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LICENCIATURA EM CIÊNCIAS · USP/ UNIVESP 2.1 Introdução 2.2 Tecnologia: o estudo do artificial 2.3 A educação tecnológica 2.4 Algumas conclusões Referências Ciência, ciência aplicada e tecnologia Elio Carlos Ricardo 2 CIÊNCIA, CIÊNCIA APLICADA E TECNOLOGIA

CIÊNCIA, CIÊNCIA APLICADA E TECNOLOGIA Ciência, ciência ... · De modo sintético, podemos dizer que as principais concepções que encontramos foram: 1. ... A versão escolar

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Licenciatura em ciências · USP/ Univesp

2.1 Introdução2.2 Tecnologia: o estudo do artificial2.3 A educação tecnológica2.4 Algumas conclusõesReferências

Ciên

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Elio Carlos Ricardo

2CIÊNCIA, CIÊNCIA APLICADA E TECNOLOGIA

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Ciência, ciência aplicada e tecnologia

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2.1 IntroduçãoNa aula anterior, discutimos algumas concepções dos professores das disciplinas científicas a

respeito do ensino da tecnologia, bem como as implicações didáticas disso.

De modo sintético, podemos dizer que as principais concepções que encontramos foram:

1. Tecnologia como ciência aplicada;

2. Tecnologia como recurso instrucional;

3. Tecnologia como uso da informática;

4. Tecnologia como motivação para aprender ciência;

5. Tecnologia como justificativa para ensinar ciência.

Essas percepções acerca da educação tecnológica não são propriamente erradas. Algumas

pesquisas realizadas em outros países mostram resultados semelhantes (De Vries, 1996 e 2005;

Díaz et al, 2003; Fourez, 2003; Van eijck; claxton, 2009; niezwiDa, 2009; Bispo Fl. et al, 2013).

O que apontamos foi que são visões reduzidas e, em alguns casos, simplificadas da produção do

conhecimento tecnológico e, por isso, podem dificultar o alcance dos objetivos de uma educação

tecnológica, bem como da compreensão da tecnologia como uma área que produz conhecimentos

próprios, ainda que apoiados na ciência e nos conhecimentos disponíveis de modo geral.

Assim, nesta aula iremos nos aproximar de algumas definições dos campos de atuação da

ciência e da tecnologia. Mas não se trata de definições inflexíveis; ao contrário, é um ponto

de partida para iniciarmos uma diferenciação entre ciência, ciência aplicada e tecnologia, bem

como suas implicações didáticas. Ou seja, iremos estabelecer algumas características inerentes

à ciência e à tecnologia para, a partir disso, começarmos a traçar perspectivas e possibilidades

de transformar alguns de seus elementos em objetos de ensino, ou, dito de outro modo, em

conteúdos escolares.

Quando fazemos esse tipo de pergunta para as demais disciplinas já consolidadas nos programas

escolares, a resposta parece simples. Por exemplo, se nos perguntarmos o que da física ensinamos

na escola, a resposta é relativamente fácil: algumas teorias e conceitos da ciência física. E isso

Nesse sentido, uma primeira questão seria: o que da tecnologia poderia ser ensinado na escola?

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vale para as demais disciplinas. Mas uma coisa que devemos considerar é que nós não ensinamos

na escola a ciência do cientista. A versão escolar da ciência foi construída ao longo do tempo

e passou por processos de simplificação, adaptação, reorganização, programação e outros.

A teoria da Transposição Didática, proposta por Yves Chevallard (1991), mostra as modificações

que ocorrem em um determinado conhecimento científico em seu percurso até chegar à

escola. Com a tecnologia e a educação tecnológica não poderia ser diferente. No entanto, se no

caso das ciências precisamos conhecer um pouco dela, inclusive em seus aspectos históricos e

epistemológicos, para trabalharmos com seu ensino, por que seria diferente com a tecnologia?

Por isso, torna-se fundamental estabelecermos pontos de partida para a compreensão do

empreendimento tecnológico.

2.2 Tecnologia: o estudo do artificialQuando começamos a conhecer os aspectos históricos e filosóficos da ciência, em especial

por meio dos trabalhos de Thomas Kuhn, Karl Popper, Gaston Bachelard e outros epistemó-

logos, passamos a compreender também alguns aspectos do ensino das ciências que antes não

eram notados. Alguns exemplos disso são o uso das atividades experimentais no ensino, o papel

das concepções alternativas na aprendizagem, os obstáculos à aprendizagem, a ruptura entre o

senso comum e o conhecimento científico, e assim por diante.

Assim, parece-nos razoável supor que, quando buscamos compreender melhor o ensino da

tecnologia, um possível caminho seria olhar para os aspectos históricos e filosóficos da tecnologia,

tal como ocorreu com a ciência. Ou seja, uma epistemologia da tecnologia pode nos ajudar.

Já há filósofos contemporâneos que defendem uma identidade própria para a tecnologia e uma

epistemologia peculiar aos seus objetos, entre eles Bunge (1985), Simon (2004), Cupani (2004),

Dusek (2006) e Takahashi (2009).

Ao mesmo tempo, não podemos esperar uma distinção absolutamente clara dos objetos

pertencentes à tecnologia e à ciência. Existem interseções históricas em seus domínios que

não podem ser ignoradas; por exemplo, a permanente recorrência da ciência moderna aos

Quais seriam as diferenças entre a ciência, a ciência aplicada e a tecnologia? O que seria uma educação tecnológica? Essas foram as questões lançadas na primeira aula e que serão trabalhadas aqui.

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Ciência, ciência aplicada e tecnologia

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aparatos e aos desenvolvimentos tecnológicos, ou, na outra direção, o suporte dado à tecnologia

pelas pesquisas básicas da ciência. E básica aqui significa aquelas pesquisas feitas nas áreas de

base, ou seja, na física, na química, na biofísica, na bioquímica, na biologia, e assim por diante.

Tanto a tecnologia quanto a ciência são atividades humanas com especificidades inerentes a

cada uma delas, ainda que sua evolução tenha trazido uma complexidade às suas imbricações.

Dessa maneira, as atividades dos cientistas e dos tecnólogos estão mais fortemente conectadas.

Mas, ainda assim, algumas distinções são possíveis. Uma primeira diferenciação importante a

ser feita é entre técnica e tecnologia. Para Bunge (1985), a técnica consiste em atividades práticas,

apoiadas em conhecimentos ditos pré-científicos, enquanto que a tecnologia envolve um processo

de pesquisa-desenvolvimento-produção de artefatos, amparada no conhecimento científico

disponível. Pode-se dizer que a técnica contém uma grande carga de empirismo, no sentido de

que se acumula um conjunto de informações por meio de diversas tentativas e aplicação de outras

técnicas conhecidas. Um artefato de caça como o arco e flecha, por exemplo, é resultado de uma

técnica. A escolha da melhor madeira, das dimensões do arco e da flecha, a corda para a impulsão,

é o resultado de várias tentativas, com diferentes materiais e diferentes medidas, até se chegar ao

que as necessidades locais exigiam. Além disso, esses mesmos materiais e dimensões podem servir

a determinada população e não a outras. É um conhecimento técnico local.

A tecnologia, segundo Bunge (1985), pode ser concebida como um campo de conhecimento

que se ocupa do projeto de artefatos e o planejamento de sua realização, operação, ajuste,

manutenção, avaliação de sua eficácia, apoiado no conhecimento científico. Trata-se do estudo

científico do artificial, em contraste com a ciência, que se ocupa do estudo das coisas naturais.

Para Bunge (1985), entende-se por artificial tudo aquilo que seja “opcionalmente fabricado ou

feito com ajuda de conhecimento aprendido e utilizável por outros” (p.222). Haveria, conforme

o autor, três condições necessárias para caracterizar a produção de um artefato:

i. decisão por sua produção;

ii. a atividade de produção ser apoiada em um conhecimento aprendido;

iii. deve conter algum valor social.

Voltando nossa atenção para a tecnologia, cabe ressaltar que os artefatos são o produto final

de um processo tecnológico. Isso é relevante para nossos propósitos, pois o produto em si não

poderia ser transposto para a sala de aula como conteúdo a ser ensinado. Mas as características, os

procedimentos e os conhecimentos presentes nos processos tecnológicos podem. Ainda que sejam

bastante complexos, podemos identificar quatro elementos essenciais de um processo tecnológico:

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i. a identificação de uma necessidade;

ii. a projeção de uma ou mais soluções potenciais;

iii. a construção daquela solução que se mostrou mais promissora;

iv. a avaliação do que foi produzido face à necessidade que a originou (GilBert, 1992).

Nota-se, portanto, que um artefato tecnológico responde a um problema preciso.

As características de um processo tecnológico apresentadas até aqui nos

permitem construir um esquema básico1:

Todos os elementos de um processo tecnológico são, ou podem ser, realimentados pelas etapas

subjacentes. Não se trata, portanto, de um modelo linear. Além disso, vale ressaltar a dependência

de valores humanos no desenvolvimento tecnológico. Isso é particularmente importante, pois

derruba a falsa ideia de que poderia haver uma neutralidade na produção tecnológica. Assim,

quando se coloca nas mãos de técnicos, ou tecnólogos, ou ainda nas chamadas equipes técnicas, o

poder de decisões não implica que estas serão tomadas plenamente isentas de valores pessoais e

1Esquema extraído de ricarDo, custóDio e rezenDe jr. (2007).

Necessidade Social

Decisões Administrativas Avaliação

Básica

Aplicada

Tecnológica

Pesquisa

Viabilidade Projeto+

Modelo

Teste

Desenvolvimento

Produto ou

Processo

Produção ou

Prática

Produção

Figura 2.1: Elementos de um processo tecnológico. / Fonte: adaptado de RicaRdo; custódio; Rezende JR., 2007.

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sociais, ideologias, concepções e crenças. Ao contrário, a eleição das prioridades está subordinada,

ou ao menos fortemente associada, aos valores proeminentes na sociedade em questão.

As manifestações populares (Figura 2.2) ocorridas nos meses de junho e julho de 2013 podem

ser um exemplo disso: construir estádios em vez de portos e estradas pode ser uma prioridade em

determinado momento, mas não em outros. Concentrar todo o esforço industrial para produzir

armas e munições na Alemanha na década de 1930 pode ser outro exemplo.

Outro dado importante que a Figura 2.1 revela é que existem aspectos organizacionais do

processo tecnológico.

Pode-se dizer também que isso significa

admitir a existência de uma comunidade

de profissionais com características

específicas, com publicações direcionadas

e, por conseguinte, certa sistematicidade

em seus procedimentos. No entanto,

uma comunidade de tecnólogos difere

de uma comunidade de cientistas em

vários aspectos. Um deles é a circulação

de informações e a cooperação entre

grupos. No caso da comunidade dos

tecnólogos, a circulação e a cooperação são bem mais restritas, pois envolve segredos

industriais, militares e patentes com elevado valor comercial. Veja-se, por exemplo,

a dificuldade que o Brasil enfrentou na aquisição de aviões de caça para a Força

Aérea; uma das exigências era a transferência de tecnologia2.

Conforme salienta Bunge (1985), os processos tecnológicos envolvem “o reconhecimento

e formulação de um problema prático – projeto de uma coisa, estado ou processo para solu-

cionar um problema com alguma aproximação – construção de um protótipo (máquina, grupo

experimental) – teste – avaliação – revisão do projeto, teste ou problema” (p.236). Entretanto,

tais procedimentos não são estáticos. Na medida em que novos problemas surgem, criam-se

novas técnicas e/ou novos conhecimentos disponíveis são considerados. Segundo Lacey (1998),

a tecnologia possui um background, cujas características são:

i. não se refere à realidade, mas a um modelo desta;

ii. absorve informações empíricas buscando predições;

iii. é contestável empiricamente, ainda que não tão intensamente quanto a ciência.

Figura 2.2: Manifestação em São Paulo no dia 20 de junho, na Avenida Paulista. / Fonte: camaRgo, 2013.

2Nesse caso, há também outros fatores, além do econômico e estratégico, como os de ordem política.

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Esse background é, de fato, o grande tesouro das nações que investem em ciência e tecnologia,

cuja posse permite, inclusive, exercer influências sobre aquelas que não o detêm. Estados Unidos,

Alemanha e Japão são bons exemplos.

Nessa mesma direção, Rosenblueth (1980) destaca que “a tecnologia não está separada da

teoria nem é mera aplicação da ciência pura: tem uma componente criativa particularmente

manifesta na pesquisa tecnológica e no planejamento de políticas tecnológicas” (p.191).

Utges et al (1996) ressaltam ainda que seria temerário atribuir apenas à ciência a racionalidade

na compreensão dos fenômenos naturais e, à tecnologia, o papel empirista de mera ciência

aplicada. Pode-se dizer que a ciência aplicada serviria de ponte entre a ciência básica e a tecno-

logia. Ou seja, o produto final de um processo tecnológico é a produção de um artefato,

enquanto que o produto final de um processo científico é o conhecimento.

A Tabela 2.13 a seguir oferece algumas diferenças e semelhanças entre

ciência e tecnologia que podem ajudar a esclarecer:

Tabela 2.1: Diferenças e semelhanças entre ciência e tecnologia. / Fonte: extraído de RicaRdo; custódio; Rezende JR., 2007, adaptado de Bunge, 1985.

Característica Ciência TecnologiaTipo principal de problema Cognitivo Prático

Objetivo final Entender Fazer

Centrada em Hipóteses e experimentos Projetos e programas

Baseada em Matemática Matemática e ciência

Papel da Teoria Guia para o entendimento Guia para a ação

Papel da experimentação Fonte de dados e testes de ideias Fonte de dados e testes de projetos e programas

Profundidade Máxima desejável Suficiente para propósitos práticos

Impacto social Sobre o resto da cultura Sobre toda a sociedade

Análise custo/benefício Frequentemente não se aplica Necessária

Papel da descoberta Central Central

Papel da invenção Central Central

Crítica Necessária Necessária

A Tabela 2.1 sintetiza parte das discussões que a precedem. Ainda que não tenha a pretensão

de esgotar todas as características da ciência e da tecnologia, a Tabela 2.1 ajuda a superar a

visão simplificada da relação entre ciência e tecnologia mostrada nas discussões da aula anterior

“Concepções acerca do ensino da tecnologia”.

3Extraído de ricarDo, custóDio e rezenDe jr. (2007), adaptado de Bunge (1985, p.238).

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De posse dessa percepção mais cuidadosa acerca da tecnologia, cabe agora entendermos suas

implicações para a busca de uma educação tecnológica.

2.3 A educação tecnológicaAs discussões acima nos ajudam a entender melhor o que é, afinal, a tecnologia. Isso é

relevante se queremos ensinar tecnologia aos nossos alunos. Mas, não é suficiente. Ao mesmo

tempo em que precisamos saber o que é a tecnologia para ensiná-la, temos que buscar respostas

para as seguintes perguntas:

Vamos voltar àquela afirmação de Fourez (2003) apresentada na aula anterior:

A ideologia dominante dos professores é que as tecnologias são aplicações das ciências.

Quando as tecnologias são assim apresentadas, é como se, uma vez compreendida as ciências,

as tecnologias seguissem automaticamente. E isto em que pese, na maior parte do tempo, a

construção de uma tecnologia implica em considerações sociais, econômicas e culturais que

vão muito além de uma aplicação das ciências (Fourez, 2003, p.119).

Naquela ocasião, tínhamos chamado a atenção especialmente para a primeira parte dessa

citação. Mas agora ressaltamos a segunda parte. Ou seja, as implicações de uma concepção

parcial da tecnologia. E o próprio autor destaca na sequência que:

A compreensão desta implicação do social na construção das tecnologias torna possível um

estudo crítico destas, como o fazem os trabalhos de avaliação social das tecnologias (technology

assessment). Uma formação para a negociação com as tecnologias deve tornar os alunos capazes

de analisar os efeitos organizacionais de uma tecnologia. (Fourez, 2003, p.119)

Esse olhar crítico permite, ainda, superar a visão da aplicabilidade e da utilidade como sendo

boas por si mesmas. Fourez (1997 e 2003) defende que os alunos, além de compreenderem o

funcionamento dos equipamentos eletrônicos, teriam que entender também as implicações sociais

da tecnologia e as relações de poder implicadas em seu uso. Uma educação tecnológica deveria

Por que ensinar tecnologia? Ou, ainda, por que precisamos promover uma educação tecnológica? Quais seus objetivos? Quais suas finalidades?

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ajudar a preparar os alunos para negociar com os produtos científicos e tecnológicos que existem

em sua volta, não apenas localmente, mas historicamente também.

Ao longo da história, a ciência e a tecnologia asseguraram a sobrevivência e, em alguns

casos, a melhoria da qualidade de vida da humanidade. Mas elas também romperam as

fronteiras do mero atendimento às necessidades básicas e criaram novas necessidades. Quem de

nós precisaria de um telefone celular que tirasse fotos no início da década de 1990? Nós não

tínhamos essa necessidade. Quem de nós agora compra um aparelho celular que faz apenas as

mesmas coisas da década de 1990? Além disso, a ciência e a tecnologia possibilitam não apenas o

controle das coisas naturais, mas também daqueles que não as possui. Ou seja, permite o

controle dos homens sobre os outros homens.

A tecnologia, nesse sentido, é mais imediata quando comparada à ciência. A tecnologia busca

responder a problemas imediatos e bem delimitados; carrega consigo uma intencionalidade e

uma funcionalidade. A ciência, por outro lado, tem pretensões menos urgentes. Uma fronteira

aqui seria o caso da medicina, por exemplo. As pesquisas que buscam a cura para uma doença

têm um problema bem definido e, supostamente, pressa em encontrar essa cura. Trata-se de um

bom exemplo que envolve tanto as pesquisas nas ciências de base quanto nas ciências aplicadas.

Uma abordagem possível na escola seria relacionar conceitos científicos com a explicação

do funcionamento de aparatos tecnológicos. Mas poderia incluir também conhecimentos e

técnicas envolvidas capazes de orientar a tomada de decisões, ou mesmo projetar a construção

de artefatos (Gilbert, 1992; Utges et al, 1996). Outra possibilidade seria transpor para a escola

os procedimentos inerentes aos processos tecnológicos, centrados no planejamento e execução

de projetos, conforme destaca Cajas (2001), considerando-se que estes exigem a tomada de

decisões a partir dos conhecimentos e das informações disponíveis demandam fazer escolhas

e considerar os aspectos racionais, organizacionais e criativos, a fim de encontrar alternativas

para os mais variados problemas que se apresentam. Pode-se acrescentar ainda que implica saber

gerenciar os conhecimentos e as técnicas que já estão à disposição. Isso, na verdade, é a grande

competência cognitiva que a escola deveria promover nos alunos: a gestão dos conhecimentos

disponíveis, sendo que apenas uma parte deles é trabalhada na escola.

De outra forma, para que serviria a escola?

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Não se trata, evidentemente, de formar técnicos nas escolas. Para isso, já há instituições

especializadas. O que se pretende com uma educação tecnológica é formar sujeitos capazes

de posicionarem-se frente à tecnologia com responsabilidade e senso crítico analítico. Isso se

estende, inclusive, para a superação das falsas necessidades de consumo, tão presentes em nosso

cotidiano e em nossa cultura, em especial, a ocidental.

2.4 Algumas conclusõesA partir das discussões acimas, não podemos mais cair na concepção simplista de que a

tecnologia é apenas uma ciência aplicada. Há uma comunidade de tecnólogos que produzem

conhecimentos, procedimentos e processos próprios. Também não podemos mais concluir que

basta aprendermos a ciência que compreenderemos naturalmente a tecnologia. Tampouco nos

parece razoável reduzir a educação tecnológica ao uso de aparatos tecnológicos na sala de aula

ou ao mero uso da informática. São práticas importantes e podem ser implementadas, mas não

é uma educação tecnológica; ao menos não com as dimensões discutidas até aqui. A principal

implicação didática para as concepções acerca do ensino da tecnologia analisadas é que podemos

pensar que estamos fazendo alguma coisa, quando, de fato, não estamos, ou podemos incorrer

em impossibilidades. Para ilustrar isso, vamos retomar algumas declarações vistas na primeira

aula. Um dos professores havia dito que:

“Nós temos 15 computadores, para uma escola com quase dois mil alunos,

então a gente tenta, dentro da possibilidade, colocar uma turma de alunos ali para

fazer uma pesquisa” (P27 – química).

O uso da informática em aulas de ciências é uma prática bastante defendida entre os educa-

dores e professores. Mas ela sozinha não promove uma educação tecnológica. Quando ensinar

tecnologia é entendido desse modo, torna-se praticamente impossível implementá-la na sala de

aula, pelas razões apresentadas pelo professor acima. Não há equipamento suficiente.

Alguns estados brasileiros distribuíram tablets ou notebooks aos alunos e aos professores da

rede de ensino. Esta iniciativa é ótima e certamente irá ampliar as possibilidades de ensino.

Mas, o simples uso desses equipamentos não garante uma educação tecnológica. Usá-los na sala

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de aula para ensinar ciências deve ser incentivado, mas continua sendo ensino de ciências, não

de tecnologia. Vamos a outro exemplo:

“Então, a gente trabalha, por exemplo, termodinâmica das máquinas térmicas.

Então, a gente dá vários exemplos de máquinas térmicas. É o funcionamento das

máquinas térmicas” (P7 – física).

Essa foi a resposta dada pelo professor quando lhe foi perguntado se ensinava tecnologia e, se sim,

como estava fazendo. Mais uma vez, trata-se de uma prática interessante na sala de aula, ou seja, eleger

situações históricas para trabalhar com a ciência, mas, assim como no caso anterior, continua sendo

ensino de ciências; não de tecnologia. Particularmente no caso das máquinas térmicas, trata-se de um

exemplo histórico em que o desenvolvimento tecnológico precedeu a ciência. Talvez esse aspecto

pudesse ser um dos temas a ser debatido na escola. Vejamos mais uma declaração:

“Eu costumo falar com os alunos que a eletrônica, que é onde a gente vê mais

aplicação tecnológica, é uma área muito ligada à física. A eletrônica seria uma

aplicação da física, aplicação prática dos conceitos da física” (P6* - física).

Certamente a eletrônica é um bom exemplo de aplicação da física, mas não é só isso.

A engenharia eletrônica, por exemplo, há muito tempo adquiriu o status de produtora de

conhecimentos próprios, com formações, técnicas e procedimentos característicos, com grande

aproximação com a física aplicada e a física teórica. Não está explícito na fala acima, mas poderia

conter a falsa ideia de que, nesse caso, bastaria compreender a física para também entender a

eletrônica, o que é bastante improvável de ocorrer.

Essas percepções, e também aquelas discutidas na primeira aula, revelam práticas interes-

santes dos professores em suas aulas, mas, quando são assumidas como educação tecnológica,

perde-se a oportunidade de compreender a sua extensão e seu real sentido na formação dos

alunos. As discussões apresentadas aqui revelam elementos complexos da produção tecnológica,

bem como as influências sociais, econômicas e culturais presentes nesse processo.

Para que tais aspectos se tornem conteúdos escolares é preciso, antes de tudo, compreendê-los

em sua extensão e, principalmente, considerar que se pretendemos promover uma educação

tecnológica nas escolas haverá necessidade de lançarmos mão de novas práticas didático-meto-

dológicas e novas ênfases curriculares, conforme serão discutidas nas próximas aulas.

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Ciência, ciência aplicada e tecnologia

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laceY, h. Valores e Atividade Científica. São Paulo: Discurso Editorial, 1998.

Agora que você concluiu a leitura do texto, continue explorando os recursos de aprendizagem que preparamos para você, disponibilizados no Ambiente

Virtual de Aprendizagem. Responda ao questionário da atividade Definição de Ciência e Tecnologia, em seguida, elabore um texto sobre o tema que será proposto no Blog: O que é tecnologia?Bom trabalho!

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