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Revista Latino-Americana de História Vol. 2, nº. 7 – Setembro de 2013 – Edição Especial © by PPGH-UNISINOS Página 54 Rastros memoriais de paisagens urbanas: a identidade em palimpsesto da Cidade de Quebec/Canadá Nádia Maria Weber Santos * Resumo: O presente artigo apresenta algumas reflexões sobre uma experiência de pesquisa na cidade de Quebec, que incluiu não somente pesquisa bibliográfica e de arquivo, mas, sobretudo, a flânerie pelas ruas da cidade, quando então percebi que a memória e seus rastros fazem parte de uma paisagem urbana e, assim, da (re)construção de uma identidade da urbe. Palavras-chave: Paisagem urbana; Memória; Patrimônio Cultural; Identidade urbana; Quebec. Abstract: This article presents some reflections about a research period in Quebec, which includes not only bibliographic and archives review but also a "flânerie" through the streets of the city, when I realised that memory and its trails belong to an urban landscape and thus to a (re)construction of an "urbe" identity. Keywords: Urban Landscape; Memory; Cultural Heritage; Urban Identity; Quebec. “Paisagem – é nisto que a cidade verdadeiramente se transforma para o flâneur. Ou mais precisamente: para ele, a cidade cinde-se em seus polos dialéticos. Abre-se para ele como paisagem e fecha-se em torno dele como quarto.” (BENJAMIN, Passagens, p. 462) A paisagem urbana carrega consigo traços e rastros de memória, que se mostram tanto para seu habitante como para os viajantes. Neste texto apresento algumas reflexões sobre uma experiência de pesquisa na cidade de Quebec, que incluiu não somente pesquisa bibliográfica e de arquivo, mas, sobretudo, a flânerie pelas ruas da cidade, quando então percebi que a memória e seus rastros fazem parte de uma paisagem urbana e, assim, da (re)construção de uma identidade da urbe. Ou seja, é * Doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora do Mestrado em Memória Social e Bens Culturais do Centro Universitário La Salle (UNILASALLE). Contato: [email protected] .

Cidade de Quebec/Canadá - dialnet.unirioja.es · do flâneur– que caminha pela cidade, observando-a, até a exaustão: “como um animal ascético, [o flanêur ] vagueia por bairros

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Rastros memoriais de paisagens urbanas: a identidade em palimpsesto da

Cidade de Quebec/Canadá

Nádia Maria Weber Santos* Resumo: O presente artigo apresenta algumas reflexões sobre uma experiência de pesquisa na

cidade de Quebec, que incluiu não somente pesquisa bibliográfica e de arquivo, mas,

sobretudo, a flânerie pelas ruas da cidade, quando então percebi que a memória e seus rastros

fazem parte de uma paisagem urbana e, assim, da (re)construção de uma identidade da urbe.

Palavras-chave: Paisagem urbana; Memória; Patrimônio Cultural; Identidade urbana;

Quebec.

Abstract: This article presents some reflections about a research period in Quebec, which

includes not only bibliographic and archives review but also a "flânerie" through the streets of

the city, when I realised that memory and its trails belong to an urban landscape and thus to a

(re)construction of an "urbe" identity.

Keywords: Urban Landscape; Memory; Cultural Heritage; Urban Identity; Quebec.

“Paisagem – é nisto que a cidade verdadeiramente se transforma para o

flâneur. Ou mais precisamente: para ele, a cidade cinde-se em seus polos dialéticos. Abre-se para ele como paisagem e fecha-se em torno dele como

quarto.” (BENJAMIN, Passagens, p. 462)

A paisagem urbana carrega consigo traços e rastros de memória, que se mostram tanto

para seu habitante como para os viajantes.

Neste texto apresento algumas reflexões sobre uma experiência de pesquisa na cidade

de Quebec, que incluiu não somente pesquisa bibliográfica e de arquivo, mas, sobretudo, a

flânerie pelas ruas da cidade, quando então percebi que a memória e seus rastros fazem parte

de uma paisagem urbana e, assim, da (re)construção de uma identidade da urbe. Ou seja, é

* Doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora do Mestrado em Memória Social e Bens Culturais do Centro Universitário La Salle (UNILASALLE). Contato: [email protected].

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possível pensar o processo de identidade urbana a partir da memória de suas paisagens. Para

mim, o Canadá era completamente desconhecido. E foi com a atitude de um flâneur, para

quem a cidade é tudo – sua casa, sua paisagem –, que me dispus a conhecê-lo – e, pela

primeira vez, através da cidade de Quebec. “A rua conduz o flâneur em direção a um tempo

que desapareceu” (BENJAMIN, 2006, p.461).

Os dados apresentados aqui são, portanto,o resultado de uma pesquisa que teve seu

início em um estágio na cidade de Quebec, na UniversitéLaval, em 2012, para estudar

paisagens urbanas e patrimônio cultural1.Ao entrar em contato com alguns pesquisadores

canadenses contemporâneos e suas obras (alguns elencados nas referências ao final) e ao

flanar pela cidade procurando pistas que me levassem ao meu objetivo, pude compreender o

quanto a identidade da cidade se mescla com sua memória e com sua história.

De colonização inicialmente francesa2, sua parte antiga (Vieux Québec) guarda muitos

traços desta época colonial, nos prédios do século XVIII, nas ruas estreitas de pedras

arredondadas e no próprio relevo da cidade, tanto quanto as memórias das disputas pelo

território entre ingleses e franceses. Em termos de espaço urbano, o Vieux Québec pode ser

dividido em três partes: a cidade baixa (Basse-Ville) e a cidade alta (Haute-Ville), ambas

dentro das muralhas que a cercam; e a Grand Allée, por fora dos muros e que se estende pelo

Parque dos Campos de Batalha (ParcduChamps-de-Bataille)3. Mas também a cidade se

1 O estágio de um mês foi financiado pelo CIEC (ConseilInternational d´étudescanadiennes), através da Bolsa BCS (Bourse de Complément de Spécialisation), e teve o apoio do Unilasalle/Canoas. 2 A cidade de Quebec (ville de Québec, em francês) é o centro do Canadá francês, cuja região mais ampla (província) também se chama Quebec. Ela se situa na encosta do CapDiamant e fica na beira do grande e caudaloso Rio São Lourenço (Saint Laurent). Ela é a sede da província, abriga seu governo e a parte antiga da cidade (Vieux Québec) foi declarada Patrimônio da Humanidade pela UNESCO em 1985. É uma das cidades mais antigas do continente, fortificada e cercada de muralhas: era uma aldeia de iroqueses (povos autóctones nativos do Canadá e do norte da América do Norte – ameríndios, fazendo parte do que chamam de “Primeiras Nações”), descoberta pelo navegador francês (natural de Saint Malo) Jacques Cartier em 1535 e tornada cidade em 1608, pelo também francês, navegador e soldado, Samuel de Champlain, que aí estabeleceu um posto de transporte e troca de peles. Em 1612 Champlain se tornou o primeiro chefe de governo no Canadá, possibilitando o estabelecimento da religião católica no país e a disputa com os ingleses, que haviam chegado antes ao norte do hemisfério. Este e outros franceses estabeleceram povoados duradouros, criando o que denominaram de Nouvelle France (Nova França). Quebec foi cercada pelos ingleses em 1759-63, na famosa Batalha nas Planícies de Abraão (Plaines d´Abraham) e assim a Nova França ficou sujeita à coroa da Inglaterra. Mas em 1774, o governo inglês aprovou a Lei do Quebec, concedendo liberdade de religião e idioma aos franco-canadenses e reconheceu oficialmente a lei de direitos civis francesa. As tensões anglo-francesas foram exacerbadas pelas disputas religiosas (franceses católicos x ingleses protestantes), ficando a colônia de Quebec, em 1791, dividida em Alto Canadá (hoje Ontário, predomínio inglês) e Baixo Canadá (hoje Quebec, predomínio francês). Em relação à cidade de Quebec, enquanto as instituições religiosas e políticas se instalavam dentro das fortificações, os comerciantes e artesãos se instalavam às margens do rio.(Fonte: exposição no Musée de l´AmériqueFrançaise, outubro de 2012) 3 No limite entre a cidade murada e os campos de Batalha, estão as fortificações, construídas até o final de 1760 pelos ingleses, que a protegeram durante as batalhas, e, desde a década de 1860 aos dias de hoje, transformaram-se em atrações populares e turísticas. A Citadelle abriga o regimento franco-canadense e é um quartel militar

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modernizou, incluindo em seu espaço urbano elementos contemporâneos,sejam permanentes

ou efêmeros, concretos ou virtuais, fixos ou móveis (como os itinerários culturais e/ou

turísticos). O presente artigo intenta dar conta de uma parte das observações realizadas na

pesquisa, apontandorastros memoriais como focos identitários de Quebec em relação à

paisagem urbana realçada nas ruas, nos prédios, nos itinerários culturais, nos postais, na

literatura, “re-compondo” imagensde outrora na cidade de hoje, mas também a partir da ação

do flâneur– que caminha pela cidade, observando-a, até a exaustão: “como um animal

ascético, [o flanêur] vagueia por bairros desconhecidos até desmaiar de exaustão em seu

quarto, que o recebe estranho e frio” (BENJAMIN, 2006, p. 462).

Tentou-se responder às seguintes questões norteadoras da pesquisa, porém nem todas

serão evidenciadas no escopo deste artigo: O que se apresenta hoje como paisagem

urbana?;qual a relação entre paisagem urbana e identidade, no contexto da memória e do

patrimônio cultural?; qual o papel dos indivíduos enquanto cidadãos ao construírem o

imaginário social e simbólico nos laços culturais que os interligam?; quais são as relações

entre urbanização, patrimonialização, cultura e sociedade midiática que ‘modelam’ as

identidades urbanas dos cidadãos de hoje?; como os seres humanos contemporâneos podem

viver em suas alteridades e ao mesmo tempo sobreviverem nos espaços públicos que, por

vezes, ‘esmagam’ suas individualidades enquanto cidadãos; no início deste século XXI, como

os estudos sobre patrimônio cultural e seus jogos simbólicos podem colaborar (no sentido de

refletir sobre ou de talvez os resolver) com a problemática da identidade urbana dos

indivíduos submetidos a todo tipo de intervenções midiáticas? – dito de outro modo, quais são

os jogos de poder que existem (ou podem existir) no seio da sociedade de mídias e que

interferem em suas capacidades (como cidaddãos) de formar identidades culturais a partir de

suas memórias e do patrimônio cultural?

ativo nos dias de hoje; teve o início de sua construção feita pelos franceses em 1750 e sua conclusão em 1831 pelos ingleses. Estas fortificações em seu conjunto representam hoje para a cidade um espaço onde a paisagem urbana pode ser percebida de forma pungente em relação à memória das lutas ocorridas por disputa territorial, memória esta, como será exposta no texto, em forma de palimpsesto, ou seja, onde várias “camadas” de rastros memoriais são percebidas, seja pelo terreno em si, seja pela patrimonialização do local, seja pela oralidade das histórias contadas pelos guias de itinerários culturais turísticos que ali encontram interlocutores. Os Campos de Batalha, as “Plaines d´Abraham” (Planícies de Abraham), como o local era denominado no passado e onde aconteceu a grande batalha de 1759 em que os ingleses derrotaram os franceses, constituem 103 hectares que, em 1908, foram transformados em um dos maiores parques urbanos da América do Norte. Hoje, com planícies em relevo, vales floridos, gramados espetaculares, arborizados e completamente nevados no rigoroso inverno canadense, o espaço é aproveitado tanto pelos cidadãos moradores quanto pelos turistas, que, de forma sazonal (piqueniques e caminhadas no verão, trenós de neve e esquis no inverno ou em rotas culturais programadas em datas comemorativas) aproveitam o espaço.

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Tentando percorrer um certo itinerário imaginário – para fins de apresentação de

minha ideias –,fruto de um processo de flânerie física e mental, de fora para dentro das

muralhas de Québec e da cidade alta para a cidade baixa do Vieux Quebec, exponho

algumasreflexões, com as imagens correspondentes, daquilo que estou chamando de

“memória palimpsêstica” da cidade ou os rastros memoriais na paisagem urbana.

Nelson Brissac Peixoto(2009, p.13), em sua obra já consagrada“Paisagens urbanas”

(reeditada em 2009), revela que as cidades são as paisagens contemporâneas e que as

paisagens urbanas podem ser melhor sintetizadas através de um caleidoscópio de imagens em

suportes diversos: “o olhar hoje é um embate com uma superfície que não se deixa

perpassar”.Argumentando que existe a sobreposição de inúmeras camadas de materiais e

acúmulo de coisas que se recusam a partir, oskyline, a linha do horizonte, confunde-se com a

calçada; “olhar para cima equivale a voltar-se para o chão”. A assim, diz ele, a paisagem é um

muro.

Levando as palavras do autor para o sentido metafórico, é esta a impressão deixada

pela observação dasmuralhas de Quebec, indo das planícies de Abraham, pela Citadelle, para

o intra-muro, na Vieux Quebec.Da memória que surge das narrativas das batalhas travadas

nas Plaines d´Abraham (hoje os Campos de Batalha) ao percurso que se faz, caminhando

pelos relevos da planície num radioso dia de sol, a linha do horizonte se transforma a cada

passo, imaginário e concreto, revelando os contornos do espaço e o alcance da nossa

imaginação. As fotografias das imagens 1 a 5 revelam o que minha sensibilidade de

flanêurcaptou...

Imagens 1 e 2 – Plaines d´Abraham.

Fotografias de Nádia Maria Weber Santos. Setembro de 2012.

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Através das paisagens construídas e imaginárias podemos reconstruir a paisagem da

cidade, na nossa memória e na memória coletiva. No caso das imagens acima, a paisagem

natural cedeu espaço para a paisagem construída e assim a memória do que foi e é a cidade

mescla-se com a sua identidade social. Como caminhar pelas Planícies de Abraão, olhar as

fortificações, enxergar as placas explicativas, ver o museu da Citadelle, sem pensar nas lutas

travadas exatamente ali e que deixaram suas marcas?

Imagem 3 – Plaines d´Abraham.

Fotografia de Nádia MariaWeber Santos. Setembro de 2012.

Imagens 4 e 5 – Citadelle de Quebec e Saída da Citadelle.

Fotografias de Nádia Maria Weber Santos. Setembro de 2012.

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Desta forma, pode-se falar, também, na ‘personalidade de um lugar’. A memória

inscrita na forma urbana, gravada na gênese histórica e morfológica da paisagem, modela a

cidade, seus bairros, suas ruas, suas vistas e os mitos que a compõem hoje. Não se refere aqui,

portanto, à paisagem em si, mas à significação da paisagem, ou seja, a memória da paisagem

que ao mesmo tempo intenta retraçar (como pano de fundo das configurações físicas

existentes) as “ideias de cidade” que a modelaram e os “estados anteriores” que comandaram

o resultado das evoluções, das transformações e das metamorfoses observadas (MORISSET,

2001).

Entende-se, assim, por paisagem urbana, mais a representação e os vestígios

memoriais que a compõem do que a paisagem física em si. Ou seja, a paisagem da cidade

designa a imagem que se tem da cidade e não a cidade em si mesma. “Aquela embriaguez

anamnésica, na qual o flâneur vagueia pela cidade, não se nutre apenas daquilo que lhe passa

sensorialmente diante dos olhos, mas apodera-se frequentemente do simples saber, de dados

inertes, como de algo experienciadoe vivido” (BENJAMIN, 2006, p. 462).

APlaced´Youville (imagens 6 a 9), que é uma das “portas” da “cidade Alta” do Vieux

Québec e onde eu iniciei minha primeira flânerie, é ponto de encontro dos habitantes há

dezenas de anos, porém transformando-se ao longo do tempo. Era um mercadopúblico, Halle

Montcalm, ou MarchéMontcalm,fechado e a céu aberto, inaugurado em 1877, como mostra a

figura 6, no postal de 1907, com sua função social bem delimitada: compra e venda de peixes,

pães, frutas e produtos da terra,e encontros sociais.

Imagens 6 e 7 – Postal do Maché Montcalm em 19074 e Place d´Youville em 2012.

4 Quebec – hoje PlaceYouville; visualiza-se o Palácio Montcalm ao fundo.

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Archives Nationales du Québec, Québec/Canadá. Reprodução (à esquerda) do acervo da autora. Fotografia (à direita) de Nádia Maria Weber Santos. Outubro de 2012.

Hoje, este espaço urbano guarda traços desta memória; é onde se situam os pontos

iniciais de algumas linhas de ônibus que servem a cidade, contornado por restaurantes e cafés

muito frequentados pela população da cidade. O PalaisMontcalm, ao fundo na imagem7, foi

construído em 1932, substituindo o prédio do Mercado no mesmo local e tornando-se um

local de concertos e espetáculos. O prédio, em Art Déco, denominado inicialmente

MonumentNational, serviu para os concertos da Orquestra Sinfônica de Quebece, mais tarde,

para outras funções, além de sala de espetáculos: sede da biblioteca do Institutcanadien,

escritórios da Radio Canadá e, durante a Segunda Guerra Mundial, teve seu espaço cedido

para os serviços de guerra. Entre altos e baixos durante a segunda metade do século XX, e

uma decadência principalmenteapós a construção do Grand Téâtredu Québec, em 1970, o

Palais guarda sua função primordial até hoje, tendo sido anunciada sua modernização em

2002 a fim de ser transformado na Maison de Musique e em 2007 ganhando uma sala de

espetáculo com acústica quase perfeita.

Imagens 8 e 9 – Place d´Youville, pista de gelo.

Fotografias de Nádia Maria Weber Santos. Outubro de 2012.

Atualmente, na praça à sua frente, é onde é construída a pista de gelo (imagens 7 a 9),

comemorando a proximidade do inverno e onde a população se encontra (e não os turistas)

para patinar. Ou então, já na primavera, a pista de gelo dá lugar, na praça, a um mercado de

flores e comidas, a céu aberto, rememorando o antigo Mercado do século XIX. A todo o

momento que se passa por ali (para pegar um ônibus, por exemplo) se escuta música. Temos,

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assim, uma identidade nesta paisagem urbana, realizada em suas camadas memoriais e

observada através dos rastros deixados pelo tempo nas marcas sensíveis dos bens culturais

que a partir dela surgiram.

Seguindo Morriset (2001, p.10), diz-se que a paisagem pode ser uma “quarta

dimensão” do espaço urbano, aquela da significação, do sentido, do simbólico, perpetuados

por uma memória que, em paralelo aos atributos físicos do lugar, constituem sua

“personalidade”, sua identidade. Assim, temos a paisagem dotada de memória, onde se presta

mais atenção aos traços abstratos, imaginários, que fazem parte da história da cidade e estão

(ou podem estar) inscritos no concreto e em muitas práticas sociais. Ou seja, estes vestígios

memoriais estão nos prédios preservados e/ou reconstruídos, na disposição da cidade –

grandes ladeiras, muralhas que dividem a cidade alta da cidade baixa no Vieux Québec – e

também surgem nos itinerários culturais e rotas turísticas, nos postais, nos guias da cidade, na

literatura e, não menos importante, na ocupação do espaço pela própria população que ali

vive. Em outras palavras, a cidade do passado é sempre pensada através do presente e do

nosso olhar do presente. A história da cidade deixa traços memoriais que são absorvidos pelas

camadas construídas no tempo – observação esta que nos faz pensar em uma identidade

urbana em palimpsesto. Paisagem, pois, dotada de memória.

Ao mesmo tempo, com frequência, a transformação da urbe é tão grande que apaga do

espaço materialidades e sociabilidades do passado (PESAVENTO, 2007). Porém, mesmo o

traço concreto apagado, deixa sua marca em outras fontes, como nas imagens fotográficas,

entre elas, o acervo de postais que existem nos Arquivos Nacionais do Quebec, cujas

reproduções são vendidas nos museus da cidade.

Traços memoriais e configurações concretas, pois, legitimam a cidade como espaço

identitário de transformação. Ou seja, a identidade também se transforma, ou ao menos

acompanha a transformação “palimpsêstica” da cidade. É, no fundo, um jogo dialético entre o

passado e a memória presente na paisagem atual.

Outro exemplo podemos ter ao pensar na PlaceRoyale e na Igreja Notre-Dame-des-

Victoires (imagens 10 a 13) e as transformações que aconteceram desde seu surgimento. No

postal de 1930 (imagem 10), a Igreja aparece em sua condição inicial, de quando foi

construída em 1688, sendo a igreja de pedra mais antiga da América do Norte. A praça,

verdadeiro microcosmo da história canadense, é a principal da “cidade baixa” do Vieux

Québec e tem um grande valor histórico. Em 1608, Samuel de Champlain, ao chegar pelo rio

Saint Laurent, instalou nela um posto fortificado e o espaço tornou-se um ponto de excelência

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para mercadores e comércio, na Nouvelle France, sendo considerado, assim, o mais antigo

assentamento francês na América. Frontenac, governador da Nouvelle France, instituiu nela

um Mercado, em 1673, que perdurou até 1880. Treze anos depois ela ganhou um busto do rei

sol, Luís XIV, e o nome de PlaceRoyale. O espaço foi modificado/reconstruído algumas

vezes, em função de destruições advindas de incêndios (por exemplo, em 1682), ou da batalha

de 1759 (o exército inglês do general Wolfe arrasou a praça). Porém, a estrutura se mantém,

com seu calçamento de pedras arredondadas, que é original, e os prédios que datam do início

do século XVIII. O espaço do busto foi modernizado e as ruas vizinhas foram jateadas com

areia para retornar ao que eram antes. Hoje, ela comporta muitos edifícios históricos,

turísticos e culturais.

Imagens 10 e 11–PlaceRoyale, Église Notre-Dame-des-Victoires, em imagens de 1930 e 2013.

Archives Nationales du Québec. Postal de 1930 (à esquerda).

Fotografia (à direita) de Nádia Maria Weber Santos. Maio de 2013.

Na tomada da foto de 2012, a igreja surge renovada na Praça Royale (imagem 11),

com o busto de Luis XIV ocupando um espaço modernizado no centro da praça (imagens 12 e

13), entornado por bancos, onde se pode sentar e apreciar a riqueza arquitetônica dos prédios

que compõem o seu entorno. Observa-se que os rastros da memória local, deixados na

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concretude das pedras, dos prédios e dos inúmeros detalhes culturais do entorno, dotam essa

paisagem urbana de um profundo significado simbólico e de uma identidade francesa, difícil

de ser encontrada em outro local da cidade e do Quebec.

Imagens 12 e 13 – Place Royale, Quebec/Canadá.

Fotografia(à esquerda) de Maria Olandina Machado. Maio de 2013. Acervo da autora.

Fotografia (à direita) de Nádia Maria Weber Santos. Outubro de 2012.

Imagem 14–FresquedesQuébécois.

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Fotografia de Nádia Maria Weber Santos. Setembro de 2012.

Mais ainda confirma esta posição o grande afresco de 420m², FresquedesQuébécois,

um trompe-l´oeilsituado ao lado da PlaceRoyale (imagem 14), pintado sobre a parede lateral

de um prédio. A obra coletiva de artistas franceses e canadenses, inaugurada em 1999, rende

homenagem aos principais personagens de sua história (dezesseis deles, entre os quais,

Jacques Cartier e Samuel de Champlain), tanto quanto a paisagens urbanas importantes da

cidade (a escadaria Casse-Cou, o ChateauFrontenac, os érables – árvores típicas que

produzem o açúcar canadense – coloridos do outono, as casas típicas da arquitetura colonial

francesa, etc). É possível ver, através deste trompe-l´oeil, o quanto a arte carrega consigo

estes traços memoriais nas interpretações que os artistas dão em suas obras.

Também é neste sentido que vão as reflexões de Pesavento (1995), quando refere que

a cidade oportuniza uma revelação no sentido Benjaminiano, ou seja, uma “inteligibilidade no

cruzamento do dado objetivo (a obra, o traço, o sinal) com o subjetivo (a leitura da

representação)” (PESAVENTO, 1995, p.281).

Considerando a cultura como uma rede de significados simbólicos e o fenômeno

urbano como um acúmulo de bens culturais, a cidade seria o espaço por excelência para a

construção destes significados, nos bens culturais, materiais e imateriais. De onde podemos

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perceber a urbe em sua dimensão sensível: a cidade sensível é uma cidade

imaginária,“construída pelo pensamento e que é responsável pela atribuição de sentidos e

significados ao espaço e ao tempo que se realizam na e por causa da cidade” (PESAVENTO,

2007, p.14-15).

A memória, por sua, vez, conceituada como uma “narrativa do sensível” (SANTOS,

2013), também se relaciona com uma leitura palimpsêstica da cidade. O trabalho da memória,

assim concebido, não é pura representação, pois asimagens da memória que se re-apresentam,

quase sem rupturas, à mente humana, constituem-se em narrativas simbólicas. E utiliza-se de

vários “suportes”, para se fazer presente, visível, sensível. Como diz Nora (1993, p.9), “a

memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto”.

Paul Ricoeur (2007, p.34), ao fazer suas digressões sobre os rastros indica a diferença

entre os três empregos da ideia indiscriminada de rastro: rastro inscrito em um suporte

material, impressão-afecção da “alma”, impressão corporal, cerebral, cortical. Mais adiante

em seu texto assume o beneficio da contribuição de C. Guinzburg ao “estabelecer uma

dialética do indício e do testemunho no interior da noção de rastro e de, assim, dar ao conceito

de documento toda a sua envergadura” (RICOEUR, 2007, p.185).Ora, os rastros memoriais

nem sempre estão aparentes. Como se viu, eles se apresentam ao espaço da urbe tanto por

vestígios concretos quanto simbólicos (imaginários), mas temos em ambos os casos, indícios

“documentais” da memória da paisagem: por exemplo, por súbitas imagens grafadas em

locais de passagem, como é o caso das imagens 15 a 17. ÉmileNelligan(1879-1941), um

dospoetas quebequense mais remarcáveis, surge, na paisagem urbana da cidade de

Quebec,observando o transeunte... Nascido em Montreal, ele viveu 42 anos de sua vida

enclausurado em hospícios, desde seus 19 anos de idade. Filho de imigrante irlandês com uma

canadense francesa, ele recebeu uma educação e uma cultura diferenciadas para a época. Cedo

pegou o gosto pela poesia e com 17 anos abandonou os estudos e se consagrou à literatura,

para o desgosto do pai.Seu primeiro poema data de 1897, Vieux Piano, e logo se tornou

membro daÉcoleLittéraire de Montréal. Entre 1896 e 1899 escreveu mais de duzentos

poemas, que depois se tornaram sua obra. Com a idade de 19 anos, numa atitude controvertida

e arbitrária, seu pai o internou em uma clínica psiquiátrica de Montreal e nesta condição de

louco e excluído ele permaneceu até o fim de sua vida. Mesmo assim, sua obra tornou-se

conhecida e foi retomada pelos círculos literários canadenses durante todo o século XX. Ele

continuava a escrever suas poesias dentro do hospício, fazendo o que chamou Carnets d´asile.

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Um deles, LesTristesses, de 1929, foi classificado como Bem Histórico do Québec em 2007 e

se encontra depositado em Bibliothèque et ArchivesNationales do Québec5.

Imagens 15 e 16 – Cartaz de rua e o seu detalhe.

Fotografias de Nádia Maria Weber Santos. Outubro de 2012.

História de fragmentos, de composição em mosaico ou ainda em palimpsesto:

paisagens são dotadas de memória que deixam seus traços e rastros sensíveis tanto na

materialidade e visualidade como nas produções (bens culturais) artísticas. A memória do

poeta está inscrita na epiderme da cidade. No meio da pesquisa citada na nota 5, ao flanar pela

cidade, deparando-me com estes cartazes e grafittis que se encontram em várias partes do

Vieux Quebec, surpreendo-me. Simplesmente surpreendo-me. Na memória, a vida de

Nelligan, recentemente pesquisada em arquivos, e que agora me observava pelas muralhas da

cidade velha... Sem conseguir até hoje saber do que se trata, apenas é legítimo pensar que os

vestígios da obra e da vida do poeta amargurado e louco traduzem-se na paisagem urbana sob

esta forma de tatuagem.

5 Durante minha pesquisa em Quebec, na UniversitéLaval, entrei em contato com os escritos deste poeta e seus escritos de hospício, nos arquivos de folclore e etnologia da UniversitéLaval. Esse material de Nelligan e sobre ele encontra-se depositado no Fundo Luc Lacourcière (imagem 18, como exemplo). Mais detalhes ver o artigo escrito por mim, intitulado L’activitécréatriceentre la folie etla littérature-mémoire : Lima Barreto et Emile Nelligan a ser publicado na revista Interfaces Brasil/Canadá, em dezembro de 2013.

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Imagens 17 e 18 – Pichação de rua6 e foto do caderno de poesias de ÉmileNelligan7

Fotografias de Nádia Maria Weber Santos. Outubro de 2012.

Armando Silva (2001, p.4) denomina de “tatuagens urbanas”, os registros visuais da

imagem, por exemplo, os grafittis, que subvertem uma ordem, expõem o que é proibido. Estes

registros visuais são construções de imagens urbanas que definem a cidade e “marcam a

cidade em sua epiderme” com tatuagens. Observou-se isto na imagem de Nelligan, grafitada

numa das muralhas da cidade e fotografada por mim, em uma das flâneries (imagem 17). A

memória do poeta que em sua época subverteu a poesia quebequense agora está gravada na

pele da cidade, também subvertendo o espaço sóbrio da muralha.

A paisagem urbana tem um sentido, portanto, de representação, de construção

simbólica, onde os traços são visíveis não só na materialidade dos espaços como nas

produções sensíveis, onde encontram suas expressões: poesias, cartões postais, itinerários

culturais, rotas turísticas e seus significados, exposições em museus, nos patrimônios

materiais e imateriais, nas fotografias dos turistas, nos traços grafados em pichações ou

grafittis, nas obras de arte...

Imagens 19 e 20 – Vista do ChateauFrontenac8 e o próprio ChateauFrontenac9

6 Em parte da muralha de divide a cidade alta e a cidade baixa do Vieux Québec. 7 Da Sociedade dos Poetas Canadenses Franceses, de 1966. Archives du Folklore et.... Fond Luc Lacourcière, Université Laval. 8 Com o rio e a Ponte de Quebec ao fundo. 9 Visto da “cidade baixa” do Vieux Québec.

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Fotografias de Nádia Maria Weber Santos. Outubro de 2012.

Não se pode deixar de mencionar, na paisagem quebequense, a presença do

ChateauFrontenac(imagens19 a 21)que, na borda do CapDiamant, ponto estratégico da colina

da Cidade Alta,se impõe a todo golpe do olhar, em qualquer um dos pontos cardeais, com seu

telhado de cobre verde. Por ser imponente, colorido, à beira de uma colina (muralha), divisor

entre as cidades alta e baixa, sua imagem é quase sempre presente na paisagem do Vieux

Québec. Inaugurado em 1893 e construído pela Canadian Pacific Railways, o Chateau

(castelo) tem a função de ser um hotel de luxo desde seu início, construído em cima do que

antes era sítio do governo canadense. O ChâteauFrontenac foi nomeado em honra ao Conde

de Frontenac, governador da Nova França em 1672-1682 e 1689-1698. Frequentado pelas

pessoas mais ricas do mundo (incluindo chefes de estado, artistas, etc.) domina o visual da

cidade e também um dos imaginários mais representativos da mesma: a sensação do

afrancesamento presente na história da colonização e que o quebequense necessita. O Terrasse

Dufferin (imagem 21), que se estende do castelo até a borda da Citadelle murada, tem o

grande papel socializante desta paisagem urbana. Também é a partir dele que se tem uma das

vistas mais imponentes do Rio Saint Laurent, a partir da cidade de Québec (imagem 22). O

aspecto memorial deste rio para a cidade de Quebec é fundamental, desde os primórdios da

colonização, como meio de transporte a sobrevivência, até os dias de hoje no plano turístico: a

travessia de canoa pelogelo, quando o rio permanece congelado por várias semanas, é atração

turística importante, havendo competições de travessia nos carnavais em fevereiro. A

“traverséeencanot à glâce” foi indicada como o primeiro bem cultural imaterial do Québec, a

partir da nova lei do patrimônio cultural imaterial de 2012.

Imagens 21 e 22 – Chateau Frontenac e Terrasse Dufferin; e Vista do Rio Saint Laurent a partir do Terrasse Dufferi.

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Fotografias de Nádia Maria Weber Santos. Setembro e outubro de 2012.

A paisagem urbana contemporânea pode ser vista também como a construção de

sentidos das organizações culturais de espaços físico, midiático, social e memorial, em um

processo em palimpsestos, de camadas culturais sobrepostas. Para Armando Silva (2011,

p.221), “a construção da imagem de uma cidade em seu nível superior (cidade subjetiva, onde

se faz por segmentação e cortes imaginários de seus moradores) conduz a um encontro de

afeto com a cidade, cidade vivida, interiorizada e projetada pelos grupos sociais que a

habitam”. Ele se refere à cidade, também, como o lugar do acontecimento cultural e como o

cenário de um efeito imaginário. As transformações da cidade (físicas) produzem seus efeitos

simbólicos. E as representações afetam e conduzem seu uso social, modificam a concepção de

espaço e interferem nas formações de identidades.

Por fim, admitimos que as estratégias do Turismo Cultural ligadas às artes e à

tecnologia, por exemplo, também podem evidenciar memórias em palimpsesto. A paisagem

urbana pode se modificar na percepção de um viajante (turista), quando elementos culturais

são associados a bens imateriais, por exemplo, a memórias orais (ARSENAULT, 2010).

Quando um guia cultural, por exemplo, nos leva para caminhar na grande planície dos

Champs de Batailles(Planes d´Abraham) e Citadelle, e seus suaves relevos, contando as lutas

que ali se travaram, isto modifica a paisagem para quem ali escuta. Neste contexto, diversos

elementos culturais associados ao que se chama hoje de patrimônio cultural imaterial podem

conter riquezas interessantes a serem exploradas pelas comunidades locais. Ao contar suas

histórias, por exemplo, a paisagem urbana se modifica na interaçãodo conto oral (narrativa

oral) com aquilo que se vê. A oralidade, muitas vezes, permanece o lugar, por excelência, da

expressão da identidade cultural de uma comunidade. O espaço turístico encoraja a

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espetacularização das tradições, num certo sentido. É possível a construção de paisagens

identitárias a partir das sensibilidades, preocupações e intenções de uma população em relação

ao local e suas práticas culturais.

Em seu texto sobre o patrimônio como matriz identitária do Quebec, Morisset (2010)

afirma que o patrimônio é uma interface entre o ‘nós’ (no caso, os canadenses franceses) e os

‘outros’ (os turistas, os viajantes, por exemplo), para quem o patrimônio deve formar uma

representação do ‘ser quebequense’. Para estes últimos, em contrapartida, o patrimônio deve

mostrar um reflexo ‘deles mesmos’, formando uma matriz identitária. A autora traz a noção

de memória patrimonial, que “aborda o patrimônio como um palimpsesto constantemente

reescrito, que guarda em si os traços sucessivos de sua invenção” (MORISSET, 2010, p.54,

tradução minha). Esta memória pode, assim, perpetuar as formas de fazer do patrimônio

(“façons de fairedupatrimoine”) e assumir o papel, a longo prazo (de geração em geração), de

uma “matriz identitária”. Seria reinvestir a memória de uma perspectiva aberta para o futuro,

eu diria.

Morisset (2010) se refere ao processo de patrimonializaçãocomo não homogêneo e

como uma obra produzida por um imaginário coletivo, alojado no espírito de seu tempo. Esse

processo é uma fabricação ou invenção do patrimônio, dando sentido a inventar como sendo

“encontrar pela força da imaginação criativa e realizar alguma coisa de novo” (MORISSET,

2010, p.55, tradução minha). É esta realização de “alguma coisa de novo” que faz a ligação

com “memória patrimonial”. Ela concebe o patrimônio como uma catalisador da memória. A

noção de “memória patrimonial” coloca a memória e a identidade mais como um efeito do

que causa da patrimonialização.

Os fenômenos de patrimonialização servem para melhor compreender a contribuição

da paisagem urbana na fabricação da memória coletiva. Neste sentido, os patrimônios

culturais, na sua relação com memória e identidade, engendram paisagens urbanas, que se

transformam ou se fossilizam. O patrimônio e a maneira de fazer o patrimônio podem

construir uma matriz identitária.

Nesta via de pensamento, por fim, gostaria de apresentar, mesmo que sucintamente,

um exemplo de exposiçãomultimídia sobre a memória e a história da cidade, através de um

projeto ousado, muito contemporâneo, com imagens em mobilidade, projetadas à noite, em

céu aberto (imagens 23 a 25). É o projetoMoulin à images(DUBÉ, 2012), que aconteceu pela

primeira vez na cidade de Quebec, no verão de 2008, em comemoração aos 400 anos de

fundação da cidade. Este “moinho de imagens” foi concebido por Robert Lepage e co-

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concebido por uma equipe grande de videastas, artistas e o museólogo Philippe Dubé. O

espetáculo foi projetado nos armazéns de grãos do porto velho (VieuxPort) da cidade de

Quebec. O desafio de museólogo, segundo Dubé (2012), foi o processo de cenografar a

história da cidade, de forma experimental, nas imagens de vídeo e projetá-las a céu aberto e

numa superfície grande. O grande quadro histórico do Moulin à images é pensado “enquanto

um produto de uma determinada sociedade, mas também como um produto de um tempo

preciso com sua tecnologia, que, implicitamente, deixa entrever uma relação singular com o

mundo” (DUBÉ, 2012, p.44, tradução minha).

Imagem 23 – VieuxPort da cidade de Quebec. Armazém onde foi feita a projeção multimídia noturna.

Foto de Nádia MariaWeber Santos. Maio de 2013.

Imagem 24 – Panorama do Moulin à images, nas projeções

noturnas em frente ao Bassin Louise do Setor do Vieux-Port em Quebec.

Foto de Francis Vachon (2009). Fonte: Dubé (2012).

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Imagem 25 – Moulin à images. 2008.

Fonte: Wikipedia.

O espetáculo congregou mais de três mil pessoas e, porseu grande sucesso fez com

que o Conselho Municipal de Quebec votasse em favor de sua continuidade por mais cinco

anos. O texto de Philippe Dubé(2012), intitulado “Moulin à Imagens ou Musée d´images.

Commentraconterl´histoire d´une ville à traverssoniconographie », dá conta de uma

excepcional análise da criação museal que teve lugar neste experimento que deu certo.

Argumenta a favor da posição de que uma abordagem artística pode vir a induzir uma

narrativa que se quer histórica e memorial, fazendo-nos lembra do texto de Brissac Peixoto

mencionado no início deste artigo. Ou seja, enquadrar a passagem de quatro séculos, em um

local dado, através de um encadeamento de imagens tecnológicas, permite a elaboração de

uma narrativa renovada sobre a história (e diríamos também da memória) de uma cidade que

se exprime em suas transformações. As projeções comemorativas, modificaram a paisagem

urbana e não tinham como propósito explicar o passado, já morto. Segundo o autor, tiveram o

papel de fazer das lembranças pontos nostálgicos a partir do caráter presencial e presente,

fazendo o público sentir que seja necessário seguir o caminho(da urbe) e reinventá-lo. « Pois

se o passado é da ordem do conhecido porque vivido, o futuro é virtual e tem necessidade de

esquemas de projeção para se deixar adivinhar e fazer surgir um horizonte de expectativas

viável e desejável ». (DUBÉ, 2012, p. 56, tradução livre minha) É com uma sábia dose de

realidade e ficção que a história e a memória podem mobilizar as pessoas. O desafio da

experiência realizada a céu aberto fez emergir, segundo Dubé, o “genius loci”, o gênio do

lugar, a partir do “jorro de emoção” que momentos como estes (comemorações) e as imagens

coadunaram.

Deixando o leitor a imaginar estas belas imagens que tiveram lugar nos últimos verões

em Quebec, termino o texto afirmando que as memórias que as paisagens urbanas carregam

em seu bojo, em forma de palimpsestos, são narrativas sensíveis que, coletivamente,

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impregnam o espírito de uma cidade, não importando o suporte ou o formato que assumam. E,

através da flânerie pelas ruas e locais das cidades, as paisagens urbanas descortinam-se

fazendo-nos redescobrir uma cidade e sua identidade.

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SILVA, Armando. Imaginários Urbanos. São Paulo: Perspectiva, 2001.

Recebido em Agosto de 2013. Aprovado em Setembro de 2013.