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CIDADE E QUADRINHOS: TRAJETÓRIAS ENTRECRUZADAS, ESPAÇOS DE PRÁTICA SOCIAL CARLOS HENRIQUE DE CASTRO ASSIS 1 As histórias em quadrinhos são um campo fértil para o historiador interessado em dialogar com as artes gráficas, sobretudo por conta do papel social que assumem ao longo do século XX, principalmente na imprensa, em que, junto da fotografia, corroborou para que, na trajetória dos meios de comunicação, a imagem ocupasse papel de destaque e contribuísse para a constituição de uma sociedade que se exprime através dela. Nesse processo, é notável a democratização propiciada pela facilidade de acesso aos recursos técnicos necessários para a sua produção, reprodução, manipulação e divulgação, de modo que, atualmente, essa produção se avoluma numa velocidade tão grande que a sensibilidade do historiador leitor de quadrinhos é crucial para a escolha das publicações com os quais deseja trabalhar. Além da quantidade, a disponibilidade desse tipo de fonte é grande, uma vez que, mesmo títulos antigos não precisam mais ser “garimpados” em sebos e gibitecas (exceto nos casos em que se busca analisar a materialidade da publicação ou as propagandas veiculadas entre as histórias ou nas segundas, terceiras e quartas capas), por serem republicados com frequência em edições voltadas para colecionadores e, principalmente, pelo trabalho de fãs que, estabelecendo verdadeiras redes de compartilhamento de material, digitalizam e disponibilizam gratuitamente publicações de todos os gêneros e épocas na internet, resultando num montante de material que engrossa a extensa lista de lançamentos e publicações periódicas comercializados em bancas, lojas especializadas, livrarias e sites. Segundo Hobsbawn, “(...) já não compreendemos o atual dilúvio criativo que inunda o globo de imagens, sons e palavras, nem sabemos lidar com ele, dilúvio que quase certamente se tornará incontrolável tanto no espaço como no ciberespaço.” (HOBSBAWN, 2013: 15) Porém, longe de nos interessar controlá-lo, assim como acreditamos não ser o interesse de Hobsbawn, ou mesmo de compreender a totalidade dessa produção, tarefa impossível para 1 Mestrando em História Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES.

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CIDADE E QUADRINHOS:

TRAJETÓRIAS ENTRECRUZADAS, ESPAÇOS DE PRÁTICA SOCIAL

CARLOS HENRIQUE DE CASTRO ASSIS1

As histórias em quadrinhos são um campo fértil para o historiador interessado em

dialogar com as artes gráficas, sobretudo por conta do papel social que assumem ao longo do

século XX, principalmente na imprensa, em que, junto da fotografia, corroborou para que, na

trajetória dos meios de comunicação, a imagem ocupasse papel de destaque e contribuísse

para a constituição de uma sociedade que se exprime através dela.

Nesse processo, é notável a democratização propiciada pela facilidade de acesso aos

recursos técnicos necessários para a sua produção, reprodução, manipulação e divulgação, de

modo que, atualmente, essa produção se avoluma numa velocidade tão grande que a

sensibilidade do historiador leitor de quadrinhos é crucial para a escolha das publicações com

os quais deseja trabalhar. Além da quantidade, a disponibilidade desse tipo de fonte é grande,

uma vez que, mesmo títulos antigos não precisam mais ser “garimpados” em sebos e gibitecas

(exceto nos casos em que se busca analisar a materialidade da publicação ou as propagandas

veiculadas entre as histórias ou nas segundas, terceiras e quartas capas), por serem

republicados com frequência em edições voltadas para colecionadores e, principalmente, pelo

trabalho de fãs que, estabelecendo verdadeiras redes de compartilhamento de material,

digitalizam e disponibilizam gratuitamente publicações de todos os gêneros e épocas na

internet, resultando num montante de material que engrossa a extensa lista de lançamentos e

publicações periódicas comercializados em bancas, lojas especializadas, livrarias e sites.

Segundo Hobsbawn,

“(...) já não compreendemos o atual dilúvio criativo que inunda o globo de imagens,

sons e palavras, nem sabemos lidar com ele, dilúvio que quase certamente se tornará

incontrolável tanto no espaço como no ciberespaço.” (HOBSBAWN, 2013: 15)

Porém, longe de nos interessar controlá-lo, assim como acreditamos não ser o interesse

de Hobsbawn, ou mesmo de compreender a totalidade dessa produção, tarefa impossível para

1 Mestrando em História Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. O presente trabalho foi realizado

com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES.

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o historiador debruçado sobre fontes produzidas em uma era de reprodutibilidade técnica e

destinada a atender ao mercado global, o desafio, inicialmente, está em escolher a publicação

ou a produção de algum artista ou grupo que possibilite estabelecer um “diálogo disciplinado

com as evidências” (THOMPSON, 1981: 50). Não queremos dizer com isso que algumas

HQs2 são mais adequadas do que outras para serem usadas como fonte pelos historiadores,

mas sim que as motivações que levam o historiador a escolher determinada publicação e

ignorar outras carrega uma intencionalidade acompanhada de questões que cabem para

determinado título ou produção, enquanto, para outros, se mostra inadequada.

Observando a divulgação de parte das pesquisas sobre histórias em quadrinhos no

Brasil (RODRIGUES, 2013: 6-23), percebe-se que o desafio de se aventurar entre a colossal e

incessante produção de HQs, elegendo fontes e problematizando-as, tem sido cada vez mais

aceito, e, diminuída a desconfiança de puristas em reconhecer a viabilidade da utilização

desse tipo de fonte, o número de historiadores interessados em dialogar com essa linguagem

tende a aumentar, cabendo a nós a tarefa de compartilhar nossas trajetórias no manuseio

dessas fontes, possibilitando discussões profícuas para o avanço de um repertório teórico-

metodológico adequado.

Algumas obras, reflexões propostas em artigos e experiências compartilhadas estão

sendo fundamentais para o andamento da nossa pesquisa. Considerando a vinculação das

histórias em quadrinhos com a imprensa, tivemos contato com o artigo Na oficina do

historiador: conversas sobre história e imprensa (CRUZ; PEIXOTO, 2007: 253-270), no

qual são propostos direcionamentos valiosos para os historiadores que fazem da imprensa seu

objeto de análise. Esse artigo, junto ao compartilhamento das experiências de uma de suas

autoras, orientadora da nossa pesquisa, sugeriu caminhos teórico-metodológicos para

analisarmos as histórias em quadrinhos publicadas entre os anos de 1988 e 1991, na revista

Hellblazer.

Primeiramente, descartamos uma abordagem na qual as HQs aparecessem “como

objetos mortos, descolados das tramas históricas nas quais se constituem” (CRUZ;

PEIXOTO, 2007: 256), e buscamos sua historicidade entendendo-as como prática social

capaz de produzir força sobre as tensões estabelecidas em determinada conjuntura. Nessa

2 Utilizamos HQs como plural de história em quadrinhos e HQ como singular.

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etapa, em que procurávamos compreender a constituição do comic book3 como tipo de

publicação característico das histórias em quadrinhos estadunidenses, sobretudo do gênero

super-herói, a cidade emergiu como categoria essencial para a nossa análise. Buscar a

historicidade das HQs revelou a dupla relação que a cidade mantém com esse tipo de

publicação: suas trajetórias se relacionam de maneira dialética, de modo que uma participa da

constituição da outra, assemelhando-se, inclusive, como linguagem e como espaço para a

narrativa, que vai além dela, revelando sujeitos, práticas, sensibilidades e tensões da vida

urbana.

Partindo da percepção dessa dupla relação estabelecida entre a cidade e as histórias em

quadrinhos, compartilhamos, no presente artigo, algumas possibilidades de análise nas quais

suas trajetórias e linguagens se entrecruzam. Dadas as especificidades de nosso objeto de

análise, restringimos essa abordagem aos seguintes aspectos: formação do mercado de

histórias em quadrinhos estabelecido em torno dos comic books do gênero super-herói;

semelhanças encontradas em ambas as linguagens, uma vez que a cidade também é imagem e,

como tal, se coloca diante daquele que a observa. Quanto à cidade como temática, optamos

por analisar dois números da revista Hellblazer em que a cidade extrapola o seu papel de

cenário para a narrativa, revelando práticas sociais, sujeitos e tensões presentes na conjuntura

da segunda metade da década de 1980, na cidade de Londres.

A cidade de Nova Iorque e os comic books do gênero super-herói

A constituição do mercado de histórias em quadrinhos estadunidenses foi

impulsionada a partir do final da década de 1930 com o surgimento de histórias do gênero

super-herói, publicadas inicialmente nas revistas Action Comics e Detective Comics, nas quais

estrearam, respectivamente, Superman, em 1938, e Batman, em 1939. Entretanto, a escolha do

comic book como formato editorial ideal para esse tipo de publicação bem como as condições

que o tornaram produto viável para um negócio com lucro incerto estão diretamente ligadas às

práticas sociais e à dinâmica da cidade de Nova Iorque nas primeiras décadas do século XX.

3 No Brasil, revista em quadrinhos ou gibi. Tipo de publicação periódica, distribuída inicialmente em bancas de jornal, com lombada canoa e grampeada.

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Marcada por relações sociais complexas, Nova Iorque era uma cidade que servia de

destino para imigrantes de diversas partes da Europa, sobretudo aos judeus que fugiam dos

pogroms realizados no leste europeu. Em pouco tempo, esses imigrantes recém-chegados

estabeleceram redes de ajuda mútua e passaram a viver em um mesmo bairro, compartilhando

oportunidades de emprego, organizando escolas, nas quais o inglês era ensinado aos seus

filhos, e tornando-se pequenos comerciantes ou trabalhadores da indústria têxtil. A partir da

formação dessas redes de imigrantes estabelecidas em áreas de Nova Iorque, como Lower

East Side, Glenville e Bronx, deu-se início às relações e práticas que, posteriormente

originariam a criação dos gibis de super-heróis e do mercado que se formou em torno deles.

“(...) todos da mesma geração, conhecidos entre si, todos garotos judeus, filhos de

imigrantes, muitos à margem de suas próprias comunidades. (...) Em busca de uns

trocados fáceis, uma novidade espetacular e um pouco de alívio para seus anseios

solitários, inventaram uma forma de cultura que foi como uma revelação para

crianças de todas as classes sociais e etnias (...) ajudaram a moldar a cultura geek,

estabeleceram o padrão de franquia para o entretenimento, criaram uma fantasia

pronta para ser vendida à cultura do narcisismo de consumo.” (JONES, 2006: 19)

Vivendo em cortiços, muitas famílias judias eram forçadas a permitir que seus filhos

deixassem a escola e passassem a buscar na rua o complemento da renda familiar, proveniente

de biscates. Diferente de seus pais, essa geração de garotos passou a explorar a paisagem

urbana e os territórios ocupados por outros imigrantes (irlandeses, eslavos, alemães e

italianos), marcados por práticas distintas das do gueto em que viviam. Muitos ingressaram

em gangues, outros se tornaram anunciadores4, compradores de produtos em baixa

(posteriormente vendidos por altos preços) e vendedores de jornais.

“A indústria de jornais dependia muito de meninos de 9, 10 ou 11 anos que

estivessem dispostos a abrir caminho pela cidade, anunciando jornais e ganhando 1

dólar por dia. O apelo emocional dos jovens jornaleiros, alegres e destemidos, que

apareciam nas tiras de quadrinhos da época, era um esforço para manter o

sentimento público do lado da indústria quando os reformadores propuseram que as

4 Garotos contratados para anunciar um produto, promoções ou promover uma loja pela cidade.

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leis contra o trabalho infantil incluíssem também a venda de jornais.” (JONES,

2006: 35)

Como destacado, a indústria de jornais, buscando ver seus interesses atendidos,

incorporou a imagem do garoto jornaleiro às tiras publicadas nos jornais. A intertextualidade

presente nesse episódio é emblemática se considerarmos que muitas pessoas ligadas à

indústria gráfica e às artes gráficas nos anos que se seguiram eram judeus que, em suas

infâncias, vivenciaram essa prática e se viram retratados como tais nas tiras impressas. Will

Eisner foi um desses garotos.

“Para ganhar dinheiro, Billy vendia jornais em Manhattan. Seu local preferido era a

frente do edifício que ficava na Wall Street, nº 37. Anos depois ele viria a ter um

escritório no mesmo prédio. (...) O emprego dos jornais valeu a Eisner suas

primeiras lições de negócios. Havia concorrência aberta pelos melhores pontos de

venda, e a pessoa que tivesse o melhor ponto geralmente era o concorrente maior e

mais forte. Billy montava sua banquinha, mas aí era expulso por um garoto que

podia lhe dar uma surra. Billy trocava de local até que outro garoto maior surgisse.”

(SCHUMACHER, 2013: 23-24)

Harry Donenfeld e Jack Liebowitz, proprietários da DC Comics à época em que essa,

ao publicar Action Comics nº 1, inaugurou o gênero super-herói, também construíram suas

carreiras explorando as possibilidades de negócios lícitos e ilícitos praticados nos territórios

de Nova Iorque. Enquanto Donenfeld, desde muito jovem desbravando as ruas da cidade

como anunciador ou vendedor de jornais, aproveitou-se do relacionamento que mantinha com

pessoas ligadas à máfia para distribuir o material que imprimia com seus irmãos e, em

contrapartida, trazia bebida do Canadá nos carregamentos de papel, burlando a Lei Seca e

ampliando seus lucros e o de seus parceiros, Liebowitz, também judeu, associou o estudo e a

carreira de contador às facilidades que seus contatos, feitos na época em que trabalhou para o

sindicato de trabalhadores da indústria têxtil, lhe proporcionaram.

Na outra ponta da nascente indústria de quadrinhos estavam jovens desenhistas e

escritores responsáveis pelo processo criativo das histórias. A mesma Nova Iorque que se

revelou como possibilitadora de negócios aos ambiciosos homens que assumiram a indústria

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gráfica na primeira metade do século XX proporcionou o material que serviu de “gatilho”

criativo para que esses jovens artistas criassem os comic books de super-heróis.

Antes da crise econômica, a cidade de Nova Iorque vivia um período de euforia

consumista. O american way of live impulsionava as pessoas a adquirir produtos que

prometiam otimizar o tempo gasto nas tarefas cotidianas, que ofereciam conforto e

comodidade e que também fossem capazes de evidenciar algum traço que destacasse a

individualidade do consumidor, transmitindo a ideia de que esse pertencia a um grupo que o

diferenciava da maioria. Esses signos de modernidade e pertencimento direcionaram as

ambições e os desejos dos indivíduos, de modo que surgiram nas bancas de jornal grandes

quantidades de títulos sobre os mais variados assuntos e estes objetivavam atender à demanda

de diversos públicos.

Entre as famílias em que as economias do mês permitiam algum lazer, era comum, vez

ou outra, uma ida ao cinema e a aquisição de revistas. Alguns poucos filhos de imigrantes,

quase sempre o caçula de uma grande família, que foram poupados do trabalho na infância em

decorrência do bem-sucedido negócio de seus pais, passaram a fazer parte de uma geração

que, desde cedo, teve a possibilidade de dividir o tempo do seu dia entre a escola e as leituras

diversas, o cinema, os desenhos e a fantasia que cada uma dessas atividades sugeria. Entre

esses jovens leitores, revistas pulp5, especialmente as de ficção científica, como a precursora

Amazing Stories6, ganharam uma enorme popularidade, aproximando seus leitores por meio

de uma sessão de cartas que os colocou em contato direto com os editores, fortalecendo o

interesse deles pelo tema e resultando em encontros e na produção de artigos e textos

publicados nas revistas que liam, e em revistas que eles mesmos haviam criado.

“Para os povos do norte europeu, tão puritanos, o caos da vida moderna, a

mobilidade e o anonimato, aliados a uma solidão essencial, eram demais. E seus

filhos cresciam em pequenas famílias nucleares e passavam mais tempo do que

nunca sozinhos e dentro de casa. Um número cada vez maior de jovens precisou

buscar contatos e um sentido que, em outra época, a vida providenciava de forma

quase automática.” (JONES, 2006: 59)

5 Revistas publicadas no início do século XX em papel de baixa qualidade. Os temas recorrentes de suas histórias eram o noir, a fantasia e a ficção científica. 6 Lançada em 1926, a Amazing Stories era publicada por Hugo Gernsback, inventor e entusiasta da tecnologia. Em suas páginas surgiu, pela primeira vez, o termo cientificação, antecessor de ficção científica.

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Os criadores do Superman, Jerry Siegel e Joe Shuster, foram dois dos garotos que

pertenceram a essa geração de jovens imigrantes que participaram de práticas até então

distantes de um grande número de crianças e jovens, levando-os a compartilhar ideias

surgidas a partir da leitura das histórias de ficção científica de revistas pulp, da

correspondência que trocavam com outros leitores e dos filmes mudos a que assistiam,

resultando na criação de um gênero de histórias em quadrinhos que somava à realidade toda a

fantasia colhida nesses meios. Essa síntese transformada no Superman é “a essência da

identidade dos Estados Unidos. Esta identidade está inequivocamente ligada a valores. Isto é,

tudo que corresponde à altivez, à virtude, à força e à responsabilidade entre tantas construções

discursivas.” (MARANGONI, 2006: 13)

O comic book, escolhido como modelo de publicação ideal para o recém-criado gênero

de HQs, foi uma solução editorial inspirada na bem-sucedida publicação das revistas pulp e

nas girlie magazines7, bem como de práticas e atividades consideradas ilegais mas essenciais

para o sucesso do negócio, de maneira que as complexas relações sociais constitutivas desse

mercado são, na verdade, reflexo de aspectos constitutivos da própria cidade de Nova Iorque e

dos sujeitos que nela se organizaram em torno de interesses comuns ou a eles se opuseram,

fazendo do comic book e do mercado que se formou em torno dele uma síntese da vida urbana

estadunidense, mais eficaz do que aquela representada em suas páginas na figura do super-

herói.

A imagem da cidade, sua linguagem e as HQs

As histórias em quadrinhos do gênero super-herói publicadas em comic books pela

indústria estadunidense de HQs possuem características que as aproximam da definição de

arte temporal, a qual Kevin Lynch emprega para definir o design de uma cidade. Segundo ele,

“O design de uma cidade é (...) uma arte temporal, mas raramente pode usar as

sequências controladas e limitadas de outras artes temporais, como a música, por

7 Revistas com histórias de conteúdo levemente erótico ou sensual, nas quais as capas tinham mulheres pintadas em poses sensuais, vestidas com roupas decotadas e exibindo partes do corpo.

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exemplo. Em ocasiões diferentes e para pessoas diferentes, as sequências são

invertidas, interrompidas, abandonadas e atravessadas.” (LYNCH, 2006: 1)

Da mesma maneira que as cidades, as HQs da indústria e os gêneros citados são

“construções” temporais, uma vez que, ao longo da trajetória de um título ou personagem,

sujeitos interferem no processo constitutivo dessas publicações, em diferentes conjunturas.

Criadas periodicamente por meio de um processo negociado e por vezes marcado por

tensões em que responsáveis pelo processo criativo, em diálogo com publishers e executivos,

leitores e demandas mercadológicas, redefinem o universo ficcional de um personagem ou o

inserem em outro; modificam seu uniforme, sua identidade secreta, o invento que resultou no

surgimento dos seus poderes etc.; constroem arcos de histórias nos quais um personagem

direcionado a leitores juvenis apresenta-se de modo que agrade a leitores mais velhos e, se

tudo isso não for suficiente, as editoras fazem um “reboot8” em todo o universo de seus

personagens.

Como se vê, as HQs de super-heróis, compreendidas como uma arte característica dos

séculos XX e XXI, servindo inclusive de matriz para os saltos transmidiáticos que seus

personagens têm dado e consolidando-os como signos para diversas gerações, são

constituídas, assim como as cidades, “em ocasiões diferentes e para pessoas diferentes”, tendo

suas sequências “invertidas, interrompidas, abandonadas e atravessadas” (LYNCH, 2006: 1) e

fazendo com que uma dada publicação ou um dado personagem seja rememorado como

aquele escrito por determinado roteirista ou desenhado por certo desenhista, como, por

exemplo, se costuma dizer entre os leitores: “o Batman de Frank Miller”, “os X-Men de Grant

Morrison” ou “o Constantine de Garth Ennis”. Essa maneira de rememorar os quadrinhos

aproxima-se do modo como a memória evoca a cidade: “a São Paulo do meu tempo”, “a Belo

Horizonte da minha infância”, ou ainda mais próxima, “a São Paulo de Ramos de Azevedo”

ou “a Brasília de Oscar de Niemeyer”. Em todos esses casos, evoca-se mais do que a imagem

da cidade ou das HQs. Evoca-se um passado vivido, uma prática, uma experiência cristalizada

em imagem, seja aquela apreendida pelo leitor ou pelo observador do entorno urbano que o

envolve.

8 Reinicialização de uma série televisiva, cinematográfica, literária ou quadrinizada, em que serão mantidos apenas os conceitos e elementos básicos.

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Outro aspecto que aproxima cidade e HQs como imagem e linguagem é que:

“A cada instante, há mais do que o olho pode ver, mais do que o ouvido pode

perceber, um cenário ou uma paisagem esperando para serem explorados. Nada é

vivenciado em si mesmo, mas sempre em relação aos seus arredores, às sequências

de elementos que a ele conduzem, à lembrança de experiências passadas.” (LYNCH,

2006: 1)

Henry-Pierre Jeudy (205: 103) diz que “a configuração interna de uma cidade só pode

ser apreendida como um todo de maneira abstrata”, e que adotar um ponto de vista é, também,

constituir um ponto cego de percepção. Portanto, a cidade se expande e diminui, revelando-se

grandiosa ou diminuta perante aquele que, diante dela, dirige seu olhar e confronta suas

experiências com aquilo que vê.

A cidade proporciona uma experiência imagética, podendo revelar-se como imagem

diante daqueles que por ela transitam, impondo-se como tal diante da urgência cotidiana que

leva seus cidadãos e hóspedes a percorrerem seus caminhos, sejam eles terrestres, aéreos ou

fluviais, ou, então, aqueles que por ela transitaram, revelando-se como imagem evocada pela

memória e, portanto, constituída por meio de um diálogo permanente entre aquilo que foi

experienciado no passado com as experiências vividas no presente.

Como afirmado por Lynch, tudo é vivenciado em relação aos seus arredores,

conduzindo, também, a experiências passadas, o que reforça nosso entendimento de que a

apreensão da imagem da cidade não se dá pela observação de um recorte imagético do todo,

mas da apreensão dos “quadros” imagéticos que o antecedem e o sucedem. No caso da cidade

rememorada, os “quadros” que antecedem a sequência são aqueles experienciados em outro

tempo.

Uma leitura da cidade feita a partir da compreensão de uma sequência de imagens

mais uma vez aproxima a cidade das HQs. A narrativa gráfica que compõe as HQs tem como

condição primordial as imagens sequenciadas. Através dos quadros, controla-se tempo e

movimento de maneira que as páginas são usadas como suporte para sequências, sendo o

último quadro usado, muitas vezes, para criar no leitor o suspense de algo a ser revelado na

página seguinte. Diferente do espectador do cinema, o leitor de quadrinhos tem controle sobre

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o tempo que deseja permanecer em cada quadro, bem como sobre os saltos que faz durante a

leitura, por exemplo, iniciando a leitura de uma página pelo último quadro, o que pode fazê-lo

correr os olhos até o primeiro quadro em busca das causas da ação revelada no último quadro

ou, então, lançá-lo para a página seguinte em busca daquilo que está suspenso na sequência

que conclui nessa outra página. Como acontece com o leitor das imagens da cidade, o leitor

dos quadrinhos depende dos arredores, das “sequências de elementos”, sendo, também,

possuidor da mesma liberdade daquele que percorre a cidade, resultando em modos singulares

de apreensão das sequências que narram por meio de imagens a cidade observada ou a história

impressa em um comic book.

As imagens que compõem a narrativa gráfica de uma HQ também tendem a se

expandir ou diminuir, de maneira semelhante à que acontece com aquele que percorre e

apreende as imagens da cidade. As experiências de autores e desenhistas, compartilhadas nas

histórias publicadas, quando percebidas tendem a expandir os significados e as experiências

de leitura e da relação com a imagem.

Como destacado por Lynch, cada cidadão tem vastas associações com alguma parte de

sua cidade, e a imagem de cada um está impregnada de lembranças e significados. Assim,

tanto leitores como roteiristas e desenhistas constituem e são constituídos pela cidade, o que

significa dizer que o processo criativo e a experiência da leitura das HQs permeiam a relação

que cada indivíduo constrói permanentemente com a cidade em que vive, pela qual passa ou

rememora.

A cidade como tema em Hellblazer nº 3 e nº 9, 1988

A revista Hellblazer foi uma publicação icônica da renovação pela qual passaram os

quadrinhos estadunidenses nas décadas de 1980 e 1990. Parte das mudanças que caracteriza

as principais publicações dessas duas décadas é atribuída ao grupo de roteiristas e desenhistas

britânicos que assumiram títulos da editora DC Comics. Eles inovaram as temáticas ou a

maneira como eram abordados temas e personagens desgastados, que vinham provocando

queda nas vendas e nas tiragens. Esse “time” de artistas britânicos fez uso de novos elementos

narrativos, ampliando as possibilidades da linguagem dos quadrinhos. Publicação longeva,

Hellblazer motivou a criação, no ano de 1993, do selo Vertigo, responsável por agrupar em

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torno dele os títulos da editora destinados ao público leitor adulto, com histórias que

envolvem temáticas sobrenaturais, de terror, horror, violência, tensão psicológica e fantasia.

Hellblazer foi o principal título do selo até o encerramento da revista na edição nº 300, em

fevereiro de 2013. Dentre as muitas histórias publicadas nesses números, a cidade surge, na

maioria delas, não apenas como cenário para narrativa, como veremos nos dois casos a

seguir.

Em Hellblazer nº 3, a história intitulada “Correndo atrás” se passa em 11 de junho de

1987, na cidade de Londres. É dia de eleição, Margareth Thatcher é candidata à reeleição pela

segunda vez e John Constantine, o protagonista, está na cidade para investigar o assassinato

de yuppies.

Logo no término do prólogo, em quatro páginas, o leitor é inserido no debate político

presente na Londres de 1987, por meio de um cartaz fixado na esquina em que jaz um jovem

yuppie que estava em decadência (figura 1). Na página seguinte, Constantine percorre as ruas

de um bairro não revelado e acentua a pobreza que o caracteriza, evidenciando-a nos

recordatórios9 até parar em uma esquina com outro cartaz fixado, mas este, diferente do

anterior, em prol dos trabalhistas (figura 2). Podemos notar como Jamie Delano e John

Ridgway, roteirista e desenhista, constroem uma narrativa em segundo plano, narrada por

meio das imagens da cidade, nas quais ficam evidenciadas, por meio das interferências que

cada um dos cartazes sofreu, as tensões, disputas e pluralidades que constituem a cidade.

Intenção reforçada pela capa do artista plástico britânico Dave McKean.

9 O mesmo que caixa de textos.

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(Figura 1 - DELLANO, 2011: 76)

(Figura 2 - DELLANO, 2011: 77)

A capa criada por Dave McKean (figura 3) retrata Thatcher como uma figura

demoníaca, com dentes proeminentes e pontiagudos, olhos arregalados, estáticos e vermelhos,

tendo sobre o rosto a inscrição 666, símbolo da besta do Apocalipse, do anticristo ou do

demônio, segundo a cosmogonia cristã. Considerar a exposição dessa capa em bancas de

jornal e lojas especializadas ao redor do mundo por um mês, dada a periodicidade da

publicação, nos faz considerá-la uma provocação capaz de atingir não só o leitor de

quadrinhos, mas todo aquele capaz de identificar na imagem a figura de Thatcher ou,

simplesmente, de um demônio. A figura demoníaca amplia a crítica uma vez que se constitui

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no imaginário popular em oposição aos valores cristãos e, em extensão, daquilo que está

associado ao bem ou o representa. Thatcher por si só, sem ser retratada com aspecto

demoníaco, também se opõe aos interesses da classe trabalhadora e a imagem de Marx, fixada

no alambrado acima da representação de Thatcher, reforça essa ideia. McKean representa

Thatcher como o contrário do bem e dos interesses dos trabalhadores, levando às bancas de

jornal, impresso em um gibi produzido pela indústria de quadrinhos estadunidenses, um perfil

de vilão “real” bem diferente daqueles que, costumeiramente, apareceram em capas do

Capitão América e Superman, como Hitler, Hirohito ou um soviético, por exemplo.

(Figura 3 – Detalhe da capa de Hellblazer, nº 3, 1988)

Em “Jogado no inferno”, publicada em Hellblazer nº 9, Constantine caminha pelas

ruas de Londres. Mais uma vez esse recurso é usado por Jamie Delano para revelar problemas

urbanos de ordem social. Na primeira sequência de quadros, em três páginas, o protagonista

presencia uma briga de casais que acaba com um homicídio, uma moradora de rua que o

aborda e uma prostituta que o chama de veado por ele não dar atenção a ela – esse mesmo

quadro revela um homem embriagado escorado nas escadas de acesso a um prédio. Em todo o

seu percurso rumo ao bar, é mostrado em segundo plano, às vezes em quadro único, um

guindaste que lança uma bola de demolição contra prédios, pondo-os abaixo.

Atormentado por fantasmas e a ponto de acabar com a própria vida, Constantine se

abriga em um prédio abandonado e, enquanto fuma um cigarro, é interpelado por um

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fantasma que é ele mesmo, só que mais jovem. Ao se retirar do quadro, a bola de demolição

põe abaixo o prédio em que ele estava, encerrando a história.

“Jogado no inferno” não narra algum acontecimento essencial para a trama iniciada

em números anteriores e concluída nos subsequentes, porém, como percebemos em outros

números com histórias one-shot10, Delano utiliza esses intervalos dados entre arcos de

histórias para retomar temáticas presentes em seus roteiros, como os problemas sociais, a

crítica à cidade e ao capital, a percepção negativa do presente e uma projeção pessimista do

futuro.

Ao percorrer as ruas, John Constantine vai deixando para trás prédios que vão sendo

demolidos. Presente ao longo de toda a história, a bola de demolição que coloca abaixo partes

da cidade possibilita, segundo nossa observação e análise, três possibilidades de leitura. As

duas primeiras são aquelas diretamente ligadas à trajetória do personagem. Assustado com as

mazelas sociais que presencia e atormentado pelos fantasmas de pessoas que morreram por

sua culpa, de forma direta ou indireta, Constantine percorre a cidade em busca de um lugar

onde possa se desvencilhar de tudo isso, desejando “soterrar” o que ficou para trás. Também

podemos considerar a “destruição” que ele causa por onde passa, por isso os prédios

destruídos são sempre aqueles pelos quais o personagem passou. A terceira possibilidade de

análise é aquela que extrapola os recursos narrativos construídos em torno da figura de

Constantine e penetram na conjuntura da Londres da década de 1980.

Londres, assim como as demais cidades britânicas, passou por mudanças baseadas no

programa político de Margareth Thatcher, caracterizado pela diminuição do setor público e

ampliação do privado, pelo combate ao sindicalismo e pela criação de uma comissão de

auditoria encarregada de supervisionar os governos locais, resultando em relatórios que

apontavam a necessidade de melhorias em determinados serviços e, consequentemente, a sua

posterior privatização.

“Os governos locais foram também pressionados a vender a maior parte das

unidades habitacionais públicas de aluguel; a oferta de habitação para faixas da

população de baixa renda passou a se dar por intermédio das Housing Associations,

10 Em tradução livre "um-tiro". São histórias não seriadas, de leitura rápida, com início e fim na mesma edição, mas publicadas em títulos periódicos, que, comumente, trazem histórias continuadas em edições subsequentes. Costumeiramente, são publicadas depois do fim de um arco de histórias e antes do início de um novo.

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associações de capital público e privado. No campo da urbanização foram criadas as

Urban Development Corporations – UDC’s – dirigidas por empresas imobiliárias,

possuindo a competência de receber financiamentos públicos e adquirir terrenos com

mais facilidade do que os próprios governos locais.” (LEVY, 1997: 84)

Tais medidas urbanísticas, no decorrer dos anos 1980, resultaram em facilidade de

acesso ao crédito e em incentivo para a aquisição de imóveis, porém, sem empregos e salários

condizentes com as dívidas contraídas, a situação dos londrinos de classes média e baixa se

agravou.

“Depois da grande venda de habitações públicas de aluguel, para os grupos mais

bem aquinhoados, os investimentos públicos diminuíram consideravelmente. As

políticas de ampliação de crédito para faixas de rendimento médios e baixos

acabaram atraindo um grande número de famílias. Com o aumento dos juros e a

simultânea contração do mercado de trabalho, no final dos anos 80, muitas famílias

não conseguiam mais amortizar suas dívidas. Com o mercado imobiliário em baixa,

a níveis somente equiparáveis ao imediato pós-guerra, as famílias que não

conseguiam vender seu imóvel perderam-no.

A soma dos processos que tiveram origem no mercado de trabalho e nas políticas

governamentais elevou o nível de pobreza em Londres. Depois de décadas

reaparareceu o fenômeno dos sem-teto (homeless) e da mendicância.

Assim também se elevou o nível de violência. (...) entre 1971 e 1989 os casos de

violência reportados à polícia quase dobram, enquanto a população decresceu para

Londres como um todo.” (LEVY, 1997: 97)

Como é possível perceber, o thatcherismo foi responsável por implementar políticas

urbanas que beneficiaram a iniciativa privada em detrimento dos cidadãos de média e baixa

renda, intensificando as distinções entre as classes sociais e produzindo um cenário urbano

marcado pela violência, miséria, presença ostensiva da polícia e a desocupação de moradias e

áreas da cidade. É essa a cidade representada em diversos números de Hellblazer. No caso do

número 9, o título “Jogado no inferno” é um indicativo da maneira como Delano percebe as

mudanças pelas quais a cidade passava no final da década de 1980, sobretudo por John

Constantine não percorrer nenhum locus metafísico, como as instâncias infernais ou o

ciberespaço visitado em outros números da publicação, destacando o real. Nesse caso, o

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inferno é a Londres revelada ao leitor que acompanha Constantine em seu vagar de lugar a

lugar da cidade, desnudando os problemas urbanos apontados acima. Os prédios vazios

colocados abaixo pela bola de demolição, subentendidamente, estão desabitados por causa das

dívidas contraídas pelas famílias desempregadas ou que recebem baixos salários, de modo que

demoli-los e erguer em seu lugar novos empreendimentos mais convidativos aos interesses

privados é o melhor a ser feito do ponto de vista do mercado imobiliário.

Ambas as histórias possibilitam perceber como as HQs constituem-se, assim como a

cidade, em espaços de prática social, evidenciando

“(...) relações sociais instituídas na cidade, o entendimento de modos de viver, de

morar, de lutar, de trabalhar e de se divertir dos moradores que, com suas ações,

estão impregnando e constituindo a cultura urbana. Assim agindo, esses moradores

deixam registradas ou vão imprimindo suas marcas no decorrer do tempo histórico,

marcas que traduzem a maneira como se relacionaram ou construíram seus modos

de vide neste cotidiano urbano.” (FENELON, 2000: 6)

Perceber essas marcas e registros, considerando-os resultantes das diversas práticas

que fazem parte de nossos modos de vida, e que caracterizam nossa cultura, exige do

historiador atento à vida urbana do século XX e XXI considerar, em sua análise, os muitos

espaços de luta que se estabelecem frente às pretensões hegemônicas de cada época. Sendo as

HQs um desses espaços, compreendê-las como espaço de prática e, portanto, de luta, é

fundamental para rompermos a leitura equivocada de que os quadrinhos são mero instrumento

de pretensões hegemônicas ou de representação do real.

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