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CIDADE E QUADRINHOS:
TRAJETÓRIAS ENTRECRUZADAS, ESPAÇOS DE PRÁTICA SOCIAL
CARLOS HENRIQUE DE CASTRO ASSIS1
As histórias em quadrinhos são um campo fértil para o historiador interessado em
dialogar com as artes gráficas, sobretudo por conta do papel social que assumem ao longo do
século XX, principalmente na imprensa, em que, junto da fotografia, corroborou para que, na
trajetória dos meios de comunicação, a imagem ocupasse papel de destaque e contribuísse
para a constituição de uma sociedade que se exprime através dela.
Nesse processo, é notável a democratização propiciada pela facilidade de acesso aos
recursos técnicos necessários para a sua produção, reprodução, manipulação e divulgação, de
modo que, atualmente, essa produção se avoluma numa velocidade tão grande que a
sensibilidade do historiador leitor de quadrinhos é crucial para a escolha das publicações com
os quais deseja trabalhar. Além da quantidade, a disponibilidade desse tipo de fonte é grande,
uma vez que, mesmo títulos antigos não precisam mais ser “garimpados” em sebos e gibitecas
(exceto nos casos em que se busca analisar a materialidade da publicação ou as propagandas
veiculadas entre as histórias ou nas segundas, terceiras e quartas capas), por serem
republicados com frequência em edições voltadas para colecionadores e, principalmente, pelo
trabalho de fãs que, estabelecendo verdadeiras redes de compartilhamento de material,
digitalizam e disponibilizam gratuitamente publicações de todos os gêneros e épocas na
internet, resultando num montante de material que engrossa a extensa lista de lançamentos e
publicações periódicas comercializados em bancas, lojas especializadas, livrarias e sites.
Segundo Hobsbawn,
“(...) já não compreendemos o atual dilúvio criativo que inunda o globo de imagens,
sons e palavras, nem sabemos lidar com ele, dilúvio que quase certamente se tornará
incontrolável tanto no espaço como no ciberespaço.” (HOBSBAWN, 2013: 15)
Porém, longe de nos interessar controlá-lo, assim como acreditamos não ser o interesse
de Hobsbawn, ou mesmo de compreender a totalidade dessa produção, tarefa impossível para
1 Mestrando em História Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. O presente trabalho foi realizado
com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES.
2
o historiador debruçado sobre fontes produzidas em uma era de reprodutibilidade técnica e
destinada a atender ao mercado global, o desafio, inicialmente, está em escolher a publicação
ou a produção de algum artista ou grupo que possibilite estabelecer um “diálogo disciplinado
com as evidências” (THOMPSON, 1981: 50). Não queremos dizer com isso que algumas
HQs2 são mais adequadas do que outras para serem usadas como fonte pelos historiadores,
mas sim que as motivações que levam o historiador a escolher determinada publicação e
ignorar outras carrega uma intencionalidade acompanhada de questões que cabem para
determinado título ou produção, enquanto, para outros, se mostra inadequada.
Observando a divulgação de parte das pesquisas sobre histórias em quadrinhos no
Brasil (RODRIGUES, 2013: 6-23), percebe-se que o desafio de se aventurar entre a colossal e
incessante produção de HQs, elegendo fontes e problematizando-as, tem sido cada vez mais
aceito, e, diminuída a desconfiança de puristas em reconhecer a viabilidade da utilização
desse tipo de fonte, o número de historiadores interessados em dialogar com essa linguagem
tende a aumentar, cabendo a nós a tarefa de compartilhar nossas trajetórias no manuseio
dessas fontes, possibilitando discussões profícuas para o avanço de um repertório teórico-
metodológico adequado.
Algumas obras, reflexões propostas em artigos e experiências compartilhadas estão
sendo fundamentais para o andamento da nossa pesquisa. Considerando a vinculação das
histórias em quadrinhos com a imprensa, tivemos contato com o artigo Na oficina do
historiador: conversas sobre história e imprensa (CRUZ; PEIXOTO, 2007: 253-270), no
qual são propostos direcionamentos valiosos para os historiadores que fazem da imprensa seu
objeto de análise. Esse artigo, junto ao compartilhamento das experiências de uma de suas
autoras, orientadora da nossa pesquisa, sugeriu caminhos teórico-metodológicos para
analisarmos as histórias em quadrinhos publicadas entre os anos de 1988 e 1991, na revista
Hellblazer.
Primeiramente, descartamos uma abordagem na qual as HQs aparecessem “como
objetos mortos, descolados das tramas históricas nas quais se constituem” (CRUZ;
PEIXOTO, 2007: 256), e buscamos sua historicidade entendendo-as como prática social
capaz de produzir força sobre as tensões estabelecidas em determinada conjuntura. Nessa
2 Utilizamos HQs como plural de história em quadrinhos e HQ como singular.
3
etapa, em que procurávamos compreender a constituição do comic book3 como tipo de
publicação característico das histórias em quadrinhos estadunidenses, sobretudo do gênero
super-herói, a cidade emergiu como categoria essencial para a nossa análise. Buscar a
historicidade das HQs revelou a dupla relação que a cidade mantém com esse tipo de
publicação: suas trajetórias se relacionam de maneira dialética, de modo que uma participa da
constituição da outra, assemelhando-se, inclusive, como linguagem e como espaço para a
narrativa, que vai além dela, revelando sujeitos, práticas, sensibilidades e tensões da vida
urbana.
Partindo da percepção dessa dupla relação estabelecida entre a cidade e as histórias em
quadrinhos, compartilhamos, no presente artigo, algumas possibilidades de análise nas quais
suas trajetórias e linguagens se entrecruzam. Dadas as especificidades de nosso objeto de
análise, restringimos essa abordagem aos seguintes aspectos: formação do mercado de
histórias em quadrinhos estabelecido em torno dos comic books do gênero super-herói;
semelhanças encontradas em ambas as linguagens, uma vez que a cidade também é imagem e,
como tal, se coloca diante daquele que a observa. Quanto à cidade como temática, optamos
por analisar dois números da revista Hellblazer em que a cidade extrapola o seu papel de
cenário para a narrativa, revelando práticas sociais, sujeitos e tensões presentes na conjuntura
da segunda metade da década de 1980, na cidade de Londres.
A cidade de Nova Iorque e os comic books do gênero super-herói
A constituição do mercado de histórias em quadrinhos estadunidenses foi
impulsionada a partir do final da década de 1930 com o surgimento de histórias do gênero
super-herói, publicadas inicialmente nas revistas Action Comics e Detective Comics, nas quais
estrearam, respectivamente, Superman, em 1938, e Batman, em 1939. Entretanto, a escolha do
comic book como formato editorial ideal para esse tipo de publicação bem como as condições
que o tornaram produto viável para um negócio com lucro incerto estão diretamente ligadas às
práticas sociais e à dinâmica da cidade de Nova Iorque nas primeiras décadas do século XX.
3 No Brasil, revista em quadrinhos ou gibi. Tipo de publicação periódica, distribuída inicialmente em bancas de jornal, com lombada canoa e grampeada.
4
Marcada por relações sociais complexas, Nova Iorque era uma cidade que servia de
destino para imigrantes de diversas partes da Europa, sobretudo aos judeus que fugiam dos
pogroms realizados no leste europeu. Em pouco tempo, esses imigrantes recém-chegados
estabeleceram redes de ajuda mútua e passaram a viver em um mesmo bairro, compartilhando
oportunidades de emprego, organizando escolas, nas quais o inglês era ensinado aos seus
filhos, e tornando-se pequenos comerciantes ou trabalhadores da indústria têxtil. A partir da
formação dessas redes de imigrantes estabelecidas em áreas de Nova Iorque, como Lower
East Side, Glenville e Bronx, deu-se início às relações e práticas que, posteriormente
originariam a criação dos gibis de super-heróis e do mercado que se formou em torno deles.
“(...) todos da mesma geração, conhecidos entre si, todos garotos judeus, filhos de
imigrantes, muitos à margem de suas próprias comunidades. (...) Em busca de uns
trocados fáceis, uma novidade espetacular e um pouco de alívio para seus anseios
solitários, inventaram uma forma de cultura que foi como uma revelação para
crianças de todas as classes sociais e etnias (...) ajudaram a moldar a cultura geek,
estabeleceram o padrão de franquia para o entretenimento, criaram uma fantasia
pronta para ser vendida à cultura do narcisismo de consumo.” (JONES, 2006: 19)
Vivendo em cortiços, muitas famílias judias eram forçadas a permitir que seus filhos
deixassem a escola e passassem a buscar na rua o complemento da renda familiar, proveniente
de biscates. Diferente de seus pais, essa geração de garotos passou a explorar a paisagem
urbana e os territórios ocupados por outros imigrantes (irlandeses, eslavos, alemães e
italianos), marcados por práticas distintas das do gueto em que viviam. Muitos ingressaram
em gangues, outros se tornaram anunciadores4, compradores de produtos em baixa
(posteriormente vendidos por altos preços) e vendedores de jornais.
“A indústria de jornais dependia muito de meninos de 9, 10 ou 11 anos que
estivessem dispostos a abrir caminho pela cidade, anunciando jornais e ganhando 1
dólar por dia. O apelo emocional dos jovens jornaleiros, alegres e destemidos, que
apareciam nas tiras de quadrinhos da época, era um esforço para manter o
sentimento público do lado da indústria quando os reformadores propuseram que as
4 Garotos contratados para anunciar um produto, promoções ou promover uma loja pela cidade.
5
leis contra o trabalho infantil incluíssem também a venda de jornais.” (JONES,
2006: 35)
Como destacado, a indústria de jornais, buscando ver seus interesses atendidos,
incorporou a imagem do garoto jornaleiro às tiras publicadas nos jornais. A intertextualidade
presente nesse episódio é emblemática se considerarmos que muitas pessoas ligadas à
indústria gráfica e às artes gráficas nos anos que se seguiram eram judeus que, em suas
infâncias, vivenciaram essa prática e se viram retratados como tais nas tiras impressas. Will
Eisner foi um desses garotos.
“Para ganhar dinheiro, Billy vendia jornais em Manhattan. Seu local preferido era a
frente do edifício que ficava na Wall Street, nº 37. Anos depois ele viria a ter um
escritório no mesmo prédio. (...) O emprego dos jornais valeu a Eisner suas
primeiras lições de negócios. Havia concorrência aberta pelos melhores pontos de
venda, e a pessoa que tivesse o melhor ponto geralmente era o concorrente maior e
mais forte. Billy montava sua banquinha, mas aí era expulso por um garoto que
podia lhe dar uma surra. Billy trocava de local até que outro garoto maior surgisse.”
(SCHUMACHER, 2013: 23-24)
Harry Donenfeld e Jack Liebowitz, proprietários da DC Comics à época em que essa,
ao publicar Action Comics nº 1, inaugurou o gênero super-herói, também construíram suas
carreiras explorando as possibilidades de negócios lícitos e ilícitos praticados nos territórios
de Nova Iorque. Enquanto Donenfeld, desde muito jovem desbravando as ruas da cidade
como anunciador ou vendedor de jornais, aproveitou-se do relacionamento que mantinha com
pessoas ligadas à máfia para distribuir o material que imprimia com seus irmãos e, em
contrapartida, trazia bebida do Canadá nos carregamentos de papel, burlando a Lei Seca e
ampliando seus lucros e o de seus parceiros, Liebowitz, também judeu, associou o estudo e a
carreira de contador às facilidades que seus contatos, feitos na época em que trabalhou para o
sindicato de trabalhadores da indústria têxtil, lhe proporcionaram.
Na outra ponta da nascente indústria de quadrinhos estavam jovens desenhistas e
escritores responsáveis pelo processo criativo das histórias. A mesma Nova Iorque que se
revelou como possibilitadora de negócios aos ambiciosos homens que assumiram a indústria
6
gráfica na primeira metade do século XX proporcionou o material que serviu de “gatilho”
criativo para que esses jovens artistas criassem os comic books de super-heróis.
Antes da crise econômica, a cidade de Nova Iorque vivia um período de euforia
consumista. O american way of live impulsionava as pessoas a adquirir produtos que
prometiam otimizar o tempo gasto nas tarefas cotidianas, que ofereciam conforto e
comodidade e que também fossem capazes de evidenciar algum traço que destacasse a
individualidade do consumidor, transmitindo a ideia de que esse pertencia a um grupo que o
diferenciava da maioria. Esses signos de modernidade e pertencimento direcionaram as
ambições e os desejos dos indivíduos, de modo que surgiram nas bancas de jornal grandes
quantidades de títulos sobre os mais variados assuntos e estes objetivavam atender à demanda
de diversos públicos.
Entre as famílias em que as economias do mês permitiam algum lazer, era comum, vez
ou outra, uma ida ao cinema e a aquisição de revistas. Alguns poucos filhos de imigrantes,
quase sempre o caçula de uma grande família, que foram poupados do trabalho na infância em
decorrência do bem-sucedido negócio de seus pais, passaram a fazer parte de uma geração
que, desde cedo, teve a possibilidade de dividir o tempo do seu dia entre a escola e as leituras
diversas, o cinema, os desenhos e a fantasia que cada uma dessas atividades sugeria. Entre
esses jovens leitores, revistas pulp5, especialmente as de ficção científica, como a precursora
Amazing Stories6, ganharam uma enorme popularidade, aproximando seus leitores por meio
de uma sessão de cartas que os colocou em contato direto com os editores, fortalecendo o
interesse deles pelo tema e resultando em encontros e na produção de artigos e textos
publicados nas revistas que liam, e em revistas que eles mesmos haviam criado.
“Para os povos do norte europeu, tão puritanos, o caos da vida moderna, a
mobilidade e o anonimato, aliados a uma solidão essencial, eram demais. E seus
filhos cresciam em pequenas famílias nucleares e passavam mais tempo do que
nunca sozinhos e dentro de casa. Um número cada vez maior de jovens precisou
buscar contatos e um sentido que, em outra época, a vida providenciava de forma
quase automática.” (JONES, 2006: 59)
5 Revistas publicadas no início do século XX em papel de baixa qualidade. Os temas recorrentes de suas histórias eram o noir, a fantasia e a ficção científica. 6 Lançada em 1926, a Amazing Stories era publicada por Hugo Gernsback, inventor e entusiasta da tecnologia. Em suas páginas surgiu, pela primeira vez, o termo cientificação, antecessor de ficção científica.
7
Os criadores do Superman, Jerry Siegel e Joe Shuster, foram dois dos garotos que
pertenceram a essa geração de jovens imigrantes que participaram de práticas até então
distantes de um grande número de crianças e jovens, levando-os a compartilhar ideias
surgidas a partir da leitura das histórias de ficção científica de revistas pulp, da
correspondência que trocavam com outros leitores e dos filmes mudos a que assistiam,
resultando na criação de um gênero de histórias em quadrinhos que somava à realidade toda a
fantasia colhida nesses meios. Essa síntese transformada no Superman é “a essência da
identidade dos Estados Unidos. Esta identidade está inequivocamente ligada a valores. Isto é,
tudo que corresponde à altivez, à virtude, à força e à responsabilidade entre tantas construções
discursivas.” (MARANGONI, 2006: 13)
O comic book, escolhido como modelo de publicação ideal para o recém-criado gênero
de HQs, foi uma solução editorial inspirada na bem-sucedida publicação das revistas pulp e
nas girlie magazines7, bem como de práticas e atividades consideradas ilegais mas essenciais
para o sucesso do negócio, de maneira que as complexas relações sociais constitutivas desse
mercado são, na verdade, reflexo de aspectos constitutivos da própria cidade de Nova Iorque e
dos sujeitos que nela se organizaram em torno de interesses comuns ou a eles se opuseram,
fazendo do comic book e do mercado que se formou em torno dele uma síntese da vida urbana
estadunidense, mais eficaz do que aquela representada em suas páginas na figura do super-
herói.
A imagem da cidade, sua linguagem e as HQs
As histórias em quadrinhos do gênero super-herói publicadas em comic books pela
indústria estadunidense de HQs possuem características que as aproximam da definição de
arte temporal, a qual Kevin Lynch emprega para definir o design de uma cidade. Segundo ele,
“O design de uma cidade é (...) uma arte temporal, mas raramente pode usar as
sequências controladas e limitadas de outras artes temporais, como a música, por
7 Revistas com histórias de conteúdo levemente erótico ou sensual, nas quais as capas tinham mulheres pintadas em poses sensuais, vestidas com roupas decotadas e exibindo partes do corpo.
8
exemplo. Em ocasiões diferentes e para pessoas diferentes, as sequências são
invertidas, interrompidas, abandonadas e atravessadas.” (LYNCH, 2006: 1)
Da mesma maneira que as cidades, as HQs da indústria e os gêneros citados são
“construções” temporais, uma vez que, ao longo da trajetória de um título ou personagem,
sujeitos interferem no processo constitutivo dessas publicações, em diferentes conjunturas.
Criadas periodicamente por meio de um processo negociado e por vezes marcado por
tensões em que responsáveis pelo processo criativo, em diálogo com publishers e executivos,
leitores e demandas mercadológicas, redefinem o universo ficcional de um personagem ou o
inserem em outro; modificam seu uniforme, sua identidade secreta, o invento que resultou no
surgimento dos seus poderes etc.; constroem arcos de histórias nos quais um personagem
direcionado a leitores juvenis apresenta-se de modo que agrade a leitores mais velhos e, se
tudo isso não for suficiente, as editoras fazem um “reboot8” em todo o universo de seus
personagens.
Como se vê, as HQs de super-heróis, compreendidas como uma arte característica dos
séculos XX e XXI, servindo inclusive de matriz para os saltos transmidiáticos que seus
personagens têm dado e consolidando-os como signos para diversas gerações, são
constituídas, assim como as cidades, “em ocasiões diferentes e para pessoas diferentes”, tendo
suas sequências “invertidas, interrompidas, abandonadas e atravessadas” (LYNCH, 2006: 1) e
fazendo com que uma dada publicação ou um dado personagem seja rememorado como
aquele escrito por determinado roteirista ou desenhado por certo desenhista, como, por
exemplo, se costuma dizer entre os leitores: “o Batman de Frank Miller”, “os X-Men de Grant
Morrison” ou “o Constantine de Garth Ennis”. Essa maneira de rememorar os quadrinhos
aproxima-se do modo como a memória evoca a cidade: “a São Paulo do meu tempo”, “a Belo
Horizonte da minha infância”, ou ainda mais próxima, “a São Paulo de Ramos de Azevedo”
ou “a Brasília de Oscar de Niemeyer”. Em todos esses casos, evoca-se mais do que a imagem
da cidade ou das HQs. Evoca-se um passado vivido, uma prática, uma experiência cristalizada
em imagem, seja aquela apreendida pelo leitor ou pelo observador do entorno urbano que o
envolve.
8 Reinicialização de uma série televisiva, cinematográfica, literária ou quadrinizada, em que serão mantidos apenas os conceitos e elementos básicos.
9
Outro aspecto que aproxima cidade e HQs como imagem e linguagem é que:
“A cada instante, há mais do que o olho pode ver, mais do que o ouvido pode
perceber, um cenário ou uma paisagem esperando para serem explorados. Nada é
vivenciado em si mesmo, mas sempre em relação aos seus arredores, às sequências
de elementos que a ele conduzem, à lembrança de experiências passadas.” (LYNCH,
2006: 1)
Henry-Pierre Jeudy (205: 103) diz que “a configuração interna de uma cidade só pode
ser apreendida como um todo de maneira abstrata”, e que adotar um ponto de vista é, também,
constituir um ponto cego de percepção. Portanto, a cidade se expande e diminui, revelando-se
grandiosa ou diminuta perante aquele que, diante dela, dirige seu olhar e confronta suas
experiências com aquilo que vê.
A cidade proporciona uma experiência imagética, podendo revelar-se como imagem
diante daqueles que por ela transitam, impondo-se como tal diante da urgência cotidiana que
leva seus cidadãos e hóspedes a percorrerem seus caminhos, sejam eles terrestres, aéreos ou
fluviais, ou, então, aqueles que por ela transitaram, revelando-se como imagem evocada pela
memória e, portanto, constituída por meio de um diálogo permanente entre aquilo que foi
experienciado no passado com as experiências vividas no presente.
Como afirmado por Lynch, tudo é vivenciado em relação aos seus arredores,
conduzindo, também, a experiências passadas, o que reforça nosso entendimento de que a
apreensão da imagem da cidade não se dá pela observação de um recorte imagético do todo,
mas da apreensão dos “quadros” imagéticos que o antecedem e o sucedem. No caso da cidade
rememorada, os “quadros” que antecedem a sequência são aqueles experienciados em outro
tempo.
Uma leitura da cidade feita a partir da compreensão de uma sequência de imagens
mais uma vez aproxima a cidade das HQs. A narrativa gráfica que compõe as HQs tem como
condição primordial as imagens sequenciadas. Através dos quadros, controla-se tempo e
movimento de maneira que as páginas são usadas como suporte para sequências, sendo o
último quadro usado, muitas vezes, para criar no leitor o suspense de algo a ser revelado na
página seguinte. Diferente do espectador do cinema, o leitor de quadrinhos tem controle sobre
10
o tempo que deseja permanecer em cada quadro, bem como sobre os saltos que faz durante a
leitura, por exemplo, iniciando a leitura de uma página pelo último quadro, o que pode fazê-lo
correr os olhos até o primeiro quadro em busca das causas da ação revelada no último quadro
ou, então, lançá-lo para a página seguinte em busca daquilo que está suspenso na sequência
que conclui nessa outra página. Como acontece com o leitor das imagens da cidade, o leitor
dos quadrinhos depende dos arredores, das “sequências de elementos”, sendo, também,
possuidor da mesma liberdade daquele que percorre a cidade, resultando em modos singulares
de apreensão das sequências que narram por meio de imagens a cidade observada ou a história
impressa em um comic book.
As imagens que compõem a narrativa gráfica de uma HQ também tendem a se
expandir ou diminuir, de maneira semelhante à que acontece com aquele que percorre e
apreende as imagens da cidade. As experiências de autores e desenhistas, compartilhadas nas
histórias publicadas, quando percebidas tendem a expandir os significados e as experiências
de leitura e da relação com a imagem.
Como destacado por Lynch, cada cidadão tem vastas associações com alguma parte de
sua cidade, e a imagem de cada um está impregnada de lembranças e significados. Assim,
tanto leitores como roteiristas e desenhistas constituem e são constituídos pela cidade, o que
significa dizer que o processo criativo e a experiência da leitura das HQs permeiam a relação
que cada indivíduo constrói permanentemente com a cidade em que vive, pela qual passa ou
rememora.
A cidade como tema em Hellblazer nº 3 e nº 9, 1988
A revista Hellblazer foi uma publicação icônica da renovação pela qual passaram os
quadrinhos estadunidenses nas décadas de 1980 e 1990. Parte das mudanças que caracteriza
as principais publicações dessas duas décadas é atribuída ao grupo de roteiristas e desenhistas
britânicos que assumiram títulos da editora DC Comics. Eles inovaram as temáticas ou a
maneira como eram abordados temas e personagens desgastados, que vinham provocando
queda nas vendas e nas tiragens. Esse “time” de artistas britânicos fez uso de novos elementos
narrativos, ampliando as possibilidades da linguagem dos quadrinhos. Publicação longeva,
Hellblazer motivou a criação, no ano de 1993, do selo Vertigo, responsável por agrupar em
11
torno dele os títulos da editora destinados ao público leitor adulto, com histórias que
envolvem temáticas sobrenaturais, de terror, horror, violência, tensão psicológica e fantasia.
Hellblazer foi o principal título do selo até o encerramento da revista na edição nº 300, em
fevereiro de 2013. Dentre as muitas histórias publicadas nesses números, a cidade surge, na
maioria delas, não apenas como cenário para narrativa, como veremos nos dois casos a
seguir.
Em Hellblazer nº 3, a história intitulada “Correndo atrás” se passa em 11 de junho de
1987, na cidade de Londres. É dia de eleição, Margareth Thatcher é candidata à reeleição pela
segunda vez e John Constantine, o protagonista, está na cidade para investigar o assassinato
de yuppies.
Logo no término do prólogo, em quatro páginas, o leitor é inserido no debate político
presente na Londres de 1987, por meio de um cartaz fixado na esquina em que jaz um jovem
yuppie que estava em decadência (figura 1). Na página seguinte, Constantine percorre as ruas
de um bairro não revelado e acentua a pobreza que o caracteriza, evidenciando-a nos
recordatórios9 até parar em uma esquina com outro cartaz fixado, mas este, diferente do
anterior, em prol dos trabalhistas (figura 2). Podemos notar como Jamie Delano e John
Ridgway, roteirista e desenhista, constroem uma narrativa em segundo plano, narrada por
meio das imagens da cidade, nas quais ficam evidenciadas, por meio das interferências que
cada um dos cartazes sofreu, as tensões, disputas e pluralidades que constituem a cidade.
Intenção reforçada pela capa do artista plástico britânico Dave McKean.
9 O mesmo que caixa de textos.
12
(Figura 1 - DELLANO, 2011: 76)
(Figura 2 - DELLANO, 2011: 77)
A capa criada por Dave McKean (figura 3) retrata Thatcher como uma figura
demoníaca, com dentes proeminentes e pontiagudos, olhos arregalados, estáticos e vermelhos,
tendo sobre o rosto a inscrição 666, símbolo da besta do Apocalipse, do anticristo ou do
demônio, segundo a cosmogonia cristã. Considerar a exposição dessa capa em bancas de
jornal e lojas especializadas ao redor do mundo por um mês, dada a periodicidade da
publicação, nos faz considerá-la uma provocação capaz de atingir não só o leitor de
quadrinhos, mas todo aquele capaz de identificar na imagem a figura de Thatcher ou,
simplesmente, de um demônio. A figura demoníaca amplia a crítica uma vez que se constitui
13
no imaginário popular em oposição aos valores cristãos e, em extensão, daquilo que está
associado ao bem ou o representa. Thatcher por si só, sem ser retratada com aspecto
demoníaco, também se opõe aos interesses da classe trabalhadora e a imagem de Marx, fixada
no alambrado acima da representação de Thatcher, reforça essa ideia. McKean representa
Thatcher como o contrário do bem e dos interesses dos trabalhadores, levando às bancas de
jornal, impresso em um gibi produzido pela indústria de quadrinhos estadunidenses, um perfil
de vilão “real” bem diferente daqueles que, costumeiramente, apareceram em capas do
Capitão América e Superman, como Hitler, Hirohito ou um soviético, por exemplo.
(Figura 3 – Detalhe da capa de Hellblazer, nº 3, 1988)
Em “Jogado no inferno”, publicada em Hellblazer nº 9, Constantine caminha pelas
ruas de Londres. Mais uma vez esse recurso é usado por Jamie Delano para revelar problemas
urbanos de ordem social. Na primeira sequência de quadros, em três páginas, o protagonista
presencia uma briga de casais que acaba com um homicídio, uma moradora de rua que o
aborda e uma prostituta que o chama de veado por ele não dar atenção a ela – esse mesmo
quadro revela um homem embriagado escorado nas escadas de acesso a um prédio. Em todo o
seu percurso rumo ao bar, é mostrado em segundo plano, às vezes em quadro único, um
guindaste que lança uma bola de demolição contra prédios, pondo-os abaixo.
Atormentado por fantasmas e a ponto de acabar com a própria vida, Constantine se
abriga em um prédio abandonado e, enquanto fuma um cigarro, é interpelado por um
14
fantasma que é ele mesmo, só que mais jovem. Ao se retirar do quadro, a bola de demolição
põe abaixo o prédio em que ele estava, encerrando a história.
“Jogado no inferno” não narra algum acontecimento essencial para a trama iniciada
em números anteriores e concluída nos subsequentes, porém, como percebemos em outros
números com histórias one-shot10, Delano utiliza esses intervalos dados entre arcos de
histórias para retomar temáticas presentes em seus roteiros, como os problemas sociais, a
crítica à cidade e ao capital, a percepção negativa do presente e uma projeção pessimista do
futuro.
Ao percorrer as ruas, John Constantine vai deixando para trás prédios que vão sendo
demolidos. Presente ao longo de toda a história, a bola de demolição que coloca abaixo partes
da cidade possibilita, segundo nossa observação e análise, três possibilidades de leitura. As
duas primeiras são aquelas diretamente ligadas à trajetória do personagem. Assustado com as
mazelas sociais que presencia e atormentado pelos fantasmas de pessoas que morreram por
sua culpa, de forma direta ou indireta, Constantine percorre a cidade em busca de um lugar
onde possa se desvencilhar de tudo isso, desejando “soterrar” o que ficou para trás. Também
podemos considerar a “destruição” que ele causa por onde passa, por isso os prédios
destruídos são sempre aqueles pelos quais o personagem passou. A terceira possibilidade de
análise é aquela que extrapola os recursos narrativos construídos em torno da figura de
Constantine e penetram na conjuntura da Londres da década de 1980.
Londres, assim como as demais cidades britânicas, passou por mudanças baseadas no
programa político de Margareth Thatcher, caracterizado pela diminuição do setor público e
ampliação do privado, pelo combate ao sindicalismo e pela criação de uma comissão de
auditoria encarregada de supervisionar os governos locais, resultando em relatórios que
apontavam a necessidade de melhorias em determinados serviços e, consequentemente, a sua
posterior privatização.
“Os governos locais foram também pressionados a vender a maior parte das
unidades habitacionais públicas de aluguel; a oferta de habitação para faixas da
população de baixa renda passou a se dar por intermédio das Housing Associations,
10 Em tradução livre "um-tiro". São histórias não seriadas, de leitura rápida, com início e fim na mesma edição, mas publicadas em títulos periódicos, que, comumente, trazem histórias continuadas em edições subsequentes. Costumeiramente, são publicadas depois do fim de um arco de histórias e antes do início de um novo.
15
associações de capital público e privado. No campo da urbanização foram criadas as
Urban Development Corporations – UDC’s – dirigidas por empresas imobiliárias,
possuindo a competência de receber financiamentos públicos e adquirir terrenos com
mais facilidade do que os próprios governos locais.” (LEVY, 1997: 84)
Tais medidas urbanísticas, no decorrer dos anos 1980, resultaram em facilidade de
acesso ao crédito e em incentivo para a aquisição de imóveis, porém, sem empregos e salários
condizentes com as dívidas contraídas, a situação dos londrinos de classes média e baixa se
agravou.
“Depois da grande venda de habitações públicas de aluguel, para os grupos mais
bem aquinhoados, os investimentos públicos diminuíram consideravelmente. As
políticas de ampliação de crédito para faixas de rendimento médios e baixos
acabaram atraindo um grande número de famílias. Com o aumento dos juros e a
simultânea contração do mercado de trabalho, no final dos anos 80, muitas famílias
não conseguiam mais amortizar suas dívidas. Com o mercado imobiliário em baixa,
a níveis somente equiparáveis ao imediato pós-guerra, as famílias que não
conseguiam vender seu imóvel perderam-no.
A soma dos processos que tiveram origem no mercado de trabalho e nas políticas
governamentais elevou o nível de pobreza em Londres. Depois de décadas
reaparareceu o fenômeno dos sem-teto (homeless) e da mendicância.
Assim também se elevou o nível de violência. (...) entre 1971 e 1989 os casos de
violência reportados à polícia quase dobram, enquanto a população decresceu para
Londres como um todo.” (LEVY, 1997: 97)
Como é possível perceber, o thatcherismo foi responsável por implementar políticas
urbanas que beneficiaram a iniciativa privada em detrimento dos cidadãos de média e baixa
renda, intensificando as distinções entre as classes sociais e produzindo um cenário urbano
marcado pela violência, miséria, presença ostensiva da polícia e a desocupação de moradias e
áreas da cidade. É essa a cidade representada em diversos números de Hellblazer. No caso do
número 9, o título “Jogado no inferno” é um indicativo da maneira como Delano percebe as
mudanças pelas quais a cidade passava no final da década de 1980, sobretudo por John
Constantine não percorrer nenhum locus metafísico, como as instâncias infernais ou o
ciberespaço visitado em outros números da publicação, destacando o real. Nesse caso, o
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inferno é a Londres revelada ao leitor que acompanha Constantine em seu vagar de lugar a
lugar da cidade, desnudando os problemas urbanos apontados acima. Os prédios vazios
colocados abaixo pela bola de demolição, subentendidamente, estão desabitados por causa das
dívidas contraídas pelas famílias desempregadas ou que recebem baixos salários, de modo que
demoli-los e erguer em seu lugar novos empreendimentos mais convidativos aos interesses
privados é o melhor a ser feito do ponto de vista do mercado imobiliário.
Ambas as histórias possibilitam perceber como as HQs constituem-se, assim como a
cidade, em espaços de prática social, evidenciando
“(...) relações sociais instituídas na cidade, o entendimento de modos de viver, de
morar, de lutar, de trabalhar e de se divertir dos moradores que, com suas ações,
estão impregnando e constituindo a cultura urbana. Assim agindo, esses moradores
deixam registradas ou vão imprimindo suas marcas no decorrer do tempo histórico,
marcas que traduzem a maneira como se relacionaram ou construíram seus modos
de vide neste cotidiano urbano.” (FENELON, 2000: 6)
Perceber essas marcas e registros, considerando-os resultantes das diversas práticas
que fazem parte de nossos modos de vida, e que caracterizam nossa cultura, exige do
historiador atento à vida urbana do século XX e XXI considerar, em sua análise, os muitos
espaços de luta que se estabelecem frente às pretensões hegemônicas de cada época. Sendo as
HQs um desses espaços, compreendê-las como espaço de prática e, portanto, de luta, é
fundamental para rompermos a leitura equivocada de que os quadrinhos são mero instrumento
de pretensões hegemônicas ou de representação do real.
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