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Crises do Capitalismo, Estado e Desenvolvimento Regional Santa Cruz do Sul, RS, Brasil, 4 a 6 de setembro de 2013 CIDADES EM CATÁLISE: CRISES E REAÇÕES Wagner Barboza Rufino 1 Resumo: Inseridas em uma dinâmica de operação que suporta a circulação e o abrigo de bens, informações e pessoas, as cidades estão diretamente ligadas às formas como os Estados participam das criações e das reações às crises do capitalismo (HARVEY, 2011) ora promovendo ações que se desdobram em passivos econômicos, sociais e espaciais, ora reagindo de forma a garantir a manutenção do modo de produção. O panorama das inflexões do processo de modernização das cidades e de suas sociedades identificadas por Ascher (2010) como “Revoluções Urbanas Modernas” localiza a geografia do mundo urbano atual no centro da “Terceira Revolução Urbana Moderna” – submetido à lógica do modo de produção capitalista na sua fase contemporânea. As cidades brasileiras não escapam a esta lógica e parecem espacializar os efeitos da ação governamental em suas empreitadas anticrise, via promoção do consumo e dos mercados através da intervenção estatal sobre o ambiente construído e da provisão de novos estoques imobiliários, sobretudo no que diz respeito ao espaço habitacional. Observar estas questões contextualizando as ações em curso no âmbito do processo de globalização sugere importantes perspectivas acerca dos caminhos já traçados e das possibilidades para as cidades brasileiras do porvir. Palavras-chave: Modernização, crises, catálise, ação estatal e habitação. “Chega-se a uma queda com a mesma facilidade com que se chega ao topo, bastando deslizar sobre o óleo que se usou para subir.” Harvey (2011, p.148) Introdução A partir de uma revisão do processo de modernização das sociedades e cidades ocidentais, este trabalho busca compreende a condição da cidade contemporânea na nova lógica do modo de produção capitalista, a fim de analisar a produção do espaço construído através de conceitos e metáforas que dão luzes para o entendimento do mundo urbano no século XXI. 1 Arquiteto e Urbanista (UFJF-2001), Mestre em Urbanismo (PROURB/FAU/UFRJ-2006), Pós- graduado em Políticas de Terras Urbanas (IHS/Erasmus University-2006), Professor do Departamento de Projeto de Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (DPA/FAU/UFRJ), Doutorando em Urbanismo no Programa de Pós- graduação em Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PROURB/FAU/UFRJ) desde 2012 e Pesquisador do Laboratório de Direito e Urbanismo (LADU/PROURB/FAU/UFRJ) vinculado ao CNPq. Endereço eletrônico: [email protected]

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Crises do Capitalismo, Estado e Desenvolvimento Regional

Santa Cruz do Sul, RS, Brasil, 4 a 6 de setembro de 2013

CIDADES EM CATÁLISE: CRISES E REAÇÕES

Wagner Barboza Rufino1

Resumo: Inseridas em uma dinâmica de operação que suporta a circulação e o abrigo de bens, informações e pessoas, as cidades estão diretamente ligadas às formas como os Estados participam das criações e das reações às crises do capitalismo (HARVEY, 2011) – ora promovendo ações que se desdobram em passivos econômicos, sociais e espaciais, ora reagindo de forma a garantir a manutenção do modo de produção. O panorama das inflexões do processo de modernização das cidades e de suas sociedades identificadas por Ascher (2010) como “Revoluções Urbanas Modernas” localiza a geografia do mundo urbano atual no centro da “Terceira Revolução Urbana Moderna” – submetido à lógica do modo de produção capitalista na sua fase contemporânea. As cidades brasileiras não escapam a esta lógica e parecem espacializar os efeitos da ação governamental em suas empreitadas anticrise, via promoção do consumo e dos mercados através da intervenção estatal sobre o ambiente construído e da provisão de novos estoques imobiliários, sobretudo no que diz respeito ao espaço habitacional. Observar estas questões contextualizando as ações em curso no âmbito do processo de globalização sugere importantes perspectivas acerca dos caminhos já traçados e das possibilidades para as cidades brasileiras do porvir. Palavras-chave: Modernização, crises, catálise, ação estatal e habitação.

“Chega-se a uma queda com a mesma facilidade com que se chega ao topo, bastando deslizar sobre o óleo que se usou para subir.”

Harvey (2011, p.148)

Introdução

A partir de uma revisão do processo de modernização das sociedades e cidades

ocidentais, este trabalho busca compreende a condição da cidade contemporânea na nova

lógica do modo de produção capitalista, a fim de analisar a produção do espaço construído

através de conceitos e metáforas que dão luzes para o entendimento do mundo urbano no

século XXI.

1 Arquiteto e Urbanista (UFJF-2001), Mestre em Urbanismo (PROURB/FAU/UFRJ-2006), Pós-

graduado em Políticas de Terras Urbanas (IHS/Erasmus University-2006), Professor do Departamento de Projeto de Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (DPA/FAU/UFRJ), Doutorando em Urbanismo no Programa de Pós-graduação em Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PROURB/FAU/UFRJ) desde 2012 e Pesquisador do Laboratório de Direito e Urbanismo (LADU/PROURB/FAU/UFRJ) vinculado ao CNPq. Endereço eletrônico: [email protected]

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As bases de entendimento lançadas servirão de suporte para a observação das

mudanças em curso nas cidades brasileiras, com foco nas ações governamentais sobre os

processos de urbanização e transformação dos territórios, sobretudo no que diz respeito ao

espaço habitacional.

O texto visa cotejar ações promovidas por Estados e seus desdobramentos já

verificados com os caminhos tomados pelas políticas urbanas empreendidas no Brasil,

objetivando apontar possíveis recorrências históricas que nortearão os processos contínuos

de configuração das cidades e construção da sociedade brasileira.

1. Modernização e a cidade contemporânea

As urbes dão significado e sedimentam ao longo da história o movimento das

sociedades em suas variadas dimensões. O espaço construído é parte importante da

síntese das ideias, dos fluxos e da acumulação do passado, assim como é o prelúdio do

porvir. Ideologias, modos de vida e de produção marcaram distintos momentos, mantendo

uma relação recíproca de causa e efeito com o espaço urbano. Um jogo de espelhos que

ganha evidência e complexidade em momentos de inflexão, dado à capacidade das cidades

de fazerem parte e de refletirem o processo de construção da civilização.

Para Ascher (2010) seria mais correto utilizarmos o conceito de modernização, uma

vez que a modernidade não é um estado e sim um processo resultante de três dinâmicas

socioantropológicas que se combinam na Europa da Idade Média: 1) a individualização, 2) a

racionalização e 3) a diferenciação social. A individualização estaria no reconhecimento do

indivíduo em detrimento do grupo, a racionalização corresponderia à substituição da

tradição e do folclore pela razão e a diferenciação social estaria ligada à divisão técnica e

social do trabalho.

O autor (2010) divide o processo de modernização em três fases: 1) a alta

modernidade, 2) a modernidade média e 3) a terceira modernidade (ou modernidade

reflexiva). Há uma dimensão espacial que parece refletir a entrada das sociedades

ocidentais na alta modernidade e as consecutivas transferências para a modernidade média

e para a terceira modernidade. Ascher (2010) sublinha a importância dos rebatimentos

destas mudanças de fase nos territórios urbanos, denominando tais inflexões por

Revoluções Urbanas Modernas.

A Primeira Revolução Urbana Moderna – a da alta modernidade – no que diz

respeito à dimensão espacial, fez-se “moderna” ao pensarem e realizarem projetos, ao

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colocarem em prática desenhos de desígnios a partir de referências clássicas e arquitetura

barroca.

A Segunda Revolução Urbana Moderna – a da modernidade média – seria a

derivação da evolução agrícola associada à Revolução Industrial. A cidade da modernidade

média foi base da produção e palco da reprodução do conhecimento técnico e do capital em

um âmbito de pensamento urbanístico de modelos. A migração campo-cidade e a

incapacidade de absorção de toda mão de obra disponível agudizaram um contraditório

cenário de produção de riquezas face a uma crise social nos países do capitalismo

industrial. A resposta para este paradoxo estaria na crença do poder de regulação do capital

e posteriormente na formação dos Estados do bem-estar social.

No início do século XX, sob o paradigma do modo de produção fordista, a

organização do espaço urbano passou a derivar-se da lógica produtiva e foi parte de um

projeto de “sociedade da eficiência”, regulado pelo equilíbrio entre as relações de produção

e acesso ao consumo, submetido ao controle da fábrica e das leis que regiam o quadro de

responsabilidade recíproca entre Estado, empresa e empregado. Num período qualificado

por Ascher (1998, p. 54) como: “taylorista-fordiano-keynesiano-corbusiano”, os governos

das nações capitalistas centrais tomaram para si a responsabilidade da manutenção do

“bem estar” dos estratos sociais na tentativa da promoção da boa relação homem-trabalho-

capital. Este ciclo teve seu ápice nos “Trinta Gloriosos”, sublinhando o período pós-guerra

como a situação fértil para a materialização deste projeto de sociedade no meio urbano -

como escreve Ascher (1998, p. 56):

(...) podemos afirmar que as cidades europeias do pós-guerra foram indelevelmente marcadas por uma tendência fordista (...) As políticas keynesianas acompanharam e estimularam esta urbanização fordista, desenvolvendo uma cidade do “bem-estar”, a qual conseguia uma tripla finalidade: acolhia o operariado-massificado e as novas classes médias, estimulava a economia através do financiamento público dos equipamentos coletivos e da habitação social; favorecia a industrialização das atividades de construção e de obras públicas através de encomendas maciças e repetitivas.

O bom desempenho das economias das nações centrais após a Segunda Guerra,

que de certa forma também alcançou algumas regiões de países do então Terceiro Mundo,

sofreu alterações a partir da década de 1970. Os avanços da produção industrial na Europa,

Japão e em algumas regiões subdesenvolvidas acabaram por corresponder diretamente ao

alargamento da demanda e da produção, que expandiu a escala dos mercados e colocou

em cheque a rigidez do modelo fordista de acumulação. Assim, a reestruturação em

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andamento tomou fôlego em 1973 a partir do rompimento de uma bolha especulativa, de

uma grave crise de deflação e do aumento do preço do petróleo fornecido pelos Estados

membros da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP).

Novas sendas foram estabelecidas para o avanço das economias capitalistas,

ingressando estas em um novo período de acumulação – o pós-fordismo. De acordo com

Harvey (1992) podemos reconhecer as transformações ocorridas na sinergia entre diversos

fatores, tais como: (1) a reestruturação dos processos produtivos, (2) a flexibilização das

normas de regulação dos mercados diretamente associada ao desmonte dos modelos de

Estados do bem-estar social, (3) a busca por novos mercados, (4) o crescimento do poder

das grandes corporações, (5) o incremento de população, (6) a financeirização da

economia, (7) a disseminação das novas tecnologias de informação, dentre outros.

O pós-fordismo tem no processo de reestruturação produtiva uma de suas bases

fundamentais, considerando o que diz respeito à configuração de um novo modo de

produção industrial descentralizado, fragmentado e de serviços terceirizados. É notável a

partir dos anos 1970 a desindustrialização e o direcionamento do foco de desenvolvimento

das ricas cidades das principais economias do mundo para o mercado de serviços. Desse

modo, segundo Sassen (1998), as cidades passaram a representar o lugar do setor

terciário, responsável pelo funcionamento da nova economia global. Tornaram-se por

excelência o suporte da sociedade de serviços. A dinâmica das cidades deste novo ciclo

viu-se alterada, uma vez que, paralelo aos decorrentes fenômenos internos de

requalificação do espaço, estas se depararam com o esvaziamento de seu setor secundário

na medida em que suas plantas - modernizadas e informatizadas - migraram para outras

regiões não necessariamente contíguas aos grandes aglomerados.

Segundo Ascher (2010), as transformações deflagradas pelos processos de

reestruturação e globalização dão inicio à terceira modernidade e localizam a cidade

contemporânea no centro da Terceira Revolução Urbana Moderna.

O total da população urbana, que correspondia a 7% da humanidade no começo do

século XX, equivale atualmente a aproximadamente 50 % dos habitantes do planeta.

Segundo Harvey (1996, p. 403): “The twentieth century has been, then, the century of

urbanization” – ou na redução de Koolhaas (2000, p. 804): “World = City”. Tornou-se

evidente então uma nova geografia urbana internacional, que vem estabelecendo distintos

papéis para cada classe de cidades de acordo com a posição de seus Estados-Nação.

Dentro de uma estrutura hierárquica, destaca-se o grupo de grandes centros que se

interrelacionam descolados de seus territórios e que detêm boa parte do poder econômico

global. Fazem parte deste grupo o que Castells (1999) e Sassen (1998) denominam por

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“cidades globais”. Para o primeiro, a cidade global não é uma forma ou lugar e sim “um

processo que conecta serviços avançados, centros produtores e mercados em uma rede

global com intensidades diferentes e em diferentes escalas, dependendo da relativa

importância das atividades localizadas em cada área vis-à-vis a rede global” (CASTELLS,

1999, p. 470). Já Sassen (1998, p. 16) escreve:

Na atual fase da economia mundial, é precisamente a combinação da dispersão global das atividades econômicas e da integração global, mediante uma concentração continua do controle econômico e da propriedade, que tem contribuído para o papel estratégico desempenhado por certas grandes cidades, que denomino cidades globais.

Na superabundância de uma sociedade denominada “supermoderna” por Augé

(1994), a cidade contemporânea é o lugar de sua modalidade essencial: o excesso. É o

“lugar do excesso” que radicaliza a racionalidade científica moderna. Essa metacidade em

suas diversas escalas catalisa e suporta uma enormidade factual. No paradoxo do excesso

de espaço e do encolhimento do planeta, a exclusão social (ou digital) e o atraso econômico

distanciam, ao passo que o olho do satélite, a internet, as rodovias, os trens de alta

velocidade e os aviões nos aproximam em poucas horas, instantes, ou instantaneamente.

Na exacerbação do poder de catalisação e centrifugação da grande cidade contemporânea,

Ascher (1998) denomina por metápole a até então “metrópole”, a cidade mãe, indicando a

multiplicação exponencial de sua presença e influência.

Para Ascher (2010) a cidade contemporânea é a continuação de um processo que

parece caminhar para a formação de sociedades ainda mais racionais, mais individualistas

e mais diferenciadas. Mais racionais pela incorporação da interdisciplinaridade científica, da

multiplicidade de fatores sociais e econômicos, das incertezas e do risco. Mais

individualistas pela desteritorialização promovida pelo multipertencimento social de

indivíduos autônomos que se deslocam de forma veloz em uma diversidade de fluxos e

tempos submetidos a uma estrutura hipertexto de informações e conexões. Mais

diferenciadas, complexas e confusas, visto que a globalização – ao mesmo tempo em que

alisa modos de vida sob a lógica de um capitalismo planetário – amplia a diferenciação do

trabalho, a competição e o ábaco de possibilidades no que diz respeito a hábitos, consumo,

carreiras, estruturas familiares, religiões e relações sociais.

O mundo em modernização saiu literalmente patinando do século XX e chegou ao

século XXI com o planeta em transformação em uma velocidade e escala que

provavelmente levarão algumas décadas (ou séculos) para serem compreendidas. A

difusão do transporte e da comunicação de massa, a aviação, o antibiótico, o cubismo, a

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psicanálise, as tecnologias nucleares, a produção fordista, a reestruturação produtiva, as

viagens espaciais e as novas tecnologias da informação são progressos que caminham em

paralelo à formação de enormes passivos sociais, econômicos e ambientais. O século XX

foi e o início do século XXI se apresenta como períodos de mazelas, ambos marcados por

guerras, pelo incremento populacional e pela miséria.

As cidades estão na interseção de praticamente tudo aquilo que vemos por um lado

como avanço – e por outro como crises. Os vigorosos processos de urbanização e

metropolização do século XX, ainda em curso, evidenciam o papel das cidades como o

centro da dimensão espacial, como o grande cenário de todo esse movimento.

2. Crises e cidades

Ao escrever sobre as revoluções urbanas modernas, Ascher (2010) observa que a

evolução da ocupação do espaço pelo homem segue uma coerência com a forma de

armazenamento e transporte do que o autor chama de Sistema BIP (Bens, Informações e

Pessoas). Segundo Harvey (2011, p.07): “O capital é o sangue que flui através do corpo

político de todas as sociedades que chamamos de capitalistas” – e a crise nada mais é do

que a desaceleração ou interrupção deste fluxo que garante o funcionamento das

organizações que sustentam o Sistema BIP.

Uma vez que as cidades são os espaços fundamentais deste sistema, verificamos

uma relação direta entre as formas de produzi-las e geri-las com o surgimento de crises,

assim como com as formas de se reagir às crises. Importantes inflexões que marcaram a

história da geografia urbana se definem por crises e reações às crises. O que nos chama a

atenção é que, historicamente, projetos urbanos e a urbanização per se serviram de

instrumentos de tais reações. Segundo Harvey (2011, p. 137): “(...) As conexões entre

urbanização, a acumulação do capital e a formação de crises merecem análise cuidadosa”.

Compelida a se sustentar e crescer, a lógica do capitalismo tem nas cidades um

destino estratégico para a alocação do excedente, dado o poder de absorção deste pelo

processo de urbanização via provisão de espaço para a crescente população urbana – ou

simplesmente para o abastecimento de cenários especulativos. A ação estatal sobre as

cidades promoveu e implementou grandes projetos urbanos ao longo da história, com base

no raciocínio keynesiano que reconheceu o poder do investimento público na dinamização

da economia através da criação e financiamento de demandas.

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As reformas urbanas arrasadoras de Haussmann para a Paris em crise da metade

do século XIX, a reestruturação da região central da Cidade do Rio de Janeiro levada a

cabo pelo Prefeito Pereira Passos no início do século XX (como forma de modernização de

uma cidade arcaica recém-egressa de uma economia escravocrata), os projetos

rodoviaristas em escala metropolitana do Prefeito Robert Moses para Nova Iorque e a

suburbanização generalizada das cidades norte-americanas em reação aos movimentos

anticapitalistas nos Estados Unidos do pós-guerra – tudo isso colocou Estados e cidades no

centro da solução para crises através da provisão de recursos para o emprego de insumos

em escala, para a geração de postos de trabalho e para o estímulo ao consumo.

Planos e projetos urbanos quase sempre compõem políticas de manutenção ou

estímulo ao fluxo do capital. Tsiomis (2003) observa que para a cidade contemporânea a

substituição do planejamento pelo projeto urbano merece uma discussão acerca dos limites

de ambos e se foca nas contradições do segundo. Uma das questões inerentes à discussão

sobre o projeto urbano diz respeito ao fato de que ele não configura uma novidade, posto

que outras épocas vivenciaram a concretização de intervenções não necessariamente

inseridas em um amplo âmbito de planejamento do espaço. O projeto urbano se define pela

diversidade de escalas, ausência de modelos, flexibilidade e visão estratégica. Ele também

é um lugar de embate de sociedades diversificadas e complexas.

Segundo Tsiomis (2003), as cidades vivem este conflito e levam a cabo projetos que

se caracterizam por respostas a situações de crise ou mutação. Para as cidades em crise,

adotam-se projetos de “reparação” para espaços afetados por catástrofes, esvaziamento

econômico ou mudanças políticas. Para as cidades em “mutação”, ou cidades em franco

crescimento econômico, o que se observa é a reprodução de projetos detentores de

grandes orçamentos e com expressivos impactos simbólicos, espaciais e sociais.

Todos esses projetos guardam semelhanças em seus efeitos imediatos e em seus

desdobramentos no médio prazo. De fato, os objetivos de absorção do capital excedente,

valorização imobiliária, modernização e até de elevação da autoestima das classes médias

e altas foram temporariamente atendidos. Porém, cenários de crise se fizeram presentes

mais uma vez, gestados nas lacunas ou no enfraquecimento das bases que sustentavam

tais ações. Uma crise financeira na década de 1860 resultou no afastamento de Haussmann

do poder. A crise social do Centro do Rio de Janeiro foi transferida para as favelas e se

agravou. O rodoviarismo e a suburbanização nos Estados Unidos elevaram a dependência

do petróleo externo, a segregação sócio-espacial, o impacto nocivo de paisagens urbanas

cada vez mais extensas, o isolamento e a insatisfação. A mesma suburbanização

estadunidense que gerou demandas e fomentou o desenvolvimento global no pós-guerra

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resultou em uma forte crise imobiliária em 1973. Segundo Harvey (2011), parte importante

das políticas e ideologias neoliberais difundidas a partir desta década teve seu epicentro na

crise fiscal da Cidade de Nova Iorque, consequência do estouro da bolha imobiliária.

A reestruturação produtiva e a era de acumulação flexível se firmaram, o mundo se

globalizou e os processos de urbanização e metropolização servem agora de motores da

economia e receptáculos do excedente de uma lógica capitalista planetária, alimentada por

um tradicional instrumento – o crédito, principalmente no que diz respeito ao mercado

imobiliário.

A radicalização da urbanização a partir dos anos 1970 ganhou ainda mais força com

a abertura da economia chinesa e as rápidas transformações em curso naquele país. A

expansão das cidades e o surgimento de novas metápoles na China não só vêm dar

destinação ao seu capital excedente e alimentar o seu desenvolvimento, mas também

funciona como uma nova engrenagem da economia mundial. Diversos parceiros comerciais

do país asiático veem suas economias prosperarem através das exportações para o mesmo

e com isso expandem seus mercados de crédito, que financiam projetos urbanos e o

aquecimento de mercados imobiliários mundo afora. Vale refletir sobre o que pode

acontecer se a China entrar em crise.

A economia global sofreu um novo choque em 2008, iniciado justamente na

inadimplência no mercado de financiamento de bens imobiliários dos Estados Unidos e

estruturalmente originado nas políticas neoliberais de outrora. O que não parece novo é

verificar que, a exemplo das políticas adotadas pelo governo brasileiro, as práticas estatais

de reação às crises do capitalismo mantêm um perfil keynesiano, tendo a produção

imobiliária como importante alternativa.

3. Catálise

“Se pudéssemos de alguma forma mapear a circulação do capital que ocorre em diferentes lugares ao redor do mundo, então o quadro seria algo parecido com as imagens de satélite tiradas do espaço que dão conta dos sistemas meteorológicos que rodam por cima dos oceanos, montanhas e planícies do planeta. Veríamos a ressurgências de atividades aqui, zonas de calmaria por lá, redemoinhos anticiclônicos em outro lugar e depressões ciclônicas de várias profundidades e tamanhos em outros lugares. Aqui e ali, tornados rasgariam a terra e em certos momentos tufões e furacões correriam pelos oceanos, representando perigos iminentes para os que estiverem em seu caminho. Chuvas refrescantes esverdeariam as pastagens, enquanto secas em outros lugares deixariam uma terra marrom arrasada. (...) Mas a observação e análise cuidadosa revelam padrões no caos.” (HARVEY, 2011, p. 127)

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Se há “padrões no caos” (HARVEY, 2011), é possível encontrarmos padrões no

papel da produção e gestão do espaço construído nos processos de reprodução e

acumulação do capital. As cidades são verdadeiras locomotivas destes processos. A

urbanização e metropolização dos territórios associam a ação estatal ao capital privado em

uma estratégica parceria na criação de demandas e na ampliação de fronteiras em um

movimento perpétuo. A ação do capital sobre as cidades modifica o espaço, elege áreas em

detrimento de outras, ora estigmatiza uma região, ora desestigmatiza outra – e em geral

torna a vida mais cara.

A partir da metáfora meteorológica de Harvey (2011) para o capital como algo que

paira sobre o globo – e que a partir da ação humana cria um padrão de tempestades e

calmarias – é possível partimos para uma outra metáfora que dá luz ao entendimento da

ação desta “nuvem” sobre as cidades. A Química define por catálise a aceleração da

modificação de um composto a partir da introdução de um outro elemento,o catalisador, que

ao final do processo pode ser segregado do composto inicial. O elemento catalisador pode

ser capturado inalterado no caso da denominada “catálise heterogênea”, ou parcialmente

alterado na “catálise homogênea”. Apesar de não se tratar propriamente de um agente

externo, se falamos do capital como algo que transita e provoca rápidas transformações,

podemos entendê-lo como um agente catalisador que modifica o espaço. Percebemos

então que cidades que se encontram no caminho do fluxo do capital, ou submetidas a um

grande afluxo de investimentos, são cidades em um processo de transformação acelerada

intencionalmente provocado – são cidades em catálise. O caráter reprodutor do capital, sua

parcial retenção pela dimensão espacial e o nível de risco a que está exposto inviabilizam a

manutenção de sua condição inicial ao longo do processo. Portanto, entendemos as

cidades como territórios em catálise homogênea.

Se catálise homogênea é uma metáfora apropriada, homogeneização também

parece um termo adequado para tratarmos da paisagem urbana catalisada que se produz.

Não se trata de dizer que cidades tornam-se iguais submetidas à ação do capital. Nenhuma

cidade é igual à outra, mas de fato há semelhanças visíveis nas formas de se pensar e agir

sobre os territórios. Projetos urbanos e a atuação dos empreendedores privados associados

ou não aos Estados produzem formas urbanas, estéticas e modos de vida cada vez mais

parecidos. Grandes investimentos nas áreas centrais e/ou portuárias e o espraiamento das

áreas de uso habitacional que trasbordam os limites de metrópoles reproduzem políticas e

formatos de negócios imobiliários muito semelhantes, que se desdobram em cenários

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estandardizados de consumo e gentrificação em determinados locais e de monotonia em

outros.

Sob o discurso de dar solução para o problema do superadensamento de Paris, o

Presidente Charles de Gaulle promoveu a partir do início da década de 1960 a execução de

um novo estoque de habitação social em edifícios de alto gabarito nas periferias da cidade,

os banlieues – cidades dormitório que rapidamente passaram a dominar a paisagem dos

subúrbios da maioria das metrópoles francesas. Segundo Neaubauer & Wachten (2010):

“The giant Parisian construction companies leapt into the fray”. O que parece não ter sido

possível de se imaginar foi a dimensão da crise social espacialmente localizada – e

diretamente ligada ao contingente de imigrantes conduzidos aos banlieues – que se

iniciava, eclodindo em uma revolta popular expressa em graves atos de vandalismo entre

outubro e novembro de 2005, quando o então Presidente Jacques Chirac anunciou um

estado nacional de emergência. Paradoxalmente, foi a Paris das classes baixas e

imigrantes suburbanizados que implementou a partir dos anos 1970 uma política de projetos

urbanos iniciada pelo Presidente Charles de Gaulle e consagrada por François Mitterrand,

dando mais uma vez àquela cidade o status de vitrine cultural – cidade símbolo do Estado

francês2.

A Buenos Aires da década de 1990, passando por um período de crescimento

econômico e estabilidade, transformou seu antigo porto em uma área nobre de comércio e

lazer, o Puerto Madero, e implantou contíguo a este um centro de negócios com arranha-

céus de alta tecnologia no âmbito de um emblemático projeto de renovação. Nada disso foi

suficiente para evitar o colapso da economia argentina e uma sequência de crises políticas,

das quais o país ainda se convalesce.

2 Boa parte dos projetos desta geração foram implantados dentro do perímetro da Cidade de Paris.

São importantes exemplos deste conjunto o Parc La Villette, a Opéra Bastille, o Institut Du Monde Arabe, a Bibliothèque Nationale de France, o Musée d'Orsay, a reforma do Musée du Louvre, o Centre Georges Pompidou, dentre outros.

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Foto 1: Puerto Madero, Buenos Aires. Fonte: Autor, 2010.

A Cidade do Cabo – imersa em uma crise econômica e de violência urbana após o

fim da ditadura branca em 1994 – fez parcerias com empresas privadas através de

contratos de concessão para a revitalização e manutenção dos espaços públicos das áreas

centrais. Esta também reformou o antigo porto (The Waterfront) para os mesmos fins do de

Buenos Aires e construiu um moderno estádio em uma região de alta renda, seguindo

exigências locacionais da FIFA (Federação Internacional de Futebol Associado) sob o

argumento de preparar a cidade para a Copa do Mundo de Futebol de 2010. Atualmente o

estádio corre sério risco de se transformar em um equipamento subutilizado e as

infraestruturas implantadas, ao invés de promoverem a integração e o desenvolvimento

amplo da cidade, parecem reforçar a histórica segregação racial, econômica, social e

espacial da cidade – herança do Apartheid.

Foto 2: The Waterfront, Cidade do Cabo. Fonte: Autor, 2011.

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Foto 3: The Townships (favelas), Cidade do Cabo. Fonte: Autor, 2011.

Segundo Cohn (2012), mesmo Barcelona, que como uma caixa de ressonância

difundiu estratégias de marketing urbano através de projetos para megaeventos, atualmente

encontra dificuldades para dar uso a alguns equipamentos olímpicos3. Em Atenas, os

planos de uso posterior das infraestruturas construídas com um orçamento superior a 11

bilhões de dólares para as Olimpíadas de 2004 não se concretizaram. Metade dos 2.300

apartamentos para baixa renda construídos na vila olímpica da capital grega está vazia e o

horizonte não parece promissor dado a aguda crise econômica que aflige o país.

4. A nuvem sobre as cidades brasileiras

O Brasil chegou ao século XXI como um país industrializado onde mais de 80% de

sua população vive em cidades. Passando por um dos mais rápidos movimentos de

migração interna e êxodo rural vistos no globo e ingressando num processo de

industrialização que toma vulto a partir dos anos 1930, o Brasil hoje é um país

essencialmente urbano. Quinta maior economia do planeta, o país figura atualmente na

linha de frente das rotas de investimentos internacionais e conta com importantes ativos que

configuram um terreno fértil dentetor de grandes capitais: recursos naturais, diversidade

3 Segundo o autor (Cohn, 2012), o Velódromo, o Parque Aquático e o Estádio Olímpico são exemplos

importantes de infraestruturas esportivas subutilizadas.

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produtiva, polos de inovação e indústria de alta tecnologia, grandes mercados, importantes

bacias hidrográficas, capital intelectual, novas reservas de petróleo, dentre outros.

Contudo, o recente histórico da questão urbana no Brasil perece revelar dois

projetos de país que se sobrepõem e chegam a confundir, sobretudo ao refletirmos sobre os

desdobramentos espaciais das ações anticrise, dos investimentos público e privado no

campo da habitação e das ações para a realização da Copa do Mundo de Futebol da FIFA

em 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016 na Cidade do Rio de Janeiro. Segundo Klink

(2010), se por um lado a aprovação do Estatuto das Cidades, a criação do Ministério das

Cidades e o aumento de recursos destinados às políticas urbanas revelam uma maior

importância das cidades nas agendas dos governos, por outro não se percebe melhoras

efetivas em relação ao cumprimento da função social da propriedade ou da gestão dos

territórios urbanos.

As reações à crise internacional ligadas à produção do espaço habitacional invertem

uma lógica de pensamento, que ora parecem repetir equívocos do passado, ora lançam

profundas incertezas acerca de seus resultados no longo prazo.

Para Cardoso, Aragão e Araújo (2011), a partir de 2003 o governo do Presidente

Lula iniciou a construção de uma política habitacional que se pretendia ampla e estável,

buscando novos rumos para a solução de antigas demandas de um país com déficit

habitacional superior a 7 milhões de unidades naquela época. Foi criada a Secretaria

Nacional de Habitação (no âmbito do Ministério das Cidades) e a partir de uma nova Política

Nacional de Habitação (2004) foi aprovado no Conselho Nacional das Cidades a Lei do

Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social - SNHIS (2005). A participação de

Estados e municípios nesta nova estrutura estava condicionada à adesão ao desenho

institucional proposto, com a criação de fundos, conselhos e planos locais de Habitação de

Interesse Social – estimulada pelo acesso ao alicerce de todo este sistema: o Fundo

Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS)4.

Seguindo uma trajetória crescente de investimentos, o governo federal lançou em

2007 o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), no qual estão contidos

investimentos em habitação e infraestrutura urbana. Entre os anos de 2007 e 2010 foram

liberados no âmbito do PAC um aporte de investimentos de 13,4 bilhões de reais, com boa

parte dos recursos destinados à urbanização de favelas (6,7 bilhões). Porém, tal trajetória

não define uma política continuada. O PAC descentralizou do FNHIS a exclusividade na

4 Entre 2006 e 2009 foram alocados 4,4 bilhões de reais neste fundo destinados a execução de 4.416

contratos.

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gestão de recursos para políticas habitacionais, com o diferencial da autonomia da Casa

Civil da Presidência da República para destinação das verbas do Programa.

Em 2009 o Ministério das Cidades apresentou o PlanHab (Plano Nacional de

Habitação), com quatro eixos estratégicos definidos em seus objetivos: (1) Financiamento e

subsídio, (2) Arranjos institucionais, (3) Estratégias urbanas e fundiárias e (4) Cadeia

Produtiva da Construção Civil (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2010). Como forma de ampliar

a base de atuação das políticas, o plano previa modalidades diversificadas de atendimento

aceitas pelo SNHIS. Além do financiamento de empreendimentos, faziam parte do conjunto

de ações a concessão do direito real de uso, a locação social, a provisão de lotes

urbanizados e/ou material de construção com assistência técnica, entre outras.

A estratégia do governo brasileiro para enfrentar os efeitos a crise de 2008 originada

nos Estados Unidos lança mão de políticas tipicamente keynesianas que veem na indústria

da construção civil um setor-chave para a manutenção de parte importante da cadeia

produtiva, do mercado de trabalho, do mercado de crédito e da destinação do excedente do

capital. Assim, em 2009 o governo federal inicia a implementação do Programa Minha Casa

Minha Vida (PMCMV – Lei N. 11.977 de 2009), como uma das formas de mitigar os efeitos

da crise internacional através da provisão de habitação para famílias com renda mensal de

até 10 salários mínimos (SMs).

Segundo Cardoso, Aragão e Araújo (2011), o PMCMV funciona a partir da

transferência de recursos da União para o Fundo de Arrendamento Residencial. Parte

expressiva destes recursos é acessada por empresas privadas por intermédio da Caixa

Econômica Federal (CEF), que analisa, aprova e faz a gestão dos recursos a serem

utilizados pelas empresas para a construção de moradias dentro dos padrões

estabelecidos.

O desenho estabelecido submete toda a lógica da provisão do PMCMV à realização

do lucro das empresas, que operam em diversas frentes no intuito de maximizá-lo através

do par: (1) busca por terra urbana barata e (2) reprodução em grandes empreendimentos

dos padrões mínimos das unidades autônomas (apartamentos) estabelecidos pela CEF.

Como o preço da terra é fator determinante da localização dos novos conjuntos, a

combinação – provisão de habitação para baixa renda & empreendedor imobiliário – vem

resultando na reprodução do padrão núcleo-periferia nas metrópoles brasileiras, que sob o

ponto de vista do ator privado faz todo sentido, posto que a viabilização de seu negócio

parte do princípio da redução ao máximo do custo com o solo urbano, principalmente nos

projetos destinados ao estrato de 0 a 3 SMs.

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Foto 4: Conjunto Valdoriosa (PMCMV), Cidade de Queimados, Região Metropolitana do Rio de Janeiro

5.

Fonte: Autor, 2013.

As maiores regiões metropolitanas do país apresentaram redução no ritmo de

crescimento de suas populações já na década de 1980. Contudo, a reestruturação da

economia e do espaço urbano, assim como a elevação do padrão de vida e consumo

seguem demandando grandes investimentos em infraestrutura. As transformações advindas

dos movimentos migratórios se converteram em dinâmicas de ordem intra-urbanas (LAGO,

2000). Famílias se reorganizaram (ascendendo ou descendendo socialmente) e se

mudaram. Quando o movimento é favorável, trocam o aluguel pelo imóvel próprio no

PMCMV e compram carros. O fácil acesso a longos financiamentos para a compra do

automóvel ampliou o campo de ação do mercado das montadoras e a frota de veículos nas

ruas. Os efeitos sobre o espaço da combinação “PMCMV / financiamento fácil para compra

de automóveis / incremento de renda” é preocupante.

5. Apontamentos e perspectivas

As cidades brasileiras da Terceira Revolução Urbana Moderna são cidades em

catálise. Estamos com a “nuvem” sobre nossas cabeças e precisamos saber o que fazer

5 O Conjunto Valdariosa foi implantado contíguo à Rodovia Presidente Dutra (sentido Rio de Janeiro

– São Paulo) e é configurado por 1500 apartamentos distribuídos em 75 edifícios. O conjunto está localizado a aproximadamente 54 km do centro da Cidade do Rio de Janeiro, 38 km do centro de Duque de Caxias, 17 km do centro de Nova Iguaçu e 5 km da Estação de Trem de Queimados, que conecta esta cidade ao município cede e a outros municípios da Região Metropolitana.

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com ela. Os problemas são diversos e atingem vários setores da sociedade. Enquanto isso,

territórios urbanos são transformados, as franjas das cidades se expandem, torres e

equipamentos anônimos são erguidos, a crise da mobilidade se agrava e tudo parece dar

continuidade à monótona experiência estética e espacial da cidade capitalista.

Nada disso é necessariamente novo. Até agora a impressão que se tem é a de que

se reitera a dinâmica segregadora do espaço urbano brasileiro através de políticas que por

um lado estimulam o inserção internacional das cidades brasileiras via promoção da

produção imobiliária para as camadas de alta renda, e que por outro viabiliza a

implementação de enormes parques habitacionais, Pruitt-Igoes6 do século XXI, os quais

talvez só não terão o mesmo destino do conjunto estadunidense devido à própria pressão

do déficit brasileiro, mas que nem por isso não resultaram em cenários de monotonia,

frustração e delinquência.

Segundo Ribeiro (2010), as faces multiescalares da geografia urbana brasileira

podem ser vistas como bons ativos. Contudo, para que as cidades e territórios sejam mais

que plataformas ou suportes para o desenvolvimento do capitalismo na sua fase

contemporânea, a busca por coesão, cooperação e justiça social devem exercer papel

central na definição de políticas que visem o desenvolvimento.

Prover habitação em números não configura uma política urbana adequada. Um

possível caminho talvez esteja na combinação de (1) ações e projetos inseridos em um (2)

plano orientado por uma (3) política de Estado que entenda seu papel de gestor – em um

campo que detém dívidas sociais históricas e que lança perspectivas sobre a configuração

da sociedade brasileira porvir.

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6 Localizado na cidade estadunidense de St. Louis, o conjunto Pruitt-Igoe de habitação social

projetado pelo arquiteto Minoru Yamasaki composto por 33 edifícios que abrigavam 2870 apartamentos foi demolido em 1972, após sua total degradação e abandono. Para alguns autores da pós-modernidade, a demolição do Pruitt-Igoe marca o fim da arquitetura moderna (Neaubauer & Wachten, 2010).

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