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Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

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Este livro é o resultado de uma inspiração, de uma

transpiração, de uma parceria entre dois mundos.

O mundo do médium e a mão do editor.

Muitos autores dedicam seus livros a familiares, amigos

ou pessoas ilustres que os inspiraram de alguma maneira.

Quero dedicar este a alguém que por vezes é esquecido pelos

autores e pelos leitores. Dedico-o a quem me inspira e me

faz transpirar, a quem me impulsiona de perto, junto com o

mentor e, algumas vezes, vestindo a máscara do obsessor.

A L E O N A R D O M Õ L L E R , M E U E D I T O R .

Não sei se eu conseguiria dar uma roupagem tão digna e

valorosa ao trabalho que os espíritos fazem através de mim

sem sua participação, sem que fizesse seu papel.

A você, editor, amigo e companheiro, meu muito obrigado,

meu reconhecimento público e verdadeiro por tudo que

representa em relação ao livro, ao livro espírita em particular.

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I N T R O D U Ç Ã O pelo espírito Ângelo Inácio, x

C A P Í T U L O 1 O lado avesso da vida, 14

C A P Í T U L O 2 Uma nova civil ização, 50

C A P Í T U L O 3 Levan tando o véu, 84

C A P Í T U L O 4 Os Imor ta i s , 130

C A P Í T U L O 5 A soma das d i ferenças , 178

C A P Í T U L O 6 Zonas de impacto , 222

C A P Í T U L O 7 A festa de Oxum, 292

C A P Í T U L O 8 Senhores do caos, 334

C A P Í T U L O 9 C idade dos guard iões , 392

R E F E R Ê N C I A S B I B L I O G R Á F I C A S , 456

S O B R E O A U T O R , 458

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XI

pelo espírito

 N G E L O I N Á C I O

A V I D A NA errat icidade. Sem vagar ent re nuvens de incer­

tezas, todos nós vivemos e viveremos apesar da morte , da

dor e do sofrimento. Sem nos perder no nada incompreen­

sível ou diluir a consciência, fundindo-a ao todo inexplicá­

vel pelo vocabulário humano, seja religioso ou científico,

sobrevivemos e sobreviveremos ent re as estrelas.

O h o m e m é p rodu to das estrelas e para as estrelas re­

to rnará um dia, quando puder alçar voo r u m o ao país da

e ternidade. Lá é onde moram os sonhos, onde vivem os

Imortais , onde as luzes se fazem gente e onde os seres são

feitos de pura luz. É onde fica a cidade habi tada pelas cons­

ciências que desper ta ram para a vida além dos limites de­

marcados por fronteiras, es tandar tes ou bandeiras; onde

cessam os par t idar ismos políticos, ideológicos ou religio­

sos. Esse é o m u n d o onde não há medo, n e m culpa, nem

cobrança. Essa é a A m a n d a de todos os povos, de todas as

gentes, a cidade dos espíritos.

O país das estrelas pode ser cantado em prosa, em ver­

so, ao som de atabaques ou ent re melodias refinadas de

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ins t rumentos mil. A cidade dos espíritos ou, s implesmen­

te, Aruanda é o céu, o orum, o paraíso, para muitos. Pode

ser t a m b é m o fulgor das estrelas, o cantar dos pássaros ou,

então, a habitação de pais-velhos, a te r ra de caboclos, de

brancos e negros, asiáticos, índios, de peles vermelhas , p re­

tas ou amarelas; afinal, essa metrópole é a pátr ia daqueles

que não se sujeitam mais aos acanhados compor tamentos

exclusivistas e sectários das sociedades humanas . Ali, ent re

as estrelas, é onde o espíri to se re tempera , onde é capaz de

haur i r forças para as tarefas de redenção, auxílio ou inter­

venção no m u n d o dos homens .

Cidade dos agentes da just iça divina — essa é a rea­

l idade da Aruanda . Onde a just iça e a equidade se aliam

para es tabelecer o Reino nos corações h u m a n o s e na Ter­

ra, em todas as d imensões . Dela p a r t e m guardiões , cara­

vanas que in terferem no m u n d o em nome da divina jus t i ­

ça. É onde me encontre i , aonde fui conduz ido pela espada

f l amejan te de um guerre i ro que descor t inou, ante m i n h a

visão estreita, as luzes e os caminhos de Aruanda , t am­

b é m conhec ida por alguns como I lha Sagrada, por outros ,

como Shamballa; para mim, somente Aruanda , a c idade

dos Imor ta is .

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Um estilo de vida, um conceito de paz, uma f i losofia ,

u m a política divina — tudo isso faz da cidade dos espíritos

um lugar mítico, u m a escola onde se p repa ram espíritos,

forjam-se heróis anônimos, que lu tam pelo progresso da

humanidade . Onde res idem encantos e encantados, onde

lendas encont ram sua explicação e onde o t ipo encont ra o

antít ipo. Da Amanda , onde me encontrei depois de abertos

os portais da mor te e onde até hoje me inspiro e respiro,

quando posso, a fim de re tornar à Terra dos meus encantos

e dos meus antigos amores, é de onde trago, na bagagem da

alma, a poesia da imensidade.

 N G E L O I N Á C I O

São Paulo, 3 de março de 2013.

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O P R I N C Í P I O ME des lumbrei com a possibilidade de es­

tar fora do corpo, embora somente aos poucos me des­

se conta de que a situação era irreversível. Os pensamen­

tos das pessoas no velório, familiares pensando em como

ficariam os direitos intelectuais de minhas obras e outras

situações que considerei insólitas naquele momento ; tudo

contr ibuiu para formar um quadro mui to diferente daqui­

lo que eu vira até então. Nunca havia pensado em como se­

ria cômico, até, poder pene t ra r nas emoções das pessoas

ou quanto seus pensamentos eram permeáveis . Mas aquilo

tudo não era brincadeira. Aos poucos surgia um sent imen­

to de saudade, um quê de grat idão pelo corpo que repousa­

va no caixão. Enquanto isso, outra par te do meu cérebro, se

é que eu ainda tivesse um cérebro depois de morto, parecia

se divertir com a situação ou, se não isso, ao menos obser­

vava com cer ta curiosidade as pessoas, seus sent imentos e

emoções, e a realidade por detrás da fantasia de sofrimen­

to habi lmente demons t rada por muitos ali presentes . Mas

as emoções... essas eu não conseguiria disfarçar por mui to

tempo. Na verdade, disfarçava t a m b é m por saber, no fun­

do, que não havia retorno. Deveria reaprender a viver como

morto vivo e, quem sabe, até mesmo começar tudo de novo,

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soletrar o bê-á-bá outra vez, pois o m u n d o para o qual fora

transferido de manei ra definitiva era algo comple tamente

distinto de tudo quanto conhecia ou a que me acostumara.

Comecei a pensar em como me comunicar com os pos­

síveis habi tantes deste lugar, deste universo onde agora me

encontrava. E havia outros habi tantes . Disso eu não po­

deria duvidar, pois a lógica do raciocínio me demonstrava

isso. Se eu estava ali vivo, pensando, raciocinando, apesar

do corpo es tendido sobre o leito, na tura lmente outros tam­

b é m haviam sobrevivido à morte . Aliás, se acontecia comi­

go, então toda a human idade sobreviveria; não era eu ne­

n h u m privilegiado, nesse sentido.

Não sofri por estar morto. Senti, sim, uma espécie de

nostalgia ao concluir que tudo o que construíra, todas as

pessoas com quem convivera e a realidade com a qual me

relacionava t inham ficado para t rás — para sempre. Puxa!

Para sempre é mui to tempo. Mui to mesmo! Porém, foi as­

sim que pensei naquele momento , e esse pensamento foi

suficiente para produzi r certa melancolia em minha alma.

Logo, logo me peguei pensando em escrever sobre o assun­

to... mas escrever para quem? Por quê? Quem leria minhas

crônicas e poesias, minha produção literária de mor to vivo?

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Poderia eu cont inuar sendo um jornalista depois de morto?

Enquanto a mul t idão visitava o corpo cujo coração re­

solvera en t rar em colapso, parar de vez, tive de enfrentar

o avesso das coisas. O outro lado da real idade a que todos

os humanos estavam habituados. E tive de me enfrentar.

Mas Deus me livre de sofrer por isso. Escolhi jamais sofrer,

mesmo depois de morto . Como? Não dei impor tância aos

pensamentos de dor, to rmento , revolta ou culpa. De modo

algum poder ia me permit i r esse t ipo de situação ínt ima

quando a minha curiosidade por essa vida do Além supe­

rava qualquer possível tendência ao masoquismo. Que so­

fresse quem quisesse. Eu, decididamente , não t inha t empo

para isso. E olhe que tempo, a par t i r de então, é o que não

me faltava. Mas não queria n e m poderia desperdiçá-lo com

sofrimentos e lamúrias que a nada me conduzir iam.

Notei cer to quê de saudade ou de vontade de rever mi­

nha filha, que, quem sabe, estivesse em condições de vir

me ver, já que eu chegava a este outro lado como morador

definitivo. Mas... pensei: "Apesar da saudade dela, a mes­

ma saudade que te levou à depressão há alguns dias, deixe-

-a seguir seu caminho" . Outra hora eu voltaria ao assunto.

Agora queria explorar tudo ao meu redor, a começar pelos

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pensamentos das pessoas ali presentes . E curt i r a pan tomi­

ma a que se entregavam, represen tando uns para os outros.

Acreditavam piamente que o mor to em n e n h u m a hipóte­

se poder ia conhecer o que pensavam. A maioria n e m se­

quer cogitava que o mor to não estivesse tão mor to assim.

E a saudade de minha filha parecia compet i r infinitamente

com minha curiosidade, sobremaneira exacerbada naque­

les pr imeiros momen tos de vida de morto. Senti vontade de

tomar um vinho. H u m m m ! Como seria o meu predileto vi­

nho madeira? Como seria o original dele neste outro lado

do véu de ísis? Mas tive de deixar para depois os mart ínis ,

os vinhos, fossem da Madeira, do Porto ou qualquer outro,

en t re tantas coisinhas preciosas, sem falar no reencontro

com minha f i lha. Afinal, ela t a m b é m era recém-chegada

a esta vidona de meu Deus e, como viria a confirmar mais

tarde, suspeitei que talvez estivesse se recuperando, diga-

mos, do cansaço da grande viagem.

Logo, logo me acostumei com a ideia de que as coisas

aqui não seriam exatamente o prosseguimento das que dei­

xara — ao contrário, pareciam-me b e m melhores! Nossos

amores e afetos, embora cont inuassem amores e afetos, pas­

savam a ser tão somente outras almas, marujos no mesmo

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mar, a singrar o oceano desconhecido da imortalidade. Nos­

sas emoções, caso nos entregássemos a elas, consti tuir iam o

passaporte perfeito para a infelicidade e o inferno, que tra­

zemos todos dentro de nós. Por isso, ao me ver de pé ao lado

do antigo corpo, tomei a decisão acertada, segundo avalio

até hoje. Nada de sentimentalismo. Se na clínica, quando

dos últimos momentos , hora ou outra a tr isteza havia me

visitado, aqui a curiosidade substituíra por completo a tr is­

teza. Havia a saudade, mas já que d ispunha da e ternidade

pela frente e já que o nada inexistia, então, que esperassem

os reencontros, que aguardassem as saudades, pois eu ainda

teria muita coisa a fazer pelo resto de minha vida eterna.

Não escolhi sofrer. E, ao pensar assim, descobri que

neste lado da existência pensava de manei ra absolutamen­

te diferente do que nos derradeiros minutos da antiga exis­

tência. A consciência da mor te e, paradoxalmente , do fato

de que cont inuávamos vivos parecia modificar por comple­

to a realidade interna, íntima. O pensamento voava; não en­

contrava apenas pedras no caminho. Havia mui to mais do

que simples pedras no caminho... Havia construções, mui to

mais do que areia; havia uma civilização invisível, em tudo

presente, viva, ativa, pululante de vida. E eu agora era par-

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te desta civilização extracerebral , extrafísica, ext racorpó-

rea. Isso era incrível e merecia ser celebrado. Mas eu ainda

não t inha acesso a meu saboroso vinho madeira, n e m tam­

pouco ao mart íni . Assim, eu comemorava in ternamente ,

com mil pensamentos , com sent imentos novos, com u m a

euforia na alma, que dificilmente eu poder ia expressar em

palavras. Celebrava o fato de ser um vivo imortal . Não um

imortal vivo, como aqueles da velha Academia de Letras.

Não. Era um vivo imortal . E sem precisar, para tanto, ter

sorvido algum elixir milagroso que prolongasse a vidinha

no corpo físico. Não; não dependia mais do l imitado corpo

envelhecido. E foi então que resolvi testar os poderes ocul­

tos da minha imortal idade.

Concentre i -me por longo tempo. Na verdade, uns dez

a quinze minutos — tempo demais para quem é imortal.

Concent re i -me de tal manei ra que revi o corpo que tivera

mais de 20 anos antes. Pensei tão for temente nele e com

tal intensidade e r iqueza de detalhes que, ao abrir os olhos,

surpreendi -me ao constatar que meu corpo se tornara exa­

tamente igual àquele que visualizei. E t amanha era a ale­

gria ao descobrir o poder fantástico de minha condição de

imortal que gritei:

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- Viva!

Cerrei o p u n h o direito e, como um adolescente, gritei

a plenos pulmões e saí cor rendo em torno do caixão, zom­

bando do povo que se contorcia para dar o úl t imo adeus ao

mor to que não estava tão mor to como aparentava.

— Ah!! — pulei novamente de alegria... — Que venham

a mor te e seus desafios!

Sentia-me resoluto, agora. Desrespeitei meu própr io

velório e gritei e pulei como nunca. A mor te até que não

é lá grande coisa, não. Ou melhor: a morte , ao menos para

mim, era o elixir da vida eterna! Decidi naquele momen to

mesmo, diante do velho corpo que repousava frio no cai­

xão: a par t i r dali não sofreria jamais. Resolvi que aprovei­

taria todo o t empo disponível para ser feliz à minha manei­

ra, isto é, es tudando, t rabalhando, matando a curiosidade e

escrevendo. Escreveria quanto pudesse para falar da vida

nova da imortalidade, das descobertas e da realidade da

vida além, sem fantasias, sem romant ismos, mas da realida­

de da vida assim como ela é.

Algum momento , pensar ia em como mandar minha

produção para a imprensa do m u n d o antigo, dos que se

consideram vivos. Mas, por ora, descobrira o poder do pen-

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samento, da vontade, da imortal idade. E exploraria ao má­

ximo a ocasião, aquele novo momen to de minha vida, da

existência. Perante o aparente milagre do rejuvenescimen­

to da alma, esqueci-me inclusive das saudades da filha. E

gritei novamente , como um jovem alegre, inebriado com a

vida nova e com as possibilidades que se abriam diante de

meu espírito ávido por novidades, por novos conhecimen­

tos e, acima de tudo, por trabalho.

- V i v a ! !

— Alegre assim, Ângelo?

Virei-me rápido para o local de onde eu julgara ter vin­

do a voz. Ainda não vira n e n h u m defunto vivo, além de mim

mesmo, nem ouvira n e n h u m pensamento , além daqueles

provenientes das pessoas que se achavam vivas entre os

chamados vivos. Mas ouvir a voz de outro imortal, era a pri­

meira vez. Virei-me no mesmo instante e vi um h o m e m di­

ferente. Sorria, mas de alguma maneira ele era diferente.

— Seja bem-vindo ao novo mundo! — falou, sorr indo

um sorriso disfarçado, discreto. Mirei b e m aquele ser estra­

nho. Um habi tante do novo mundo, da nova vida e da nova

civilização onde eu aportara. Era alto, cabelos cortados de

tal maneira que me remet ia aos militares. Roupas que eram

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estranhas para mim. As calças, semelhantes a bombachas ,

lembravam soldados do III Reich. Apenas lembravam, pois

havia u m a diferença marcante , que não consegui descobrir

de imediato. A camisa, algo imponente , parecia um traje de

gala ou algo assim: gola de padre, mangas longas, um dis­

tintivo ou símbolo no lado esquerdo do peito. Era diferen­

te de tudo e de todos os militares que conhecera na Terra.

Mas com cer teza era alguém que ocupava um cargo impor­

tante neste m u n d ã o novo que eu começava a descobrir. Pa­

recia alguém de uns 30 a 35 anos, no máximo. Eu analisa­

va cada detalhe. E ele soube disso. Sorriu agora um sorriso

largo, magnético, enigmático.

— Eu sou Jamar! Mui to prazer.

— E eu me chamo Ângelo, Ângelo Inácio. Muito prazer,

t ambém.

Medindo-me, como a pene t ra r meus pensamentos , e

eu incomodado com esse fato, acentuou b e m as palavras:

— Ora, ora! Já que você conseguiu chegar aqui sem o

peso da culpa que muitos forjam em suas mentes , parece

claro que se l iberou consc ientemente de uma carga mui to

pesada. Não percamos tempo; você não pode mais conti­

nuar aqui. Vamos embora!

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— Cont inuar aqui? Ir embora?

— Ou você pensa que cont inuará velando o própr io

corpo como esse povo todo aí, ainda mais agora que já des­

cobriu a inuti l idade dessa despedida que fazem? E como

já sabe dos pensamentos que passam pela cabeça daqueles

que o homenageiam, então, por que ficar aqui? Perdendo

tempo? Temos mui ta coisa pela frente! Há muito t rabalho

por fazer e você precisa começar logo. Tem de se preparar

para voltar.

— Voltar para onde?

— Na hora certa, você saberá. Por hora, temos de sair

daqui. Outros espíritos já estão a caminho para fazer o que

t em de ser feito.

Hesitei por alguns momentos , até que o vi envolvido

por u m a luz quase mística. Ao redor, irradiações magnét i ­

cas desenhavam o que me pareciam asas, como se fossem

de anjo ou algo do gênero. A visão foi mui to rápida, porém

o suficiente para saber que lidava com alguém especial ou,

no mínimo, diferente de tudo e todos que conhecia. De­

sembainhou em seguida uma espada, até então não perce­

bida, e brandiu-a no ar. A medida que intensificava aquelas

energias em torno de si, na forma de asas, conforme inter-

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pretei na ocasião, suas roupas pareciam se diluir n u m a fre­

quência diferente, n u m a luz t ambém distinta, mas que lhe

conferia a aparência de um anjo guerreiro, talvez meu anjo,

o anjo de guarda. E minha mente de imediato fez as cone­

xões necessárias, a fim de que eu não me demorasse mais

ali. Não poder ia recusar o convite de um ser desses. Eu era

convidado para ir ao lado dele para sei lá onde, e soube que

não havia como recusar.

— Vamos, Ângelo! — falou, com o sorriso enigmático.

Enquan to falava, com u m a mão es tendida para m i m e a

outra segurando a espada, i n s t rumen to que naquele m o ­

m e n t o não tive condições de analisar, ele s implesmente

abriu um rasgo no espaço à sua frente. Uma por ta no es­

paço ou en t re d imensões? Não saber ia definir, ainda. Mas

a e spada de fato abriu u m a b r e c h a no universo, q u e m

sabe, e p u d e vislumbrar , através daquela fenda, um m u n ­

do diferente, talvez u m a cidade, mui to dis tante . Es t re ­

las que pa rec iam de ou t ro mundo , estrelas que pa rec iam

me fitar... e o homem, Jamar, es tendia-me a mão, embora

o convite se fizesse m e s m o pelo pensamento , que t a m b é m

rasgava o meu, e penet rava-me in te rnamente como se fos­

se o fio de sua espada.

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Eu olhava fascinado pela aber tura dimensional instau­

rada pela espada do guerreiro, do guardião, como ficaria

sabendo mais tarde. E aquele m u n d o diferente, iridescen­

te, cheio de estrelas; aquela cidade, cujo esboço eu via en­

tre os sóis da amplidão, rebri lhando entre nuvens ou poei­

ra de estrelas, parecia me magnetizar. E o fenômeno todo

daquele instante parecia diluir minha alma, de tal modo

que, ao tocar a mão estendida de Jamar, senti como se mi­

nha alma toda se abrandasse e engrandecesse; acalmavam-

-se meus pensamentos , tranquilizavam-se minhas emoções.

A curiosidade inata repousou por um instante, pois me sen­

ti adormecer como n u m sono agradável, sereno e povoado

de sonhos. Sonhei com um país diferente, sem di tadura nem

ditadores, sem limites fixados por bandeiras ou fronteiras

hostis. Um país para o qual eu era levado pelas mãos de Ja­

mar, o anjo que me acompanhava em direção ao início de

uma vida nova, uma aventura espiritual que jamais teria f im.

Quando abri os olhos, fui tomado de surpresa. Encon­

trava-me dei tado n u m a espécie de barco, que deslizava

suavemente sobre águas calmas. Seria um mar? Não sabe­

ria precisar, embora, para onde quer que olhasse, percebes­

se somente águas e mais águas. Esforcei-me e me pus de

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pé, devagar, sen tando-me logo após. E Jamar estava lá, de

pé, ereto, na proa da embarcação, ainda rebri lhando, po­

rém discretamente, como se quisesse disfarçar sua aparên­

cia. De um lado e outro, dois outros homens remavam com

notável t ranquil idade, ambos em pé, e somente eu senta­

do. Brisa suave parecia vir de algum lugar; ao longe, à fren­

te do barco, avistava-se um brilho, um t remeluzi r de uma

luz que, a mim, parec iam-me as luzes de u m a cidade. Seria

a cidade que eu percebera quando Jamar rasgara o espaço

com sua espada? Seria a cidade das estrelas? Não saberia

dizer. Aliás, eu não sabia sequer como adormecera e nem

como fora parar ali.

— Este é o Mar da Serenidade! — falou Jamar, sem

olhar para mim.

Deliciava-me ao contemplar a paisagem marí t ima, e

agora t inha a confirmação de que estava diante de um mar.

Águas ex t remamente claras e de tal manei ra t ranslúcidas

que podia divisar golfinhos nos seguindo, pulando ora aqui,

ora ali, ao lado da embarcação, além de diversos outros ha­

bi tantes das águas. Ainda sem olhar para mim, mas fixando

longe aquilo que devia ser u m a cidade, mas cujos detalhes

me escapavam, Jamar continuou:

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— Estes são guardiões, que estão nos remos. São servi­

dores como eu e meus outros irmãos.

Olhei para os dois homens que estavam de pé remando,

cada qual de um lado do barco, e os vi sorrir. Um sorriso largo,

aconchegante, espontâneo. Foi o suficiente para me sentir em

casa; era como se conhecesse essa gente de longa data. Até

mesmo Jamar, o anjo que nos conduzia. De repente, fui sur­

preendido por um enxame de seres que pareciam borboletas.

— Não são borboletas. Olhe bem, Ângelo!... — falou Ja­

mar, sem se voltar para mim, ainda fitando ao longe.

Novamente observei e notei que o panapaná — ou seja

lá como se classificasse essa comunidade de seres — pare­

cia br incar sobre as águas, arras tando-se em grande velo­

cidade. Eram fosforescentes, a meu ver, e irradiavam uma

tonal idade azulada, quase como neon. Mas pareciam quase

humanos , mui to embora o t amanho menor que u m a mão

humana . Brincavam, sorr iam e dançavam sobre as águas

em bandos, enquanto alguns cavalgavam um ou outro golfi­

nho, que pelo jei to se deliciavam com a presença daqueles

seres pequeninos . Pensei que estava sonhando, ainda.

— Não está sonhando, Ângelo. São seres reais, são habi­

tantes das águas e vêm nos recepcionar. Para onde iremos,

Page 34: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

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você se acos tumará com a presença deles. São os chamados

elementais. 1

Minha men te pareceu um turbilhão. Minhas emoções

arrebentavam de dent ro de mim ao perceber a vida abun­

dante naquele novo ambiente. E minha reação foi a mais

h u m a n a possível: comecei a chorar. Só então Jamar voltou-

-se para mim.

— Não há como não se emocionar com a r iqueza da vida

ao nosso redor. Sinta-se à vontade, amigo. Também choro

muitas vezes diante da manifestação da na tureza sideral.

Olhei ao redor e vi os golfinhos levando vários seres na

garupa, os quais se divert iam visivelmente. Eram habi tan­

tes daquele m u n d o diferente, novo, es tuante de vida. E eu

exultava ao presenciar tudo aquilo.

1 Para maiores esclarecimentos sobre os elementais naturais, agrupados sob a de­

nominação espíritos da natureza na codificação espírita (cf. KARDEC. O livro dos

espíritos. Ia ed. esp. Rio de Janeiro: FEB, 2005. p. 337-340, itens 536-540), consulte

o volume 2 da série Segredos de Amanda (PINHEIRO . Pelo espírito Ângelo Inácio.

Amanda. 13 a ed. rev. ampl. Contagem: Casa dos Espíritos, 2011. p. 86-98, cap. 7). Há

esclarecimentos importantes nesse trecho, inclusive sobre a opção por adotar a no­

menclatura do esoterismo clássico, elementais.

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— Estamos chegando — informou um dos guardiões

que remavam. Deixaram os remos de lado, e o barco des­

lizava sozinho, pelo menos deduzi assim. Mas não! Eram

os golfinhos e os seres pequeninos que conduziam a em­

barcação no t recho próx imo à hora de atracar. Chegamos

deslizando, lentamente , sobre as águas calmas daquele mar

sereno, em tudo diferente do que eu conhecia. Mais e mais

seres das águas se mostravam às dezenas, às centenas. E o

mar parecia ganhar vida, uma vida nunca antes percebida

por mim ou, quem sabe, ainda desconhecida de todos na

face da Terra. Desembarcamos devagar e meus pés se mo­

lharam naquela água l igeiramente fresca, agradável. Como­

via-me com cada detalhe do m u n d o novo. Foi quando notei

que havia gente nos recepcionando.

Logo ao pisarmos o solo, um grupo de crianças, adoles­

centes e outros personagens diferentes, exibindo trajes de

diversas épocas e estilos, v inham em nossa direção. Alguns

correndo, brincando, soltando gritos de felicidade. No meio

deles, para minha surpresa, Maria, a minha Maria vinha me

receber. Além, um pouco mais vagaroso, como dando tempo

para os demais se apresentarem, notei um homem elegan­

te, um senhor já de idade, terno branco, alvíssimo, de linho

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33

puro. Sorriso largo nos lábios, olhava-nos, enquanto eu rece­

bia das mãos de uma criança um colar semelhante a um colar

havaiano, porém feito de flores reais, naturais, perfumosas.

Chorei ao rever Maria, minha adorada filha. E a sau­

dade ar rebentou dent ro de mim, d isputando espaço com

emoções novas. Sem sofrimento, porém. Senti-me renova­

do ao abraçá-la.

— Estou aqui apenas esperando a sua chegada, meu pai.

Apenas por um pouco de tempo, para que saiba que estou

bem e viva — disse ela. Abraçamo-nos ali mesmo, e me sen­

t i aconchegado em seus braços por um tempo muito longo.

Ou seria impressão minha? Sei que, quando nos soltamos

um dos braços do outro, sent ia-me ainda mais jovem do que

quando mental izei o corpo de alguns anos antes. E Maria

olhava-me, e falava mais com o olhar do que com palavras.

Logo veio o ancião vestido de te rno branco, enquanto

algumas crianças me conduziam pelas mãos. Maria ficou a

certa distância, o lhando-me e sorrindo:

— Não se preocupe, meu pai. Você está em casa. Estare­

mos juntos, a part i r de agora — e senti que isso era verdade.

— Seja bem-vindo ao lar, Ângelo Inácio! — saudou-me

com largo sorr iso o ancião que me recebera, acompanha-

Page 37: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

34

do por Jamar, que curvava levemente a cabeça, como se o

reverenciasse.

— Obrigado pela acolhida generosa! Mas sabe o meu

nome, e eu não o conheço ainda...

— Chame-me de João! Apenas João. Isso é o bas tante

por enquanto , meu filho.

— Este é um dos anciãos que compõem o colegiado de

nossa cidade — explicou Jamar.

— Colegiado?

— Mais tarde será devidamente informado.

Olhei ao redor e vi campos, florestas, montanhas . Ao

longe, talvez a alguns quilômetros, ainda, a cidade que se

erguia majestosa, en t re bosques, t repadeiras , jardins e rios,

que pareciam escorrer de montanhas ; havia t ambém pré­

dios e outras construções. Era uma paisagem diferente,

exótica, maravilhosa, des lumbrante , em tudo diferente das

cidades que eu conhecera e da própr ia cidade maravilho­

sa de onde viera. Tudo parecia repleto de vida, de cor e de

aromas únicos e inebriantes.

O ancião negro à minha frente segurava u m a espécie

de cajado ou bengala, embora não precisasse de nada para

apoiar-se, afigurando-se mais como acessório a compor-

Page 38: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

35

-lhe o visual do que auxílio à locomoção, de modo a tor­

ná-lo ainda mais elegante. Ent re as crianças e adolescentes

que me recepcionaram, pude notar algo curioso: a grande

variedade de etnias ali representadas , n u m amálgama bo­

nito de se ver. Negros, mulatos, brancos e ruivos dos tra­

ços os mais diversos, além de indígenas de toda parte , dos

peles-vermelhas aos aborígenes e outros mais, sem falar

nos representantes de povos asiáticos, em toda sua riqueza;

enfim, um mosaico de etnias, povos e cul turas que me im­

pressionou. Ao que me parecia, conviviam todos de manei­

ra harmoniosa. Seria ali o Céu? A antecâmara do paraíso?

Sorrindo sempre de modo sincero e generoso, João olhou

para mim e, colocando a mão sobre meu ombro direito,

apontou para a cidade ao longe.

— Não é o Céu ainda, Ângelo. Ainda, não! — disse rin­

do com um sorriso farto, espontâneo. — Aqui não t em anjos

nem santos — falava pausadamente —, apenas seres huma­

nos como você, eu e Jamar ou como os bi lhões na superfície

do planeta. Aqui t ambém estudamos, aprendemos, e r ramos

muito, mas mui to mesmo, e t en tamos acer tar ao máximo.

Aqui é s implesmente a Aruanda de todos os povos, de todas

as gentes. Apenas a Aruanda.

Page 39: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

36

Não saberia dizer o porquê, mas esse nome me tocou

profundamente o coração desde o instante em que o ouvi

ser pronunciado pela primeira vez. Seu eco em minha men­

te parecia mexer fundo com meus sentimentos e emoções, e

ainda não havia penetrado os limites da cidade, em si. Estava

na periferia, digamos assim. Enquanto mirava a cidade, que

para mim se afigurava deveras distante, fui insistentemente

chamado por um jovem adolescente, que apontava em deter­

minada direção, tentando me mostrar ao longe, do lado opos­

to àquele onde se via o mar por onde chegáramos. Apontava

as montanhas no horizonte. E me encantei com o que vi.

Choupanas , bangalôs de t raçado incrivelmente elegan­

te, cont ras tando com a simplicidade de sua estrutura. E ram

casas que, a meus olhos, pareciam feitas de madeira, mas

conviviam tão ha rmoniosamente com a paisagem natural

que formavam um quadro encantador, em meio a riachos,

cachoeiras e vegetação de tons variados, além de pássaros

e outros animais que jamais imaginava poder encontrar

após a morte, ou após a vida, em outra vida, em qualquer

lugar do universo. Havia t ambém outras construções, que

pareciam feitas de concreto ou alguma substância similar,

mas na ocasião desconhecia pormenores para descrevê-las

Page 40: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

37

melhor. Do mesmo modo, exibiam beleza e conviviam pa­

cificamente com a natureza, denotando que o paisagismo

fora de ta lhadamente planejado, de forma a preservar tanto

a elegância das construções quanto o relevo e a vegetação

exuberante no en torno de cada u m a delas. E me encantei , e

chorei novamente de emoção, de alegria por me sentir vivo

e por saber que faria par te de tudo aquilo, daquela paisa­

gem extraordinária, diante da qual as belezas naturais da

cidade de onde vinha e ram apenas uma amostra, um esbo­

ço, talvez. Nada se comparava àquilo que meus olhos en­

xergavam. Nada. Enfim, aquela era a Aruanda da qual João

me falava e que as crianças e jovens me mostravam. Eu res­

pirava fundo o ar fresco e o frescor que parecia me trazer,

impregnado do aroma de flores de laranjeira.

— As construções que lembram algumas que você já

viu na Terra, Ângelo, feitas de concreto, são museus , onde

os artistas da nossa cidade e de outras expõem suas obras,

produto de criações mentais . No total, são 1,2 mil museus

dispostos em meio às montanhas , vales e planícies. As

choupanas , casas simples e bangalôs são habitações de es­

píritos, daqueles que preferem viver em meio à natureza,

de maneira mais direta e intensa, e que não apreciam tanto

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38

a vida urbana, isto é, na cidade, propr iamente . Adiante —

cont inuou Jamar, aproximando-se de m i m e de João, que

ainda repousava o braço sobre meus ombros — há outras

habitações, laboratórios de exper imentos com a natureza,

en t re outros depar tamentos , que você terá bastante t empo

para explorar.

Tudo aquilo era mui to novo para mim. Embora me sen­

tisse à vontade diante das pessoas que me recebiam, àquela

altura percebi-me ainda um pouco fraco. Não sei se devi­

do ao fato de ter morr ido para o mundo, ou desencarnado,

conforme algumas correntes espiritualistas diziam, certo é

que a transição parecia ter afetado de alguma manei ra mi­

nha vitalidade. Não era um cansaço profundo ou pesado,

como quando se está esgotado, após uma jornada de traba­

lho intensa. Não! Era algo mais ameno, mas que me deixava

claro ser necessário repousar. Repousar? Ali mesmo veio à

tona o ques t ionamento cruel: onde poder ia eu descansar?

De que forma encont rar um local para me hospedar ou m o ­

rar? Acabara de chegar a este mundo espiritual, conforme

chamavam a vastidão daquele universo de almas e homens .

Não me senti confortável para falar a respeito e logo pen­

sei em minha filha. Ela chegara poucos dias antes de mim,

Page 42: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

39

por tanto talvez pudesse ficar com ela; assim, ter íamos tem­

po para conversar. Mal formulei o problema e João dava

mostras de conhecer profundamente meus pensamentos e

quest ionamentos:

— Não se preocupe, Ângelo. Você será encaminhado a

um dos nossos hotéis na cidade. Lá se sentirá tão à vontade

que talvez seja difícil convencê-lo a sair de lá, depois. Mas

tudo a seu tempo. Maria o acompanhará , jun to com Jamar.

— Hotel? Como assim? Há hotéis por aqui?

— E como não? — falou Maria ao aproximar-se de mim,

tomando o lugar de João e abraçando-me. — Aprenda de vez,

meu pai: o mundo aqui é o mundo original, primordial; lá, na

Terra que eu e você deixamos há pouco, está apenas a cópia.

Lembre i -me de alguns hotéis onde havia me hospeda­

do, em cidades do Brasil e do mundo . E vários deles foram

bons hotéis.

— Então, se na Terra mui ta coisa é de boa qualidade,

imagino o original, do lado de cá...

— Pois é, meu quer ido — re tornou Maria, dando-me

maior atenção ainda. — Em pouco t empo me surpreendi

com muita coisa, mas creio que para você, com sua curiosi­

dade inata, o campo de pesquisa seja mui to mais vasto.

Page 43: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

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— Por acaso posso cont inuar escrevendo aqui? Posso

ser jornalista, t ambém?

Antes que Maria me respondesse, Jamar assumiu a

dianteira e falou:

— Claro, Ângelo. Você verá em breve que terá muito

t rabalho a fazer nessa sua área. Terá muitos e lementos a

pesquisar e um campo bem amplo a ser explorado e co­

mentado n u m outro t ipo de jornal ismo. Poderá, inclusive,

conhecer a redação do nosso jornal e, quem sabe, queira

ser um dos escri tores do Correio dos Imortais.

— Então terei como fazer o que mais gosto, escrever...

— Sim! Para os vivos do nosso lado e para os que conti­

nuam na carne — completou ele.

— Não en tendi . Quer d izer que não se fecharam para

sempre as por tas de comunicação com o m u n d o dos vi­

vos? — impress ionei -me.

— E você, eu e sua filha, por exemplo, não estamos vi­

vos, t ambém?

— Eu sei, eu sei, mas falo dos que vivem no mundo , no

m u n d o que deixei...

— Ah! Sei do que está falando — Jamar se fazia de bobo

de propósito. — Basta por ora saber que você poderá voltar,

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41

sim. E mui to mais breve do que poder ia imaginar!... Mas

vamos ao hotel.

Fiquei dup lamente intrigado, curioso ao extremo. Ir

a um hotel n u m a cidade feita por espíritos e para espíri­

tos. De outro lado, a possibilidade de re tornar ao mundo,

de t rabalhar como repórter, escritor, jornalista. Como po­

deria ser isso? Minha mente estava febril; antes mesmo das

outras surpresas que viria a ter, parece que meu cansaço

havia passado. Não conseguia pensar em nada mais, a não

ser o que eu escreveria sobre o m u n d o novo que começava

a conhecer. Mas aquilo era apenas a ponta do iceberg; ja­

mais imaginaria quais experiências me aguardavam. Mes­

mo assim, fui descobrindo pouco a pouco que este m u n d o

novo talvez fosse mais desafiador, ao menos no que tange

a ideias e descobertas, do que o m u n d o antigo, que deixei

jun to com o corpo físico.

Um veículo aproximou-se rap idamente de nós. E esse

foi mais um desafio para o t ipo de ideia que eu ameaçava

fazer da vida de espírito. Era um veículo pequeno, b e m ao

estilo dos automóveis que desfilavam nas ruas da Cidade

Maravilhosa e de outras tantas cidades do mundo.. . Não

fosse o fato de que não precisava de rodas! Deslizava a al-

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4 2

guns cent ímetros do chão daquele novo lar. Olhei para Ja-

mar, que sorria d iscre tamente — aliás, dificilmente o vi sor­

rir de maneira mais aberta, explícita, gargalhando, como se

vê ent re os chamados vivos. Abriu-se a por ta do veículo e

ent ramos, Maria, o próprio Jamar e eu. Não explicou, ape­

nas acompanhou meus pensamentos . Naquele ponto, era

claro para mim que ele conhecia os caminhos intr icados

que tr i lhavam meus pensamentos .

— São aeronaves, meu pai — socorreu-me Maria. —

Aqui t ambém existe mui ta tecnologia. Já vi mui ta coisa, em

poucos dias.

— Mas não somos todos espíritos? Por que não saímos

voando por aí?

— Não é simples assim. Você aprenderá logo, logo. Fi­

que quieto que terá outras surpresas por aqui.

O veículo part iu n u m a velocidade altíssima para os pa­

drões ter renos . Deslizava com tal facilidade que não perce­

bi n e n h u m sinal de movimento semelhante ao que ocorre

com os carros convencionais ao frear ou acelerar. Depois

de algum tempo, elevou-se ao alto e saiu voando, embo­

ra parecesse planar enquanto adentrava a metrópole, p ro­

pr iamente dita. E fiquei des lumbrado. Seria Niemayer o

Page 46: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

43

arqui teto mágico de tudo isso? Mas não; ele permanecia

encarnado quando abandonei o corpo físico. Ou teria ele

es tudado aqui antes de nascer no mundo? Quem sabe al­

gum artista, esteta ou escultor enta lhara ou projetara aque­

la maravilha da arquitetura, como se fosse u m a obra-pr ima

engastada na própr ia na tureza desse m u n d o imponderável ,

invisível aos olhos humanos? Meu Deus!... Fui tomado de

des lumbre ao pensar no autor de tudo o que via.

Edifícios que pareciam esculpidos em cristal ou subs­

tância similar; outros, em uma matér ia tão sutil, etérea,

quem sabe de de te rminada consti tuição nunca antes de­

tectada, descober ta ou conhecida entre os mortais . Tudo

brilhava, cintilava ent re formas e cores que em n e n h u m a

hipótese havia percebido ou vislumbrado. No meio da na­

tureza preservada, cultivada, eis que trafegavam os veícu­

los, uns imensos, outros menores e alguns outros, vistos ao

longe, rompendo o hor izonte , pareciam sair da atmosfera.

Nunca me senti tão pequenino como naquele momento .

E, na Terra, como a gente se gabava de ter construído uma

civilização... Descerrava-se ali a verdadeira civilização do

planeta Terra. Meu coração encheu-se de te rna grat idão à

vida, enquanto lágrimas desciam à minha face.

Page 47: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

4 4

O veículo se dirigiu a de te rminado ponto da grande

metrópole, que se assemelhava a bairros residenciais da

paisagem urbana, de cer ta maneira. Pairamos no andar bai­

xo de um edifício de linhas modernas , em local que parecia

estar reservado ao veículo que nos conduzia. Jamar desceu

primeiro, abr indo a por ta para nós.

Encont ramos uma mulher elegante, trajando uma rou­

pa que lembrava a belle époque e os anos 1920 da antiga Pa­

ris, com um chapéu igualmente elegante emoldurando os

cabelos. Maquiagem discreta, t raços fisionômicos que ins­

piravam confiança e segurança, ao mesmo tempo.

— Seja bem-vindo, guardião da noite. Sejam todos bem-

-vindos. Já estamos esperando por vocês.

Olhei para Jamar como a pedir alguma explicação. Ele

ignorou minha curiosidade.

— Fique quieto, meu pai — falou Maria. — Em breve

você saberá quem é Jamar e por que está abonando nossa

estadia aqui.

Aden t ramos o ambiente , que à pr imei ra vista não se

diferenciava de um dos ót imos hotéis, dir ia quase de luxo,

de u m a capital europeia . Porém, dist inguia-se pela sobrie­

dade, elegância e beleza incomuns , sem nada que r eme-

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tesse a fausto e opulência. Havia u m a recepção e um bal­

cão, onde e ram registrados os hóspedes , como de costume.

Para lá nos dirigimos, na companh ia da mu lhe r que nos

conduzia .

— Já o aguardávamos aqui, Sr. Ângelo! Meu nome é Da-

yane e pode ficar à vontade para perguntar o que lhe con­

vier. Contudo, preciso que preste atenção a algumas infor­

mações que devo lhe passar.

Olhei para Maria e t ambém para Jamar, mas eles pa­

reciam mancomunados . Deixaram-me a sós com minha

curiosidade quase mórbida, que aflorava a todo vapor.

— Não é necessário p reencher qualquer ficha por aqui.

Preciso apenas que o senhor seja submet ido ao sensor de

emoções. Mas não demora o procedimento; é algo simples,

cujo funcionamento poderei lhe explicar, mais tarde.

Conduziu-me ao balcão e lá me or ientou a colocar a

mão espalmada sobre um aparelho, que t inha a superfície

feita, ainda, de u m a variação de um cristal cintilante. Assim

que pus a mão ali, à minha frente se ergueu u m a espécie de

tela holográfica, com várias informações sobre minha vida,

e algumas outras que não pude en tender naquele momen­

to. "Altíssima tecnologia", pensei.

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— Com cer teza — afirmou Jamar, rompendo o silêncio.

— Pois bem, senhor — falou Dayane, a dama que nos re­

cebera, enquanto outras pessoas ou espíritos t ambém eram

atendidos por seres que ali t rabalhavam. — Temos aqui

uma espécie de hotel. Na verdade, assim o chamamos para

melhor facilitar o en tend imento das pessoas que chegam à

nossa cidade diar iamente , tanto advindos da Terra quanto

de outras cidades do espaço. Existem apenas duas regras:

convivência pacífica com a na tureza e respeito aos limites.

Não se paga nada; sua estadia é abonada por seres mais ex­

per ientes que pa t roc inam sua vinda à nossa Aruanda. Fica­

rá aqui t emporar iamente ; mesmo assim, es t ru turamos um

tipo de apar tamento de acordo com suas necessidades par­

ticulares e alguns de seus hábitos na Terra, de tal manei ra

que não sofrerá grande impacto no novo ambiente. Fique à

vontade para pedir qualquer coisa através do aparelho de

comunicação que encont rará em seus aposentos.

A mulher saiu para logo começar o a tendimento a ou­

tra pessoa que chegava ao local. Não imaginei que fosse

simples assim o a tendimento e tão rápido como se deu.

— Voltarei mais tarde, Ângelo. Devo comunicar a al­

guns amigos sua chegada. Daremos um tempo para que se

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recupere; porém, fique atento, pois daqui a exa tamente 4

horas chegará um médico para ver seu estado energético e

emocional. É alguém mui to humano , como você e eu; não

se preocupe. Aconselho que descanse, d u r m a um pouco e

deixe a curiosidade para depois. Terá mui ta coisa com que

se ocupar breve, breve. Aproveite, pois espero que não fi­

que t empo demais por aqui — Jamar saiu, despedindo-se

de Maria e de mim e fazendo um aceno discreto para a mu­

lher que nos recebeu naquele ambiente tão acolhedor.

Olhei mais de t idamente em volta e comecei, então, a

notar diferenças mais marcantes em relação às construções

terrenas. Mas e ram tantas, t an ta tecnologia que eu nunca

vira na Terra, que pensei estar inserido n u m sonho tridi­

mensional de ficção. No entanto, a presença de minha filha

me fez crer que aquilo tudo era realidade — era a nova rea­

lidade com a qual eu teria de conviver a par t i r dali. Respirei

fundo. Abraçado com Maria, deixei-me conduzir por ela e

por outro espíri to que logo se apresentou, no novo ambien­

te onde eu repousar ia por cer to tempo. Iniciava-se ali mi­

nha descober ta daquela cidade espantosa, maravilhosa e

sobretudo diferente de todas que conheci duran te a exis­

tência física. Eis que agora eu morava na Amanda ; ao me-

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nos por enquanto era hóspede em uma metrópole espiri­

tual que os humanos encarnados nem sonhavam existir.

Era a cidade dos espíritos, a cidade das estrelas.

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E S P E R T E I E X A T A M E N T E QUATRO horas depois, ou me­

lhor, dormi t rês horas apenas, pois duran te uma das horas

a m i m concedidas fiquei bisbi lhotando o hotel e t en tando

obter informações sobre seu funcionamento. Era tudo mui­

to inusitado e extraordinár io para mim, embora estivesse

satisfeito com o fato de estar vivo, apesar da morte . Não

obstante, encont ra r u m a es t ru tura tão complexa e ainda in­

compreensível para m i m era algo que definit ivamente me

intrigava e me instigava o espírito aventureiro e a curiosi­

dade inata, que fazia desper ta r em mim o interesse por tan­

tas coisas.

Acordei me sent indo satisfeito, inspirado, quase em

plena saúde. Assim que me levantei, descobri que o médi­

co já me aguardava na antessala. Alto, claro, magro e ves­

tido de manei ra sóbria, impecável, parecia haver chagado

ali há apenas um minuto. Mas esperava por mim. Mal havia

me colocado de pé e ouvi tocar um ins t rumento , que soou

para mim como uma campainha, emit indo um som suave.

Apressei-me até a por ta e vi o médico em pé diante de mim.

Não demons t rou hesitação: ent rou imedia tamente no am­

plo quar to onde me encontrava e começou a conversa, qua­

se sem se apresentar :

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5 4

— Boa tarde, Ângelo! Não temos mui to tempo, meu ir­

mão. Sou um dos servidores da cidade e estou aqui para

avaliar sua condição energética ou saúde espiritual. Sente-

-se, meu caro.

Fiquei um pouco perdido, confesso, mas obedeci quase

cegamente, pois sentia uma ascendência moral naquele ho­

mem, como se fosse um carisma irradiante. Ia esboçar u m a

pergunta quando ele cont inuou por si mesmo:

— Durante o t empo em que dormia, dois de nossos

magnet izadores ficaram a postos no quar to ao lado, mani­

pulando suas energias, magnet izando-o, de manei ra que

pudesse se sentir melhor quando acordasse. Espero que te ­

nha sentido os resultados.

Enquanto discorria, tirava de uma maleta alguns ins­

t rumentos e os colocava n u m a mes inha ao lado. Aliás, devo

acrescentar, u m a mesinha sem pés, que de alguma forma

eu não havia reparado, flutuava no ambiente como um ba­

lão, a apenas alguns cent ímetros do chão. Colocou ali dois

aparelhos mui to pequenos , menores que u m a mão humana ,

e, ao tocar-lhes a superfície, sem botões aparentes , foram

acionados e começaram a funcionar. Enquanto isso, ret irou

uma espécie de tubo de uns 20cm do mesmo lugar de onde

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55

extraíra os ins t rumentos anteriores. Tocava em m i m leve­

mente , em alguns pontos que para mim não significavam

grande coisa, ao menos naquele momento . Provavelmente,

notando minha curiosidade sobre a forma como praticava

sua medicina, achou por bem esclarecer:

— Nossa medicina aqui é b e m mais avançada que a

medicina terrena, isto é, dos encarnados. Do lado de cá

da vida, contamos com especialistas na tecnologia sideral

que desenvolvem ins t rumentos apropriados para devassar

o corpo espiritual de meus irmãos. Estes dois ins t rumen­

tos são usinas de energia que emi tem radiação e eletricida­

de que ser iam suficientes, comparat ivamente , para abaste­

cer duas das grandes metrópoles da Terra por mais de 20

anos. Guardam um potencial que não pode ser mensurado

apenas pelo seu tamanho. Quanto à nossa medicina, ela é

energética, psicossomática. Avaliamos com ins t rumentos

ultrassensíveis os campos de força, as correntes de energia

e a condição das emoções de nossos pacientes. Não utili­

zamos em nossa cidade métodos tradicionais como cirur­

gias invasivas, injeções ou outros recursos usados na Terra

e t ambém em muitas cidades espirituais. Aqui nosso trata­

mento usa técnicas avançadas de magnet i smo e alguns p ro-

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cedimentos mais intensos, em caso de necessidade, po rém

não invasivos. Isso t ambém é possível porque nos hospitais

da cidade não temos espíritos dementados ou em condi­

ções de significativo desajuste. Mais tarde, poderá visitar-

-nos as instalações médicas, caso queira.

O h o m e m falava enquanto me analisava. Sentia que o

aparelho produzia em mim u m a sensação de formigamen­

to, que até me parecia uma leve anestesia. Porém, o médico

não entrava em detalhes. Mal eu esboçava uma pergunta ou

pensava em falar e logo ele prosseguia:

— Como eu imaginava, algumas sessões de magnet ismo

e um acompanhamen to deta lhado de seu estado emocional

serão suficientes para você se sentir mais pleno e em con­

dições de trabalhar. Tenho lhe acompanhado desde algum

tempo antes de realizar a grande viagem. O descar te bioló­

gico foi p rogramado de ta lhadamente por nossa equipe e t i­

vemos o cuidado de acompanhá- lo nos pr imeiros momen­

tos pós-morte , d ispersando os f luidos que poder iam ser

mal uti l izados por inteligências da oposição. Afinal, você

era alvo dos opositores do Cordeiro. T ínhamos que cuidar

b e m de você devido ao potencial para o t rabalho e t a m b é m

ao passado ligado a nós, de certa maneira.

Page 60: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

57

— Posso perguntar alguma coisa?

— Mas você está perguntando, meu amigo, só que me

adianto aos seus pensamentos apenas porque não dispo­

nho de mui to tempo. Mas pode perguntar , sim. Sinta-se à

vontade, ou melhor, n e m tão à vontade assim, pois t enho

compromissos urgentes em outro depar tamento .

— Qual... — comecei a selecionar b e m as palavras, de­

morando um pouco a formular a frase. Mas parece que o

espírito à minha frente era mais ágil ou não t inha tan ta pa­

ciência assim.

— Joseph Gleber, à sua disposição, meu querido.

E vol tando-se em direção à saída, caminhou, de tendo-

-se mais um pouco somente para acrescentar:

— Existe um gravador ao lado de sua cama. Fique à

vontade para formular perguntas no seu t empo e no seu rit­

mo. Quando terminar, basta encaminhar u m a solicitação a

Jamar e eu responderei com os devidos esclarecimentos.

Estarei sempre ao seu dispor, mas não posso me deter por

muito tempo. Espero que compreenda que nosso t rabalho

aqui é intenso e daqui a cinco minutos t enho de realizar

uma conferência em out ra cidade, o que requer minha de­

dicação imediata. Deus seja contigo, amigo.

Page 61: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

58

E s implesmente saiu! E sumiu. E eu ali, boquiaberto,

sozinho, me sent indo um lixo espiritual... n e m tanto lixo

assim — tudo bem, seria um exagero —, mas quem sabe so­

litário ou, ainda, mel indrado com a situação.

"E esse cara ent ra aqui assim, apressado, sem me fa­

zer n e n h u m a pergunta, com esse sotaque rude que me faz

lembrar sei lá o quê... Parece um Sr. Spock do Além, cheio

de parafernálias tecnológicas, quase mágicas, e nem me

mandou respirar fundo, não mediu minha pressão. Afinal,

mor to t ambém deve ter pressão arterial e, t endo ou não,

a minha deve estar nas alturas, neste momento." Me sen­

ti desprezado. Não era somente na Terra que as consultas

médicas duravam tão pouco. Parece que aqui, no tal m u n d o

original e primitivo, as coisas t ambém eram rápidas, mui to

rápidas. "Quero protestar. Aqui t ambém deve existir um ór­

gão de reclamações. Quem esse tal Dr. Joseph Gleber pen­

sa que é para me t ra tar assim? Nem me deu chance de per­

guntar nada..."

— Eu lhe dei chance sim, meu irmão — ressoou uma

voz em meus pensamentos , de ixando-me arrepiado. Ar­

repiado mesmo! Descobri ali que espíri to t ambém arrepia

de medo, de pavor. O h o m e m já havia saído e demonstrava

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59

saber o que eu pensava. — Peço-lhe desculpas, amigo, mas

passei apenas para u m a visita rápida, uma vez que você

será a tendido por outro amigo de minha equipe. Quis ape­

nas me certificar de que não precisaria ficar in ternado no

hospital. Mas estou a tento a você em todo momento .

— Então por que não re torna para conversarmos?.. .

— Sinto muito, já não me encontro na mesma cidade

espiritual que você. Estou a mais de 5 mil qui lômetros daí,

se assim posso dizer.

Levei as mãos à cabeça e gritei:

— Meu Deus, que horrível é conviver com gente assim!

Esse h o m e m está falando dent ro de mim, e está em outra

cidade, a mais de 5 mil quilômetros!... Não posso entender.

— Deixe de dramas, meu irmão! Você não leva jeito

para isso. Tem mui to o que aprender e desaprender ain­

da. E mui to desafio pela frente. Ah! O tal doutor não é nada

mais do que um simples servidor. Não me chame de doutor,

por favor. Fique bem!

E a voz silenciou por completo. Comecei a apalpar mi­

nha cabeça desencarnada, como ten tando identificar se ha­

via um implante de algum microfone ali, mas não identifi­

quei nada. Era somente eu, mesmo.

Page 63: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

6 0

"Desisto, vou esperar Jamar chegar, pelo menos ele pa­

rece ter algum t empinho para mim..."

Um som de campainha se fez ouvir no quarto. "Tam­

bém, parece que por aqui n inguém dá t empo de a gente

descansar!" Atendi a porta, e era alguém ligado à recepção

do chamado hotel.

— Desculpe, meu senhor, mas haverá uma reunião no

salão de conferências, logo após sua pr imeira al imentação,

que poderá ser servida aqui mesmo em seu quar to ou, se

preferir, jun to aos demais que chegaram da Terra, em nos­

so refeitório principal. Onde prefere, senhor?

— E espíri to come também?

— Por acaso não sente vontade de se al imentar? — re­

darguiu o h o m e m à minha frente.

— Talvez um pouquinho.. .

Sorrindo largamente ele se apresentou, desculpando-se:

— Queira me perdoar, Sr. Ângelo. Não me apresentei .

Sou Bernardo e estagio aqui há b e m pouco tempo, por isso

a inexperiência. Desculpe-me a indelicadeza, senhor.

— Mas você não foi indelicado...

— Bem, senhor, notará que t rouxe mui ta coisa de sua

human idade consigo. E alimentar-se é algo muit íssimo na-

Page 64: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

61

tural e prazeroso em nossa cidade. Que prefere: que sirva­

mos no quar to ou no refeitório?

Pensei um pouco, mas não tanto, com medo de o ra­

paz à minha frente ler meus pensamentos , igual ao médico

apressadinho, e logo comuniquei minha decisão:

— Creio que prefiro ir ao refeitório. Quero conhecer

outras pessoas.

— Pois não, senhor, assim será feito. Se precisar de algo

mais, eu mesmo estou à disposição neste andar, com meus

amigos estagiários, para servir no que for necessário.

— E em qual andar estamos? Onde fica o refeitório?

— Estamos no tr igésimo sétimo andar, senhor. E o re­

feitório fica no quinquagésimo, o andar rotativo. Temos 10

refeitórios e mais 5 de apoio, caso seja necessário. Assim

que ent rar no elevador será informado como chegar lá. Eu

mesmo esperarei pelo senhor.

— Chame-me de você, meu rapaz!

— Pois não, senhor! Quer dizer, você. Ou melhor...

— Vá, vá, meu caro! Eu entendi .

E ele se foi, deixando um ar de descontração, embora

tenha ficado sem graça. E eu me esforcei mui to para não

corrigir o rapaz ali mesmo, no pr imeiro encontro. Parecia

Page 65: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

62

boa pessoa. Talvez eu pudesse falar com ele e sugerir que

fizesse um curso de português, de comunicação e expres­

são... Quem sabe por aqui t ambém encont re escolas, uni­

versidades ou coisas do gênero?

Entre i no quar to e respirei fundo. Quinquagésimo an­

dar... Bom, para um m u n d o de mortos vivos, até que as coi­

sas aqui e ram b e m marcantes .

Quando me dirigia à janela, pois a inda não t ivera opor­

tun idade de observar a paisagem no entorno, notei que ha­

via algo pendurado n u m cabide, à m inha frente. Um bilhe­

te dizia:

"Meu pai, deixo este traje para que possa usá-lo nos

próximos encontros . Parece que está ainda com um tipo de

roupa igual a que usaram para abrigar o corpo que foi en­

terrado. Sei que aprecia algo mais elegante. Use-o, se gos­

tar. Depois nos levarão às lojas para compra rmos trajes no­

vos." Assinava Maria.

Minha filha fora cuidadosa, mas como ela deixou o tra­

je ali? Teria sido levado pelo médico ou pelo Bernardo? Ou

se material izara diante de mim e eu não percebera? E esse

negócio de ir às lojas? Como assim? Naquela cidade havia

lojas, comércio, o mesmo sistema de compra e venda, como

Page 66: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

63

na Terra? Em todo lugar do m u n d o espiri tual as coisas

eram semelhantes a esta cidade? Eram muitas perguntas

e algumas delas não faziam sentido nem para mim. Mas...

eu teria de aprender a esperar. Com certeza, as respostas

viriam. E eu teria de me preparar para elas. Mas espíritos

fazerem compras em lojas? Não soava fantasioso demais?

Minha f i lha não estaria delirando? Era u m a espécie de

t ranse provocado pela morte? Preferi nem pensar, pois até

meus pensamentos ainda pareciam os dos vivos incorpora­

dos, encorpados, encarnados ou sei lá o quê. E então? Teria

eu que aprender u m a nova linguagem? Haveria aqui tam­

bém uma gramática diferente? Acordos gramaticais, senti­

dos diferentes para as palavras? Não, eu t inha de parar ime­

diatamente, senão f icaria louco. Um mor to vivo louco.

Preferi desligar esses pensamentos e fui t rocar de rou­

pa. Estava longe de ser o te rno mais perfeito que já vestira,

mas Maria nunca foi lá tão boa assim ao escolher roupas

para mim; sempre era preciso fazer ajustes. Pelo jeito, aqui

t ambém deveriam ser feitos os devidos reajustes, mas por

ora era o bastante .

Esqueci-me de olhar pela janela mais u m a vez. Virei-

-me e fui em direção à porta. O corredor do hotel era ex-

Page 67: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

6 4

tenso, largo e i luminado. Um tapete de ext remo bom gosto

cobria o pavimento, e os detalhes na decoração pelo menos

fugiam à mesmice tão frequente nos hotéis em geral, mes­

mo os mais requintados. Bem, eu não conhecia os piores, os

medianos. Mas ao menos ali havia, sem dúvida, um toque

de arquiteto, uma estética delicada, sem exageros e luxo,

de b o m gosto. Em seguida, toquei n u m lugar mais sensível,

apenas i luminado, próximo ao elevador. Na verdade, havia

oito elevadores no corredor onde me encontrava, de modo

que não esperei mui to tempo. Logo que a por ta se abriu no­

tei a presença de Maria, que me recebeu com um abraço.

— Que b o m que você está bem, papai!

Havia mais de 20 pessoas no elevador... Mui ta gente.

"Mas, como espírito não deve pesar muito, acredito que

não cairemos."

— Verá como a cidade é boni ta e aconchegante. Logo

após a reunião no salão de conferências, t e remos a opor tu­

nidade de sair um pouco por aí.

— Pelo jeito, então, nem mesmo aqui a gente está livre

de reuniões...

— É, mas aqui as coisas são um pouco diferentes da for­

ma como ocor rem na Terra. Verá por si mesmo. Ainda não

Page 68: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

65

me acostumei, mui to embora esteja meio eufórica, apesar

da saudade de casa.

Notei um leve tom de melancolia nas palavras de Ma­

ria. Ent rementes , o elevador chegou ao andar sem qualquer

ruído, sem n e m mesmo percebermos que se movera. Será

mesmo que se movera? A por ta se abriu e fomos recebidos

por uma mulher que aparentava ser mais idosa, po rém com

uma vivacidade de dar inveja. Nobre, sobr iamente vestida,

trajava um uniforme que lembrava o usado por Bernardo,

que, aliás, estava mais ao longe e fez um gesto com a cabe­

ça em minha direção. Uma música irr i tante era ouvida no

ambiente. O volume estava baixo, mas não me agradei da

tri lha sonora logo que a escutei. Mas tudo bem, pois ali nin­

guém era perfeito. Aliás, e ram humanos demais para o meu

gosto. Podia até aparecer alguém assim, mais perfeito, mais

superpoderoso, mais...

— Pai, acorde! Vamos! Vamos para a mesa. Está na hora

do desjejum.

"Essa men ina me irrita!" — pensei, sabendo que ela

não t inha superpoderes mentais ainda... ainda! Quase for­

mal demais para a ocasião com meu costume, dirigi-me à

mesa que apresentava u m a placa com nosso nome. E dei

Page 69: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

66

aquela olhada pelo salão. Vi uma mesa de frutas e sucos e

outra com petiscos; havia até mesmo frios fatiados, jamón

e presunto de Parma, ao lado de queijos variados, mas não

me pareceram bons como os de Minas.

— Que bom saber que há presuntos nobres por aqui!

Então encontrare i t ambém carnes, peixes e coisas comuns

assim aos mortais... mesmo que agora sejam imortais. E

sabe de uma coisa? Sabe o que mais gostei?

— De poder comer, diga logo, meu pai! — falou Maria,

sorrindo.

— Não é nada disso. O que mais gostei é o fato dos espí­

ritos que até agora conheci não se assemelharem nada com

santos, nem religiosos extremistas, nem serem dados a crise

de santidade. Ser humano e cont inuar sendo como eu era na

Terra é a melhor coisa para mim... E quando vejo tudo isso a

meu redor, os alimentos todos iguaizinhos aos que conheci,

vejo que poderei ter o mesmo tipo de gosto e as preferências,

o mesmo estilo de vida, sem precisar forçar para ser santo ou

anjo. Ah! Como detesto anjos. Já lhe falei sobre isso?

— Sim, Seu Ângelo! Já me falou diversas vezes, mas

ainda quando estávamos na Terra. Agora, veja se al imenta

esse seu corpinho de espírito. Vá se servir, vá...

Page 70: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

67

Surpreendi -me com o sabor dos al imentos. Os sucos,

então, sabiam mui to mais intensos ao paladar do que aque­

les que exper imente i quando no corpo físico. Indescr i ­

tíveis e ram os sabores. Ai, como eu quer ia exper imenta r

meu vinho do Porto. Só para saber se era tão bom quanto...

só para conferir!

Após o pr imeiro desjejum de desencarnado, sent ia-me

bem mais refeito. Foi quando a recepcionista do hotel pe­

diu-nos, os recém-vindos da Terra, que nos reuníssemos no

salão de conferências. Desta vez fui sem Maria, pois ela já

havia passado pelo procedimento . Alguns esclarecimentos

deveriam ser feitos, a fim de que soubéssemos sobre a ci­

dade dos espíritos, a manei ra de nos por ta rmos e, t ambém,

as condições sob as quais poder íamos ser admit idos como

moradores do local. Para lá nos dirigimos, um grupo apro­

x imadamente de 140 espíritos.

Era um anfiteatro que acomodava confortavelmente

mais de 300 pessoas, embora naquele momen to estivés­

semos em menor número . À nossa frente, um palco com

todos os recursos de i luminação comuns a um teat ro m o ­

derno, além de aparelhos que irradiavam imagens tr idi­

mensionais, como n u m a projeção holográfica. Definitiva-

Page 71: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

6 8

mente , não era uma tecnologia trivial, n e m mesmo para os

países desenvolvidos da época.

Observava tudo nos mínimos detalhes. Dayane, a mes­

ma senhori ta elegante que nos recepcionara ao chegar­

mos ao hotel , foi quem pr imeiro subiu ao palco para dar as

boas-vindas oficiais ao grupo de seres recém-chegados da

experiência física.

— Quero dar as boas-vindas a todos vocês, que chegam

à nossa cidade, e dizer que todos estamos aqui como esta­

giários a serviço da comunidade de espíritos. Por certo não

ignoram que não mais pe r tencem ao chamado m u n d o dos

vivos. De u m a ou outra maneira, sabem que a mor te visi­

tou cada um, rompendo definitivamente os laços que os li­

gavam ao antigo corpo. Chegaram hoje à nossa cidade; de­

penderá de vocês se cont inuarão conosco ou part i rão para

outras estâncias, outras cidades ou mesmo postos de apoio

nesta ou em outras dimensões, mais próximas à Crosta.

Quero lhes apresentar alguém que dará as informações

necessárias para en t ra rem em contato com o cotidiano de

nossa metrópole espiritual.

Apontando a mão direita em de te rminada direção, per­

cebemos um emissário de aspecto africano, um h o m e m ne-

Page 72: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

69

gro, sorr idente, vestido em trajes típicos de algumas nações

daquele cont inente . Dayane fez um gesto com a cabeça, re ­

verenciando o h o m e m que assumiu seu lugar, saindo por

outro lado, na tura lmente para se dedicar às atr ibuições co­

muns à vida de espíri to desencarnado, vocábulo com o qual

eu haveria de me acostumar, quem sabe.

— Pois bem, meus amigos! Sou conhecido como Nas-

sor, o seu servidor, e venho apenas esclarecer. Não sou ne­

nhum espíri to i luminado, superior ou habi tante de regiões

sublimes; somente um companhe i ro que chegou aqui mui­

to antes de vocês. Também estou aprendendo a viver na

Amanda , em harmonia com a na tureza espiritual deste

lugar. Como disse nossa amiga Dayane, sejam todos mui­

to bem-vindos à nossa metrópole , à nossa quer ida A m a n ­

da. Alguns que aqui se encon t ram t iveram uma formação

cultural espiritualista, outros talvez nunca, duran te a vida

terrena, estabeleceram contato direto com alguma religião;

outros, ainda, talvez n e m en tendam por que estão aqui.

"De qualquer forma, é bom começarmos a esclarecer

que nossa metrópole não é a única em nossa dimensão;

existem diversas outras cidades, redutos, comunidades de

espíritos, colônias ou como quei ram denominar a comu-

Page 73: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

70

nhão de seres com objetivos semelhantes , os quais se reú­

n e m em coletividades como a nossa. Cada uma das cidades

espiri tuais t êm objetivos b e m claros e definidos, por isso a

característ ica p redominan te e o t ipo espiritual que nelas

habi ta divergem bastante. Em nosso caso, aqui, na A m a n ­

da, temos u m a especialidade. Recebemos aqueles que t êm

gosto e potencial para es tudar e ajudar a humanidade , cuja

menta l idade já t enha se elevado sobre as preferências e os

debates, as disputas e os apadr inhamentos denominacio-

nais, religiosos ou de cunho nacionalista. Ou seja, aqueles

espíritos que, em suas vidas e reencarnações , aprenderam,

de alguma maneira, a viver em comunidade, n u m a comuni­

dade universal, sem fronteiras, sem barreiras, e não alimen­

t am a necessidade de brigar por pontos de vista, t ampou­

co in tentam impor sua ótica sobre as demais, ignorando as

verdades alheias. Nesse sentido, não somos uma comuni­

dade de seres evoluídos, no sent ido literal do termo. Somos

humano s a serviço da humanidade ; somente isso. Mas hu­

manos cujas mentes estão, em alguma medida, mais aber­

tas à procura da verdade no universo. Estamos conscientes

de que não temos aqui verdades absolutas, inamovíveis ou

inquestionáveis.

Page 74: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

71

"A fim de que o espíri to seja admit ido aqui, obrigato­

r iamente terá sido avalizado pela confiança de alguém ou

apontado como tendo forte potencial para ser um servidor

da humanidade . Duran te dois anos, cada um de vocês terá

acesso a todas as dependências de nossa comunidade . Se­

rão avaliados segundo os mesmos cri térios usados com to­

dos nós. Entre tanto , somente pe rmanecem como habi tan­

tes da A m a n d a aqueles espíri tos que observam três normas

ou aspectos principais, a fim de serem admit idos em cará­

ter pe rmanente .

"A primeira delas é que se matr iculem em nossas uni­

versidades e se dediquem ao apr imorando contínuo, estu­

dando sempre. Sem estudar, sem se aprimorar, não há como

o espírito permanecer aqui conosco, devido à vocação ou

especialidade da nossa Amanda . Evidentemente, não f icam

desamparados aqueles que não se adaptam ou não se sentem

à vontade com uma das exigências de nossa comunidade.

Temos vasta relação de cidades espirituais cujos métodos

diferem dos nossos e podem muito b e m abrigar qualquer

um daqueles que não se sent irem à vontade em nosso meio."

Enquanto Nassor falava, mostravam-se em projeção

holográfica as universidades e escolas da metrópole . Imen-

Page 75: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

72

so parque escolar, como eu jamais vira. Espíri tos indo e vin­

do em diversas direções e veículos que desciam e subiam

na atmosfera, t r anspor tando pessoas para aquilo que nos

parecia ser um diversificado conjunto educacional . Nassor

apontava para a projeção enquanto se dirigia à plateia. É ló­

gico que adorei tanto a forma como falava quanto a possibi­

l idade de estudar, de dar cont inuidade a muitos projetos e,

quem sabe, aprender mui to sobre a vida espiritual e as im­

plicações de ser, dali em diante, um espírito.

— Temos, aqui na Aruanda, t rês universidades. Cada

uma delas abrange muitos depar tamentos espalhados por

toda a comunidade, a fim de que seja oferecida opor tunida­

de tanto aos espíritos que aqui habi tam quanto àqueles que

nos visitam apenas para ensinar e aprender. Todos os es­

tudos desenvolvidos no planeta podem ter sequência aqui,

nos vários depar tamentos dessas universidades, sendo pos­

sível escolher en t re ramos diversos, tais como: ciências do

espírito, es tudo informativo e comparado das religiões e

sua influência no psiquismo e na cul tura dos povos, conhe­

c imento da vida no universo e a evolução entre mundos , no

âmbito dos planetas. Aquele que se interessar pode es tudar

sobre as inúmeras possibilidades da reencarnação e espe-

Page 76: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

73

cializar-se, a fim de desenvolver futuros t rabalhos e p ro­

jetos em sua próxima vida, começando desde já a estagiar,

nos diversos setores da metrópole , na mesma profissão que

desempenhará quando voltar à Terra, em novo corpo. Para

aqueles que preferem aspectos ligados à saúde, temos am­

plos laboratórios que oferecem especialização tan to na me­

dicina convencional, quanto na naturalista e na homeopá­

tica, en t re outros segmentos, que poderão ser escolhidos

conforme a área de interesse individual. Ainda há cursos

ligados à natureza, às ervas, à fitoterapia e à botânica, assim

como os que se dedicam a questões psíquicas, como mediu-

nidade, paranormal idade, magnet ismo, psicobioenergética.

Essas são algumas entre tantas possibilidades oferecidas

por nossas escolas, que, para a tender ao n ú m e r o de habi­

tantes pe rmanen tes e aos alunos i t inerantes, funcionam 24

horas por dia. Aliás, todos os serviços de nossa Amanda ,

devido à grande demanda e à diversidade imensa de seres e

culturas, funcionam dia e noite, em tempo integral.

As cenas se sucediam à medida que Nassor discursava,

e muitos pareciam encantados com a ideia de viver n u m a

comunidade desse por te e com tais características. Após li­

geira pausa para que pudéssemos absorver melhor e obser-

Page 77: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

74

var o as imagens dinâmicas que e ram exibidas, o espíri to

cont inuou:

— A segunda condição para que qualquer espírito con­

t inue vivendo conosco no per íodo ent re vidas é que ele

contr ibua com a comunidade por meio do trabalho. Não

usamos moeda de troca para conceder benefícios que qual­

quer espírito possa usufruir em nosso meio. Isto é, aqui não

adotamos o sis tema praticado, por exemplo, em colônias ou

cidades como Nosso Lar, Vitória Régia ou Halo de Luz, as

quais uti l izam o chamado bônus-hora . 2 Na Amanda , é pre­

ciso que todo espírito t rabalhe pela comunidade em algu­

ma atividade. Porém, não impomos como regra que deva

t rabalhar 8 horas ininterruptas , ou qualquer outro número

de horas. Como todas as nossas atividades t ranscor rem 24

horas por dia, o espíri to pode chegar ao seu ambiente de

t rabalho à hora que lhe for mais conveniente ou favorável,

segundo o perfil individual, observando a necessidade de

2 A célebre e pioneira descrição da realidade extrafísica que toma por base a colônia

Nosso Lar, em livro homônimo, apresenta a moeda usada ali (cf. "Bônus-Hora". X A ­

V I E R , Francisco Cândido. Pelo espírito André Luiz. Nosso lar. 3 a ed. esp. Rio de Ja­

neiro: F E B , 2010. p. 131-136. A vida no mundo espiritual, v. 1. (ed. inaugural de 1944).

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75

conciliar o t empo com os estudos e o lazer. Assim, poderá

t rabalhar 1 hora, 10 horas ou dosar sua dedicação conforme

o grau de responsabil idade assumido na tarefa abraçada. O

própr io espírito pode de te rminar o t empo que empregará

no trabalho. Mas, duran te o per íodo estipulado, ele deve

estar 100% disponível para desempenhar a tarefa que lhe

cabe e é intransferível.

"Se pudéssemos classificar nossa metodologia, de ma­

neira a facilitar o en tendimento , nos aventurar íamos a di­

zer que somos u m a comunidade baseada em um ecumenis­

mo respeitoso e um método de convivência similar ao que

talvez denominássemos socialismo cristão. Claro, espero

que me compreendam que são apenas te rmos de referên­

cia, mais a tí tulo de comparação; nossa metodologia nada

tem a ver com correntes políticas defendidas na Terra."

Nassor respirou fundo, pois com cer teza sabia que n e m

todos ali lhe compreender iam a forma de expor ou o sig­

nificado das palavras. Ele prosseguiu, sem esperar nossa

aprovação:

— Por último, a terceira exigência para que qualquer

espírito cont inue habi tando entre nós, na Aruanda, duran­

te a vida na errat icidade, é o convívio pacífico com a na tu-

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76

reza, respei tando o ambiente onde vive e t rabalhando para

que tudo e todos con t inuem usufruindo de todas as possi­

bil idades que nossa metrópole oferece, com o máximo de

qualidade.

À medida que falava, as imagens mostravam a vida ur­

bana da cidade, as pessoas indo e vindo e a na tureza exube­

rante: árvores, parques, bosques e campos em meio a uma

arqui te tura cu idadosamente planejada em cada detalhe, de

modo que as construções formassem u m a só composição

com a natureza .

— Temos à disposição dos cidadãos, operando em ho­

rário integral, exatos 128 teatros ou casas de espetáculo,

que exibem uma programação artística bas tante diversifi­

cada, dando mostras da plural idade de cul turas aqui repre­

sentadas. Tais espaços oferecem u m a variada e rica oferta

cultural , revelando talentos de nossa cidade tanto quanto

de outras mais, cujos artistas vêm apresentar reper tór ios

de alta qual idade para todos os gostos.

"Há música t ípica dos estilos conhecidos na Terra, vi­

sando a tender diversos gostos e afinidades, que vão des­

de rock, blues e jazz até os r i tmos brasileiros, como samba

de raiz, bossa nova, maracatu, baião e frevo, passando pela

Page 80: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

77

música latina — mambo, guajira, rumba, tango etc. —, isso

pra f icar apenas no cont inente americano. Há ainda mui­

tas outras tradições, acompanhadas de espetáculos típicos

de dança, como flamenco, os diversos r i tmos africanos, sem

falar na música oriental, indiana... Todos t êm livre acesso

a essa ampla oferta artística e cultural , desde que estejam

inseridos no contexto da vida em comunidade e de acordo

com a política vigente aqui, conforme apresentei a vocês.

"Além de tudo isso que falei, antes de liberá-los é pre­

ciso esclarecer sobre o método de direção ou a coordena­

ção da nossa Aruanda."

E as imagens foram então direcionadas a um imponen­

te pavilhão, à pr imeira vista si tuado na periferia da cidade,

que não devia em nada em beleza e elegância às regiões que

pareciam centrais na projeção holográfica.

— Nosso governo é formado por um colegiado, com re­

presentantes de diversos povos e culturas, que aqui convi­

vem pacificamente. Como poderão observar mais tarde, se

ainda não o fizeram, a maioria dos habi tantes da Aruanda

é composta por espíri tos procedentes de etnias africanas

ou daquelas derivadas ou influenciadas pela cul tura negra

ou afro. O colegiado reflete essa realidade, mas é composto

Page 81: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

78

t an to de seres advindos de cul turas africanas, como antigos

pais-velhos, quanto de chefes indígenas, monges budistas e

alguns mestres do antigo Oriente.

Dando uma pausa, Nassor fez com que a projeção pa­

rasse e nos surpreendeu , apresentando-nos seres que não

fazíamos ideia estivessem ali ou fossem t a m b é m nos rece­

ber no nosso pr imeiro encont ro na metrópole espiritual.

— Quero apresentar- lhes alguns espíritos representan­

tes do nosso conselho, que vêm lhes dar as boas-vindas.

Fiquei surpreso. Em que lugar do universo os próprios

dir igentes de u m a cidade como esta, deste porte, viriam

pessoalmente receber novos candidatos a habi tantes do lo­

cal? Eu n e m sabia como avaliar u m a at i tude assim tão deli­

cada quanto inusitada.

Mas a minha maior surpresa, e creio que da maioria de

nós ali presentes , foi perceber a s ingularidade da aproxi­

mação desses seres que c o m p u n h a m o colegiado. Quando

vieram, quase levitando, inicialmente se mos t ra ram a nós

na forma espiri tual que t iveram em suas culturas, mui­

tos com feição oriental ou de antigos sacerdotes de cultu­

ras e civilizações que, decerto, haviam se perdido na noite

dos tempos . Outros vest iam-se de manei ra mais exótica ou

Page 82: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

79

chamativa, mas igualmente representavam seus povos ou

culturas originais. Entre tanto , à medida que se aproxima­

vam de nós, assumiam a aparência de pais-velhos, mães-ve-

lhas, caboclos e, ainda, houve dois que t omaram forma de

criança, além de outros espíritos que vi, t a m b é m se t rans­

formando diante de nós, que adquir iam o aspecto e os tra­

jes típicos de monges t ibetanos.

A presença do colegiado ali nos recepcionando marcou

profundamente nossos espíritos. Arrancou da boca de to ­

dos um "Ohhh!" de admiração, espanto e até euforia, devi­

do à forma como se revelavam a nossos olhos de espíritos

recém-chegados. Eu não sabia o que dizer. Todos se colo­

caram de pé quase ao mesmo tempo, ante os seres à nos­

sa frente. No meio deles reconheci o h o m e m que encon­

trei antes; depois da transformação, voltou a se apresentar

como o ancião que me recebera jun to a Jamar. Era o senhor

que conheci com o nome de João que estava entre os de­

mais do colegiado... No entanto, ao contrár io do que era de

esperar, que algum deles fizesse um pronunc iamento à pla­

teia, eles outra vez nos surpreenderam. Desceram do pal­

co e se dirigiram a cada um de nós, abraçando-nos e dando

as boas-vindas individualmente, de ixando-nos ainda mais

Page 83: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

8 0

boquiaber tos com a at i tude inusitada, sobretudo porque vi­

nha de dir igentes de uma cidade espiritual. Era um gesto

d iametra lmente oposto à at i tude dos políticos da Terra, de

qualquer cidade ou nação terrena; não havia comparação.

Ali mesmo, entre seres com aparência de crianças, ín­

dios, negros africanos, mestres orientais e representantes

de outras culturas, a reunião t ransformou-se n u m a espécie

de confraternização. Ainda no palco, observando sorr iden­

te, encostado n u m a pilastra, o h o m e m de aspecto africa­

no que nos falara no início, Nassor, parecia se divertir com

nossa estupefação, r indo gostosamente da situação. Todos

envolveram pouco a pouco os representantes do colegiado,

que nos receberam de manei ra tão incomum, mas nos dei­

xaram comple tamente à vontade. Por fim, eles pe rmanece­

ram no meio da t u r m a de recém-vindos da Crosta, enquan­

to alguns de nós se a t reveram a formular perguntas sobre

aquela cidade, que mais parecia feita de estrelas, as quais

foram respondidas com grande solicitude e generosidade.

João me fitava, como a esperar algum quest ionamento.

Sorriu para mim, um largo sorriso emoldurado pela barba

branca cu idadosamente ta lhada e os cabelos t ambém bran­

cos, aparados de maneira exemplar. O te rno que vestia pa-

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81

recia ser feito do mais puro linho, alvíssimo, o que realçava

a sua cor negra de manei ra tão bela, to rnando a composição

mui to harmoniosa . Fomos nos aproximando um do outro,

e naquele momen to entendi que ele era alguém especial

naquela comunidade, e que estar íamos de alguma manei ­

ra ligados por laços que, embora invisíveis, já poder iam ser

percebidos naquele encontro, que marcou profundamente

meu ser. Não saberia dizer por quê, naquela ocasião, mas

s inceramente eu soube que havia sido conquistado por

aquele espírito. Meu ser dizia isso, embora não pudesse ex­

plicar, não tivesse palavras.

E assim mesmo, sem palavras, João foi saindo do meio

do grupo de espíritos, sem pronunciar n e n h u m a frase. Na­

quele momen to mágico, senti seu magnet ismo vigoroso e

fui atraído pela força do seu olhar, olhos negros, grandes, e

pelo sorriso es tampado em seu rosto. Segui-o, por ora abs-

tendo-me de qualquer pergunta . Apenas o segui, ávido por

novos aprendizados, sedento de sabedoria, mas não mais a

sabedoria das universidades, dos homens da Terra; poder ia

ser apenas a sabedoria daquele preto-velho. Meu coração,

ah!... Como ele parecia ar rebentar de emoção, ba tendo for­

te, como se tambores houvesse dent ro dele, tocando, rufan-

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do, fazendo o baru lho característ ico dos filhos da África ou

como o toque cadenciado dos tambores de Angola. O cora­

ção apenas acelerava, e pude me sentir mui to mais vivo do

que vivo estava antes, enquanto João me conduzia, sem pa­

lavras e sem perguntas , para ver, para conhecer a Aruanda,

a morada dos espíritos.

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ESMO A N T E S DE sairmos pelas ruas da A m a n d a e enquan­

to os demais espíri tos p e r m a n e c e r a m no salão conversan­

do com os dir igentes da cidade, João e eu nos re t i ramos

devagar, como se est ivéssemos passeando, ainda dent ro

do hotel que nos acolhera. Foi somente então que obser­

vei mais de t idamente os pormenores da decoração. Lus­

tres des lumbrantes pend iam do teto; arranjos f lorais de in­

crível bom gosto e ha rmon ia coloriam o local. No entanto ,

foram as obras de ar te que mais me chamaram a atenção.

Belíssimos quadros pelas paredes , assinados por artistas

renomados , empres tavam charme e s ingular idade ao am­

biente. Um dos quadros em par t icular me marcou profun­

damente . Era assinado por Debret , Jean-Baptis te Debret . 3

A tela retratava cenas da colonização do Brasil, embora

nunca a tivesse visto em n e n h u m museu da Terra. No Rio

de Janeiro e em outras cidades impor tan tes havia visita­

do museus com alguma frequência, p o r é m esta tela dife­

ria das demais que eu vira, do mesmo autor, as quais fizera

quando encarnado. Pois aquela apresentava cores tão mar­

cantes, e os personagens ali re t ra tados parec iam tão vi-

3 Paris, 1768-1848. Viveu no Brasil entre 1816 e 1831.

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vos que me dava a impressão de que a qualquer momento

sal tar iam da tela, movimentando-se . O céu t inha aspecto

igualmente vivo; ao olhar atento, suas nuvens deslizavam

— lentamente , mas deslizavam. Seria ilusão de ótica? En­

quanto eu estava ali parado admi rando a p in tura que me

p rende ra a atenção, João tocou-me levemente o ombro,

como a chamar -me de volta à realidade, e p ronunc iou al­

gumas poucas palavras:

— Esta tela, Debret a pintou enquanto encarnado, nos

momentos de desdobramento , em que visitava nossa cida­

de, recém-fundada, à época. Você terá a opor tunidade de

conhecer alguns museus e apreciar de per to a obra de di­

versos artistas — as originais, como esta.

Sem en tender mui to b e m as palavras do ancião, conti­

nuei seguindo-o pelo hall do hotel. Foi aí que me dei conta

de que poder ia lhe perguntar algo que estava de cer ta for­

ma incomodando minha dileta curiosidade:

— Não en tendo como n u m a cidade de espíritos exista

até mesmo hotel . E t a m b é m estes funcionários... Como en­

tender a existência de funcionários em um local como este,

se aqui, pelo que nos foi explicado, não há moeda, dinheiro

ou outra forma de pagamento?

Page 92: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

89

— Nossa cidade, m e u filho — iniciou João, respon-

dendo-me com a boa von tade que eu descobr i r ia ser- lhe

característ ica, ao passo que nos sen távamos em pol t ro­

nas confortáveis, o lhando o mov imen to da rua —, é uma

cidade que a tua lmen te abriga 10 milhões de espír i tos de

forma pe rmanen te , ou seja, du ran t e seu per íodo na erra-

t icidade, antes de mergu lha rem na ca rne novamente . Mas

recebemos t a m b é m u m a população i t inerante de aproxi­

m a d a m e n t e 5 mi lhões de seres, d ia r iamente , advindos de

outras c idades da imensidão, com as quais m a n t e m o s in­

tercâmbio. Essa população i t inerante vem visitar museus ,

parques , cen t ros de t r e inamento , mas p r inc ipa lmen te as

escolas ligadas às nossas univers idades , as quais funcio­

nam em t e m p o integral , conforme foi explicado, como

toda a vida u rbana da nossa Aruanda . Os hotéis foram

criados há séculos para receber essa população, mas t am­

bém aqueles que chegam da exper iênc ia reencarna tór ia ,

como você, no per íodo de adaptação ao novo m u n d o que

encon t ram aqui.

Pausando um pouco e dando relativa atenção a alguns

espíritos que passavam próximos de nós e olhavam para

ele, João prosseguiu, sem se apressar:

Page 93: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

9 0

— Mas os tais funcionários que você vê neste ambiente

não são funcionários no sentido que se dá ao te rmo na Terra.

Na verdade, são estagiários, alunos que es tudam em nossa

universidade visando à reencarnação futura. Aqui desenvol­

vem habilidades interpessoais, pois, ao reencarnar, lidarão

com o público na área de atuação que elegeram. Afinal, lá

na Crosta, existem inúmeras opor tunidades de trabalho

profissional em que é requerida a habilidade com pessoas,

com seres humanos . Esse estágio em algumas instituições

do lado de cá ajuda a desper tar aptidões adormecidas ou a

desenvolvê-las para, mais tarde, esses espíritos exercitarem

funções como essas. Muitos aqui es tudam matérias ligadas

à hotelaria e se p reparam para funções que desempenharão;

trata-se de t re inamento constante na área escolhida confor­

me a preferência pessoal. Quando for a hora de trabalhar, na

nova experiência reencarnatória , já terão impresso na me­

mória espiritual o que aprenderam aqui. Lá embaixo apenas

prat icarão e apr imorarão o conhecimento adquirido.

— Então não são mesmo funcionários, mas estagiários,

como me falou um dos espíritos que me auxiliou...

— Exatamente . Sob esse aspecto, aqui somos todos es­

tagiários, aprendizes. Isso ocorre em todo o ambiente da

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91

metrópole. Há lugar para desenvolver as mais variadas ha­

bilidades que têm probabil idade de eclodir nas futuras reen­

carnações. Aqueles que t rabalham em nossas lojas de roupa,

por exemplo, o fazem por pura afinidade, seja aperfeiçoan­

do a forma de a tender o público, seja aprendendo alguma

faceta do ofício da moda, desde a produção — desenho, m o ­

delagem, estilismo — até o negócio, mesmo — gestão, admi­

nistração, a tendimento, entre tantos outros aspectos. Todos

na A m a n d a estão em processo de experimentação, pois na

universidade escolheram cursos e especialidades de acor­

do com seus gostos. Enfim, t rabalham aqui para se preparar

para as futuras experiências no corpo físico.

— Mas você falou em lojas. Existe comércio por aqui

também? Insisto: não falaram que não existe moeda ou

qualquer sistema de troca?

— Creio que você precisa visitar urgentemente o bairro

onde se localizam as lojas de roupa. Assim terá uma ideia me­

lhor. Vamos, meu filho! Eu o acompanho — falou João, meu

instrutor, ao levantar-se. Antes de cruzarmos a porta, dois es­

píritos reverenciaram o ancião, e um deles o interpelou:

— Já vai, Pai João? Nos sent imos mui to honrados com

sua presença aqui.

Page 95: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

92

— Breve retornarei , meus filhos. Vim receber este nos­

so amigo que re torna da Terra. Mas breve voltarei para fa­

lar com vocês.

Fiquei meio sem entender a forma como se dirigiram

ao meu amigo João. E não hesitei em perguntar :

— Por que ele o chamou de Pai João? E a forma como

normalmen te se t ra tam por aqui?

— Nada disso, Ângelo. Pode me chamar como quiser;

fique à vontade, filho. Cada um deve se sentir livre para

comportar-se ou falar como melhor lhe convém... — E não

tocou mais no assunto.

Saímos. Na rua à frente do edifício havia intensa mo­

vimentação. Grande número de jovens conversava e cami­

nhava pelas calçadas muito largas, e n e n h u m carro na rua,

embora houvesse demarcação para veículos que, no míni­

mo, eram daquele t ipo voador no qual fui t ransportado. De

um e outro lado da rua, cafeterias mui to semelhantes a al­

gumas europeias. Não consegui apreender de imediato a fi­

nalidade e especialidade de alguns tipos de loja. Notei um

edifício de arqui te tura requintada, que denotava forte in­

fluência da cultura árabe, en t re tantos outros prédios onde

espíritos entravam e saíam. Em meio a tudo isso, t repadei-

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ras pendiam dos prédios de maneira que jamais vira, en­

quanto árvores frondosas erguiam-se de ambos os lados da

rua. Frequentemente , os ramos e galhos se entrelaçavam no

alto, i luminados por um sol que mais parecia de inverno,

não mui to quente, projetando u m a claridade nada excessi­

va e resul tando numa tempera tu ra ambiente ex t remamente

agradável, eu diria balanceada, sem excesso de calor e sem

o incômodo do frio intenso. Vi animais: cachorros, gatos,

pássaros e outros que, na Terra, decid idamente não vi nem

em zoológicos. Todos passeavam guiados por algum espíri­

to. "Se isso não é o paraíso, é algo mui to próximo", pensei.

A população que se via nas ruas era ex t remamente he­

terogênea. Havia africanos ou ao menos espíritos de pele

negra, além de outros com traços f isionômicos indígenas.

Os dois grupos reuniam belos exemplares dos dois povos,

de etnias variadas, e e ram maioria. Certos índios lembra­

vam os peles-vermelhas do cont inente nor te-americano;

outros eram t ip icamente brasileiros. Aqueles não enver­

gavam indumentár ias típicas com plumas e peles de ani­

mal, mas ambos se apresentavam mui to b e m vestidos. Os

trajes remet iam de alguma manei ra à or igem de cada um e

exibiam notável elegância — aliás, como tudo na Aruanda,

Page 97: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

94

ao menos até onde conhecera . Vi jovens e adultos vestidos

como monges, ainda que para m i m mais se assemelhassem

a adeptos do movimento Hare Krishna. Um grupo desses

espíritos passava ao longe na mesma avenida por onde ago­

ra t ransi távamos, um grupo de mais de 50 deles, cantando

músicas de forma alegre e contagiante.

O espíri to Pai João não falava nada, apenas dirigia-se

para o bair ro das lojas ou do comércio, como eu denomi­

nara o local. Quanto a mim, l imitava-me a apreciar a po­

pulação de seres exóticos, tão diferentes entre si, porém

usufruindo de uma convivência pacífica. Avistei um gru­

po uniformizado, que mais parecia de soldados. Altos, im­

ponentes , como se rumassem a u m a parada militar, porém

sem por tar armas. Na cabeça, um quepe de estilo antigo,

mais prec isamente um bibico, que trazia alguma insígnia

como decoração. Passaram por nós e menea ram a cabeça

para João. Desta vez não aguentei e perguntei :

— Por aqui t ambém há soldados, policiamento?

— Claro que sim, Ângelo. Lembre que aqui é o mundo

original, primitivo. 4 Lá embaixo é cópia. Estes que você ob-

4 Cf. K A R D E C . O livro dos espíritos. Op. cit. p. 112-113, itens 84-86.

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95

serva são os guardiões superiores. Temos poucos deles aqui

na Aruanda; apenas um cont ingente pequeno, que vem dar

aulas a aspirantes a guardiões, na universidade. A tarefa dos

aspirantes se restr inge a u m a área específica... com o t empo

ficará sabendo os detalhes. Mas temos diversos cont ingen­

tes de guardiões. En t re outros, há aqueles que chamamos

de sentinelas, e há t a m b é m as guardiãs, u m a espécie de po­

lícia feminina especializada nos en t rechoques vibratórios

que envolvem emoções e sent imentos mais densos. Depois

o levarei até o quartel dos guardiões e poderá ver de per to

a diversidade de categorias existentes e a especialidade de

cada uma delas.

Enquanto prestava atenção na explicação de Pai João

— menta lmente acabei me acos tumando a chamá-lo assim

—, interessei-me pela população de jovens espíritos que se

reunia no que me pareceu ser um pub bas tante movimen­

tado. Mais uma vez minha curiosidade foi aguçada... e Pai

João não esperou que a manifestasse verbalmente .

— Está assustado, meu caro? Por aqui a vida social é

movimentadíssima. Não passamos nosso t empo rezando,

recitando ladainhas ou cult ivando o fanatismo religioso

salvacionista, querendo ir ao umbral o t empo todo resgatar

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9 6

almas sofredoras. A A m a n d a reúne os espíritos afins com

a proposta da justiça divina. Temos uma vida social muito

mais intensa, interessante e envolvente do que muitas ci­

dades e metrópoles da Terra. Os pubs e bares são locais fre-

quentadíssimos. Neles se reúne tanto a população itineran­

te quanto muitos dos habi tantes da metrópole . Conversam

sobre temas os mais variados, desde as manifestações artís­

ticas e culturais até os projetos reencarnatór ios e familia­

res, planejando seu regresso à Terra. Neste pub, especial­

mente , é hora de encontro dos jovens alunos de ciências.

Discutem inventos e descobertas , e o debate é acalorado.

Este pub é mais frequentado por es tudantes dedicados às

descobertas e invenções tecnológicas. Se ent rar lá, com

cer teza ficará eletr izado com as discussões. Servem-se be­

bidas cujos sabores e aromas lembram muito de per to os da

Terra. E olhe que temos até a velha cerveja, conhecida sua,

e o v inho da mais pura procedência.

— E os espíritos daqui bebem também, como os huma­

nos reencarnados?

— Somos humanos também, Ângelo! Tanto quanto os

que habi tam a Crosta. A diferença é que nossas bebidas não

t êm teor alcoólico. Mas afirmo que o sabor é maravilhoso,

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97

e as bebidas, cotadíssimas entre os cidadãos, embora toda

a experiência esteja cercada de profundo senso de limite,

mesmo não havendo graduação alcoólica. Ent re elas, há al­

gumas desconhecidas dos homens , mas bas tante aprecia­

das aqui. Como não há compra e venda, todas são servidas

pelos espíritos que estagiam nesses lugares a quem queira

experimentar, po rém uma cota racionada para cada espíri­

to; nada de abusos por aqui.

— Então há racionamento, controle, u m a espécie de

controle de quant idade? —, perguntei sorrindo.

— Não há controle no sent ido tradicional, que requer

f iscal ização, mas sim um sistema ou método de regulação

que foi adotado pelos fundadores de nossa cidade e que

funciona na tura lmente . O princípio é o seguinte: tudo o

que for de uso c o m u m da população não pode estar sujei­

to a consumo em excesso, até porque, se há excesso de um

lado, provavelmente haverá escassez de outro. Assim, como

tudo na Aruanda é formado a part i r dos fluidos da a tmos­

fera, dos fluidos dispersos no espaço, caso alguém queira

utilizar u m a cota maior do que seu corpo energético tenha

necessidade ou capacidade de processar adequadamen­

te, aquele mecanismo ent ra em ação. No caso da bebida,

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98

por exemplo, na hipótese de consumo excessivo, o copo e

o líquido na mão do indivíduo se di luem na atmosfera de

modo natural , como que se desmater ia l izando em suas pró­

prias mãos. De modo que não há desperdício nem excesso

por aqui. E isso vale r igorosamente para tudo: alimentação,

vestuário e os demais recursos. Todo excesso, por mínimo

que seja, é reintegrado ao manancial da na tureza na forma

de fluido, no momen to de sua concretização. Isso contribui

para que cada habitante, cada pessoa aqui possa respeitar

os próprios limites. Para nós, esse sistema serve como fa­

tor reeducativo important íss imo; afinal, todos cometemos

excessos e precisamos desse mecanismo para usufruir das

bênçãos que a vida oferece, com moderação.

— Então a bebida aqui não teria a mesma finalidade das

bebidas alcoólicas da Terra, ou seja, talvez alegrar, desper­

tar o paladar para novas sensações, ainda que, em alguns

casos, cr iando dependência .

— Nem sei se essa é uma característ ica das bebidas na

Crosta ou se os homens , com os excessos que lhes são pe­

culiares, fizeram do prazer de beber isso que se vê hoje em

dia lá no m u n d o dos chamados vivos. Seja como for, aqui

o objetivo é exper imentar sabores novos, ricos, que des-

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99

pe i t em o prazer sensorial no que ele t em de melhor, assim

como a satisfação em conviver e socializar-se. O consumo

na medida certa t ambém faz com que cada um aprenda que

não é o uso da bebida que faz mal, mas o excesso, o que ex­

trapola o equilíbrio. De todo modo, como eu disse, nossas

bebidas não con têm teor alcoólico, ou seja, não temos es­

píritos bêbados por aqui — falou Pai João, sorrindo. — Nem

al imentamos o vício de n e n h u m espírito. Você ouviu no

hotel as condições para se viver aqui. Não recebemos em

nossa cidade espíritos com esse t ipo de compor tamento ; aí

está uma regra universal na Aruanda.

— É... Também não vi n inguém fumando por aqui —

comentei .

— Em hipótese a lguma é pe rmi t ido o uso do cigarro

em nossa cidade, Ângelo. Já t ivemos inúmeros p rob lemas

no passado e fizemos u m a espécie de plebiscito há mais

de 150 anos, ocasião em que conseguimos abolir o con­

sumo do tabaco sob qua lquer forma. Espír i tos que a inda

cult ivam esse hábi to são encaminhados a out ras c idades

do espaço, onde são admit idos t empora r i amen te , até se li­

vrarem dele. Quando es t iverem livres p o d e m até ser ad­

mitidos na Aruanda .

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1 0 0

"Mas vol tando aos nossos cos tumes aqui, você precisa

conhecer os hábitos no turnos de nossa população. Precisa

vir aqui à noite!"

Olhando para mim, para ver a minha reação, continuou:

— Aqui temos t ambém a noite. E como são lindas as noi­

tes da Amanda.. . Como a Lua aqui é mui to mais brilhante,

parece muito maior e mais vívida do que vista do mundo dos

encarnados. A vida noturna é muit íssimo mais fervilhante.

As trocas de experiência, os encontros de namorados, futu­

ros parceiros na jornada reencarnatór ia — tudo isso encanta

na Amanda . Espere até conhecer os lugares especialmen­

te destinados ao encontro de diferentes culturas, ao inter­

câmbio de ideias e experiências que ali se dá, entre espíri­

tos de etnias e procedências distintas. É algo que encanta,

envolve, apaixona. Não tem ideia de quanto são concorri­

dos esses momentos por aqui. A noite, aqueles que gostam

podem, ainda, ir a festas, ouvir boa música ou a música que

lhes apetece. Dançar, cantar, expressar sua veia artística ou

s implesmente part icipar das celebrações em meio a espíri­

tos ou pessoas, como queira dizer, nesses lugares que de al­

guma forma lembram as danceterias do plano físico, embo­

ra dotados de uma tecnologia que você nem imagina.

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1 0 1

Antes que Pai João prosseguisse contando as novida­

des da Amanda , chegamos ao local para onde nos dirigía­

mos. Ruas largas, espaços naturais e amplos jardins ent re

as lojas ou, melhor, lojas em meio a praças ou jardins, com

cafés movimentadíss imos, frequentados por gente boni ta

dos mais variados estilos. Seres trajados de modo às vezes

inusitado, charmoso ou apenas diferente do que me era

habitual. Graças a Deus não vi espíritos vest indo mantos

brancos e esvoaçantes!

Antes de aden t ra rmos alguma das lojas, Pai João deu

algumas explicações:

— Aqui funciona assim, Ângelo: n e m todo espír i to

tem a capacidade menta l de e laborar sua ves t imenta sim­

plesmente a par t i r da força do pensamen to ; mui to pelo

contrário, isso ocor re apenas com a minoria . Então, há o

que c h a m a m o s de pa rque industr ia l . T raba lham lá os es­

píri tos que na Terra desenvolveram ou desenvolverão as

profissões de estilista, designer e out ras mais, l igadas à in­

dústr ia da m o d a e à p rodução de roupas , calçados e aces­

sórios em geral. Eles exerc i tam a cr iação menta l , a con­

figuração e t ransformação dos fluidos da na tu reza em

peças de vestuár io ou, em cer tos casos l igei ramente dis-

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1 0 2

t intos, em ins t rumen tos e fe r ramentas de t rabalho. Trata-

-se de um parque de desenvolv imento do espír i to huma­

no e do potencial do pensamen to , onde se aperfeiçoam as

habi l idades re lacionadas a isso. Criam, inventam, desen­

volvem ideias e p r o d u z e m i tens de acordo com o contex­

to e a d e m a n d a de nossa metrópole . À medida que o fa­

zem, capaci tam-se indiv idualmente para desempenha rem

mais ta rde , ao reenca rna rem, funções semelhan tes às que

ap rende ram aqui.

"Pois bem, meu filho, o produto de suas criações é ex­

posto nas diversas lojas e depar tamentos existentes na

Aruanda e em outras cidades do espaço. Os espíritos que

não desenvolveram essa habil idade do pensamento ou que

não têm esse interesse vêm aqui e escolhem o tipo de roupa

ou acessório que melhor lhe pareça, t endo em vista a baga­

gem cultural e espiritual, os costumes que t inha na Terra

e suas preferências. Como de resto, não há compra e ven­

da, n e n h u m tipo de t ransação monetária , embora entre o

a tendente e o interessado haja, sim, u m a espécie de nego­

ciação... Você verá. Como foi explicado antes, aos recém-

-chegados, como todos t rabalham e es tudam em nossa ci­

dade, todos podem usufruir l ivremente daquilo que está à

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1 0 3

disposição nos diversos centros de distribuição. Basta che-

gar, pedir aos estagiários e a tendentes , e eles — que inves­

tem no desenvolvimento das próprias habil idades no con­

tato com o público, visando às futuras experiências físicas

— orientarão da melhor forma que puderem. Mas não es­

pere perfeição no serviço prestado! São todos aprendizes e

muitas vezes cometem equívocos.

"A u m a coisa você deve ficar atento, pois se t ra ta de

uma regra para tudo aqui, em nossa cidade. Como já disse,

não pode haver desperdício. Se você deseja um traje, por

exemplo, de u m a marca conceituada, com o melhor cai-

mento, pode escolher à vontade nas diversas lojas e en t re

os diversos modelos. Contudo, se precisa somente de um

traje para a vida social e de outro para o t rabalho que de­

senvolverá, seja aqui na cidade ou em outras regiões mais

densas, e levar ainda que seja apenas um a mais, terá u m a

decepção. O traje excedente se desmater ial izará ou se dis­

solverá assim que você o guardar em seu alojamento, seja

no hotel ou em qualquer moradia para onde for. O supér­

fluo logo é absorvido pela na tureza astral, e a matér ia da

qual é consti tuído, fluídica, dissolve-se e se reintegra ao

plano extrafísico no qual transitamos."

Page 107: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

1 0 4

— Ou seja, nada de ter dois te rnos Stunner da Brioni

Vanquish, 5 por exemplo...

Pai João sorriu largamente, en tendendo a ironia.

— Bem, mas eu posso ter, então, mais um terno, quem

sabe da Kiton; algo b e m simples, assim...

Pai João me olhou ainda sorr idente, en tendendo mi­

nha br incadeira esnobe.

— Então vamos lá, Ângelo, pois já é hora de trocar esse

traje com que Maria lhe presenteou, sem que soubesse seu

tamanho certo. Quando aprender ou quiser usar a força do

pensamento para materializar sua indumentária, poderá

dispensar a visita às lojas. Mas confesso que esse é um pra­

zer que gosto de cultivar. Poder escolher, experimentar, des­

cobrir novas criações dos estudantes e estilistas da Amanda

e de outras cidades espirituais... Me parece impossível não

sentir prazer com essa experiência. A alternativa de mate­

rializar as coisas pela força mental, sem sentir prazer no que

se faz... Ao menos para mim, fazer qualquer coisa que não

gere prazer e contentamento é algo que não posso conceber.

5 Grife italiana de forte tradição em costumes e ternos de alfaiataria, hoje conheci­

da apenas como Brioni.

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1 0 5

— É, a vida social aqui na A m a n d a é rea lmente envol­

vente, apaixonante. Vamos lá, eu me contento com algo

simples mesmo, acho até que t enho de desenvolver mais a

humildade após a mor te do corpo. Não precisa ser nada tão

requintado assim, Pai João. Onde fica mesmo a loja da mar­

ca Ermenegi ldo Zegna?

Rimos gostosamente e rumamos para as lojas, a fim de

que eu exper imentasse a forma de vida da metrópole , a ex­

periência insólita de escolher meu pr imeiro traje de mor to

metido a vivo.

Comecei por observar a fim de escolher u m a loja: ler o

nome, apreciar a logomarca e a comunicação visual, as co­

res com as quais o estabelecimento fora pintado, até que

adentramos de te rminado ambiente. Acho que Pai João não

sabia da minha chatice nem do nível de exigência que me

caracterizava. Não sou nada humi lde n e m fácil de agradar,

devo confessar. Fomos atendidos por um rapaz que, logo

se via, era iniciante. Assim que reconheceu Pai João a meu

lado, passou a outro a tendente a função e ficou nos obser­

vando de longe.

— Bom dia, senhores! Sejam bem-vindos ao nosso cen­

tro de distribuição.

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1 0 6

Não poder ia ser mais gentil o espírito. Parece-me que

estava há algum tempo estagiando ali, quem sabe se prepa­

rando para lidar com um púbico tão diversificado e eclético

como o que ia e vinha na metrópole . Havia bas tante gen­

te no depar tamento de roupas. A decoração era sóbria, chi­

que, e os t rabalhadores ali t inham cer to cha rme e presença.

O espíri to que nos atendeu, como a maioria dos habitantes

da cidade, era negro, p roduto de alguma mis tura étnica que

lhe conferira t raços finos e delicados. Alto e esbelto, sorri­

so farto, dentes branquíssimos, vestia um cos tume elegan­

tíssimo, mas ousado, de linhas modernas . Não t inha visto

ainda um traje como aquele. Fiquei impressionado com o

ex t remo bom gosto.

— Nosso amigo Ângelo quer escolher um tipo de roupa

para usar em nossa cidade — adiantou Pai João, se dirigin­

do ao espírito.

— Pois bem! Chamo-me Watambi e serei seu servidor

enquanto estiver em nosso depar tamento — disse, enquanto

me deixava à vontade para aproveitar meu primeiro contato

social post-mortem. Medi cada detalhe, cada pessoa ali pre­

sente e a fisionomia de cada um. Os trajes usados pelos espí­

ritos que vinham escolher novas roupas me impressionaram.

Page 110: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

1 0 7

Havia negras vestidas de modo a lembrar as baianas

tradicionais de Salvador. Outras usavam peças far tamente

coloridas, com tecidos enrolados, cuja inspiração era clara­

mente africana. Cabelos arrojados, n u m estilo afro impos­

sível de não ser notado, os tentando a beleza dos povos do

continente africano. Ao lado daquelas figuras, havia u m a se­

nhora requintada, à moda europeia do início do século x ix ,

embora talvez destoasse dos demais e da modern idade rei­

nante; a meu ver, era como uma dama ret ra tada por artistas

renomados da época. Homens b e m vestidos e alguns jovens

trajando esporte fino. Fiquei impressionado. Nada de espí­

rito usando longos mantos de cor branca ou azul, que se ar­

rastassem pelo solo ou cobertos de glória, luzes e auréolas.

Pai João me deixou à vontade. Observei tudo, todos os

detalhes, as expressões fisionômicas e o t ipo h u m a n o ali re­

presentado por toda aquela gente morta . E para quem esta-

va morto até que eles estavam muito bem.

— Senhor Ângelo, aceita um suco ou alguma bebida em

particular, enquanto aprecia nossos trajes?

Olhei para Pai João, e ele sorriu disfarçadamente.

— Apenas água, por favor.

— Algum tipo específico, senhor?

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1 0 8

E eu ainda podia escolher a água? Hesitei, sem saber o

que fazer. Lembre i -me logo da Perrier, mas fiquei encabu­

lado de demons t ra r tan ta simplicidade...

— Se me permi te — interferiu Watambi —, sugiro que

exper imente nossa água da Amanda . Em nada deixa a de­

sejar se comparada à tradicional Perr ier ou à San Pellegri-

no, velhas conhecidas de ambiente sofisticados da Terra.

Nossa água é de excelente qual idade — falou, como se adi­

vinhasse meu pensamento . Para disfarçar minha humilda­

de infinita, respondi:

— Então pode me servir essa mesmo. Aceito sua sugestão.

E Pai João acrescentou:

— Ele se esqueceu de dizer, Ângelo, que só temos esta

água aqui!... Mas não vai se decepcionar de jeito n e n h u m

com o sabor, a suavidade e a característ ica renovadora da

água da nossa dimensão.

Após ser servido de manei ra bas tante cortês, eu diria

mesmo com serviço de primeira, nosso anfitrião me auxi­

liou na escolha do pr imeiro traje do outro mundo .

— Aqui temos diversos modelos. Devo dizer: os espí­

ritos que t raba lham na criação menta l se esmeram no de­

senho, na modelagem e na confecção, mas pr incipalmen-

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1 0 9

te quando mater ia l izam a matér ia-pr ima, que é mui to mais

pura e de melhor qualidade do que a encont rada nos teci­

dos da Crosta. Afinal, t en tam a qualidade ao grau máximo,

pois disso depende o futuro deles na Terra, quando retor­

narem e eclodirem as intuições e a vocação para o gênero

de atividade que desempenham aqui.

"Portanto, apresento- lhe o melhor que temos, vindo

diretamente da nossa linha de produção — disse, voltando-se

para determinado grupo de peças. — Sem levar ectoplasma

em sua confecção, mas mater ial izado em nossa, d imensão

através da matér ia un icamente mental , criou-se esta tex­

tura mui to mais apr imorada do que o mais puro l inho co­

nhecido na Terra. Como sabe — como se eu soubesse —, o

ectoplasma cria uma sensação mais grosseira na mater ia­

lização. Os detalhes, senhor, pode observar por si mesmo.

Nenhuma costura pode ser vista, u m a vez que os produ­

tores e executores do projeto mental fizeram de tudo para

ocultá-las e deixar à most ra somente as dobraduras , ele­

gantemente distr ibuídas de manei ra a realçar mais ainda a

beleza do tecido e a suavidade das formas."

Fiquei perplexo. Diante de mim havia pelo menos 18

tipos diferentes de trajes, desde costumes clássicos até os

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1 1 0

mais modernos , semelhantes ao que o espíri to à minha

frente vestia. Difícil escolher. Foi aí que descobri que es­

píri to t a m b é m tem dúvidas ao escolher a vest imenta, sua

roupa de mor to vivo. Espíri to sofre... E que sofrimento é

este, meu Deus! Como Watambi notou minha hesi tação ao

optar por este ou aquele modelo, acrescentou outras infor­

mações, talvez pensando em me ajudar na escolha. Depois

do drama mental , da ironia não expressa em palavras, re­

solvi ouvir mais a tentamente ; afinal, eu era assim, difícil de

contentar.

— Este traje aqui, por exemplo, é feito de uma matéria

fluídica especial. Ele se ajusta au tomat icamente ao corpo

do indivíduo, assumindo a forma mais aproximada possível

dos contornos do corpo.

Não era o meu caso. Mesmo tendo rejuvenescido al­

guns anos na aparência, não ostentava lá aquele corp inho

que merecesse ser realçado. Não sei porque , mas me pare­

ceu que os espír i tos ali escolhiam com desenvol tura suas

roupas ou, talvez, não se impor tassem em escolher mui­

tas, pois sabiam que o excesso era dissolvido magicamente

nos chamados f luidos ambientes. . . Mas eu, não! Eu não era

tão simples assim. Não me bas ta ram as explicações de Wa-

Page 114: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

111

tambi. Demorei mais de 2 horas e, s inceramente , não con­

segui me decidir.

Resolvi p rocurar outra loja, outros modelos. Despedi-

-me do a tendente , não esperando voltar ali. Pai João, pa­

ciente, me acompanhou. Ao sair à rua, mesmo movimen­

tada e cheia de gente de aparências mil, não houve como

não perceber a presença de uma mulher, eu diria, radian­

te demais, devido aos trajes de procedência andaluz. Alta,

porém não muito, por te charmoso, magra e com os cabelos

pretos envoltos n u m tipo especial de véu negro com alguns

fios dourados, desfilava à nossa frente, chamando a atenção

de alguns outros espíritos. Vestido usado por ciganas espa­

nholas, leque à mão direita, passou por nós e, após alguns

passos, deteve-se bruscamente . Voltou-se para mim, igno­

rando por completo a presença de Pai João, abiu o leque de

maneira escandalosa, p roduz indo aquele baru lho caracte­

rístico de quando se abre um leque, e falou:

— Pelo teu tipo, gajo, deves estar vivendo o maior dra­

ma mental s implesmente para escolher u m a roupa para ti.

Imagino o teu sofrimento... maior do que o das almas perdi ­

das nas furnas umbral inas! E dizem que espíri to não sofre

nos planos superiores... — ironizou a mulher.

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1 1 2

Fiquei meio pasmo com o jeito dela, arrojado, qua­

se atrevido. Abriu o leque novamente , de forma a chamar

mais ainda a atenção, e se apresentou, es tendendo-me a

mão, à moda antiga:

— Consuela, encantada!

— Ângelo, Ângelo Inácio — respondi , meio sem saber

como me comportar .

Voltando-se para Pai João, acrescentou:

— Deixe o gajo por minha conta, meu velho. Darei a ele

todo o apoio necessário para a sua visita ao nosso barrio;

sei que t em mui ta coisa a fazer. Caso queira, quando termi­

narmos o levo até onde você indicar.

Pai João parecia já conhecer a mulher, pois, sem dizer

uma palavra, ao menos não palavras articuladas, pois pode­

r iam muito b e m estar conversando pelo pensamento , dei­

xou-nos, meneando a cabeça para mim. Também, depois

do t empo que gastei na loja, com certeza Pai João deduziu

que não me contentar ia indo apenas a um ou dois lugares,

sobretudo porque teria de escolher somente um traje. Fi­

quei meio inquieto com o compor tamen to da espanhola,

mas ela soube me deixar à vontade e me divertir com seu

jeito marcan te e irreverente. Tão logo Pai João saiu, dei-

Page 116: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

113

l ando -nos em frente a uma praça, ela curvou o braço, como

me convidando a segurá-lo, e disse-me:

— Não vai deixar uma dama esperando assim, não é,

gajo? Pelo visto você tem estirpe e não fica bem u m a dama

de sangue nobre ficar esperando e caminhando ao lado de

um gajo desprotegida assim. E suspirando, n u m aparente

exagero, acrescentou:

— Ai, como sou desprotegida! Corro tanto risco no

meio desse povo sem estirpe...

Não sei exa tamente o que ela pre tendia , mas aquele

espíri to me conquis tou com seu jei to irônico, i r reverente

e impetuoso. Dei o braço a ela e saímos em direção a ou t ra

loja. Aliás, outras lojas. Visitamos mais de 20 lojas antes

que me decidisse. E depois de tan to andar, conhecer gente

de todo tipo, voltei à p r imei ra loja, que visi tara na compa­

nhia de Pai João. Watambi foi ex t r emamen te cortês, au-

xi l iando-me u m a vez mais. Foram mais 90 minu tos anali­

sando e exper imentando . Afinal, como dizia Consuela, ela

não ouvira as explicações de Watambi sobre os fios espe­

ciais, o tecido sedoso e os fluidos empregados na mater ia-

ização dos modelos à escolha. Ele teve de explicar t udo

de novo, e ela, ereta, abanando o leque e resp i rando fun-

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1 1 4

do, exigia mais deta lhes antes que eu exper imentasse cada

traje. Dizia:

— Afinal, não sairei por aí ao lado de um espíri to mal-

vestido e com roupas que não condizem com a estirpe espi­

ritual a que estou habi tuada.

Ri gostosamente. Nunca me diverti tanto assim em tão

pouco tempo. Mais ta rde eu contar ia tudo a Pai João, que

diria somente: "É uma menina mui to levada essa minha f i ­

lha. Mas é boa gente!".

Saímos dali, eu todo empert igado com meu novo traje

de mor to vivo. Afinal, escolhi algo bem prático, simples mes­

mo, mas funcional. Consuela adora brincar, fala muito e se

ofereceu para me mostrar algumas das praças da cidade. Foi

um passeio muito interessante. A noite já caía na metrópole

espiritual. Uma espécie de nostalgia parecia querer se ins­

talar em minha alma, mas Consuela não me deixava tempo

livre para sequer pensar em tristeza. Meu primeiro dia do

lado de cá foi algo realmente fantástico. Muito mais tarde eu

entenderia que fora tudo planejado nos mínimos detalhes,

a fim de evitar que eu me entregasse à depressão post-mor-

tem, como é comum a muitos espíritos. Mas naquele mo­

mento eu não sabia nada disso. E não era mesmo para saber.

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1 1 5

A primeira praça que fiquei conhecendo foi a chamada

Praça dos Orixás. Jamais vi t amanha beleza e expressivida­

de da cultura negra. Vários orixás representados em mara­

vilhosa obra de estatuária. Chegamos a um dos lugares mais

concorridos, onde espíritos de procedências e estilos diver­

sos se reuniam, a maioria com trajes típicos africanos, mui­

tos lembrando antigos baianos das décadas finais do século

XIX e das primeiras do século XX. Apresentações teatrais e

exibições de dança afro ocorriam ali, com precisão e beleza

exemplares. Os dançarinos elevavam-se entre 5 e 8 metros

de altura, deslizando na atmosfera ambiente e revolucionan­

do para, logo depois, pousarem ao som de instrumentos —

congas, surdos, tablas, flautas transversais, violões e diver­

sos outros que nunca vira, desenvolvidos do lado de cá por

espíritos experientes na criação de inst rumentos musicais.

Em dado momento , Consuela, talvez mais para me

mostrar a tecnologia usada na cidade dos espíritos do que

para descansar, convidou-me a sentar n u m dos bancos da

praça. Havia vários outros espíritos sentados, en t re eles

casais que mais me pareciam apaixonados, namorados , do

que s implesmente amigos espirituais. Assim que nos senta­

mos, comentei :

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1 1 6

— Puxa, a vida social aqui não deixa t empo para triste­

zas. E olha que não conheço n e m 1% das atividades realiza­

das na cidade! Pensei que vida de mor to era um verdadeiro

tédio, indo e vindo ent re nuvens e louvores sem fim... Ledo

engano! Ainda bem!

Enquanto eu falava, o som dos ins t rumentos e da con­

versa dos espíritos a pequena distância v inha em nossa di­

reção obedecendo ao mesmo processo pelo qual o som se

propaga no ambiente da Crosta. Então, Consuela tocou

n u m a lateral do banco onde estávamos sentados, n u m a es­

pécie de botão escondido n u m nicho. Logo percebi uma pe­

lícula finíssima erguer-se em torno do banco e, logicamen­

te, de nós dois, como se fosse um campo de pura energia,

t ransparen te ao máximo, mas perceptível, devido a certo

br i lho que irradiava ou refletia. Como por encanto, o baru­

lho externo cessou. Consuela comentou:

— Assim é melhor. Em todo local público por aqui te­

mos essa tecnologia, tan to em ambientes fechados, como

pubs e casas de encontro dos jovens, quanto ao ar livre,

como nas praças. Podemos erguer esse campo de compen­

sação, como é chamado aqui, e somos isolados do som am­

biente . É u m a forma discreta de preservar-nos ou manter

Page 120: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

1 1 7

nossa privacidade, sem que outras pessoas precisem part i ­

cipar da conversa que temos. No momen to em que desejar,

pode s implesmente tocar no dispositivo ao lado dos bancos

e voltar a ouvir tudo ao redor.

Não é preciso dizer que já estava estupefato com a tec­

nologia usada na metrópole , mas essa s implesmente me

conquistou. Uma das coisas que mais me irritava na vida

ter rena era a obrigação de escutar as pessoas conversarem

num volume desconcer tante , de ouvir assuntos que não me

interessavam e a impossibil idade de me isolar completa­

mente quando conversava com alguém. Era s implesmente

irri tante isso tudo. Mas aqui... não! Senti-me tão compreen­

dido, como se essa tecnologia tivesse sido desenvolvida es­

pecialmente para mim... Que máximo! E mais ainda: como

dissera Consuela, em todo local era possível optar por iso­

lar-se do ambiente, permi t indo conversar de maneira har­

moniosa, sem a interferência de música, bu rbur inho ou

outro t ipo de som indesejado. Achei isso o ápice da privaci­

dade. Agora, só me faltaria descobrir como ocultar os pen­

samentos. Pois, ao que parecia, alguns espíritos t inham a

mania besta de devassar os pensamentos alheios, de manei­

ra que deveria rever u rgen temente o conceito de privacida-

Page 121: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

1 1 8

de. Antes que eu pudesse falar sobre isso, é claro, descobri

que a tal Consuela t a m b é m t inha essa habilidade.

— Não são todos os espíritos que podem conhecer nos­

sos pensamentos. São somente alguns, aqueles que desenvol­

veram habilidades psíquicas, como a telepatia, por exemplo.

Olhei para ela como que repr imindo o fato de ela saber

o que eu pensava.

— Mas não se preocupe, gajo, aqui aprendemos o ver­

dadeiro significado daquilo que na Terra é chamado de dis­

crição e ética. Não devassamos os pensamentos secretos, as

questões íntimas; não conseguir íamos fazer isso, ainda que

quiséssemos.

Olhando para m i m com seu leque em modo baru lhento

— em oposição a modo silencioso —, acrescentou:

— Na verdade, não são os espíritos com habilidades

mentais que lêem ou pene t r am pensamentos ; as pessoas

é que são permeáveis . Pensam com tanta intensidade que

não há como os mais hábeis e conhecedores das leis do

menta l i smo não no ta rem as formas mentais , os clichês, co­

res e formas-pensamento criadas, mant idas ou al imentadas

pela gente despercebida. E como essas formas mentais ir­

radiam-se além dos limites do corpo espiritual, como elas,

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1 1 9

por assim dizer, povoam a aura dos espíritos, os mais expe­

rientes percebem, veem, leem nas entrel inhas o que se pas­

sa no m u n d o íntimo.

— E não tem como a gente evitar que ouçam, en tendam

ou leiam o que pensamos?

— Ah! Gajo, isso é outra história! Terá de es tudar as leis

do mental ismo em nossa universidade e aprenderá mé to ­

dos que chamamos de educação do pensamento e das emo­

ções. Pois há espíri tos que t ambém conseguem distinguir e

interpretar nossas emoções de forma bem precisa.

— Ai, meu Deus! Isso não tem fim? Não há como levan­

tar uma barre i ra prote tora em torno do nosso cérebro espi­

ritual ou extrafísico? Algo semelhante ao que você fez aqui

na praça, em torno do banco? Assim, a gente ficaria mais

isolado menta lmente .

— Como lhe disse, gajo, é questão de educar o pensa­

mento. E isso não sei como ensinar. Você terá mui to t empo

para aprender. Aqui, t empo é o que não nos falta.

Fazendo menção de se levantar, fechou seu leque ele­

gantemente, não sem fazer o baru lho característico, e me

convidou, quem sabe meio sem paciência com minhas neu­

roses de espíri to recém-desencarnado:

Page 123: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

1 2 0

— Está na hora de levá-lo de volta ao hotel. Você já

apresenta sinais de desgaste vital.

— Eu? Euzinho? Estou me sent indo mui to bem, se me

permite.. .

— Nada disso! O velho está d izendo que você precisa

descansar. Será analisado pelos médicos de nossos hospi­

tais. Afinal, é seu pr imeiro dia aqui. Precisa dormir. Ama­

nhã estarei com você novamente . Isto, é claro, se desejar.

E saiu quase me arrastando, enquan to o campo de

compensação se desfazia à nossa volta e o som característi­

co do pessoal reunido na praça, da música e de todo o con­

texto da apresentação artística invadia nosso campo audi­

tivo e nossos sentidos, embora de forma harmoniosa, sem

causar n e n h u m mal-estar. Como estávamos mais ou me­

nos distantes do hotel , Consuela optou por pegar um trans­

por te público, o chamado aeróbus. Visualmente, era muito

semelhante aos t rens rápidos da Europa. En t ramos e, logo

que nos sentamos, Consuela começou:

— Aqui temos estes veículos. Os espíritas encarnados

os chamam de aeróbus. Eu odeio esse nome. Prefiro cha­

má-lo apenas de veículo aéreo; uma questão de gosto, ape­

nas. Existem diferentes modelos para finalidades as mais

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1 2 1

diversas. Usar veículos como este — sobretudo quem não

aprendeu a levitar ou não o faz sem grande esforço — evi­

den temente economiza um bocado de energia mental , que

pode ser empregada em outras realizações.

Enquanto se desenrolava nossa conversa, o veícu­

lo percorr ia lugares diferentes; com certeza, parar ia p ró­

ximo ao local onde deveríamos descer. Mas uma coisa me

inquietou: ao invés de subir na atmosfera, ele l i teralmente

desceu, como se fosse um metrô, viajando logo abaixo da

superfície da cidade. Minha amiga percebeu meu espanto

de imediato.

— Não fique assim tão chocado com este nosso mundo ,

gajo. Como eu disse, existem vários tipos de veículo. Este

aqui, que t ranspor ta u m a quant idade maior de pessoas,

percorre as vias no subsolo, como os velhos e conhecidos

metrôs da Terra, embora estejam em operação em nossa ci­

dade desde o ano de 1695. Temos desde veículos que voam

pela atmosfera astral afora até aqueles projetados para des­

cer a regiões mais profundas do submundo, no conhecido

umbral ou mesmo em lugares mais densos. Pessoalmente,

adoro os que se pres tam a sair da atmosfera t e r rena rumo

à Lua, por exemplo, os quais são potentíssimos, mui to em-

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1 2 2

bora pouquíssimos espíritos t enham autorização de sair do

ambiente do planeta em direção ao espaço cósmico. Então,

vá se acos tumando com as diversas faces da vida espiritual.

Vamos descer n u m a estação antes do hotel, pois quero lhe

mostrar alguma coisa antes de você descansar.

— Já falei que não me sinto cansado!

— Vamos descer, de todo jeito. — E acrescentou: — De

qualquer ponto onde estiver na cidade, encont rará uma es­

tação a no máximo 400 metros a pé, onde poderá embarcar

em algum dos veículos. É uma malha de t ranspor te público

que funciona com uma eficiência de nos deixar orgulhosos.

Seja por terra, pelo ar ou pelo subsolo, como no caso deste

comboio, sempre haverá um tipo de t ranspor te ao alcance

dos habi tantes da metrópole , de modo permanente .

Descemos n u m entreposto de t ranspor te ou, como

chamou Consuela, n u m a estação. Caminhamos pouco. Na

verdade, para chegar à superfície havia a opção de levitar­

mos, impulsionados por uma espécie de colchão de ar, ou

subirmos em esteiras rolantes, que eram um charme à par­

te; algo b e m futurista. Adorei as possibilidades, mas pre­

ferimos ir a pé mesmo, circulando em meio aos pedestres,

que, diante de tantas opções de t ransporte , não e ram em

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número tão grande assim. Foi u m a experiência mui to di­

ferente para um espírito, mas t a m b é m muit íssimo gratifi­

cante. Em alguns en t roncamentos e passagens subterrâ­

neas, semelhantes a túneis confortavelmente largos, havia

obras artísticas a decorar o percurso. Enta lhadas em ma­

terial ainda desconhecido para mim, erguiam-se colunas

portentosas, e o teto parecia haver sido pintado, quem sabe,

por algum Michelangelo, t amanha era a precisão nos tra­

ços e a beleza observada ali, b e m como nas demais obras

de arte. Em de te rminado local, pouco antes de emergi rmos

à superfície, deparei com um espaço mais amplo, mesmo

dentro dos túneis . Era uma espécie de praça, com algumas

cadeiras dispostas harmoniosamente . Espíri tos assentados

admiravam a música de qualidade apresentada talvez por

membros de alguma sinfônica — poucos, na verdade, mas

suficientes para produzi r algo que tocava o espíri to mais

exigente em relação à boa música.

Subimos, então, o úl t imo lance antes de ascender à su­

perfície, enquanto Consuela chamava a atenção por onde

passávamos, com o traje t ip icamente andaluz, elegan­

te como ela só. E eu to ta lmente absorvido pela decoração,

pela beleza em cada detalhe.

Page 127: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

1 2 4

Quando chegamos à superfície, minha amiga e guia de

tur ismo do m u n d o espiritual apontou em direção ao céu. As

estrelas me encantaram. Eram visíveis quase na totalidade

as estrelas da Via Láctea. Uma profusão de luzes inundava

suavemente o campo visual, e vários espíritos ficavam pa­

rados, como nós, olhando, observando, inspirando-se, tal­

vez, no espetáculo de belezas imortais. Pela pr imeira vez,

eu chorei. Chorei de nostalgia, de enlevo, completamente

envolvido pela beleza da imensidade, da Amanda . E antes

que meu choro se convertesse em pranto, talvez pela minha

tendência post-mortem de t ransformar as coisas em melo­

drama, minha amiga convidou-me a voltar os olhos para o

lado oposto do firmamento. Notei que diversos indivíduos,

de um e outro lado da rua, t ambém fixavam aquele lugar.

E o que vi me encantou mais uma vez. Grande quantida­

de de espíri tos se aproximava, levitando na atmosfera da

cidade. Faziam u m a espécie de ziguezague ou bailavam ao

se deslocar em suspensão. Lembravam borboletas ilumi­

nadas, radiantes, de es tonteante beleza. Na Terra, os reló­

gios marcavam alguns minutos após as 18 horas. A popula­

ção parecia extasiada, olhar f ixo ora n u m ponto, ora noutro,

contemplando a beleza da na tureza e a manifestação da-

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1 2 5

queles seres que desenvolviam u m a coreografia inspirada,

quem sabe, em alguma música que meus ouvidos ainda não

eram capazes de perceber. Eram mais de 200 espíritos indo

e vindo em perfeita harmonia , no espaço acima de nós. Al­

guns veículos aéreos in te r romperam seu curso, pai rando

nas alturas enquanto os ocupantes assistiam ao espetáculo

de belezas indescritíveis. Se algo na Terra pudesse se apro­

ximar mui to pál idamente do que presenciei , talvez fosse

uma apresentação do Cirque du Soleil, quando artistas cir­

censes se elevam ao alto graças a suportes de vida, cabos de

aço ou cordas elásticas. Mas é mui to pálida essa compara­

ção. Seja como for, era impossível não ficar admirado diante

das capacidades do espírito humano . Como a ar te expressa

com perfeição u m a das faces mais interessantes da criação

e da própr ia sabedoria divina! Deixei-me tocar in t imamen­

te por toda aquela beleza, e assim ficamos ali por cerca de

30 minutos, parados, na mais absoluta contemplação.

Os pensamentos , na tura lmente , eu n e m sabia por onde

iam, mas de u m a coisa tive certeza: sent ia-me imensamen­

te grato a quem quer que fosse que me avalizou, abr indo a

possibilidade abençoada de viver, es tudar e t rabalhar nesta

atmosfera de beleza, diversidade e respeito, nesta grande

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1 2 6

escola de convivência mais harmoniosa com a vida univer­

sal. A grat idão brotou no meu coração como nunca perce­

bera até ali. Gratidão a Deus, à vida, ao universo.

Nem me dei conta, t ranscorr ido aquele tempo, de que

estávamos b e m próximos do hotel. Consuela, sem se preo­

cupar em disfarçar u m a lágrima discreta n u m canto de

olho, convidou-me a caminhar. E caminhamos em silêncio.

Aliás, nunca vi t amanho silêncio como o que percebi na­

quele momento . Parece que toda a população da cidade dos

espíritos prosseguia em silêncio rumo aos mais diversos

afazeres. Simplesmente, todos estavam tocados com as im­

pressões de beleza que cada um tivera, conforme sua situa­

ção íntima, segundo mais ta rde me contar ia Pai João. Dei

graças por haver percebido aquele espetáculo de maneira

tão intensa.

Aliás, eu sempre fora sensível a tudo que é belo, ao sen­

tido estético das coisas, das pessoas, de tudo à minha vol­

ta. Mas descobri ali, naqueles momentos de enlevo, que de

alguma forma a mor te parecia haver amplificado tudo em

mim. E a beleza fazia mui to mais sentido em minha alma,

mui to mais do que antes de exper imentar a chamada mor­

te do corpo. E t ambém ali, enquanto caminhava em silên-

Page 130: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

1 2 7

cio ao lado de Consuela, pude pensar no quanto a mor te e o

morrer abrem as portas da alma, escancaram os sentidos do

espírito, l ibertam do medo e das limitações do en tendimen­

to. Isso, na tura lmente , dependerá da aber tura que damos às

opor tunidades e da postura mental do indivíduo. Por mim,

estava mais que decidido: dali em diante, não perder ia ja­

mais uma chance de t rabalhar e aprender, es tudar e progre­

dir de alguma forma, pois descobri nesta cidade meu verda­

deiro lar. Se havia sobrevivido em mim alguma vontade de

re tomar o corpo que ficou na Terra, essa vontade apagou-se

de vez ante as belezas e as possibilidades no novo lar, na pá­

tria à qual regressara pelos braços generosos da morte .

Adent ramos o ambiente do hotel e me despedi da nova

amiga. Não sei para onde ela iria, se t inha u m a casa, um

bangalô ou morava na área u rbana da cidade. Despedi-

-me dela grato por haver encont rado pessoas afins, com as

quais conviveria com satisfação, e deixei-me embalar pe­

los pensamentos repletos das novidades que reservava a

cidade dos espíri tos, a Aruanda de todos os povos, de todas

as gentes.

Nem me recordo de como cheguei ao quarto. Sei ape­

nas que, quando passei pela porta, deparei com um buquê

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1 2 8

de flores sobre a mesa, n u m vaso que n e m era lá do meu

gosto, mas não deixava de ser belo. A surpresa trazia um bi­

lhete subscri to pela equipe do hotel: Seja muito bem-vindo

ao novo lar! Esperamos fazer parte de sua família espiritual.

Que sua estadia entre nós seja uma descoberta diária de feli­

cidade e satisfação. Conte conosco, Sr. Ângelo Inácio — e vá­

rias assinaturas p reenchiam o res tante do espaço no cartão.

Não sou mui to chegado a esse t ipo de manifestação,

de flores e coisas do gênero, mas, confesso, me emocionei.

Ao cheirar as flores, o aroma me tomou por completo e um

leve sono pareceu preencher minhas sensações. Dirigi-me

à cama. Colchão macio, lençóis e legantemente arrumados,

com um tecido de qualidade superior — em cuja compo­

sição na tura lmente não entrava ectoplasma, como diria o

a tendente da loja que visitei —, com um toque sedoso que

me convidava a deitar-me.

Relaxei assim que me encostei naquele n inho que me

abrigava o espírito. E sonhei. Sonhei com as estrelas de

A m a n d a e com um país onde todos podiam conviver em

paz, onde reinava uma política diferente, com leis simples,

que bem serviam aos propósitos da população de seres que

ali habitava. Sonhei com uma vida diferente, com uma nova

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1 2 9

civilização, com Maria, minha fi lha. Apenas sonhei e me re­

temperei; refiz meu espírito em meio aos fluidos balsâmi­

cos da A m a n d a de Pai João, de Jamar e dos amigos novos

que eu conhecera ali, en t re as estrelas.

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1 3 3

ui A C O R D A D O POR Jamar, meu amigo guardião ou anjo

da guarda. Ele foi mui to discreto e só adent rou o ambiente

do apar tamento após me chamar, t ambém discretamente .

Confesso que, se ele tivesse deixado, dormir ia até mais tar­

de. Era o pr imeiro sono verdadei ramente reparador depois

da transição e da desativação do corpo físico. Acordei me

sentindo bas tante fortalecido, energizado e com u m a dis­

posição ínt ima excelente.

J amar me esperava na antessala. Ele precisaria aguar­

dar por mais algum tempo, na verdade, pois senti vontade

de tomar um banho demorado. Eu não t inha noção do que

ele faria duran te o t empo da minha higiene, se ficaria ali

esperando ou sairia para resolver algo. Sei b e m que esse

espírito não é lá de ficar aguardando sentado, esperando o

tempo passar.

O fato é que me dirigi ao toalete e encontre i u m a ba­

nheira grande o suficiente para me acomodar de modo

confortável. Ao lado, n u m a espécie de deck onde se aloja­

va a banheira , alguns vidros con t inham extratos de ervas, e

pareciam estar ali há pouco. Quem os teria providenciado?

Não saberia dizer. Talvez Bernardo, o rapaz que se dispuse­

ra a auxiliar nos momentos de adaptação. Encontre i diver-

Page 137: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

1 3 4

sos frascos com algum conteúdo verde, um tipo de sumo ou

extrato que resolvi experimentar .

Assim que segurei o pr imeiro deles, notei um rótulo

com as informações: Extrato concentrado de ervas. E ha­

via instruções: Recomendado para liberar energias densas e

emoções mais intensas e pesadas. Derramar o conteúdo na

água e permanecer imerso por aproximadamente 20 minu­

tos. O segundo frasco era indicado para se recompor após

o descar te biológico, com propr iedades terapêut icas ener-

gizantes. E assim por diante, um a um trazia a indicação es­

pecífica. Escolhi o que acreditei me serviria melhor, e, tão

logo a banhei ra se encheu, o que não demorou, deitei o con­

teúdo do frasco. O resul tado foi mui to semelhante ao que

se vê na Terra, quando se de r r amam sais de banho na água.

Após me despir, entrei na banhei ra e fiquei submerso por

alguns instantes, para logo relaxar com a água até os om­

bros. Não era hidromassagem, mas nem tudo pode ser tão

perfeito. Respirei fundo e percebi os aromas agradáveis, in­

tensos, penetrantes . Parecia que alguma coisa se despren­

dia do meu corpo espiri tual — aprendi ser esse o nome do

novo envoltório que me servia —, mas era algo mui to den­

so. Fluidos ainda se man t inham impregnados nas células

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1 3 5

ultrassensíveis do meu organismo, segundo me explicaram

mais tarde. Creio que o extrato que escolhi t inha alguma

propr iedade terapêut ica que liberava ou sugava de meu ser

tudo aquilo que excedia o necessário para minha vida ali,

naquele recanto abençoado do universo.

Relaxei a ponto de não me dar conta do t empo que se

passou. Será que meu anjo guardião ainda me esperava lá

fora ou desistira de mim? Levantei-me de sobressalto e foi

então que percebi quão mais leve eu estava. Caminhei pelo

quarto com a impressão que perdera boa quant idade de

fluido denso, de energia pesada ou sei lá como me referir à

sensação tão agradável e de leveza que exper imente i após

o banho. O sabonete era um misto de calêndula, ca rdamo­

mo e cânfora, e talvez alguma outra erva, mas não li toda

a composição, no rótulo da embalagem. Sei é que já na ba­

nheira senti uma suavidade incrível em meu corpo espiri­

tual. Mesmo agora fal tam-me palavras para descrever em

sua ampli tude a sensação que me dominava. Vesti o te rno

que havia sido escolhido tão rap idamente no dia anterior,

na companhia da amiga Consuela, e saí para ter com Jamar.

Ele estava de pé na antessala, embora houvesse ali um es­

paço confortável e pol t rona para se instalar.

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1 3 6

— Sente-se melhor, Ângelo? Espero que t enha experi­

men tado o efeito regenerador e es t imulante do banho. Aqui

em nossa cidade, a água exerce um papel fundamental para

todos nós.

— Você ficou aí me esperando esse t empo todo?

— Não! Acabei de chegar.

— Mas ouvi a campainha tocar e você me chamar pelo

aparelho de comunicação.. .

— Ah! Com o tempo você aprenderá muitas coisas por

aqui. Estava ainda no QG dos guardiões quando você me ou­

viu e adentrei aqui exatamente no momento em que abriu a

porta. Não podia aguardar; sabe como são os compromissos.

Lembrei -me do médico que viera no dia anterior me

consultar. Embora o t empo aqui fosse mais dilatado do que

aquele ao qual havia me acostumado na superfície, parecia

que alguns espíritos p reenchem seu t empo com tanto traba­

lho e responsabil idade que não lhes sobra mui to para cur­

tir. Sofrem de s índrome do trabalho compulsivo, imagino.

Jamar, vestido com um traje semelhante ao que usara

nas ocasiões anteriores, man t inha o por te ereto, sóbrio e,

acima de tudo, a atmosfera em seu entorno. A compleição

física do guardião denotava marcante mascul inidade ou vi-

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1 3 7

rilidade, além de uma força descomunal . N u m a proporção

muito acima da média, parecia exalar energia yang de cada

átomo do corpo espiritual. Não obstante, era a calma em

pessoa; mant inha-se t ranqui lo e inspirava segurança e um

quê de paternidade, de modo que estar em sua presença fa­

zia bem. Forçosamente ocupava u m a posição de comando

naquela comunidade.

— Temos de ir, meu amigo. Alguns dos imortais nos

aguardam, e você precisa conhecer algumas pessoas cen­

trais em nossa comunidade . O t rabalho que t em a realizar

não pode ser adiado.

— Trabalho? Mas eu mal morr i e já t em trabalho para

mim? E o tal do descanso eterno? Não t enho direitos?

— E deveres, t ambém. Não se esqueça de que conhe­

cimento e mui ta habil idade acar re tam grande componen te

de responsabil idade. Você não veio para nossa comunidade

por acaso. Você não escolheu; foi escolhido.

— Então não vou mais descansar?

— Sente-se cansado?

— Talvez... Depende do que me espera!

— Vamos! Alguns comentár ios não merecem resposta

— falou sério, mas sem n e n h u m a expressão de gravidade.

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1 3 8

Parecia que ele não t inha t empo a perder, mesmo; não era

como Consuela. Não mesmo!

Saímos do hotel, e logo me chamou atenção o veícu­

lo. "Como é mesmo o nome espírita para ele?" Àquela al­

tura, não pude recordar o nome que Consuela me falou no

dia anterior. Soube apenas que era algo feio, sem elegân­

cia nem criatividade. Enfim, entrei naquela espécie de au­

tomóvel e então notei mais um h o m e m e uma mulher; ela

estava vestida com um uniforme similar ao de Jamar. Era

levemente mais descontraída, embora t ambém inspirasse

segurança e responsabil idade. J amar nos apresentou:

— Essa é Semíramis, a representan te das guardiãs, e

Watab, um amigo servidor em nossa corporação.

Ambos me cumpr imen ta ram sorr identes , po rém no­

tei ainda certa reserva. Watab era alto, magro, com den­

tes branquíss imos. O traje, um tanto solene, diferia bas­

tante do de Jamar. Era um tipo de roupa que se ligava ao

corpo, deixando-lhe as formas e os músculos mais eviden­

tes. Lembrou-me algum bailarino que havia visto na Terra,

em apresentação. Ri sozinho. Não sei se me perceberam o

pensamento , mas Jamar logo se manifestou, esclarecendo

nosso objetivo e ignorando ou ao menos desconsiderando o

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1 3 9

que pensei. Graças a Deus, pois viver no meio de um povo

que sabe o t empo todo o que você pensa não é fácil, não. E

esse negócio de imortal idade? Meu Deus, como me pare­

ceu difícil conviver com gente que não morre nunca, nun-

quinha... E o pior: sendo assim, eles não têm medo da mor­

te e, não tendo medo da morte , podem ter medo de alguma

coisa na vida? Jamar in te r rompeu meus diletos pensamen­

tos e raciocínio profundos.

— Vamos a uma reunião — dirigiu-se a mim — em que

alguns de nossos mentores e mest res querem conhecê-lo

ou dar-se a conhecer. São seres mais experientes , com um

grau de responsabil idade para com a human idade do qual

nem sabemos a extensão verdadeira. Sabemos, contudo,

que t rabalham n u m a dimensão mui to mais alta e com ta­

refas mais expressivas do que a nossa. Mas fique tranquilo;

são humanos , na verdadeira acepção do termo. Riem, br in­

cam e en tendem nossos dilemas e limitações.

— Então podemos dizer que são espíritos de luz? —

perguntei , com cer ta dose de sarcasmo, reconheço, mais

pelo tom piegas dessa expressão...

— Não os classificamos assim; nós os chamamos de

orientadores evolutivos da human idade e nossos, t ambém.

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1 4 0

A audiência será rápida, pois não dispõem de t empo para

se dedicar a uma conversa mais demorada .

— Tempo, tempo... Parece que aqui vocês não sabem

aproveitar o t empo e terno que t êm pela frente.

— Em breve, você verá que há mui to o que fazer pela

humanidade , sobretudo neste per íodo da história. Muitos

lances do grande conflito dependem de nossa ação rápida e

constante. Há mui to mais em jogo que nossa simples con­

dição de espíri tos em aprendizado. — A conversa adquiriu

um tom mais grave. Olhei para Semíramis e ela esboçou um

sorriso contido, talvez dando a en tender que me compreen­

dia o jeito h u m a n o de falar, não somente humano , mas irre­

verente; irônico, até.

Chegamos a um edifício mui to estilizado, se compa­

rado aos demais que vira até então. Formas modernas , ar­

rojadas, i luminado, pelo sol. O veículo pousou n u m local

p reparado no alto do prédio, que, ao que parecia, situava-

-se na periferia da cidade. Descemos n u m a espécie de ele­

vador, que funcionava com um sistema semelhante àquele

do hotel, com um tipo tecnologia que não existia nas insta­

lações da Crosta. Semíramis tomou a dianteira, seguida por

Jamar e Watab, e logo atrás ia eu, caminhando n u m passo

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1 4 1

mais lento proposi tadamente , a fim de observar tudo ao re­

dor. Minha mente , sempre atenta, registrava cada detalhe.

Adentramos um ambiente acolhedor, com pol t ronas con­

fortáveis, onde u m a recepcionista nos aguardava. Semíra-

mis apresentou a si e a Jamar.

— Olá! Somos aguardados pela administração da me­

trópole. Trazemos um convidado recém-chegado da Cros­

ta. Poderia nos anunciar, por favor?

— Desculpe, senhores , senhora, mas ocorreu uma

emergência n u m dos países do ex t remo Oriente e nossos

dirigentes t iveram de se dirigir imedia tamente para o cam­

po de bata lha espiritual. Pediram para avisá-los que retor­

narão em alguns minutos . Por favor, sentem-se enquanto

aguardam. Desejam algo? Alguma bebida, quem sabe?

— Obrigado, minha quer ida — respondeu Semíramis. —

Vamos aguardar por aqui, enquanto conversamos com nos­

so convidado.

Meus novos amigos sentaram-se, enquanto eu notava

os detalhes do ambiente. A mesa de contornos nobres pa­

recia ter sido desenhada especialmente para aquele lugar.

O t ampo flutuava sem pernas aparentes , ao passo que um

discreto dispositivo eletrônico sobre a mesa mostrava ima-

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gens ou paisagens desconhecidas para mim. Dirigi-me até

as janelas e observei a vida intensa da metrópole . Daqui era

possível ter u m a ideia mais ampla daquela sociedade de se­

res que viviam fora do corpo. Era uma verdadeira civiliza­

ção espiritual.

Olhando para a direita, via-se a vida na metrópole; veí­

culos indo e vindo em várias direções e espíritos levitando

na atmosfera, sempre em grupos, pe rcor rendo u m a estra­

da invisível, como se bailassem ao som de alguma músi­

ca que não se escutava. Do lado oposto, incontáveis casas,

bangalôs, parques , campos, bosques e florestas, que se avis­

tavam mais além, de manei ra que, à minha visão, parecia

não ter fim o mosaico de verde e harmoniosas intervenções

humanas sobre a paisagem natural . Pululava de vida aque­

le recanto do universo. Pássaros exóticos, outros que já co­

nhecia, e u m a infinidade de seres diferentes avistavam-se

ao longe. Minha visão parecia ter sido dilatada ao extre­

mo, por algum mecanismo ignorado. Olhei para baixo do

prédio e vi seres es t ranhos, diferentes não tanto pela vesti­

menta , como pela conformação externa, física, a qual dife­

ria largamente do t ipo h u m a n o convencional. A esta altura

de minhas observações, Jamar se aproximou e esclareceu:

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1 4 3

— São nossos i rmãos do espaço. Seres ex t ra te r res ­

tres, que convivem aqui conosco, ha rmoniosamen te . Te­

mos um cont ingente desses seres nos vis i tando t an to aqui,

em nossa met rópole , quan to em algumas outras c idades

de espíri tos, em to rno do planeta . São poucos , mas t r azem

eno rme contr ibuição no p repa ro dos guardiões pa ra o m o ­

mento de reurban ização extrafísica ou de t ransmigração

in te rmundos .

Olhei sem en tender direito para o amigo guardião, e

ele en tendeu tanto minha curiosidade quanto minhas dúvi­

das, que ce r tamente extravasavam do meu interior.

— Sim, Ângelo. Há vida em outros mundos , e não so­

mente vida depois da vida conhecida na Terra. No entan­

to, as coisas não são exatamente como afirmam alguns gru­

pos na Crosta. Esses seres estão há t empos em contato com

diversas comunidades em torno do globo, mas evitam in­

terferir d i re tamente nas questões planetárias, a menos que

essas questões possam afetar d i re tamente o equilíbrio da

vida universal.

— Então eles interferem de alguma maneira? Existe al­

gum caso específico em que porventura t enham agido, de

forma mais direta?

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1 4 4

— Claro! Desde algumas décadas, há países que já sa­

bem da existência desses seres; alguns destes inclusive já

f izeram contato direto com certos governos do mundo.

Quando da ameaça bas tante plausível de u m a nova guerra

nuclear, eles interferiram intensa e inesperadamente , como

ocorreu com o governo nor te-americano. Estabeleceram

contato com os humanos no poder e ameaçaram u m a in­

vestida mais direta, aberta e ostensiva, caso aquela nação

não modificasse a política armament is ta . Teriam condi­

ções, tecnologia e autorização cósmica para atuar a ponto

de afetar os equipamentos elétricos e eletrônicos do plane­

ta, impedindo mesmo que bombas nucleares fossem dispa­

radas novamente . Poder iam agir na rede de comunicação

do planeta, o que causaria um caos completo. Com isso, al­

guns governos resolveram modificar a política e a forma

de adminis t rar os recursos tecnológicos, a fim de evitar a

guerra nuclear. Esse é apenas um dos casos.

— Então certos governos da Terra sabem da existência

de vida em outros planetas?

— Não somente sabem como t a m b é m têm contato di­

reto com algumas inteligências extra terres t res a tuantes no

sis tema solar, em dado t ipo de tarefa. Porém, caso admitam

Page 148: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

1 4 5

tal fato publ icamente ou provas venham a público de ma­

neira oficial, decer to rui r iam por completo e imedia tamen­

te muitos paradigmas, sejam de caráter político, fi losófico

ou religioso. Imagina o caos que se seguiria, pr incipalmen­

te em âmbito religioso, de forma geral? Muitas teorias ad­

mitidas como verdades intocáveis cair iam por Terra, e de

modo abrupto.

— Isso significa que o povo nunca saberá ao cer to a res­

peito desses seres? — indaguei. — Permanecerá na ignorân­

cia, indefinidamente?

— De forma nenhuma, Ângelo. Os própr ios governos

e agências de inteligência de de te rminados países paulat i­

namente apresentarão documentos e provas para a popu­

lação. Igualmente planejam, sob a pressão dos extra terres­

tres, é claro, várias estratégias de ação que visam preparar

o povo para aceitar a existência deles antes que se mos­

t rem aber tamente . Muitas peças de comunicação de massa,

como filmes, por exemplo, são encomendadas por agências

de inteligência de certas nações e patrocinadas por órgãos

governamentais . M u n d o afora, programas de televisão vão

ao ar e matér ias são publicadas na imprensa visando habi­

tuar len tamente o povo, até que a ideia da existência de se-

Page 149: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

1 4 6

res fora do planeta Terra seja admit ida de manei ra global.

A mudança cultural é gradual, mas consistente, e está em

pleno andamento . Em algum m o m e n t o no início do milê­

nio, documentos virão à tona e, mais tarde, provas consi­

deradas cabais. Não se pode esquecer de que a população

do m u n d o ul t rapassa 7 bilhões de almas reencarnadas; se­

gundo a contabil idade espiritual, são cerca de 9 bilhões de

desencarnados . Levando em conta a diversidade cultural e

religiosa dos habi tantes do planeta, certas si tuações devem

ser levadas ao público de manei ra gradativa, embora cons­

tante, a fim de não provocar colapso em mui tos setores da

vida ter rena .

Olhei o universo à minha frente e entendi que havia

mui to mais coisas a aprender do que eu supunha . Enorme

var iedade de conhec imentos novos estavam à minha dispo­

sição, esperando a hora de iniciar o aprendizado.

M u d a n d o radicalmente o r u m o de nossa conversa, per­

guntei a Jamar:

— E quando poderei me matr icular nas escolas da ci­

dade? Queria fazer um exame para ver em que situação me

encontro e, tão logo possível, colocar-me à disposição tanto

para os estudos quanto para as atividades.

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1 4 7

— Não se preocupe, amigo. Em breve te rá tanta coisa a

fazer que suplicará por momentos de descanso. — E riu um

sorriso discreto, mas imedia tamente re to rnando à serieda­

de costumeira.

Passados alguns minutos , meu amigo falou:

— Terá hoje a opor tun idade de conhecer alguns de

nossos or ientadores espirituais, mentores ou guias, como

alguns preferem chamá-los. São espíritos mais exper ientes

do que a maior ia e do que nós que o convidamos.

— São porventura anjos guardiões? Seres de luz?

— Não falamos assim, por aqui. Esses termos, em geral,

são empregados na Terra por religiosos, que t en tam asso­

ciar à personal idade de tais espíritos o conceito de santi­

dade ou elevação elaborado nas religiões. Longe de serem

santos ou seres redimidos, são, como nós, apenas humanos ,

mui to embora dotados de vasta experiência tanto quanto

de grandes responsabil idades, as quais mui tos de nós estão

distantes de compreender . Alguns estão envolvidos com

um tipo de t rabalho que t ranscorre n u m âmbito b e m maior

do que supomos ou conhecemos. São s implesmente nossos

mentores e or ientadores , mas não isentos de lutas pessoais.

Não são anjos, que desconhecemos aqui; t ampouco se ca-

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148

rac ter izam por aquele t ipo de elevação que muitas religiões

da Terra lhes atr ibuem, e que chega a se confundir com

certa passividade contemplativa.

"Mesmo em meios que teor icamente dispõem de co­

nhec imento espiri tual mais avançado, como o espírita, a

maioria dos adeptos é impregnada ou condicionada pelo

t ipo de visão t ip icamente medieval. Da mesma forma são

os conceitos, as ideias e crenças que a l imentam a respei­

to do t rabalho tanto quanto da na tureza dos espíritos que

nos dirigem. Transpuseram a forma de pensar católica e

os pensamentos seculares, f rancamente ul t rapassados e

obsoletos, para a prát ica religiosa ou p re tensamente filo­

sófica que adotam. Essa visão arcaica de mundo, l imitada

por conceitos moralistas e maniqueístas, pe rmanece como

pano de fundo das consciências; estas, mesmo com a che­

gada das luzes esclarecedoras, pa recem estar acomodadas

ou rearranjadas de tal manei ra que a velha realidade men­

tal não seja ferida.

"Assim, no discurso a existência de anjos e santos é re­

futada, em acordo com os princípios da fi losofia espírita; na

prática, porém, os mentores espiri tuais p reenchem o lugar

dos velhos ídolos e são t ra tados com devoção e veneração,

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1 4 9

como se fossem entes divinos e supra-humanos . Frequen­

temente, não se admite em hipótese alguma que tais espí­

ritos sejam quest ionados, n e m sequer para en tender suas

orientações e melhor cumpr i r eventuais determinações ,

quanto mais para discordar ou pedir explicações mais por­

menorizadas. De modo geral, os adeptos são pessoas com

muita boa vontade, mas religiosos ao extremo, apegados

inadvert idamente a conceitos de religiões do passado, que

t razem vivos, enraizados na mente . A verdade é que nos­

sos or ientadores espiri tuais não são nada disso e parecem

muito pouco com o que comumen te se fala a respeito deles.

Verá por si mesmo."

— Devem ser seres mui to sérios, compenet rados , cien­

tes de suas obrigações com a humanidade .

— Sim, é verdade, em cer ta medida. Mas ser iedade não

implica severidade, rabugice, chatice ou falta de b o m hu­

mor. Aliás, alguns desses espíritos t êm t amanha leveza e

bom h u m o r que se confundem com a população comum.

São superiores, sim, mas não espíritos puros, mui to me­

nos santos, e não de têm sabedoria plena. Enfim, não abdi­

caram de sua humanidade , do prazer de vivenciar certas

experiências pu ramen te humanas , t ampouco se conside-

Page 153: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

1 5 0

ram missionários, como muitos encarnados os consideram.

Como na d imensão física o peso da herança católica é ain­

da mui to grande nos meios espíri ta e espiritualista, esses

nossos i rmãos encarnados acabam por beatificar espíritos

prote tores e aqueles que alcançaram um estágio maior de

experiência. I m p u t a m a eles os mesmos atr ibutos de infali­

bil idade e sant idade que fiéis cos tumam atribuir ao papa e

aos santos católicos. Mas quer saber de u m a coisa, Ângelo?

N e n h u m desses seres a quem chamamos superiores têm

qualquer coisa disso que se diz a seu respeito.

— Então, mui ta gente, religiosa ou não, quando ultra­

passar os portais da mor te pelo descarte do corpo físico,

talvez se decepcione amargamente ao conhecer de per to os

própr ios guias ou anjos da guarda, não é?

— Isso ocorre com larga frequência, pr incipalmente

com médiuns que querem a todo custo que seus mentores

sejam mais adiantados, mais evoluídos ou detentores de

tão grande conhecimento que, para muitos, é quase como

se fossem o própr io Cristo. Apresentam seus mentores tão

envolvidos em luzes, i r radiando t amanha bondade e deten­

tores de tal grau de sant idade e elevação que, ao ouvir tais

descrições, cabe desconfiar. Será que elas se referem mes-

Page 154: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

1 5 1

mo a mentores ou se parecem mais com a descrição de al­

gum santo católico idealizado?

"Ao chegarem aqui, encont ram seus mentores , quando

os encontram, vestidos como homens simples; descobrem

que a visão que t inham de seus orientadores não passava de

uma visão pessoal, requintada pelo orgulho e pelo desejo

de ser especial. Deparam com pessoas de bom coração, mas

ainda seres comuns. E tantos são os médiuns que descrevem

seus mentores de maneira por tentosa que mui ta gente cré­

dula acredita que se trata da mais pura verdade. Querendo

ser ainda mais diferente, há quem afirme que seus mentores

são extraterrestres, como se isso fosse sinônimo de elevação

espiritual, e que decepção t êm ao apor tar em nossa d imen­

são e constatar que não passam de espíritos familiares. São

pais, irmãos, parentes de outras vidas, cada qual com seu

sistema de crenças pessoais e culturais, como qualquer ou­

tro espírito. Não raro encont ramos médiuns desencarnados

totalmente t ranstornados, decepcionados com seus men to ­

res reais, em contraposição àqueles idealizados."

— Se é assim, por que não interferem, de manei ra a

desmistificar as questões relacionadas à vida espiritual,

aos espíritos em part icular? Uma abordagem sem misticis-

Page 155: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

1 5 2

mo, sem o componen te de religiosismo, talvez servisse para

desper ta r alguns na Crosta e most rar a vida do lado de cá

sem mistérios, sem o componen te românt ico que faz com

que os médiuns , ao desencarnarem, se decepcionem ou en­

t rem em depressão.

Olhando para seus amigos Semíramis e Watab, Jamar

sorriu mais uma vez discretamente , de ixando algo no ar.

— Falei algo errado, porventura?

— Não é isso, meu Ângelo! Você terá opor tunidade de

ouvir dos Imorta is o projeto de t rabalho que o espera. Verá

como eles planejam u m a tarefa que t rará resultados mais

amplos...

Antes de Jamar ou qualquer dos seus amigos falarem

mais, ousei perguntar :

— Por que vocês chamam esses espíritos de Imortais?

Não somos todos imortais, afinal? Os espíri tos não são to­

dos eternos?

— É apenas uma convenção, Ângelo, u m a forma de nos

referirmos àqueles que alcançaram maior experiência e

uma visão mais ampla das questões da vida.

— Também falamos assim — interferiu Watab, pela pri­

meira vez — ao nos referirmos àqueles espíritos que talvez

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1 5 3

não t enham tanta necessidade de reencarnar, como a maio­

r ia de nós, mesmo porque passam períodos de tempo mui­

to maiores na erraticidade do que a maioria. Embora voltem

ao palco da vida física como a esmagadora maioria dos seres

que já descar taram ou desativaram seus corpos materiais,

não mergulham mais na carne com as mesmas necessidades.

— Mas podemos diferenciar imortalidade e eternidade

de maneira a en tender melhor — falou Semíramis com uma

voz potente , embora feminina. — Consideramos e te rno

aquilo ou aquele que não teve início n e m terá fim. Portanto,

segundo essa compreensão de eternidade, só o Pai é e terno,

o Criador, em cuja direção todos caminhamos . Imortal ida­

de, por outro lado, pode ser vista como atr ibuto daqueles

que foram criados, ou seja, de quem teve início, po rém não

terá fim. Dessa forma, todos os espíritos são imortais.

"Ainda assim, há outro aspecto a considerar, outro pon­

to de vista, quando nos referimos a de te rminada catego­

ria de espíritos como Imortais . Eles representam, também,

aqueles seres que já descar taram o segundo corpo, isto é,

o corpo espiri tual ou períspirito, de modo que vivem e vi­

bram na dimensão pu ramen te mental . Não padecem da

necessidade inexorável de adotar um organismo mais ma-

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154

terial, quer seja de matér ia física ou astral, a fim de que a

consciência possa se manifestar, como a maioria de nós;

aqui. Em razão disso, os Imorta is são seres cujo compro­

misso com a humanidade é mui to mais abrangente, e cujas

responsabil idades, em âmbito universal e mental , escapam

por completo ao conhecimento e ao en tendimento da maio­

ria dos seres comuns, como nós mesmos. Em suma, trata-

-se apenas de uma forma de distinguir os mais avançados,

aquelas almas cujo compromet imen to com as leis da vida

extrapola a noção que temos do assunto. Apesar de tudo

isso, à semelhança do que ocorre conosco, ainda erram, co­

me tem falhas, embora em dimensão e escala b e m diferen­

tes do que consideramos habitual. Enfim, são autênticos es­

píritos do bem, mas de modo algum espíritos puros." 6

— Entendi. . . Então, esses Imorta is a que se referem...

Fomos in ter rompidos pela assistente que nos chamavi

— Desculpem, meus senhores, mas nossos dirigentes já

estão de volta e os aguardam na sala ao lado. Por favor, me

acompanhem!

6 Cf. "Escala espírita". In: K A R D E C . O livro dos espíritos. Op. cit. p. 117-127, item

100-113.

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155

Ao aden t ra rmos o ambiente , elegante, po rém mini­

malista, tive um choque ao perceber o médico que me ha­

via examinado an ter iormente . Ele estava ali, olhos claros,

meio sério, vestido de branco. Aliás, era o único vest ido de

branco ent re os demais. O ancião Pai João estava mais re ­

cuado, p róx imo a um arranjo floral, única peça propr ia­

mente de decoração vista no ambiente . Trajava um cos­

tume b e m cortado, na cor azul-marinho, que contrastava

com a camisa branquíss ima e a gravata espan tosamen­

te moderna e coerente . Mais outros espíri tos estavam ali,

sorr identes. Havia um mais idoso, de barbas fartas, olhos

amendoados , que irradiava uma doçura imensa, mas todos,

absolutamente todos, e ram mui to h u m a n o s para meu gos­

to. Todos me observavam silenciosos. Fui apresentado a

Saldanha, Júl io Verne, Anton e alguns outros de aparência

espiritual mais excêntrica, ao menos para os padrões a que

eu estava familiarizado.

Mesmo tendo Jamar e os guardiões falado a respeito

de como esses espíritos eram, eu s inceramente esperava

encontrar anjos ou algo do gênero. Mas... e ram humanos ,

tão humanos! O sorriso farto nos lábios de alguns desfa­

zia comple tamente qualquer ideia preconcebida de que

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1 5 6

os chamados Imorta is fossem seres i luminados, radiantes

de energia ou transfigurados em focos de luz iridescente.

Nada disso. De fato, me decepcionei! Esperava mesmo que

Jamar e Semíramis estivessem a tenuando a característica

daqueles espíritos apenas para me deixar à vontade. Mas

não! Eram exatamente conforme descrito.

— Seja bem-vindo, Ângelo Inácio — falou o médico

para mim, uma vez que, na tura lmente , já me conhecia. —

Sejam bem-vindos todos.

— Estamos felizes por encontrá- los novamente — falou

Jamar, exalando u m a aura de t ranqui l idade e felicidade le­

gítima. Era contagiante a satisfação que demonstrava, em­

bora conservasse o aspecto de um guerre i ro sempre a pos-

tos, sempre atento a tudo.

— Estes são os nossos amigos Bezerra — falou Joseph

Gleber, o médico que conheci antes e que lera meus pensa­

mentos —, Séfora, do Oriente, Zar thú, o Indiano, Eurípedes

Barsanulfo e Anton, um dos chefes da segurança planetá­

ria. Você conhece João Cobú, nosso convidado especial, e

os demais — apontou para a equipe —, que mais ta rde serão

seus companhei ros mais próximos nas tarefas que tem a

realizar. Infelizmente, outros amigos que quer iam se apre-

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1 5 7

sentar não pude ram permanecer , pois situações emergen-

ciais no ext remo Oriente requerem a presença deles.

Todos nos o lharam de manei ra tão natural e nos deixa­

ram tão à vontade que pensei estar en t re amigos, en t re co­

legas escri tores e jornalistas com os quais convivi no passa­

do. Me senti em família.

Sem demora, indicando o t rabalho intenso que esses

seres administravam, Joseph in t roduziu a pauta:

— Recebemos aval de nossa coordenadora de u m a di­

mensão mais elevada, nossa mãe, Maria, para eleger al­

guém que pudesse nos auxiliar na t ransmissão de novas

ideias e de u m a visão mais dilatada da vida espiritual, le­

vando ao m u n d o essa mensagem, mas pr inc ipalmente ten­

do os amigos espiritualistas como alvo.

Neste ponto da conversa, interveio o espírito Bezerra:

— Nossos amigos espíritas e espiritualistas precisam

expandir o campo de visão, con templando u m a realida­

de mais ampla. Por essa razão, nós o temos acompanhado

desde há algum tempo e verificamos que suas disposições

mentais e emocionais provavelmente possam servir para

nos auxiliar como in térpre te jun to aos encarnados . Em cer­

to momento , na Crosta, duran te o per íodo da internação,

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1 5 8

pessoalmente o acompanhei , quando a depressão o consu­

mia. Em decorrência disso, decidimos apressar sua vinda

para o lado de cá, em vir tude dos t rabalhos que precisam

ser levados a efeito.

Desta vez, Joseph Gleber voltou a se pronunciar , en­

quanto os orientais Zar thú e Séfora man t inham-se calados:

— Precisamos de suas habil idades com a escrita. Enco­

mendamos um estudo aprofundado sobre diversos espíri­

tos reencarnados cuja par t icular idade no campo profissio­

nal t rouxesse e lementos que nos pudessem auxiliar.

Atrevi-me a interferir e perguntar :

— Mas por aqui vocês não têm espíri tos com essa habi­

lidade ou competência?

— Espíri to é espírito, meu irmão — tornou Gleber —,

tanto no corpo como fora dele.

— Não é só isso! — falou Eur ípedes Barsanulfo — "Meu

Deus, que nome!", pensei . — Dispomos, sim, de alguns espí­

ritos, jornalistas e outros, que até já escreveram através de

médiuns mui to respeitáveis entre os espiritualistas. Porém,

apresentam ligação mais estrei ta com certas correntes do

movimento das ideias l ibertadoras ou, ainda, identificam-

-se com uma tradição já estabelecida, de maneira mais ou

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1 5 9

menos rígida ou engessada. É exa tamente esse alvo que nos

propomos atingir com novos escritos, além de outros adep­

tos do pensamento espiritualista, que surgem com mental i­

dade mais aber ta ou receptiva.

— Por isso, caro Ângelo — retomou Joseph Gleber, com

o sotaque carregado, lembrando um alemão tentando falar

português —, você foi indicado, jus tamente por não ter se en­

volvido com a visão espírita padronizada, segundo o enfo­

que de determinados médiuns e autores espirituais, por mais

boa vontade ou compromisso que tenham. Precisamos de al­

guém mais ligado à literatura de forma geral, e não tanto à

literatura espírita. Mas, entenda, a tarefa não é tão simples

como possa imaginar; e não se trata apenas de escrever. Você

terá de estudar muito aqui, em regime permanente; deverá

se envolver com os guardiões e conhecer muitos aspectos

de suas atividades. João Cobú, a quem você já conheceu, se

encarregará diretamente de conduzi-lo. Apresentará a você

pessoas encarnadas, desdobradas além do limite de seus cor­

pos, tanto quanto espíritos, que já descartaram o corpo físico,

a fim de que entenda melhor o que o aguarda como tarefa.

"Meu pai!" — pensei, esquecendo que a maioria ali, se­

não todos, poder ia escutar meus pensamentos — "Então

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1 6 0

minhas férias de espíri to acabaram mesmo. Dura ram ape­

nas um dia..."

— Você se p repara rá ao longo de 8 a 10 anos para escre­

ver através de um médium. Como no passado part icipou da

Revolução Francesa, redigindo pensamentos e difundindo

ideias com bastante esmero, e, mais tarde, no úl t imo mer­

gulho na carne, apr imorou esse conhec imento e as habili­

dades narrat iva e descritiva, escolhemos alguém que tem

algo em c o m u m com suas experiências. Trata-se de um

companhe i ro do seu passado, velho conhecido nosso e dos

guardiões. Mas terá que preparar esse médium, além de se

preparar . Ele const i tuirá seu desafio, como espírito. Repito:

não será fácil.

Comecei a ficar temeroso diante daqueles espíritos e

sua proposta. Parece que imedia tamente desconfiaram de

meus medos e apreensões, e logo, logo o espíri to Bezerra

veio em meu socorro, abraçando-me e sorr indo um sorriso

tão cativante e envolvente que me acalmou os pensamen­

tos e as emoções.

— Deixemos os detalhes para depois. Pr imeiramente ,

você será apresentado ao t rabalho dos guardiões e à uni­

versidade. Assim, poderá f icar mais t ranqui lo para, oportu-

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161

namente, decidir. Não se sinta pressionado, meu fi lho. Po­

rém, esperamos que esteja a tento a cada e lemento que lhe

será mostrado. Fará u m a excursão, por assim dizer, a certos

recantos obscuros do m u n d o inferior, acompanhado por

Jamar. Mais tarde, Anton mesmo o levará ao quar te l -gene­

ral dos guardiões e lhe most rará as tarefas que real izam em

nível planetário.

— Isso mesmo! — falou Joseph Gleber. — Cer tamente

se sentirá mais à vontade para decidir sobre nossa proposta

após conhecer mais a respeito da vida espiritual e dos p ro­

jetos que levamos avante em nossa dimensão. Mas entenda:

você foi apontado como um dos prováveis seres a desempe­

nhar um papel impor tante ao lado de nossa equipe. Apro­

veite a opor tunidade e, quando se sentir mais à vontade ou

tiver decidido, procure-nos , ou quem sabe se sinta melhor

com Jamar e João Cobú.

Olhei para o ancião, para Pai João, e me senti mais

apoiado, mais envolvido e, quem sabe, seu olhar doce e

tranquilo me transmit isse um quê de serenidade. Confir­

mei ali mesmo a impressão de que meu t empo de férias no

outro m u n d o havia te rminado. Meus pensamentos deram

uma reviravolta. Agora, conhecer ia e examinaria a cidade e

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1 6 2

seus t rabalhadores com novo olhar. Bezerra aproveitou mi­

nhas disposições íntimas e acrescentou:

— Enquanto estive abraçado com você, meu filho, não

pude me furtar à análise de sua condição espiritual. Sugi­

ro que procure uma de nossas unidades hospitalares para se

submeter a um tratamento rápido, porém necessário, a fim de

que se sinta melhor, mais leve e liberto de algumas impres­

sões físicas naturais de quem é recém-chegado da Crosta.

Olhei para Pai João como a pedir socorro. Ele com­

preendeu meu pedido e se aproximou tranquilo, segurando

meu braço esquerdo.

— Eu o acompanho, Ângelo. Não se preocupe, não pre­

cisará ficar internado. Aliás, aqui quase não temos espíri­

tos em regime de internação. Será submet ido a um proce­

d imento magnético, somente isso. Depois lhe explico.

— Pois bem, meu irmão — voltou a falar o médico ale­

mão. — Aguardaremos até você se sentir em condições de se

definir. Mas não podemos esperar muito. Outros espíritos

com experiências semelhantes às suas estão esperando até

que se decida e, caso recuse a tarefa, procuraremos um de­

les. Mas terá o devido tempo — e, falando assim, o espírito se

dissolveu à minha frente, como se fosse t ransportado para

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1 6 3

um outro mundo. Da parte dele, deu o caso por encerrado.

Bezerra, Zar thú e Séfora se despedi ram de mim, sendo

que Zar thú t ransmit iu um pensamento mui to audível para

meu cérebro de mor to desencarnado: "Estarei contigo,

meu f i lho. Fique tranquilo, te rá t empo suficiente para to ­

mar a decisão mais acertada. O que tiver de ser, será". Eu­

rípedes, por sua vez, saiu da manei ra convencional, apenas

meneando a cabeça para mim, ao cruzar a porta. Os demais

se dissolveram à minha frente. Fixei Júl io Verne, desejan­

do uma entrevista ou um bate-papo, mas não foi diferente;

também ele se dissolveu com as forças do espírito, assim

como Saldanha e Anton. Fiquei com Pai João, além de Ja-

mar, Watab e Semíramis, que pe rmanece ram quietos du­

rante a conversa com os chamados Imortais .

Após algum t empo me observando, Pai João rompeu o

silêncio e disse:

— Não se assuste com o jeito dos nossos irmãos. Eles

precisam a tender outras urgências e t ambém coordenar

atividades em outras cidades espirituais. Quanto ao mé­

todo de t ranspor te que uti l izaram, é algo c o m u m ent re os

espíritos mais experientes . Eles podem s implesmente ca­

minhar, como qualquer pessoa, lançar mão dos veículos à

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164

disposição em várias cidades do astral ou, então, transpor­

tar-se com o poder da mente , do pensamento . E claro, não

são todos os espíritos que conseguem essa proeza.

Sem registrar os pormenores de mui ta coisa do que

ocorr ia à minha volta, fui conduzido pelos amigos a um

complexo hospi talar n u m a região mais afastada da me­

trópole, embora proporcionasse ampla visão de boa parte

dela. Só suspeitei que era um hospital quando já adentra­

va o ambiente mui to limpo, t a m b é m minimalista, de cores

suaves e com intenso tráfego de gente mor ta viva no sa­

guão. Na presença de meus acompanhantes , fui logo admi­

t ido e, em seguida, novamente conduzido por eles. Foi ape­

nas quando me vi no andar mais alto do prédio em forma

de "L" que me apercebi: aquele era mesmo o hospital da

comunidade , ou um dos hospitais. Do úl t imo andar pude

avistar u m a tor re de proporções monumenta i s . Seria um

edifício? Estava mui to distante, talvez no centro da cidade.

A tor re parecia singrar os céus e a al tura dela era comple­

tamente desconhecida para mim. Em meio a devaneios e

tantas cogitações de meu espíri to acerca do que ouvira dos

Imortais , fui surpreendido por Jamar, que se aproximou

len tamente de mim.

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1 6 5

— A tor re não é um edifício, Ângelo, mas apenas u m a

torre mesmo, uma espécie de antena, que capta energias de

planos mais sutis. Tem 300m de altura, a contar do solo, e,

nesta parte, ela capta emanações da energia cósmica e ou­

tras mais, advindas de dimensões superiores à nossa. Em­

bora em outro plano, localizamo-nos na região da atmosfe­

ra terrestre denominada termosfera, camada mais extensa,

que vem após a mesosfera. Apesar das t empera tu ras extre­

mas do ambiente físico, em nossa dimensão a torre de ener­

gia canaliza de te rminados recursos sutis que nos eximem

dos efeitos de certas part ículas da atmosfera e nos deixam

ao abrigo de radiações prejudiciais à nossa vida em socie­

dade. Abaixo do solo da cidade, em sentido contrário, a tor­

re igualmente se estende, por mais ou menos 200m, apon­

tando d i re tamente para a superfície do planeta. Somos u m a

cidade móvel, ou seja, a cidade inteira pode se deslocar até

outros pontos do planeta, conforme a situação exigir. A tor­

re inferior, como chamamos a que aponta no sentido da

Crosta, capta irradiações magnéticas advindas do interior

do planeta, ou aquilo que é conhecido como energia telúri­

ca, a rmazenando-a na região interna da cidade, em baterias

específicas para esse fim.

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1 6 6

"Essas energias combinadas, de na tureza tan to cósmi­

ca quanto telúrica, possibilitam erguer um robusto cam­

po de proteção em torno da metrópole, e ao mesmo tempo

uma camada de invisibilidade, os quais impedem a locali­

zação e o acesso à cidade por par te de ent idades sombrias

ou habi tantes de regiões densas. De mais a mais, como nos-

sa localização geográfica ul t rapassa os 500km de distân­

cia em relação à crosta terrestre , torna-se impossível a tais

espíritos atacar-nos dire tamente , pois nunca conseguem

alcançar esta dimensão, t ampouco esta altitude. Não obs­

tante, não prescindimos da chamada polícia de vibrações

— Jamar discorria todo o t empo como nunca o ouvira, ni­

t idamente apaixonado pelo tema que abordava, e isso me

contagiava, t i rando-me da situação mental anter ior e fa-

zendo-me conectar o pensamento com a realidade que ele

explicava tão habi lmente .

"A polícia de vibrações, como a denominamos, é com­

posta por peri tos que integram a equipe dos guardiões. São

especializados em rechaçar ou, conforme o caso, captar e

t ransformar qualquer espécie de energia mais densa pro­

veniente da Crosta. Grande cota de vibrações densas é de­

sencadeada por guerras constantes no planeta e pela exsu-

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1 6 7

dação de ectoplasma proveniente dos milhares de mortes

violentas que decor rem não só das guerras entre as nações,

mas dos conflitos civis, como homicídios e cr imes diversos.

Esse volume descomunal de energia, que atinge diar iamen­

te as dimensões mais próximas do mundo , pode interferir

no equilíbrio de muitas cidades espirituais ou colónias que

estejam mais próximas da Crosta."

Eram muitas as informações que Jamar me trazia na­

queles breves momentos de vivência na metrópole espiri­

tual. Vislumbrei o que me aguardava em matér ia de estudo

e iniciação nos temas da vida extrafísica. Tudo aquilo me

encantava, me fascinava, e meu espírito acos tumado a for­

mular indagações, minha curiosidade inata de escri tor f ize­

ram com que meus pensamentos voassem para situações e

proezas mentais jamais imaginadas.

Foi quando Pai João me chamou para os tais exames e

então "aterrissei", de volta ao contexto do hospital. Confes­

so que esperava encontrar equipamentos de úl t ima geração,

uma infinidade de computadores desencarnados ou extra-

fisicos, que fizessem jus à tecnologia dos habi tantes des-

ta cidade de imortais. Mas quando entrei na sala, onde vi

apenas u m a maca à minha frente, quase desisti de en tender

Page 171: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

168

aquele lugar. Em nada combinava com o que vira até aquele

momento ; não fazia sentido haver apenas u m a maca e uma

decoração tão singela ou nula... Outra vez, fiquei profunda­

mente decepcionado. Duas mulheres en t ra rem no ambien­

te e me pedi ram para dei tar-me na maca, mais por meio de

gestos que de conversa. Decer to iriam fazer aparecer algum

equipamento oculto em uma das paredes. Esperava algo

que beirasse a ficção científica, no mínimo. Mas não. Elas

tão somente es tenderam as mãos sobre mim. E eu, olhos ar­

regalados, tentava perceber, ver, olhar tudo à minha vol ta

Mas nada! Apenas as mãos desl izando a alguns centímetros

do meu corpo espiritual. Começavam no alto da cabeça e

deslizavam até meus pés. Em silêncio. E Pai João observava

tudo, t ambém silencioso, medindo minhas reações.

Depois de algum tempo, chamaram Pai João a u m a sala

ao lado e de ixaram-me deitado. Na verdade, sent ia-me mais

e mais leve. Parece que, a cada e tapa vivida na nova cidade,

deixava alguma coisa de material , algo não percebido nem

conhecido por mim, mas, com efeito, me sentia b e m mais

leve. Após algum tempo, Pai João regressou, auxil iando-me

a levantar-me da maca. Por um instante, pensei que iria flu­

tuar — e quase flutuei, no verdadeiro sent ido do termo.

Page 172: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

1 6 9

— Ceres e Altina são duas excelentes magne t izado­

ras de nosso hospi tal — principiou Pai João. — São espe­

cializadas no diagnóstico das pessoas recém-chegadas da

Crosta e d e t e r m i n a m se prec isam de t r a t amen to e qual o

tipo de que precisam. Nesta ala do nosso Hospi ta l do Si­

lêncio não t raba lhamos com equ ipamentos e le t rônicos

sofisticados como você esperava, Ângelo — ele leu meus

pensamentos de novo! Decid idamente , os leu. — Aqui só

t rabalhamos com magnet ismo. De todo modo, seu caso

dispensa qualquer in tervenção mais drástica, como cirur­

gias espiri tuais , uso de equ ipamentos da técnica sideral e

outros recursos mais in tensos ou sofisticados que t enha­

mos. O magne t i smo será suficiente e eficaz para l iberar

certas cargas de ec toplasma ainda ader idas a seu corpo es­

piritual, a lém de alguns cúmulos energét icos densos, co­

muns no t ipo de desencarne que você exper imentou . De­

verá comparecer aqui pelo menos por dois meses, u m a vez

ao dia, a fim de receber o t r a t amen to magnét ico que lhe

foi prescr i to .

"Ah! — acrescentou. — Nossas duas amigas magnet i ­

zadoras pedem desculpas se não o cumpr imen ta ram n e m

conversaram com você, meu f i lho. Elas t raba lham em com-

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1 7 0

pleto silêncio, concentradas ao máximo, a fim de auscultar

o corpo espiritual do consulente. Escru t inam cada detalhe

do corpo astral e analisam cada cent ro de força minuciosa­

mente , verificando t ambém os órgãos perispiri tuais ou pa-

raórgãos. Mais tarde, no decurso do t ra tamento , conversa­

rão um pouco com você, or ientando-o inclusive acerca dos

procedimentos a que será submetido.

"De qualquer manei ra — cont inuou Pai João —, não es­

pere explicações teóricas ou científicas a respeito do que

lhe será ministrado; isso você obterá nos estudos da univer­

sidade ou, quem sabe, jun to ao méd ium que você visitará no

plano físico. Mui ta coisa, aliás, poderá absorver da mente

do médium, aproveitando os momentos em que estabelece­

rão sintonia vibratória. Tanto ele absorverá conhecimentos

de você, os quais eclodirão na men te dele como intuições

ou informações que brotarão espontaneamente duran te pa­

lestras e conversas informais com os companheiros , quanto

você t ambém absorverá mui ta coisa dele. Sendo assim, co­

nhecimentos sobre certos aspectos da vida espiritual, que

o méd ium que lhe foi designado já possui, serão automati­

camente t ransmit idos a você, tão logo se conecte à mente

dele. Trata-se de uma parceria, um intercâmbio.

Page 174: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

1 7 1

"Mas não espere que tudo seja dessa forma. Você terá

de es tudar muito. Em breve, lhe serão apresentados alguns

autores desencarnados, além de outros encarnados , em es­

tado de desdobramento , que poderão lhe ser úteis na aqui­

sição de novos conhecimentos , em suas pesquisas e coisas

do gênero. O trabalho de preparo para a escrita e t ransmis­

são das ideias novas começa já."

Pai João me deixou a cargo de Jamar e sua equipe e reti­

rou-se dali de maneira tal que não o vi dissolver-se à minha

frente, como os outros espíritos, classificados como Imortais.

Nem mesmo o vi sair à moda convencional. Simplesmente,

quando voltei minha atenção para Jamar e Semíramis, espe­

rando deles o convite para sair rumo a algum lugar ou, quem

sabe, a fim de receber novas instruções, ao voltar-me para o

local onde antes estava Pai João, de fato havia sumido, desa­

parecido. Um povinho metido a desaparecer como este eu

não havia conhecido antes. E o pior é que eram elegantes na

forma como o faziam; nada de fenômenos, nuvens de fogo

ou estrondos de relâmpagos e trovões. Tudo absolutamente

calmo, silencioso, mas nem por isso corriqueiro.

Respirei fundo, como que buscando absorver aquilo

tudo, mas decidi me controlar para não falar nada incon-

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1 7 2

veniente. Watab deu u m a es t rondosa gargalhada, mas ime­

dia tamente cessou. Ficou ali, parado como uma estátua,

como se nunca houvesse emit ido n e n h u m som. Estranho

esse sujeito. E era um dos guardiões mais graduados, amigo

de Jamar. Mas estranho, assim mesmo.

Saímos do edifício, e foi somente então que pude ob­

servar ao derredor. O jard im rea lmente vasto do lado de

fora dava ao local um ar residencial, nada parecido com o

de um hospital. Imenso bosque no en torno fazia com que

um ar puríss imo banhasse o ambiente hospitalar. Diversas

pessoas caminhando pelo bosque e pelo ja rd im eram acom­

panhadas d iscre tamente por outros espíritos, que pare­

ciam enfermeiros. Aqui e ali, i lhotas formadas por estátuas

belíssimas, chafarizes e bancos, onde alguns se p u n h a m a

ler. Havia livros dispostos nesses recantos, à disposição de

quem se submetia a t ra tamento , segundo deduzi . O com­

plexo possivelmente estava localizado no topo de uma

montanha , pois era possível divisar as curvas sinuosas de

montes que compor tavam bangalôs e outros tipos de cons­

t rução incrustados espaçadamente ali e acolá. Uma coisa

me chamou a atenção: o completo silêncio no lugar. Mesmo

as pessoas conversando, embora n u m volume baixo e civi-

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1 7 3

lizado, era como se alguma coisa absorvesse o som do am­

biente, dando a sensação curiosa do mais absoluto silêncio.

— Essa vibração que você observa, Ângelo — explicou

Semíramis, que até então permanecera sem falar nada —,

deve-se a nossas plantas, ao t ipo de vegetação ao redor.

Elas foram desenvolvidas pelos pais-velhos e mães-velhas

nos laboratórios da A m a n d a . Quando o vento toca as folhas

das árvores, elas emi tem um tipo de som ou u m a frequên­

cia registrada somente por nosso cérebro extrafísico, nada

audível. Isso p roduz em nós a sensação de que há um silên­

cio completo no ambiente.

— São produto de modificação genética, então?

— Algo assim — respondeu Semíramis. — Alguns pais-

-velhos, mais experientes , são estudiosos da na tureza e se

especializaram em plantas e ervas, nos templos do passa­

do, tanto na Atlântida como em outros centros iniciáticos,

entre eles os de Tebas e Alexandria, no Egito, e os da antiga

Pérsia. Atualmente, ves tem a roupagem fluídica de pais-ve­

lhos, em conformidade com a úl t ima experiência reencar-

natória, que se deu em países como Brasil, Angola e outras

terras da África. Não obstante, conservam o conhecimen­

to ancestral e dele lançam mão ao desenvolver pesquisas

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174

em nossos laboratórios, compar t i lhando os resultados com

cientistas da A m a n d a e de outras cidades de nossa dimen­

são. Estas árvores em particular, assim como outras cultiva­

das nas proximidades dos hospitais, são fruto dessas expe­

riências. Isso explica o nome do local: Hospital do Silêncio.

"Este hospital, especificamente, é especializado em te­

rapias que ut i l izam o magnet ismo, daí a na tureza dos pa­

cientes aqui t ra tados. Não verá injeções, procedimentos in­

vasivos no períspir i to ou qualquer coisa que se assemelhe

aos t ra tamentos convencionais prat icados na Crosta. Além

disso, este verde exuberante e a presença de espíritos liga­

dos à natureza, como os pais-velhos que habi tam as chou­

panas, bangalôs e outras vivendas no sopé das montanhas :

tudo faz deste um lugar especial. Na verdade — acentuou

Semíramis enquanto caminhávamos em direção ao estacio­

namento , onde nos aguardavam os carros voadores —, cos­

tumo chamar isto aqui de spa espiritual, e não de hospital .

Como você virá aqui diar iamente, te rá opor tunidade de co­

nhecer a biblioteca; é u m a atração à parte . Terá inúmeras

descobertas e surpresas aqui. Você verá."

O úl t imo comentár io da guardiã me deixou curiosís­

simo. Uma biblioteca do outro mundo . Fiquei imaginando

Page 178: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

1 7 5

como seriam os t ra tados, os livros mais antigos, aos quais

talvez pudesse ter acesso; ler originais de diversos autores,

alguns perdidos na poeira do tempo...

De fato, acabei me to rnando frequentador assíduo da

biblioteca do Hospital do Silêncio. O procedimento magné­

tico em si durava apenas 30 minutos por sessão, mas eu fi­

cava pelo menos duas ou três horas na biblioteca, saborean­

do e sorvendo tudo quanto podia. Descobri, ainda por cima,

que aquele era apenas um dos acervos da comunidade.

Sentia-me cada vez mais leve e revigorado. A quase

uma semana de encerrar o t ra tamento , exper imente i pela

primeira vez a levitação. Caminhava pelo ja rd im do Hospi­

tal, lendo um volume riquíssimo sobre l i teratura brasileira;

quando me dei conta, havia ul t rapassado os limites do jar­

dim e andava em pleno ar, movimentando as pernas , mas

sobre um precipício logo abaixo de mim. Levitava, sentia-

-me como u m a pluma. E não é que esse tal de magnet is­

mo funcionava mesmo? Parecia que os úl t imos resquícios

de matér ia que eu t rouxera da experiência física haviam

se dissipado duran te os a tendimentos com Ceres. Um dia

depois, estava tão concent rado em cima da maca, tão rela­

xado, que, quando ela te rminou o procedimento magnét i -

Page 179: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

1 7 6

co, eu flutuava sobre o leito, meio abobalhado, sem saber

n e m ao menos como me pôr de pé, Ela me olhou sorrindo,

apenas. Entendi que tudo t inha seu tempo. Pouco a p o u c a

aprendia a lidar com as percepções, os fluidos, a natureza

do corpo espiritual enquanto estudava, estudava, estudava.

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1 8 1

PÓS D I A S DE dedicação aos estudos e à terapia magnética,

pude en tender melhor o que alguns espíritos disseram so­

bre t ra tamento não invasivo. Entendi que, em alguns casos,

existe mesmo a necessidade de fazer uma cirurgia nos teci­

dos e órgãos do corpo espiritual e recorrer a métodos mui­

to parecidos com aqueles util izados na Terra, em hospitais

convencionais. Porém, na A m a n d a se usava metodologia

bastante diversa. Embora toda a tecnologia à disposição dos

médicos e servidores dos hospitais, ao alcance t ambém dos

demais depar tamentos da cidade, em matér ia de saúde tal

recurso era empregado de forma acessória. Sobretudo, na

composição de diagnósticos e como auxiliar na produção e

manutenção de energias de na tureza astral ou psíquica. Ha-

a inst rumentos capazes de amplificar a força mental , b e m

como de gerar campos energéticos de caráter desconheci­

do na Terra, que favorecem a recomposição das matr izes

do organismo espiritual, do seu veículo, que aprendi cha­

mar-se perispíri to ou corpo astral. No Hospital do Silêncio,

não se faziam incisões cirúrgicas, embora existissem outros

hospitais na errat icidade que usavam desse método quando

necessário. Compreendi de fato tal opção após verificar o

talento com que os espíritos radicados na A m a n d a mane-

Page 185: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

1 8 2

javam os recursos da natureza, explorando de modo sábio e

responsável a força das matas, dos rios e das fontes de água

pura, assim como inúmeros e lementos dispersos na atmos­

fera, cur iosamente à disposição de todos, embora nem sem­

pre conhecidos da mult idão de habitantes .

Imerso nesses pensamentos , nas novas descobertas do

per íodo entre vidas, n e m percebi a presença de meu ami­

go prote tor e or ientador Jamar, que se aproximou de mim.

conduz indo-me a novas experiências.

— Agora é preciso conhecer algumas questões, Ângelo,

relativas a seu roteiro evolutivo, ou seja, ao planejamento de

seus estudos, como ocorre em qualquer área profissional na

Terra, mas levando em conta as atividades futuras progra­

madas para você. Creio que é hora de levá-lo até uma das

bases dos guardiões, uma vez que seu trabalho estará inti­

mamente ligado ao nosso. Antes, porém, é bom que retorne­

mos à vida urbana de nossa cidade, a fim de nos jun tarmos a

alguns amigos que nos acompanharão. Pai João o conduzi­

rá enquanto faço contato com alguns guardiões; preciso me

desincumbir de algumas tarefas, mas será rápido. Logo nos

reencont raremos nos arredores da metrópole para, então,

irmos a um dos postos avançados de nossa equipe.

Page 186: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

1 8 3

— Tenho a impressão de que você dá tan ta importância

a esse programa de aprendizado, esse meu curso intensivo,

que f ico apreensivo em relação ao que me aguarda. Mesmo

tendo lido alguma coisa no acervo da biblioteca, parece que

vem algo mui to sério pela frente.

— Não fique assim, amigo. Você terá um t empo genero­

so para se habi tuar com a situação e se familiarizar com as

informações novas. Nada de dramas.

— Não estou sendo dramático! E que noto um tom de

gravidade em sua voz...

— Desculpe meu jeito, mas é que ao mesmo tempo em

que estou aqui conversando com você devo me mante r

atento, com os olhos abertos, se posso dizer, 7 pois existem

outras situações mais complexas que dependem de mim

neste momento . Mais ta rde compreenderá .

Falando assim, par t imos em direção à região central da

cidade, onde já nos aguardava o amigo Watab. Jamar nos

deixou a sós por um tempo; parecia absorto em pensamen­

tos que decididamente eu não queria n e m t inha condições

7 0 personagem faz alusão à ubiquidade dos espíritos (cf. K A R D E C . O livro dos espí­

ritos. Op. cit. p. 114-115, item 92).

Page 187: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

184

de sondar. Ele ficou em completo silêncio, como se esprei­

tasse alguma coisa.

À nossa volta, espíritos iam e v inham nas diversas ati­

vidades cotidianas da Amanda . A esta altura, eu já via a

vida da comunidade de manei ra diferente. Não estava a

passeio, de férias, t ampouco a esmo na minha dileta eterni­

dade ou no per íodo ent re vidas. Não sei por que, mas, des­

de o encont ro com os Imortais , minha vida mudou. Meus

pensamentos pareciam abarcar novas situações, que antes

n e m imaginava conhecer; mais ainda, um senso de respon­

sabilidade parecia tomar conta do meu ser, de maneira in-

comum, e numa dimensão mui to mais ampla. Não havia

como encarar aqueles seres, te r um encont ro tête-à-tête

com eles e cont inuar do mesmo jeito. Como se não bastas­

se, Jamar, ao me falar sobre o programa de estudos, deixou-

-me profundamente interessado, mas, ao mesmo tempo,

deveras preocupado. Como eu me sairia como novo aluno

de u m a escola de vida, mui to mais abrangente, como esta

que encontrei? Aqui, meus estudos, minha formação con­

quistada na Terra pareciam apenas um ensaio n u m a escola

de pré-pr imár io — ou pré-escola da vida. Teria mui to pela

frente: um per íodo mínimo de 8 anos consecutivos de estu-

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1 8 5

do, sem grandes intervalos, visando atualizar meus conhe­

cimentos para ser, com sorte, admit ido n u m estágio como

colaborador dos guardiões, possivelmente. Somente com o

tempo saberia maiores detalhes.

Foi absorto nesses pensamentos que Pai João me en­

controu. Chegou a meu lado, t i rando-me do silêncio que

havia sido estabelecido entre Watab e mim:

— Ora, Ângelo, não se a tormente com pensamentos tão

sérios nem se cobre tan to assim! Em nossa realidade aqui

na Amanda , vamos t rabalhando pouco a pouco, aprenden­

do sempre e desaprendendo aquilo que for necessário. Ah!

Meu filho... — enfatizou o pai-velho — há t empo para tudo!

0 essencial é que cont inue es tudando, que não desista;

quanto ao resto, Deus saberá nos usar na medida certa em

que est ivermos preparados . Não espere saber muito, f i lho.

Faça o que pode e como pode, sabendo que ainda i remos

errar mui to antes de acertar. É preciso ter compaixão con­

sigo mesmo.

"Em tempos remotos, a A m a n d a era apenas um cam­

po de t re inamento , uma comunidade onde eram acolhidos

espíritos advindos de experiências reencarnatór ias difí­

ceis ou amargas, pr incipalmente em países onde a escravi-

Page 189: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

1 8 6

dão havia se espalhado como erva daninha. Com o passar

do tempo, a administração da cidade foi especial izando os

espíritos, de tal manei ra que, hoje, em nossa abençoada co­

munidade , reúne-se quem pre tende desenvolver atributos

de força mental e espiri tual em benefício da humanidade .

Em outras palavras, estabelecem-se aqui, de modo mais ou

menos permanente , seres que já passaram por esferas infe­

riores na jo rnada entre vidas e buscam aprimorar-se, rumo

a recantos mais i luminados, a estâncias mais felizes dos

mundos invisíveis. Na Amanda , essas consciências encer­

ram uma grande etapa da caminhada individual e se pre­

param para atuar em favor da human idade de forma mais

abrangente, dest i tuída de fronteiras, bandeiras e barreiras

erguidas pelas civilizações. Mas somos humanos , Ângelo, e

nunca se esqueça disso! Com efeito, aqui t e rmina uma fase

do processo evolutivo, baseada em modelos típicos de es­

feras inferiores à nossa, o que implica dizer que foram su­

peradas dificuldades ou limitações de de te rminado gênero.

Mas, se essa constatação é verdadeira, é igualmente verda­

de que aqui se inicia um ciclo de grandes desafios para tais

espíritos, cuja consciência já está p reparada para voos mais

amplos em serviço incondicional à humanidade."

Page 190: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

1 8 7

Respirei fundo, sent indo certo alento ao ouvir o que

Pai João falava a respeito dos habi tantes da metrópole espi­

ritual e dos objetivos de um estágio nessa dimensão.

— As experiências vividas pelos espír i tos antes de che­

garem até esta d imensão da A m a n d a , ao menos pela maio­

ria dos que aqui se encont ram, gera lmente de t e rmina ram

o desenvolvimento de um b o m conjunto de qual idades ín­

timas. De u m a ou out ra maneira , a tuam como espíri tos fa­

miliares e auxiliares da evolução; aos olhos daqueles que

se movimentam em dimensões mais baixas, são figuras de

referência, u m a vez que supera ram barre i ras e obstáculos

que afligem os membros de seu círculo de atuação. Esse

é um dos fatores que os capacita, agora, a se ded icarem a

nova e tapa de aprendizado. Em grande parte , por tanto , são

espíritos com potencial para serem admit idos como pro te ­

tores ou guias de mui ta gente, até mesmo de grupos e co­

munidades por todo o mundo . 8 Talvez, na Terra, meu filho,

os espíri tos ligados à nossa met rópole espiri tual sejam co­

nhecidos mais como anjos de guarda, mesmo que todos

8 "Anjos de guarda, espíritos protetores, familiares ou simpáticos". In: K A R D E C . O

Livro dos espíritos. Op. cit. p. 317-330, item 489-521.

Page 191: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

188

aqui prec isemos mui to de aprender e de desaprender tan­

ta coisa arquivada em nosso psiquismo. Concluindo: temos

pela frente o desafio de ajudar o m u n d o sem impor bar­

reiras, de r rubando preconcei tos , descons t ru indo mitos ou

des t ronando ídolos erguidos pela ignorância humana . Esse

lema é o que nor te ia t udo e todos por aqui, é nossa princi­

pal meta en t re as demais , relacionadas às lutas individuais.

Enquanto Pai João falava, minha men te se ocupava em

absorver o que podia. Talvez, mais tarde, pudesse me sen­

tir mais integrado ao ideal nobre que motivava a A m a n d a e

em condições similares às dos espíritos ali residentes, par­

t i lhando de sua visão e de seus objetivos.

Saímos andando, caminhando pelas ruas da cidade es­

piri tual que me recebia — um campo de atividades, uma ofi­

cina de t rabalho e u m a univers idade de vida incomparável.

Incomparável , sim, ao menos para mim, que sentia, agora

n u m a dimensão bem maior, o novo gênero de desafios que

se abria diante de meu espírito. Fiquei sensibilizado dian­

te da postura do pai-velho, de não exigir que eu estivesse

pronto, p reparado desde já para o que me aguardava.

Foi assim, caminhando ent re árvores, prédios e pai­

sagens daquele m u n d o novo, que alcançamos um bosque.

Page 192: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

1 8 9

sempre acompanhados de Watab, sempre silencioso, se­

guindo atrás de nós.

Chegando ao bosque — belíssimo, por sinal, com imen­

sas sequoias e tantas outras árvores e plantas desconheci­

das para m i m —, avistei diversas pessoas passeando, outras

lendo ou es tudando debaixo das árvores; de alguma manei­

ra, acho que todos estavam estudando. Aqui e ali, grupos

de espíritos or ientados por quem parecia mais exper iente

demonstravam es tudar a rica flora naquele recanto cheio

de verde e de vida. Outra t u rma c laramente recebia aulas

de desenho e pintura, pois os vi desenhando a paisagem,

as pessoas, as árvores e os animais que c o m p u n h a m aque­

le bosque. Havia u m a atividade intensa e, ao mesmo tem­

po, um quase silêncio no entorno, como nunca vira em am­

bientes assim, no m u n d o físico.

— Aqueles são es tudantes de botânica e fitoterapia —

esclareceu Pai João. — Aprendem aqui, jun to à natureza, as

matérias que es tudaram na universidade. Depois irão para

os arredores, onde ent rarão em contato com pais-velhos e

mães-velhas, caboclos e índios habi tantes de nossa A m a n ­

da, que or ientarão os alunos com seu conhecimento mais

apurado do assunto que escolheram estudar.

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1 9 0

Decerto no tando minha curiosidade a respeito da fau­

na e da flora e sobre o objetivo dos espíri tos reunidos na

Amanda , o amigo Pai João foi um pouco mais longe em

suas considerações:

— Esta cidade, em sua es t ru tura atual, através do va­

riado programa de serviço, es tudo e realização que ofere­

ce, serve ao propósi to de mesclar seres advindos de regiões

extrafísicas, como o plano astral, ou de cidades aí localiza­

das, àqueles provenientes de dimensões superiores. Com­

ponentes de ambas as esferas passam a conviver, por um

per íodo mais ou menos dilatado, embora aqui o t empo seja

calculado de modo um pouco diferente de como é na Cros­

ta. Aqueles que se destacam nos estudos e no trabalho, que

alcançam um desempenho maior, podem se orgulhar de

descer a planos mais inferiores não apenas como socorris­

tas, mas como agentes da justiça divina. Outros, guias que

vêm se instruir e acabam por se especializar na função de

instrutores espirituais, espíritos prote tores ou mesmo fi­

guras de inspiração, conseguem oferecer aos assistidos

ou pupilos maior grau de experiência. Ou seja, caso se so­

bressaiam no programa evolutivo, n u m a espécie de curso

intensivo cá na Aruanda, t êm a chance de contr ibuir com

Page 194: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

1 9 1

mais capacitação e eficácia do que a massa de espíritos que

comumente assiste os encarnados .

— E qual é o papel que lhe cabe aqui na cidade, Pai

João? Tanto quanto o de Jamar, Watab e os Imortais , ante

os quais me vi como u m a criança espiritual?

— Nossa tarefa aqui, Ângelo, é de t rabalho intenso, es­

forço constante e es tudos ininterruptos . Enquanto aqui

estagiamos, por per íodos de t empo adminis t rados exclu­

sivamente por espíritos superiores, man temos u m a mão er­

guida em direção ao alto, por assim dizer, absorvendo co­

nhecimento, a l imentando nossos espíritos e tocando de

perto a aura de planos mais avançados, enquanto a outra

permanece apontada para regiões inferiores, onde exerci­

tamos algum reflexo de amor, no exercício de doação que

procura impedir que o mal dissemine sua vibração pelo

acampamento dos homens .

À medida que eu ouvia Pai João, que cont inuou falan­

do da vocação da comunidade conhecida como Aruanda, e

sobre o t rabalho e o significado da presença dele nesta es­

fera, como ele mesmo se refere à cidade dos espíritos, pude

compreender por que tantos seres de outras d imensões a

procuram, habi tantes de outras paragens espirituais que ali

Page 195: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

1 9 2

apor tam em busca de conhecimento nas diversas escolas

da univers idade local.

Ent rementes , chamou-me a atenção de te rminado gru­

po de pessoas que analisava, na presença de um instrutor,

a na tureza que vicejava com esplendor naquele bosque,

que mais parecia um jard im ou parque de proporções mais

amplas que os demais, que conhecera na cidade. Notei, em

meio aos que ali transitavam, casais de espíritos de mãos

dadas, alguns t rocando beijos e afagos comedidos, mas so­

b re tudo demons t rando car inho e afeto, de uma forma que

não esperava encont rar entre os chamados mortos ou de­

sencarnados. Pai João me surpreendeu os pensamentos ,

vindo a meu encontro:

— São casais que escolheram ter uma vida em comum

aqui em nossa comunidade, Ângelo.

— Mas por aqui as pessoas se casam, como na Terra?

— E por que não, meu filho? Somos todos humanos , na

mais pura expressão do termo. Almas encont ram afinida­

des ent re si e escolhem viver jun tas em seus recantos, em

suas habitações, e muitos até oficializam a união com ce­

r imônias matr imoniais , qual ocorre na Terra. Só que aqui

as cer imônias visam mui to mais ao convívio social, como

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1 9 3

celebração e confraternização ent re amigos, uma vez que

a verdadeira união é ent re almas, motivada pela afinidade

de gostos e pensamentos , propósi tos e sent imentos. Talvez

possamos dizer que a cer imônia seja apenas a oficialização

de algo que já existe dent ro daquelas duas pessoas.

Complementando a ideia, Pai João acrescentou:

— De acordo com a ligação religiosa ou espiritual, os

indivíduos podem celebrar a união em conformidade com

a fé e as t radições que t êm ou que d izem respeito à identi­

dade energética e à busca de espiri tualidade de cada um.

Como temos, aqui em nossa Amanda , representantes de

diversas culturas, pode-se escolher desde uma cer imônia

oficiada por um espírito que teve experiências como padre

católico até u m a conduzida por um sacerdote druida, por

exemplo, passando por opções tão distintas como as t radi­

ções muçulmana , protestante , budis ta ou indígena. Como

dispomos dessa t r emenda var iedade e r iqueza cultural, re -

"osa e de espiri tualidade, as pessoas elegem l ivremente

o que querem, de acordo com suas preferências. E isso não

é tudo. Acontece, t ambém, de escolherem fazer tal evento

em outras cidades espiri tuais com as quais temos convi­

vência mais estreita.

Page 197: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

1 9 4

— Mas é casamento mesmo ou apenas uma encenação?

— Como encenação, filho? Casam-se mesmo e passam

a viver juntos , p reparando-se para a existência física, quan­

do então poderão executar os planos que t raçaram aqui, em

nossa dimensão. Aqui é o m u n d o original! Na Terra é onde

temos um tipo de ilusão dos sentidos necessária para levar

avante os projetos iniciados ou delineados do lado de cá. A

Terra, como você a deixou e como a conhecemos, o mundo

físico, este sim é o reflexo ou a representação do que vive­

mos no plano da imortal idade. Jamais se esqueça, Angelo:

aqui é o m u n d o real, primitivo, original. 9

— Se é assim, considerando-se os espíritos de forma fe­

minina, existe gravidez do lado de cá? Ou qualquer coisa

parecida com um parto?

— Não exatamente da forma como se observa na Ter­

ra. A semelhança é que, tanto aqui como lá, o espírito não

9 "O mundo espírita [ou dos espíritos] é o mundo normal, primitivo, eterno, pree­

xistente e sobrevivente a tudo. O mundo corporal é secundário; poderia deixar de

existir, ou não ter jamais existido, sem que por isso se alterasse a essência do mun­

do espírita" ("Introdução ao estudo da doutrina espírita". In: K A R D E C . O livro dos

espíritos. Op. cit. p. 31, item vi).

Page 198: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

195

produz outro espírito, ou melhor, não o concebe, propria­

mente, mas lhe fornece um envoltório corporal que o ca­

pacita a usufruir das experiências naquela dimensão. Ocor­

re que muitas almas, advindas de regiões inferiores e tendo

vivido experiências infelizes, pe rdem seus corpos espiri­

tuais e t ransformam-se naquilo que chamamos de espíritos

ovóides — trata-se de um processo complexo, que você terá

opor tunidade de es tudar em nossas escolas. Grande par te

dos casais que se jun tam do lado de cá, t ranscorr ido mais

ou menos t empo da união efetiva, aliam o desejo de formar

um núcleo familiar e os preparat ivos para a reencarnação

à vontade de fazer algo por aqueles que vivem semelhante

drama. Sendo assim, muitos espíritos femininos, como você

denominou, oferecem o útero perispiri tual para que os es­

píritos ovóides ou em processo de ovoidização possam ser

acoplados a ele, magnet icamente , dando origem a uma es­

pécie de gravidez extrafísica. Na verdade, aqui denomina­

mos essa experiência de gravidez espiritual ou energética.

Nos seres desencarnados , o ú tero mate rno é u m a câ­

mara de material ização divina, que proporciona ao espírito

ovoide a possibilidade de recuperar a forma original, hu­

mana, r ecompondo as matr izes do períspiri to. Este assume

Page 199: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

1 9 6

a conformação h u m a n a lentamente , qual se dá n u m a gravi -

dez na Terra. Depois do t empo previsto de 9 meses, o espí­

rito é desacoplado do ú tero de sua mãe espiritual, por meio

do magnet ismo, e então ela o recebe no lar, como filho ou

pupilo, à semelhança t ambém do que ocorre, ao menos teo­

r icamente, com as crianças que renascem na Terra. Como

o pai e a mãe desencarnados já possuíam um lar construí­

do aqui em nossa cidade espiritual, juntos eles se tornam

responsáveis diretos pela reeducação daquele ser, guiando-

-o como podem, até que, n u m tempo mais ou menos breve,

seja reconduzido a novo corpo físico, no mundo."

Acho que Pai João notou que era mui ta explicação para

mim naqueles pr imeiros momentos , embora eu conseguis­

se, de algum modo e até certo ponto, en tender o que ele fa­

lava. Mas e ram muitas informações que chegavam de uma

vez só. Por outro lado, creio que esse bombardeio ocasio­

nava uma espécie de t empes tade cerebral ou extracerebral,

mental , íntima, resul tando n u m a integração cada vez maior

ao modus vivendi do lado de cá. A vida na Aruanda era uma

surpresa atrás de outra.

Mal o pai-velho encerrou aquelas explicações, fui sur­

preendido por um grupo de homens que passavam de mãos

Page 200: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

1 9 7

dadas, alguns trocando afagos discretos, carinho e demons­

trando um afeto tão natural que me surpreendi com o que via.

Outra turma menor, de mulheres, espíritos femininos, tam­

bém passeava abraçada, lado a lado, ou também de mãos da­

das, evidenciando certo tipo de comportamento social que, à

época, ainda era muito mal compreendido na Terra. Tratava-

-se decididamente de homossexuais. E isso me chocou, pois

não sabia que do lado de cá encontraria com tamanha natura­

lidade espíritos que se definiam sexualmente dessa maneira

ou adotavam esse tipo de identidade — nem soube como dizer.

— Aqui todos são vistos com a mesma natural idade,

Angelo. Fora da matéria, não há por que n inguém escon­

der-se com medo de ser rejeitado. É certo que encont ramos

ainda algumas cidades espirituais cujos adminis t radores

são mui to religiosos e ligados a u m a forma de pensar ar­

caica ou medieval, vamos dizer. Nesses casos, espíritos que,

diante de sua consti tuição energética, identificam-se como

gays ou homossexuais , provavelmente não serão vistos com

a natural idade com que os vemos aqui.

Antes que Pai João continuasse, fomos abordados por

dois namorados , espíritos em forma masculina, que pedi-

m licença para se dirigir ao pai-velho.

Page 201: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

1 9 8

— Desculpe, meu pai — falou um dos rapazes. Perma­

neceram de mãos dadas com a maior natural idade, decer­

to sabendo que não seriam discr iminados nem recrimina­

dos. — Queríamos que o senhor pudesse nos dar a honra de

abençoar nossa união.

— Claro, meus filhos! Afinal, vocês t e rem se reencontra­

do, depois de tantas dificuldades, e reatado seu amor é algo

que merece ser festejado. Para quando será a cerimônia?

Preciso me preparar, sem que afete outros compromissos.

— Quem sabe possamos fazer assim? O senhor con­

sulta seus compromissos , sua agenda, e no t empo que esti­

ver disponível nós organizaremos tudo, faremos os convi­

tes e oficializaremos nossa união. Já temos inclusive o local

onde i remos morar.

— Que bom, meus filhos. Assim fica melhor para mim e

espero que para vocês, t ambém. Quero ser o pr imeiro a vi­

sitar sua casa; não deixem de me convidar. Quem sabe nos­

so amigo aqui — apontou para mim —, que se chama Ânge­

lo Inácio, t ambém não possa ir comigo?

— Caso queira — respondeu um dos rapazes —, você é

nosso convidado! Meu nome é Camilo e este é meu namo­

rado, Mike. Estamos nos p reparando para a futura vida fí-

Page 202: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

1 9 9

sica. Es tudamos juntos e p re tendemos realizar um traba­

lho conjunto, tão logo estejamos de volta ao plano físico.

Enquanto isso, p re tendemos ser admit idos na equipe dos

guardiões. Se conseguirmos, a experiência nos capacitará

para nosso projeto na Crosta, ao reencarnarmos .

— Por falar em guardiões, Ângelo — lembrou Pai João

—, Jamar já deve estar de regresso.

Voltando-se para Mike e Camilo, convidou-os:

— Caso queiram vir conosco, vamos visitar um dos pos­

tos avançados dos guardiões em regiões inferiores. Sintam-

-se à vontade, caso seus afazeres o permi tam.

— Temos de nos apresentar às atividades na universi­

dade, meu pai. Hoje será a pr imeira fase da prova de admis­

são, a fim de ingressarmos na equipe de guardiões. Depois,

eu e Mike assumimos um compromisso jun to a um grupo

de espíritos com tarefas n u m país islâmico. Na próxima vez

que nos convidar, com cer teza iremos, ou melhor, vamos

nos programar para isso. Por ora, espero que compreenda .

— Sintam-se à vontade, meus filhos. Eu os recomenda­

rei a Jamar pessoalmente, afinal, vocês já t êm um curr ículo

com serviços e es tudos que dificilmente seria menospreza­

do pelo guardião da noite. Vão em paz. Se precisarem de

Page 203: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

2 0 0

algum reforço na tarefa, por favor, não se acanhem; podem

me procurar.

— Obrigado, meu pai! E você, Ângelo, é nosso convida­

do para o evento que prepararemos .

Olhando para Watab, que continuava silencioso como

ele só, acrescentaram:

— Não se esqueça: você também, guardião, é nosso

convidado — Watab meneou a cabeça em agradecimento.

Jamais eu esqueceria algo assim. Um casamento de dois

espíritos, na dimensão extrafísica. E dois espíritos de as­

pecto masculino! Assim que os dois se foram, muitas dú-

vidas e ques t ionamentos surgiram em minha mente febril

Não tive coragem de olhar d i re tamente para Pai João, pois

sabia mui to bem que ele conhecia meus mais secretos pen­

samentos . Era novato naquela comunidade de seres, na ci­

dade dos espíritos; ainda não aprendera a ocultar minhas

emoções e pensamentos . E Pai João sabia disso mui to bem.

Minha men te fervilhava.

— Fique tranquilo, meu filho — confor tou-me Pai João.

— Você terá suas respostas em breve.

Ele foi discreto por demais. Não ousou mais do que

isso, de ixando-me entregue aos mais intr icados pensamen-

Page 204: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

2 0 1

tos, conjecturas e indagações acerca da na tureza humana ,

da forma como era vista, no m u n d o espiritual, a união dos

seres e dos sexos, e sobre o própr io conceito de casamen­

to entre desencarnados . Tudo isso mexia comigo de u m a

maneira que nunca imaginara. Cheguei a suspei tar que Pai

João me levou àquele lugar já de caso pensado, ou melhor,

levou-me ao encont ro daquele casal já v is lumbrando algo

no futuro mais ou menos distante.

Com o tempo, percebi que aquele espírito, que dia a

dia eu aprendia a reverenciar e respeitar, sob o nome de Pai

João, não fazia nada sem um plano ou u m a f inal idade, sem

que fossem ponderados os detalhes, visando ao crescimen­

to e às tarefa futuras. Quando ousei levantar a cabeça e fi­

tar seus olhos negros, eles br i lhavam fortemente. Ao lado

dos cabelos brancos, tão b e m combinados com a barba alva

como a neve, em contraste com a ep iderme negra, e jun to

com o sorriso farto, os olhos do pai-velho ocultavam a sabe­

doria milenar escondida por trás daquela roupagem de um

simples ancião.

Logo após nossa chegada a u m a região mais afastada

da metrópole, pude ver grande quant idade de casas, banga­

lôs, choupanas e outras construções, a maioria parecendo

Page 205: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

2 0 2

ser feita de madei ra ou algum material similar. Perdiam-se

de vista as construções em meio aos bosques, florestas, jar­

dins e montanhas . Aquele estilo arquitetônico parecia ser a

maioria absoluta ali na metrópole , ao contrár io do que ima­

ginara antes, ao ver os prédios enormes do espaço urbano,

embora tão b e m integrados à paisagem, respei tando o prin­

cípio de tudo na Aruanda: a convivência pacífica com a na­

tureza. Mas ali, onde nos encontrávamos a convite de Pai

João, é como se minha visão do en torno ou dos subúrbios

da Aruanda tivesse se dilatado, e pude apreciar a vastidão

da cidade espiritual. Aliás, os arredores da cidade dos es­

píri tos eram encantadores , verdadeiro paraíso em meio a

montes , vales, rios, matas e lagos. Pássaros exóticos, desco­

nhecidos por mim; animais domésticos e outros como leo­

pardo, onça e leão, além de cavalos, zebras, girafas e uma

fauna mui to variada — todos os bichos pareciam conviver

amigavelmente, soltos pelas campinas, planícies e ambien­

tes cheios de vida e verde. Vi crianças caminhando ao lado

de pacíficos leões ou montadas sobre eles, guiados por al­

gum outro espíri to — algo impensável no m u n d o físico.

E não havia zoológicos. Por todo lugar, observava-se vida

exuberante , e os animais integravam o cotidiano da comu-

Page 206: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

2 0 3

nidade de manei ra t ranqui la e natural , como nunca imagi­

nara possível.

A cada dia, a cada hora, fazia contato com as surpre ­

sas de um m u n d o novo, de uma cidade espiri tual na qual

me fixaria e que se tornar ia a base para atividades futuras.

Morar na A m a n d a era u m a ideia que dia após dia tomava

mais corpo; era realidade. Fascinavam-me as opor tun ida­

des de aprendizado e es tudo que se desdobravam diante

de meu espírito.

— Antes de encont rar Jamar, visi taremos uns amigos

em nossa cidade, para você ter u m a ideia de como funciona

a vida em família por aqui, em nossa dimensão.

Enfim teria opor tun idade de ver de per to uma família

de espíritos. E isso me excitava. Dirigimo-nos a uma casa

belamente construída n u m a espécie de bair ro residencial.

Não havia muros , apenas jardins separando uma casa da

outra. Era o t ipo de projeto urbaníst ico que lembrava bas­

tante o dos subúrbios de algumas cidades nor te -amer i ­

canas. Todas as residências da região pareciam ser cons­

truídas de madeira ou algo mui to semelhante , ainda que

estruturadas em f luidos desta dimensão. Havia um espaço

generoso ent re u m a casa e outra, e isso me fez pensar na

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2 0 4

extensão da cidade como um todo. Neste momen to Watab

rompeu seu silêncio e falou:

— Hoje, a Aruanda t e m mais ou menos a d imensão da

Grande São Paulo, p o r é m um n ú m e r o b e m m e n o r de habi­

tantes . Por isso, como pode ver, há espaço pa ra todos con­

fortavelmente, sem incor re r na alta dens idade demográfi­

ca que se observa em cidades tão populosas como a capitai

paul is tana.

— De qualquer forma, meu filho — completou Pai João

—, como vivemos em uma dimensão extrafísica, o problema

do espaço aqui é diferente do que ocorre na Terra. A popu­

lação é moni torada, de manei ra que não ul trapasse muito

a marca dos 10 milhões de habi tantes . Há um fluxo razoá­

vel daqueles que reencarnam e outros — embora poucos,

se comparados a outras cidades — que vêm da Terra e de

outras metrópoles espiri tuais para cá. Ou seja, t emos uma

população balanceada, um n ú m e r o compatível com uma

vivência t ranqui la e sadia jun to à natureza. Já pôde repa­

rar que a área u rbana de nossa cidade é ampla, mas ainda

assim a maior par te da população prefere viver nas casas e

em outras construções semelhantes ao redor do centro, da

região mais densamente povoada.

Page 208: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

2 0 5

Enquanto caminhávamos rumo à visita à família espi­

ritual da qual Pai João falara, pergunte i algo que, de certo

modo, causava-me es t ranhamento :

— Não vi igrejas por aqui. Onde os religiosos se r eúnem

para rezar e adorar a Deus ou suas divindades?

— É porque adotamos um tipo de es t ru tura espiri tual

que difere de outras cidades no m u n d o extrafísico. Não há

templos semelhantes aos que existem no plano físico. Cada

grupo afim se reúne em meio à natureza; incentivamos os

espíritos a se reun i rem em família. As formalidades dos

cultos, conforme existem na Terra, de ixaram de existir por

aqui há mais de 200 anos. Mas, caso algum espíri to ou gru­

po de espíri tos queira, existem diversos recantos, belíssi­

mos por sinal, verdadeiros paraísos, que podem ser utiliza­

dos por quem pensa e reza de manei ra semelhante , ou seja,

irmãos de fé. Todos são livres para adorar a Deus ou não,

segundo crêem. Há até mesmo l iberdade para não se en­

volver com qualquer manifestação de religiosidade, embo­

ra por aqui não existam ateus. Para muitos espíritos, a ciên­

cia é a religião que adotam para persc ru ta rem a verdade do

universo; outros necessi tam de certos aparatos, rituais e

crenças; há, ainda, quem prefira se dizer sem religião. Sob a

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2 0 6

ótica da administração da cidade, tudo está bem, desde que

sejam respei tadas as poucas regras de convivência pacífica.

— Então existem espíri tos que não professam nenhu­

ma religião?

— Sim, pelo menos n e n h u m a religião que se identifi­

que com alguma das denominações existentes ou com o

que estas ensinam. Não podemos forçar n inguém a acredi­

tar em nada. Mas temos como regra o es tudo das leis uni­

versais. Sob esse ponto de vista, podemos dizer que, para

mui ta gente, a religião verdadeira está dent ro de si; t rata-

-se de u m a forma pessoal de se conectar à divindade e de se

relacionar com as leis sublimes da vida. Respeitamos quem

assim procede, como não podia deixar de ser.

Fomos impedidos de cont inuar o assunto, pois chega­

mos a uma das casas da região onde nos encontrávamos.

Pai João e Watab pareciam ser velhos conhecidos ali. As­

sim que se aproximaram da construção, um tipo de sobrado

com trepadeiras adornando a fachada e algumas flores dis­

persas pelo jardim, as quais demonst ravam o cuidado dos

moradores do lugar, uma mulher saiu de dent ro da casa,

saudando efusivamente o pai-velho e o guardião. De súbi­

to, senti cer ta emoção me envolvendo, de modo a recordar

Page 210: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

2 0 7

minha antiga família na Terra. Parecia que estava voltando

para casa depois de uma viagem mui to longa.

— Sejam bem-vindos, todos. Que honra recebê-lo, meu

velho! — falou a mulher, visivelmente alegre ante a presen­

ça de Pai João. — E você, guardião silencioso, meu quer ido

Watab, quanto tempo, hein?

— Estamos de volta, Laura! Estamos de volta... E você,

como está? E as crianças?

— Estamos mui to bem, meu pai... Vamos, entrem! En­

trem, logo — convidou-nos festiva.

— Este é Ângelo Inácio, nosso amigo recém-chegado

da Terra — apresentou-me Pai João.

— Então você é o escri tor e jornalista? Já ouvimos falar

de você, meu caro. Seja bem-vindo!

Não sabia o que dizer diante de tanta natural idade e

boa vontade com que fui recebido. Parecia a hospi tal idade

mineira. Em instantes me habituei com o jeito de Laura.

— As crianças estão na escola, Pai João. E Alberto está

agora nas fábricas, t reinando um processo de criação men­

tal e manipulação de fluidos visando à construção de habita­

ções. Quando reencarnar, ele pretende ser arquiteto. Imagine

quantas oportunidades terá nas fábricas de formas mentais...

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2 0 8

Depois de um breve silêncio, eu talvez t enha percebido

u m a sombra de preocupação em seu semblante, logo dis­

farçada com a conversa, que parecia ser interessante:

— Estou me ocupando mais in tensamente do nosso

menino, o Régis. Assim que o adotamos em nosso lar, e após

o per íodo de desenvolvimento do corpo espiritual em meu

útero de mãe, ele logo começou seu t ra tamento magnético.

Mas temo que precise ser transferido a outra comunidade,

a uma outra cidade, meu pai.

Enquan to sentávamos n u m a pol t rona confortabilíssi-

ma, Laura confidenciou suas preocupações , agora mais ple­

namente visíveis.

— O Régis é um espírito que não t em n e n h u m a afini­

dade com nossa família. O adotei porque estava muit íss imo

necessi tado de recompor sua forma perispiri tual e eu an­

siava pela opor tun idade de ser mãe novamente . Confesso,

meu pai, que foi mais por egoísmo de minha par te do que

por amor...

Pai João colocou sua mão sobre a mão de Laura e con­

fortou-a com um jeito bem paternal :

— Mas não impor ta isso agora, minha filha. O mais im­

por tan te é que ajudou nosso Régis a se recompor espiri-

Page 212: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

2 0 9

malmente , pelo menos no que tange à forma espiritual. E

você não desistiu de encarar outra etapa, abraçando tam­

bém a condução do seu espírito.

— Pois é, meu pai... Ocorre que, como sabe, ele veio di­

retamente de uma situação em que foi submetido ao trato

hipnótico por um dos habilidosos magos das regiões inferio­

res. Tinha o psiquismo totalmente nublado, n u m processo de

amnésia espiritual forçada ou induzida. Assim que o retira­

mos do contato mais direto com meu períspirito, por meio do

magnetismo, isto é, assim que renasceu em nossa dimensão,

num corpo de criança mais reestruturado, parece que seu cé­

rebro perispiritual começou a recobrar memórias. Nem ima­

gina as situações que temos enfrentado em nosso lar para

aconchegá-lo e conduzi-lo a um estado mais harmonioso.

— Confesso que n e m imagino, Laura. Mas podemos fa­

lar d i re tamente com a equipe de educadores da Nova Ga­

lileia, pois eles de têm recursos educativos e u m a forma de

abordar o psiquismo de seres nessas condições, que você

precisa conhecer. É rea lmente bas tante eficiente a me todo­

logia que usam.

— Ah! Meu pai... Sabia que sua vinda aqui seria u m a

bênção para nossa família. Já t inha ouvido falar nessa esco-

Page 213: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

2 1 0

la, mas não tive a opor tun idade de conhecer n e n h u m espí­

rito ligado a ela...

Voltando-se para mim e Watab, a anfitriã falou, cheia

de cuidados:

— Me pe rdoem vocês dois, meus queridos, mas sabem

como é o coração de mãe. Do lado de cá da vida, Ângelo, as

coisas não são tão diferentes do que acontece com a maio­

ria das mães, na Terra. Vou preparar alguma coisa para nós.

F iquem à vontade ou, então, me acompanhem até a cozi­

nha... Por favor!

Levantamo-nos e a seguimos até a cozinha. Lembrei-

-me mais u m a vez dos costumes que vi em Minas Gerais,

mais prec isamente no interior. A cozinha era imensa. Uma

bancada f icava no meio, com diversos apetrechos comuns

a u m a cozinha qualquer, embora houvesse alguns equi­

pamentos que eu desconhecia. Mas a geladeira, o fogão

moderno por demais... Porém, não vi fogo no fogão. Pare­

cia que o calor irradiava da boca do fogão, sobre a qual se

apoiava um vasi lhame em tudo semelhante às panelas que

conhecia, embora parecesse ser feito de louça, e não de

metal . Sentamo-nos em torno da bancada, n u m a conversa

animada. Foi somente então que vi Watab descontrair-se,

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2 1 1

entrando na conversa e auxil iando Laura a p reparar algu­

ma coisa para comermos . Na verdade, eu não sentia fome,

mas os sucos e os bol inhos preparados pareciam ressusci­

tar em mim o paladar e a vontade de degustar qui tutes ca­

seiros. Nunca havia exper imentado sabores tão intensos e

bolinhos tão saborosos. Sentia-me em casa. Em determina­

do momen to de nossa conversa, Laura dirigiu-se a mim de

maneira especial:

— Então você está ainda n u m hotel, Ângelo? Ainda não

considerou morar em sua própr ia casa? Um chalé, um ban­

galô ou, quem sabe, pelo seu jeito, um loft?

— Ainda me sinto mui to novo neste m u n d o de espíri­

tos, Laura. Aliás, não me habituei complemente ao fato de

ser um espírito.

— Então, quem sabe não podemos ser mais úteis a esse

processo de adaptação do lado de cá? Caso queira, poderá

f icar conosco por algum tempo. Alberto, meu marido, com

certeza f icará ex t remamente feliz com sua presença em

nosso meio, pois adora seus poemas e é um h o m e m muito

dedicado a estudar; é mui to culto, por sinal, ao contrár io de

mim, que sou apenas u m a dona de casa e colaboro em ser­

viços mais simples da nossa comunidade .

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2 1 2

— Laura não está se valorizando como merece, Ângelo.

Ela é excelente artista; toca piano como n e n h u m espírito

que eu conheça — falou Watab.

— Na verdade, uso a música para acalmar corações e

emoções; só isso. Mas acho que preciso alargar meus ho­

rizontes. Tenho me dedicado de manei ra insuficiente a es­

tudar outros impor tantes ramos do conhecimento . Acabo

usando como desculpa o fato de precisar me dedicar mais

aos filhos espirituais.

Queria mui to conhecer de per to o dia a dia de uma fa­

mília de espíritos e parece que esta seria u m a chance ímpar

para mim. Pai João notou meu interesse em estar mais per­

to da família de Laura e falou, dir igindo-se a mim:

— Pois é, meu filho! Acho que as opor tunidades são ex­

celentes para você. Se desejar, podemos providenciar uma

casa para você por aqui. Quem sabe se sinta à vontade no

hotel... no entanto, chegará a hora em que desejará um lu­

gar todo seu, que t enha sua cara.

— Acho que, se me de rem a chance, vou preferir morar

neste bairro residencial. Talvez possa ficar mais próximo

da família de Laura e, assim que me for possível, construi­

rei ou reunirei minha própr ia família espiritual.

Page 216: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

2 1 3

— Que seja assim, Ângelo! — exclamou Pai João. —

Laura e sua família poderão ser pra você u m a espécie de

ancora ou referência em seu novo estágio na errat icidade.

— Ficaremos felizes em poder ajudá-lo, de alguma for­

ma, a se instalar mais definitivamente aqui na Aruanda. Po­

demos lhe mostrar a cidade com mais detalhes enquanto

você se encaixa em alguma atividade ou grupo de estudos.

Fiquei emocionado mais uma vez. Senti-me em casa,

aconchegado por u m a família e contente com a perspect i ­

va de construir um lar. Diante dessa possibilidade, não me

via mais como um visitante ou apenas um espírito i t ineran­

te, que estivesse de passagem para es tudar na cidade; com

efeito, sent ia-me um habi tante daquela comunidade de es­

píritos. Com a const rução do novo lar e a reunião da família

espiritual, eu me sentiria integrante e par t ic ipante ativo da

vida espiritual da metrópole . Isso me fez um b e m imenso,

pr incipalmente porque, em breve, seria apresentado a ou­

tra realidade, ao t rabalho dos guardiões amigos da huma­

nidade. Era impor tan te que estivesse integrado ao modo de

vida da Aruanda. Dessa forma, com minha autoest ima rea­

firmada ou elevada, poder ia colaborar com mais qual idade

nas tarefas que me aguardavam.

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2 1 4

Após nos despedi rmos de Laura e tomarmos o caminho

de volta, pude observar melhor a vegetação que compunha

os jardins em torno das casas. Sinceramente, n e m mesmo

com modificação genética e avanços de mais 100 anos seria

possível ver, na Terra, algo que ao menos se assemelhasse à

na tureza das plantas e, até mesmo, de minerais, pedras e da

própr ia te r ra que pisávamos. Algumas f lores pareciam can­

tar, emit indo certa sonor idade à medida que passávamos

per to delas. Novamente pude perceber seres pequeninos

esvoaçando em torno de flores e plantas, sentados sobre as

pedr inhas que c o m p u n h a m os jardins, adornando fontes

ou mesmo demarcando espaço para algum arranjo diferen­

te de arbustos e flores exóticas, a meu ver.

Uma vez que permanec ia em silêncio, n u m silêncio

criativo, pensando in tensamente em tudo que vira e ouvira,

no convite de Laura e na proposta de Pai João, Watab rom­

peu a quietude, falando direto a mim:

— Aqui, Ângelo, como verá em todo lugar em nossa ci­

dade, tudo quanto na Crosta era classificado como sem vida

ou inanimado, sem inteligência e per tencente a reinos bio­

lógicos inferiores ao humano, na verdade está cheio de vita­

lidade, de energia, uma energia radiante, que interage com

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2 1 5

tudo à volta. Dessa maneira, as plantas, as flores e até mesmo

as pedras e o solo abaixo de nós respondem aos estímulos

mentais e emocionais dos habitantes. As cores modificam-

-se de acordo com o teor do pensamento dos espíritos mais

próximos; a tonalidade do verde se intensifica ou esmaece

de acordo com o sent imento e a aura de quem se achega. Do

mesmo modo, as construções, elaboradas a part ir do fluido

cósmico, dos fluidos mais sutis da atmosfera do planeta, re­

fletem a qualidade emocional dos moradores . Lentamente ,

as formas se modificam. Nas cores das paredes, nos móveis

mais ou menos elegantes, nas linhas mais arrojadas ou sin­

gelas, evidencia-se a característica de cada morador ou de

cada pessoa que entra em contato direto e constante com

tais criações. Enfim, tudo aqui vive e vibra; nada é morto,

nem as pedras, nem as montanhas , nem o ar que respira­

mos. Tudo vive e está cheio de vida, em todo lugar.

Jun to com minhas impressões sobre a vida familiar,

brotava em minha alma um respeito por tudo o que via ao

meu redor. A natureza, as coisas mais simples até as mais

complexas: tudo para mim renascia sob novo prisma, e me

fazia sentir cada vez mais vivo, embora t ambém me perce­

besse pequenino naquele momento , ao atestar a r iqueza a

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2 1 6

meu redor. A es t ru tura ínt ima da matér ia — se é que posso

chamar assim esse t ipo de material que via no en torno —

na qual fora erguida e edificada a cidade era algo impres­

sionante e, ao mesmo tempo, para mim, inexplicável, tendo

em vista o conhecimento reduzido sobre o funcionamento

das coisas nesta dimensão.

Enquan to me diluía em sent imentos de respei to e gra­

tidão, tocado in t imamente por tudo, extasiado peran te a

es t ru tura que me cercava, Pai João complementou a pala­

vra de Watab, o guardião:

— Também chamamos matér ia os e lementos que te­

mos à disposição nesta d imensão. 1 0 Pode-se dizer matéria

mental, astral ou mesmo fluido mais ou menos condensa­

do, assim mesmo segue sendo um tipo especial de matéria,

desde a substância componen te dos trajes usados pelos es­

píri tos até aquilo que é empregado nas construções da ci-

10 "Mas a matéria existe em estados que ignorais. Pode ser, por exemplo, tão etérea

e sutil, que nenhuma impressão vos cause aos sentidos. Contudo, é sempre maté­

ria. Para vós, porém, não o seria" ( K A R D E C . O livro dos espíritos. Op. cit. p. 81-82,

item 22). "O que te parece vazio está ocupado por matéria que te escapa aos senti­

dos e aos instrumentos" (Ibidem, p. 88, item 36).

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2 1 7

dade. Se lhe disséssemos que as construções não são tanto

uma forma, mas um sent imento cristalizado ou coagulado,

talvez você me interpretasse, meu f i lho, como falando por

parábolas, usando uma figura de l inguagem, devido à sua

formação acadêmica e profissional. Pode-se dizer, apenas

para efeito de comparação, que nossas construções são fei­

tas de luz — luz líquida ou coagulada, que é moldada pe­

los sent imentos dos moradores . Em algum m o m e n t o você

compreenderá melhor, provavelmente quando estiver em

sua própr ia casa, segundo o desenho que escolher, isto é,

quando emoções e pensamentos mais profundos se refle­

t irem em tudo a seu redor: nas paredes, nas cores, nos mó­

veis e nos utensílios. Aí, verá como seus sent imentos estão

in t imamente relacionados com o ambiente particular. As­

sim é a Amanda ; assim, o Invisível, o m u n d o dos espíritos.

Conforme caminhávamos e meus sent imentos pare­

ciam se dilatar, minha visão da cidade e dos arredores pa­

recia dilatar-se, t ambém. Com pouco esforço, pude ver ou

perceber pormenores das mon tanhas ao longe; sobre coli­

nas distantes, erguiam-se majestosas construções, que da­

vam a impressão de templos, embora templos ali não hou­

vesse. Apresentavam-se na forma de torres, arcos, pátios e

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2 1 8

cúpulas, em meio à vegetação farta que eu percebia. Mais

uma vez, Pai João me socorreu, à medida que nos aproxi­

mávamos do ponto de encontro com Jamar:

— As cúpulas e torres que você vê, Ângelo, cuja cinti­

lação impressiona os olhos e o br i lho encanta a alma, são

consti tuídas de e lementos que, na Terra, seriam classifica­

dos como pedras preciosas. Decer to já ouviu alguma vez,

em leituras da Bíblia, a referência à Nova Jerusalém, 1 1 ci­

dade espiritual que o apóstolo João descreve no livro Apo­

calipse: ruas de ouro, portas de pedras preciosas e coisas

semelhantes . 1 2 É que aqui, n u m a esfera de vida além da co­

nhecida na Crosta, as possibilidades do espírito são ilimita­

das. A exuberância da vida coloca à disposição, n u m a esca­

la b e m mais ampla, incontáveis recursos da natureza. São

fluidos condensados ou energia coagulada pela força men­

tal dos espíritos construtores , que modelam, através desses

mesmos f luidos, e lementos que são conhecidos na Terra,

porém n u m a dimensão diferente da que se observa entre

os encarnados. A luz coagulada pode assumir pra t icamente

1 1 Cf. Ap 21.

12 Cf. Ap 21:11,18-21.

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2 1 9

todas as formas conhecidas no m u n d o físico, mas aqui são

muito mais intensas, precisas e harmoniosas .

"As construções são museus, onde, em diversos deles,

t rabalham e es tudam seres de nossa cidade ou de outras,

que vêm em busca de conhec imento arquivado nos bancos

de dados ou sob a forma de acervo. Cada pedra preciosa,

cada gema, independen temente do t amanho e da forma,

têm um significado. As gemas preciosas refletem as auras,

os pensamentos e emoções, sent imentos e características

de cada visitante ou t rabalhador do local, b e m como das

obras expostas nos museus . Essas construções, sim, talvez

fossem confundidos com templos pelos mais religiosos, tão

significativas são a arquitetura, as exposições e o acervo ali

oferecido aos estudiosos da ciência do espírito."

Pai João despertava em mim admiração e respeito

como nunca tivera, nessa medida, por n e n h u m ser com o

qual convivera. De out ro lado, havia a gratidão, sobretudo

por fazer par te deste lugar, que, somente agora, descobria

em maiores detalhes, ainda que soubesse faltar grande nú­

mero de coisas para conhecer na na tureza da vida extrafísi-

ca. Havia mui to que aprender. Cer tamente , o encontro com

Jamar, que me apresentar ia uma base de apoio dos guar-

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2 2 0

diões, descort inaria novos conhecimentos e mais reverên­

cia peran te a grandeza da vida e as tarefas que me a

davam no porvir. Nunca imaginei que morre r era viver,

viver com intensidade.

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2 2 5

UANDO JAMAR CHEGOU, já me encontrava b e m mais t ran­

quilo e integrado ao tipo de vida que a cidade espiri tual

oferecia. E ram mui tos fatores recentes e novos para mim.

Pr imeiramente , a visita ao lar de Laura, que revelara por­

menores da vida familiar e domést ica na Amanda , desde

a forma de se al imentar até a maternidade . Antes mesmo

disso, deparar com vários casais, contemplar a vida conju­

gal no Além e observar a diversidade e a plural idade dos

tipos humanos foram coisas que me fizeram refletir sobre

o modo como todos eram t ra tados e se t ra tavam na A m a n ­

da. No que diz respei to à vida afetiva, pude observar tan to

espíritos que t iveram experiências na heterossexual idade

como seres com ident idade energética voltada à homosse­

xualidade, mas ambos na mais singela normalidade, como

se esse aspecto não fizesse a menor diferença; parecia ser

mesmo irrelevante. Cada casal levava a vida conforme me­

lhor lhe parecesse, com respei to mútuo; t raçavam planos,

usufruíam de todas as opor tunidades que a comunidade

lhes podia oferecer.

Jun te -se a isso a enorme variedade de manifestações

culturais e religiosas, de aparências, estilos e preferências

dos espíritos, b e m como de e lementos étnicos e raciais, e

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2 2 6

me peguei por mui tos momentos admirando a capacida­

de desta gente de conviver com o diferente e a diversidade.

De abrigar, acolher e encorajar t amanha r iqueza do espí­

rito humano , sem moral ismos ou códigos de conduta que

se pautassem por outra coisa senão os valores mais nobre-

que todos conhecem: amor genuíno, ha rmonia no convívio,

educação e gentileza, respeito às escolhas e ao jeito de cada

um. Enfim, nada que segregasse, confinasse o espíri to aos

limites estrei tos das crenças e concepções part iculares ou

ditasse regras rígidas e insensatas, que sufocassem a vasti­

dão das possibilidades humanas .

Tantas vivências e reflexões descor t inaram diante de

meu espíri to toda u m a manei ra de pensar razoavelmente

dist inta do que conhecia e cultivava antes, quando encar­

nado. O sent ido de lar e família deveria ser refundido, rees-

crito, pois aqui começara a divisar novo hor izonte e nova

concepção, mais larga, do que vem a ser lar. As construções

da Aruanda, então, impress ionavam-me a cada momento.

A matér ia da qual e ram feitas merecia es tudo à parte . E as

plantas, as flores, os animais e todo o resto? Simplesmen­

te, não poderia formar uma ideia exata sem me aprofundar

em estudos da ciência universal, e não somente da ciência

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2 2 7

humana dos encarnados, que avançava den t ro dos rígidos

limites de paradigmas antigos e ortodoxos, dedicando-se

apenas à real idade material , que era ainda mais estrei­

ta. Este plano ou dimensão não seria um m u n d o à par te

do planeta? Outro cont inente no espaço, quem sabe? Uma

extensão do orbe ou uma realidade paralela? Estava longe

de obter respostas para tantas perguntas que emergiam de

meu interior; porém, para que elas viessem, era necessário

de estudar. E então compreendi o porquê da obrigatorieda­

de dos estudos neste m u n d o novo.

Um lugar onde a própr ia na tureza irradia cores, sons,

música. Descobri que o som t em cores e a cor emite som e

faz música. Mas isso jamais será compreendido por quem

pensa o m u n d o apenas por meio dos sentidos, restr i to pela

visão material . Somente l iber tando-se da ilusão da matér ia

— da convicção da vida material como realidade absoluta

— é possível compreender algo que t ranscenda os estreitos

limites dos cinco sentidos. Conheci cores mui to diferentes

daquelas que são vistas no m u n d o físico, embora todas que

conheci na Terra aqui estivessem, em intensidade e nuan-

ces surpreendentes e superiores. Ao ser in t roduzido no

ambiente onde residiam Laura e sua família, e observando

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2 2 8

o tipo de habitação dos demais espíritos, entrei em conta­

to com o significado e a ha rmonia das cores. Soube que, de

acordo com os sent imentos dos habitantes , com o trabalho

e a ocupação a que se entregassem, seja de caráter mental

ou não, as diversas cores se misturavam, formando outras,

que passavam a imprimir na atmosfera, no ambiente a sua

volta, a marca profunda ou a aura part icular daquele espí­

rito. Esse mecanismo explica por que as casas e constru­

ções da A m a n d a vibram e respondem ao pensamento do

morador. A matér ia sutil em que são elaboradas é tão sen­

sível à ação da men te que as paredes, o mobiliário e tudo o

mais que cerca o espíri to dão resposta imediata ao influxo

de pensamentos e emoções. Aí está um fator ou mecanismo

que favorece, a todo instante, a reeducação das emoções e

dos pensamentos dos habi tantes da cidade.

E como a música faz par te da vida dos moradores. . . É

tão impor tan te que de tudo emana som, música, melodia. 1 3

13 "A música possui infinitos encantos para os Espíritos, por terem eles muito de­

senvolvidas as qualidades sensitivas. Refiro-me à música celeste, que é tudo o que

de mais belo e delicado pode a imaginação espiritual conceber" ( K A R D E C . O livro

dos espíritos. Op. cit. p. 207, item 251).

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2 2 9

As flores cantam, as folhas emi tem vibrações sonoras e a

Aruanda é toda musical idade, que pene t r a no âmago dos

espíritos e auxilia na pacificação dos seres que aí habi tam.

A música é par te da vida, da energia, da substância da qual

é construída a cidade e a comunidade . E não há filho da

Aruanda que não se deixe envolver e não se envolva com

música, ar te e poesia. Em poucas palavras, a música ema­

na da alma dos espíri tos desta cidade. Assim como ema­

na da própr ia na tu reza desta dimensão, deste out ro m u n ­

do, e t a m b é m das flores, das plantas, das águas, dos seres

de todas as formas. Cores, músicas e sons não são coisas

inanimadas, mas de ten toras de vida própria , de r i tmo, har­

monia e vibração perfe i tamente palpáveis, perceptíveis e

mensuráveis .

As edificações residenciais, conforme verifiquei no

lar de Laura e, mais tarde, nos demais locais onde passei,

não foram erguidas para a proteção das pessoas ou dos es­

píritos, conforme acontece na Terra. Não. Tudo é feito de

modo a concent rar as energias dos moradores ; t ra ta-se de

uma espécie de condensador de emoções, emissões f luí-

dicas e pensamentos , ou melhor, da qualidade dos pensa­

mentos dos que ali habi tam. Assim, a energia peculiar a

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2 3 0

cada morador, concent rada nas paredes, no teto, nas cores

e na substância mesma das residências, faz com que estas

se t o r n e m uma pilha energética particular, de onde cada

inquilino pode haur i r forças e reabastecer-se. Pode, ainda,

direcionar o recurso ali a rmazenado para quem dele neces­

site ou enviá-lo, sem perda de qualidade, a lugares distan­

tes, movido pela necessidade ou pelo desejo de ajudar. Isso

é uma maravilha por si só! Difere de tudo e de toda concep­

ção do plano físico a respeito de engenhar ia civil, de fun­

ção da habitação e de critérios para a escolha do ambiente

onde se vai viver e morar. Não posso dizer que exista al­

guém que não se encante com a na tureza deste m u n d o cha­

mado Amanda .

Quando ainda hoje penso naqueles pr imeiros momen­

tos de contato com a na tureza sideral deste universo novo,

encho meu espírito de grat idão e não há como impedir que

ver ta uma lágrima de emoção diante de t amanha diversida­

de, t amanha plural idade e grandeza da vida espiritual. De

modo que, em minhas reflexões, cheguei à seguinte conclu­

são: era preciso ir além das convicções te r renas e refazer as

concepções de certo e errado, de vi r tude e pecado, de na­

tural e subversivo. Onde me encontrava, ou refazia minhas

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231

ideias de normal idade e anormal idade ou, s implesmente,

não conseguiria me incluir en t re os agentes do Cordeiro

que trabalhavam n u m a dimensão mais ampla do que aque­

la na qual t ranscorre a vida na Terra.

Por ora, não conhecia ainda outras cidades espirituais.

Apenas ouvira falar de Nosso Lar, Grande Coração, Vitória-

- Régia e outras mais. Também ignorava como se compor­

tavam os habi tantes daquelas cidades ou colônias, como

se costumava chamar as comunidades menores . Mas aqui,

na Aruanda, não havia como pe rmanecer com as acanha­

das formas de pensar e agir, tal qual a maioria dos huma­

nos encarnados e, t ambém, desencarnados . Tudo o que vira

até então serviu para alargar os hor izontes do meu conhe­

cimento e refundir conceitos, abr indo minha men te para

uma forma mais universalista de pensar. Até mesmo a ma­

neira de lidar com as questões humanas , sem o peso da cul­

pa e sem cobranças, foi para mim um tipo de bênção.

Ante meu passado cheio de equívocos, não me senti co­

brado por n e n h u m tribunal, t ampouco deslocado ao rea­

lizar meu aprendizado na metrópole, em tarefas ou con­

dições diversas daquelas às quais estava acostumado. Fui

respeitado int imamente , inclusive nos gostos, no tempera-

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2 3 2

mento e no jeito de ser, mesmo com as manias e a acidez ca­

racterística, ao criticar tudo e todos à minha volta. Não pre­

cisei abdicar do meu humor, do jeito de me expressar. Tudo

isso foi respeitado como aquisição da minha alma, e assim

me senti mais humano. E foi somente a par t i r de então que

senti vontade de modificar alguma coisa dent ro de mim,

de fazer u m a reavaliação íntima, sem n e n h u m a imposição

n e m discurso moralista, muito menos o peso religioso que

presumivelmente pudesse acompanhar certos ensinamen­

tos t ransmit idos a mim nesta outra vida que encontrei . Não!

Mudei apenas porque cheguei à conclusão de que queria

mudar. O t empo todo ouvi que eu era apenas humano.

Pai João, Jamar, Watab, Consuela, da qual não posso

esquecer jamais, o encont ro com Laura em seu lar, com Ca­

milo e Mike, sem falar nos Imortais que dir igem os dest inos

desta comunidade — n e n h u m deles, em n e n h u m momen­

to, jamais se apresentou a mim como por tador de grande

elevação espiri tual ou de uma sant idade incompreensível .

Deparei tão somente com seres hum anos comuns, embora

dignos de respei to e consideração. N e n h u m espírito havia

que se dissesse elevado ou que fosse t ido como um pr imor

de evolução. Encont re i -me entre humanos , e isso fez toda a

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2 3 3

diferença dent ro de mim. As mudanças começaram a acon­

tecer na tura lmente , sem cobrança n e m força, sem imposi­

ções n e m pregações religiosas, santificacionistas ou "espi­

ritualizadas". Segui apenas o curso c o m u m e natural , sem

pressa e sem mart ír io.

Os espír i tos com quem travava conta to não se cansa­

vam de dizer que n inguém ali era anjo e não se ocupava de

desacer tos e erros de quem quer que ali estagiasse. Em ne­

nhum momento , en t re os habi tan tes da c idade espiri tual ,

senti sequer um t raço de dor moral , do peso e do rigor tí­

picos das pos turas de culpa e cobrança. E isso me conquis­

tou de vez. Sent ia-me in tegrado à vida da met rópole espi­

ri tual , com seus mais de 10 milhões de habi tantes , de todas

as etnias e povos do planeta. E r a m indivíduos que haviam

palmilhado, cada qual a seu t empo, diversos caminhos , dos

mais corr iqueiros aos mais extravagantes da human ida ­

de. Haviam superado — ou ao menos se colocado em via

de superar as bar re i ras do preconcei to , da culpa, das p re ­

ferências religiosas e, pr inc ipa lmente , da necess idade de

fazer prosel i t ismo religioso ou político. Definit ivamen­

te, vivia n u m a comunidade de seres compromet idos mais

in tensamente com o b e m da human idade , e não com uma

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2 3 4

dout r ina ou filosofia em particular. Assim e ram os habi­

tan tes da A m a n d a . E havia outras Aruandas no universo,

no Invisível.

— Desculpe in te r romper suas reflexões, meu amigo

— falou Jamar, del icadamente. — Mas é que temos de par­

tir para as zonas inferiores, onde você terá contato com a

real idade de nossa escola de guardiões. Precisamos tomar

precauções, pois sairemos dos limites da cidade espiritual

e mergulharemos n u m tipo de vibração em que nos sujei­

tamos ao impacto dos pensamentos , tanto de encarnados

quanto de desencarnados, os quais podem comprometer o

equilíbrio do grupo.

Fiquei pensando em que consistiria essa chamada zona

de impacto. Seria u m a espécie de inferno? Um purgatório,

conforme ensinava a igreja? Estava longe de ter u m a ideia

mais acer tada a respeito. J amar cont inuou:

— Semíramis irá conosco, pois as guardiãs são especia­

lizadas em dissolver formas-pensamento e emoções crista­

lizadas; além disso, de tec tam habi lmente influxos energéti­

cos carregados de forte teor emocional, os quais advêm de

planos inferiores. Pai João t em outras atividades ao lado do

colegiado, na adminis t ração da cidade; assim, não poderá

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2 3 5

ir conosco nesta escala pelas regiões ínferas. Watab se en­

carregará de você par t icularmente , ampl iando o escudo de

proteção à sua volta, até que tenha condições de fazê-lo por

si próprio. Alguns outros amigos irão conosco, mas a eles

você será apresentado no caminho.

Demons t rando pressa ou até urgência para começar

nossa jornada, J amar ordenou:

— Vamos! Não podemos perder mais tempo.

— Temos de aproveitar — acentuou Semíramis, que

estava acompanhada de mais t rês guardiãs. — Neste m o ­

mento, há um intervalo regular no influxo das formas-

-pensamento. Aprovei taremos a zona neutra , en t re um fei­

xe e outro, para passarmos sem maior prejuízo ou desgaste

energético.

Assim que Jamar deu a ordem, Watab es tendeu as

mãos acima de mim, e logo depois desceu ambas len tamen­

te, formando uma espécie de círculo ou bolha em torno do

meu organismo espiritual, a qual, naquele instante, eu ain­

da não conseguia enxergar. Fiquei pensando se seria algum

ritual excêntrico, mas não. Depois percebi que havia se for­

mado em torno de mim uma espécie de película, que se li­

gava d i re tamente à cabeça de Watab por um fio finíssimo.

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2 3 6

Mais precisamente , tal fio de energia parecia entranhar-se

entre seus olhos, l igando-se à men te do guardião. Senti cer­

to conforto, que não saberia descrever minuciosamente; de

qualquer maneira, notei u m a sensação de t ranqui l idade e

uma resposta emocional interessante. Minha confiança na­

quela equipe havia aumentado de manei ra extraordinária.

Seria fruto da ação de Watab?

Ent ramos n u m veículo aéreo cuja forma diferia da de

todos que eu vira até ali. Havia, na par te da frente, aber­

turas circulares, que me pareceram apropr iadas para ca­

nhões, fato que me provocou es t ranhamento . Tive receio

de perguntar. Não sabia, ainda, que existia a rmamento de

tal por te naquela dimensão, quanto mais adaptado aos veí­

culos. Era novidade a maioria das coisas que presenciava.

Ent rementes , nos limites da Aruanda, o veículo levantou

voo e saiu com relativa facilidade. Tão logo deixamos o pe­

r ímetro da cidade, as coisas começaram a se modificar. Nu­

vens mais espessas e de tonal idades fortes apareciam de

um lado e outro do veículo. Leve t r emor lembrava os m o ­

mentos de turbulência em viagens de avião, embora fosse

um tipo especial de turbulência, que os aviões terres t res

talvez nunca exper imentassem.

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2 3 7

— Vamos ficar a tentos — ressoou a voz de Jamar. — Es­

tamos em alta velocidade e começamos a adent rar as zonas

de impacto mental e emocional .

O veículo balançou ainda mais in tensamente . Quan­

do olhei, vi bolhas de luz, u m a luz fosca, de um vermelho

escuro, vindo em nossa direção. Mas não atingiu o veículo

d i re tamente .

— Erguer os campos de proteção! — gritou Semíramis

para a guardiã que pilotava o veículo. Balançamos nova­

men te e, quando o pe ta rdo de energia quase nos atingiu,

formou-se u m a barre i ra energét ica em torno da nave, dis­

t r ibuindo o impacto que parecia fulminante. Cer ta dose

de medo ou apreensão tomou conta de mim. Medo seme­

lhante ao que ocorre com alguém dent ro de um avião que

enfrenta turbulência . Algo assim. Meu coração de desen­

carnado começou a ba ter mais in tensamente . Watab olhou

para mim t ranqui l izando-me, mas não conseguiu fazê-lo

to ta lmente . Outro pe ta rdo veio em nossa direção, mas a

condutora do veículo desviou a tempo, po rém não conse­

guiu desviar-se de raios que riscavam os céus daquela re­

gião, os quais at ingiram em cheio a nave que nos conduzia.

Balançamos feito folhas ao vento, e eu me segurei em al-

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2 3 8

gum lugar, um tipo de aresta do veículo, própr ia para isso.

Arregalei os olhos.

— À esquerda, cuidado! — falou novamente Semíramis,

sempre atenta. — Ativar os canhões de energia! — coman­

dou a guardiã, enérgica.

E eu ali, sem en tender nada de nada. Eles não me expli­

caram que ocorrer ia algo dessa natureza. Estávamos sendo

atacados? Era u m a guerra? Nem tive t empo de perguntar

— e confesso que não conseguiria mesmo. Quase molhei as

calças do meu sagrado te rno du ramen te conquis tado nas

lojas da cidade. Aliás, pensei mesmo que houvesse me mo­

lhado. Mas não. Espír i to nunca se molha. Elimina ectoplas­

ma!... Só acordei para o perigo real da situação quando vi

os canhões emergi rem à frente da nave, das aber turas que

notara mais cedo, e cuspi rem fogo ao redor. As bolhas de

luz avermelhadas explodiam antes de nos atingir. Os raios

pareciam ter sido interceptados pela energia dos canhões,

da qual nada sabia, n e m sequer a respei to de sua natureza

e seu poder de impacto. Apenas presenciava, com o cora­

ção quase saindo pela boca. Pouco a pouco as coisas foram

se acalmando. Jamar manteve-se em silêncio o t e m p o todo

duran te o ataque energético.

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— Pronto! Cruzamos tranquilos a zona neutra.. . Breve

chegaremos à base de apoio dos guardiões.

Zona neutra? Tranquilos? Será que n e n h u m deles me

viu, por acaso, quase molhando as calças do meu elegan­

te traje de desencarnado? Aquilo porventura era uma zona

neutra? Jamar olhou para mim e me senti envergonhado.

Infel izmente ele sabia o que eu pensava, ou sentia. Jure i

um dia aprender como me proteger menta lmente .

— Não se preocupe, Ângelo! Terminaram os ataques —

falou Semíramis para mim, enquanto a mulhe r na direção

do veículo ria gos tosamente das minhas reações. — Eram

somente formas-pensamento dos encarnados . Nem expe­

r imentou ainda o a taque de ent idades perversas. Aí, sim,

você vai se molhar todo! — e riu t ambém. Todos r iram. Eu

ri de raiva e nervosismo. Tive raiva de Semíramis saber o

que eu pensava. Será que raiva era pecado aqui?

— Fomos atingidos pelos impactos das formas men­

tais vindas d i re tamente de encarnados — explicou Jamar,

agora mais descontraído, embora eu não pudesse dizer se

ele estava alegre ou triste; apenas descontraído. — Estamos

nos aproximando de uma de nossas bases. Observe o ar re­

dor para não criar n e n h u m a expectativa quanto à na tureza

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deste lugar. Não es tamos mais na A m a n d a . Este é o início

das zonas inferiores, conhecidas pelos espíritas como um­

bral — arrematou.

— E olhe que, ainda assim, t rata-se de uma região t ran­

quila, se comparada aos locais onde es tamos habi tuados a

t rabalhar e enfrentar espíri tos cr iminosos e outros t ipos

que mais t a rde você conhecerá — disse Watab.

Então n e m tudo e ram flores no m u n d o dos espíritos.

Se conheci de per to o conforto e a vida social relat ivamente

t ranqui la da Amanda , agora entrava em contato com a rea­

lidade das chamadas zonas ínferas.

Ainda suava frio, após vivenciar os impactos de energia

discordante que vieram em direção ao aeróbus. De repente ,

um feixe maior daquela substância veio em nossa direção.

Algo ho r rendo e de tal proporção que o veículo balançou

mui to mais do que nas descargas anteriores. Parecia que

pegara os guardiões desprevenidos.

— Vamos sair do veículo! — gritou Jamar, em meio à

fumaça e ao estrondo, que parecia vir de dent ro do própr io

carro voador. Saímos um a um, e Watab sempre próximo de

mim, envolvendo-me n u m campo protetor.

— Vez ou outra isso acontece, embora a frequência dos

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241

ataques esteja menor a cada dia — falou Semíramis.

— Sim — ar rematou Jamar. — Precisamos ficar atentos,

afinal, es tamos n u m a zona purgatorial . Cont inuar com o

veículo será chamar a atenção das ent idades sombrias que

vivem nessa região. Vamos desl izando nos fluidos ambien­

tes ou mesmo caminhando entre os vales sombrios.

— Enviarei um sinal à nossa equipe para que venha a

nosso encont ro — falou u m a das guardiãs, dir igindo-se a

Jamar e Semíramis, que, pelo visto, e ram os líderes ent re

os guardiões. Mant ive-me em silêncio, t emendo que meus

companhei ros soubessem quanto medo eu sentia. Escorr ia

suor em minha fronte. J amar me olhou, t ransmit indo segu­

rança, po rém dessa vez ficou calado, guardando para si o

que talvez ouvira de meus pensamentos . Senti-me confor­

tado na presença dele, como sempre.

Descíamos por u m a região que parecia sombria de­

mais, se comparada com qualquer experiência que t ivera

até então. Abaixo de nós e no entorno, surgiam camadas de

nuvens de cores variadas, mas sempre de tonal idade mais

escura. Do cinza passavam ao vapor negro; as avermelha­

das se mesclavam a uma cor que talvez pudesse ser cha­

mada de roxo — talvez, pois acredito que era u m a cor des-

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242

conhecida para quem acabara de vir da ter ra dos mortais .

Olhando mais in tensamente ou concent rando minha aten­

ção, era como se visse uma espécie de auréola em torno do

planeta, ao longe, no horizonte , mas não luminosa n e m cin­

tilante. Em meio àquelas sombras e à medida que nos apro­

ximávamos, notei que o própr io globo estava envolvido

n u m tipo de escuridão, como se pairasse entre nuvens de

fuligem e vapores. Nesse momento , Semíramis adiantou-se

e posicionou-se a meu lado e de Watab, t en tando explicar o

que ocorria:

— São criações mentais ou formas-pensamento carre­

gadas de emoções fortes. A grande maioria advém de re­

giões da Terra onde a guer ra vem ceifando a vida de habi­

tantes do mundo , além de espalhar luto, miséria e dor entre

os que ficam.

— Parecem vivas as nuvens.... Sinto como se houvesse

um movimento ordenado, talvez até p rogramado ou mes­

mo inteligente.

— As formas menta is inferiores são, por si sós, um pe­

rigo para a vida dos habi tantes do mundo . Associam-se na­

tura lmente a seres d e m e n t a i s e, como ocorre ent re a dro­

ga e o usuário, viciam os espíri tos da na tureza que vivem

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2 4 3

nestas regiões. Por isso você nota cer to movimento naquilo

que classifica como nuvens, Ângelo. Na verdade, são egré-

goras, ou seja, a união de um sem-número de formas-pen-

samento. Nesse caso em especial, l idamos com pensamen­

tos e emoções gerados em meio ao sofrimento das guerras .

— Só para você ter uma ideia, meu amigo — acrescen­

tou Watab —, no presente m o m e n t o ocor rem mais de 180

conflitos a rmados espalhados por diferentes recantos do

planeta. Isso, sem contar os embates existentes do lado de

cá, na d imensão astral onde agora estamos. — Dando-me

um t empo para absorver o que falavam, pois para mim tudo

era novo, Watab logo cont inuou. — Considere, por um ins­

tante, a quant idade de pessoas que desencarnam abrupta

e v io lentamente em todas as guerras, b e m como daquelas

que pe rmanecem vivas ent re os mortais , mas cheias de dor,

ódio e rancor, devido ao hor ror que vivem nesses eventos.

Assim, pode imaginar quanto as descargas mentais de mi­

lhões de espíritos, dos dois lados da vida, povoam e conta­

minam a atmosfera psíquica do orbe.

A fala de Watab parecia abrir em minha men te u m a

nova por ta para observar a real idade do mundo , de modo

to ta lmente diferente do meu habitual . E aquilo era somen-

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te uma par te da realidade, que se descort inava diante de

meu olhar de espírito.

— Você está começando a entender, meu caro — falou

Jamar, vol tando-se para mim.

À medida que caminhávamos, com imensa dificulda­

de, a paisagem se desdobrava ao redor. Ainda não havíamos

deparado com ent idades ditas das sombras, mas somente

com energias, formas mentais dos encarnados e desencar­

nados, além das mir íades de d e m e n t a i s , que organizavam

as formas-pensamento e emoções. Mesmo alguns deles se

to rnando viciados, acabavam por evitar que as egrégoras

densas pudessem regressar e afetar com intensidade brutal

a morada dos homens .

A paisagem tornava-se mais e mais escura e densa.

Os fluidos daquele ambien te se assemelhavam, a meus

olhos, a faixas de gaze sujas ou a formas quase liquefei­

tas, como t iras gigantes de tecido a se a r r emessa rem aqui

e ali, de so rdenadamen te . Formas escuras , verdes , ve rme­

lhas; a lgumas vezes, percebi a coloração m a r r o m em meio

àquelas nuvens de emoção e p e n s a m e n t o conturbados , as

quais se originavam do ódio e da amargura excre tados pe­

las almas em sofrimento. A nosso redor, movia-se alguma

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2 4 5

substância cuja na tu reza eu n e m sequer imaginava, mas,

pelo que me expl icaram os guardiões , e ram raios m e n ­

tais, energias di recionadas , e não apenas dispersas a leato­

r iamente , que se dir igiam cont ra os causadores das guer­

ras. Movia-se gelat inosa aquela substância de dens idade

absurda, cons iderando-se que es távamos todos n u m a di­

mensão astral, fora da matér ia . Ia e v inha de um lado pa ra

outro, e por vezes t í nhamos de nos afastar, ba ixando-nos

para evitar que tais criações, que agora parec iam serpen­

tes do inferno, pudessem nos tocar o corpo espir i tual . Vi-

-me cober to de fuligem, u m a espécie de pó, subprodu to da

atmosfera daquele plano.

Foi quando avistamos os exércitos dos guardiões. Dis­

postos em forma de meia-lua, marchavam em perfeita or­

dem, com alguns espíritos destacados do conjunto, à fren­

te, carregando aquilo que me pareceram baterias elétricas

ou algo do gênero. Suas vestes rebri lhavam e, a mim, pare­

ciam espalhafatosas por demais, em cores vivíssimas, qua­

se lembrando tons fosforescentes. Talvez por isso, e ram

p lenamente visíveis, em meio a tantas e tenebrosas nuvens.

Um batalhão de polícia feminina parecia vir de dois lados

ao mesmo tempo; e ram as guardiãs. Semíramis emitiu um

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assobio n u m volume tão alto e n u m tom tão agudo que me

incomodou. Logo mais, J amar se pronunciou:

— Para lidar com as formas-pensamento e emoções

cristalizadas nesta dimensão, somente as guardiãs. Repare

como elas l idam com a situação de manei ra habilidosa.

Observei e vi como muitas das mulheres-soldado se re­

volviam no ar, por entre os fluidos do ambiente astral. Su­

biam sibilando, ao passo que os fluidos densos envolviam

cada uma, adquir indo forma de caracol, para em seguida

serem sugados em lugar ainda mais alto, desconhecido por

mim naquele momento . Imedia tamente depois, uma explo­

são, semelhante a u m a fornalha ardente, consumia as for­

mas mentais inferiores em pleno ar, enquanto as guardiãs

voltavam levitando, suavemente, com seus bastões ou armas

energéticas em punho. A região ficou mui to mais limpa e

agora era mais fácil se movimentar através dela. Com a lim­

peza do ambiente, sobressaiu a vegetação raquítica de um

chão pedregoso em alguns lugares, ressequido em outros,

com rachaduras que lembravam o solo sertanejo do Nor­

deste brasileiro, no auge da estiagem. O batalhão de guar­

diões chegou e um de seus representantes parou diante de

todos, cumpr imentando Jamar e colocando-se às ordens.

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— Estamos a postos, Jamar! As guardiãs seguirão pelos

f lancos, enquanto dividiremos nosso batalhão em dois. Um

seguirá à frente, e o outro, ficará na retaguarda. Não serão

incomodados n e m surpreendidos na caminhada restante.

— Obrigado, guardião. F iquem todos à vontade. Vamos

logo ao nosso campo de apoio.

Prosseguimos a jo rnada escoltados e, por tanto, mais

tranquilos. Pelo menos eu estava mais tranquilo, pois não

notara da par te de Jamar, Semíramis e suas amigas, t am­

pouco de Watab, qualquer insinuação de que estivessem

assustados. Mant inham-se sempre vigilantes, atentos, mas

não tensos n e m assustados. Penso que e ram habi tuados a

situações do gênero. Cont inuamos pela paisagem astral, ca­

minhando rumo ao quartel dos guardiões. Mesmo assim,

ainda se observava no en torno algum resquício daquela

substância repugnante que descrevi. Enquan to eu exami­

nava ao derredor, refletindo sobre a na tureza dos pensa­

mentos e como influenciam o mundo, Semíramis falou bai­

xinho, dir igindo-se somente a mim:

— Não podemos desanimar ante as lutas na Terra, meu

amigo. Não é preciso t emer quando presenciamos fatos

como esses ou outros com os quais você te rá contato b re -

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vemente . Nosso t rabalho consiste em implantar a política

do Cordeiro, a base do Reino no m u n d o todo, em todas as

d imensões da vida.

"Esta substância escura e repulsiva, que representa a

soma dos pensamentos de angústia de nossos amigos en­

carnados, b e m como da massa de desencarnados em afli­

ção, está na própr ia Terra. O planeta geme como quando

se está para dar à luz um novo ser. Nesse caso, t rata-se da

geração de um novo homem, uma nova humanidade . Mas

essa escuridão toda é apenas a extensão do que vai dentro

do homem. E seu lado sombrio, nada mais."

Calando-se por um breve momento , visivelmente emo­

cionada, Semíramis prosseguiu n u m tom l igeiramente dife­

rente, carregado de sent imentos que pareciam irradiar-se

de sua aura:

— Precisamos dar as mãos e desenvolver, quanto pu­

dermos, respeito, amor, amizade e compreensão das dife­

renças. Somente assim, deixando para trás as barreiras do

preconcei to e as de o rdem denominacional , religiosa e po­

lítica, é que conseguiremos renovar o m u n d o ao nosso re­

dor. A Terra espera por nós, e nossa ajuda é incrivelmente

necessária neste m u n d o que todos amamos.

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A fala de Semíramis tocou-me profundamente . Não

conseguia imaginar como a human idade , como os h o ­

mens conseguiam viver e resp i rar em meio àqueles ele­

mentos menta is e fluídicos, que parec iam se aglut inar

em to rno de sua morada . Como se mov imen ta r e intera­

gir em meio a esse caldo de fo rmas-pensamento e emo­

ções tão densas e car regadas de dor e sofrimento? A cada

momento podia c o m p r e e n d e r melhor a extensão do t ra­

balho dos guardiões do bem, daqueles que e ram c o m p r o ­

metidos com a human idade . Sem eles, sem as guardiãs e

os guardiões , não é exagero dizer que a vida na atual ida­

de seria impossível na crosta te r rena . Invisíveis aos olhos

humanos , t raba lhavam d iu tu rnam en t e pa ra m a n t e r cer ta

cota de equil íbrio no organismo sensível do planeta , que

gemia, segundo o d izer de Semíramis, sofrendo o pa r to de

uma nova geração de h o m e n s mais conscientes . Mas era

um par to; talvez este fosse o m o m e n t o das dores e cont ra­

ções, que an tecedem o par to cósmico, p ropr i amente . De

todo modo, até que o h o m e m novo nascesse, aprendesse a

viver em paz com o mundo , atingisse a ma tu r idade espir i ­

tual, mui to t raba lho esperava pelos guardiões e por todos

os espíri tos r ep resen tan tes da polít ica superior, que inspi-

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rava os seres da Aruanda e, ev iden temente , de tan tas ou­

t ras c idades espir i tuais .

Jamar deteve seu olhar sobre mim um instante, talvez

sabendo de meus pensamentos , minhas reflexões. A esta al­

tura, eu já não me importava que qualquer um dos guardiões

ou dos Imortais conhecesse meus mais secretos pensamen­

tos. Queria fazer par te daquele t ime; aliás, eu fazia par te da­

quela equipe, que trabalhava pela renovação do mundo.

Já nos aproximando do ambiente no qual se localizava

o reduto dos guardiões, J amar falou:

— O que nos cabe, Ângelo, é aprender quanto puder­

mos, absorver ao máximo o conhec imento advindo das ex­

periências da humanidade , tanto boas como más, apren­

dendo a t r ansmuta r tudo à nossa volta, do mesmo modo

como a planta absorve a luz solar e do ar ret ira elementos

que favorecem a manutenção da vida. Após o labor nos­

s o — e das miríades de exércitos do Senhor que trabalham

nas regiões inferiores — provar a existência ou determinar

quais casos são t empora r iamente insolúveis, estes serão

conduzidos a regiões mais profundas da vida astral. Trata-

-se de um lugar em alguma medida comparável à concep­

ção de inferno dos católicos. Ali, alguns espíritos aprende-

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rão, com outros professores da vida, a reavaliar a conduta e,

quem sabe, acordarão para as claridades de u m a vida com

maior qualidade. No que tange a nós, estamos a salvo não

porque t enhamos resolvido todas as questões ínt imas ou

porque talvez t enhamos enfrentado as própr ias sombras

internas. Não! Isso ocorre apenas porque t rabalhamos do

lado vencedor, e es tamos sendo capaci tados para nossa ta­

refa; então, es tamos a salvo na medida em que lutamos do

lado de nosso líder, o Cristo.

Pela pr imeira vez na vida ouvi u m a referência a Cristo

sem ser com forte conotação religiosa. Ele era apresentado

ali, nas palavras de Jamar, como o líder máximo dos exér­

citos dos céus. Era algo mui to novo para mim esse t ipo de

abordagem. Fiquei satisfeito, pois constatava, a cada passo,

que eu t ambém fazia par te desse exérci to do Cordeiro.

Astrid, uma das guardiãs que acompanhava Semíramis

mais de perto, apontou ao longe, e olhei, j un t amen te com

todos de nossa equipe. Olhamos e vimos, parado em torno

de u m a imponente muralha, numeroso grupo de seres, os

guardiões que nos esperavam em um local que mais parecia

uma pequena cidade, u m a fortaleza em meio a tanta paisa­

gem desoladora.

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Abaixo de u m a cadeia de montanhas , localizava-se a

base dos sentinelas do bem. Longa escadaria levava direta­

men te para a fortaleza, onde Jamar parecia ser a referência

para aquelas centenas de almas que se capacitavam conti­

nuamen te para o t rabalho de Cristo. A visão das montanhas

era algo impressionante . E a escadaria parecia levar não so­

men te até o local onde os guardiões se reuniam, como tam­

bém, segundo pude enxergar naquele momento , subia até

o pico do monte mais imponente ent re os demais. Um tipo

de luz impenetrável jazia no topo deste monte que se so­

bressaía. Parecia impenetrável para mim, considerando-se

minha visão ainda não acos tumada aos efeitos da dimen­

são extrafísica. Por certo, tanto Jamar quanto outros mais

de sua equipe e ram capazes de perscru tar profundamente

aquela luz que encobria o cume.

Assim que chegamos à cidade dos guardiões, base onde

se reuniam mais de 10 mil espíritos sob o comando de Ja­

mar e Semíramis, pude ver em detalhes os exércitos que

ali estavam albergados sob a bandei ra do bem. Por sobre

as escadas, mor ro acima, centenas de seres aguardavam

seu comandante , que retornava ao campo de apoio. Não

sei quantos lugares como este existiam naquelas paragens

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ou espalhados pelo plano astral, mas sei que a visão dos se­

res acima da escadaria e dos outros, em frente às muralhas ,

causou-me forte impressão. E eu chorei. Ali mesmo, ante

a imagem fantástica de tanta gente boa t rabalhando pelo

bem da humanidade , chorei de emoção. A cena era arreba­

tadora, em grau ainda mais elevado quando adentrávamos

as mura lhas da cidade.

Perto de nós, v íamos os espíri tos, u m a legião deles,

vestidos de u m a roupa tecida de f lu idos radiantes . Outra

equipe usava uniformes de cores e mat izes desconheci ­

dos por mim, e não conhecia palavras capazes de descre­

ver as nuances inusi tadas. Os guardiões a postos, no topo

das escadarias , as quais levavam m o n t a n h a acima, suge­

r iam t a m a n h a imponênc ia em seu por te , que era compa­

rável apenas à das vestes que ostentavam. Parecia haver

diversas ordens de guardiões, pois envergavam trajes dis­

t intos, ce r t amen te conforme o ag rupamento a que pe r t en­

ciam. Alguns e ram atarracados, out ro g rupo mais parecia

de pigmeus; outros, ainda, lembravam na aparência cer­

tos povos asiáticos. Estavam todos ali aguardando-nos , no

espaço dedicado ao quar te l dos guardiões da noite, como

mais t a rde vim a saber. Tratava-se de um local de estudos,

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de apr imoramento ; a escola onde era formada a maior par­

te dos espír i tos que t rabalhavam nessa falange de soldados

do bem.

Fui acolhido de manei ra generosa. Conduz i ram-me a

um aposento espaçoso, onde pude me l impar da poeira co­

m u m à d imensão onde transi távamos. Logo depois fui me

alimentar, jun to com os guardiões. Confesso que esperava

uma refeição semelhante à que encontre i na Aruanda, mas

aqui as coisas eram um tanto diferentes. Estávamos numa

zona de transição, cujas vibrações e ram mui to densas. En­

cont ramo-nos n u m amplo saguão daquela construção ím­

par. Nem tive t empo de observar direito a par te externa,

pois me sentia cansado. Ali o clima era de descontração e

riso, mas mui tas perguntas :

— Então você é o escri tor que veio da Terra recente­

mente? Trabalhará conosco? — perguntou um guardião,

sentando-se a meu lado.

— Sim, sou eu mesmo, Ângelo Inácio. E você, quem é?

— Sou um es tudante da escola dos guardiões. Não te­

nho pa tente ainda, ou seja, não terminei minha especializa­

ção. Meu nome é Ferreira. Mas você irá mesmo se integrar

à nossa escola?

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— Não sei exa tamente o que me aguarda. Por ora, fui

apenas convidado a conhecer de per to este posto avançado

dos guardiões. De resto, espero que Jamar me or iente a res­

peito de tudo.

— Você é amigo do chefe? Que bom! — falou quase aos

berros outro sentinela, que foi logo se aproximando; igual­

mente descontraído, de ixou-me mais à vontade ainda.

Logo, logo se formou em torno de mim um grupo de

espíritos, cujo compor tamen to era parecido com o dos sol­

dados da Terra. Contudo, respeitoso, sem n e n h u m excesso.

Riram, b r incaram e me deixaram mui to à vontade. Ent re

uma conversa e outra, pude notar algo peculiar. E ram bas­

tante instruídos, es tudavam com afinco e conheciam a vida

astral em profundidade. Cer tamente , com qualquer um da­

queles que se encontravam no salão de refeições eu apren­

deria muito.

Em meio ao clima de alegria, en t rou uma guardiã. Uma

voz ressoou no ambiente:

— Uma guardiã! Todos a postos!

Todos se levantaram quase ao mesmo tempo, fazendo

um gesto com o braço direito, colocando a mão sobre o pei­

to. Bem, o grupo era composto por u m a espécie de militar

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do plano astral; de fato, até seus gestos pareciam de militar,

embora sem o rigor costumeiro visto na Crosta por parte

de cadetes frente a seus comandantes .

Tão logo se levantaram, um dos guardiões cedeu o lu­

gar à mulher, que ent rou elegante, vest indo uniforme azul-

-cobalto e um tipo de capacete. Tirou o capacete e colocou-o

sobre uma das mesas, dir igindo-se aos demais. Como todos

fizeram silencio, ouviram-na facilmente.

— Sintam-se à vontade, companheiros . Sou Astrid, da

força-tarefa das guardiãs do hemisfério norte . — Todos se

sentaram, cont inuando a conversar alegremente, após a

apresentação de Astrid. Já a vira antes, no veículo junto

com Semíramis; parecia que ocupava uma posição de des­

taque no agrupamento . Assim que me viu, deixou seu lugar

e se dirigiu aonde eu estava.

— Então já se en tu rmou com nosso pessoal?

— Não tem como não se sentir à vontade por aqui. A

tu rma parece b e m animada.

Havia um grupo de mais ou menos 15 espíritos a meu

redor. Não dava para ignorar a energia feminina emanada

de Astrid; por isso, alguns olhares, bem humanos , por sinal,

vol taram-se para ela de maneira especial.

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— Rapazes!... — falou Astrid, alto e b o m som, sorr indo

em seguida.

— Desculpe, senhora... — respondeu um dos espíritos,

quase gaguejando de vergonha.

Astrid riu gostosamente, en tendendo a si tuação e dei­

xando a rapaziada descontraída. Em seguida falou comigo,

deixando que a t u r m a ouvisse c laramente o que dizia:

— Bem, são humanos , Ângelo, como todos aqui. E h o ­

mens, t a m b é m — olhou r indo para um deles. — Bem, quase

todos, não é?

Não entendi naquele momen to a brincadeira; somen­

te mais ta rde consegui in terpre tar a insinuação de Astrid,

pois en t re os guardiões havia espíritos que viveram, quan­

do encarnados, como homossexuais . E ali havia muitos

deles. Porém, o comentár io da guardiã denotava razoável

int imidade com esses espíritos, não havendo n e n h u m a co­

notação depreciativa.

Os rapazes a nosso lado se abraçavam, r iam e conver­

savam. Um deles, que se apresentou com o nome de Kel-

sey, de procedência n i t idamente inglesa, cedeu lugar para

a guardiã. Enquanto Astrid conversava comigo, abraçados

como velhos amigos, começaram a cantarolar u m a canção.

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Brincavam, implicavam uns com os outros, faziam grace­

jos, mas tudo como se fossem amigos de longa data, como

rea lmente eram — vim a saber em seguida. A guardiã, sen­

t indo-se à vontade a meu lado, disse n u m tom mais baixo,

deixando a música dos guardiões ao fundo, mesmo que eles

estivessem tão próximos de nós:

— Estão aqui há um bom tempo, meu amigo. Nes­

te posto de especialização, todos es tudam intensamente .

Nestes momentos de folga, quando se r eúnem para refei­

ção e descanso, se mos t ram como crianças. São necessá­

rios momen tos assim, de descanso e descontração, senão

n inguém aguenta. O programa de es tudo dos guardiões é

intenso. Dedicam-se pelo menos 10 anos seguidos a estu­

dos e lementares , antes de serem admit idos definitivamente

como guardiões. Por isso, Jamar permi te estes momentos .

Os grupos se revezam: enquanto estes estão aqui, os outros

t re inam, es tudam ou a tuam em campo, mon tando guarda

em algum recanto obscuro do astral.

A música dos rapazes parecia estar cada vez mais inte­

ressante, pois não somente o grupo ao nosso redor estava

cantando, como t a m b é m um número cada vez maior pare­

cia se deixar envolver com a canção. Era algo que inspirava

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saudades, que falava da vida na Terra e da falta que sent iam

de seus lares, po rém n u m tom nada triste, embora inspiras­

se um sent imento de nostalgia.

— Vê que sen tem saudade das famílias te r renas e dos

antigos lares?

— Puxa vida, Astrid! Nunca imaginei que os espíri tos

pudessem se compor ta r de manei ra tão h u m a n a assim...

Astrid riu, o lhando para a turma, que, abraçada, ba­

lançava-se, mexendo uns com os outros, divert indo-se na

companhia alheia, n u m a franca expressão de carinho.

— Formam u m a família espiritual. En t re eles, encon­

t ram o sossego das emoções. Muitos deles, Ângelo, deixa­

ram o corpo físico duran te batalhas no seu país de origem

ou longe dos familiares queridos, pois haviam sido envia­

dos para guerras ou missões em nome da pátria. Desper ta­

ram do lado de cá da vida cheios de saudades do lar. Foram

aconchegados por outros guardiões e lhes foi oferecida a

opor tunidade de trabalhar, es tudar e lutar por u m a causa

maior, por um m u n d o sem fronteiras, por um ideal univer­

sal. Assim apor tam aqui dezenas de espíritos, e J amar os

acolhe com sua equipe. Semíramis os adota como pupilos,

enquanto ap rendem sobre questões relevantes para o tra-

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balho que desempenharão em algum m o m e n t o da jornada.

— Mas você falou antes que es tudam duran te 10 anos

consecutivos até serem admit idos como guardiões? Não é

mui to tempo? Isso deve desencorajar mui ta gente.

— Aqui não, Ângelo. Esse t empo é o mínimo necessário

para en t ra rem em contato com o conhec imento básico, es­

sencial, e t ambém tes tarem em campo o que aprenderam.

Afinal de contas, especializam-se em assuntos mui to de­

licados e complexos; precisam de t empo para aprofundar

seus estudos.

Concedendo-me um instante para pensar, enquanto

ouvíamos novas canções dos cadetes a nosso redor, Astrid

cont inuou:

— Afinal, que são 10 anos diante da eternidade? Muitos

passam até 100 anos do lado de cá da vida sem reencarnar e,

conforme a especialização de alguns, até bem mais tempo.

— Como assim? Demoram tanto a voltar? Não existe

um limite máximo para esses espíritos f icarem aqui?

— Nada é absoluto, amigo. Com o tempo, verá que tudo

depende de você mesmo, da dedicação, das responsabili­

dades assumidas e assim por diante. Por exemplo: exami­

nemos o caso daqueles espíritos que manipulam ectoplas-

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ma dire tamente , seja jun to aos encarnados , seja associados

a inteligências sombrias, as quais usam esse combustível

quase material para levar a cabo seus projetos. Uma vez

que l idam cot id ianamente com efeitos mais materiais ou fí­

sicos, tais espíritos demoram mais a reencarnar. Isso se dá

porque o contato estreito com fluidos de na tureza material

ou semimaterial , como o ectoplasma, lhes proporc iona re­

lativa sensação de material idade, na comparação com ou­

tros desencarnados . Lidar com ectoplasma, do modo como

me refiro, é como se fosse u m a reencarnação em menor es­

paço de tempo, uma minir reencarnação.

— Você fala em ectoplasma assim, como se eu fosse um

entendido do assunto!

— Ah! Me desculpe, Ângelo. Esqueci que você ainda

não começou os estudos e não teve, na Terra, u m a forma­

ção que lhe t ransmit isse conhecimento na área.

Assim que Astrid falou essas palavras, um guardião

de olhos claros, alto e corpulento, in t rometeu-se em nossa

conversa, de manei ra até respeitosa, mas assim mesmo in­

t rometendo-se , e falou baixinho, em meu ouvido:

— Prepare-se , camarada. Você ficará mui to t empo co­

nosco es tudando antes de começar a trabalhar. Dez anos é

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um t empo considerável, mesmo aqui em nossa dimensão —

olhando de soslaio para a guardiã, afastou-se lentamente,

talvez esperando uma repreensão que não veio.

Naquele momento , outras guardiãs pene t ra ram o am­

biente, e a música parou de vez. Todos os rapazes olharam

para as mulheres , sempre respeitosos, logo esquecendo As-

trid e eu. Elas en t ra ram em formação militar e em seguida

se d ispersaram e se sentaram à mesa jun to deles. Nada da­

queles comentár ios bobos ou piadinhas sem graça que se

ouvem na Crosta, en t re os homens , quando um grupo de

mulheres adent ra um ambiente p redominan temen te mas­

culino. Riam, conversavam como antes, mas conservavam

certa discrição na presença das guardiãs.

Em seguida, veio a refeição. Como já disse, foi decep­

cionante para mim, que esperava algo igual ou bem próxi­

mo do que usufruíamos na cidade dos espíritos, a Amanda .

Serviram-se sucos e outras bebidas semelhantes àquelas

conhecidas na Terra. Porém, ao tomá-las, notei que t inham

conteúdo a l tamente revitalizante, pois, logo após o primei­

ro copo de suco, já me sentia refeito e p lenamente satisfei­

to. Foi distr ibuída uma espécie de comida com aparência

mui to próxima a pão, além de algumas guarnições — pou-

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cas, aliás. Com o suco já me senti deveras saciado, mas as­

sim mesmo exper imente i o novo alimento, que em nada

lembrava a fartura da Aruanda. Felizmente, nada de sopi-

nhas ou caldos. E me senti quase empan tu r rado ao ingerir

a refeição oferecida ali.

Um dos guardiões aproximou-se e falou baixo, mas

quase alegre demais:

— Acostume-se, amigo. Aqui as coisas são mui to mais

racionadas do que lá em cima — apontou para o alto. E eu

compreendi que falava da cidade espiritual. — Mas temos

algo de maior qual idade nutrit iva, pois nestas regiões ne ­

cessi tamos de um al imento mui to mais calórico, vamos as­

sim dizer. Lidamos com energias mais densas. No campo

de batalha, então, as coisas mudam. Levamos conosco ou­

tro tipo, mais concentrado, de al imento fortificante. Logo

você saberá, se ficar conosco.

Após pequena pausa no comentár io inesperado, o

guardião de nome Yurik, decer to advindo da antiga União

Soviética, ar rematou, quase n u m convite direto:

— E esperamos que fique ent re nós! Temos mui ta

curiosidade e vontade de aprender por aqui e, t ambém,

queremos ter notícias da velha Terra.

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Neste ponto da conversa, Watab ent rou no ambiente,

e logo todos se colocaram de pé. O guardião fez um gesto

com a mão, e todos se sen ta ram novamente , descontrain-

do-se e cont inuando a conversa.

— Está na hora, Ângelo! Jamar pede que se apresen­

te para conhecer de per to nosso esquema de segurança

— aproximou-se de mim e de Astrid, colocando a mão es­

querda sobre meu ombro. — Aqui parece que você já se en-

turmou. Ao que tudo indica, os rapazes f icaram contentes

com sua chegada. Só se ouve falar de você em vários depar­

tamentos . Isso ocorre quando a pessoa que chega t raz certa

bagagem de conhecimento , pois para eles significa a possi­

bil idade de se aprofundarem nos estudos.

Olhando à volta, como a conferir alguma coisa, Watab

convidou-nos:

— Vamos, então, amigos? — dirigindo-se a Astrid, con­

vidou-a t ambém. — Se desejar ir, será boa companhia para

nós. Venha, Semíramis t ambém está à espera. Vamos deixar

os rapazes e as meninas à vontade. Afinal, eles t êm só mais

alguns minutos , antes de se apresentarem ao trabalho.

Saímos, r umo ao pátio onde Jamar nos aguardava. So­

men te então pude notar a grandeza das instalações, a im-

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ponência que t ransmit iam. Os guardiões, um numeroso

cont ingente deles, dividiam-se em tipos hum anos e espe­

cialidades, até onde puder deduzir. Dispunham-se , confor­

me a procedência cultural, em pelotões de mais ou menos

500 soldados. Agruparam-se no hall do colégio dos guar­

diões ou do prédio central .

O hall apresentava formato circular com um ligeiro

a longamento n u m dos lados, quase se confundindo com

uma forma oval. Era rea lmente enorme, pois, mesmo con-

tando-se as pessoas aos milhares, tanto homens quanto

mulheres , havia espaço de sobra. Os guardiões marchavam,

fazendo revoluções diante de nós. Era algo belíssimo de se

ver, pois o faziam de tal manei ra que não havia n e n h u m a

quebra ou in te r rupção no r i tmo. A polícia feminina, se as­

sim posso chamar as guardiãs, esteve irrepreensível duran­

te a apresentação. Os rapazes t a m b é m se esmeraram, como

se estivessem imbuídos de um ideal mais profundo, algo

que hoje em dia mui to ra ramente se vê na Terra, en t re os

encarnados.

Existia uma t r ibuna à frente. Estávamos ali Jamar, Wa-

tab, Semíramis, Astrid e eu. Havia outros representantes

dos guardiões, t ambém, a quem mais ta rde eu seria apre-

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sentado; e ram líderes de falanges de espíritos. De repente,

algum som foi ouvido, como o soar de u m a t rombeta , e os

diversos grupos de guardiões, cada qual uniformizado de

manei ra diferente, posicionaram-se em perfeita o rdem à

frente da t r ibuna onde nos encontrávamos.

— Nem sempre é assim, Ângelo. Convoquei os guar­

diões especialmente para apresentar a você nossos con­

t ingentes. Isso será de grande valia para seu aprendizado e

para o desempenho das tarefas que lhe compet i rão. Afinal

— falou Jamar sério, como um general frente a seus subor­

dinados —, um escri tor do Além precisa de muitos elemen­

tos para poder se repor tar aos futuros leitores.

Sinceramente, não entendi direito ou comple tamente o

alcance das palavras de Jamar. Mas fiquei tão impressiona­

do com o que via, que n e m me arrisquei a perguntar nada,

por medo de perder t rechos das apresentações.

Um espíri to foi chamado à t r ibuna, uma espécie de ar­

tista ou cantor. Ele começou um hino, n u m r i tmo tão en­

volvente que me fez chorar, pela segunda vez; vi t ambém

algumas lágrimas discretas nos olhos dos guardiões a meu

redor. Todos os demais acompanharam o hino, e somente

então uma bandei ra foi has teada no pátio, enquanto todos

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a fitavam, com cer ta reverência. Era u m a flâmula de fundo

branco, que trazia a imagem do planeta Terra em três di­

mensões, ao que me pareceu, de tão real se mostrava. Em

torno do planeta, várias estrelas de um amarelo suave, qua­

se dourado.

— O símbolo da Terra unificada — falou Semíramis

per to de mim —, da Terra pacificada.

Os guardiões pareciam hipnot izados, tal era o ardor, o

fervor com que cantavam o hino. Não conseguiria r ep ro ­

duzir a letra aqui nestas páginas, pois ainda agora, quando

me lembro do evento, emociono-me profundamente . Era

algo verdade i ramente belo. Este grupo de seres vivendo

fora da matéria, unidos em favor do b e m da humanidade ,

e a bandei ra hasteada, que não era de n e n h u m a pátria, de

n e n h u m a nação em particular, mas do planeta todo, da hu­

manidade, enfim — isso era emocionante de se ver. Após o

hino, cada equipe passou a se apresentar peran te seu líder

ou chefe de falange, como me explicaria Semíramis, mais

tarde. Uma falange, neste posto de guardiões, era composta

de 500 espíritos. Uma legião seria algo em torno de 12 mil

ent idades. Portanto, ali havia u m a legião de guardiões com

diversas falanges a serviço do Cordeiro. Enquan to se apre-

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268

sentavam aos seus comandantes , Watab falava baixo, para

que somente eu escutasse:

— Aqui valorizamos mui to a música e a uti l izamos

mui tas vezes em nossas investidas nas regiões das trevas e

do abismo. Além de tocar os corações mais empedernidos ,

a música, pr inc ipa lmente em forma de hinos e marchas,

movimenta recursos fluídicos tais que nos facilitam o tra­

balho, que não raro é penoso, em regiões ainda b e m mais

densas do que esta onde estamos.

Durante o silêncio que logo se fez nas falanges de guar­

diões, notei que os grupos se moviam lentamente , em per­

feita o rdem e sincronia. Alguns ficaram de pé, mais ao fun­

do. Outros, no meio, sentaram-se em pequenos bancos, que

eu nem percebera como foram postos ali. Pelo visto, ainda

teria inúmeras surpresas nesta d imensão da vida; não po­

deria me incomodar com isso. A frente, outro cont ingente

assentou-se em lugar mais baixo, de modo que cada gru­

po estava n u m pa tamar diferente, não a t rapa lhando o de

trás, que poder ia ver tão b e m quanto o da frente. Um e ou­

tro guardião e guardiã eram chamados à frente, a fim de en­

toar u m a canção de sua respectiva equipe. À medida que

cantavam, u m a a u m a as falanges exibiram u m a coreografia

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própria, à frente dos demais, que ilustrava característ icas

do t rabalho sob sua alçada. Assim, fiquei sabendo que havia

ar te ali, t ambém. Mesmo nas regiões mais inferiores, a ar te

era ensinada, es t imulada e valorizada, de manei ra a a tuar

como ins t rumento para enfrentar os desafios apresentados

pelas ent idades sombrias.

Enquan to se davam as apresentações artísticas das di­

versas equipes de guardiões, J amar falou comigo n u m vo­

lume em que todos da t r ibuna ouviam, po rém sem incomo­

dar ninguém:

— Todos os guardiões, no início de nossas atividades

no planeta, fomos preparados com mui ta pressa, a fim de

en t ra rmos logo na peleja do bem, contra a propagação do

mal. Aceleradamente , as pr imeiras equipes de guardiões

foram convocadas e, ao longo dos séculos, gradat ivamen­

te, formou-se a es t ru tura maior, a tuante hoje nas diversas

dimensões da vida terrena. Nos dias atuais, nosso colegia­

do dispõe de recursos quase ilimitados, uma vez que esta­

mos t rabalhando com maior sintonia jun to aos governado­

res espiri tuais do orbe. Emanando do própr io Cristo e de

Miguel, o representante maior da just iça divina no mundo,

as v i r tudes e os poderes são transferidos e infundidos nos

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270

diversos depar tamentos da segurança planetária. Este aqui

é apenas um dos diversos agrupamentos responsáveis pela

segurança energética da Terra. À proporção que os espíri­

tos se integram, es tudam e se dedicam ao trabalho, sua ca­

pacidade magnét ica t a m b é m aumenta , de manei ra que re­

p resen tam considerável obstáculo aos representantes das

sombras. Nesse aspecto, somos de tal forma estimulados

por nossos superiores, por Miguel em particular, que nossa

capacidade de visão comumen te é ampliada, quando esta­

mos a serviço nas zonas mais inferiores, na subcrosta.

"Devido à necessidade de intervenção nessas regiões e

de fazer contato com as inteligências mais sombrias e cri­

minosas, nossa capacidade de ver e ouvir é muitas vezes

maior do que a dos or ientadores evolutivos das pessoas, ou

seja, dos mentores habituais. Há regiões no abismo mais

profundo aonde n e m mesmo certos mentores t êm autori­

zação para ir, assim como mui tos n e m de têm t re inamento

para lidar com os agentes do mal ou as energias poderosas

presentes em seus redutos .

"Sendo assim, talvez você consiga en tender — falava

Jamar, solene — a necessidade de nos dedicarmos por tanto

t empo aos estudos em regiões como esta. Temos de desen-

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271

volver nossa capacidade de atuar nas esferas mais densas,

abaixo de nós, tanto quanto de elevarmos nossa frequência

a regiões mais altas da espiri tualidade, a fim de nos abaste­

cermos com as inspirações que nos or ientam as tarefas."

Ao ouvir a exposição de Jamar sobre a na tu reza das

atividades realizadas pela equipe, enquanto observava a

apresentação dos guardiões, impressionei-me com a gran­

deza do t rabalho desses espíritos e da es t ru tura a seu servi­

ço, ou seja, o poder que representavam. Após ligeira pausa

para que eu assimilasse o que explicava, o guardião da noi­

te cont inuou:

— Trabalhamos profundamente ligados às es t ruturas

de poder superiores, aos Imortais . Deles vêm as delibera­

ções, as inspirações, e vez ou out ra recebemos a visita de

um dos Imortais , que nos b r indam com sua presença nas

regiões de transição. Servimos em sintonia com o coman­

do supremo dos guardiões, que mais t a rde lhe apresentarei .

Aqueles que se ocupam de tarefas em regiões mais inferio­

res ou densas, em lugares comumen te ignorados ou mes­

mo vedados a espíritos comuns , recebem intuição e orien­

tação dos espíri tos mais avançados, que assumem encargos

em dimensões mais etéreas, menos materiais . Jamais estão

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272

sozinhos os que a tuam na frente de combate ou defesa. Há

uma es t ru tura espiri tual invejável, coordenada pelo pró­

prio Cordeiro de Deus e por seu emissário maior, Miguel, o

príncipe dos exércitos celestiais. 1 4

— Então, são todos guerreiros a serviço de Cristo? —

perguntei .

— Isso mesmo, guerreiros do bem. E assim seremos até

que a Terra esteja comple tamente renovada pelas diretri­

zes apresentadas pela política divina.

Jamar silenciou-se por um tempo, duran te o qual eu

assistia, cada vez mais interessado, às apresentações. Neste

momento , as guardiãs en t ra ram em cena e, elevando-se ao

alto, apresentavam interessante coreografia no espaço logo

acima de nós. Semíramis parecia orgulhosa de sua equi­

pe. E era rea lmente para orgulhar-se, pois n e n h u m a outra

equipe se igualou à das guardiãs, especialistas singulares da

equipe geral. Em seguida, Jamar me apresentou algumas

das falanges e sua especialidade. Muitas delas estavam re­

presentadas na Amanda , pois na univers idade local davam

1 4 Cf. Dn 12:1; Ap 12:7. Cf. P I N H E I R O . Pelo espírito Ângelo Inácio. A marca da besta.

Contagem: Casa dos Espíritos, 2010. p. 605-614.

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instruções e formavam espíritos, a fim de que, mais tarde,

integrassem a grande hoste do b e m formada pelos servido­

res de Cristo nas regiões inferiores.

— Primeiro é necessário que você conheça a inspiração

ou concepção da es t ru tura montada no planeta — re tomou

ele — para, depois, en tender nossa própr ia especialização

como guardiões.

"Ninguém ignora que a maioria dos habi tantes da Ter­

ra é composta por pessoas cujo passado religioso t em gran­

de peso em sua formação espiri tual e cultural , a tal ponto

que a maior par te é de religiosos ou ex-religiosos. Desig­

namos esses espíritos como agentes da misericórdia divina

quando se colocam a serviço da human idade ou de Cristo,

ainda que conservem cada qual sua cul tura espiritual ou

sua manei ra de ver e pensar segundo antigas convicções.

De manei ra geral, são seres que se des tacam por apresenta­

rem característ ica ínt ima do t ipo emotivo. Desenvolveram

em si a capacidade de auxiliar, embora n e m sempre auxi­

liar signifique amar. Descem às regiões umbral inas e exer­

ci tam aquilo que a religião ensinou, no que concerne ao

amor ao próximo. Fundados nessa tradição, cr iaram cida­

des, colônias e es t ru turas de governo do lado de cá da vida,

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2 7 4

no intuito de acolher, conduzi r ou orientar, exortar ou dou­

t r inar espíri tos necessitados, convalescentes ou em sofri­

mento, que buscam t razer das zonas de purgação. São mui­

tas as equipes de socorro que se r e ú n e m sob a a lcunha de

agentes da misericórdia. Mesmo ent re os encarnados, são

maioria absoluta. E notável como progride na Terra, atual­

mente , o n ú m e r o de iniciativas de o rdem assistencial, de

promoção h u m a n a e de socorro aos necessitados, nos mais

diversos recantos do globo. E assim precisa ser, pois ainda

há mui to sofrimento nos dois lados da vida. Não obstante,

gera lmente tais servidores se encon t ram ligados à forma de

pensar e de ver a vida segundo o movimento religioso que

fez par te de sua história pessoal."

Jamar falava de tal manei ra que eu percebia imagens

menta is a i lustrar o que me dizia. Será que ele estava real­

men te projetando em minha men te tudo aquilo? Era tele­

patia esse fenômeno intr igante e especial? Sem me respon­

der as indagações, o guardião da noite prosseguiu:

— Contudo, Ângelo, os guardiões fazem par te de ou­

tro t ime, embora sempre sob a orientação de Cristo. Somos

o que se pode caracter izar como agentes da justiça divina.

Encarnados tan to quanto desencarnados , não nos detemos

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2 7 5

para ouvir o pran to dos oprimidos n e m tampouco socorrer

os aflitos. Nossa atuação visa recompor a o rdem e a disci­

plina, evitando que o caos se estabeleça no mundo, nas vá­

rias dimensões . Nosso t rabalho não se antagoniza com as

tarefas dos agentes da misericórdia; pelo contrário, lhe é

complementar . Enquan to um grupo se especializa em de­

terminado aspecto, como auxílio e amparo, ajudas huma­

nitárias e erguimento dos caídos, a outro grupo compete

evitar o caos. Também somos conhecidos, em algumas di­

mensões, como agentes de vibrações. Seja lá qual for o nome

pelo qual nos designam, nossa tarefa principal é fazer opo­

sição ao mal e estabelecer as bases da política divina, de

maneira que possamos auxiliar a Cristo na adminis t ração

e na renovação planetárias. Essa é a forma mais resumida

possível que encontre i para lhe apresentar, meu amigo, am­

bas as faces do governo oculto do mundo .

"Por um lado, os agentes da misericórdia se caracte­

rizam pela natural propensão a ajudar sempre, quase sem

olhar a quem auxiliam, e por imprimir nas atividades certa

conotação moral e religiosa. Por out ro lado, a maioria des­

ses espíritos en t endem a própr ia sombra como algo inde­

sejável. Cos tumeiramente , referem-se a seu passado cul-

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poso e à necessidade de se reformarem; em seu d i scursa

sal ientam quão longe estão de atingir os objetivos supre­

mos do amor e das vir tudes. De modo geral, com raríssi­

mas exceções, são espíri tos que t razem um sent imento de

culpa profundamente arraigado, jus tamente devido à forte

influência da cul tura religiosa na formação espiritual. Por

isso, não raro, nota-se em sua fala a ênfase na necessidade

de t rabalhar mui to e sempre, de não descansar jamais ou

quase nunca, de es tudar o Evangelho o t empo todo, restrin­

gindo a ele as conversas e explanações. Não gostam de to­

car em assuntos considerados polêmicos ou controversos e.

com frequência, são bas tante políticos, pois desejam agra­

dar a todos, em nome da paz, do amor e da união fraternal.

"Evidentemente , isso não é um mal em si, mas difere

largamente da característ ica espiri tual dos agentes da jus­

tiça divina, os quais adoram ent rar n u m a briga, desde que

ela seja útil e resolva a situação. Não são nada políticos,

quando muito se esforçam para ser diplomáticos, visando

a de te rminada estratégia. Definem-se aber tamente a fa­

vor da ética, mas de modo algum são moralistas a ponto de

classificar as coisas mais sérias da vida segundo um sistema

simplista de b e m e mal, certo e errado, v i r tude e pecado.

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Os agentes da justiça não t emem enfrentar o mal, mesmo

que este esteja disfarçado de bem, e en t ram em discus­

são acalorada para solucionar os distúrbios de emoção, de

compor tamento ou de intrusão do mal. Embora se de ixem

sensibilizar com a dor do outro, sua tarefa consiste mui to

mais em enfrentar os opositores do b e m no campo de bata­

lha do que em enxugar lágrimas. Tipicamente , não são de

falar manso, baixinho ou de forma discreta; incomodam e

polemizam quando há alguma discussão ou manifestação

de ideias. Tendem a ser mais seguros de si, pois precisam

defender o que é ético, sobre o qual t êm plena convicção.

Nós, os guardiões, como já disse, somos agentes da justiça

divina, como pode notar.

"Dito isso, meu amigo, vamos à apresentação de alguns

poucos grupos ent re os guardiões. Não haveria t empo de

lhe apresentar todos; eis os que mais se des tacam em nossa

corporação."

Fiquei boquiaber to diante da explanação de Jamar.

Não imaginava tão grande abrangência do método de tra­

balho do lado de cá da vida. Antes que ele cont inuasse ou

começasse a me apresentar as diversas faces dos guardiões,

ousei in ter rompê- lo e perguntar :

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— E como classificar os espíri tos que vivem na Aman­

da? São agentes da justiça ou da misericórdia?

J amar olhou para mim, como que intr igado por eu

não te r percebido isso ainda. Mesmo assim, respondeu-me

sem hesitar:

— Claro que a A m a n d a é u m a região espiri tual onde

se r eúnem agentes da justiça divina. Se quiser conhecer os

amigos nossos que t raba lham como agentes da misericór­

dia, deverá se dirigir a Nosso Lar, Vitória Régia e outras ci­

dades do Além.

Sem me dar t empo para réplica, in t roduziu os guar­

diões. Apontando cada guarnição de soldados da justiça di­

vina, explicou:

— Aqueles vestidos de verde-oliva são os guardiões da

noite, espíritos especializados no t rato com magos negros,

os mais cruéis obsessores conhecidos no submundo — Ja­

mar levantou a mão, e logo u m a guarnição de mais ou me­

nos 100 soldados do astral adiantou-se em direção à tr ibu­

na, t o rnando possível observá-los de t idamente .

O traje que usavam impunha respeito. A calça masculi­

na lembrava aquela usada pelo exército alemão na Segunda

Guerra, u m a espécie de bombacha . No entanto, a jaqueta

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diferia bas tante desse estilo; t inha t raçado mais moder­

no, design arrojado para a t radição militar. Mostrava gola

de padre, algumas poucas insígnias no ombro, cuja função

parecia ser distinguir a especial idade ou de te rminar a clas­

se de guardiões a que esses espíritos per tenciam. As mu­

lheres ou espíritos femininos que c o m p u n h a m esse pelo­

tão de especialistas desfilavam com um figurino não menos

impressionante. Todas t raz iam cabelos curtos, u m a espécie

de quepe adornando a cabeça, calças compridas e t a m b é m

usavam insígnias, po rém do ombro direito. Todos, homens

e mulheres , por tavam algum tipo de arma, que somente

mais t a rde vim a saber t ratar-se de equipamento de segu­

rança que utilizava radiação. Opor tunamente , Jamar ex­

pl icou-me que lhe davam o nome de arma de pulsos, cuja

finalidade é enfrentar os magos e cujo efeito é fazer desmo­

ronar seus campos de invisibilidade.

— Os guardiões da noite são hábeis na utilização de

magnet ismo e e le t romagnet ismo dispersos na atmosfera

astral. Conseguem manipular com ext rema eficiência esses

f lu idos , i ndependen temen te de empregarem ou não equi­

pamento para tal finalidade. Podem usar as mãos, como se

fossem antenas, ou ins t rumentos guiados pelo pensamen-

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to — habi lmente t re inado duran te pelo menos 40 anos, an­

tes de enfrentarem o campo de batalha; assim, aglutinam

raios de grande poder. Por meio dessa técnica, são capazes

de formar campos de força e de contenção em torno de es­

píritos e ambientes . São eles, t ambém, os responsáveis di­

retos pelo colégio dos guardiões, na A m a n d a .

Fiquei impressionado já com a descrição resumida que

Jamar fazia da habilidade daqueles espíritos. Não imaginava

que fosse tão minuciosa a capacitação de seres do plano ex-

trafísico. Se era assim, é porque existia demanda, ou seja, de­

certo havia um sistema de poder nas regiões inferiores que

precisava ser enfrentado da maneira mais eficaz possível.

Antes que meus pensamentos pudessem voar nas re­

flexões produzidas pelo que eu presenciava, o guardião

cont inuou a apresentação. Levantou a mão e deu novo si­

nal. Aproximaram-se agora os espíritos de formação cultu­

ral n i t idamente indiana. Vestiam calças brancas e jaquetas

muit íss imo diferentes das anteriores. Traziam inscrita no

peito, assim como n u m a f lâmula branca que carregavam,

u m a cruz azul, símbolo da ligação com de te rminada hierar­

quia espiritual. Turbantes azuis encimavam a cabeça; eram

no tadamente sérios, e t ransmi t iam cer ta segurança e fascí-

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2 8 1

nio com sua presença. Desfilaram diante da t r ibuna como

os outros, apresentando-se de manei ra irrepreensível, com

movimentos quase robóticos de tão alinhados. Obedeciam

r igorosamente ao r i tmo da marcha; até mesmo a expressão

facial parecia sincronizada.

— Esta é a Legião de Maria — falou Jamar, emper t igan-

do-se e r espondendo ao sinal apresentado por aqueles espí­

ritos. Era algo como um cumpr imento militar, embora mui­

to diferente do que se vê na Crosta. — Eles são coordenados

por Zura, um dos nossos mais competen tes guardiões, que

agora está em tarefa jun to aos encarnados . A maior espe­

cialidade desses espíritos é lidar com quem cometeu suicí­

dio ou habi ta vales de dor e sofrimento. A eles coube rees­

t ru turar os vales existentes no plano astral. Organizaram a

reurbanização do vale dos suicidas, em particular. Median­

te a colaboração de espíritos de outras áreas, t ransforma­

ram a região em um posto de socorro avançado, com hos­

pitais, escolas e toda u m a es t ru tura de apoio àqueles seres,

cuja carga tóxica exige depuração, além da necessária ree­

ducação espiritual, menta l e emocional .

"Os legionários de Maria sabem como n inguém resga­

tar almas mant idas em cativeiro pelos magos negros, em

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prisões localizadas nas zonas abissais ou na região astral

cor respondente às águas oceânicas mais profundas. Agem

sempre em grupos de mais de 50 espíritos e t rabalham sob

a inspiração de Maria de Nazaré. Também detêm grande

habil idade na defesa direta, à frente do campo de batalha.

Através de suas lanças, proje tam poderosa radiação, emiti­

da por e lementos radioativos ret i rados do interior do pla­

neta e ainda desconhecidos dos encarnados . Tais radiações

são capazes de desestruturar , em instantes, as construções

mentais dos magos e cientistas da oposição, além de causar

o colapso dos campos de força que estes m a n t ê m através de

equipamentos eletrônicos e tecnologia científica."

Logo depois, outro grupo de espíritos se apresentou,

vestindo roupas semelhantes às que usavam alguns povos

asiáticos no início do pr imeiro milênio. Pareciam feitas de

peles de animais, embora o traço rústico não se fizesse pre­

sente na maneira de desfilarem. Era um pelotão composto

por mais de 200 espíritos, e o r i tmo como marchavam à nos­

sa frente lembrava mui to o estilo e a disciplina observados

nas forças armadas chinesas e japonesas, nos dias atuais.

— Estes são os mongóis — explicou Jamar. — Seu co­

mandan te é conhecido pelo nome de Gengis Khan, em ho-

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menagem ao líder mongol. Como ins t rumentos de com­

bate nas regiões inferiores, usam formas extrafísicas de

animais, tais como cavalos, os quais cavalgam n u m a veloci­

dade alucinante, desl izando sobre os fluidos mais pesados

com notável habil idade. Cos tumam surpreender legiões de

espíritos maus com seu a rmamento favorito, o arco e fle­

cha, t endo seu arco o formato típico dos asiáticos, bastan­

te curvo Na verdade, t rata-se de um equipamento de alta

tecnologia forjado com esse aspecto. Quando atiradas du­

rante o cavalgar nas regiões mais densas, as flechas abrem

caminho, rasgando e que imando os fluidos ambientes . Ao

atingir o alvo, como, por exemplo, as construções extrafísi­

cas de ent idades sombrias, provocam sensível estrago. Le­

vam a substância astralina da qual tais const ruções é feita a

explodir, esfacelando muralhas , casas, castelos ou qualquer

edificação das ent idades do mal.

"A falange dos mongóis é mui to t emida nas regiões ín-

feras, nos lugares onde se r e ú n e m antigos políticos e seus

exércitos de seres sombrios. Tem agilidade e capacida­

de defensiva e ofensiva comparáveis somente às dos nos­

sos amigos índios peles-vermelhas, que você conheceu na

Aruanda, Ângelo. Os mongóis são ciosos de seu dever e es-

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pecialistas nas cul turas da Ásia, conhecendo mais que ou­

tros grupos de guardiões não apenas a cultura, mas o ter­

ri tório astral daquele cont inente . Também são nossos

aliados nos planos abissais que cor respondem a determina­

da região do Oceano Pacífico, b e m como nas profundezas

do Mar Cáspio, locais onde se reúne numeroso grupo de

magos que se g raduaram nos colégios iniciáticos da Ásia.

Geralmente, en t r am em ação apenas quando a ha rmonia e

a disciplina estão ameaçadas, embora t raba lhem em estrei­

ta associação com os guardiões da noite em suas investidas.

Como disse, const i tuem um dos grupos mais temidos e res­

peitados, no tadamente naquelas regiões do submundo. O

símbolo, que pode ver desenhado na bandei ra dessa falan­

ge, consiste n u m lobo que parece vivo, apesar de ser apenas

um desenho."

Não havia como não se impressionar com aquele pe­

lotão de guardiões. Era rea lmente es tonteante imaginar o

que era capaz de fazer. Assim que t e rmina ram de passar à

nossa frente, out ra equipe da mesma categoria veio do alto,

com seus integrantes montados em cavalos negros, crinas

b e m visíveis. F izeram u m a revolução nos f luidos acima de

nós, para logo em seguida baixarem, aterr issando diante de

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todos com seu a rmamento de guerra contra as hostes som­

brias à mostra. Eu estava eletr izado com o que via. Porém,

não se encer rou aí a apresentação dos guardiões. Logo após

veio outro grupo, desfilando com grande orgulho, discipli­

na e altivez. E ram os legionários romanos, pelotão formado

por soldados do pr imeiro e segundo séculos, além de espí­

ritos cristãos daquele t empo de perseguição, que se ofere­

ceram para defender a política do Cordeiro.

— São or ien tados por Sérvulo Túlio, chefe desta le­

gião. Estão a postos por toda a Aruanda e são mui to res­

pei tados nas regiões umbra l inas mais próximas à Crosta.

Especial izaram-se em lidar com espír i tos vândalos e al­

guns componen te s energét icos mais densos advindos de

regiões inferiores, emit idos sobre tudo por desencarna­

dos — tanto por aqueles em sofrimento quan to por ban­

dos conhecidos como quiumbas, segundo a nomenc la tu ra

de algumas cor ren tes espiri tualistas. Os romanos sabem

rebater os dardos inflamados enviados por tais espír i to e,

se preciso for, vão aber tamente , à frente dos demais guar­

diões, na luta cont ra as hostes que se opõem ao t rabalho

do b e m ou que investem cont ra as obras comuni tár ias , so­

ciais e de grupos religiosos.

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2 8 6

Talvez para não ficar cansativo demais, J amar passou

a me fornecer explicações antes mesmo de os espíritos se

apresentarem. O grupo do qual ele falou em seguida nem

mesmo estava presente no quartel , mas Jamar fazia ques­

tão de falar sobre eles.

— Há t a m b é m os puris . São antigos índios, não espíri­

tos super iores ou esclarecidos como alguns caboclos, mas

índios guerre i ros primitivos, po rém conduzidos e orienta­

dos ao b e m pela figura de antigos comandantes , caciques e

chefes de falange. En t re eles, t emos guerreiros , no verda­

deiro sent ido da palavra. Flecheiros e guerrei ros das anti­

gas t r ibos de tup inambás , guaicurus e tupis-guaranis , além

de represen tan tes de algumas nações indígenas da Amé­

rica do Norte. Os puris são, por excelência, os combaten­

tes dos obsessores. Não são mui to esclarecidos quanto a

questões de ciência ou magia, mas t raba lham como recru­

tas, soldados de campo de batalha, que saem pelo umbral ,

sob o comando dos caboclos, em cavalos brancos, invadin­

do as bases sombrias e dr ib lando as forças das trevas. São

mui to temidos por qu iumbas e hordas de obsessores, pois

de têm uma força b ru ta invejável, além de manipularem

habi lmente os f luidos mais grosseiros da natureza . Foram

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2 8 7

exclusivamente índios, selvagens, por assim dizer, em suas

úl t imas encarnações .

"Como chefes dessa falange, temos os caboclos mais

ilustrados. Estes, sim, espíritos mais instruídos, em cujo

passado espiri tual viveram diversas experiências como co­

mandantes , especialistas em ciências naturais ou, então, fo­

ram verdadeiros iniciados de t radições ainda mais remotas ,

e escolheram reencarnar ent re as nações indígenas como

orientadores evolutivos. Esses caboclos são mui to comu-

mente vistos nas ruas da Aruanda. Com certeza, em breve

saberá maiores detalhes sobre eles."

Queria mui to ver tais espíritos em ação algum dia, pois

me fascinava, em larga medida, pensar sobre a cul tura in­

dígena e ver como foram valorosos em alguns países, resis­

t indo à invasão do h o m e m branco. Indignara-me n u m e r o ­

sas vezes, quando encarnado, ao constatar como as nações

europeias de conquis tadores d iz imaram a maior par te da

população e da cul tura indígenas. Mais ainda, eles conti­

nuam t rabalhando no m u n d o oculto, mas agora em prol do

equilíbrio e da harmonia dos ambientes onde os homens da

civilização ocidental vivem e labutam. Que at i tude louvá­

vel, de t irar o chapéu...

Page 291: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

288

Enquanto refletia a respeito dessas questões, Jamar

deu um sinal e, então, veio à frente um batalhão de mais de

700 espíritos.

— Estes são apenas os chefes de falange de outro grupo,

que é o dos exus. Os que aqui se apresentam t razem nomes

com conotação cabalística, escritos e pronunciados numa

l inguagem mística, embora saibamos seus nomes particu­

lares, usados fora dos círculos de encarnados . Também são

conhecidos como guardiões de rua, pois sem eles a situação

nas cidades, nas rodovias, no ambiente humano, enfim, se­

ria insustentável, incapaz de se adminis t rar com a mínima

o rdem e disciplina.

E, como se eu hesitasse, ele rei terou.

— Sem a atuação desses espíritos, seria impossível

man te r o controle e o equilíbrio nas cidades e em tudo o

mais que envolve de per to a população humana . Os che­

fes ou mentores receberam especialização nas escolas da

A m a n d a e de algumas poucas cidades do astral superior.

"O papel mais impor tante que d e s e m p e n h a m os exus.

de modo geral, é promover a l impeza energética e mental

do ambiente dos homens , além de auxiliar na manutenção

da o rdem e da disciplina nas ruas e nos locais públicos. São

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2 8 9

os guardiões que mais se assemelham à figura dos soldados

ou dos policiais conhecidos no m u n d o físico."

Notei que se vest iam elegantemente — pelo menos to ­

dos ali, os chamados chefes de falange. Apresentavam-se

com ternos e trajes que lembravam seguranças de elite, que

se encarregam da proteção de autor idades e personal ida­

des em ambientes públicos. Ou seja, à paisana, po rém ele­

gantes, com um por te que denotava força, domínio e au­

toridade. J amar esclareceu que os espíritos mais comuns

dessa falange, à exceção evidente de seus or ientadores ou

líderes, nem sempre e ram espíritos esclarecidos, mas e ram

bem intencionados e guiados pelos guardiões que lhe são

imedia tamente superiores.

— Bem, Ângelo, aqui você teve uma descrição resumi­

da de diversas equipes de guardiões que t raba lham mais

par t icularmente ligadas a nós, aqueles que representamos

a política do Cordeiro, a que denominamos política divina.

Será convidados um representan te de cada equipe que aqui

se apresentou para um momen to mais ínt imo com você, no

qual terá opor tun idade de t irar dúvidas e se instruir mais a

respeito. Entre tanto , não temos um tempo muito dilatado

à nossa disposição, pois a A m a n d a chama por você — aliás,

Page 293: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

2 9 0

Pai João, que t em outras questões a lhe mostrar, que farão

par te de seu projeto de t rabalho futuro.

Depois de um per íodo razoável de conversa e orienta­

ções sobre o t rabalho dos guardiões, re tornei à Amanda;

mais do que nunca, t razia o espírito decidido. E agradec ida

imensamente agradecido por fazer par te dessa equipe de

agentes da just iça divina. Sentia-me mui to envolvido com

o t rabalho dos guardiões. À noite ainda teria um encontro

particular, sob a orientação do pai-velho, é claro. Aguarda­

va novas sensações na descoberta da vida espiritual. Que­

ria me preparar logo, es tudar mui to e me sentir o mais útil

possível, nem que fosse apenas dent ro de 10 anos, como os

espíritos me disseram. Mas eu queria começar já. Na ver­

dade, meus estudos já haviam se iniciado, embora naquele

momen to não soubesse disso.

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295

UANDO CHEGUEI À Amanda , minha mente fervilhava com

tantas ideias e tanto conhecimento que haviam me t rans­

mitido ao longo dos úl t imos dias. Era tal o número de coisas

novas que, s inceramente, até tentei me deitar naquela que

seria minha úl t ima noite no hotel, antes de me mudar de­

finitivamente para a zona residencial da cidade dos espíri­

tos, bem próximo à família de Laura. Insisti no propósi to de

conciliar o sono, mas não consegui me acalmar menta lmen­

te e, então, resolvi sair, sabendo que a vida social da cidade

funcionava 24 horas por dia, in in ter ruptamente . Mesmo as­

sim, fui tomado de surpresa, pois não imaginava que era tão

intensa. Ao sair do hotel encontrei novamente a amiga Con-

suela. Elegante e extravagante ao mesmo tempo, ela conse­

guia jun ta r essas duas características de maneira ímpar.

— E então, gajo? Qual foi sua impressão das atividades

dos guardiões?

— Você já sabe que estive n u m a das bases dos nossos

amigos?

— Como não? — falou abrindo seu leque de manei ra

chamativa.

— Puxa, as notícias parecem correr mui to mais velozes

por aqui. Mal cheguei e você já sabe de tudo?

Page 299: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

2 9 6

— Inclusive, sei que esta será sua úl t ima noite no hotel.

Amanhã já estará em sua própr ia habitação — olhou de sos­

laio para mim, como me t en tando a dar maiores detalhes.

— É, você sabe mesmo!

— Brincadeira, gajo! É que andei conversando sobre

você com o velho.

— Pai João?

— E quem mais? Parece que ele e o guardião estão deci­

didos a tutelar você por uns tempos .

Ri in t imamente , de satisfação.

— Mas não fique assim tão eufórico com a situação.

Essa gente t em cada mania que você n e m imagina. Traba­

lho, t rabalho, trabalho... descobrirá logo.

— O pior é que já descobri... Nem me de ram tempo

para umas férias do lado de cá. Estou adorando. Mas e você,

Consuela, onde mora aqui na cidade?

— Nem imagina, gajo! Sofro mui to só de pensar nisso.

E lá sou por acaso um espíri to superior? Vivo na humildade

e na pobreza absoluta e voluntária. Me contento com uma

casinha lááá nos ar redores da cidade. Discretíssima e pobre

como só!...

— Discreta? Sua casa?

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2 9 7

Suspirando fundo, Consuela cont inuou, como se fosse

a mais sofredora de todos os espíritos do umbral :

— É u m a casinha assim! — gesticulou com as mãos, for­

mando um quadrado no ar. — Retinha, comunzinha , tão

pobre, meu Deus, que nem sei ainda por que os super io­

res não a ten ta ram para tan ta humi ldade que vai dent ro de

mim. Deviam se inspirar em minha vida de absoluta pobre­

za e simplicidade.

— Quero ver onde você mora, Consuela. Será que você

me convidaria algum dia destes?

— Ah! Gajo! Não sei se com seu b o m gosto suportar ia

ver t amanha singeleza... — falou com tanta ênfase e teatra­

lidade que me senti rea lmente tocado por suas palavras. —

Mas se é assim que quer, podemos ir lá tomar um chá ou

comer umas tapas acompanhadas de alguma bebida de sua

preferência.

Após o breve diálogo, dir igimo-nos à zona residencial

onde Consuela morava. Assim que adent ramos essa par te

da cidade, realmente, como ela havia me falado, era pos­

sível notar nos ar redores a diferença em relação ao local

onde residia Laura. Eram casas belíssimas, embora a de

Laura t a m b é m fosse bela. No entanto, aquelas ali pareciam

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298

de outro porte , mais suntuoso. Procurava com os olhos a.

casinha da pobre Consuela, ent re as demais que apareciam

à medida que avançávamos.

É que, na Amanda , o espíri to escolhia viver n u m local

de conformidade com seus gostos; cada um idealizava o lar

de acordo com a inspiração, o momento , os sent imentos c

as emoções que lhe caracter izassem. E não havia nenhum

juízo de valor, caso alguém optasse por viver n u m aparta­

men to na região central da cidade, n u m bangalô singelo

nas montanhas , nem tampouco n u m a mansão. Em suma,

cada cidadão buscava viver em local mais compatível com

sua ident idade energética, e isso sem n e n h u m a culpa ou

sent imento de inferioridade, ou mesmo de super ior idade

Todos t inham igual acesso a tudo.

Esperei por alguns instantes ver a casa de Consuela, o

local onde ela escolhera viver com maior simplicidade. Ela

trazia es tampada na face uma expressão que inspirava ta­

manha comiseração que concluí que, no caso dela, lhe fora

imposto viver n u m casebre próximo àquelas elegantes ca­

sas do bairro residencial, a fim de aprender alguma lição.

— Puxa, como são bonitas as residências aqui — co­

mentei . — E aquela casa ali, então?

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2 9 9

Apontei para uma construção que sobressaía, de con­

tornos majestosos. Devia ter sido projetada por algum ar­

quiteto renomado. As l inhas sofisticadas da edificação,

muitos vidros ou coisa parecida, rodeada por enorme jar­

dim, com trepadeiras que recaíam sobre as laterais da man­

são. Algo que impressionava os sentidos. Uma beleza clás­

sica. Assustei-me quando Consuela se dirigiu jus tamente

para aquele local. Acompanhei-a com meus pensamentos

em revoada. Será que ela conhecia os moradores? Me apre­

sentaria aos donos?

— Vamos, gajo! Mas não se assuste, está tudo una con-

fusión; não t enho t empo de a r rumar nada. Sinto até vergo­

nha de lhe receber em minha humi lde morada...

Meu Deus! Era o lar de Consuela!

— Ai, como sofro aqui. Fico envergonhada com meus

vizinhos. Ainda b e m que eles são almas boas e en tendem

minha escolha de viver n u m lugar tão singelo — falava qua­

se chorando e n u m tom tão dramát ico que parecia real­

mente estar padecendo horrores .

— Mas Consuela... — ameacei falar a lguma coisa en­

quanto ent rávamos na belíssima casa onde morava. Ela me

interrompeu:

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300

— Nem me fale, Ângelo! Nem precisa falar! Bem que

eu merecia algo mais elaborado, mas devo ser um exemplo

de humi ldade para os que sofrem. Até tentei ser diferente

— respirava fundo, enquan to eu ficava abismado com tan­

to requinte , embora sem opulência, mas assim mesmo com

t r emenda beleza à volta. — Mas sabe como são as coisas

por aqui, não? A gente t em de se esforçar ao máximo para

ser referência peran te aqueles que sofrem e os mais sim­

ples de coração.

A mansão — era esta a palavra corre ta para descrever

a morada "humi lde" de Consuela — era uma obra de arte

em si mesma. Tudo à volta, ainda que o ambiente interno

revelasse um quê minimalista, era de ex t remo bom gos ta

Quadros impress ionantes nas paredes lembravam obras

de Salvador Dali, Pablo Picasso e El Greco, além de outros

desse naipe. Consuela notou minha admiração pelas obras

de ar te e logo, logo se explicou:

— São cópias muuui to mal feitas. Não t enho méritos

para ter um original destes autores...

Impress ionei -me com a beleza das obras. Não havia

como não admirar algo tão majestoso. Inspirava qualquer

espíri to e arrebatava a visão. Aliás, pouco a pouco percebi

Page 304: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

3 0 1

que toda a casa se assemelhava a u m a galeria de arte. Em­

bora no formato de u m a residência, cada po rmenor ali fora

disposto de modo a conceber u m a galeria com a exposi­

ção de alguns dos mais renomados artistas espanhóis . Ha­

via obras atr ibuídas a Diego Velasquez, Francisco de Goya,

Joan Miró e outros mais, ta lentosamente distr ibuídas pe­

las paredes. Em meio àquilo tudo, móveis que remontavam

a épocas diferentes, conforme os cômodos da residência e

galeria. Não tive dúvidas: Consuela, com toda aquela "hu­

mildade", era alguém ligado à arte, talvez curadora de al­

gum dos museus da cidade. Mas ali ela era toda humildade,

simples como ninguém. E pensar que, por um momento ,

acreditei que ela rea lmente estivesse falando de si com sin­

ceridade, sobre a renúncia em viver n u m lugar paupér r imo

por escolha própria .

Ainda quando eu formulava esse pensamento , quase

me der re tendo n u m a gargalhada mental , ouvi o suspiro e

o barulho do leque de Consuela atrás de mim. Na verda­

de, fiquei tão absorto pela beleza do lugar e pelas obras es­

plêndidas que n e m me dei conta do t empo que t ranscorre­

ra desde que entrei naquele ambiente tão simples...

— Veja como sofro aqui, Ângelo! Eu mesma escolhi vi-

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302

ver neste casebre cheio de objetos antigos. Nada de super­

ficialidade; acho que tudo deve refletir a beleza interior, a

simplicidade de alma que vai dent ro de nós — e falando as­

sim, enquanto me virava para ela, ainda não acredi tando no

que via, na sua casinha tão singela, cont inuou. — Sei que

você me entende . Afinal, meu amigo, nós, pessoas como

eu e você e alguns poucos espíritos no mundo , sabemos o

que significa viver n u m local to ta lmente diferente da nossa

natureza; algo assim — enxugou uma lágrima invisível no

canto do olho, respi rando fundo e em profundo lamento —.

incompatível com nossos mais secretos gostos e elevação.

Mas tudo bem. Já falei para o velho que aceito de bom gra­

do a tarefa de que fui incumbida.

Ela exagerava car ica tura lmente na expressão de sua

humi ldade infinita. Meu Deus!... Como adorava a cada hora

viver na A m a n d a . Havia lugar para tudo e todos, sem co­

branças de sant idade — aliás, era o que mais faltava ali, em

minha amiga sofredora. Virando-se rapidamente , com le­

que em punho, o sofrimento parece ter cedido com extre­

ma rapidez a outro estado de espírito.

— Vamos tomar u m a bebida, Ângelo. Acho que você

merece, depois de tanto penar.

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303

E me t rouxe minha bebida favorita, meu sagrado e aro­

mático vinho madeira.

— Claro que não é nada comparável aos nossos vinhos

de Espanha, mas...

— Eu aceito este sofrimento, Consuela! Eu aceito! — fa­

lei, irônico.

E ela, b r indando charmosamente , deixou de lado as

br incadeiras e exageros ao levantar a taça do mais puro

cristal e sorvermos, juntos , o delicioso vinho com o sabor

mais acentuado que já provei em toda minha vida de encar­

nado ou desencarnado.

— Como disse o velho, meu amigo, aqui é o m u n d o ori­

ginal e tudo aqui é mui to original mesmo; o da Terra é que é

a cópia. E lá, pelo que sei, para aproximar-se ao máximo do

que temos no m u n d o primitivo e original, as bebidas p re ­

cisam ficar em barr is de carvalho, passar por um proces­

so especial, envelhecer e otras pequenas cosas. E tudo isso

somente para se aproximar do sabor original, que é este

acá — ela falava n u m a mis tura de espanhol e por tuguês ou

um por tunhol perfeito. Rimo-nos gostosamente. E eu apre­

ciando o ext remo b o m gosto do lugar, até que alguém se

anunciou. Era o velho, como ela chamava Pai João.

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304

Ele vinha acompanhado de um sujeito estranho. Aliás,

pela pr imeira vez vi alguém que não me pareceu habitante

do lugar. Era alto, esguio, cabelos longos e um olhar curio­

so, aliás, mui to mais curioso do que o meu.

— Este é um amigo encarnado, Ângelo! Está aqui des­

dobrado, fora do corpo, e o t rouxe para que possa conhecé-

-lo — informou Pai João, após cumpr imen ta r Consuela.

Fomos apresentados, e o sujeito à minha frente pare­

ceu encantado como eu pelo estilo de Consuela, impresso

em cada detalhe da decoração.

— Puxa! — exclamou. — Isto aqui é pu ra Espanha...

— E como não, chico? — r espondeu Consuela, tomando

o rapaz pelo braço e most rando- lhe cada cômodo.

Enquan to isso, eu e Pai João conversávamos.

— Não imaginava que Consuela vivesse n u m lugar des­

tes, l indo assim.

— Era o sonho dela quando chegou aqui na Aruanda.

meu filho. Queria fazer uma galeria de ar te e viver e respi­

rar em meio à arte. Ela queria respirar beleza e viver assim,

recebendo visitantes que quisessem aulas de arte espanho­

la. Então, nada melhor do que construir u m a residência que

servisse t a m b é m como galeria. Consuela é um dos espíritos

Page 308: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

305

responsáveis, na universidade, pelas aulas de arte. Ela co­

nhece mui to b e m a história da arte, não somente espanho­

la, como t a m b é m de outros países da Europa. E mest ra no

assunto, e não se assuste se algum dia a vir por aí desfilando

ao lado de Pablo Picasso, que vez ou out ra vem nos visitar

em nossa comunidade. Consuela conhece mui to b e m a co­

lônia dos artistas e t em relacionamento estreito com eles.

Mas prefere, como diz, esconder-se por t rás de seu man to

espanhol da mais profunda humildade.

— É, dá para notar a simplicidade dessa pobre alma —

brinquei , r indo gostosamente.

— Mas você notou o rapaz aí? Nosso amigo encarnado?

Queria mui to que você o conhecesse melhor. Seria de mui­

ta valia para seu futuro trabalho.

— E quem é ele? Alguém em especial?

— Alguém que servirá a você de ins t rumento e compa­

nheiro de trabalho, ao mesmo tempo.

— Não entendi .

— Não precisa se apressar, meu filho. Mas como ele é

o ins t rumento que t rabalhará jun to a você, compete- lhe

aproximar-se dele, fazer amizade, estabelecer laços e mol­

dá-lo, como se molda u m a escultura, já que estamos falan-

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306

do de obras de arte. Pense nele sobretudo como um amigo e

aproxime-se o máximo que puder. A par t i r de hoje, ele virá

aqui, a nossa cidade, pelo menos três vezes por semana.

Nós o t ra remos através do desdobramento , enquanto es­

tiver dormindo. Frequentará nossa univers idade e, assim,

você terá maior t empo para aproximar-se devidamente e

fazer do méd ium um ins t rumento mais afinado. Mais tarde,

Zar thú, nosso amigo do colegiado, lhe t rará mais detalhes a

respeito dele.

— Ele é médium? Sabe que está aqui na Aruanda? Tem

consciência disso?

— No momento , não! Tivemos o cuidado de interferir

em sua consciência, de manei ra que as lembranças f icarão

impressas, po rém inacessíveis quando estiver em vigília.

Somente no m o m e n t o opor tuno ele se recordará do encon­

tro com você. Por ora, é o que basta a ele. Mas vocês preci­

sam aproximar-se um do outro.

— Então ele é médium... Que es t ranho é o sujeito.

— Bem, é o que t emos no momento . Você verá o porqué

assim que estiver mais próximo dele. Terá mais ou menos

10 anos para prepará- lo e achegar-se o máximo possível

de nosso amigo. Depois... bem, o t rabalho intenso, os desa-

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307

fios naturais do intercâmbio. Coisas assim, como diria Con­

suela — ao falar nela, acercou-se de nós novamente , ainda

de braços dados ao médium. Mas ele parecia estar absorto

com tudo ao redor. E quem não estaria?

— E o rapaz aí, Pai João? Ele sabe do t rabalho que o

aguarda?

— Sabe sim, meu filho. Ele conviveu com os guardiões

no per íodo ent re vidas e sabe mui to b e m o que o aguarda.

Só que a mente dele foi p reparada antes de reencarnar para

que as lembranças aflorem no momen to certo. Mas não lhe

resta dúvida quanto à tarefa que tem a desempenhar .

— Quer dizer que neste exato m o m e n t o ele não t em

consciência do t rabalho que nos aguarda?

— E por aí! — respondeu Pai João, sorr indo para o ra­

paz. — Ele é um velho amigo. Cuide b e m de fazer uma ami­

zade sólida e não se assuste com o jeito dele. Com o tempo,

irá se acostumar.

— Como assim? Acostumar?

— Você descobrirá com o t empo — Pai João riu, dis­

cretamente. — No mais, você será apresentado em breve

à equipe encarnada com quem trabalhará. Mas vamos por

partes; cada coisa t em sua hora.

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3 0 8

Levantei-me e entabulei u m a conversa com o rapaz,

enquanto Consuela, com todo aquele sofrimento íntimo,

confabulava com Pai João, talvez sobre alguma matér ia que

ministrava na universidade local. Vez ou outra, ela nos fi­

tava com olhar enigmático. De repente , o rapaz começou a

dissolver-se à minha frente, e fiquei intr igado com o fenó­

meno. Pensei logo no jeito do espíri to Joseph Gleber, sair

assim, sumindo feito fantasma...

— Ele está com fome, Ângelo. Por isso o corpo físico o

puxou de volta. Neste momento , um dos guardiões o acom­

panha até a base física. Não se preocupe. Esta é u m a das

coisas com que você terá de se acostumar.

— Com esse t ipo de sumiço? Essa dissolução total,

completa, irreversível?

— Não, chico! — in t rometeu Consuela, r indo e abrin­

do seu leque de manei ra estrondoso. — Com a fome dele! É

algo sobre-humano.. .

E Pai João, j un t amen te com Consuela, riu u m a risada

que dava gosto de ouvir, embora eu não entendesse nada

naquele momento . Mas descobrir ia brevemente o que sig­

nificava tudo isso que envolvia o rapaz médium. Havia ou­

tras surpresas também... muitas outras . Afinal, ser iam 10

Page 312: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

3 0 9

anos de preparo! E estavam apenas no inicio.

Depois de algum tempo conosco, n u m a alegre conver­

sa, Pai João convidou-me:

— Bem, Ângelo, está na hora de irmos. Temos ainda al­

guns amigos para lhe apresentar. Acho que terá uma noite

mui to intensa por aqui.

Despedimo-nos de Consuela, que abanava seu leque

suspirando de tan ta humildade, enquanto enxugava uma

lágrima sent ida e invisível, e saímos Pai João e eu rumo às

choupanas ali perto, localizadas n u m dos bosques nos arre­

dores da cidade.

Eu via beleza em tudo, mas as choupanas e chalés eram

algo especial. A harmonia arqui tetônica fazia jus ao nome

de construção ecológica. Muitas árvores no entorno, jar­

dins be lamente f loridos, crianças por todo lado... Mesmo

sendo noite na Aruanda, eu as via alegres, festivas e sem­

pre acompanhadas de algum adolescente, que talvez fosse

a forma como os educadores se most rassem a elas, acompa-

nhando-as de perto. Imagino que assim se sent issem mais

à vontade.

Havia dezenas e dezenas de espíritos nos aguardando

n u m local a cur ta distância de uma choupana em part icu-

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310

lar. Parecia-me um lugar de reunião ao ar livre, u m a espé­

cie de praça ou u m a clareira em meio a matas e bosques e

à es tonteante paisagem natural ao redor. Seria alguma re­

união planejada, t a m b é m com a finalidade de me orientar,

ou somente u m a recepção, por par te de espíritos que não

conhecera ainda?

Grande era a movimentação no ambiente. Muitos espí­

ritos estavam ali reunidos, naquilo que parecia ser alguma

comemoração. E havia algo a comemorar em toda a cidade,

pelo jeito. Pelas conversas, deduzi que era apenas o início

de u m a série de eventos em toda a comunidade, a fim de

homenagear alguém ou comemorar algo. Era o começo das

festividades.

Es t ranhamente para mim, ao menos pelo que observei

à pr imeira vista, naquele recanto havia somente espíritos

com aparência de índios brasileiros, sul-americanos e nor­

te-americanos, além daqueles que se mostravam como ne­

gros de várias etnias. Os peles-vermelhas vestiam-se com

trajes que lembravam, em alguma medida, as vest imentas

típicas de suas nações indígenas, ao passo que os sul-ame­

ricanos t raziam mantas de cor branca, c reme ou amarela

jogadas sobre o corpo. N e n h u m deles usava os célebres pe-

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3 1 1

nachos ou qualquer apetrecho comumente observado nos

indígenas dos diversos povos ali representados . Tão despo­

jado quanto as vestes era o por te da maior par te daqueles

seres, embora se notasse em alguns um tipo espiritual gar­

boso, que sugeria represen ta rem uma hierarquia mais alta

no sistema de vida daquela comunidade.

Os negros chamavam a a tenção pela aparência . As

mulheres , na maioria, vest iam trajes t ípicos africanos, co­

loridíssimos, com os cabelos est i l izados e ado rnando be­

lamente a cabeça. Outras vest iam-se conforme o cos tume

observado nas baianas t ípicas de Salvador e do Pelourinho,

embora sem excesso de balangandãs . Era u m a ves t imenta

l inda de se ver, de u m a alvura inacreditável , ou en tão em

tons pastel , espec ia lmente amarelo suave. Os bordados e

rendas e ram de u m a r iqueza e um nível de de ta lhes en­

cantador. Sempre , como tudo o que via na Aruanda , a be­

leza e a elegância dominavam, tan to na aparência quanto

na expressão.

Alguns dos espíritos apresentavam-se ni t idamente com

aparência de mais idade que os demais, po rém sem que o

peso dos anos lhes roubasse vitalidade, como ocorre com

a maior par te das pessoas idosas na Crosta. Empert igados,

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3 1 2

esguios em sua maioria, denotavam cer to charme, vestin­

do ternos e costumes claros, muitos em tecidos semelhan­

tes ao linho, o que lhes conferia uma aparência tropical ou

descontraída. Outros t inham roupas mais simples, porém

de ext remo bom gosto. Não vi n e n h u m a extravagância por

ali, como de resto.

Fiquei por alguns momentos observando ao redor, en­

quanto limpava meus preciosos óculos de mor to metido a

vivo ent re os imortais . Pai João deixou-me à vontade por

alguns instantes, pois decer to sabia de minha curiosidade e

de como eu examinaria cada detalhe. Ele, o pai-velho, sem­

pre mui to elegante em sua forma de se apresentar, vestia

te rno branco e t inha cabelos e barba bem aparados, como

se fosse para u m a festa impor tante . E, afinal, era uma festa

mui to impor tante , como logo pude descobrir.

Quando Pai João voltou-se para mim, sorr idente e ani­

mado, vinha jun tamen te com uma senhora que aparenta­

va ter en t re 60 e 65 anos de idade, embora com o viço de

uma jovem mulher. Óculos grossos, como se precisasse de­

les para enxergar alguma coisa. Sabia que ela não precisa­

va; no entanto, talvez fosse um cos tume t razido da últ ima

experiência física. Adornada be lamente com roupas que

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313

lembravam as baianas prat icantes do candomblé , todas de

renda, encimava-lhe a cabeça um lenço o rnamentado e dis­

posto de manei ra um tanto exótica. Teria algum significado

aquele adereço? Alguns colares de contas coloridas enfeita­

vam-lhe o pescoço, mas de manei ra discreta. A composição

toda inspirava bom gosto e harmonia .

— Meu Deus!... — pronunciei , n u m misto de admiração

e surpresa. — Será quem estou pensando? Será mesmo?

Pai João sorriu novamente , em silêncio, enquanto a

mulher veio me abraçar n u m abraço longo, demorado,

cheio de vida, calor e energia.

— Esta é nossa quer ida Maria Escolástica, a nossa Me­

nininha — disse Pai João, apresentando-nos formalmente.

Como admirava essa personal idade e como queria encon­

trar-me com ela!

— Salve, meu filho! — falou-me Menininha, com um

sorriso cativante, i r radiando uma luz suave em torno de si,

como se fora i luminada pelas estrelas.

Enquanto ela colocava o braço em torno do meu, fo­

mos em direção aos outros representantes daquelas cul­

turas tão incompreendidas pela maioria dos encarnados,

mas que ocupavam um lugar de des taque ent re os f i lhos da

Page 317: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

314

Aruanda. Achegaram-se a nós alguns espíritos de cultura

indígena, os quais me foram apresentados por Pai João:

— Estes são nossos amigos Pena Verde, Pena Branca,

Tupinambá, Nuvem Vermelha, Cobra Coral e Nuvem Cin­

zenta. São nossos amigos de longa data e represen tam di­

versas hierarquias espiri tuais dent ro das nossas tarefas na

Aruanda. Podem ser chamados de caboclos ou, simples­

mente , por seus nomes de procedência indígena. Fique à

vontade, Ângelo.

Notei que alguns t raz iam o semblante mui to sério.

Outros sorr i ram, embora a firmeza dos t raços e a aparên­

cia que inspirava cer ta altivez, p rópr ia daquela gente. Ao

sorrir, most ravam u m a dent ição invejável. N e n h u m deles

usava a p lumagem cos tumei ramente observada em foto­

grafias e gravuras dos livros. Fui convidado a ficar ao lado

de Menin inha e Nuvem Vermelha, a lém de dois outros es­

pír i tos de procedência africana, que me de ixaram muito

à vontade.

Parecia que algum evento estava prestes a começar.

Todos si lenciaram-se e alguns se posicionaram a nosso

lado, porém de forma a ver mui to além, de onde parecia vir

uma nuvem se movimentando, aproximando-se da plateia

Page 318: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

3 1 5

de espíritos. Não demorei mui to a perceber que a nuvem

era, na verdade, um grupo de espíritos, que vinha deslizan­

do nos f luidos da A m a n d a rumo ao local onde estávamos.

Cavalgavam velozes cavalos, que pareciam galopar em ple­

no ar, até se colocarem à nossa frente, como um exército de

índios — estes sim, com o figurino completo, conforme os

costumes de cada tribo. Julgo que houvesse pelo menos 5

mil espíritos em completo silêncio, dispostos como tropas

numa formação perfeita, como se fossem guerreiros pron­

tos para o combate.

A nossa frente, enquanto eu permanecia ao lado da

mais bela das oxuns, o Chefe Tupinambá tomou a iniciativa

e leu algum tipo de manuscri to, talvez uma reedição da an­

tiga carta de um velho cacique, dirigida aos homens bran­

cos. Desta vez, porém, eu a ouvia redirecionada, como um

apelo aos espíritos de índios, caboclos e peles-vermelhas,

concitando-os a t rabalhar e ajudar os irmãos de humanida­

de. A cada palavra eu me emocionava, em cada letra podia

ver, viva, a memór ia de um povo. E foram estas as palavras

pronunciadas pela boca de um cacique, de um espírito cuja

vida se voltara para a ajuda àqueles que um dia massacra­

ram seu povo e suas esperanças:

Page 319: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

316

— Em nome do Grande Espíri to do universo, queremos

hoje assegurar a amizade, a benevolência e a generosidade

de todos os caboclos com os homens da Terra. Embora sai­

bamos que o h o m e m no m u n d o dificilmente imagina o que

nos inspira a amizade, es taremos a seu lado no momento

de desper tamento da consciência espiritual. Se algum dia

as armas dos homens t i raram nossa te r ra e nos t i raram nos­

sa gente, t emos a compreensão de que foi uma transição

necessária para estabelecer uma nova etapa na vida dos po­

vos do mundo . Nossa palavra e nossa dedicação são como

as estrelas; não empal idecem nunca.

"Aqui na Aruanda, na t e r ra dos caboclos e de todas

as gentes, sabemos a g randeza e o valor dos nossos céus.

do ar que respi ramos e do calor que aquece nossas almas.

Aqui sabemos que não somos donos da pu reza do ar ou do

br i lho da água. Somos apenas espíri tos que os preservam,

e que um dia ut i l izamos tais recursos em favor de nos­

so povo. Toda a Terra e seus habi tan tes são e serão sem­

pre sagrados para nossa gente, do mesmo modo como a

Aruanda represen ta para nós o céu onde os guerre i ros se

r e ú n e m em n o m e do sagrado, em nome da vida e do Gran­

de Espíri to.

Page 320: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

3 1 7

"Cada folha reluzente, todas as praias de areia, cada

véu de neblina nas florestas escuras, cada clareira e todos

os insetos a zumbir são sagrados em nossa Amanda , tanto

quanto na Terra que amamos, segundo as sagradas t radi­

ções e crenças dos nossos ancestrais.

"Sabemos que o h o m e m no m u n d o não compreende

nosso modo de t rabalhar em seu favor; os religiosos muitas

vezes nos rejeitam, pois desconhecem o valor de nosso co­

nhec imento ou não acredi tam que possamos ter sabedoria.

Mas não importa! Eles, nossos i rmãos brancos e de muitas

raças, ainda ignoram que um tor rão de te r ra é igual ao ou­

tro. Que somos todos iguais perante o Espíri to do universo.

"A ter ra é nossa irmã, é nossa amiga e, depois de culti­

vá-la com sabedoria, o h o m e m branco a deixará renovada

para sua descendência, e virá ele t ambém algum dia para a

Amanda , onde verá o fruto de seus dias e o valor da na ture­

za à sua volta. É preciso preparar os homens para a planta­

ção da sabedoria, n u m a Terra que será a herança para seus

filhos, e o respeito a ela rever terá em seu própr io benefício.

"A lembrança dos antepassados e a ciência dos espíri­

tos garant i rá aos nossos irmãos na Terra o direito de vive­

rem n u m m u n d o renovado, quando então, talvez, possamos

Page 321: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

3 1 8

re tornar em novos corpos, um dia, para ajudar nossos ir­

mãos a semearem um novo tempo, u m a nova humanidade.

As cidades dos homens , cheias de vida e de conhecimen­

to, precisam de nós, a fim de lhes garant i rmos uma vida de

paz — não a paz enganadora do silêncio, mas a paz que será

construída com mui to trabalho, suor e nossa contribuição.

"Não se pode encont ra r paz sem a tomada de consciên­

cia da vida espiritual, sem saber que somos todos espíritos,

filhos do Grande Espírito, e assim respei tar nossa divina

herança.

"Aqui na A m a n d a é o lugar onde a tua lmente podemos

ouvir o desabrochar da folhagem na primavera, o zunir das

asas dos insetos ou o baru lho da revoada dos pássaros; é

onde podemos conviver de manei ra pacificada com o lobo.

o leopardo e a serpente . E aqui é o lugar a par t i r do qual

inspi raremos o ser h u m a n o para que possa aguçar seus ou­

vidos e voltar a ouvir voz do Grande Espíri to den t ro de si

mesmo; quem sabe reaprender a ouvir a voz dos rouxinóis

e da cotovia?

"Sei que nossos espíri tos preferem ouvir o suave sus­

surro do vento sobre as águas e sentir o cheiro da brisa, pu­

rificada pela chuva ao meio-dia, com o aroma do pinho, da

Page 322: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

3 1 9

alfazema ou do limão. Mas vol taremos à Terra para levar es­

sas aragens benfazejas aos sentidos de nossos i rmãos bran­

cos; é nossa tarefa protegê-los de seus inimigos ínt imos ou

espirituais. Quem sabe auxil iemos os homens no m u n d o a

voltar seus sentidos para as paisagens internas, até que um

dia possam vir para a Amanda , ou para outras ter ras no es­

paço, r eaprendendo a viver como filhos do Grande Pai.

"Sabemos que o homem, nosso irmão, carece de valo­

res que somente daqui, da Aruanda, podemos lhe inspirar.

Assim como o ar é precioso para o h o m e m vermelho, por­

que todos os seres vivos respi ram o mesmo ar — os animais,

as árvores e as flores —, os homens nossos i rmãos tam­

b é m são preciosos para nossos espíritos, e os abraçaremos

como irmãos quando aqui apor tarem, depois de atravessar

o grande rio da vida.

"Somos considerados por muitos como selvagens, que

não compreendem como as descobertas e invenções do novo

mundo dos brancos possam ser mais valiosas que a natureza,

da qual nós, peles-vermelhas, usufruímos um dia na medida

certa, o suficiente para sustentar nossa própria existência.

"Que é o h o m e m sem nossa ajuda? Poderá sobreviver

a si mesmo? Aos seus inimigos ínt imos e espirituais? O h o -

Page 323: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

3 2 0

m e m precisa de nós, os caboclos, os índios, os considerados

selvagens, e de todos os que habi tam a Amanda , de todas

as gentes e todos os povos, para que não mor ra de solidão

espiritual. Não podemos permi t i r que o que aconteceu e

acontece com os animais na Terra aconteça t ambém com

os homens , seus filhos e seus espíritos. De alguma manei­

ra, t emos de ajudar nossos irmãos a sobreviver, sem afetar

a vida em torno de si. Sobreviver com o máximo de quali­

dade que lhe for possível. Para isso, nossas falanges de espí­

ritos da na tureza precisam l impar o ambiente psíquico da

morada humana , senão dent ro em breve será difícil para o

h o m e m branco respirar no própr io m u n d o onde vive. Lem­

bremos, meus i rmãos índios, peles-vermelhas, puris , cabo­

clos de todas as nações indígenas, que tudo quanto fere a

Terra, fere t ambém os filhos da Terra, os próprios homens,

nossos irmãos.

"Se vossos filhos viram um dia os própr ios pais hu­

milhados na derrota, ante a exterminação de nossa raça, é

hora de nossos guerreiros, que sucumbiram sob o peso da

vergonha ao florescer a civilização dos brancos, recupera­

rem sua glória, ajudando o mesmo h o m e m a man te r viva a

chama da fé no Grande Espíri to e man te r a Terra em paz.

Page 324: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

3 2 1

Um dia re tornaremos ao m u n d o em novas roupagens e p re ­

cisamos auxiliar agora, a f im de encont ra rmos um m u n d o

pelo menos um pouco melhor do que aquele que deixamos.

"De u m a coisa sabemos com absoluta certeza, cabo­

clos: o h o m e m branco vem do mesmo Grande Espíri to que

nós todos viemos, e um dia, com certeza, ele irá descobrir

que nosso Deus é o mesmo Deus. Julga, talvez, que pode

ser dono Dele, da mesma manei ra como desejou possuir a

própr ia te r ra e outros seus irmãos. Então, avante, guerrei­

ros de Aruanda! Vamos em direção à morada dos homens ,

vamos com nossos arcos e flechas, nosso grito de guerra,

l impando o caminho espiri tual de todos os povos, de todas

as gentes e ajudando nossa raça — a raça h u m a n a — a me­

lhorar-se, a sobreviver e viver com harmonia , mesmo ante

a realidade invisível que muitos ainda desconhecem."

Encer rando sua fala, Tupinambá aproximou-se de Me­

nininha e falou, emocionado:

— Nosso t r ibuto de grat idão em nome de todos os líde­

res espirituais de nossa terra, do povo de Aruanda, à mais

doce de todas as oxuns, à mãe espiritual da nossa Aruanda.

Não havia como não se emocionar. Chorei , chorei , dei­

xei abertas as represas da alma e mergulhei meu espíri to

Page 325: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

3 2 2

naquela sabedoria mi lenar expressa ali, nas palavras de

um caboclo, um dos habi tan tes mais respei tados da cidade

dos espíri tos.

Pai João, t omando agora a palavra, falou para mim, en­

quanto as falanges de espíritos se revezavam, indo e vindo

no espaço, numa coreografia realizada sobre nossas cabe­

ças, de modo a nos deixar perplexos peran te o movimen­

to que faziam, n u m tr ibuto a Mãe Menininha, que visitava

a A m a n d a n u m a passagem para outros planos, outras di­

mensões celestes. Pai João aproveitava a comemoração fei­

ta pelos espíritos para me esclarecer:

— Na Aruanda, t raba lhamos com uma diversidade cul­

tural mui to grande. Os espíri tos que dirigem esta falange

de caboclos e índios são, na verdade, espíritos mais expe­

rientes, que viveram sob o sol de outros cont inentes , con­

t inentes perdidos. Geralmente, Ângelo, apesar de vestirem

a roupagem espiri tual dos povos que floresceram nas Amé­

ricas, como a dos índios nor te-amer icanos e tupiniquins,

en t re outros, t ra ta-se de grandes iniciados do passado e de

antigas civilizações. Detentores de um conhec imento an­

cestral invejável, muitos deles assumiram a conformação

de pais-velhos, b e m como de chefes, xamãs e outras figu-

Page 326: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

3 2 3

ras representat ivas dessas raças. Com isso, in ten tam auxi­

liar esses povos em sua caminhada de aprendizado e cres­

c imento espiritual. Muitos, inclusive os chefes de falange

dos espíritos que viveram no Brasil como índios, não qui­

seram reencarnar ent re os homens da civilização moderna .

Preferiram re tornar à Terra em meio a esses povos consi­

derados primitivos ou ul trapassados, jus tamente porque aí

encont ra ram um espíri to virgem, por assim dizer, tal como

a pedra bruta , isto é, não enredado pela manei ra como os

homens brancos cons t ru í ram sua cul tura e civilidade. Mas,

sobretudo, porque ent re os índios encont ra ram solo fértil

para deitar nos corações a semente da sabedoria milenar.

Enquan to as comemorações da noite prosseguiam, h o ­

menageando a ialorixá das mais representat ivas da cul tura

afro, Pai João prosseguiu:

— Temos aqui, em nossa cidade, os espíritos mais re­

presentativos das nações tupinambá, tupi-guarani , apache,

comanche, navajo, dakota, sioux, pawnees e miccosukee, en­

tre outras tribos, além de representantes dos antigos aste-

cas e maias, t ambém considerados civilizações e espíritos

primitivos por alguns, que desconhecem o verdadeiro sen­

tido da ciência e da sabedoria desses povos. Muitos estu-

Page 327: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

324

diosos ou iniciados da ciência pretér i ta — magos brancos,

sacerdotes e outros sábios — assumiram voluntar iamente a

vest imenta perispiri tual de caboclos daquelas tribos, assim

como de negros de etnias africanas, e hoje são os grandes

representantes desses espíritos perante o governo oculto

do planeta. Quando chegam a se manifestar através de mé­

diuns, nas poucas vezes em que t ravam contato com os ha­

bi tantes da Crosta mais d i re tamente , levam mensagens ge­

rais, de cunho moral e direcionadas à comunidade, e não

p ropr iamente a pessoas em particular.

Como minha curiosidade sobre o t ema havia sido des­

per tada com todo o vigor, pergunte i a Pai João algo que me

causava certo incômodo:

— E qual é a especial idade desses espíritos nesta di­

mensão da vida, já que conservam a aparência e o conheci­

men to or iundos de suas experiências como indígenas?

— Aqui, meu filho, temos imensa var iedade de contri­

buições que eles pres tam a nossa comunidade e a outras

do espaço. Falando de maneira abrangente, os caboclos são

grandes guardiões, defensores da lei e da disciplina, que

combatem as falanges do mal ou daqueles que se opõem ao

progresso e ao b e m comum. Se necessário, investem contra

Page 328: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

3 2 5

as bases das sombras, pr inc ipalmente os índios puris e os

antigos guerreiros em geral. Com o poder de manipular efi­

cazmente as energias da natureza, represen tam u m a força

considerável, ante a qual se dobram os agentes do mal. Os

comandantes e l íderes caboclos são de tentores de grande

magnet ismo e, por essas razões, en t re outras, são respeita­

dos e temidos pelas ent idades do mal, desde os chamados

quiumbas até mesmo os magos antigos, que ainda persis­

tem em empregar seu conhecimento em oposição ao pro­

gresso do mundo .

"Alguns, mais ligados à l ibertação e à reeducação do

ser humano, l ideram falanges que t rabalham com o senti­

mento e as emoções, operando d i re tamente na rup tu ra de

imantações magnét icas que vinculam indivíduos a formas-

-pensamento e ent idades perversas. Ent re os mest res ou lí­

deres espirituais dessas falanges, há mui tos cientistas que,

sendo conhecedores da natureza, a tuam nos laboratórios

da Aruanda e de outras comunidades do espaço, de modo

a auxiliar a humanidade . Contudo, quando se mos t ram a

médiuns encarnados ou em outros momentos , como suce­

de agora, transfiguram-se e assumem a aparência que mais

lhes faz sentido, de acordo com o que realizarão."

Page 329: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

326

— E com relação ao que se passa aqui, meu pai, o que

está ocorrendo, na realidade? O que se comemora com a

presença de tantos de espíritos, verdadeira legião de seres

que aqui comparecem esta noite? Noto que chegam mais e

mais espíritos de todo recanto da cidade.

Pai João, o lhando mais a meu lado, apontou para Meni­

n inha e falou:

— Os representantes das cul turas negra, indígena e ou­

tras mais de nossa cidade vêm pres tar reverência e home­

nagem à mais conhecida e respei tada missionária da cultu­

ra afro no Brasil. Oxum nos honrou passando o últ imo ano

aqui conosco, na orientação de muitas almas advindas des­

se celeiro cultural; aproveitou a estadia em nossa comuni­

dade para realizar conferências dirigidas a grande número

de espíritos. Hoje recebe nossa homenagem e despedida.

Daqui, logo par t i rá rumo a altos planos, em regiões por nós

ainda desconhecidas.

— Lembro-me bem da música, ou melhor, da oração de

Dorival Caymmi dedicada a ela.

E Menininha, a meu lado, aper tou meu braço discreta­

mente , como dizendo para não comentar nada mais. E me

calei. Mas não poder ia deixar de lembrar aquela maravilha

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3 2 7

de saudação, de homenagem e reverência à personal idade

missionária da oxum do Gantois.

Logo após, os espíritos negros, africanos, baianos e ou­

tros representan tes da cul tura afro, desfilaram, tocaram

atabaques e outros ins t rumentos , ao som dos quais mui­

tos in te rpre taram u m a coreografia maravilhosa em pleno

ar; em seguida, desceram majestosamente à frente da sa­

cerdotisa do Gantois, i luminando os céus da Aruanda. En­

quanto a saudavam, flores i luminadas caíam sobre toda a

plateia de espíritos; pétalas de rosas exalavam um perfume

indescritível e der ramavam-se sobre nós. Reverenciavam a

oxum mais boni ta en toando canções n u m a língua que me

era desconhecida; elas falavam da generosidade, do t raba­

lho e da grandeza dessa alma que viera ter com seu povo na

cidade dos espíritos. Pais-velhos, mães-velhas, caboclos e

tantos mais se un iam n u m a sinfonia da cul tura negra e dos

orixás, e apresentavam-se na mais bela comemoração que

já presenciei até hoje.

Depois de tudo, a inda ouvindo ao fundo as músicas e

melodias en toadas por u m a espécie de coral de seres de

procedência n i t idamente africana, eis que surgiu alguém

ent re nós, descendo do alto. Fazia-se acompanha r por

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3 2 8

mais de u m a cen tena de espír i tos de ex-escravos, negros

e mu lhe re s vest idos de mane i ra sui generis, de conformi­

dade com os cos tumes do candomblé de kêtu. Caminhan­

do n u m a es t rada de flores — rosas brancas , lírios e outras

mais, que se mesclavam ao formar um tapete i luminado

e perfumoso —, v inha a en t idade com os braços abertos

na direção da oxum mais bela en t re todas as oxuns . Meni­

n inha se despedia da Aruanda para r u m a r a out ros sítios

do universo. Uma voz melodiosa, que tocou o coração de

todos nós, formava o pano de fundo para se despedir da

alma i luminada que desceu até aquele lugar abençoado. á

semelhança de um d iaman te encravado en t re as estrelas

do f i rmamento.

Menin inha abraçou cada integrante das nações africa­

nas ali presentes , abraçou e abençoou cada uma das entida­

des representat ivas das comunidades da Aruanda. Na pon­

ta do rastro de luz que descia sobre todos, ela alçava voo a

outros recantos do m u n d o espiritual — insondáveis, ao me­

nos por ora, ao menos para nós. Não houve quem não fi­

casse profundamente tocado diante daquela cena. Pela pri­

meira vez, vi Pai João chorar. Os demais caciques, xamãs e

líderes espiri tuais das falanges da Aruanda ajoelharam-se

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3 2 9

respei tosamente , saudando a mulher que, com seus encan­

tos e encantados, deixou sua marca e terna no coração e na

vida de tanta gente.

Naquela mesma noite, em homenagem à mais lin­

da estrela da Bahia e em nome do colegiado de espíritos

da Amanda , Pai João inaugurou uma reserva natural , um

museu a céu aberto n u m dos lugares mais belos de nossa

cidade espiritual, que foi bat izado de Museu Natural Me­

nininha do Gantois. Tratava-se de um tr ibuto aos negros

ex-escravos, aos povos que t raba lharam e viveram sob o re­

gime da escravidão e, uma vez libertos, bri lhavam, muitos

deles, como estrelas na e ternidade, mas pr inc ipalmente na

Amanda , pois era este o caso de grande par te de seus habi­

tantes. Ao longe, os tambores rufavam, e novo espetáculo

de dança con temporânea era realizado por artistas da cul­

tura afro, que saíram bai lando atrás da comitiva que condu­

zia oxum a seu orum.15

A m a n d a estava em festa. Pais-velhos, mães-velhas e ou­

tros cidadãos reuniam-se para conversar sobre as caracte­

rísticas daquele museu e para apreciá-lo, u m a vez que fora

15 Orum. Do ioruba: mundo dos espíritos, Além.

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3 3 0

especialmente projetado, nos mínimos detalhes, visando re­

presentar os povos da mãe Africa com o máximo de defe­

rência. Tremulando sob o pórt ico dos orixás, as bandeiras

de todas as nações do cont inente africano formavam um es­

petáculo à parte .

Retirei-me da mult idão de espíritos verdadeiramente

emocionado. Vi os pais-velhos caminhando e confabulando

entre si, mui to embora não se portassem da maneira cari­

cata comumente observada nos terreiros, isto é, curvados e

usando palavreado de pessoas idosas e sem escolaridade. Ao

contrário, apresentavam-se eretos e articulados, cada qual

se vestindo segundo as preferências pessoais. Alguns traja­

vam terno branquinho, parecendo de linho, enquanto ou­

tros seguravam um cajado, ou então uma espécie de ben­

gala, e outros, ainda, s implesmente andavam, portando-se

como um idoso saudável dos dias atuais. Demonstravam

uma beleza incomum, uma alegria e um sorriso contagiante.

Muitas vezes, presenciei gargalhadas ent re eles, talvez

observando este ou aquele aspecto das coisas a seu redor

ou, quem sabe, do compor tamen to excêntr ico de certos es­

píritos. Pude vê-los, naquele m o m e n t o e em outros, geral­

men te em intensa atividade por todo o ambiente social da

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331

cidade. Pelo que pude notar, gostam muito de se vestir de

branco, inclusive as mães-velhas, tan to as que se mos t ram

negras como as que se apresen tam como brancas . Assim,

não encontre i aqui apenas pretos-velhos e pretas-velhas.

Também havia ali mui tas brancas-velhas; mui tas índias

idosas, que conservavam esse aspecto porque talvez lhes

recordasse algum m o m e n t o precioso que viveram em algu­

ma de suas existências.

Ainda quando eu fitava os habi tantes daquela joia espi­

ritual a que chamávamos Amanda , Pai João aproximou-se

de manei ra lenta, quem sabe para não atrapalhar minhas

reflexões. Pela pr imeira vez, percebi sua aproximação sem

precisar me virar para vê-lo. Ri in t imamente de alegria,

pois já conseguia ent rar em contato com a aura do outro es­

pírito, percebendo- lhe a presença. Caminhando a meu lado

por um bom tempo, sem dizer palavra, Pai João respei tou

meu silêncio até que lhe dei um sinal, um pensamento ape­

nas, e ele falou:

— Estes são os fundadores da nossa cidade, meu fi­

lho. Representam os povos que um dia apor ta ram do nos­

so lado da vida e ergueram as bases de u m a civilização na

parte mais etérea dos fluidos do planeta. Tenho cer teza de

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332

que um dia, n u m futuro b e m próximo, você dará voz a mui­

tos deles através da pena, da escrita, falando das belezas da

imensidade ao m u n d o dos nossos amigos encarnados , aju­

dando a ret irar o véu do preconceito, que nubla a men te de

mui tos dos filhos da Terra.

— Eu, Pai João? Não me sinto preparado para u m a ta­

refa de t amanha responsabil idade. Diante de tudo que têm

me mostrado, da real idade dos guardiões, dos pais-velhos,

caboclos e outras ent idades que t raba lham pelo b e m da

humanidade neste m u n d o invisível, sinto que terei de rea­

p render muita, mui ta coisa. Toda minha cul tura mostra-se

ínfima peran te a r iqueza e a diversidade cultural que en­

contrei aqui.

— Pois é, meu filho, todos t emos mui to a aprender. Mas

é preciso ter coragem para devassar o m u n d o invisível sem

a visão preconcei tuosa e de turpada que muitos fazem da

vida espiritual. Em breve, você será chamado à luta. Novos

hor izontes se abrirão a seu olhar espiritual, e nós, os men­

sageiros da Aruanda, jamais o abandonaremos.

Abraçando-me como a um filho, sent i -me aconchega­

do nos braços amigos da ent idade que aprendi a admirar e

respeitar, sob o nome de Pai João de Aruanda. Quando abri

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333

os olhos, depois desse aconchego de almas, vi a nosso lado

o méd ium que o pai-velho me apresentara em casa de Con­

suela. Estava jun to dela e fora t razido ali pela própr ia espa­

nhola, que viera part ic ipar da festa.

Ao longe, as estrelas do firmamento pareciam festejar

a passagem de Menin inha pela Amanda , ao passo que por

toda a cidade havia festa, música e apresentação de vários

artistas da imensidade, muitos advindos de outras cidades

espirituais. Fervilhava de gente nossa comunidade.

Levando em conta a presença de Pai João a meu lado,

de Consuela e do rapaz com o qual deveria me habituar,

com vistas a uma parceria, aproveitei para passear pela ci­

dade e conhecer aspectos da vida espiritual ainda ignora­

dos. Era u m a opor tunidade ímpar para ent rar em contato

com espíritos de procedências as mais variadas, analisar

aspectos da cul tura espiritual em incontáveis pormenores

e matizes; enfim, me enturmar , como dir iam alguns amigos

na Terra. Eu renascia entre as estrelas, mesmo que para re­

nascer t enha sido necessário morre r primeiro, a fim de des­

per ta r para esta tão intensa vida, em out ra dimensão.

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STAMOS CANSADOS DE esperar os acontecimentos na Ter­

ra! — falou o guardião Antony Heppkins para a guardiã

Merlíades, com um t imbre de voz que demonstrava irrita­

ção. — Já há um ano temos vigiado b e m de per to a situa­

ção e visto como se complica dia a dia a política e as rela­

ções internacionais desses países que o guardião super ior

pediu que observássemos. Estamos pra t icamente sem notí­

cias sobre o que nossa base principal na Lua t em avaliado,

visando intervir na região em que detec tamos a possibili­

dade de um conflito iminente. Gostaria de saber se J amar já

está no lado oculto da Lua, se p reparando para a interven­

ção ou, ao menos, se obteve permissão do governo do pla­

neta para isso.

A base móvel dos guardiões continuava girando sobre

a região espiritual no Oriente Médio, entre a península da

Arábia e o Irã. Mais precisamente, a fortaleza voadora dos

guardiões policiava a corrente astral em determinado pon­

to, localizado geográfica e estrategicamente acima do Golfo

Pérsico. O comando da estação móvel estava sob a respon­

sabilidade da guardiã Merlíades, especialista nos conflitos

da região. Um dos especialistas de plantão, espírito bastante

esperiente em matéria de possibilidades mentais e telepa-

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338

tia, de nome Ashter, tentava captar pensamentos ou formas-

-pensamento dos líderes dos países vizinhos e dar-lhes as

devidas interpretações. O resultado das observações era en­

caminhado dire tamente para a base principal dos guardiões,

situada no satélite natural da Terra. A mente de Ashter per­

manecia atenta ao que ocorria jun to aos governos da região:

Emirados Árabes, Arábia Saudita, Bahrein, Kuwait, Qatar.

I rã e Iraque. Tanto Ashter quanto Merlíades eram especia­

listas na cultura, na mental idade e na política dessas nações.

— Recebemos ordem de esperar e ficar de olho na re­

gião, pois há um conjunto de fatores que indica a presença

de magos negros e alguns outros representantes de poder

do submundo a se concent rar nesta região astral. Um con­

flito é iminente, não há dúvida.

Antony Heppkins passou a mão ent re os cabelos per­

feitamente aparados, de cor acobreada, n u m claro gesto de

impaciência.

— Está bem, está bem, Ashter. Acontece que eu sou um

guardião, e não um animalzinho que fica sentado à espera

do dono, n e m me pres to a ficar inerte enquanto forças da

oposição se reúnem, colocando em risco a segurança ener­

gética do planeta.

Page 342: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

3 3 9

— Sua fala significa algum tipo de insinuação sobre a

responsabil idade de nosso comandante , Jamar? Porque, se

for assim — int rometeu-se Merl íades —, sua postura será

in terpretada como insubordinação e indisciplina, guardião.

Antony pediu desculpas pela forma como falara ao es­

pecialista e ten tou se justificar. Mas a guardiã era intran­

sigente e não permit iu que ele cont inuasse com a pos tura

inquieta. Passou-lhe uma repr imenda à al tura da respon­

sabilidade assumida por eles. Alguém na base voadora deu

uma gargalhada estr idente, descontra indo o ambiente.

Os especialistas em visão à distância Mário Pitanga e

Simon Ormutz entreolharam-se , mas ficaram quietos. O

primeiro era expert em política internacional , e ambos per­

tenciam ao grupo de força psíquica do exército especial dos

guardiões. Admiraram-se de que Antony tivesse f icado tão

quieto assim após a repreensão da guardiã, pois lhe conhe­

ciam o jeito de agir e reagir às situações. Com a cara mais

inocente do mundo, depois de um t empo mais longo, An­

tony fez um comentár io, como se não houvesse falado nada

anter iormente:

— A base lunar está cada vez mais capacitada. Pare­

ce que Anton e seus auxiliares recebem a cada dia mais e

Page 343: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

3 4 0

mais tecnologia de d imensões superiores . Imagino até que

saibam de algo iminente e comprometedor sobre esta re­

gião do planeta.

Outra base móvel dos guardiões, ainda que de propor­

ções b e m maiores, orbita o planeta, em velocidade pouco

maior do que a da rotação da Lua, po rém em sentido con­

trário a este movimento, a uma distância aproximada de

200 mil qui lômetros da superfície do planeta. Isto é, pou­

co mais da metade da distância que separa a Lua da Ter­

ra. Nessa base, outros guardiões observam det idamente

a ação de ent idades perversas e sombrias que t en tam in­

fluenciar de modo decisivo a es t ru tura de poder nos gover­

nos do mundo. Exis tem várias bases espalhadas estrategi­

camente pela região astral da Terra. A base sob o comando

de Merl íades era uma das mais importantes , pois se loca­

lizava estrategicamente n u m dos pontos de maior conflito

do Oriente Médio e, afinal, de todo o globo. Todos os guar­

diões nesse cent ro de operações especiais usavam o mes­

mo uniforme, e dificilmente se distinguiria o posto ocupa­

do por eles através de sinais externos.

— Como faremos para intervir no caso de uma guerra

entre os países envolvidos no jogo de poder desta região?

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3 4 1

— Já disse an ter iormente — falou Merlíades, sabendo

que seu nome era alvo de brincadeiras entre os guardiões,

pois era de procedência persa, algo que a maior par te não

entendia, de modo que soava es t ranho aos ouvidos deles. —

Só agiremos depois que nosso comandante Jamar t rouxer

as ordens da Lua. Até lá, faremos todo o possível para en­

tender a situação por aqui, anotar cada lance que ocorre nos

bastidores da vida, no que tange aos países observados, e,

com base nisso, elaborar estratégias de ação para sugerir no

caso de deflagrarem a guerra que se esboça no horizonte.

Antony ten tou mais u m a vez interferir:

— Conforme vinha dizendo... — esboçou ele.

Mas a guardiã foi mais ágil e ardilosa e, pela pr imeira

vez, Merlíades o surpreendeu, quase m u d a n d o o rumo da

conversa ou, talvez, dando- lhe novo enfoque:

— Que tal pedi rmos a Jamar que entre em contato com

a Amanda? Como se t ra ta de u m a metrópole i t inerante,

ou seja, que pode se deslocar nos fluidos do planeta, talvez

possam nos auxiliar mais d i re tamente nesta região.

Antony ainda refletia sobre o que pre tendia dizer

quando o novo comentár io de Merl íades modificou com-

pletamente o rumo de seus pensamentos . Mas como lhe

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342

era característico em certos momentos , pensava u m a coisa

e falava outra comple tamente diferente. Dessa forma, so­

mente Merl íades e Ashter, capacitados a se aprofundar nos

pensamentos de outros, conseguiram in terpre tar de forma

correta o que o guardião queria efetivamente dizer. Os de­

mais ficaram sem compreender o sentido de suas palavras:

— A esta altura, a situação deve ser ainda mais difícil

em relação aos espíritos das regiões sombrias, já que os ma­

gos se in t rometem junto com cientistas que desenvolve­

ram a habil idade hipnótica... Talvez somente especialistas

consigam ficar imunes aos h ipnocomandos desses seres. Se

A m a n d a enviasse alguns de seus peritos!

Merl íades olhou para Ashter, t rocando impressões que

f icaram somente no nível menta l mais profundo, impercep­

tíveis aos demais guardiões.

— Entrare i em contato imediato com Jamar — falou a

guardiã, de certo modo reconhecendo a habil idade de An­

tony em prever certos lances de um conflito de caráter mais

abrangente. — Com cer teza ele saberá como proceder ao

ent rar em contato com os adminis t radores da metrópole .

Antony sorriu in t imamente . De alguma forma conse­

guira influenciar a opinião da guardiã. Ele t inha absoluta

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3 4 3

convicção acerca da urgência que cercava os acontecimen­

tos. Enquan to Merl íades assumia o posto de comunicação

da base, Antony comentou n u m tom mais baixo que o usual:

— Se cont inuarmos sentados só observando, talvez ocor­

ra uma tragédia mui to maior do que esperamos. Os gover­

nantes da região e de outros países que lhes são antagôni­

cos talvez sejam induzidos por comandos hipnóticos dos

especialistas da oposição. Os magos e cientistas do astral

inferior não br incam em serviço. Não podemos ficar dan­

do uma de espiões, apenas. Temos de advertir as diver­

sas cidades no espaço, a fim de ficarem em pront idão, pois

uma guerra se precipi ta e não sabemos a extensão dos da­

nos nem a quant idade de espíritos que poderão abandonar

o corpo físico de manei ra brutal . Eis um problema difícil de

enfrentar, até mesmo para os poderosos guardiões.

O especialista Simon Ormutz acrescentou:

— Temos de contar com a estação móvel dos guardiões,

que descreve a órbita em torno do planeta. Com seu poten­

cial de t rabalhadores e especialistas, talvez consigamos in­

terferir decis ivamente no palco dos conflitos.

Foi nesse momento que Ashter comentou, talvez soando

como se estivesse advogando a causa defendida por Antony:

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344

— Como você disse, amigo, a base móvel descreve uma

órbita em torno do planeta, mas, obedecendo ao conjun­

to de forças naturais do orbe, não pode n e m acelerar nem

rever ter sua trajetória. A base não pode se virar constan­

t emen te para a Crosta. Por isso, acho acer tada a presença

de u m a met rópole que possa controlar seus movimentos

para onde quer que sejam necessários. Além da Aruanda,

t emos mais duas outras cidades espiri tuais que podem nos

socorrer. Uma está sobre os céus da Europa e outra, sobre

a Antárt ida. Elas t a m b é m podem se deslocar, em caso de

necessidade.

Ashter conseguiu convencer os guardiões com seus co­

mentár ios . Mais u m a vez, Antony riu si lenciosamente. Ele

sabia da urgência da situação. O Golfo Pérsico era um barril

de pólvora prestes a explodir.

Quando Merl íades conseguiu contato com a base dos

guardiões, localizada em regiões mais profundas do pla­

no astral, Jamar já estava atento e imedia tamente convo­

cou enorme cont ingente comandado pelo oficial Watab. A

nave ou, melhor dizendo, o carro voador que t ransportava

um cont ingente invejável de guardiões da noite t inha mais

ou menos 300m de diâmetro e era protegido por um gigan-

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3 4 5

tesco campo energético, imper turbável e impenetrável . Re­

presentava um poder que não poder ia ser ignorado pelas

forças do mal e da oposição à política do Cordeiro. Havia

um t ransmissor montado no por tentoso aeróbus, desen­

volvido especificamente para enfrentar t empos de guerra.

Emitia cons tan temente um chamado para diversas cidades

e colônias astrais, pr inc ipalmente as mais próximas da re­

gião onde o confronto se desenhava.

Próximo ao local onde ficava o transmissor, n u m a sala

mais ampla, estava um des tacamento de vanguarda dos

guardiões, que part i r ia rumo aos lugares críticos e a de­

terminados países, que haviam se aliado para enfrentar a

possibilidade da guerra, mas que, no f inal , te r iam part ici­

pação mais intensa. Estados Unidos, Grã-Bretanha, França,

Arábia Saudita, Egito e Síria e ram os alvos principais para

onde o grupo seria enviado, na tentat iva de adminis t rar

ou amenizar a provável intervenção internacional na re ­

gião. Outro comando de guardiões f icou de pront idão jun­

to aos governos do I rã e da antiga União Soviética, procu­

rando incitá-los de alguma forma a intervir, n u m a tentativa

de paz entre os países envolvidos. O conflito do Golfo esta­

va armado, e as forças dos guardiões, de pront idão, deslo-

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3 4 6

cavam seu exército composto de espíri tos das diversas fa­

langes: mongóis, legionários de Maria, guardiões da noite e

outros especialistas. Além do mais, aguardavam uma equi­

pe de pais-velhos peri tos no t rato com os magos, pois a re­

gião espiritual nas imediações do evento que se precipitava

consti tuía um ponto de concentração de antigos magos das

remotas civilizações da Pérsia e da Babilônia.

A nave dos guardiões percorr ia o espaço dimensional

entre os planos astral e físico, cercada pelo campo defen­

sivo i luminado n u m a cor azul- turquesa intensa, que a pro­

tegia contra qualquer ataque. A Aruanda, respondendo ao

chamado dos guardiões, deslocava-se, qual fortaleza pode­

rosa, movida por forças gravitacionais direcionadas e devi­

damente controladas por técnicos especialistas. Enquanto

realizava u m a manobra ligeira, imperceptível aos habitan­

tes da comunidade, foram evacuados mais de 5 milhões de

espíritos visitantes, que estavam na cidade apenas para es­

tudo ou lazer. Restaram apenas os habi tantes da cidade.

O conflito no plano físico era dado como certo, princi­

pa lmente devido às posturas do di tador da região, que se

envolvera em antigas disputas terri toriais. Ele assumia esse

posic ionamento naquele momen to histórico perigoso com

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347

a desculpa de defender sua política de preço do petróleo.

Além disso, exigia absurdas indenizações do país vizinho.

No meio daquele confronto de dimensões espirituais e

históricas foi que tive meu pr imeiro contato com as forças

que cos tumei ramente os guardiões chamam de forças da

oposição. Esse t e rmo fora cunhado para designar as hostes

inimigas do bem, contrár ias à política do Cordeiro, nome

dado ao governador espiritual da humanidade , mais conhe­

cido ent re os homens pelo nome de Jesus Cristo.

Estava a bordo do poderoso comboio, que mais parecia

uma nave de guerra. Havia especialistas por todo lado. Da

Amanda , chegaram t ambém diversos pais-velhos, que, tão

logo se mater ia l izaram no ambiente da nave, t ransforma­

ram a ves t imenta perispiri tual , de modo a assumir a apa­

rência que t iveram em encarnações mais recuadas, como

magos brancos e sacerdotes dos colégios iniciáticos anti­

gos. Precisavam enfrentar os magos que se reuniam n u m a

localidade entre os rios Tigre e Eufrates, onde no passado

existiu impor tan te centro de iniciação espiritual.

O enorme comboio se colocou acima dos Montes Tau-

rus, na Turquia, n u m a região logo ao nor te da ilha de Chi­

pre, e aí fixou a base dos guardiões. Antes mesmo que fos-

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348

se decretada a guerra, Pai João, secundado por sua equipe

especialista no t ra to com os magos, j un t amen te com Jamar.

localizaram uma base dos temíveis magos negros numa di­

mensão subcrostal que ficava abaixo da região de Al-Qur-

na, no sudeste iraquiano. Ali foram concent rados os esfor­

ços dos guardiões e dos pais-velhos. As cidades espirituais

do Velho M u n d o foram todas acionadas para f icarem em

estado de alerta, caso houvesse descar regamento de uma

cota extra de ectoplasma na atmosfera espiri tual do plane­

ta, devido aos prováveis desencarnes em massa. Havia mui­

ta tensão no ar.

Voltando sua atenção para mim, Jamar falou, não me

dando margem para discordância:

— Você pe rmanece rá conosco por um pouco de tempo.

Ângelo. Não convém que se exponha d i re tamente e de ma­

neira intensa ao embate de forças discordantes. Pelo me­

nos, ainda não. Portanto, não es t ranhe se, depois de algum

tempo, o convidarmos a re tornar à cidade e ficar ao abrigo

das energias aqui desencadeadas .

— Mas eu gostaria de participar...

— Como eu disse — acentuou Jamar —, ficará certo tem­

po conosco, mas não podemos colocar em risco sua integri-

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349

dade espiritual, pois é recente sua estadia conosco. É pre­

ciso en tender que nem tudo pode ser conforme queremos.

Não havia como debater com o guardião. Meu anjo pro­

tetor não deixava dúvidas quanto à sua decisão. Só me res­

tava calar e torcer para que pudesse ver a maior par te dos

lances do conflito iminente. Precisava recolher informa­

ções, mas não sabia até que ponto minha presença seria útil

a mim ou prejudicial à ação dos guardiões. Eu esperaria.

Num plano dimensional próximo à Crosta, diversos

servidores do Cordeiro se reuniam na base móvel dos guar­

diões, o grande comboio, com o intuito de discutir t emas

importantes para o momento , em que a guerra era por de­

mais significativa e determinava, no cômputo do tempo, o

inicio de uma nova etapa do processo de seleção e colhei­

ta, como se referiam ao per íodo intenso de atividades vivi­

do pela humanidade . J amar expedira um bolet im no qual,

além da dar notícia dos acontecimentos que se desenrola­

r a m no plano dos homens , convocava as comunidades do

espaço a somarem esforços para enfrentar os horrores de

uma guerra iminente e de graves consequências globais.

Vieram representantes de várias colônias e cidades do

Além, reunidos em prol da humanidade . Ent re os espíri tos

Page 353: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

3 5 0

ali presentes , Merl íades e Antony, Asher e outros mais da

equipe aguardavam os próximos lances.

Ent re os desafios apresentados tanto por Jamar quanto

por Semíramis e Pai João, estava a necessidade de amplia­

ção das áreas adjacentes às cidades espiri tuais e colônias

do plano astral. Era preciso capacitar as cidades vibrato­

r iamente mais próximas da Terra a receber os milhares de

espíri tos que desencarnar iam em condições t raumáticas e

em pequeno espaço de tempo. E isso não exclusivamente

naquela guer ra que fora decre tada pela insanidade de um

tirano, mas t ambém em cataclismos como ter remotos , tsu­

namis, maremotos e outros mais, cuja incidência aumenta­

ria. A isso se somar iam outros conflitos bélicos e revoltas,

a tentados e outros atos de violência, pat rocinados pela in­

sensatez humana , r edundando no aumento do n ú m e r o de

desencarnes em massa.

— Precisamos invocar o auxílio dos espíri tos cons­

t ru tores , pois haverá necess idade de ampliar as áreas de

socorro nas colônias, c idades espir i tuais e met rópoles do

plano astral mais pe r to da Crosta — falou Pai João, agora

n u m a roupagem fluídica diferente da habi tual . — Os cha­

mados postos de socorro, localizados em regiões inóspitas

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351

do conhec ido umbra l e em d imensões mais densas , não

somen te devem ser ampl iados , como t a m b é m devemos

formar mais t raba lhadores . Temos na Aruanda o cadas t ro

de numerosos seres, a inda encarnados , que poderão ser­

vir de auxil iares desdobrados . Colocaremos nossos regis­

t ros desses filhos à disposição das diversas c idades e colô­

nias do astral.

Olhando a ten tamente os espíritos que part icipavam da

reunião emergencial , o pai-velho cont inuou, acentuando

mais ainda suas palavras:

— As várias cidades espiri tuais que se apresentaram

para colaborar nos eventos críticos que enfrentaremos pre­

cisam apr imorar a rede de comunicação, es tabelecendo

intercâmbio eficiente entre elas tanto quanto com todo o

sistema de cidades do plano astral do planeta, a fim de re­

ceber e compar t i lhar recursos e orientações do Alto. Uma

rede de comunicação estreita e funcional deve ent rar em

operação urgentemente .

Após dar um t empo para os diversos espíritos proces­

sarem as ideias, o pai-velho cont inuou:

— Nós, da Aruanda, podemos oferecer nossa univer­

sidade e seus diversos depar tamentos para a formação de

Page 355: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

3 5 2

t rabalhadores , que poderão ser encaminhados para servir

nas diversas frentes de batalha espiritual. Nosso amigo An­

ton, um dos representantes maiores dos guardiões, enviará

o registro de médiuns e t rabalhadores de diversos países, a

f im de que se faça um apelo para que u n a m seus esforços

neste momen to crítico.

Quanto a mim, ficava o t empo todo somente ouvindo,

pois ainda não t inha adquir ido n e n h u m a habil idade para

me dispor como servidor nesta hora grave. Observei como

os representantes de algumas cidades espirituais estavam

muito sensíveis ao que se desenrolava no Oriente Médio.

Foi quando Semíramis tomou a palavra e complemen­

tou a fala de Pai João:

— Algo também me preocupa a partir deste momento,

que, para nós, é somente o início das provações coletivas.

Falo, ainda, sobre a necessidade de preparação das cidades

espirituais. A readequação das cidades e a capacitação de

mais trabalhadores precisam ocorrer de maneira planejada

e inteligente, a fim de formarmos trabalhadores com compe­

tência e discernimento, e não somente com boa vontade. As­

sim, teremos a possibilidade de socorrer e amparar os seres

que desencarnarão com o máximo de habilidade e eficácia.

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3 5 3

"Não podemos esquecer que quem virá da Terra nos

próximos anos, em levas ou desencarnes coletivos, será p ro­

veniente das experiências mais variadas, no que concerne a

religiões e cultos. Então, pergunto: como promover a ado­

ção de uma linguagem que, se não todos, ao menos a maioria

compreenda? Creio que precisamos nos reunir, tanto os ad­

ministradores quanto os líderes de equipes das diversas ci­

dades, a fim de ajustar um método eficaz de cumpri r a mis­

são que está diante de nós, além de estabelecer uma cadeia

de auxílio mútuo, levando em conta os desafios de abrigar e

conduzir milhares de espíritos que reclamarão amparo."

Entendi que nem para os espíri tos mais exper ientes

era fácil lidar com culturas espiri tuais tão diversas como

as que existiam em torno do globo terrestre . O problema

cultural e religioso persistia, além da sepultura, como um

grande desafio, agravando-se nos momentos de crise espi­

ritual e resgates coletivos.

Ainda com o mesmo pensamento , Astrid pediu a pala­

vra para comentar :

— Sei que pode ser p rematu ra esta proposta, principal­

mente numa hora de urgência como esta, mas aproveito a

presença de representan tes das diversas comunidades do

Page 357: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

3 5 4

espaço para fazer um apelo. Precisamos enfrentar um de­

safio mui to grande, mas que, encarado em conjunto, pode

surt ir um resultado valioso e facilitar o t rabalho no fu tura

O desafio que vejo se esboçar é o de inspirar os servidores e

aprendizes dos diversos cultos e religiões, pr incipalmente

os de cunho espiritualista, onde ocorra atividade mediuni-

ca ostensiva, a se un i rem e deixarem de lado as diferenças

em prol de um ideal maior.

Notei que alguns espíritos se ent reolharam, pois, entre

os que faziam par te da assembleia naquele momento , al­

guns não per tenciam a ramos que admit iam declaradamen­

te a prát ica mediúnica. Havia, por exemplo, cinco espíritos

representantes da crença católica, provenientes de cidades

espiri tuais que foram construídas dent ro desse ideal, além

de dois membros de colônias de feição manifestamente

evangélica. E a palavra de Astrid pareceu mexer mui to com

eles. Pai João, habi lmente, conseguiu deixá-los mais à von­

tade, embora vissem alguns dos espíritos da Aruanda com

certa reserva. Mesmo assim, colaboraram ante o apelo dos

guardiões e se colocaram prontos a servir. Pelo menos ali e

naquele momento , deixaram de lado os pontos de vista dis­

cordantes para auxiliar como podiam.

Page 358: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

355

Além deles, pais-velhos, caboclos e espíritos que se apre­

sentavam neste momento com forma diferente da habitual,

todos a tenderam ao chamado deflagrado pelos guardiões.

Havia colaboradores do extremo oriente asiático, médicos

do espaço e espíritos comprometidos com o bem ligados à

religiosidade do povo brasileiro. Ainda se viam espíritos pro­

cedentes de alguns países da Europa, inclusive do leste euro­

peu, que ali se reuniam também para ajudar quanto pudes­

sem. Todos conversavam sobre estratégias para aumentar o

contingente de trabalhadores, reurbanizar diversas cidades

do Além, preparando-as melhor para receber, educar e auxi­

liar, da melhor maneira possível, os espíritos da Terra.

Receberam de bom grado a proposta de J amar e João

Cobú, b e m como de Antony, Ashter e Merlíades, que par­

t icipavam da reunião na base voadora dos guardiões. Não

somente naquele m o m e n t o crítico da guerra que estava

em andamento , embora em fase inicial, mas t ambém nos

eventos futuros, precisavam aprofundar a união. Os espíri­

tos especialistas precisavam de mais colaboradores com o

máximo de capacitação e responsabil idade, mas sobre tudo

que não ficassem br igando por seu pon to de vista sobre a

vida espiritual.

Page 359: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

3 5 6

Disse João Cobú, acentuando a opinião de espíritos

que t rabalhavam sob a feição espiritual de pais-velhos:

— Temos de ficar muito atentos, pois do lado de cá ainda

temos nossas diferenças culturais e espirituais muito mar­

cantes e, pr incipalmente nesta região onde estamos agora,

no Golfo Pérsico, a diversidade cultural e religiosa é enorme.

A composição étnico-linguística é na maior parte árabe, com

uma minoria curda. Devemos estar atentos ao lidar com es­

ses espíritos, uma vez que mais de 90% da população de en­

carnados e desencarnados teve ou tem formação religiosa

islâmica. Mais ainda: pelo menos nesta região, a maior pane

de nossos amigos muçulmanos, de um e outro lado perten­

cem à facção xiita. Assim como os demais, todos dignos de

consideração em nossos planos de auxílio, consti tuem um

povo cioso de seus costumes e interpretações religiosas, que

perpassam de forma marcante todos os aspectos de sua vida.

"Também é impor tante lembrar que é necessário atuar

nos países que se opõem ao regime e à política do dita­

dor que começou o conflito, isto é: Estados Unidos, Reino

Unido e os outros — cerca de 30 nações — que formam a

coalizão l iderada pelos nor te-americanos . Seus governos

precisam ser acompanhados por nossos representantes.

Page 360: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

357

Sabemos que este será um marco impor tante , que determi­

nará o inicio de um per íodo de lutas intensas para os povos

da Terra. Então, meus amigos, é hora de selecionar os es­

píritos mais competentes e que mais en tendem de política

internacional, pois devemos mante r contato com os l íderes

mundiais e, de todas as maneiras possíveis, buscar ameni­

zar a situação que se desenha. Não podemos esquecer que,

entre os representantes espiri tuais da cul tura islâmica, te ­

mos valiosos colaboradores, tan to entre desencarnados

quanto entre encarnados . Fora do corpo, mui tas vezes, es­

tes podem colaborar com mais celeridade, sem as rivalida­

des que vemos entre os homens."

Fiquei o lhando a expressão dos espíritos ali presen­

tes; não havia como não notar certa aversão aos membros

da cul tura islâmica. Esse sent imento, ao que tudo indica­

va, havia se dilatado para este lado da vida. Ou seja, aqui

também vi que, en t re os representantes de diversas cidades

espirituais, havia aqueles nos quais persistia alguma nódoa

de preconceito. Os religiosos, pr incipalmente , pareciam

ter dificuldade de se liberar dos pontos de vista pessoais e

doutrinários, de comungar com quem pensava diferente ou

rezava por uma cart i lha distinta. Mesmo assim, e ram espí-

Page 361: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

358

ritos dispostos a servir, a auxiliar nos momentos de crise

política e espiritual. Talvez observando o mesmo que eu.

foi J amar quem tomou a decisão:

— Distribuirei especialistas da noite que trabalham

mais in tensamente com as l ideranças mundia is ao lado

dos respectivos líderes de cada país envolvido no conflito.

Sabemos que, por t rás das ações de diversos governos do

mundo , existem inteligências sombrias, espíritos inteligen­

tes e astutos, pr incipalmente magos negros, que intentam

dominar o planeta, de alguma maneira. Por isso, acho mais

apropr iado que sejam os guardiões a assumir essa respon­

sabilidade em particular. Mas t ambém porque — acentuou

Jamar —, como guardiões, não podemos agir motivados por

doutr inas religiosas ou at i tudes sectárias. Nossos parceiros

são todos os homens de boa vontade, ou melhor, aqueles

que se i rmanam em prol da humanidade . Os pais-velhos.

como especialistas da nossa metrópole na abordagem dos

temíveis magos negros, sugiro que assumam essa questão

mais in tensamente . Quanto aos demais, duran te a guerra,

dediquem-se ao aspecto que mais lhes diz respeito.

Todos concordaram. A decisão de Jamar havia trazido

certa t ranqui l idade a alguns representantes de outras cida-

Page 362: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

3 5 9

des espirituais. Eles não ter iam de lidar d i re tamente com

questões que cer tamente emergir iam, em razão da diversi­

dade cultural e religiosa dos espíritos que ser iam envolvi­

dos na guerra iminente.

Mudando de assunto de um momen to para outro, Ja-

mar apresentou uma proposta aos iniciados da cidade dos

espíritos ali presentes:

— Aproveito a opo r tun idade para ped i r a colaboração

dos hab i tan tes da Aruanda . Es tamos de posse de mapas

que indicam u m a base mui to preciosa dos nossos velhos

conhec idos magos negros. Como mui tos iniciados são

exímios magnet izadores , conhecedores de leis do m u n ­

do oculto que mui tos espír i tos, mesmo alguns especial is­

tas, desconhecem, venho pedir - lhes a contr ibuição. Não

se faz necessár io apenas desar t icular recantos usados pe­

los magos. Será preciso t a m b é m levar a eles o u l t imato

conce rnen te t an to a esta guer ra em andamen to , que te rá

u m a repercussão insuspei ta na sociedade dos enca rna ­

dos, quanto aos efeitos desse acon tec imento na es t ru tu ­

ra de pode r nas regiões inferiores. Para essa missão, não

vejo n e n h u m a categor ia de espír i tos mais ind icada que

os pais-velhos.

Page 363: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

360

Após longa discussão que se seguiu, a respei to da polí­

tica na região e da influência menta l e espiritual dos espí­

ritos do mal sobre governos e governantes, ficou bem claro

que os pais-velhos ter iam toda a au tonomia para agir nos

ambientes inferiores, onde de te rminados magos mant i ­

n h a m bases e laboratórios. Ficou acer tado que Pai João or­

ganizaria a equipe, j un tamen te com mais t rês pais-velhos,

além de recorrer a um méd ium para auxiliá-los na tarefa,

desdobrado, caso precisassem de energias mais animaliza­

das ou de uma cota de ectoplasma mais intensa, algo que

não pode ser descar tado quando se t rata de ações visando

aos magos negros.

Deixando o grupo debatendo a situação que ocorria no

campo de lutas no plano dos encarnados envolvidos com

a política, en t re os cidadãos dos países compromet idos no

conflito, Pai João ret i rou-se e eu o segui, sempre observan­

do, mui to embora in t imamente receoso, ainda ignorando

os ardis dos chamados magos.

João Cobú acionou alguns guardiões ligados a seu tra­

balho, depois de analisar documentos compar t i lhados por

Jamar, mui to impor tantes para os próximos lances do con­

flito em dimensão próxima à Crosta. O pai-velho soubera

Page 364: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

3 6 1

de uma reunião de um grupo de magos que pre tendia fazer

frente aos chefes de legião das sombras, nas e ternas dispu­

tas ent re facções existente dent ro da oposição; para cum­

prir o intento, eles ten tar iam arregimentar forças ent re os

encarnados, após os conflitos que patrocinavam e inspira­

vam di re tamente . Como o império do mal a cada dia era

quest ionado e parecia soçobrar como uma nau n u m oceano

em tempestade , havia diversos grupos p re tendendo formar

um domínio à par te; es t ru turas de poder de u m a política

cada vez mais delirante. Por isso, aqueles magos ousaram

influenciar um de seus médiuns ou, melhor dizendo, uma

de suas mar ionetes no plano físico. Resolveram, também,

lançar mão de outros ins t rumentos humanos , p reparando-

-os para desencadear uma guerra mais mortal e absurda.

Recorreram a um governante do Oriente e out ro do Oci­

dente; ambos ser iam o estopim para o que intentavam.

Esses espíritos precisavam saber que os representantes

do Cordeiro, os guardiões, estavam atentos e t inham con­

dições de intervir de forma a cercear a ação dos magos nas

zonas umbral inas e na superfície, ent re os chamados vivos.

Aceitando a incumbência apresentada por Jamar em

nome do governo oculto do planeta, os pais-velhos part i -

Page 365: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

362

ram em direção às regiões ínferas, que conheciam mui­

to bem, enquanto equipes socorristas iam e vinham, de

um lado a outro, p reparando-se para receber as vítimas da

guerra. Ent rementes , n u m plano mui to mais sutil, espíri­

tos const rutores começavam o t rabalho de expansão da es­

t ru tu ra espiri tual da Amanda , visando ao acolhimento de

almas com de te rminada ident idade energética que viriam

da Terra. Da mesma forma, outras equipes t rabalhavam em

outras colônias e cidades do astral, ampliando as estrutu­

ras de trabalho, como hospitais e campos de apoio, forjan­

do mais equipamentos e a r regimentando número maior de

t rabalhadores .

Os calendários da Terra marcavam o dia 17 de janeiro

de 1991 quando um maciço ataque aéreo dava início a uma

represália à ter ra dos califas. Depois disso, mais de meio

milhão de soldados foram enviados à guerra, que geraria

um pesado t r ibuto de dor abrindo caminho para outras ba­

talhas que vir iam t razer o te r ror a um povo que sofreria por

longo t empo com um governo aterrador. Foi esse, exata­

mente , o dia em que descemos rumo ao recanto do abismo

onde se refugiavam os temíveis obsessores do submundo

da escuridão.

Page 366: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

363

Ao transi tar por regiões inóspitas e seguir d i re tamen­

te a um dos redutos assinalados nos mapas cedidos pelos

especialistas do m u n d o superior, os pais-velhos chegaram

a um en t roncamento energético que parecia esconder a tal

base do grupo sombrio. E foi aí, exatamente , que encontra­

ram o precioso segredo guardado a sete chaves pelos ma­

gos negros.

O local parecia uma caverna, incrustada n u m a rocha da

paisagem astral, em regiões profundas da subcrosta. No en­

tanto, por fora, a tal caverna gozava de um disfarce: uma es­

pécie de crosta de musgo a envolvia, embora fosse uma ve­

getação um tanto distinta daquela composta por e lementos

conhecidos do reino vegetal. Em alguns minutos de obser­

vação, um dos médiuns que nos acompanhava, desdobrado

e acompanhado de um dos pais-velhos, sentiu suas forças se

esvaírem. Algo decididamente sugava suas energias, deixan­

do-o quase desacordado, em questão de minutos. Foi o pai-

-velho conhecido como Rei Congo quem o socorreu, elimi­

nando de sua aura os elementos sutis exalados pelo musgo.

Tratava-se de um gás, além de outros elementos invisíveis,

perfei tamente sentidos pelo médium; pareciam ser expeli­

dos de dent ro da caverna disfarçada. Passaram-se mais de

Page 367: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

364

duas horas até que ele recobrasse os sentidos e a lucidez

fora do corpo. Por várias noites re tornar ia àquele campo de

batalha espiritual, até que o conflito estivesse decidido.

Enquan to eu anotava tudo, observando sempre cada

detalhe e cheio de curiosidade, João Cobú acercou-se de

dois pais-velhos — todos modificados em sua forma espi­

ritual, que se transfigurara na aparência de antigos magos

— e fizeram o reconhec imento da área. Certificaram-se de

que se tratava exa tamente do local apontado pelos mapas

dos especialistas.

Os e lementos da flora astral ali presentes guardavam

a característica de absorver energia e fluido vital de qual­

quer médium eventualmente desdobrado. Talvez fosse uma

modificação da substância componente dos vegetais, pro­

duzida em laboratório pelos magos que dominavam o lo­

cal. Além do perigo que representavam para os viventes, ha­

via indícios de que ent idades vampiras estivessem a postos,

t ambém disfarçadas, para a guarda daquele sítio. O que não

combinava de forma alguma com uma base dos magos era

o fato de haver um campo de forças envolvendo o lugar, re­

br i lhando discretamente, de manei ra tal que somente espí­

ritos mais experientes como os pais-velhos pudessem per-

Page 368: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

3 6 5

cebê-lo, pois era quase invisível. Isso na tura lmente era obra

de ent idades que lidavam mais d i re tamente com a ciência, e

não de magos negros, cuja especialidade era a manipulação

de forças mentais e seres elementais, além de algumas leis

do m u n d o oculto, desconhecidas da maioria. No entanto, ali

estava o tal campo. Erguia-se como uma cúpula em torno da

montanha onde estava incrustada a caverna. Teriam de ter

cuidado, pois a na tureza daquele campo era ignorada.

Após observações mais acuradas, o espíri to conheci­

do como Pai Joaquim notou que aquele campo fazia com

que a mon tanha toda — e não somente a ent rada da caver­

na, que descobri ram por acaso — assumisse aspecto dife­

rente, como se desaparecesse ou fosse aplainada e se mis­

turasse à paisagem no entorno, formando um ilusório vale

profundo. Esse era o segredo do es t ranho campo de força:

ocasionava no observador uma espécie de alucinação e, por

isso mesmo, suscitava dúvidas sobre o que ele via, se era

realidade ou uma ilusão dos sentidos. A mon tanha ora es­

tava ali, diante dos olhos de quem observasse, ora deixava

de existir, pelo menos visualmente, revelando um extenso

vale. Leve t remeluzi r marcava o m o m e n t o em que a for­

mação desaparecia, como se o campo energético estivesse

Page 369: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

366

prestes a en t rar em colapso. Tratava-se de um recurso anti­

go, empregado por certos magos ao criar ilusões, imagens e

projeções mentais , de manei ra a confundir quem quer que

fosse. Caso os pais-velhos estivessem corretos em suas per­

cepções e conclusões, a base dos magos p ropr iamente dita

estaria ainda a considerável distância; ali era somente a en­

trada, camuflada e repleta de perigos e armadi lhas criados

pelos donos do lugar. Não poder ia ser de outra forma, pois

assim agiam os magos t radicionalmente, segundo Pai João

pôde explicar. E foi ele quem assumiu a frente do grupo,

tão logo Pai Joaquim relatou a descoberta.

Pr imeiramente , João Cobú fez um pedido di re tamen­

te à Aruanda e a Jamar para que enviassem mais guardiões

e especialistas. E parece que Jamar já estava de prontidão,

a tento a tudo e a todos os detalhes, pois não tardou a che­

gar o reforço requerido. Na sequência, os pais-velhos se co­

locaram em pontos estratégicos em torno da montanha ,

mesmo que sua visão se al ternasse com a do vale projetado

pelos magos. O representante do colegiado da Aruanda dei­

xou o méd ium que doava energias animalizadas necessá­

rias ao trabalho, sob a custódia dos guardiões, por ora evi­

tando que fosse exposto desnecessar iamente .

Page 370: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

367

Foi somente depois de confirmar que ele estava em se­

gurança que os pais-velhos começaram a bater no solo do

astral com seus cajados, que, segundo mais tarde vim a sa­

ber, e ram condensadores energéticos de grande potência. A

batida cadenciada e cada vez mais r i tmada, mais forte e in­

tensa provocou a queda do campo vibratório que envolvia

a mon tanha sagrada dos magos, o local que escondiam de

quem a observasse. A cena lembrava a ent rada dos israelitas

na ter ra promet ida de Canaã, quando Josué, o comandan­

te guerreiro, sitiou a cidade de Jericó. Na ocasião, os solda­

dos de Israel marcharam de modo cadenciado em torno das

muralhas e, ao tocarem trombetas , t ambém obedecendo ao

r i tmo de terminado por seu líder, as muralhas da cidade rui­

ram. 1 6 Assisti a algo semelhante, e não era obra de magia,

mas de u m a lei da física, po rém levada a cabo n u m a região

astral bem próxima da Crosta, por competentes guerreiros

da luz, que sabiam manejar com maestr ia seus ins t rumen­

tos de t rabalho disfarçados de cajados ou coisa similar.

Ao som dos ins t rumentos uti l izados na ofensiva ao la­

boratório dos magos negros, ocorreram fenômenos dig-

16 Cf. Js 6:1-20.

Page 371: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

368

nos de nota. À medida que os cajados se chocavam contra

o chão, despejando no solo astral energias por mim desco­

nhecidas na ocasião, a es t ru tura energética do campo de

força cedia, pelo poder e conhecimento dos pais-velhos.

Pr imeiramente , surgiram faíscas; pequenos raios pipo­

caram em diversos pontos da r edoma energética, como se a

técnica empregada houvesse provocado curto-circui to em

equipamentos que regulavam a estabil idade da fonte man­

tenedora da proteção eletromagnét ica da base oculta. Logo

após, ocor re ram explosões em locais onde o campo tocava

o solo astral, para em seguida todo o complexo ruir, ao som

cadenciado dos cajados dos pais-velhos, que desencadea­

ram forças acumuladas em seus ins t rumentos , as quais pe­

ne t ra ram o solo sob a r edoma com poderosa vibração.

Assim que a es t ru tura energética ruiu, causando um

ruído estrondoso, instaurou-se verdadeiro colapso nas de­

fesas das ent idades, que não contavam com a presença ali,

na região, de pais-velhos e altos iniciados de templos do

passado remoto. As ent idades vampiras foram vistas; seu

disfarce pôs-se a descoberto no mesmo instante em que a

r edoma dos magos se desmantelou. Ao no ta rem que fica­

ram sem a proteção da invisibilidade temporár ia , ensaia-

Page 372: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

369

ram um ataque aos guardiões, pais-velhos e ao própr io mé­

dium desdobrado. O vivente era o alvo mais cobiçado, pois,

sendo de tentor de força vital, desejavam a todo custo vam-

pirizá-lo. Entre tanto , a providência tomada por Pai João,

convocando o reforço de guardiões, most rou-se eficaz.

A equipe de sentinelas que veio da Aruanda assumiu

a frente e, sem n e n h u m escrúpulo, investiu contra os espí­

ritos vampiros. Resultado: n e m sequer as ent idades esbo­

çaram o ataque e logo foram comple tamente dominadas

pelos guardiões, que as a tacaram com poderoso arsenal

magnét ico de armas elétricas, que despejavam raios sobre

a turba de obsessores, causando en torpec imento dos sen­

tidos espirituais. Adormeceram logo que foram atingidos

pelas descargas das mais de 50 armas. Em meio a gritos e

pontapés , desferidos pelas ent idades vampiras que esca­

param ao furacão dos raios narcotizantes, os sentinelas en­

viados de Aruanda os p rende ram magnet icamente , de ma­

neira que não mais pudessem representar qualquer perigo

para a equipe.

Ent rementes , os pais-velhos cessaram o movimento

com os cajados, pois a vibração no solo astral poder ia fazer

toda a caverna ou sua en t rada ser destruída.

Page 373: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

370

Meu coração parecia querer sair pela garganta, de tal

forma fiquei envolvido pela si tuação e, hones tamente , com

medo do desfecho que se daria. Se já naquele pon to da jor­

nada encon t ramos t a m a n h a resistência das ent idades que

defendiam os magos, que dizer, então, dos própr ios ma­

gos negros? Confesso que meu pr imeiro conta to com as

regiões inferiores não foi nada confortável n e m tranqui lo

para mim. Por mui tos dias, pe rmanecer ia revendo aquela

cena na cabeça.

Ao t empo em que esses acontecimentos ocorr iam nas

regiões sombrias próximas à Crosta, Anton resolvera sair

da base principal no satélite lunar e visitar o campo de

guerra. J u n t a m e n t e com Jamar, conversava com um dos

guardiões do Oriente, sob a supervisão de Zura, a respei­

to da situação dos países envolvidos no conflito do Golfo

Pérsico e sobre o que essa guerra representava para o futu­

ro político e socioeconómico do planeta. O Oriente Médio

causava grande preocupação nos guardiões naquele mo­

mento; além de I raque e Kuwait, palco dos conflitos, ob­

servavam Israel e as demais nações palestinas, e sobretu­

do países árabes da África setentr ional , como Egito e Líbia.

Falavam sobre os di tadores que cairiam e aqueles que se-

Page 374: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

371

r iam fantoches manipulados pelos magos negros no exer­

cício do poder.

Nos EUA, na sede da ONU , na Grã-Bre tanha e no res­

tante dos países aliados, poderosos guardiões montavam

guarda, pois sabiam que tais países r emete r i am t ropas

cada vez mais letais para a região. Havia u m a movimen­

tação in tensa dos dois lados da vida. Os especialistas de

Jamar desar t iculavam es t ru turas erguidas em to rno dos

governantes , em seus gabinetes de governo — aparatos en­

gendrados pelos magos negros e seus asseclas. Os habili­

dosos represen tan tes do poder em lugares ocultos sabiam

b e m como manipu la r os homens , que acredi tavam pia­

men te na própr ia au tonomia ao tomar decisões. Havia, no

entanto , um f luxo de influência intenso, por meio da ha­

bil idade hipnót ica dos magos, an tagonizando Oriente e

Ocidente, a pon to de c u m p r i r e m o in tento de desencadear

u m a guerra que assinalaria o início de um per íodo de agra­

vamento das animosidades , gerando intensas dores e p ro ­

vas para a população global.

Enquanto isso ocorria nos bast idores da política inter­

nacional, os guardiões interferiam. Após confabular com

Anton, que trazia informações preciosas da base principal

Page 375: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

372

dos guardiões, J amar assumiu a dianteira pessoalmente.

Elevou-se ao ar com sua aura rebr i lhando como potente ir­

radiação magnética, e todos os guardiões o viram elevar-se

como um anjo guerreiro. Plainando sobre o local do con­

fronto, sobrevoou cidades impor tantes do Oriente Próximo

enquanto rasgava os céus do planeta, r u m a n d o ao cerne da

guerra de Saddam Hussein .

Ao mesmo tempo, Watab e um grupo de guerreiros di­

rigiram-se ao cont inente nor te-americano, postando-se

lado a lado com George H. W. Bush, ocasião em que libera­

ram agentes do governo das garras de ent idades associadas

aos magos, b e m como desar t icularam sofisticados equipa­

mentos das sombras, instalados d i re tamente na Casa Bran­

ca, sede do poder es tadunidense, a fim de mante r a força

hipnótica sobre os homens daquele governo e de muitos

outros da coalizão. Mas a ação de Watab não se limitava a

esse cont inente. Ele ia e vinha n u m a velocidade alucinante,

ent re o cont inente nor te-amer icano e o palco dos confron­

tos, no Golfo Pérsico, sempre que era necessária uma atua­

ção mais decisiva e conjunta com o chefe dos guardiões.

Jamar mergulhou no cerne do conflito. Quando desceu

sobre o abrigo de Hussein, mais de 20 magos, de plantão

Page 376: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

373

ao lado do ditador, viram a luz imortal bri lhando, a emanar

potentes forças magnéticas, enquanto o guardião desem­

bainhava a espada e rasgava, com um só golpe, o campo de

força formado por magos e científicos em torno do coman­

dante iraquiano. Uma comitiva de magos elevou-se a alguns

metros do solo, emit indo vibrações intensas contra o guer­

reiro que descia em nome da política do Cordeiro. Um deles

conseguiu atingir Jamar com a irradiação poderosa e quase

fatal ao seu equilíbrio, não fosse o fato de tal golpe ter sido

desferido exatamente contra o mais capacitado chefe da se­

gurança espiritual. Jamar desviou-se para o flanco esquerdo,

enquanto duas outras ent idades o envolveram num campo

vibratório potentíssimo. O guerreiro contorceu-se, envolto

numa energia desconhecida, que cerceava seus movimen­

tos. Gargalhadas foram ouvidas ressoando no ambiente en­

quanto o guardião det inha seu voo e concentrava-se. Mais

alguns minutos de completa imobilidade e ele l i teralmente

explodiu o campo de forças, imediatamente começando a

girar, cada vez mais rápido, pegando o grupo de magos des­

prevenido. Duas entidades aparentemente especialistas em

ciência apontaram o alvo, que se l ibertara do robusto cam­

po energético, mirando nele com armas invencíveis, segun-

Page 377: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

374

do consideravam. Jamar parou o giro em torno de si mesmo,

notando que um furacão parecia varrer a base inimiga.

Enquan to isso, na Crosta, acontecia a operação que fi­

cou conhecida como Tempestade no Deserto. Duas ousa­

das emprei tadas ocorr iam s imul taneamente . Em um e ou­

tro lado da vida, acontecimentos singulares marcar iam o

f im de um per íodo sangrento de batalhas.

O guardião da noite concentrou-se mais uma vez e,

em voo rasante, z inguezagueando, despistou a arti lharia

dos científicos e pairou suavemente, como se usasse para-

quedas, logo acima das cabeças dos magos e seus aliados.

Observou com olhar a tento as ent idades que envolviam

Saddam e ficou impassível ao que ocorria, n u m t remendo

esforço de concentração. Aguardava as notícias de Pai João

e sua equipe de iniciados, que se encontravam nas regiões

inferiores do planeta, a fim de dar o golpe final. Os magos

não en tenderam a repent ina imobilidade do guerreiro. Não

suspeitavam do que sucedia mais abaixo vibrator iamente,

ent re os seus aliados no submundo, no lugar onde a guerra

era arqui te tada pelos detentores do poder na região.

Em outros recantos do mundo, guardiões especialistas

assumiam controle sobre a situação, no que tange aos lide-

Page 378: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

3 7 5

res governamentais . Nos Estados Unidos, envolviam Colin

Powell, o então militar de mais alta pa tente no Depar tamen­

to de Defesa, e o Comandante-em-Chefe General Norman

Schwarzkopt; além deles, cercavam o ministro da defesa

egípcio Mohamed Tantawi, assim como o premiê bri tânico

John Major e o rei saudita Fahd. Ao lado desses e de ou­

tros expoentes do poder temporal , grupos de 5 guardiões

foram estrategicamente posicionados, no intuito de aniqui­

lar qualquer ação dos magos dirigida a esses membros da

comunidade internacional, peças-chave no conflito em cur­

so, visando desfazer o que pudessem da es t rutura de domí­

nio hipnótico sobre eles. Do mesmo modo, guardiões cerca­

ram as famílias dos atores principais da guerra. Mohamed

Hussein Tantawi recebeu especial atenção dos guardiões,

pois, através dele, magos mais habilidosos monta ram um

aparato especial, desmantelado com dificuldade. Preten­

diam usá-lo mais in tensamente em seus planos na região.

Jamar, ainda impassível acima dos magos no escritório

de Saddam, acompanhava tudo, dando ordens aos seus ofi­

ciais, à distância, a fim de que tomassem as devidas provi­

dências e l iberassem o marechal egípcio da influência arti­

culada pelos magos. A part i r de então, t rar iam diar iamente

Page 379: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

3 7 6

o estrategista desdobrado a u m a das bases dos guardiões,

na tentat iva de explicar-lhe os lances e as implicações do

conflito que se desenrolava, e conscientizá-lo da impor tân­

cia de sua ajuda no futuro político da região. Todavia, de­

pendiam do Marechal Tantawi sintonizar-se com a propos­

ta dos guardiões.

Semíramis, acompanhada de mais 10 especialistas e al­

gumas guardiãs l ideradas por Astrid, par t i ram em direção

à Arábia Saudita, montando guarda jun to ao Rei Fahd bin

Abdul Aziz Al-Saud. Ali Semíramis reuniu suas guardiãs e

libertou o rei das amarras impostas por um grupo seleto de

magos. Desdobrando-o, ela lhe apresentou uma proposta

de reformas políticas, visando desencadear a receptivida­

de a novas interpretações da religião islâmica. Semíramis e

Astrid pessoalmente se envolveram com Fahd e sua equipe

mais próxima, na tentativa de conduzir o governo a uma vi­

são mais aberta. O resultado dessa ação, era claro para elas,

somente seria visto no futuro, a part i r de 30 anos. Mas as se­

mentes foram ali plantadas, enquanto os guardiões compe­

t iam com o grupo de magos da antiga Babilônia que monta­

vam quartel no palácio do governo. Watab, requisi tado por

Semíramis, encarregava-se pessoalmente das questões poli-

Page 380: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

377

ticas mais prementes , inspirando Sua Majestade a dar apoio

à campanha para liberar a região das forças de Saddam.

Jamar coordenava tudo, envolvido em seu campo de

energia particular. Dali, conversava menta lmente com cada

equipe disposta em vários recantos do mundo . Os magos

hesitavam, sem saber o que fazer, impotentes para atingir

o guardião.

Pai João, por sua vez, acompanhava tudo por meio da

conversa mental do guardião da noite. No cenário do pla­

neta, na Crosta, a situação geopolítica exigia providências

imediatas. Mais de 30 mil mor tos e mui to mais de 70 mil

feridos na guerra despejavam na atmosfera u m a cota ma­

ciça de ectoplasma, decorrente dos desencarnes coletivos

que ocorr iam em meio a uma atmosfera de medo, dor e so­

frimento indizíveis. Carga tóxica de proporções m o n u m e n ­

tais derramava-se na região astral. Ante essa realidade, a ci­

dade de Aruanda ent rou em ação.

Na es t ru tura psicofísica da metrópole i t inerante, havia

duas grandes torres ou antenas: uma, erguida em direção ao

alto, captava energias advindas de regiões superiores; a ou­

tra descia abaixo da superfície da cidade dos espíritos, em

direção à Terra. Ambas foram acionadas. A inferior absor-

Page 381: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

3 7 8

via o conteúdo energético de diversas regiões do Golfo, su­

gando a cota excedente de fluido vital, exsudada em razão

das mor tes violentas de milhares de vítimas. Ao se concen­

t rar o excesso de energia na base da es t ru tura da Aruanda,

evitava-se que tal recurso fosse uti l izado pelos magos como

combustível para suas atividades repulsivas. Ao mesmo

tempo, espíritos de antigos caboclos, em conjunto com os

legionários de Maria, realizavam verdadeira var redura as­

tral, dispersando, no ambiente astral, e lementos residuais

da guerra. De outro lado, equipes de espíritos socorristas

levavam grande cont ingente de seres para a periferia da

Aruanda, onde eram atendidos por pais-velhos e mães-ve-

lhas, além de índios, que auxiliavam os seres recém-desen-

carnados fazendo com que adormecessem, visando evitar

tragédias desnecessárias em nossa dimensão. Após serem

atendidos em caráter de emergência, e ram conduzidos a

outras cidades e colônias do espaço, mais capacitadas a li­

dar com indivíduos daquele perfil espiritual, os quais dei­

xavam o corpo no campo de batalha. A Aruanda não era o

dest ino final desses espíritos, mas ali e ram atendidos e le­

vados aos mares , às cascatas e florestas, a fim de reabaste­

cerem as forças nos recantos naturais da metrópole .

Page 382: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

379

Fora construída ampla rede de auxílio ent re as cidades

espirituais. Caso alguém do plano físico pudesse ver, obser­

varia naves por tentosas decolando com inúmeros espíritos

a bordo, voando em direção a outras cidades da imensida­

de, onde os desencarnados seriam mais de t idamente am­

parados. Muitos deles n e m sequer pude ram ser ajudados,

pois preferiram ficar prisioneiros nos campos de combate,

jungidos menta lmente à dor e ao sofrimento, à angústia e

à sede de vingança. Todavia, mesmo ali, jun to aos escom­

bros de guerra, comunidades foram levantadas e espíritos

benfeitores auxiliavam no resgate e na assistência a quan­

tos quisessem ajuda.

J amar coordenava tudo, menta lmente ligado a todas as

equipes, enquanto Anton dava cober tura com seu destaca­

mento de especialistas.

No momen to em que os pais-velhos aden t ra ram o

grande laboratório de experiências paracientíficas dos ma­

gos negros, encon t ra ram o hor ror es tampado no olhar de

um dos nove iniciados do passado. Pareciam hipnot izados

diante de uma câmara, onde flutuavam à sua frente figuras

representat ivas de membros do alto escalão de diversos go­

vernos mundiais .

Page 383: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

3 8 0

Uma substância gelatinosa parecia se adaptar e reves­

tir o corpo espiritual to ta lmente deformado dos seres dian­

te de nós. Um deles sobressaía aos demais. Era curvo, alto,

sem cabelos; t inha a pele to ta lmente ressequida e enruga­

da. Ni t idamente exercia um domínio fantástico sobre os

demais, que se localizavam n u m nível abaixo deste que pa­

recia ser o líder. Es t ranho man to descia sobre as costas do

ser hed iondo à nossa frente. Estremeci .

A cor dominante no ambiente era roxa, a fim de favo­

recer a concentração dos magos. Eles acreditavam estar to­

ta lmente a salvo de quaisquer invasores, e essa crença tão

forte, decer to a l imentada por boa dose de presunção, não

permit iu que percebessem de imediato nossa aproxima­

ção. Ademais, estavam sobremodo concentrados nos líde­

res mundiais , a tal ponto que tudo o mais escapava a seu

conhecimento .

O mago alfa, como chamei mais ta rde aquele que so­

bressaía aos demais, sem dúvida alguma era o chefe do

grupo. Pai João confirmou tal fato. Olhos negros sombria­

men te expressivos, po rém estáticos, davam-lhe um aspec­

to bizarro e ao mesmo tempo temível. Os globos oculares

refletiam a luz do ambiente, mui to embora não se deixas-

Page 384: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

381

sem inebriar. Apesar do aparente t ranse em que se acha­

va seu dono, aqueles olhos denotavam um processo menta l

complexo e t remendo, ao qual se agarravam com afinco o

mago e sua equipe de iniciados. A alma desse ser parecia

um oceano abismal de superlativos de hor ror — e tal rea­

lidade t ransparecia em seu olhar. Um fanatismo hediondo,

calcado no desejo de governar o mundo , jorrava na a tmos­

fera mental que absorvia o grupo, mas sobretudo da aura

do mago sobre o qual concentrávamos a atenção. Qualquer

tentat iva de expressar com exatidão o conteúdo de seu ser,

ou de descrever a força empregada para impor suas ideias

fanáticas e extravagantes seria improdutiva. Os pensamen­

tos exalados e as imagens mentais que e ram refletidas no

ambiente, como se fossem flashes ideoplásticos, falavam

por si sós acerca da degeneração daqueles espíritos e da

impossibilidade de expr imir através de qualquer vocábulo

a hediondez das intenções que al imentavam. Conectavam-

-se ent re si de tal manei ra que davam a impressão de ser

uma única inteligência.

Parte da mente dos magos, condicionada e dirigida

pelo chefe da horda, es tendeu para além de si laços men­

tais, os quais se alongavam até outros países, passando por

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3 8 2

uma dimensão invisível aos sentidos humanos . A consciên­

cia dos nove dirigia-se exclusivamente aos chefes de esta­

do e seus auxiliares mais próximos, pr incipalmente àqueles

que serviriam de modo mais direto aos planos de transfor­

mar a guerra em algo nunca antes visto pelos humanos en­

carnados; de levá-la a proporções inéditas, se não inimagi­

náveis. A vantagem que de t inham sobre os governantes era

exatamente a invisibilidade e a capacidade nada desprezí­

vel de estimular e influenciar, a part i r de sua dimensão, as

mentes que se lhes associavam, n u m processo complexo de

obsessão ou compar t i lhamento de intenções. A consciência

diabólica do mago que chefiava a quadri lha armazenava as

informações colhidas no contato parapsíquico estabeleci­

do com as autoridades dos países em foco. Enquanto isso,

comandantes de esquadras, generais, ministros de guerra e

estadistas de nações como Estados Unidos, França, Reino

Unido, Bélgica, Egito, Canadá, Paquistão e algumas outras

coligadas desempenhavam suas atividades tota lmente indu­

zidos ou hipnotizados pelos magos, que se conectavam inte­

gralmente a suas marionetes, jogando uns contra os outros,

na tentativa de fazer a guerra alastrar-se por terri tórios cada

vez mais amplos, até finalmente tomar os cinco continentes.

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3 8 3

De repente , Pai João e um grupo de iniciados de pri­

meiro grau, representantes de um alto colegiado de sacer­

dotes que c o m p u n h a a equipe proveniente da A m a n d a e de

outras cidades, dirigiram a atenção, em conjunto, ao mago

principal. O fluxo menta l dos pais-velhos, antigos sábios e

sacerdotes, pene t rou como lanças ou tentáculos na mente

a l tamente concentrada do mago negro. Um pesadelo sacu­

diu a consciência do ser demoníaco, ao perceber u m a in­

t rusão menta l em seu ambiente psíquico. O subconsciente

agitou-se e rebelou-se, mas os pais-velhos não seriam de­

movidos de seu in tento tão facilmente. Concent raram-se

mais e mais in tensamente . Verdadeira bata lha espiritual se

travava n u m a dimensão que eu desconhecia por completo.

O consórcio de mentes hediondas foi por fim rompido,

devido à pressão psíquica, n u m embate que já durava mais

de t rês horas. A tensão espiritual pareceu atingir o clímax

quando os magos começaram a gemer, agonizar, sem que

fosse in terrompido, de manei ra definitiva, o processo mór­

bido de influência à distância que exerciam sobre os líderes

internacionais.

Um dos magos, entre tanto , não supor tou a intromissão

mental levada a cabo pelos mensageiros da Aruanda. Estre-

Page 387: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

384

meceu mais que os oito res tantes e, sobressaltado, sucum­

biu, acordando do sonho-pesadelo, do estado de t ranse au-

to induzido a que se entregara jun tamen te com os demais.

Cambaleou, caiu ao chão, recobrando a consciência mui­

to len tamente e percebendo que seu reduto fora descober­

to, que havia seres poderosos interferindo em seu lúgubre

plano de dominação. A concre tude do que acontecia pare­

ceu detonar uma bomba mental no ínt imo de seu cérebro

extrafísico. O ser sucumbia à dor, uma dor indescritível. A

constatação peremptór ia de que seus planos haviam sido

descobertos e, mais ainda, de que havia representantes dos

poderosos guardiões ali, no reduto mais sagrado dos ma­

gos, lhe fez sentir como se um pedaço de metal incandes­

cente tivesse sido cravado no própr io peito. Mas não havia

como acordar os outros do t ranse a que estavam entregues.

Pai João voltou-se para o mago que rolava no chão de

pavor e dor e intensificou seu pensamento sobre ele, de

manei ra a amenizar o efeito que sentia na men te em fran­

co colapso. Tentáculos mentais apalpavam a sede da cons­

ciência do mago negro, que, incapaz de evitar a to r ren te de

pensamentos intrusos do mago branco, buscava escapar a

todo custo da força que lhe invadia o ser, rasgando-o e des-

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385

nudando-o , de forma a patentear- lhe as intenções tão aber­

tamente . Pai João concentrou ainda mais o pensamento e

conseguiu afastar o pavor e o medo que dominavam o mago

negro, que o levavam à beira da loucura. O famigerado ser

tombou definitivamente, impotente diante da força mental

que o assaltara e dobrara. Assim que o mago se prostrou,

Pai João voltou a somar-se a Vovô Rei Congo, Pai Joaquim e

os demais espíritos, altos iniciados do passado. Era noite na

esfera dos homens .

Nesse exato momento , J amar tornou a movimentar-

-se como se fosse um pião, girando em volta de si mesmo.

O movimento repent ino surpreendeu os magos. O guar­

dião desembainhou sua espada e ergueu-a no ar n u m ges­

to ameaçador. Dela saíram raios, relâmpagos, e, por algum

mecanismo ignoto, o ins t rumento do guardião da noite ras­

gou o espaço dimensional à sua frente, subi tamente engo­

lindo os temíveis magos que montavam guarda no gabinete

de Saddam. Jamar elevou-se novamente e rumou ao pelo­

tão de guardiões que guardava posição no gabinete de go­

verno nor te-americano.

Ent rementes , os pais-velhos liderados por Pai João

concentravam ainda mais a atenção nos outros magos. Estes

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386

pareciam tota lmente absortos. Os pais-velhos concentra­

vam-se progressivamente, pene t rando mais e mais em sua

mente . A comunicação do grupo do ter ror com os gover­

nantes manipulados, levada a efeito pela obstinada associa­

ção dos magos, finalmente sofreu a rup tu ra necessária, mui­

to embora os sacerdotes da destruição ainda mantivessem

estreita sintonia ent re si, auto-hipnot izados e hipnotizando,

de alguma maneira. No momento em que o elo mental se

quebrava e os principais alvos eram libertos da ligação ater­

radora, a força de coalizão atacava mais uma vez, no plano

físico. O patr iarca do grupo de magos não saberia explicar,

depois, como o consórcio mental fora invadido, como outra

união de mentes , investida de habilidades psíquicas supe­

riores às suas, se imiscuíra nessa rede de comunicação..

O mons t ro principal, o ser mais hed iondo que eu co­

nhecera até aquele momento , o principal dos magos, amea­

çou se mexer, embora não conseguisse expressar nenhum

pensamento perceptível, n e m tampouco emit ir qualquer

som. Apenas abriu quase len tamente demais os olhos ne­

gros e sombrios, que refletiam o mais obscuro dos senti­

mentos . Abriu-os sem poder en tender o que se passava ao

redor de si. Demorou um t empo dilatado até que logras-

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3 8 7

se sair do t ranse ao qual se entregara. Nesse momento , os

olhos cheios de um ter ror impossível de descrever pare ­

ciam transformar-se em fogo, n u m fogo ameaçador, po rém

impotente para queimar além da própr ia consciência. As

veias em sua cabeça calva e enrugada pareciam querer ar­

rebentar, t amanha a concentração e o nervosismo. As jugu­

lares t r emiam no pescoço e a cr ia tura infernal contorcia-

-se toda, ao perceber o que sucedera a seu precioso grupo.

De repente , ante um influxo de pensamento mais tenaz dos

pais-velhos, o ser à nossa frente imobilizou-se por comple­

to. Olhos vítreos, se eu não soubesse se t ra tar de seres fora

do corpo, poder ia ju ra r que ele estava morrendo, desencar­

nando. Não obstante, não havia como deixar de notar que

o coração da es t ranha criatura, se é que ainda possuía um

coração, batia de forma alucinante, quem sabe por sentir-se

sobrecarregado das emoções descontroladas e ensandeci­

das de seu dono.

Em de te rminado momento , quando os pais-velhos se

deram as mãos, formando uma ligação ainda mais intensa

que anter iormente , uma substância gelatinosa e cinzenta,

com rajadas negras, parecia ver ter do corpo de cada mago,

como se estivesse se derre tendo.

Page 391: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

3 8 8

— Meu Deus! — exclamei, em voz alta, n u m misto de

pavor e curiosidade...

À minha visão inexper iente de recém-chegado da di­

mensão física, era como se seus corpos se desintegrassem.

Mais tarde, soube que os magos negros rejei tam a reen­

carnação duran te séculos e até milênios, de modo que os

corpos deformados ao ex t remo são mant idos tão somente

pela força do pensamento , eventua lmente favorecido pelo

auxílio de alguns equipamentos , como era o caso daque­

la horda, em particular. Uma vez que a guer ra menta l lhes

esgotava as reservas energéticas, as células perispir i tuais

se desestabil izavam ante a força menta l dos pais-velhos,

que buscavam promover a todo custo o colapso do con­

sórcio de pensamentos das ent idades perversas. Parte da

substância semimater ia l const i tu inte de seus períspir i tos

dissolvia-se, desagregava-se peran te nossa visão espiritual.

Os magos resist iam à ação dos pais-velhos, porém, ao em­

pregar o poder menta l para defender-se ou atacar os pais-

-velhos, sucumbiam a qualquer tentat iva de conservar a

forma espiri tual .

Forte abalo sacudiu a mon tanha onde estava incrusta­

da a caverna. Muitos espíritos de vampiros, que se esguei-

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389

ravam na escuridão, caíram ao chão, à medida que os pró­

prios magos negros deixavam-se tombar, um a um, devido

à concentração mental dos pais-velhos. Um série de abalos

sacudia ainda mais for temente a montanha , no mesmo ins­

tante em que os magos se agitavam e es t remeciam no chão.

Pareciam sofrer violento ataque epiléptico; convulsiona-

vam-se em estertores. Um dos magos, após o incrível fenô­

meno que eu presenciara, abriu os olhos finalmente e, ao

divisar os representan tes da Amanda , iniciados tal como

ele, mas embaixadores de um poder superior, deu um grito

assustador, a te r rador e logo desmaiou.

Mais tarde, ao conversar com Jamar, Watab, Semíramis

e os demais para saber o que ocorrera nos outros campos

da luta em que est iveram trabalhando, não consegui t i rar

a imagem dos magos negros de minha cabeça. Fiquei por

mui tos dias impressionado e requisitei voltar ao Hospital

do Silêncio para novas sessões de magnet ismo. Precisava

me recompor. Porém, Pai João notou minha dificuldade em

absorver tantas informações e evocou para me auxiliar um

guardião que respondia pelo nome de Sete. Este conduziu-

-me aos pórt icos de A m a n d a e, em meio aos campos e à na­

tureza, fui me retemperar , aguardando o desfecho da guer-

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3 9 0

ra, que, no futuro breve, J amar me relataria. Era demais

para mim, naquele momento . Deveria es tudar muito, avan­

çar no aprendizado, mas eu s inceramente vibrava, delirava

de alegria por poder per tencer a tal grupo de pessoas, com­

promet idas com o b e m da humanidade .

Entre as estrelas da Amanda , prossegui meu aprendi­

zado, confiante de que, futuramente, quem sabe em alguns

poucos anos, pudesse compor de maneira definitiva a equipe

de guardiões ou de agentes da justiça divina. E este era um

motivo muito especial para que me dedicasse aos estudos.

Tinha a eternidade pela frente, e a A m a n d a como pátria.

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3 9 5

R A N S C O R R I D O CERTO TEMPO após ent rar em contato

com a realidade espiritual, pude notar que toda verdade

t em o lado sombra e o lado luz, e que lado sombra não sig­

nifica necessar iamente lado ruim, negativo, como se pre­

cisássemos lhe atr ibuir juízo de valor. Também descobri

que há algo que nos impele a compreender e conviver com

nosso própr io lado sombra, incita-nos a aceitar que somos

como somos, que faz par te de nós o e lemento humano , vul­

nerável, permeável , c o m u m a todos os seres. Tanto quanto

existe em nós o aspecto divino, superlativo, t ranscendente ,

com infinitas possibilidades, embora não esteja completo,

ainda. Ele requer dedicação para crescer e frutificar. Con­

tudo, desenvolver nossas habil idades divinas não implica

matar, negar ou sufocar nossa humanidade , nem mesmo

nosso lado sombra.

Foi assim que descobri um aspecto interessante. Se por

um lado os mentores , os chamados Imortais , podem ser

classificados como o que há de mais representat ivo em ma­

téria daquilo que chamamos de luz — por falta de um ter­

mo mais refinado ou preciso —, por sua vez os guardiões

s intet izam a justiça, a equidade, o fiel da balança. Portanto,

lançando mão de u m a alegoria — igualmente devido à es-

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3 9 6

cassez de vocabulário para melhor caracterizá-los —, tal­

vez possamos chamá-los de lado esquerdo de Deus.

Traçando um paralelo, a Aruanda não é somente o que

vi nos planos mais sublimes, nesse meu pr imeiro contato

com a vida além. Aruanda é t ambém a região escura, onde

os guardiões t êm seu refugio, seu campo de experiências e

de trabalho. Aruanda é t a m b é m orum, o Céu ou as regiões

mais sublimes ainda, das quais somente ouvi falar; Aruanda

é a errat ic idade para uns, o lugar mais sagrado para outros.

Pode ser, s implesmente , o paraíso sem formas, o mundo

mental , sobre-humano, onde as aparentes discordâncias, os

aparentes paradoxos se encont rem, fundam-se, unam-se ,

de tal manei ra que h u m a n o e divino façam par te de u m a só

ent idade; que luz e sombra sejam vistas com a mesma na­

tural idade, despidas da visão moralista e maniqueís ta que

elege um como b o m e out ro como ruim.

Verifiquei que estar em sintonia com o Alto não sig­

nifica obr igator iamente concordar com tudo que vem do

Alto, não implica pensar de modo idêntico, t ampouco for­

matar o cérebro, seja físico ou extrafísico, para falar o mes­

mo idioma espiritual ou professar a mesma dout r ina filo­

sófica. Há beleza na diversidade. Há uma beleza terrífica

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397

nas sombras, tanto quanto há algo de a temor izante na luz,

dependendo da cor e da intensidade que tiver, até porque

luz nem sempre significa claridade. Descobri mui tas coisas

nesse pouco t empo de vida no Além.

Mas minhas descobertas não pa ra ram por aí. Foi quan­

do me reencontre i com minha f i lha Mar ia que me dei con­

ta de que meu lugar não era ent re os anjos, n e m os santos,

n e m mesmo entre os Imortais :

— E agora, meu pai? Qual será o próximo passo? Que

fará a par t i r daqui?

— Não há mais como ficar aguardando as opor tunida­

des aparecerem. Creio, Maria, que terei de criar minhas

própr ias opor tunidades . Que tal ir comigo à universidade?

— Não poderei , meu pai. Me desculpe! Porém, t enho

de compar t i lhar algo com você.

— Não me diga que vai voltar ao m u n d o físico, isto é,

reencarnar?

— Não é isso, meu pai. Eu vou morar em out ra cidade

espiritual!

— Como assim? Por que não fica aqui, na Aruanda?

— Desde o início eu sabia que não poder ia ficar aqui.

Os adminis t radores me chamaram apenas para ajudá-lo, de

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398

alguma forma, a se sentir em casa. Mas não é aqui o meu lu­

gar. Tenho outro t ipo de aprendizado diferente do seu.

— Não sei o que dizer, Maria...

— O melhor de tudo é que poderemos nos ver, como

ocorre na Terra quando as pessoas que se amam moram em

cidades diferentes.

— Mas para que local você irá? Já sabe em qual cidade

ficará morando, aprendendo e es tudando?

— Vou para uma região mais próxima da Terra, vibra­

toriamente. Já fui visitar o local. É uma colônia, na verdade;

não uma metrópole grande como esta. Mas preciso ir para lá,

pois tenho muitos laços afetivos que preciso reatar, e as pes­

soas com quem devo conviver mais de perto, tanto quanto

as experiências que preciso vivenciar, sei que as encontrarei

por lá. Mas o seu lugar é aqui. Um dos guardiões me falou,

papai. Sabia que você seria preparado para algo importante.

— Não importante , filha, mas necessário. Prefiro pen­

sar assim. Mas se você já se decidiu, acho que devo lhe ofe­

recer apoio, como sempre. Bom, pelo menos temos carros

voadores e comboios através dos quais podemos nos lo­

comover ent re as dimensões . Não es taremos isolados, de

qualquer forma.

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399

— Além do mais, podemos nos falar cons tantemente ,

através dos aparelhos de comunicação.

Maria convidou-me a acompanhá- la até o local onde

pegaria o veículo para viajar até a cidade onde passaria a

residir. Fomos rumo a um tipo de aeroporto. Batizei-o de

astroporto, por estar no limiar das d imensões astral e espi­

ritual, p ropr iamente dita, ou d imensão mental . O lugar era

surpreendente . Via-se grande diversidade de veículos voa­

dores, alguns enormes para os padrões terrenos . Observei

desde equipamentos voadores mais simples, semelhantes

aos hel icópteros da Terra, embora sem as hélices, até ou­

tros imponentes , de formato to ta lmente diferente daque­

le que vira na cidade. O espaço onde estavam pousados era

circular. E os carros voadores não precisavam taxiar, à se­

melhança do que ocorre com os aviões na d imensão física.

Tão somente levantam voo na vertical e, depois, desl izam

na direção do local desejado. Os maiores equipamentos

de voo e ram de formato esférico, imponentes , de propor­

ções rea lmente singulares. Não soube qual a finalidade de­

les, mas com cer teza deveriam ter u m a função específica,

e e ram poucos esses gigantes da técnica astral. Vi t ambém

veículos menores , pilotados por espíri tos exper ientes e tr i-

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4 0 0

pulados por guardiões. Com estes eu já havia t ido contato

quando fomos visitar a base dos guardiões.

Tanto Maria quanto eu estávamos maravilhados com

as possibilidades técnicas dos espíritos. Decer to eu acaba­

ria descobrindo para que servia cada t ipo de veículo. Por

ora, precisava desfrutar da presença de minha filha. E foi

n u m hall mui to grande, u m a espécie de sala de embarque,

onde centenas ou até milhares de seres chegavam e par­

t iam da Amanda , que me despedi de minha f i lha , uma des­

pedida sem dor, sem sofrimento, apenas com leve quê de

melancolia ou saudosismo antecipado. Não cheguei a pen­

sar que ela se integraria aos t rabalhos apresentados a mim

pelos guardiões. Ela nem sequer part ic ipou de alguma das

visitas que f iz ou de qualquer reunião jun to comigo.

Maria tivera um papel naquilo tudo. Ela apareceu logo

no início de minha chegada e em seguida sumiu, talvez

para en t rar em contato com sua própr ia real idade espiri­

tual. No meu caso, me envolvi de tal manei ra com as no­

vas experiências que acabei não sent indo mais a saudade

imensa de Maria que sentira nos úl t imos momentos de mi­

nha vida no m u n d o físico. Eram tantas as coisas apresenta­

das a mim que a saudade em si ou foi disfarçada em meio

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401

aos acontecimentos ou, então, diluíra-se definitivamente.

Como eu sabia que minha filha e eu não estávamos mortos ,

n e m te rminan temen te separados, com efeito essa constata­

ção serviu para diluir de vez qualquer resquício de aper to

emocional. Estávamos vivos, e isso era o que importava.

Após me despedir de Maria, dirigi-me à universidade.

O prédio principal era um edifício imponente , com u m a ar­

qui te tura que lembrava bas tante um templo rosacruz em

sua fachada ou, quem sabe, os t raços egípcios. Era dota­

do de pórt icos impress ionantes e um pátio mui to maior do

que qualquer univers idade que eu conhecera na Terra. Os

demais prédios apresentavam aspecto que me remet ia aos

museus da velha Europa.

Havia mui tas cúpulas e a arqui te tura privilegiara a

const rução de vários salões e bibliotecas. O prédio central

era cercado por jardins mui to b e m cuidados e as flores que

o rnamentavam a en t rada cintilavam como pedras precio­

sas de mui tas cores. Havia estátuas dispostas como n u m

grande museu, formando extenso corredor, e fontes e cha­

farizes refrescantes, t udo com intenso movimento de pes­

soas por todo lado. De modo geral, os espíritos movimenta­

vam-se em grupos. Raramente se via alguém sozinho. A cor

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402

dominante nas construções era o dourado, embora outras

se most rassem em alguns arranjos na cidade universitária.

Sim, t ra ta-se de verdadeira cidade o complexo educacional.

Dent re os vários edifícios, escolhi aquele onde encon­

traria meus or ientadores . Logo que me aproximei do hall

de entrada, fui recebido por um dos dir igentes do local.

Novamente percorr i os olhos em der redor e me apaixonei

pelo conjunto que via. Tive a nít ida sensação de que nunca

me cansaria de observar os prédios clássicos, os quais p ro­

vavelmente exigiriam semanas a fim de serem completa­

men te conhecidos.

Ao longe, envolvendo o conjunto da obra, havia mu­

ros altos, que se es tendiam em forma de meia-lua. Sobre os

muros , man tendo considerável distância entre si, havia ob­

servadores ou atalaias, como se diz por aqui. Encarregam-

-se de noticiar quando chegam visitantes de outras cidades

ou colônias, além de organizar as diversas manifestações

dos alunos, que, de t empos em tempos, const i tuem grupos

para realizar práticas e es tudos no pátio principal .

O preceptor notou minha curiosidade e quanto me de­

liciava observando o ambiente em volta. Talvez mais para

captar minha atenção, comentou:

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403

— Ora, ora, Ângelo! Então já sabe da notícia?

— Notícia? Que notícia? Vim apenas discutir sobre o

curso intensivo. Fui informado de que deveria procurar a

direção da universidade.

— Ah! Me desculpe se interferi, adiantando a surpresa.

— Que surpresa, meu amigo? Vamos, fale! Não me mate

de curiosidade...

— Não há como matar n inguém aqui, Ângelo... Você já

morreu, lembra?

— Você me en tendeu — falei, quase mor rendo de ver­

dade. A curiosidade era meu fraco.

— Então, vamos até a recepção e logo saberá. Não que­

ro quebrar o encanto. Lá encont ra rá alguns amigos.

Desisti de perguntar alguma coisa mais. Resolvi que

iria direto ao setor responsável para discutir, se fosse o

caso, meu projeto de estudos na Amanda .

No m o m e n t o em que aden t ramos o ambiente — um

local arejado, com janelas grandes , através das quais era

possível con templa r todo o pát io da escola —, notei a p re ­

sença de alguns espír i tos que já haviam sido apresentados

a mim. Além de Jamar, estavam ali Jú l io Verne, Watab e

out ros mais.

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4 0 4

Jamar, alto, forte, cor de bronze , ficou segurando a es­

pada, um ins t rumento de alta tecnologia que ele parecia

não largar, como se estivesse o t empo todo preparado para

ent rar em ação. Seus olhos pene t ran tes fitavam ao longe ou

profundamente , como se devassassem o interior da alma da

gente. Outro guardião se encontrava ali: era Zura, dos le­

gionários de Maria, ao qual fui apresentado em seguida. A

indumentár ia do sentinela era algo que impressionava. Ele

era a imagem de um guerreiro das hostes celestiais. Um gi­

gante! Corpo maciço, acobreado, cuja aura brilhava como

um relâmpago, semelhante à de Jamar. Refulgia com a luz

que o envolvia, de manei ra que lhe percebi a elevação. As­

sim como o guardião da noite, t razia um ins t rumento em

forma de espada, que segurava apoiada no chão, descan­

sando u m a das mãos sobre ela.

Fiquei preocupado, pois não sabia que havia necessi­

dade de tantas pessoas impor tan tes assim; além do mais,

minha intenção era somente discutir meu programa de es­

tudos no curso intensivo.

— Estamos esperando por você, Ângelo. Temos novi­

dades mui to interessantes que lhe d izem respeito, pessoal­

men te — principiaram.

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4 0 5

— Não me digam que desist iram de mim?!

— Nada disso, meu amigo — falou Jamar enquanto eu

cumprimentava a todos, e me postava ao lado de Júlio Verne.

— Conversamos entre nós sobre a necessidade de você

se especializar em alguns assuntos. A tarefa que lhe cabe

requererá intenso preparo, que já começou aqui na cida­

de. No entanto, como sabe, nossa metrópole engloba outros

campos de t rabalho e laboratórios de experiência.

— Não sei aonde você quer chegar.

— Bem, você conheceu nossa base de t rabalho nas re­

giões inferiores. Podemos dizer que é u m a par te da A m a n ­

da, embora seja mais um tipo de faculdade, onde os espí­

ritos se p repa ram em regime intensivo para tarefas mais

expressivas e de terminadas . Lá, Ângelo, é onde julgamos

que você terá mais campo para aprender e aprofundar-se

em situações com as quais conviverá no futuro, e que farão

par te de seu mapa de estudos.

— Então não vou mais viver aqui na cidade?

— Bem, não é exa tamente o que pensamos, amigo —

adiantou-se um preceptor responsável pelo es tudo de filo­

sofias na universidade. — A cidade dos guardiões ou base

de apoio está sendo ampliada. Você não a reconhecerá

Page 409: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

4 0 6

quando lá chegar. Após os eventos da úl t ima guerra e do

embate contra os filhos da noite — os magos —, fez-se ne­

cessário ampliar a es t ru tura do quartel dos guardiões. Por

isso, a chamamos agora de cidade, e não somente de base.

— E de certo modo ela é uma extensão da Aruanda, em­

bora não esteja na mesma dimensão — falou Watab, olhan­

do para Júl io Verne, que pedia a palavra.

— Temos de convir que, se você se encarregará de le­

var notícias ao m u n d o dos chamados vivos sobre o que

existe além das fronteiras do romant i smo espiri tual , então

te rá de travar conta to direto com a realidade, tal qual ela é.

E nada melhor do que ficarmos jun tos n u m a região como

a que se encont ra a cidade dos guardiões — u m a espécie

de an tecâmara da Aruanda, um posto avançado em regiões

mais densas.

— Isso me preocupa — falei meio sem jeito diante da

proposta. — Já estava me acos tumando com a boa vida aqui

na metrópole.. .

— É amigo, isso aqui vicia qualquer um. Não há como

não se habi tuar com coisa boa.

— Mas temos de convir que sua tarefa, de manei ra es­

pecífica, será mui to mais abr i lhantada com u m a estrutu-

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407

ra de aprendizado ligada d i re tamente ao palco das lutas

mais ardentes que temos levado a cabo nas regiões inferio­

res. Ademais, ent re os guardiões, você contará com uma in-

fraestrutura muit íssimo especializada. E poderá visitar a

Aruanda quando quiser, além de ter aqui o seu refúgio pes­

soal, jun to ao lago, onde foi construída sua morada.

— E, não há do que reclamar. Se é assim, estou de pleno

acordo.

E falando baixinho, como se tentasse evitar que os de­

mais ouvissem, Júl io Verne comentou com outro espíri to

ali presente :

— Como se houvesse opções disponíveis...

Ignorando a observação, que para mim foi apenas um

gracejo, ousei perguntar sobre de te rminada coisa que não

ouvira n inguém mencionar, até então:

— Como me disseram que eu teria de preparar o mé­

dium com o qual devo t rabalhar no futuro, como ficará essa

aproximação? O rapaz será conduzido t ambém para as re­

giões inferiores, ao invés de vir aqui para a cidade?

— Pr imeiramente , meu amigo, é bom que saiba um

pouco mais sobre os companhei ros de t rabalho na d imen­

são física.

Page 411: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

4 0 8

— Mas não será somente com u m a pessoa, um médium,

que trabalharei?

— Bem, de maneira mais íntima, sim. E falo de intimi­

dade no sentido de compar t i lhar pensamentos e emoções

com o rapaz que lhe servirá de intérprete . No entanto, ne­

n h u m trabalho se realiza somente com um trabalhador.

Você terá de se afinar com o pequeno grupo de pessoas que

lhe servirá de apoio entre os encarnados . Trata-se dos com­

panheiros do méd ium com o qual t rabalhará; isto é, terá de

preparar a equipe também, e não apenas o médium.

— Mas não seria mais fácil o ambiente da metrópole para

que o médium fosse preparado? Cheguei a encontrá-lo aqui

algumas vezes... Talvez por aqui se sentisse mais à vontade. . . .

J amar olhou para mim de manei ra significativa, como

se estivesse pe rdendo t empo precioso. Mesmo assim, ele

prosseguiu calmo, dando-me mais detalhes:

— Ocorre o contrário, Ângelo. O rapaz que terá que

preparar para ser seu intérprete , e nosso t ambém, sente-se

mais à vontade nas regiões inferiores. Com o t empo conhe­

cerá a história dele no per íodo entre vidas e compreenderá

melhor o que lhe falo. Por outro lado, não é nada fácil des­

dobrar o méd ium e elevar a frequência do seu corpo espi-

Page 412: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

409

ritual, a fim de que se manifeste em nossa metrópole com

consciência plena ou suficiente. Esse t ipo de ação exige

enorme dispêndio de energia de nossa parte . Como ele terá

de se inscrever n u m curso regular do lado de cá da vida,

além, é claro, de part ic ipar de algumas tarefas conosco, fi­

car no plano mais próximo à Crosta é mui to mais fácil para

ele — e t ambém para nós. Afinal, ele per tence a este lugar,

ao m u n d o dos guardiões. E na escola que es t ru turamos na

zona de apoio, mais próxima à superfície do orbe, terão a

disposição não somente as matér ias e materiais para estu­

do e aprendizado, como t ambém poderão ent rar em con­

tato, na nova cidade dos guardiões, com espíri tos de longa

bagagem, no que tange às incursões a planos mais densos.

No momen to não entendi b e m o que Jamar pre ten­

dia com sua explicação, mas senti que era o melhor para

mim. Só aos poucos c larearam as coisas que antes não fa­

ziam sentido para meu espírito. Foi quando Zura prosse­

guiu com o pensamento de Jamar:

— Para quem quer se especializar, os planos mais den­

sos oferecem recursos de aprendizado que não encontra­

mos em n e n h u m a outra dimensão. O contato com zonas de

impacto e com seres mais ou menos material izados, imer-

Page 413: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

410

sos n u m a realidade próxima ao que encont ramos no mun­

do dos encarnados , evoca certa familiaridade. Verá como

seu agente no m u n d o dos escarnados, quando em desdo­

b ramen to jun to aos guardiões, guardará mais lembranças

do que entre as estrelas da Amanda .

— Mas eu poderei voltar à cidade quando quiser, para

me re temperar?

— Se você conseguir sozinho... — insinuou Watab, de

maneira ret icente. Ou seria irônica?

— O que você quer dizer com isso? — perguntei , ligei­

ramente desconfiado.

— Você descobrirá, Ângelo. Chegar à nossa cidade não

é tão fácil assim. Lembra-se de como chegou aqui? Foi tra­

zido pelos guardiões. Por Jamar, pessoalmente.

Fiquei meio ensimesmado, pensando na oferta de estu­

dos jun to aos guardiões e nas implicações de toda a propos­

ta. Afinal de contas, não teria obr igator iamente que con­

cordar de imediato, mas como havia ali seres responsáveis

e mais esclarecidos que eu...

— Está bem. Vou aceitar a proposta de es tudo na base

de apoio dos guardiões. Depois, duran te minhas tarefas por

lá, talvez en tenda melhor o que quiseram dizer. Aceito!

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411

Jamar olhou os demais com certo br i lho no olhar. Em

todo caso, ficaria mais per to dele e dos novos amigos que

f iz na Amanda . Uma vez que não perder ia minha morada

na cidade, deduzi que, à medida que o t empo passasse, po ­

deria regressar, com a ajuda de Jamar, à cidade que para

mim era como o paraíso. Se eu t inha uma tarefa pela frente,

que tudo fosse feito em função dessa tarefa.

Deixei a universidade cheio de expectativas, já que

compart i lhar ia da presença de Jamar, Watab, Zura e dos

demais guardiões de modo mais próximo e permanente .

Embora as belezas da cidade dos espíritos, segundo o que

meus amigos explicaram, a cidade dos guardiões era par­

te da Amanda , um ent reposto dos espíritos que se com­

promet iam com a humanidade , com o b e m da humanida­

de. Então, apesar da diferença marcante , tan to na paisagem

ao redor quanto na distância vibratória, se comparasse a

A m a n d a ao local onde eu residiria, veria que estávamos co­

nectados in t imamente devido aos ideais.

— Ah! Ângelo, me esqueci de lhe falar. Terá em nossa

cidade uma espécie de instrutor, que poderá auxiliar até

que você se adapte aos fluidos mais densos e ao tipo de vida

mais ou menos militar de nossa cidade. Como estamos lo-

Page 415: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

4 1 2

calizados em dimensão hostil, t emos de mante r certo rigor

no tocante ao modo de vida e aos hábitos, pois nossa cida­

de é u m a espécie de cidade universi tária e militar, onde es­

pecial izamos mui ta gente para lidar com vibrações mais

densas e pesadas ou espíritos mais inteligentes, embora em

oposição à política do Reino.

Um instrutor! Não imaginava precisar de alguém mais in­

t imamente ligado a mim, mas, considerando o tipo de fluido

com os quais deveria me habituar, até que a ideia não era tão

sem fundamento. E lá fui me despedir de Consuela, de Laura

e dos amigos que fiz neste meu primeiro momento na Aruan-

da. Quando conversava com Consuela, ela me surpreendeu:

— E pensa que vai para a cidade dos guardiões sozi­

nho? Pelo que fiquei sabendo, um grupo numeroso de es­

píritos irá jun to para formar a equipe com a qual você vai

trabalhar. E conte comigo! Toda vez que sair algum veículo

em direção às regiões mais densas, procurare i ir jun to ou

enviarei notícias de nossa humi lde morada — como sem­

pre, Consuela dramatizava.

— Que espíritos são esses? Você os conhece?

— Claro que conheço alguns, mas é u m a t u r m a muito

grande. Acho que você os conhecerá assim que chegar. Es-

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4 1 3

pero que dê tudo certo. Assim que vier se r e tempera r nos

ambientes de nossa cidade, seu lugar estará a r rumadinho,

tudo no lugar, esperando por você.

Despedi -me dos amigos, menos de Pai João, pois ele

nos guiaria até a base dos guardiões, a cidade dos sent ine­

las, localizada nas regiões mais densas. Estava ansioso para

me ver en t re o pessoal de Jamar, no local que visitara antes.

Tão logo entrei no veículo, que estava na espécie de

hangar de onde par t iam os aeróbus, en t rou u m a mulhe r

em tudo diferente de todas as outras que eu conhecera

nos pr imei ros t empos na Aruanda . Parecia mui to mais

uma pessoa encarnada do que desencarnada. Algo era di­

ferente nela. E a familiaridade com que conversava com

os guardiões indicava serem velhos conhecidos. Mais tar­

de, soube que se chamava I rmina Loyola e era um agente

dos guardiões ent re os chamados vivos. Atuava fora do cor­

po jun to aos representantes da Aruanda, em várias frentes

de trabalho. Somente mais tarde eu viria a saber que ela fa­

zia par te da equipe. Aliás, a equipe dos guardiões era mui­

to grande e contava com várias pessoas encarnadas , que,

duran te o sono físico, colocavam-se a serviço dos emissá­

rios da justiça divina. A rede de t rabalhadores em torno do

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414

planeta era algo incrível e, mais ainda, não dependia de re ­

ligião n e m de serem os envolvidos pessoas religiosas. Bas­

tava estar s intonizado com a proposta de auxiliar a huma­

nidade de manei ra intensa e genuína.

A pr imeira reunião que presenciei foi presidida pelo

espíri to Joseph Gleber, que deu início à sessão com um co­

mentár io que me abriu a mente , de manei ra inusitada, para

questões até então desconsideradas por mim. Ele fez um

convite para que eu presenciasse, j un t amen te com I rmina

e mais dois médiuns encarnados em desdobramento , al­

guns eventos relativos ao movimento espírita. Seria impor­

tante conhecer as característ icas do movimento, pois em

alguma medida me envolveria com espíri tos espíritas ou

médiuns espíritas. Pai João participava silencioso da reu­

nião, e um grupo de mais de 100 guardiões estava ali t am­

bém, demons t rando interesse no assunto.

— Com cer teza não será nada agradável para vocês

perceberem que os amigos encarnados mais envolvidos

com a renovação do pensamento e o esclarecimento espi­

ritual não são nada resolvidos entre si — falou o médico de

procedência alemã. — Por essa e outras razões, vocês preci­

sam ficar atentos, pois inicialmente enfrentarão resistência

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415

cerrada entre aqueles que dizem representar a luz do pro­

gresso espiritual. Notarão, t ambém, que, embora falem em

progresso e evolução do pensamento , meus i rmãos encar­

nados no movimento espíri ta são, de modo geral, os mais

resistentes a novas ideias e à própr ia característ ica renova­

dora e inovadora da mensagem espiritual.

Sinceramente, não entendi como pessoas que afirma­

vam divulgar ideias renovadoras e representar um movi­

mento de l ibertação pudessem, em algum nível, combater

ou ao menos contrar iar o objetivo da mensagem que di­

ziam propagar. Não tivera ainda contato mais ínt imo com

espíritas. Será que eu teria surpresas pela frente?

De qualquer forma, para mim, e quem sabe para os de­

mais espíritos ali presentes , seria ó t ima a opor tunidade

de ter contato estreito com a real idade de integrantes do

movimento com o qual l idaríamos. Tratava-se da pr imeira

aproximação direta; exper imentar ia a pr imeira impressão

do campo de t rabalho em que militaria.

Joseph Gleber deu prosseguimento à sua fala, discor­

rendo sobre a ocasião que ter íamos de observar o diálogo

entre um dir igente encarnado em desdobramento e seus

mentores . Pediu que reparássemos na dificuldade enfren-

Page 419: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

416

tada pelos espíritos responsáveis pela tarefa educativa dos

agentes encarnados ao lidar com as limitações e crenças

pessoais dos pupilos. Após a breve introdução, cont inuou:

— Os eventos que marcam o final do século xx no pla­

ne ta Terra indicam que, apesar de certas conquistas no âm­

bito dos movimentos religiosos — tanto aqueles declarada­

men te espiritualistas, que t raba lham aber tamente com a

mediunidade e a comunicação com o Invisível, quanto os

que não admi tem tal prát ica —, apesar do progresso alcan­

çado e admit ido ent re os representantes das ideias renova­

doras, no tocante a diversos campos da ciência espiritual,

ainda há mui to a ser feito, quando se considera o objetivo

de levar u m a visão nova e mais dilatada da vida além-tú-

mulo. Há mui to campo a ser desbravado e muitos mitos a

serem dissipados ou desconstruídos.

"Também se pode pensar o seguinte, a par t i r do es tudo

mais aprofundado do movimento renovador da alma huma­

na. Levando-se em conta as manifestações de religiosidade

do povo brasileiro, em particular, e as nuances que lhes são

próprias; considerando-se os avanços do movimento espí­

rita no âmbito mundia l e as ações e reações que observa­

mos no panorama interno desse movimento; tomando-se

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417

por base o re lac ionamento ent re médiuns , oradores e de­

mais e lementos que se declaram divulgadores da terceira

mensagem, chega-se a u m a conclusão inequívoca: o movi­

men to espírita está em crise. Numa crise sem precedentes .

"Os espíritas mais religiosos — que se inspiram em

homens-mitos , em indivíduos que tomam como referên­

cia de sant idade e compor tamento , quase beatificados pe­

los conceitos católicos impor tados para a prát ica espírita,

que engendram sua visão de espiri tualidade — combatem

qualquer um que ouse mostrar u m a visão mais ampla da

realidade espiritual e procure lhes alargar os hor izontes .

Outros, os que se dizem mais científicos, p r e t endem fa­

zer um espiri t ismo sem espíritos, uma quase-igreja, pal­

co de disputas, de teorias pseudocientíficas, de pre tensões

de pessoas que se acham na vanguarda das in terpretações

mais acaloradas e atuais.

"Por outro lado, aqueles que ficam no meio, que ten­

tam fazer um movimento de qualidade, estabelecendo uma

ponte entre ambos os lados, a par t i r do conhec imento de

verdades de ponta, que chegam cot id ianamente através da

mediunidade, mas que sabem serem relativas, são atacados

pelos dois outros setores."

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4 1 8

Joseph Gleber deu um tempo ao grupo reunido na ci­

dade dos guardiões, de modo a avaliarmos a na tureza do

movimento com o qual ir íamos interagir mais in tensamen­

te. Em seguida, cont inuou:

— Os mais estudiosos, aqueles que se permi t i ram ir

além das ideias cristalizadas ou meramen te reproduzidas

e mimetizadas, que ousaram ul t rapassar conceitos enges­

sados e práticas farisaicas, na medida em que p rocura ram o

pensamento evolucionário e progressista do codificador do

espirit ismo, iniciaram uma transição. Somente com mui ta

coragem e es tudo é que são capazes de avançar nas obser­

vações a respeito de outros sistemas de vida nas dimensões

mais próximas à Terra.

"É tarefa impostergável desta equipe de espíritos aqui

reunida levar ao conhec imento dos meus i rmãos encarna­

dos a realidade tal qual ela é, ou ao menos um ret ra to dela

que seja o mais fiel possível. É fundamental descortinar,

diante da visão de quem queira se aprofundar nas observa­

ções e estudos, a possibilidade de anteverem o t rabalho de

certas inteligências mais sofisticadas, embora voltadas para

u m a ética ser iamente questionável. É necessário que meus

i rmãos encarnados percebam as implicações dos chamados

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419

processos psíquicos complexos, no tocante às obsessões, e

possam ir um pouco adiante.

"Vocês terão a opor tun idade e a responsabil idade de

mapear o t rabalho de inteligências extracorpóreas em re ­

giões inferiores, na subcrosta e no grande abismo. Este ou­

sado empreend imen to espiritual será uma das maiores ta­

refas apresentadas a vocês. Mas não se enganem, pois o

fato de se fazerem porta-vozes de conhecimento mais di­

latado, ou de levarem ao m u n d o suas experiências mais ár­

duas do lado de cá, será visto como ameaça por aqueles que

se encont ram cristalizados, cujas mentes encaixotadas pa­

ra ram n u m a fase que já deveria ter sido ul trapassada. Para­

doxalmente, t e m e m pelo progresso e querem mante r o m o ­

vimento renovador estacionário."

Fiquei pensando, após as palavras de Joseph. Se, por

um lado, nós estávamos fora do corpo físico, de certa ma­

neira incólumes aos comentár ios malsãos que poder iam

advir de nosso t rabalho ou das avaliações a seu respeito,

o que seria dos nossos agentes, os médiuns e a equipe que

nos representar ia no mundo? Por certo não seria nada fá­

cil para eles. Olhei para o lado, onde se encontravam dois

de nossos amigos encarnados em desdobramento , e fiquei

Page 423: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

4 2 0

imaginando quanta coragem e determinação deveriam ter,

necessar iamente , para dar a cara a tapa em nosso lugar.

Exa tamente isso, pois ser iam eles a receber as agressões

verbais e os ataques nervosos dos opositores do progresso;

mais ainda, a estar na mira da raiva explícita daqueles que

se sent issem ameaçados com o resul tado de nossa parceria.

Respirei fundo, apreensivo quanto ao futuro de nossos ami­

gos no plano físico.

Enquanto tais pensamentos passavam em minha men­

te, o espírito amigo retomava a fala, antes de nos liberar

para observarmos certos acontecimentos importantes , a

fim de que formulássemos nossa visão acerca do contexto

espiritual com o qual ent rar íamos em contato.

— Dia após dia, surgem novos grupos, comandados

por legít imos r ep resen tan te s do progresso da human ida ­

de e do movimento espírita. Grupos formados por cientis­

tas da alma, pesquisadores de cer tas verdades , méd iuns

que se sentem na responsabil idade de desmistificar as cren­

dices a respei to do plano extrafísico, e mui tos outros , que

se e spec ia l i za ram no t r a to com os hab i t an t e s da d imen­

são extrafís ica em a lgum t ipo de a b o r d a g e m da p rob le ­

mát ica h u m a n a .

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421

"Finalmente — disse com maior ênfase —, grupos de

pessoas que represen tam organizações não espíritas, de ou­

tras filosofias e religiões, cujo t ronco não está d i re tamente

ligado à gênese do espirit ismo, desper tarão t a m b é m para

a necessidade de se un i rem n u m movimento de vanguarda

mundial , a fim de aprofundar as observações e exper imen­

tações que investigam o m u n d o invisível.

"Contudo, várias batalhas estão em curso e são trava­

das entre aqueles que deveriam representar o Cordeiro de

Deus no mundo . Embora todos estejam à procura de me­

lhores ins t rumentos e ins t rumenta l idades para serem ati­

vos colaboradores da renovação planetária, pe rdem precio­

so t empo ao brigar en t re si, d isputar posições ilusórias ante

as vistas de mui tas l ideranças e, quem sabe, esperar aplau­

so e possível beatificação da par te dos homens . Enxameiam

as pre tensões à conquista de um suposto poder e o desejo

de alguns médiuns de ser considerados missionários; gra­

ças a Deus, porém, essa pos tura não maculará a face verda­

deira da mensagem, que paira acima das manifestações hu­

manas e do própr io movimento criado pelos homens .

"Esse estado de coisas, c o m u m em agrupamentos hu­

manos — mas não esperado ent re os representantes do

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4 2 2

Cristo, embora presente ent re eles —, desper ta a atenção de

seres da oposição tanto quanto daqueles que defendem os

ideais nobres esboçados pelo espíri to Verdade. De um dos

lados, o desejo de conhecer mais profundamente as fra­

quezas dos opositores; de outro, o e m p e n h o em pesquisar,

catalogar tais fraquezas, visando dar novo fôlego ao movi­

mento, de modo a investir no lado bom de cada indivíduo."

Talvez porque estivéssemos mui to envolvidos com

a temát ica apresentada e, mais ainda, porque a situação

enunciada nas palavras do espíri to amigo diziam respeito

d i re tamente ao t rabalho que real izaríamos a par t i r de en­

tão, parece que ele compreendeu como suas palavras des­

per tavam em nós u m a emoção mui to intensa. O médico

Joseph Gleber deu por encer rada sua part icipação nes­

sa par te de nosso aprendizado, deixando que Jamar e sua

equipe nos conduzissem nos próximos passos do contato

com a realidade ínt ima de alguns t rabalhadores espíritas.

Decididamente , nosso aprendizado, nosso curso intensivo

havia começado.

Dando-nos a conhecer certas par t icular idades do am­

biente espiri tual onde nos movimentar íamos ao levar o fru­

to de nossas observações por in termédio da mediunidade,

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423

Jamar compar t i lhou conosco, através de uma projeção tr i ­

dimensional , certos arquivos dos guardiões mos t rando al­

guns poucos lances em dois momen tos e dimensões dife­

rentes. As imagens pareciam tão palpáveis que me lembro

de pensar que dificilmente saberia distinguir se era u m a

projeção ou um fato observado in loco.

— Dentro em breve a human idade se verá às voltas com

u m a crise mui to mais de o rdem espiritual, d i ferentemente

da que ocorre nestas t rês ou quatro décadas que marcam o

final deste milênio e o início do outro, a qual abala as estru­

turas sociais e econômicas do m u n d o — dizia um espírito

representan te de esferas superiores ao um amigo de traba­

lho. E a conversa ent re ambos denotava certa preocupação

com os parceiros encarnados .

— Sim, essa crise talvez anuncie e preceda aconteci­

mentos mundia is de consequências mui to graves, como

ainda não se verificou na história atual da civilização. Veja

a Guerra no Golfo, por exemplo. Não foi u m a guerra como

outra qualquer; ela representou mui to mais do que se po­

deria imaginar. Marca o início de eventos cósmicos, de al­

cance mundial . E não há como ignorar que o movimento

espiritualista precisa se erguer sobre bases de verdadeira

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4 2 4

fraternidade e dar as mãos para enfrentar momentos de­

cisivos da vida coletiva. Os representan tes do Alto ora en­

carnados talvez sejam inspirados a deixar de lado as brigas

e disputas, que só têm servido para diminuir a marcha do

progresso, que é inevitável.

— Mui tas vezes, me parece que o processo de espiri­

tual ização da hum an idade pa t roc inado pelo movimento

espíri ta dá sinais de estar em crise, pois deveria ser algo

que ocorresse com maior agilidade e com a união daque­

les que in te rpre tam a mensagem consoladora e de espiri­

tual idade no mundo . Creio que, a tualmente , o movimento

dos espíri tas d e s e m p e n h a um papel impor tan te na his tória

do mundo , mas não podemos deixar de considerar os mé­

diuns e demais figuras a tuantes desse movimento, de for­

ma particular.

— Na batalha que nos aguarda em prol da implanta­

ção definitiva do Reino 1 7 sobre a Terra, t emos de conside­

rar certas diferenças ent re os representan tes do Cristo no

mundo: espíritas, umbandis tas , esoteristas ou espiritualis­

tas, de forma abrangente . Creio que, por ora, essas part i-

17 Cf. Mt 4:23; 6:10,13; 8:12; 13:19,38; 24:14; Ap 17:12.

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4 2 5

cularidades exigem de nós maior investimento, investiga­

ções mais aprofundadas, pois as pessoas que se encon t ram

à frente do t rabalho e aquelas que seriam chamadas a part i ­

cipar mais at ivamente nesse movimento mundia l t êm f ica­

do perdidas, em meio às disputas part iculares. Lutam con­

tra fantasmas.

Um dos espíritos, mais ligado à área de educação do

espírito, compar t i lhou sua apreensão:

— Nós, os espíritos, não podemos nos furtar a essa luta.

Muitas vezes, sent imo-nos incapazes de interferir. A forma

de pensar de muitos de nossos representan tes no m u n d o é

tão diferente da nossa que eu, pessoalmente, me vejo aflito

diante da manei ra de pensar e agir daqueles que deveriam

ser nossos médiuns e parceiros.

— Sei como se sente! Muitas vezes, nossos médiuns ,

tanto quanto bom n ú m e r o de dirigentes, se sen tem ataca­

dos toda vez que enviamos recursos em forma de conheci­

mento, a fim de que se ins t rumenta l izem melhor. Ignoram

que estão no meio de u m a batalha espiri tual e querem viver

na fantasia; preferem a visão românt ica da vida espiritual,

cheia de fantasias quanto a seus mentores e à realidade. Há

de chegar o dia em que os espiritualistas, e os espíri tas em

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426

particular, reconhecerão que esse t ipo de reação não pode­

rá ser considerado sadio n e m útil para o futuro do movi­

men to renovador. Chegará a hora em que perceberão que

é necessário se p reparar com conhec imentos mais detalha­

dos e aprofundados, que queremos enviar para a esfera físi­

ca, pois precisam estar cientes das táticas dos opositores do

progresso no mundo .

Nesse m o m e n t o do diálogo, um dos amigos espirituais

se posicionou mais in tensamente :

— Ninguém se m a n t é m firme n u m a guerra de âmbi­

to mundia l e caráter espiritual, com graves consequências,

sem conhecer e mapear o terr i tór io do inimigo, sem ter

consciência das possibilidades, dos t ruques , enfim, da ca­

pacidade que este de tém. Nossos parceiros no m u n d o ve­

rão que precisam atualizar e apr imorar a metodologia de

abordagem do m u n d o extrafísico, o conhec imento e, so­

bre tudo, o compor t amen to que adotam perante aqueles ir­

mãos que pensam de manei ra diferente. Caso contrário, os

espíri tas correrão o risco de se diluir en t re as diversas sei­

tas e religiões do mundo , pe rdendo a característ ica princi­

pal, que é o caráter progressista e de revelação da doutr ina

que abraçaram.

Page 430: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

4 2 7

— Esperamos que chegue o momento em que esses di­

versos representantes da verdade relativa de ponta, que es­

tão encarnados no mundo, convivam com respeito e conside­

ração uns pelos outros. Até lá, pelo menos para nós, teremos

muito trabalho, muito esforço. Precisamos conhecer e acom­

panhar de perto a forma como se comportam os represen­

tantes do Cordeiro de Deus, a fim de darmos um impulso

novo, rumo à união de todos no ideal que deveria ser comum.

— Sei, amigo — falou um dos espíritos. — Mas se a nós

nos preocupa a situação do movimento espírita e espiri­

tualista em geral, há t a m b é m interesse por par te dos espí­

ritos representantes da oposição, pois igualmente almejam

conhecer mais de per to nossos pupilos, mapear as reações

psicológicas e as respostas de nossos parceiros, os médiuns

e demais agentes do movimento. Querem saber se eles são

rea lmente prepostos do Cristo ou s implesmente se com­

por tam como inimigos uns dos outros.

Após as imagens do diálogo ent re os embaixadores das

ideias progressistas, outras imagens foram mostradas , ago­

ra i lustrando o grupo oposto e oposicionista às ideias de es­

piri tualidade. N u m outro lugar, em outra dimensão, novo

diálogo, novas personagens:

Page 431: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

428

— Você deverá fazer u m a excursão ao acampamento

do inimigo. Esses religiosos de car te i r inha p re t endem ins­

t rumental izar-se , t en tando enfrentar-nos. Desconhecem

nossas possibilidades reais. Pensam que estamos parados

no tempo, como eles f icaram por décadas. Enquanto per­

manece ram isolados do progresso espiritual, concent rando

a atenção apenas em alguns de seus médiuns e em recei­

tas de paz, de espiri tualização e de santidade, e alçando as

questões sent imentais e emocionais ao pr imeiro plano, nós

progredimos em nossos métodos, atual izamos nossa tática.

Fiquei impress ionado ao perceber a tecnologia dos

guardiões. Não contentes em enviar um tipo de agente du­

plo à base dos inimigos do bem, dos espíri tos que faziam

oposição ao que chamamos sistema do Cordeiro, t ambém

gravaram cada palavra dita por eles — inclusive, percebía­

mos as emoções presentes no diálogo das ent idades som­

brias. Presenciar os diálogos e as emoções dessas ent idades

fez com que eu visse nossa tarefa sem n e n h u m romant is­

mo, tal qual seria: um desafio, e dos grandes.

— Eles pensam que estamos ainda na época da inqui­

sição — falava a ent idade. — Acham que es tamos com o

pensamento voltado para as questões in ternas do seu mo-

Page 432: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

429

vimento, enquanto já formamos aliados no m u n d o todo,

en t re os representan tes das nações. Estes seguidores do

Cordeiro estão parados no tempo. Sabem que o m u n d o fí­

sico progride, usam de tecnologia modes tamente avança­

da na esfera física e, ainda assim, mui tos imaginam que do

lado de cá cont inuamos com os mesmos métodos de 100

anos atrás. Esse pensamento vem bem a calhar para nossos

propósitos. Sem querer e sem saber, eles colaboram conos­

co ao defender técnicas ul trapassadas, ao combate rem en­

t re si, deixando-nos mais à vontade para agir.

— Ou, então, não agir. Pois, se ficam combatendo en­

t re si, deixam pouco serviço para nós. Se autodes t roem. E o

que é melhor: em nome da própr ia filosofia e verdade que

julgam defender.

A par t i r desse ponto da conversa ent re as inteligências

sombrias, pude en tender o que planejavam — e eu vira so­

men te uma pequena par te do véu ser levantado. Pude en­

tender, t ambém, por que aqui, na cidade dos guardiões, era

mais fácil nos ins t rui rmos acerca desses detalhes, que pos­

sivelmente n e m interessassem à maioria dos espíri tos com

os quais convivíamos na Aruanda. Aqui poder íamos ficar

mais à vontade, nos aprofundar nas observações e es tudar

Page 433: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

430

a metodologia empregada pelos seres que faziam frente ao

progresso espiritual da humanidade .

Prosseguindo na conversa, um dos espíritos interessa­

dos em minar o movimento de renovação cont inuou:

— Temos de observar de per to alguns den t re eles, que

têm despontado como representantes de u m a ciência dos

superiores. Muitos espíritos foram chamados a reencarnar

no m u n d o com o objetivo de levantar o véu da ilusão que

encobre a visão espiri tual dos dir igentes e dos defensores

da pureza. Precisamos ficar atentos, catalogar todas as in­

formações que pude rmos ter a respei to desses enviados e

de seus seguidores.

"Enquanto observamos, cont inuaremos nossa inves­

tida, nosso invest imento em escala mais ampla, mundial .

Novas l ideranças devem subir ao poder ent re os represen­

tantes das nações; novas alianças devem ser feitas entre os

políticos, pois os emissários do Cordeiro rejeitam a ideia

de se envolver na política humana . Gradat ivamente, esta­

beleceremos bases e sintonia com os homens públicos, re­

presentantes do povo. Afinal, n inguém no movimento es­

piri tualista cos tuma se preocupar em abordar as questões

espiri tuais desses líderes mundiais .

Page 434: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

4 3 1

"À medida que inspiramos disputas e dissensões entre

os defensores das ideias do Cordeiro, e duran te os conflitos

pessoais daí decorrentes , t rabalharemos em silêncio, pre­

parando o caminho para a hora do anticristo. Quando os

parceiros do Cordeiro desper ta rem para a realidade, já te ­

remos dominado mui tas mentes representativas."

Vi o ardil dos planos excêntr icos das ent idades perver­

sas. E pre tendiam mui to mais.

— Mas t ambém faremos com que nossas ideias pene­

t rem nesse movimento, e não só em nossos aliados. Envia­

remos alguns hábeis h ipnot izadores de mult idões, a fim de

defenderem nossos interesses de dent ro das fileiras desse

movimento. Queremos estabelecer alianças em todo lugar.

— E o que farei, de minha parte? Tem alguma tarefa es­

pecial para mim? — perguntou uma das entidades sombrias.

— É claro, nobre colega — respondeu o interlocutor,

dando estrondosa gargalhada. Suas unhas afiadas, como

garras, raspavam a mesa que lhe servia de suporte . — Pre­

ciso que você nos represente , fazendo apenas observações.

Quero que siga de per to as reações de alguns representan­

tes do movimento do inimigo e nos traga todas as impres­

sões. Não interfira, não gaste suas forças com eles. Aja com

Page 435: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

432

prudência , com ext rema habil idade política. Queremos

apenas mapear o movimento deles, a fim de sabotarmos,

mais tarde, qualquer plano que nos pareça ameaçador. Isto

é, queremos informações sobre as reações dos parceiros do

Cordeiro, pois aí, na hora certa, agiremos com a estratégia

mais eficaz.

Olhando significativamente para os olhos negros e fun­

dos de seu colega, disse:

— Entrego- lhe especialmente o cadastro de alguns que.

temos certeza, foram enviados com objetivos bem defini­

dos, para tarefas no mundo . Quero o máximo de sigilo, de

detalhes e de acerto em suas observações.

"As informações contidas nas fichas dos t rabalhadores

que serão investigados foram colhidas duran te anos de si­

lenciosas observações por par te dos chamados 'olhos' ou

agentes duplos. Foram mapeadas emoções, sent imentos,

reações e at i tudes desenvolvidas em cada atividade, desde

a profissional até o envolvimento social e familiar de cada

um. Essas f ichas const i tuem, na verdade, mapas mentais

muit íss imo detalhados."

Depois do diálogo ocorr ido em regiões inferiores e ig­

notas da d imensão extrafísica, o emissário da escuridão

Page 436: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

433

par t iu em direção ao m u n d o dos homens . T inha mui to o

que observar, catalogar, registrar. Por enquanto , nada mais!

Afinal, não deveria gastar tempo, por ora, combatendo os

representantes do Cordeiro. Estes estavam mui to ocupados

entre si; digladiavam, disputavam títulos e posições, aplau­

sos e reconhecimento. Muitos representantes do abismo e

das regiões inferiores poder iam tirar férias, não fossem

seus planos mais ambiciosos, em âmbito planetário. Os es­

píritas e espiritualistas, segundo entendiam, estavam n u m a

luta sem precedentes contra si mesmos; perd iam lon­

go t empo fazendo relatórios que condenavam os próprios

companhei ros de ideal; divulgavam ideias uns sobre os ou­

tros de modo que mais pareciam inimigos. E essa at i tude os

espíritos das sombras aplaudiam.

Fiquei abismado ao ent rar em contato com aquela rea­

lidade. Não teria podido sequer supor o que nos aguardava

no futuro, especialmente dent ro do própr io movimento es­

piritualista. Ao ouvir o diálogo das ent idades perversas, seu

planejamento estratégico inteligente e minucioso, fiquei a

imaginar como nossos parceiros no plano físico ser iam ata­

cados. Precisávamos rea lmente estabelecer uma frequência

mais íntima, um tipo de re lacionamento mais estreito, uma

Page 437: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

434

rede de proteção eficiente, a fim de amparar nossos agentes

encarnados quando as ideias que apresentar íamos fossem

levadas a público. Finalmente , eu começava a ter uma ideia

mais exata do que os guardiões me falaram sobre o preparo

da equipe que deveria t rabalhar em sintonia conosco.

— Diante da iminente crise de valores que ameaça os

religiosos e as religiões do mundo, incluindo os espiritua­

listas — iniciava nova cena —, faz-se urgente conhecer não

somente as armas e o potencial dos inimigos do bem, do

Reino, mas t a m b é m suas fraquezas. É preciso, além disso,

tomar ciência do que ocorre em nossas própr ias frontei­

ras, quais e lementos temos dent ro de seu per ímetro, a fim

de averiguar se podemos contar com obreiros conscientes

e munidos do conhec imento do Alto ou se devemos lidar,

ainda, com irmãos envolvidos em intrigas da política reli­

giosa, que grassou nos séculos passados. Diante de desafios

em escala cada vez maior, urge conhecer nossas forças in­

ternas, como movimento de renovação, de novos homens .

Em breve, como humanidade , t e remos de nos submeter a

provas e desafios que porão em cheque nossa pre tensa es­

piri tualidade, quando o m u n d o enfrentar os momentos di­

fíceis da transição planetária.

Page 438: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

4 3 5

"Sabemos que as provas às quais seremos submetidos

nos próximos anos deixarão para trás quaisquer outras que

o povo de Deus, os filhos do Reino t enham passado até en­

tão. As revelações a respeito das a r t imanhas da oposição,

dos espíritos das sombras, já começam a se disseminar. De

acordo com o que ouvi em conversas de ent idades que se

opõem à política do Reino, não há como negar que es tamos

em pleno campo de bata lha espiritual.

"Muita gente ainda dormi ta em meio a expressões de

boa vontade, embriagada com conceitos religiosos ultra­

passados. Contudo, somente o conhecimento amplo e ir­

restr i to das questões ligadas ao grande conflito espiritual

que está em curso — desde as armas empregadas na bata­

lha de mentes e emoções até as estratégias da guerra que se

passa nos bast idores da história h u m a n a — é que será ca­

paz de proporcionar uma visão acurada e mais precisa dos

desafios inerentes ao t empo em que vivemos.

"No aspecto subjetivo, apenas a firmeza or iunda do co­

nhec imento de nossas própr ias dificuldades íntimas tan­

to quanto de nosso potencial poderá proporcionar a vitó­

ria certa contra as ciladas do inimigo, pois, como assevera

o apóstolo dos gentios: Não temos de lutar contra a carne e

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4 3 6

o sangue, e, sim, contra os principados, contra as potestades,

contra os poderes deste mundo tenebroso, contra as forças

espirituais da maldade nas regiões celestes".18

As imagens se sucederam, e outro aspecto foi revela­

do na projeção dos guardiões. O ambiente agora era outro.

Creio que Jamar queria acabar, de u m a vez por todas, com

qualquer fantasia que al imentássemos em nosso espírito

a respeito de possíveis facilidades na tarefa pela frente. O

que vimos a par t i r dali era algo que merecia nossa reflexão;

os guardiões e aprendizes estavam todos atentos para o que

se passava em três dimensões.

— Vamos t razer nosso amigo Jaime até aqui — falou um

dos espíri tos responsáveis pela orientação do movimento

espíri ta na região. Era nada mais, nada menos do que Cí­

cero Pereira, o eminente professor que se dedicara ao mo­

vimento doutr inário. Cícero estava preocupado com a ati­

tude de Jaime em relação a um grupo espírita envolvido

na divulgação das ideias de renovação. O grupo se forma­

ra por orientação superior e fazia o possível para firmar-se,

1 8 Ef 6:12 (Todas as citações extraídas de: B Í B L I A de referência Thompson. Edição

corrigida de Almeida. São Paulo: Vida, 1995.)

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437

em sua es t ru tura energética, a fim de cumpr i r as orienta­

ções que recebia de mensageiros da dimensão invisível. O

pequeno grupo ainda teria um papel a desempenhar no

Brasil, pr incipalmente; de manei ra mais precisa, t rar ia no­

vos e lementos para que o movimento pudesse repensar sua

metodologia de t rabalho e seu compromisso com as esferas

de espiri tualização da humanidade .

Jaime, dir igente regional, f izera-se inimigo público nú­

mero um desse grupo e de alguns de seus representantes ,

em particular. Segundo víamos na projeção, ele não admi­

tia que alguém ou algum grupo pudesse obter a expressão

que o pequeno agrupamento estava conseguindo em meio

às outras casas espíritas.

— Não podemos permit i r que Jaime, que é um b o m tra­

balhador, se equivoque assim quanto aos compromissos es­

piri tuais de nossos irmãos. Nós o t raremos à nossa d imen­

são e veremos o que se pode fazer. Dialogaremos quanto

for possível, pois, sem se dar conta, combate nossos repre­

sentantes, seus irmãos.

A projeção mostrou a ação dos benfeitores duran te o

per íodo de sono do dir igente espírita. À noite, um dos es­

píri tos responsáveis dirigiu-se à cidade onde residia Jaime,

Page 441: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

438

um t rabalhador dedicado, po rém equivocado e envolvido

na política in terna do movimento espírita. Quando a equi­

pe espiritual de t rabalhadores , coordenados por Anastácia,

adentrou o ambiente da casa de Jaime a pedido de Cícero, a

situação que encont ra ram não era nada boa.

O ambiente domést ico estava repleto de criações men­

tais, que fervilhavam em torno do quar to de Jaime. Ele

dormia, mas não um sono tranquilo, pois parecia estar

mergulhado em rancor, expresso através das imagens que

c o m p u n h a m seu quadro íntimo. Anastácia, ao ver a situa­

ção, realçou a importância deste trabalhador, no que tan­

ge aos atropelos de seus desafios pessoais, íntimos, os quais

estavam definindo, mui tas vezes, suas reações no movi­

mento de que participa:

— Ja ime está envolvido em fantasias herdadas de seu

passado espiritual. Ficou preso aos conceitos de domínio e

agora amarga as imagens mentais que criou e às quais se

enredou — falou Anastácia ao outro espírito.

— Também, pudera . Segundo temos notícias do histó­

rico pessoal, Ja ime foi alguém muito ligado ao catolicismo

no passado. Parece que ele se ajustou perfei tamente ao pa­

pel de sacerdote da igreja.

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439

— É, meu amigo, temos muitos ex-católicos reencarna­

dos no movimento espírita. Por um lado isso é bom, uma

vez que t êm opor tunidade de reavaliar sua visão a respeito

de espiri tualidade; por outro lado, t r azem os resquícios do

passado para a prát ica espírita. Nesse caso, veja como Jai­

me ressuscita a velha fórmula católica de gerir os centros

espíritas. Ele não permi te nada novo, n e m qualquer coisa

que não passe pelo aval daquilo que convencionou chamar

de movimento oficial, em contraste ao conceito e r rôneo que

convencionou e que chamou de movimento paralelo.

— Não en tendo essa coisa de movimento paralelo,

Anastácia.

— Nem você, nem ninguém. Trata-se de uma invenção

de dir igentes espíritas que querem dominar o movimento,

de espíritos católicos que reencarnaram para a t rapalhar a

marcha do espiri t ismo. Qualquer pessoa ou centro espíri ta

que porventura se des taque nas pesquisas ou no t rabalho

que realiza e que não baixe a cabeça e peça bênção àqueles

que querem ditar normas aos demais, é tachado de parale­

lo. Isso é apenas política rasteira que fazem, a fim de man­

ter um status que não t êm mais e, além disso, uma posição

insustentável para a época atual.

Page 443: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

4 4 0

Ao ouvir o diálogo das ent idades que tentavam auxi­

liar Jaime, pude vis lumbrar melhor o que nos aguardava

no porvir. Não seria fácil nossa tarefa. J amar parecia saber

disso mui to bem, pois não nos poupou, n e m sequer aos mé­

diuns desdobrados, de ouvir um pouco mais.

Deixando de lado os comentár ios sobre a política de al­

guns dirigentes, os dois espíritos dirigiram-se a Jaime. Dis­

persaram as formas mentais invasivas que gravitavam no

interior do ambiente domést ico e, em seguida, Anastácia

magnet izou Jaime, com passes longitudinais lentos. À pro­

porção que o magnet ismo agia sobre o h o m e m deitado, seu

corpo espiri tual desdobrava-se na d imensão extrafísica,

com aparência bas tante diferente. Aparecia um sacerdote

católico, em toda a sua roupagem, vestido com indumentá­

ria representat iva para as convenções daquela religião.

— Meu Deus do céu! — pronunciou Nélio, assustado

com o rompante do h o m e m desdobrado.

Ja ime trazia sob o braço um exemplar de O livro dos

espíritos, de Allan Kardec — algo que não combinava com a

roupa de sacerdote.

— Olá, meu amigo! — falou Anastácia. — Aguardamos

você para uma conversa séria a respeito de nosso movi-

Page 444: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

441

mento. Mas, antes, acho que podemos modificar sua apa­

rência. O que acha?

Olhando para si mesmo, Jaime-espír i to t ambém se as­

sustou com a roupagem fluídica que trazia es tampada em

sua aparência perispiri tual . A um comando de Anastácia,

Nélio magnet izou len tamente Jaime, t en tando modificar-

-lhe a aparência ou a indumentár ia com que se apresenta­

va. Mas não conseguiu comple tamente . Alguns e lementos

pareciam resistir ao magnet ismo.

Olhando para o companheiro espiritual, Anastácia falou:

— Parece que a pos tura do sacerdote católico está tão

arraigada que, mesmo sob ação externa, não há como des­

vencilhá-lo daquilo que para ele representa u m a insígnia

de poder. Não obstante, não poder íamos deixá-lo to ta lmen­

te como estava, pois essa figura reforça em seu psiquismo

uma posição que não mais de tém e que é por demais pre­

tensiosa. Vamos levá-lo conosco.

As imagens projetadas se modificaram tota lmente . Vi­

mos outro ambiente. I rmina parecia incomodada com a si­

tuação. Talvez porque ela, ent re todos nós, era a única que

não teria n e n h u m a ligação direta com o movimento espi­

ritualista. Mas diante de um olhar significativo de um dos

Page 445: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

442

guardiões, ela se aquietou. A projeção cont inuou por mais

algum tempo.

Jaime foi conduzido pelos dois espíritos amigos a um

ambiente da dimensão extrafísica onde poderia se expressar

aos benfeitores e t ambém ouvir algo que o fizesse refletir.

— Queremos conversar um pouco com você, meu ami­

go — introduziu o companhei ro espiritual que pretendia

orientá-lo.

— Não vejo por que me t rouxeram aqui; t enho muita

coisa a fazer no movimento espírita. Mas, aproveitando a

opor tunidade, trago algumas considerações para as quais

p re tendo pedir medida urgente da par te de vocês — o ho­

m e m desdobrado fazia suas reivindicações.

Aprendi mui to nesses poucos momentos em que pre­

senciava a gravação que os guardiões exibiam. Era inte­

ressante observar a pos tura de alguém fora do corpo, ver o

modo pelo qual se expressava como espírito, e não somente

como encarnado.

— Consideramos a situação do movimento espírita e

sabemos que mui tas casas espíritas t êm surgido e se des­

tacado, buscando atuar conforme as diretr izes recebidas

de nossa d imensão — falou um dos espíritos mentores do

Page 446: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

443

movimento regional. — Segundo informações que detemos,

provenientes de planos mais superiores, nosso movimen­

to carece de urgente união, e mui tas casas, como naus n u m

oceano, precisam de apoio a fim de se sus tentarem, visando

às tarefas que lhes reserva o futuro.

— Existem mui tos que estão formando grupos fora do

movimento de unificação. Fazem um movimento paralelo

e t en tam fazer espiri t ismo de u m a forma diferente — argu­

mentou Jaime.

— Mas como pode haver unificação sem união, meu

amigo? Como pre tender que todos falem a mesma lingua­

gem quando colocam argueiros nos própr ios olhos, que

impedem de ver as própr ias limitações, a deficiência na

maneira de se comunicar com irmãos do mesmo ideal ou,

ainda, as barreiras de caráter político, a t inentes à adminis­

tração do movimento? Será que não seria hora de, ao me­

nos, escutar aqueles que você classifica como part ic ipantes

de movimento paralelo?

— Não adianta diálogo. Veja o caso da casa espír i ta

com a qual t e n h o l idado pessoa lmente . Atrevem-se a pu­

blicar livros, divulgar eventos e, a inda por cima, t ê m ga­

nhado t e r r eno e públ ico execu tando um t raba lho espir i -

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4 4 4

tual para o qual não nos ped i r am permissão, n e m sequer

nos informaram.

— Mas qual é o papel dos dirigentes do movimento es­

pírita? Seria di tar normas de conduta para os centros? É

gerir in te rnamente aqueles grupos que surgiram com uma

proposta inspirada pelo Alto, embora você mesmo confesse

não se dar ao t rabalho de conhecer tal proposta?

Ignorando o que o amigo espiritual dizia, Ja ime pros­

seguiu com seus argumentos :

— Os dirigentes dessa casa, por exemplo, não têm com­

petência para decidir a respeito de livros que devem ser

lançados em nome da Doutr ina. Estão causando confusão

e abordam assuntos polêmicos; querem divulgar o t rabalho

do méd ium deles sem que o conteúdo dos livros passem

por nosso crivo, o conselho doutr inário.

Eu não sabia que existia um conselho doutr inário. Sin­

ceramente , fiquei impressionado com a ideia apresentada

pelo dir igente encarnado.

— Mas me responda uma coisa, amigo — insistiu Anas­

tácia, interessada na conversa. — Baseados em que orien­

tação ou conselho de Kardec vocês inst i tuíram esse crivo a

que se refere, esse conselho doutr inário? Melhor, ainda: as

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445

pessoas que compõem o tal conselho foram investidas de

que autor idade para se ju lgarem em condição de definir o

que deve ou não ser publicado, divulgado ou pregado?

— Nós t emos o dever de zelar pela pu reza dout r iná­

ria! — esquivou-se Jaime, desdobrado , convicto, em meio

àquela assembleia.

— Mas você não me respondeu ainda, quer ido Jai­

me. Não encont ramos respaldo algum para as pre tensões

descabidas de arrogar-se o direito de dar a ú l t ima palavra

a respei to de qualquer assunto, o que não compete a ne­

n h u m dirigente. Você acredita rea lmente que está p res ­

tando um serviço ao movimento espíri ta com essa at i tude,

boicotando ou combatendo os t rabalhos de u m a inst i tui­

ção que faz de tudo para levar a cabo as tarefas de divulga­

ção dout r inár ia que lhe foram confiadas? Acha rea lmente

que você foi investido de algum poder político ou censor,

papel que jamais passou pelas cogitações do própr io Allan

Kardec reivindicar?

— Se nós somos os representantes legítimos do m o ­

vimento de unificação do espirit ismo, nos cabe zelar por

tudo aquilo que é difundido, pelo conteúdo dos livros, jor­

nais e revistas que as editoras publicam, e até mesmo pelo

Page 449: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

4 4 6

que é ensinado dent ro dos centros — falou Jaime, n u m tom

já nervoso.

Mais pasmo ainda fiquei. Não imaginava que, no futu­

ro, possíveis mensagens e informações que eu levasse pelo

correio ent re os dois mundos ter iam de ser submet idas a

um crivo, uma censura espiritual. Estava arrepiado com o

que ouvia. Realmente, J amar conseguira dissipar qualquer

ilusão de que a tarefa que ter íamos pela frente seria sim­

ples. Creio que o guardião percebeu que as projeções me­

xeram com a maioria de nós. Ele não prosseguiu mui to

mais com as imagens tr idimensionais; mesmo assim, ainda

ouvir íamos outro t recho do diálogo.

Respirando fundo, como que para dar um t empo até os

ânimos se acalmarem, Cícero interveio:

— Fico preocupado, meu caro Jaime, s inceramente

p reocupado com o dest ino de nosso movimento espírita.

Vejo que temos mui tas pessoas de boa vontade combaten­

do ent re si, como se fossem rivais. E falta diálogo. Pergun­

to-lhe, respei tando seu ponto de vista: quando foi que você

visitou a casa espíri ta que acusa de fazer "movimento para­

lelo"? Já conversou com os dirigentes, como amigo, como

companhe i ro de um ideal que está acima das questões po-

Page 450: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

447

líticas e administrat ivas do movimento? Já lhes deu a opor­

tun idade de se expressarem, de falarem a respeito do traba­

lho que realizam? E ainda, como dirigente do movimento

de unificação, você conhece as diretr izes do t rabalho espi­

ritual dessa casa, os projetos que nor te iam a fundação da

casa e o t rabalho dos dirigentes?

Quase emburrado , não conseguindo esconder na fisio­

nomia o desgosto de part ic ipar daquela reunião, Ja ime ex­

pressou-se, n u m rompante :

— Não t enho de conhecer nada! Eles é que t ê m de vir

até nós, em nossa sede, e marcar uma reunião conosco, sub­

metendo suas ideias a nosso Conselho. Não podem fundar

um trabalho assim, sair por aí fazendo divulgação da Dou­

tr ina sem que haja consent imento da direção do movimen­

to. Afinal — complementou, quase irado —, temos uma di­

retoria e um dever maior, que é coordenar o espiri t ismo

local, não permi t indo abusos da par te de ninguém.

Novamente foi Anastácia quem interferiu:

— Vejo que a questão não se atém meramente ao que você

falou, a respeito dos companheiros da tal instituição forma­

rem um movimento paralelo. Creio, Jaime, que você tem algo

muito malresolvido com a questão da autoridade e do poder.

Page 451: Cidade Dos Espiritos - ROBSON PINHEIRO

4 4 8

Pareceu que Anastácia tocara no ponto fraco e no cal­

canhar de Aquiles do dir igente desdobrado. Cont inuando,

ela avançou em seu raciocínio:

— Com certeza você traz na memór ia espiritual o regis­

t ro de outros tempos, nos quais liderou um grupo religio­

so; então, na atualidade, quer fazer de tudo para cont inuar

exercendo o pretendido domínio em seu círculo de ação.

— Eu não preciso ouvir t amanhas barbaridades! Sou psi­

cólogo, tenho meu título reconhecido pelo conselho e, acima

de tudo, sou legítimo representante do movimento espírita!

— e, sem considerar a elevação do espírito com quem falava,

sobrepôs sua voz, dando vazão a seu pensamento e ao orgu­

lho ferido. — Quem é você que pensa poder me influenciar

com seu pensamento antidoutrinário? O espiritismo precisa

urgentemente de pessoas que o defendam dos misticismos e

dos exageros daqueles que pre tendem macular a sã Doutri­

na. E vocês pensam que podem deter os abusos com seus ar­

gumentos fracos e sem consistência doutrinária?

As imagens cessaram por aí. J amar observou a pla­

teia de espíritos que compunha a equipe de divulgação de

novas ideias, que seria responsável por desbravar o mun­

do extrafísico de manei ra inusitada. Ele próprio, Jamar,

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um dos comandantes dos guardiões, estaria jun to daquela

equipe. Deixando-nos refletir um pouco sobre o que víra­

mos, o guardião da noite tomou a palavra:

— Acredito, meus amigos, que esta projeção dá uma

ideia b e m aproximada do que nos espera duran te os p ró­

ximos anos. Vamos deixar para trás todo sonho e ilusão.

Me pe rdoem se estou sendo tão franco, mas esta será nos­

sa realidade, de modo que cabe a vocês, a part i r de agora,

definirem-se ante a proposta apresentada pelos eminentes

espíritos que nos dirigem.

Pai João, ainda calado, olhava-nos, talvez perscru tan­

do nossos pensamentos no intuito de sentir mais de per­

to o te r reno de nossos corações. Joseph Gleber se ret i rara

para outras tarefas. O guardião deu por encer rada esta par­

te de nossas atividades. Terminava ali meu pr imeiro e mais

impactante contato com a realidade do movimento com o

qual eu desenvolveria, a par t i r daquele momento , profunda

int imidade.

Saímos do ambiente da projeção e fomos rumo ao pá­

tio. Eu pensava febrilmente sobre o que assistira. Afastei-

-me l igeiramente de meus companhei ros e me dirigi a um

chafariz no meio do enorme pátio, que era decorado com

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esmero, embora sóbrio. Notei que a base dos guardiões es­

tava rea lmente sendo ampliada. Não era mais apenas um

dos quartéis onde eles se reuniam, mas agora se assemelha­

va a u m a cidade, com construções à altura. Havia atividade

da par te dos espíri tos const rutores em r i tmo acelerado, vi­

sando ampliar aquele lugar, que, de fato, estava em franca

expansão. Olhei no entorno, percebi os fluidos ambientes e,

logo mais, Pai João se aproximou de mim, segurando-me.

Estava acompanhado por I rmina e pelo rapaz que ele pró­

prio me apresentara, na casa de Consuela.

Ainda respei tando meu momen to de reflexão, diante

dos desafios que enfrentar íamos juntos , o pai-velho olhou

para o alto, expressando talvez um quê de grat idão ou espe­

rança. Apontou silencioso uma luz que brilhava b e m alto,

apesar da densidade vibratória da região onde estávamos, e

pude sentir seu pensamento pela pr imeira vez:

— Amanda! É o que nos basta saber no momento , meus

amigos. A m a n d a é a cer teza de que não es taremos sozi­

nhos. Que vocês não estarão sozinhos; afinal, os filhos de

Pai João bambeiam, mas não caem...

Senti o car inho expresso no pensamento daquele ser

admirável. O méd ium aproximou-se de mim; Irmina, ins-

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pirada na at i tude do rapaz, t ambém se achegou. Abraçamo-

-nos os três, o lhando para a estrela que brilhava na imen­

sidão, reflexo daquele paraíso que nos abrigou. Somente

então o pai-velho comentou, rompendo o silêncio:

— Que venham as dificuldades, que venham as lutas! O

importante , meus filhos, é que pe rmaneçamos unidos. Sai­

bam que, onde vocês estiverem, estarei junto. Caso caiam,

cairei antes, ao chão me jogarei para ampará-los em meus

braços. Es taremos in t imamente ligados pelos mais sagra­

dos laços de afeto, e, embora as incompreensões naturais

ao caminho dos desbravadores, nossa fidelidade a Jesus es­

tará acima de qualquer espécie de dificuldade.

Olhando-nos com imenso car inho e, quem sabe, son­

dando nossas almas um pouco assustadas diante dos desa­

fios que nos aguardavam no porvir, complementou, esten­

dendo suas mãos n u m a bênção:

— Onde Pai João põe a mão, Deus, que é poderoso, põe

a sua bênção!...

O céu estava claro, l impo de fluidos perniciosos e con­

taminações energéticas. Embora não tão claro quanto o vis­

to da Aruanda, mas imensamente mais claro, se comparado

ao que víamos em derredor, naquela d imensão onde se lo-

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calizava a cidade dos guardiões. I luminada discre tamente

com a luz que irradiava da Amanda , que permanec ia como

uma estrela vista ao longe, um farol de dimensões mais al­

tas, e fortalecida com o pensamento dos guardiões que ali

t rabalhavam e estudavam, era mui to b o m ver aquela estân­

cia tão l impa e t ransformada n u m a cidade esplêndida, an­

tecâmara da metrópole espiritual.

J amar e Watab iniciaram um deslizar suave sobre a

nova cidade. Voavam sobre os fluidos ambientes como se

asas tivessem; pai raram como se suas asas imaginárias

b e m abertas estivessem — ou, talvez, como se planassem

de paraquedas, quase preguiçosamente , acima da cidade

dos guardiões, em seu percurso passando sobre a escola de

guardiões. Embaixo, os diversos des tacamentos das hostes

dos sentinelas da luz. Os dois guerreiros voavam, p lanando

cada vez mais baixo sobre algumas construções e, logo em

seguida, subiram o altiplano, aumen tando a velocidade len­

tamente para depois pai rarem mais acima.

Observando-os, vi que, tão logo chegaram ao topo, pa­

reciam pairar quase imóveis acima de nós, talvez medi tan­

do, perscru tando os detalhes da cidade construída n u m a

dimensão quase material , mas além das percepções huma-

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nas. Em seguida, moveram-se novamente sobre os fluidos

ambientes , modificaram a rota do seu voo e detiveram-se,

enfim, descendo lentamente , feito u m a pluma, logo acima

do ponto mais alto da montanha . Jamar apontou para bai­

xo, e logo uma mut idão de guardiões se posicionou des­

de a base da mon tanha sagrada até pouco abaixo do cume.

Uma legião de t rabalhadores , de guerreiros a serviço do

b e m da humanidade , sob a supervisão de Miguel, o prínci­

pe dos exércitos celestes. Dois pontos de luz logo surgiram;

como águias com suas poderosas asas voaram, deslocaram-

-se rumo ao local onde estacionaram os guardiões Jamar e

Watab. E ram Semíramis e Astrid, guardiãs que supervisio­

navam um des tacamento de forças femininas, t ambém sob

o comando do pr íncipe Miguel, as quais e ram especialistas

nos en t roncamentos energéticos entre a razão e a emoção.

O ba ta lhão estava a postos . E n q u a n t o J amar desem­

bainhava a espada, que rebrilhava em meio à semimatér ia

daquela d imensão do m u n d o invisível, os guardiões alça­

ram voo, todos, em conjunto, descrevendo uma coreografia

no ar para imedia tamente par t i r r umo ao planeta dos h o ­

mens , ao m u n d o dos encarnados . Como paraquedistas , pai­

ra ram os milhares de guardiões sobre a cidade erguida sob

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o patrocínio da Amanda , sob as bênçãos de pais-velhos e de

sábios de todas as nações, e então voaram com destino à di­

mensão dos filhos dos homens .

J amar e Watab, Semíramis e Astrid a tudo observavam

com as espadas erguidas; o lharam além do véu a humanida­

de, e suas almas rejubilaram porque pe rmanecer iam invisí­

veis, n u m a ter ra encravada ent re as estrelas, velando pelo

dest ino do mundo . E enquanto muitos, milhões dormiam

ou se perd iam em meio ao nevoeiro da ilusão, do maia,

mergulhados e comple tamente absortos no cenário ofere­

cido pela d imensão física, ent re a mater ia l idade e a realida­

de primitiva do m u n d o original, eles, os guardiões, t raba­

lhar iam para o m u n d o desper tar e para preservar o mesmo

m u n d o da destruição, das armadi lhas da corrupção, das in­

vestidas das forças inimigas do progresso e da evolução. Ali

estar iam eles, invisíveis, mas presentes nos gabinetes de

governos, nas regiões mais ignotas, em meio à mult idão ou

onde quer que a humanidade deles precisasse. Se porven­

tu ra os homens pudessem levantar o véu que separa as di­

mensões, veriam os espíri tos que velam por eles, os condu­

zem e os influenciam, em grau mui to maior do que sequer

poder iam imaginar.

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4 5 7

B Í B L I A de referência Thompson . Edição corrigida de Al­

meida. São Paulo: Vida, 1995.

K A R D E C . O livro dos espíritos. I a ed. esp. Rio de Janei ro :

F E B , 2005 .

P I N H E I R O . Pelo espíri to Ângelo Inácio. Amanda. 13 a ed.

rev. ampl. Contagem: Casa dos Espíritos, 2011. (Segredos

de Amanda , v. 1.)

Pelo espíri to Ângelo Inácio. A marca da besta. Con­

tagem: Casa dos Espíritos, 2010.

X A V I E R , Francisco Cândido. Pelo espírito André Luiz.

Nosso lar. 3 a ed. esp. Rio de Janeiro: F E B , 2010. (A vida no

m u n d o espiritual, v. 1.)

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R O B S O N P I N H E I R O é mineiro, filho de Everilda Batista.

Em 1989, ela escreve por in termédio de Chico Xavier: "Meu

filho, quero cont inuar meu t rabalho através de suas mãos".

É autor de mais de 30 livros, quase todos de caráter mediú­

nico, entre eles Legião, Senhores da escuridão e A marca da

besta, que compõe a trilogia O Reino das Sombras, t a m b é m

do espírito Ângelo Inácio. Fundou e dirige a Sociedade Es­

píri ta Everilda Batista desde 1992, que integra a Universi­

dade do Espíri to de Minas Gerais. Em 2008 , to rnou-se Ci­

dadão Honorár io de Belo Horizonte .

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O U T R O S L I V R O S D E R O B S O N P I N H E I R O

P E L O E S P Í R I T O Â N G E L O I N Á C I O

Tambores de Angola

Amanda

Encontro com a vida

Crepúsculo dos deuses

O fim da escuridão

O próximo minuto

T R I L O G I A O R E I N O D A S S O M B R A S

Legião: um olhar sobre o reino das sombras

Senhores da escuridão

A marca da besta

O R I E N T A D O P E L O E S P I R I T O Â N G E L O I N Á C I O

Faz parte do meu show

Corpo fechado (pelo espíri to W. Voltz)

P E L O E S P Í R I T O P A I J O Ã O D E A R U A N D A

Sabedoria de preto-velho

Pai João

Negro

P E L O E S P Í R I T O T E R E S A D E C A L C U T Á

A força eterna do amor

Pelas ruas de Calcutá

P E L O E S P Í R I T O J O S E P H G L E B E R

Medicina da alma

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Além da matéria

Consciência: em mediunidade, você precisa saber

o que está fazendo

P E L O E S P Í R I T O A L E X Z A R T H Ú

Gestação da Terra

Serenidade: uma terapia para a alma

Superando os desafios íntimos

P E L O E S P Í R I T O E S T Ê V Ã O

Apocalipse: uma interpretação espírita das profecias

Mulheres do Evangelho

P E L O E S P Í R I T O E V E R I L D A B A T I S T A

Sob a luz do luar

Os dois lados do espelho

P E L O E S P Í R I T O F R A N K L I M

Canção da esperança:

diário de um jovem que viveu com aids

O R I E N T A D O P E L O S E S P Í R I T O S

J O S E P H G L E B E R , A N D R É L U I Z E J O S É G R O S S O

Energia: novas dimensões da bioenergética humana

C O M L E O N A R D O M Õ L L E R

Os espíritos em minha vida: memórias

www.casadosespiri tos.com

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