de variadas op-ções técnicas de baixo-custo para propor-cionar saneamento em quase todas as cir-cunstâncias”, explica a Dra. MargaretChan, diretora-geral da OMS (Organiza-ção Mundial da Saúde). “Cada vez maisgovernos estão decididos a levar água esaneamento às suas populações mais ca-rentes. Se quisermos romper o ciclo dapobreza, e colher os múltiplos benefíciospara a saúde, temos de enfrentar a ques-tão da água e do saneamento.”

Melhorias reais no acesso à água potávelocorreram em muitos países do sul da África.Segundo o relatório, sete dos 10 países querealizaram progressos mais rápidos e estão acaminho de cumprir o Objetivo de Desenvol-vimento do Milênio relativo à água potávelestão na África Sub-saariana (Burquina Faso,Namíbia, Gana, Malaui, Uganda, Mali, Djibuti).Dos 10 países que ainda não estão a caminhode cumprir a meta do saneamento, mas estãofazendo progressos rápidos, cinco situam-sena África Sub-saariana (Benin, Camarões,Comoros, Mali e Zâmbia). ■

Rua da Estrutural, a 10 quilômetros do centro de Brasília. Bairro popular não temcoleta de esgoto. Foto: Valter Campanato/ABr

Gráfico por Hugo Ahlenius – “Toilets neededto meet the MDG sanitation target by 2015.”UNEP/GRID-Arendal Maps and GraphicsLibrary. 2005. UNEP/GRID-Arendal.<http://maps.grida.no/go/graphic_toilets_needed_to_meet_the_mdg_sanitation_target_by_2015>

– Tel.: (212) 326 7452E-mail: [email protected] no Portal EcoDebate, 18/07/2008.

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O movimento ambientalista evitadizer a verdade sobre o aqueci-mento global e as mudanças cli-

máticas, temendo que isto incentive umaatitude de inércia, em relação às mudan-ças necessárias.

Pessoalmente discordo desta “estratégia” decomunicação, nem que seja porque o pro-cesso de aquecimento global já está em umaespiral crescente e as mudanças climáticas jácausam severos impactos em todo o planeta.Aproximamos-nos de uma crise quase apo-calíptica, que deve ser enfrentada sem meiaspalavras. Precisamos de um debate honesto,franco e com argumentos às claras. Fugir doassunto aquecimento global pode ser fácil ecômodo, mas também é suicida.

O jornalista e militante ambientalistaGeorge Monbiot acertadamente defineque a luta contra o aquecimento global éuma luta contra nós mesmos. É exatamen-te esta batalha que estamos perdendo.

Sofreremos as terríveis conseqüências doaquecimento global, porque não somos ca-pazes de reconhecer que nosso padrão deconsumo é insustentável e não temos co-ragem de assumir que nosso modelo de de-senvolvimento é predatório e injusto. Quan-to mais protelamos as decisões, mais agra-vamos o desastre que se anuncia.

A frota mundial de veículos ultrapassa 800milhões de unidades, crescendo mais de 30milhões ao ano. Esta é uma crescente criseambiental tida como consenso, mas um con-senso oco porque ninguém está disposto aabrir mão de seu fetiche automotor. O barrilde petróleo caminha para a marca de US$200e nem assim pensamos em reduzir a deman-da. Ao contrário, consumimos automóveiscada vez maiores, com maior consumo decombustível e maior emissão de gases.

A produção de alimentos é muito superiorao necessário para alimentar o planeta, masa especulação e nosso desperdício (em mé-dia uma família brasileira desperdiça 0,5kg/dia) exigem produção crescente, fazendocom que a fronteira agropecuária avancesobre as florestas. A exigência de maior pro-dutividade impõe cada vez mais agroquími-cos, que envenenam o solo, os mananciaise nos envenenam lentamente todos os dias.

Ninguém está disposto a reduzir a deman-da crescente de energia elétrica, mesmo queisto signifique mais barragens, mais terme-létricas a carvão, gás ou nuclear, represan-do ou vaporizando volumes imensos de re-cursos hídricos... cada vez mais escassos.Todos concordam com este “sacrifício”,desde que ele seja no quintal do vizinho.

Nosso delírio consumista já consome oequivalente a 1,4 planeta a mais do quetemos. E ninguém está disposto a reduziro padrão de consumo.

E não adianta fugir do assunto porque,cedo ou tarde, enfrentaremos as conse-qüências de nossa hipocrisia. Ou, paraser mais exato, nossos netos enfrentarãoas conseqüências de viver em um plane-tinha horrível.

Se optamos por nada mudar, por que es-peramos que o G-8 faça diferente? Por queBrasil, China e Índia abririam mão de seu“direito” de emissão, se pensamos o mes-mo e exigimos o mesmo direito pessoal deconsumir irresponsavelmente. Todos osgovernos decidiram nada decidir, porqueé o mesmo que todas as pessoas, hipocri-sias à parte, também decidiram.

Por outro lado, dentre a população e oslíderes do G-8 há os que acreditam nasvantagens do aquecimento global, a par-

tir de 2050. Sabem que enfrentarão conse-qüências graves, com furacões, tornados,ciclones, tempestades de neve, chuvas tor-renciais, inundações, etc., mas acreditamque podem arcar com estes custos e aindalucrar com isto.

As fronteiras agrícolas do hemisfério nortese expandirão, com novas áreas agricultá-veis no norte do Canadá, nas estepes siberi-anas ou na Escandinávia. No pobre, feio esujo hemisfério sul acontecerá exatamente ocontrário. Mais de ¼ do planeta estará de-sertificado ou em rápida desertificação, con-denando mais de 1,5 bilhão de pessoas àinsegurança alimentar e à fome.

Será uma tragédia humanitária em escalaglobal, mas que interessa à geopolítica doG-8, que poderá controlar a maior parte daprodução de alimentos, devidamente pro-tegida por um aparato militar inquestioná-vel, o que, facilmente, deixará a maior par-te dos países pobres de joelhos. Há, ain-da, quem veja um efeito “higienizador”nesta crise humanitária que condenará àmorte os pobres, os velhos e os indeseja-dos do terceiro mundo.

Ainda não é um cenário apocalíptico, masquase. Antes que pensem que estou exa-gerando, avaliem um pouco mais e olhem àsua volta. Mas, acima de tudo, acreditemque perdemos a batalha contra o aqueci-mento, mas ainda podemos vencer a guerracontra as suas piores conseqüências.

Precisamos vencer a luta contra nós mes-mos ou muito perderemos. Muito mais doque apenas o nosso perdulário padrão deconsumo. ■

por Henrique Cortez

Precisamos vencer a luta contra nós mesmos

ou muito perderemos. Muito mais do que apenas

o nosso perdulário padrão de consumo.

Henrique Cortez – Coordenador do portalEcoDebate. Publicada em12/07/2008.E-mail: [email protected]

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?AQUECIMENTO GLOBAL

A BATALHA JÁ ESTÁ PERDIDA

foto:Roberto Rizzato

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www.vale.com

Prêmio Brasileiro Imortal.

Valorizando quem se dedica

ao meio ambiente.

A Vale investe em tecnologia para a disseminação de mudas das espécies nativas onde atua, e também na recuperação

e conservação ambiental dessas regiões. A Vale busca constantemente formas de valorizar pessoas que, assim como ela,

trabalham pelo meio ambiente. Por isso, criou o Prêmio Brasileiro Imortal, que irá homenagear brasileiros por projetos, ações

e seu compromisso socioambiental. Os 6 vencedores serão escolhidos por voto popular e poderão ter seu nome associado

a novas espécies botânicas, descobertas no projeto de avaliação da biodiversidade da Mata Atlântica, por pesquisadores

brasileiros, na Reserva Natural da Vale em Linhares – ES. Acesse www.brasileiroimortal.com.br e conheça os indicadose seus trabalhos, e vote. Você pode concorrer a uma viagem ecológica para conhecer uma de nossas reservas naturais.Sim, é possível transformar recursos minerais em riqueza, desenvolvimento sustentável e reconhecimento.

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