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CIÊNCIA E NAVEGAÇÃO - jakobssonestudio.com.brjakobssonestudio.com.br/site/wp-content/uploads/pdf/... · Contar a história da viagem à Índia de 1500 sem seus antecedentes faz

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CIÊNCIA E NAVEGAÇÃOcaminhos para o descobrimento do Brasil

Bento Ribeiro Dantas

Velas pp iniciais 10/3/06 12:33 PM Page 1

33

CIÊNCIA E NAVEGAÇÃOcaminhos para o descobrimento do Brasil

Bento Ribeiro Dantas© Bento Ribeiro Dantas, 2006.

Capa: Mônica Sofiatti Grael

Revisão: Sérgio Bellinello Soares

Impressão: J. Sholna Editora Gráfica

Todos os direitos reservados para Andrea Jakobsson Estúdio Editorial Ltda.

Vedada a reprodução sem a autorização expressa da editora.

Rua Xavier da Silveira 45 sala 906

Copacabana, 22061-010, Rio de Janeiro, RJ

Tel/fax: (21) 2267-6763

www.jakobssonestudio.com.br

D213cDantas, Bento Ribeiro, 1933 –

Ciência e navegação : caminhos para o descobrimento do Brasil/ Bento Ribeiro Dantas. – Rio de Janeiro : Andrea Jakobsson Estúdio, 2006

il. 10AnexosInclui bibliografiaISBN 85-88742-21-7

1. Descobertas geográficas portuguesas. 2. Brasil – História – Descobrimento, 1500. 3. Descobertas geográficas – História. 4. Portugal – História – Período das descobertas, 1385-1580I. Título06-2784.

CDD 981CDU 94 (81) “.../1548”

03.08.06 08.08.06

Ciência e navegação: caminhos para o descobrimento do Brasil

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CIÊNCIA E NAVEGAÇÃOcaminhos para o descobrimento do Brasil

Bento Ribeiro Dantas© Bento Ribeiro Dantas, 2006.

Capa: Mônica Sofiatti Grael

Revisão: Sérgio Bellinello Soares

Impressão: J. Sholna Editora Gráfica

Todos os direitos reservados para Andrea Jakobsson Estúdio Editorial Ltda.

Vedada a reprodução sem a autorização expressa da editora.

Rua Xavier da Silveira 45 sala 906

Copacabana, 22061-010, Rio de Janeiro, RJ

Tel/fax: (21) 2267-6763

www.jakobssonestudio.com.br

D213cDantas, Bento Ribeiro, 1933 –

Ciência e navegação : caminhos para o descobrimento do Brasil/ Bento Ribeiro Dantas. – Rio de Janeiro : Andrea Jakobsson Estúdio, 2006

il. 10AnexosInclui bibliografiaISBN 85-88742-21-7

1. Descobertas geográficas portuguesas. 2. Brasil – História – Descobrimento, 1500. 3. Descobertas geográficas – História. 4. Portugal – História – Período das descobertas, 1385-1580I. Título06-2784.

CDD 981CDU 94 (81) “.../1548”

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ÍNDICE

Introdução

Ceuta e os primeiros passos do Infante D. Henrique

Os templários e o Infante D. Henrique

As primeiras viagens de descobrimento

A caravela

Cartas e instrumentos náuticos

Os objetivos

A pimenta

A política de segredo

As estradas do mar

O Cabo da Boa Esperança e o caminho para as Índias

Colombo e as dimensões da terra

0 Tratado de Tordesilhas

6

1488-1497

A viagem de Vasco da Gama

Duarte Pacheco Pereira, 1460 – 1533

Hojeda e Pinzon

Antes de 1500, o bacharel de Cananéia

A viagem de 1500

Um mapa português anônimo de 1502

Os cronistas

Os navegadores portugueses e a ciência moderna

Quem descobriu o Brasil?

Anexos

Bibliografia

59

63

67

74

81

82

98

101

104

109

111

114

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ÍNDICE

Introdução

Ceuta e os primeiros passos do Infante D. Henrique

Os templários e o Infante D. Henrique

As primeiras viagens de descobrimento

A caravela

Cartas e instrumentos náuticos

Os objetivos

A pimenta

A política de segredo

As estradas do mar

O Cabo da Boa Esperança e o caminho para as Índias

Colombo e as dimensões da terra

0 Tratado de Tordesilhas

6

1488-1497

A viagem de Vasco da Gama

Duarte Pacheco Pereira, 1460 – 1533

Hojeda e Pinzon

Antes de 1500, o bacharel de Cananéia

A viagem de 1500

Um mapa português anônimo de 1502

Os cronistas

Os navegadores portugueses e a ciência moderna

Quem descobriu o Brasil?

Anexos

Bibliografia

59

63

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aos enormes e poderosos navios de carga, perdeu a noção dos constrangi-mentos a que está submetido um barco que, para se mover, esteja totalmentesujeito à direção e à intensidade dos ventos e das correntes marítimas. Parao navegante que tenha como único meio de propulsão as suas velas, o me-lhor caminho para chegar ao porto de destino não é a linha reta a que esta-mos habituados, mas aquele que as forças da natureza indicam. O mesmo sedá com o tempo da viagem. O velejador, ao contrário do usuário de ummeio de transporte mecanizado, não tem como prever o dia, muito menos ahora de sua chegada. Para velejar, além do domínio das técnicas de nave-gação e das manobras do barco, sempre será necessária uma forte determi-nação para enfrentar ventos contrários, tempestades e calmarias.

É bem verdade que alguns historiadores não gostam do termo descobri-mento no sentido que os portugueses usaram para suas viagens pioneiras,inclusive para o Brasil. Argumentam que em 1500 o Brasil já era habitado ea população nativa brasileira era maior do que a de Portugal, e preferem apalavra achamento. Sem entrar no mérito da questão, neste livro empre-gamos descobrimento como definiram os europeus para seu uso: “descober-ta de terra ignota”.

Hoje, com o uso constante de nossos inseparáveis e temperamentaiscomputadores, adquirimos o saudável hábito da duplicação de arquivos.Em Portugal, no passado, infelizmente não era assim. Em 10 de novembrode 1755, um grande terremoto e os incêndios que por seis dias se seguiramdeixaram grande parte de Lisboa em ruínas – perto de um terço da cidadefoi destruída e cerca de 20.000 pessoas morreram. Desapareceram oPalácio Real com sua magnífica Biblioteca Real de mais 60.000 livros, umadas mais ricas da Europa; incendiaram-se a Casa da Guiné e da Índia e oArquivo, com toda a sua documentação preciosa, além de várias bibliotecasconventuais. Na tragédia, perdeu-se a maior parte da memória dos desco-brimentos, principalmente aquela que era protegida por segredo de Estado.

Introdução

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regiões. Outras nações estavam tão longe da vanguarda assumida pelos por-tugueses em tentativas desse gênero, que estes últimos prosseguiram com seusempreendimentos por cerca de 80 anos, antes que qualquer de seus vizinhosparecesse ter pensado sequer em descobrimentos ultramarinos (…) osnumerosos eventos demonstraram que os planos eram os resultados de sóli-do raciocínio, e formados a partir das bases mais racionais.”

Considerando que a história do Brasil até a Independência está intima-mente ligada à de Portugal, um relato sobre os anos que precederam os 1500é necessário para o pleno entendimento do início de nossa história comopaís. A viagem de Pedro Álvares Cabral só pode ser bem compreendida seinserida no quadro bem mais vasto das navegações portuguesas do séculoXV. Contar a história da viagem à Índia de 1500 sem seus antecedentes fazcom que ela fique incompleta a ponto de se tornar inverossímil, pois iríamosomitir a crônica de pelo menos 85 anos, durante os quais aconteceu umaverdadeira revolução no que diz respeito a métodos de análise, a trabalho deequipe e de globalização na aquisição de conhecimentos aplicados a umobjetivo com finalidade prática e definida.

Afirmar que Cabral descobriu o Brasil por acaso seria o mesmo que afir-mar que ele e sua frota passeavam, meio sem rumo, pelo Oceano Atlântico,apesar de guiados por um grupo de pilotos do qual faziam parte os mel-hores navegadores do mundo de então, e que estes, por incompetência, teri-am cometido um erro crasso de navegação de mais de 600 milhas náuticas.Em minha opinião, afirmar isso é contar uma versão inexata da história, que,além do mais, é injusta com a memória dos monumentais esforços pratica-dos por nossos antepassados, bem como para com os leitores, por omitir aparte mais inteligente e apaixonante da história.

Convém ter sempre presente que o veículo utilizado pelos navegadoresportugueses que primeiro avistaram as costas do Brasil foi o barco a vela - eo que isso implica. Nossa civilização moderna, habituada aos aviões a jato e

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aos enormes e poderosos navios de carga, perdeu a noção dos constrangi-mentos a que está submetido um barco que, para se mover, esteja totalmentesujeito à direção e à intensidade dos ventos e das correntes marítimas. Parao navegante que tenha como único meio de propulsão as suas velas, o me-lhor caminho para chegar ao porto de destino não é a linha reta a que esta-mos habituados, mas aquele que as forças da natureza indicam. O mesmo sedá com o tempo da viagem. O velejador, ao contrário do usuário de ummeio de transporte mecanizado, não tem como prever o dia, muito menos ahora de sua chegada. Para velejar, além do domínio das técnicas de nave-gação e das manobras do barco, sempre será necessária uma forte determi-nação para enfrentar ventos contrários, tempestades e calmarias.

É bem verdade que alguns historiadores não gostam do termo descobri-mento no sentido que os portugueses usaram para suas viagens pioneiras,inclusive para o Brasil. Argumentam que em 1500 o Brasil já era habitado ea população nativa brasileira era maior do que a de Portugal, e preferem apalavra achamento. Sem entrar no mérito da questão, neste livro empre-gamos descobrimento como definiram os europeus para seu uso: “descober-ta de terra ignota”.

Hoje, com o uso constante de nossos inseparáveis e temperamentaiscomputadores, adquirimos o saudável hábito da duplicação de arquivos.Em Portugal, no passado, infelizmente não era assim. Em 10 de novembrode 1755, um grande terremoto e os incêndios que por seis dias se seguiramdeixaram grande parte de Lisboa em ruínas – perto de um terço da cidadefoi destruída e cerca de 20.000 pessoas morreram. Desapareceram oPalácio Real com sua magnífica Biblioteca Real de mais 60.000 livros, umadas mais ricas da Europa; incendiaram-se a Casa da Guiné e da Índia e oArquivo, com toda a sua documentação preciosa, além de várias bibliotecasconventuais. Na tragédia, perdeu-se a maior parte da memória dos desco-brimentos, principalmente aquela que era protegida por segredo de Estado.

Introdução

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regiões. Outras nações estavam tão longe da vanguarda assumida pelos por-tugueses em tentativas desse gênero, que estes últimos prosseguiram com seusempreendimentos por cerca de 80 anos, antes que qualquer de seus vizinhosparecesse ter pensado sequer em descobrimentos ultramarinos (…) osnumerosos eventos demonstraram que os planos eram os resultados de sóli-do raciocínio, e formados a partir das bases mais racionais.”

Considerando que a história do Brasil até a Independência está intima-mente ligada à de Portugal, um relato sobre os anos que precederam os 1500é necessário para o pleno entendimento do início de nossa história comopaís. A viagem de Pedro Álvares Cabral só pode ser bem compreendida seinserida no quadro bem mais vasto das navegações portuguesas do séculoXV. Contar a história da viagem à Índia de 1500 sem seus antecedentes fazcom que ela fique incompleta a ponto de se tornar inverossímil, pois iríamosomitir a crônica de pelo menos 85 anos, durante os quais aconteceu umaverdadeira revolução no que diz respeito a métodos de análise, a trabalho deequipe e de globalização na aquisição de conhecimentos aplicados a umobjetivo com finalidade prática e definida.

Afirmar que Cabral descobriu o Brasil por acaso seria o mesmo que afir-mar que ele e sua frota passeavam, meio sem rumo, pelo Oceano Atlântico,apesar de guiados por um grupo de pilotos do qual faziam parte os mel-hores navegadores do mundo de então, e que estes, por incompetência, teri-am cometido um erro crasso de navegação de mais de 600 milhas náuticas.Em minha opinião, afirmar isso é contar uma versão inexata da história, que,além do mais, é injusta com a memória dos monumentais esforços pratica-dos por nossos antepassados, bem como para com os leitores, por omitir aparte mais inteligente e apaixonante da história.

Convém ter sempre presente que o veículo utilizado pelos navegadoresportugueses que primeiro avistaram as costas do Brasil foi o barco a vela - eo que isso implica. Nossa civilização moderna, habituada aos aviões a jato e

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ouro, prata e marfim, os invasores encontraram grandes quantidades deespeciarias: pimenta, cravo, gengibre e canela. Os árabes também viviammuito bem: tapetes persas, terraços de mármore, pisos de mosaico e despen-sas abarrotadas de trigo, arroz e sal.

Em 1416, o infante foi nomeado provedor das despesas de Ceuta e doisanos após retornou para uma estada de alguns meses. Com tempo e vagar,conheceu Dom Henrique a origem de toda aquela riqueza: antes da ocu-pação portuguesa, Ceuta era um terminal para caravanas que atravessavam odeserto do Saara vindas do Senegal e do Niger, e para as que margeavam acosta da Líbia procedentes de Bagdá e do Egito.

O escritor e cronista Gomes Eanes de Azurara ou Zurara, contemporâ-neo do Infante, em sua Crônica da Tomada de Ceuta, citada por Jaime Cortesão,figura a perda dos mouros com eloqüência:

Onde acharão daqui adiante os mouros estranhos que vinham deEtiópia e de Alexandria e de Barbaria e de terra de Assíria, que é oreino de Turcos, e os do oriente, que vivem além do rio Eufrates, e dasÍndias e doutras muitas terras que são além do eixo que está ante osnossos olhos? Todos estes vinham a ti carregados de tantas e tão ricasmercadorias (…) Que farão agora os moradores de Gibraltar e assimtodos os outros do reino de Granada, porque é o seu socorro e o seuamparo (…)? Quais de nós acharão agora, quando se alevantarem desuas camas, as bestas carregadas dos panos de seda que nos vinhamda cidade de Damasco ou as casas cheias de pedras preciosas dos dacomunidade de Veneza ou os grandes sacos da especiaria, que nos vi-nham dos desertos da Líbia, e que riquezas ou nobrezas poderíamosnós nomear que cada dia não achássemos ante as portas de nossaslojas ou qual navio poderia correr por todo o mar Mediterrâneo quenão mesurasse suas velas ante a grandeza da nossa cidade?2

Ceuta e os primeiros passos do Infante D. Henrique

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Portanto, a pesquisa histórica sobre o descobrimento do nosso país não éextensa – as fontes ficaram limitadas a uma pequena quantidade de reg-istros que os investigadores encontraram arquivados fora das instituiçõesque arderam. Só um pequeno número de documentos originais sobreviveu,e todos já foram publicados. Os fatos aqui apresentados foram relatadoscom o maior rigor possível. Baseados neles, estou certo de poder demon-strar que a história do descobrimento do Brasil ficará incompleta se nãohouver uma ênfase especial sobre as possibilidades e limitações do conhec-imento científico e da arte da navegação e suas implicações nas viagens dedescobrimento.

• II •

CEUTA E OS PRIMEIROS PASSOSDO INFANTE D. HENRIQUE

Ahistória dos descobrimentos portugueses e, por conseqüência, dodescobrimento do Brasil, começa 85 anos antes de 1500, e com umequívoco. Em 1415, Portugal invadiu e tomou a pequena cidade de

Ceuta, às margens africanas do Mediterrâneo, bem às portas do estreito deGibraltar. Ceuta, de população árabe, era uma pequena cidade-mercado. Mal-guarnecida, não tinha como se defender da frota de 20 galeras que a atacou.

À frente da armada portuguesa estava o infante Dom Henrique, de 21anos de idade. O infante e seus irmãos Pedro e Duarte, por seus atos de cor-agem, foram ali mesmo armados cavaleiros pelo rei Dom João I.

Apesar do clima festivo, certamente não passou despercebida à agudainteligência do jovem príncipe a enorme diferença de padrão de vida que le-vavam os mouros de Ceuta em relação aos portugueses de então. Além de

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ouro, prata e marfim, os invasores encontraram grandes quantidades deespeciarias: pimenta, cravo, gengibre e canela. Os árabes também viviammuito bem: tapetes persas, terraços de mármore, pisos de mosaico e despen-sas abarrotadas de trigo, arroz e sal.

Em 1416, o infante foi nomeado provedor das despesas de Ceuta e doisanos após retornou para uma estada de alguns meses. Com tempo e vagar,conheceu Dom Henrique a origem de toda aquela riqueza: antes da ocu-pação portuguesa, Ceuta era um terminal para caravanas que atravessavam odeserto do Saara vindas do Senegal e do Niger, e para as que margeavam acosta da Líbia procedentes de Bagdá e do Egito.

O escritor e cronista Gomes Eanes de Azurara ou Zurara, contemporâ-neo do Infante, em sua Crônica da Tomada de Ceuta, citada por Jaime Cortesão,figura a perda dos mouros com eloqüência:

Onde acharão daqui adiante os mouros estranhos que vinham deEtiópia e de Alexandria e de Barbaria e de terra de Assíria, que é oreino de Turcos, e os do oriente, que vivem além do rio Eufrates, e dasÍndias e doutras muitas terras que são além do eixo que está ante osnossos olhos? Todos estes vinham a ti carregados de tantas e tão ricasmercadorias (…) Que farão agora os moradores de Gibraltar e assimtodos os outros do reino de Granada, porque é o seu socorro e o seuamparo (…)? Quais de nós acharão agora, quando se alevantarem desuas camas, as bestas carregadas dos panos de seda que nos vinhamda cidade de Damasco ou as casas cheias de pedras preciosas dos dacomunidade de Veneza ou os grandes sacos da especiaria, que nos vi-nham dos desertos da Líbia, e que riquezas ou nobrezas poderíamosnós nomear que cada dia não achássemos ante as portas de nossaslojas ou qual navio poderia correr por todo o mar Mediterrâneo quenão mesurasse suas velas ante a grandeza da nossa cidade?2

Ceuta e os primeiros passos do Infante D. Henrique

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Portanto, a pesquisa histórica sobre o descobrimento do nosso país não éextensa – as fontes ficaram limitadas a uma pequena quantidade de reg-istros que os investigadores encontraram arquivados fora das instituiçõesque arderam. Só um pequeno número de documentos originais sobreviveu,e todos já foram publicados. Os fatos aqui apresentados foram relatadoscom o maior rigor possível. Baseados neles, estou certo de poder demon-strar que a história do descobrimento do Brasil ficará incompleta se nãohouver uma ênfase especial sobre as possibilidades e limitações do conhec-imento científico e da arte da navegação e suas implicações nas viagens dedescobrimento.

• II •

CEUTA E OS PRIMEIROS PASSOSDO INFANTE D. HENRIQUE

Ahistória dos descobrimentos portugueses e, por conseqüência, dodescobrimento do Brasil, começa 85 anos antes de 1500, e com umequívoco. Em 1415, Portugal invadiu e tomou a pequena cidade de

Ceuta, às margens africanas do Mediterrâneo, bem às portas do estreito deGibraltar. Ceuta, de população árabe, era uma pequena cidade-mercado. Mal-guarnecida, não tinha como se defender da frota de 20 galeras que a atacou.

À frente da armada portuguesa estava o infante Dom Henrique, de 21anos de idade. O infante e seus irmãos Pedro e Duarte, por seus atos de cor-agem, foram ali mesmo armados cavaleiros pelo rei Dom João I.

Apesar do clima festivo, certamente não passou despercebida à agudainteligência do jovem príncipe a enorme diferença de padrão de vida que le-vavam os mouros de Ceuta em relação aos portugueses de então. Além de

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as costas dos bois e dos jumentos. E por isso não podiam os cameleiros irtrocar diretamente os seus bens com os catadores de ouro, cujas minasficavam mais ao sul, entre os rios Falemé e Senegal.4

Dentre as rotas usadas para a travessia do deserto – que durava cerca dedois meses – tendo como destino Ceuta, as duas mais utilizadas eram a quecontornava a curva da África, próximo ao oceano, de temperaturas menosextremas, e uma outra, muito mais direta, com pouquíssimos pontos de agua-da, mas que encontrava, em pleno deserto, minas de sal. O sal era artigo raroe chegava a ser permutado, em Gana, por seu peso em ouro. O cordovês AlBakri, já em 1068, no Livro dos Itinerários e dos Reinos, descreveu Ganacomo o país do ouro. As estimativas divergem, mas calcula-se que atravessavamo deserto para o Mediterrâneo cerca de 6 toneladas de ouro anualmente.

Em sua estada, o Infante recolheu todo o material e informações queconseguiu acerca de mapas primitivos das passagens pelas montanhas dosAtlas, das rotas para atravessar o deserto e sobre a localização de cidades, deseus muros e de suas defesas. A esses informes, agregou o conhecimento dosmapas elaborados na ilha de Maiorca pelos cartógrafos da escola catalã,como o atlas de Abraão Cresques e o mapa de Meciá de Villadestes, que jásituavam o Oriente e as Índias além do rio Eufrates. O Infante certamenteacrescentou ainda a esses conhecimentos as informações recolhidas por seuirmão, D. Pedro, em longa viagem aos reinos da Europa.

Um novo mundo se abria para o jovem Príncipe, certamente muito maisrico e intelectualmente gratificante do que os deveres da corte ou as acan-hadas proezas militares que ele poderia realizar tendo como base um paíspequeno e pobre como Portugal.

Tudo indica que advém desta época o enorme valor que o Infanteatribuía, muitos séculos adiante de seu tempo, à informação. Em Sagres,anos após, escreveria, como se fosse uma profecia, “o conhecimento de ondeemerge todo o bem”.

Ceuta e os primeiros passos do Infante D. Henrique

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Com a invasão, os árabes passaram a evitar Ceuta. Alberto da Costa eSilva nos diz:

O acesso às especiarias africanas e ao ouro sudanês, que dera famaaos reinos de Gana e Mali e do qual os portugueses com a con-quista de Ceuta em 1415, tinham tido certeza, se é que de certezaprecisavam. Ceuta era importante porto do ouro transaariano, masdela – e foi imensa a decepção portuguesa – começaram a afastar-se as cáfilas, tão logo caiu na posse dos cristãos.3

A cidade havia se transformado em um mercado vazio. A tomada deCeuta, além de ter representado um enorme dispêndio de capital, era agorauma despesa constante e sem perspectivas de lucro. A única vantagem ime-diata foi eliminar o ninho de piratas que se escondiam em Ceuta, e libertaro Estreito de Gibraltar da constante ameaça que representavam à livre nave-gação do Mediterrâneo com a Europa atlântica.

O comércio pelo Mediterrâneo era e continuava a ser dominado pelasrepúblicas marítimas de Veneza e Gênova, que mantinham tradicionais laçoscomerciais com os árabes. Seus navios iam à África em busca dos produtosdo Oriente: especiarias, seda, armas e ouro. Da Itália, as mercadorias eramdistribuídas por via terrestre ou marítima para toda a Europa. Desde 745havia comércio de ouro entre o Mediterrâneo e o Sael, e há sinais de que, apartir dos fins do século III, o ouro começou, em pequenas quantidades, aatravessar o Saara, vindo da terra dos negros.

O camelo atravessava o deserto mas não se adaptava ao clima da savana.Por isso as mercadorias que traziam tinham de ser transferidas, no Sael, para

Ciência e navegação: caminhos para o descobrimento do Brasil

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2. Cortesão, Jaime. Os descobrimentos portugueses, pp. 287.3. Silva, Alberto da Costa e. A manilha e o libambo: a África e a escravidão de 1500 a 1700, pp. 151.4. Silva, Alberto da Costa e. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses, pp. 25.

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as costas dos bois e dos jumentos. E por isso não podiam os cameleiros irtrocar diretamente os seus bens com os catadores de ouro, cujas minasficavam mais ao sul, entre os rios Falemé e Senegal.4

Dentre as rotas usadas para a travessia do deserto – que durava cerca dedois meses – tendo como destino Ceuta, as duas mais utilizadas eram a quecontornava a curva da África, próximo ao oceano, de temperaturas menosextremas, e uma outra, muito mais direta, com pouquíssimos pontos de agua-da, mas que encontrava, em pleno deserto, minas de sal. O sal era artigo raroe chegava a ser permutado, em Gana, por seu peso em ouro. O cordovês AlBakri, já em 1068, no Livro dos Itinerários e dos Reinos, descreveu Ganacomo o país do ouro. As estimativas divergem, mas calcula-se que atravessavamo deserto para o Mediterrâneo cerca de 6 toneladas de ouro anualmente.

Em sua estada, o Infante recolheu todo o material e informações queconseguiu acerca de mapas primitivos das passagens pelas montanhas dosAtlas, das rotas para atravessar o deserto e sobre a localização de cidades, deseus muros e de suas defesas. A esses informes, agregou o conhecimento dosmapas elaborados na ilha de Maiorca pelos cartógrafos da escola catalã,como o atlas de Abraão Cresques e o mapa de Meciá de Villadestes, que jásituavam o Oriente e as Índias além do rio Eufrates. O Infante certamenteacrescentou ainda a esses conhecimentos as informações recolhidas por seuirmão, D. Pedro, em longa viagem aos reinos da Europa.

Um novo mundo se abria para o jovem Príncipe, certamente muito maisrico e intelectualmente gratificante do que os deveres da corte ou as acan-hadas proezas militares que ele poderia realizar tendo como base um paíspequeno e pobre como Portugal.

Tudo indica que advém desta época o enorme valor que o Infanteatribuía, muitos séculos adiante de seu tempo, à informação. Em Sagres,anos após, escreveria, como se fosse uma profecia, “o conhecimento de ondeemerge todo o bem”.

Ceuta e os primeiros passos do Infante D. Henrique

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Com a invasão, os árabes passaram a evitar Ceuta. Alberto da Costa eSilva nos diz:

O acesso às especiarias africanas e ao ouro sudanês, que dera famaaos reinos de Gana e Mali e do qual os portugueses com a con-quista de Ceuta em 1415, tinham tido certeza, se é que de certezaprecisavam. Ceuta era importante porto do ouro transaariano, masdela – e foi imensa a decepção portuguesa – começaram a afastar-se as cáfilas, tão logo caiu na posse dos cristãos.3

A cidade havia se transformado em um mercado vazio. A tomada deCeuta, além de ter representado um enorme dispêndio de capital, era agorauma despesa constante e sem perspectivas de lucro. A única vantagem ime-diata foi eliminar o ninho de piratas que se escondiam em Ceuta, e libertaro Estreito de Gibraltar da constante ameaça que representavam à livre nave-gação do Mediterrâneo com a Europa atlântica.

O comércio pelo Mediterrâneo era e continuava a ser dominado pelasrepúblicas marítimas de Veneza e Gênova, que mantinham tradicionais laçoscomerciais com os árabes. Seus navios iam à África em busca dos produtosdo Oriente: especiarias, seda, armas e ouro. Da Itália, as mercadorias eramdistribuídas por via terrestre ou marítima para toda a Europa. Desde 745havia comércio de ouro entre o Mediterrâneo e o Sael, e há sinais de que, apartir dos fins do século III, o ouro começou, em pequenas quantidades, aatravessar o Saara, vindo da terra dos negros.

O camelo atravessava o deserto mas não se adaptava ao clima da savana.Por isso as mercadorias que traziam tinham de ser transferidas, no Sael, para

Ciência e navegação: caminhos para o descobrimento do Brasil

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2. Cortesão, Jaime. Os descobrimentos portugueses, pp. 287.3. Silva, Alberto da Costa e. A manilha e o libambo: a África e a escravidão de 1500 a 1700, pp. 151.4. Silva, Alberto da Costa e. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses, pp. 25.

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que seus membros fossem ao mesmo tempo monges e guerreiros. As maiorese mais importantes foram a do Hospital, que subsiste até hoje e é conhecidacomo Ordem de Malta, e a dos Templários. Em 1291, quando os cristãosforam expulsos da Palestina, essas ordens estavam riquíssimas e tinham caste-los e propriedades por toda a Europa. Principalmente os Templários que,além de administrarem as finanças da França, atuavam como banqueiros eemprestavam grandes quantias aos soberanos europeus. Este estado de coisasaguçou a cobiça de Felipe o Belo, rei de França, que, em processo infame ediscutido até hoje, conseguiu, em 1312, do Papa Clemente V, a extinção daOrdem e mandou executar o Grão Mestre dos Templários, Jacques de Molay.Perseguida, despojada de seus bens e tendo seus cavaleiros presos, a Ordemdesapareceu em quase todo o mundo, menos na Península Ibérica. NaEspanha, após muitas tratativas, os Templários remanescentes encontraramabrigo na Ordem de Montesa. Em Portugal, a Ordem não foi perseguida, orei D. Denis tomou para a coroa os seus bens e os repassou para a Ordem deCristo, recém-fundada, em 1319, para acolher os Templários. Para quefaçamos uma idéia da importância da Ordem em Portugal, repare-se que seusbens incluíam 41 casas ou comendadorias, propriedades em dez cidades e aposse e a renda de 43 aldeias. Ainda hoje podemos visitar em Tomar o caste-lo que abrigava a sede da Ordem de Cristo.

Em 1420, a instâncias do rei Dom João I, o papa Martinho V entrega aoInfante a administração geral da riquíssima Ordem de Cristo. O plano doRei era que o Infante contasse com amplos recursos para a tarefa que tin-ham planejado: de acordo com informações nunca comprovadas, a Ordemde Cristo, por sua herança, seria também depositária de conhecimentossecretos sobre o Oriente.

Em 13 de março de 1456, o papa Calisto III concedia à Ordem, de queo Infante era o administrador e mestre, a jurisdição sobre todas as regiõesconquistadas pelos portugueses no presente ou no futuro. Essas regiões

Os templários e o Infante D. Henrique

17

A personalidade de D. Henrique, riquíssima e bastante complexa, foiexaustivamente estudada desde Azurara. Para o descobrimento do Brasil, noentanto, o importante foi a sua busca incessante do conhecimento científi-co aplicado à navegação oceânica, ao comércio ultramarino e ao plano dosdescobrimentos como política de estado.

Quando Dom Henrique retornou a Portugal, em vez de assumir os car-gos e atividades que sua posição lhe facultava, retirou-se para o sul do país,para o promontório de Sagres, batido pelos ventos e aberto para o OceanoAtlântico. Tinha se dado conta de que a cristandade não detinha todo o con-hecimento e muito menos o monopólio da civilização, e que trazer para seupaís as riquezas que o comércio pode proporcionar seria um benefício maiordo que a glória de feitos militares.

Como recuperar o comércio de Ceuta? Por via terrestre seria impensável.Todas as terras entre o Mediterrâneo e o Oriente, bem como entre a regiãoaurífera da África e a Europa eram domínio mouro e maometano, portantoproibidas para os portugueses, mesmo que conseguissem dominar a impos-sível arte de navegar pelos desertos, montados em camelos. A única alterna-tiva aberta à Coroa Portuguesa foi a de iniciar um plano de navegação peloentão desconhecido Oceano Atlântico.

• III •

OS TEMPLÁRIOS E O INFANTE D. HENRIQUE

Em 1099, as cruzadas atingem seu objetivo: a retomada da Palestina ea subseqüente criação do reinado cristão de Jerusalém. Para defesados lugares santos e dos peregrinos que, em grande número, viajavam

da Europa ao Oriente, a Igreja estimulou a fundação de ordens religiosas em

Ciência e navegação: caminhos para o descobrimento do Brasil

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que seus membros fossem ao mesmo tempo monges e guerreiros. As maiorese mais importantes foram a do Hospital, que subsiste até hoje e é conhecidacomo Ordem de Malta, e a dos Templários. Em 1291, quando os cristãosforam expulsos da Palestina, essas ordens estavam riquíssimas e tinham caste-los e propriedades por toda a Europa. Principalmente os Templários que,além de administrarem as finanças da França, atuavam como banqueiros eemprestavam grandes quantias aos soberanos europeus. Este estado de coisasaguçou a cobiça de Felipe o Belo, rei de França, que, em processo infame ediscutido até hoje, conseguiu, em 1312, do Papa Clemente V, a extinção daOrdem e mandou executar o Grão Mestre dos Templários, Jacques de Molay.Perseguida, despojada de seus bens e tendo seus cavaleiros presos, a Ordemdesapareceu em quase todo o mundo, menos na Península Ibérica. NaEspanha, após muitas tratativas, os Templários remanescentes encontraramabrigo na Ordem de Montesa. Em Portugal, a Ordem não foi perseguida, orei D. Denis tomou para a coroa os seus bens e os repassou para a Ordem deCristo, recém-fundada, em 1319, para acolher os Templários. Para quefaçamos uma idéia da importância da Ordem em Portugal, repare-se que seusbens incluíam 41 casas ou comendadorias, propriedades em dez cidades e aposse e a renda de 43 aldeias. Ainda hoje podemos visitar em Tomar o caste-lo que abrigava a sede da Ordem de Cristo.

Em 1420, a instâncias do rei Dom João I, o papa Martinho V entrega aoInfante a administração geral da riquíssima Ordem de Cristo. O plano doRei era que o Infante contasse com amplos recursos para a tarefa que tin-ham planejado: de acordo com informações nunca comprovadas, a Ordemde Cristo, por sua herança, seria também depositária de conhecimentossecretos sobre o Oriente.

Em 13 de março de 1456, o papa Calisto III concedia à Ordem, de queo Infante era o administrador e mestre, a jurisdição sobre todas as regiõesconquistadas pelos portugueses no presente ou no futuro. Essas regiões

Os templários e o Infante D. Henrique

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A personalidade de D. Henrique, riquíssima e bastante complexa, foiexaustivamente estudada desde Azurara. Para o descobrimento do Brasil, noentanto, o importante foi a sua busca incessante do conhecimento científi-co aplicado à navegação oceânica, ao comércio ultramarino e ao plano dosdescobrimentos como política de estado.

Quando Dom Henrique retornou a Portugal, em vez de assumir os car-gos e atividades que sua posição lhe facultava, retirou-se para o sul do país,para o promontório de Sagres, batido pelos ventos e aberto para o OceanoAtlântico. Tinha se dado conta de que a cristandade não detinha todo o con-hecimento e muito menos o monopólio da civilização, e que trazer para seupaís as riquezas que o comércio pode proporcionar seria um benefício maiordo que a glória de feitos militares.

Como recuperar o comércio de Ceuta? Por via terrestre seria impensável.Todas as terras entre o Mediterrâneo e o Oriente, bem como entre a regiãoaurífera da África e a Europa eram domínio mouro e maometano, portantoproibidas para os portugueses, mesmo que conseguissem dominar a impos-sível arte de navegar pelos desertos, montados em camelos. A única alterna-tiva aberta à Coroa Portuguesa foi a de iniciar um plano de navegação peloentão desconhecido Oceano Atlântico.

• III •

OS TEMPLÁRIOS E O INFANTE D. HENRIQUE

Em 1099, as cruzadas atingem seu objetivo: a retomada da Palestina ea subseqüente criação do reinado cristão de Jerusalém. Para defesados lugares santos e dos peregrinos que, em grande número, viajavam

da Europa ao Oriente, a Igreja estimulou a fundação de ordens religiosas em

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a um piloto experiente, tentar o retorno de sua viagem em condições tãoadversas, acrescidas da mais absoluta falta de cartas náuticas e informaçõessobre o mar e da geografia ao sul do cabo. Todo o imaginário que se criousobre as dificuldades encontradas para a passagem do Bojador – animaismitológicos, tormentas, mares bravios, etc – não passa de desinformação.Achado o caminho de volta e feito o reconhecimento das condições e prob-lemas locais para sua ultrapassagem, o Bojador nunca mais foi sequer citadoentre as dificuldades de se navegar rumo ao sul. Sobre este tema vale a penaler as recomendações do grande navegador e geógrafo Duarte Pacheco:

(…) Irá fora do Bojador em mar dele oito léguas, e não deve fazeroutro caminho, porquanto este cabo do Bojador é muito perigoso,por causa de uma muito grande restinga de pedra que dele sai aomar mais de quatro ou cinco léguas, na qual já se perderam algunsnavios por mau aviso; e este cabo é muito baixo e todo coberto deareia, e tem o fundo tão apracelado que está homem em dez braçase não vê a terra pela sua baixeza; e a costa que vem do cabo de Nãopara o Bojador toda é muito baixa (...)5

Será necessário fazer uma pausa em nossa narrativa para comentar os bar-cos e as técnicas de navegação da época, sem o que não se poderá entendero porquê dos 14 anos de demora para dobrar um simples cabo.

Em 1420, época das primeiras viagens, os portugueses usavam para nave-gar a barca e o barinel, embarcações de pequeno porte, cerca de 30 toneladasde deslocamento, armadas provavelmente com velas redondas, com um oudois mastros. Não possuímos detalhes sobre a construção desses barcos, ehá controvérsias sobre as diferenças entre as barcas e os barinéis. Realmente,

As primeiras viagens

19

foram declaradas nullius diocesis e a autorização para exercer os poderes debispo, foram atribuídos ao grão-mestre da Ordem.

• IV •

AS PRIMEIRAS VIAGENS DE DESCOBRIMENTO

As primeiras tentativas de descer a costa da África e alcançar as fontesdo comércio de ouro, que vinha ter às margens do Mediterrâneoatravés do Saara, datam de 1420. O primeiro e formidável obstácu-

lo foi o Cabo Bojador. Para que se tenha uma idéia das dificuldades que osprimeiros navegadores enviados à África pelo Infante encontraram emdobrar o cabo, e da precariedade dos meios de que dispunham, só foi pos-sível aos portugueses passar o Bojador e prosseguir para o sul em 1434,depois de 14 anos de esforços e tentativas malogradas.

O Cabo Bojador tem como coordenadas lat. 26.21N e lon. 16.08W.Situa-se nas costas africanas em frente e um pouco ao sul das ilhas Canárias.Sua importância para a história dos descobrimentos vem do fato de que é oponto em que a costa muda de maneira significante de direção. Antes docabo, o rumo era aproximadamente E-OSW (leste-oeste sudoeste), depois docabo, a costa inflete para N-SSW (norte-sul sudoeste). Do cabo em diante,a corrente das Canárias acompanha a costa, de norte para o sul. Para agravaro quadro, os ventos dominantes são do quadrante norte, ou seja, todas asforças da natureza se unem para empurrar uma embarcação a vela para o sul.

A primeira impressão é a de que teríamos a situação ideal – afinal, não épara o sul que os navegantes portugueses queriam ir? Mas, e a volta? Estaseria feita contra o vento e contra a força da corrente das Canárias.Dependendo das qualidades do barco, seria praticamente impossível, mesmo

Ciência e navegação: caminhos para o descobrimento do Brasil

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5. Pereira, Duarte Pacheco. Esmeraldo de Situ Orbis, pp. 594.

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a um piloto experiente, tentar o retorno de sua viagem em condições tãoadversas, acrescidas da mais absoluta falta de cartas náuticas e informaçõessobre o mar e da geografia ao sul do cabo. Todo o imaginário que se criousobre as dificuldades encontradas para a passagem do Bojador – animaismitológicos, tormentas, mares bravios, etc – não passa de desinformação.Achado o caminho de volta e feito o reconhecimento das condições e prob-lemas locais para sua ultrapassagem, o Bojador nunca mais foi sequer citadoentre as dificuldades de se navegar rumo ao sul. Sobre este tema vale a penaler as recomendações do grande navegador e geógrafo Duarte Pacheco:

(…) Irá fora do Bojador em mar dele oito léguas, e não deve fazeroutro caminho, porquanto este cabo do Bojador é muito perigoso,por causa de uma muito grande restinga de pedra que dele sai aomar mais de quatro ou cinco léguas, na qual já se perderam algunsnavios por mau aviso; e este cabo é muito baixo e todo coberto deareia, e tem o fundo tão apracelado que está homem em dez braçase não vê a terra pela sua baixeza; e a costa que vem do cabo de Nãopara o Bojador toda é muito baixa (...)5

Será necessário fazer uma pausa em nossa narrativa para comentar os bar-cos e as técnicas de navegação da época, sem o que não se poderá entendero porquê dos 14 anos de demora para dobrar um simples cabo.

Em 1420, época das primeiras viagens, os portugueses usavam para nave-gar a barca e o barinel, embarcações de pequeno porte, cerca de 30 toneladasde deslocamento, armadas provavelmente com velas redondas, com um oudois mastros. Não possuímos detalhes sobre a construção desses barcos, ehá controvérsias sobre as diferenças entre as barcas e os barinéis. Realmente,

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foram declaradas nullius diocesis e a autorização para exercer os poderes debispo, foram atribuídos ao grão-mestre da Ordem.

• IV •

AS PRIMEIRAS VIAGENS DE DESCOBRIMENTO

As primeiras tentativas de descer a costa da África e alcançar as fontesdo comércio de ouro, que vinha ter às margens do Mediterrâneoatravés do Saara, datam de 1420. O primeiro e formidável obstácu-

lo foi o Cabo Bojador. Para que se tenha uma idéia das dificuldades que osprimeiros navegadores enviados à África pelo Infante encontraram emdobrar o cabo, e da precariedade dos meios de que dispunham, só foi pos-sível aos portugueses passar o Bojador e prosseguir para o sul em 1434,depois de 14 anos de esforços e tentativas malogradas.

O Cabo Bojador tem como coordenadas lat. 26.21N e lon. 16.08W.Situa-se nas costas africanas em frente e um pouco ao sul das ilhas Canárias.Sua importância para a história dos descobrimentos vem do fato de que é oponto em que a costa muda de maneira significante de direção. Antes docabo, o rumo era aproximadamente E-OSW (leste-oeste sudoeste), depois docabo, a costa inflete para N-SSW (norte-sul sudoeste). Do cabo em diante,a corrente das Canárias acompanha a costa, de norte para o sul. Para agravaro quadro, os ventos dominantes são do quadrante norte, ou seja, todas asforças da natureza se unem para empurrar uma embarcação a vela para o sul.

A primeira impressão é a de que teríamos a situação ideal – afinal, não épara o sul que os navegantes portugueses queriam ir? Mas, e a volta? Estaseria feita contra o vento e contra a força da corrente das Canárias.Dependendo das qualidades do barco, seria praticamente impossível, mesmo

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5. Pereira, Duarte Pacheco. Esmeraldo de Situ Orbis, pp. 594.

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costa africana, foram obrigados, para contornar a corrente das Canárias e osventos contrários, a se afastar da costa cerca de 400 milhas, chegando aci-dentalmente a uma ilha a que deram o nome de Porto Santo. O Infante osenviou de volta e Zarco descobriu, ou como querem alguns, redescobriu, avizinha Ilha da Madeira.

Outra descoberta muito importante foi a do arquipélago dos Açores em1427. A data chegou até nós pela nota que pode ser lida junto à corretaidentificação daquelas ilhas no mapa de Gabriel Valsequa, da escola deMaiorca: “Aquestes illes foran trobades p. Diego de Silves pelot del rey dePortugal an lay 1427.”6

A importância da descoberta para nossa história é que não é possívelalcançar Açores, onde são freqüentes os ventos fortes e mares bravios, partin-do de Lisboa, sem a utilização de métodos de navegação astronômica. Oescritor e comandante da marinha portuguesa, José Moreira Campos, escreveu:

O sábio mestre de navegação (o Infante) não podia conceber que sefizessem viagens de povoamento e comércio entre Lisboa e Açoressem se tomarem alturas de Pólo. E se alguém, na sua fantasia, enten-der que o contrário é coisa viável, ainda pode experimentar hoje,metendo-se num barco a vela, só com uma agulha, por melhor queseja. E no fim nos dirá o que aconteceu.7

Certamente, desde que as viagens à Ilha da Madeira e aos Açores setornaram freqüentes, o uso de astrolábios e quadrantes para se tomar aaltura da estrela Polar também se tornou comum. Adiante, em virtude daenorme importância que atribuímos ao assunto, retornaremos à matéria comriqueza de detalhes.

As primeiras viagens

21

para o bom entendimento de nossa história, isso não é relevante, o queimporta é o plano vélico utilizado.

O que chamamos de velas redondas são panos de corte retangular queficam presos aos mastros por vergas perpendiculares a estes. Quando enfu-nadas pelo vento, tomam forma arredondada, derivando seu nome desta con-figuração. As velas redondas são relativamente eficientes quando o vento seapresenta pela popa da embarcação, menos eficientes quando este está pelotravés do barco, e simplesmente não conseguem impulsioná-lo quando temque avançar contra o vento. Um barco que utilize essas velas também temmuita dificuldade para cambar, ou seja, mudar de rumo com vento pela proa.A manobra para trocar de bordo tinha que ser executada com o vento pelapopa do barco, exigindo uma volta completa, 360 graus, para tomar o ventopelo outro lado das velas. Esta manobra era conhecida como cambar em roda.As características das velas redondas são extremamente importantes para a per-feita compreensão das dificuldades que os portugueses enfrentaram para nave-gar no oceano Atlântico. As soluções brilhantes por eles encontradas não sólhes permitiram dominar o Atlântico como todos os mares do mundo.

As notícias das primeiras viagens ao sul nos chegam por conta das difi-culdades do retorno. Em 1420, João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira,retornando a Portugal depois de mais uma tentativa malograda de descer a

Ciência e navegação: caminhos para o descobrimento do Brasil

20

6. Aquelas ilhas foram achadas por Diogo de Silves, piloto do rei de Portugal, no ano de 1427. 7. Cortesão, Jaime. Os descobrimentos portugueses, pp. 311.

Exemplos de barca, car-

avela e barinel, respecti-

vamente.

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costa africana, foram obrigados, para contornar a corrente das Canárias e osventos contrários, a se afastar da costa cerca de 400 milhas, chegando aci-dentalmente a uma ilha a que deram o nome de Porto Santo. O Infante osenviou de volta e Zarco descobriu, ou como querem alguns, redescobriu, avizinha Ilha da Madeira.

Outra descoberta muito importante foi a do arquipélago dos Açores em1427. A data chegou até nós pela nota que pode ser lida junto à corretaidentificação daquelas ilhas no mapa de Gabriel Valsequa, da escola deMaiorca: “Aquestes illes foran trobades p. Diego de Silves pelot del rey dePortugal an lay 1427.”6

A importância da descoberta para nossa história é que não é possívelalcançar Açores, onde são freqüentes os ventos fortes e mares bravios, partin-do de Lisboa, sem a utilização de métodos de navegação astronômica. Oescritor e comandante da marinha portuguesa, José Moreira Campos, escreveu:

O sábio mestre de navegação (o Infante) não podia conceber que sefizessem viagens de povoamento e comércio entre Lisboa e Açoressem se tomarem alturas de Pólo. E se alguém, na sua fantasia, enten-der que o contrário é coisa viável, ainda pode experimentar hoje,metendo-se num barco a vela, só com uma agulha, por melhor queseja. E no fim nos dirá o que aconteceu.7

Certamente, desde que as viagens à Ilha da Madeira e aos Açores setornaram freqüentes, o uso de astrolábios e quadrantes para se tomar aaltura da estrela Polar também se tornou comum. Adiante, em virtude daenorme importância que atribuímos ao assunto, retornaremos à matéria comriqueza de detalhes.

As primeiras viagens

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para o bom entendimento de nossa história, isso não é relevante, o queimporta é o plano vélico utilizado.

O que chamamos de velas redondas são panos de corte retangular queficam presos aos mastros por vergas perpendiculares a estes. Quando enfu-nadas pelo vento, tomam forma arredondada, derivando seu nome desta con-figuração. As velas redondas são relativamente eficientes quando o vento seapresenta pela popa da embarcação, menos eficientes quando este está pelotravés do barco, e simplesmente não conseguem impulsioná-lo quando temque avançar contra o vento. Um barco que utilize essas velas também temmuita dificuldade para cambar, ou seja, mudar de rumo com vento pela proa.A manobra para trocar de bordo tinha que ser executada com o vento pelapopa do barco, exigindo uma volta completa, 360 graus, para tomar o ventopelo outro lado das velas. Esta manobra era conhecida como cambar em roda.As características das velas redondas são extremamente importantes para a per-feita compreensão das dificuldades que os portugueses enfrentaram para nave-gar no oceano Atlântico. As soluções brilhantes por eles encontradas não sólhes permitiram dominar o Atlântico como todos os mares do mundo.

As notícias das primeiras viagens ao sul nos chegam por conta das difi-culdades do retorno. Em 1420, João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira,retornando a Portugal depois de mais uma tentativa malograda de descer a

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6. Aquelas ilhas foram achadas por Diogo de Silves, piloto do rei de Portugal, no ano de 1427. 7. Cortesão, Jaime. Os descobrimentos portugueses, pp. 311.

Exemplos de barca, car-

avela e barinel, respecti-

vamente.

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A caravela vinha preencher várias lacunas: era capaz de navegar contra ovento em um ângulo mais agudo do que os barcos armados com velasredondas, tinha uma capacidade de manobra superior e podia resistir aoOceano Atlântico. A principal característica da caravela, que a diferenciavados barcos que a antecederam, eram as velas latinas. Conhecidas há séculos,eram usadas pelos egípcios nas embarcações que subiam o rio Nilo.Certamente por herança dos árabes, os pescadores portugueses também jáconheciam sua utilidade. A vela latina tem forma triangular e prende-se a ummastro bem baixo por uma longa verga de madeira chamada de antena (asnossas jangadas nordestinas usam um dispositivo semelhante). Em compara-ção com as velas redondas, são menos eficientes nos ventos de popa, umpouco superiores nos ventos de través, e são capazes de impulsionar o barcoem um ângulo muito mais acentuado contra o vento. O resultado prático erauma volta da África muitíssimo mais rápida e segura. Eram veleiros bemsuperiores aos barcos usados na navegação do Mediterrâneo.

Todas as experiências com planos vélicos eram empíricas, tentativas dotipo erro e acerto. Somente no século XX, com o início das pesquisasaeronáuticas e com o emprego de túneis de vento para definir o melhor per-fil para as asas dos aviões, estabeleceu-se para eles uma forma genérica, a quese deu o nome de aerofólio.

A caravela

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Portugal ainda faria algumas tentativas militares: uma desastrosa campa-nha para tomar Tânger e três malogradas campanhas contra as ilhasCanárias. Acredito que, após estes fracassos, a Coroa Portuguesa dedicou-seà navegação oceânica e ao comércio, enxergando-os como as melhores opor-tunidades para que o país saísse da pobreza e do isolamento.

Finalmente, em 1434, Gil Eanes conseguiu passar o Cabo Bojador e asviagens prosseguiram para o sul. Com o aumento das distâncias, aumen-tavam as dificuldades. As barcas e barinéis não ofereciam a segurançanecessária para que a volta da África, contra o vento dominante e contra acorrente das Canárias, se realizasse sem perigo.

• V •

A CARAVELA

Era imperioso desenvolver um novo barco capaz de ultrapassar essesobstáculos. Em 1441 temos a primeira notícia da utilização da cara-vela, em viagem que Nuno Tristão e Antão Gonçalves fizeram ao

Rio do Ouro.

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À esquerda, a caravela latina, cuja notável melhora de desempenho deveu-se às velas tri-

angulares. À direita, a nau com velas redondas. Aerofólio: o ar forçado pela curvatura do aerofólio aumenta sua velocidade em relação à

parte inferior, causando uma sucção que impulsiona o barco.

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