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Ciência, sociedade e universidade Pedro Goergen* RESUMO: Este trabalho busca repensar a relação entre ciência, sociedade e universidade a partir das transformações que marcam a contemporaneidade. A hipótese é de que estas mudanças de níveis econômico, laboral e mesmo epistêmico afetam também o sentido da prática acadêmica. A partir da reflexão sobre os três conceitos que compõem o título do artigo - ciência, sociedade e universidade -, conclui-se que a universidade deve iniciar um processo de auto-avaliação que inclua seus próprios fundamentos, ainda modernos, na perspectiva do novo cenário. Esta reflexão básica deve constituir o ponto de partida para uma futura reforma universitária. Palavras-chave: Relação universidade, ciência e sociedade, sociedade informática, reforma universitária "L'objectif d'une societé multiculturelle ne se discute pas et fait à mês yeux partie de ces grandes causes de l'humanité que les sociétés démocratiques doivent aujourd'hui prendre en charge. Ce qui en revanche reste soumis à

Ciência, sociedade e universidade

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Ciência, sociedade e universidade

Pedro Goergen*

RESUMO: Este trabalho busca repensar a relação entre ciência, sociedade e universidade a partir das transformações que marcam a contemporaneidade. A hipótese é de que estas mudanças de níveis econômico, laboral e mesmo epistêmico afetam também o sentido da prática acadêmica. A partir da reflexão sobre os três conceitos que compõem o título do artigo - ciência, sociedade e universidade -, conclui-se que a universidade deve iniciar um processo de auto-avaliação que inclua seus próprios fundamentos, ainda modernos, na perspectiva do novo cenário. Esta reflexão básica deve constituir o ponto de partida para uma futura reforma universitária.

Palavras-chave: Relação universidade, ciência e sociedade, sociedade informática, reforma universitária

"L'objectif d'une societé multiculturelle ne se discute pas et fait à mês yeux partie de ces grandes causes de l'humanité que les sociétés démocratiques doivent aujourd'hui prendre en charge. Ce qui en revanche reste soumis à

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discussion, c'est la question même de savoir quel rôle l'Université peut et doit jouer, s'il est vrai qu'elle doit en jouer un, dans la réalisation de cet objectif."

(Alain Renaut)

"A crise de confiança estendeu-se aos próprios cientistas. Eles não só questionam agora a aplicação em massa da ciência ao mundo, mas postulam também perguntas inquietantes sobre o próprio status da ciência como método privilegiado de compreensão."

(Krishan Kumar)

Introdução A partir do início da modernidade, a ciência foi definida como o caminho privilegiado e mais seguro de acesso à realidade. O proceder científico facultaria ao homem desvendar os mistérios das incontroláveis forças ocultas que lhe impunham tanto medo. O homem disporia, afinal, de um instrumento que o tornaria verdadeiro senhor da criação. A ciência começou a ser vista, desde então, como o motor do desenvolvimento, símbolo do progresso. Estabeleceu-se uma relação indestrinçável entre ciência e desenvolvimento humano e social. Em seqüência, uma das principais preocupações do homem passou a ser fazer ciência. Aos poucos, esta ciência passou a ser avaliada segundo seu maior ou menor sentido prático. Homens geniais e abnegados fizeram disso o sentido de sua vida. Instituições foram criadas e organizadas com o

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objetivo precípuo de produzir ciência e traduzir seus resultados para a prática. A universidade foi paulatinamente incorporando este sentido prático do saber. Dela se espera, cada vez mais, que produza conhecimentos úteis e também forme pessoas capazes de atender aos quesitos de um mundo laboral moldado pelas mesmas ciência e tecnologia. Ao longo das décadas, foram sendo desenvolvidos vários modelos de instituições acadêmicas que se distinguiam uns dos outros pelo sentido mais ou menos prático que davam à sua atuação, no interior da relação ciência e sociedade. As diferentes formas de organização social, mas sobretudo o estado evolutivo da sociedade foram dando, cada um a seu tempo, uma nova configuração a esta relação entre ciência, sociedade e universidade. Hoje nos encontramos num período de enormes mudanças e transformações que, sem dúvida, afetarão profundamente o nexo ciência e sociedade com conseqüências não só para a estrutura administrativa, a organização curricular e os procedimentos acadêmicos, mas para a própria função da universidade no interior da sociedade. O objetivo do presente trabalho é formular algumas aproximações, muito primeiras e gerais, do que podem significar as transformações que tanto marcam nosso tempo para a função da universidade. O tema, assim posto, poderia ser abordado de diferentes ângulos. Optei por um procedimento que envolve a explicitação dos conceitos envolvidos - sociedade e universidade - não com a pretensão de fazer uma análise aprofundada de cada um deles, mas para destacar alguns tópicos que possam eventualmente servir para um posterior debate com sentido orientador para a prática acadêmica. A expectativa é a de que, assim procedendo, se alcance maior clareza a respeito do papel da universidade no interior da

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sociedade como agente produtor e divulgador de ciência e tecnologia. Antes porém, é necessário esclarecer que o que aqui se entende por ciência não diz respeito apenas às ciências exatas, mas também àqueles outros domínios do saber que tratam das relações humanas, da ética, da cultura, da educação, enfim, todo o saber nascido do exame sistemático e cuidadoso dos temas referentes ao ser humano. Parece-nos de fundamental importância fazer esta explicação porque só assim podemos falar de um conceito de universidade no sentido da universalidade do saber e da relação entre ciência e sociedade. Se falássemos da relação entre ciência e sociedade, reduzindo o conceito de ciência à visão das ciências naturais e exatas, estaríamos, no mínimo, praticando um erro de origem, pois ciência, a nosso ver, é um conceito muito mais amplo do que aquele restrito às ciências exatas e naturais. Este ponto de vista, a respeito do qual, aliás, há uma vasta bibliografia que cresce dia-a-dia, parece firmar-se cada vez mais. A partir deste entendimento amplo de ciência, parece-nos possível comentar alguns pontos específicos da relação ciência e sociedade. A sociedade em transformação É claro que não posso fazer aqui uma tipologia ampla da sociedade contemporânea. Pretendo apenas destacar alguns pontos que interessam mais de perto ao nosso tema. Todos concordam que a sociedade se encontra atualmente num profundo e célere processo de transformação. Instalou-se um grande debate entre modernos e pós-modernos a respeito da gravidade destas transformações. Os chamados pós-modernos defendem o ponto de vista de que estamos no início de uma nova era da humanidade, enquanto os modernos apenas admitem que o momento é de revisão da modernidade, pois

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defendem a idéia de que o conceito moderno de racionalidade deve ser preservado em suas características básicas. Sem querer nivelar as diferenças que distinguem as duas posições, parece-nos que elas convergem no reconhecimento das importantes transformações que vêm ocorrendo e na abrangência dos seus efeitos sobre os mais diferentes âmbitos da vida contemporânea (Goergen 1996, p. 5). Talvez se possa concordar com Octavio Ianni que fala de um novo "ciclo da história" ou "ponto de inflexão histórica". "Em poucos anos", diz este autor, "terminou um ciclo da história e começou outro. Muitas coisas estão mudando no mundo, abrindo outras perspectivas sociais, econômicas, políticas e culturais. Mesmo as coisas que não sofreram maiores abalos, já não podem ser mais como antes. Alteraram-se as relações no jogo das forças em curso na vida das sociedades nacionais e da sociedade mundial" (Ianni 1993, p. 26). Algumas páginas adiante, Ianni conclui que

talvez se devesse dizer que terminou um ciclo particularmente importante de luta de classes, em escala nacional e internacional. Mas não terminaram as desigualdades, tensões e contradições que estavam e continuam a estar na base da vida das nações e continentes. Esse pode ser apenas um ponto de inflexão histórica, assinalando o fim de um ciclo e o começo de outro. (p. 33)

O que não se sabe é para onde estas mudanças levarão. Mas o que afinal está ocorrendo? O primeiro elemento que se distingue no cenário social contemporâneo são a velocidade e o caráter permanente das

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transformações. Mudanças que antes teriam levado décadas ou mesmo séculos hoje se completam num espaço muito curto de tempo. Além disso, as transformações tornaram-se permanentes, gerando um estado intermitente de crise ao qual o homem ainda terá de se acostumar. O segundo aspecto é o crescimento assustador da quantidade de conhecimentos e informações hoje disponíveis. Se há pouco mais de um século todos os conhecimentos disponíveis cabiam dentro de uma pequena biblioteca e podiam ser dominados por um só ser humano, atualmente isto é inimaginável. O homem necessita especializar-se, fazer opções, escolher recortes sempre mais restritos da realidade sobre os quais concentra seus conhecimentos. Em terceiro lugar, o mundo contemporâneo caracteriza-se pela capacidade extremamente grande de armazenamento e de transmissão de conhecimentos e informações num espaço e tempo cada vez menores. "Este é o primeiro momento da história", diz Castells, "no qual o novo conhecimento é aplicado principalmente aos processos de geração e ao processamento de conhecimentos e da informação" (Castells 1996, p. 11). Com estes recursos, o mundo tornou-se globalizado, interligando os pontos mais remotos do globo terrestre através de meios eletrônicos de comunicação, em tempo real. Países, comunidades, empresas e até mesmo os indivíduos tornaram-se completamente interdependentes. Estas mudanças refletem-se sobre a essência mesma da sociedade e do próprio ser humano, a ponto de parecer justificado perguntar se ainda é possível falar da sociedade ou do ser humano no mesmo sentido como se fazia há algumas décadas. Há muitos que, como Ianni, acreditam ser necessário elaborar uma nova teoria sistemática da sociedade e do ser humano para dar conta deste novo cenário. Tanto isto é

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verdade que conceitos fundamentais como a sociedade de classes, trabalho, proletariado etc. parecem cada vez mais obsoletos, inadequados para descrever a realidade social dos nossos dias. Neste surto de mudanças, assistimos também a profundas transformações nas formas de governo com a redução do Estado e a interferência cada vez contundente de condicionantes internacionais que ditam normas de comportamento e de ação não só para as nações do mundo inteiro, mas também, privadamente, para todos os indivíduos.

Em lugar das sociedades nacionais, a sociedade global. Em lugar do mundo dividido em capitalismo e socialismo, um mundo capitalista, multipolarizado, impregnado de experimentos socialistas. As noções de três mundos, centro, periferia, imperialismo, dependência, milagre econômico, sociedade nacional, Estado-Nação, projeto nacional, caminho nacional para o socialismo, caminho nacional de desenvolvimento capitalista, revolução nacional e outras, parecem insuficientes, ou mesmo obsoletas. Dizem algo, mas não dizem tudo. Parecem inadequadas para expressar o que está ocorrendo em diferentes lugares, regiões, nações, continentes. Os conceitos envelheceram, ficaram descolados do real, já que o real continua a mover-se, transformar-se. (Ianni 1993, p. 35)

A ofensiva dos pós-modernos volta a artilharia de seu discurso contra o imperialismo universalizante e dominador da modernidade, acusando-a de portadora de uma lógica que

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impõe seus parâmetros a tudo. Por isso, assim afirmam, o homem refugia-se no diverso, no individual, no local. "O vínculo social observável é feito de `lances' de linguagem", diz Lyotard (1985, p. 27). Esta crítica que, pelo menos na sua versão mais equilibrada e menos radical, deve ser entendida de forma positiva, ostenta flancos desguarnecidos, pois ao combater o chamado imperialismo da racionalidade moderna deixa intocado um outro imperialismo universalista, agora não no campo do racional epistemológico, mas no campo econômico. A mentalidade neoliberal que, como verdadeira revolução, pôs todos os países, o mundo inteiro, sob seu domínio, foi capaz de invalidar qualquer outra lógica que não a sua. O ponto fulcral, o valor último, o argumento decisivo que ordena todo o sistema é o lucro. A ciência, rainha que foi, passa a ser ministro do novo rei, o lucro, cuja crueldade ajuda a potencializar e justificar. Seu poder é tanto que já não encontra limites, invadindo tudo, o ser e o pensar, e, sobretudo, convencendo a todos que fora dela não há salvação. Não há dúvida de que a capacidade de produzir conhecimentos é um dos fatores determinantes da distribuição do poder econômico, em nível mundial. Os países que têm o melhor índice de produção de conhecimentos encontram-se na liderança da economia. Nas palavras de Castells, "o caráter estratégico das tecnologias e da informação na produtividade da economia e na eficácia das instituições sociais muda as fontes de poder na sociedade e entre as sociedades" (Castells 1996, p. 15). Paralelamente aos grandes benefícios, trazidos pela ciência, a explosão do saber centralizou-se em alguns poucos países, gerando situações complexas de uma nova dependência que se tornam o grande desafio para o próximo milênio. Nesse sentido, Leopoldo de Meis (1996, p. 25 ss.) lembra que, além dos benefícios, a explosão do saber e da

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capacidade do homem de domínio sobre a natureza também trouxe uma série de riscos. Cita entre outros, o desequilíbrio científico/tecnológico, isto é, a concentração da revolução científica em alguns poucos países. Segundo as estatísticas que apresenta, 70% dos trabalhos científicos produzidos a cada ano se originam de sete países centrais que têm apenas 14% da população mundial enquanto o resto do planeta, que representa 86% da população, produz apenas 25% do saber, gerado a cada ano. Assim, para citar dois exemplos extremos, em 1989 os EUA produziam 35,1% das pesquisas enquanto o Brasil produzia apenas 0,47%. Há, portanto, um grave desequilíbrio entre uma pequena minoria de países que produz conhecimentos e uma grande maioria que os consome. Há pouca perspectiva de que este panorama possa mudar a curto prazo. Se é verdade que as conquistas do conhecimento se espalham rapidamente pelo planeta, não é menos certo que os centros hegemônicos que dominam e manipulam estes conhecimentos constroem, a partir disso, uma citadela de poder e uma fonte enorme de recursos. Os outros, se quiserem participar das benesses da ciência e da tecnologia, são obrigados a pagar por isso. Além desse desequilíbrio global do poder, que tem sua origem não mais no uso da força e das armas, mas no domínio do conhecimento, os avanços científico-tecnológicos envolvem outros importantes desafios. Leopoldo de Meis menciona alguns deles: o primeiro é a assimetria entre jovens e adultos. Os países com maior desenvolvimento científico-tecnológico aprenderam a controlar o crescimento de suas populações. Isto traz um grande problema para a educação nos países em desenvolvimento. É consensual que a educação é um dos elementos essenciais para o desenvolvimento no mundo contemporâneo. Ora, "os países que têm o menor

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desenvolvimento científico são os responsáveis pela educação da maior parcela dos jovens do planeta." (Meis 1996, p. 28). Numa era em que se exige um nível cada vez maior de conhecimentos dos jovens que entram no mercado de trabalho, o qual só cresce nas áreas ligadas à ciência, o equilíbrio apontado representa uma desvantagem muito grande para os países em desenvolvimento. Outro elemento, apontado por Meis, é o excesso de informações, a decodificação do saber e a superespecialização. No século XVII, a biblioteca da Universidade de Oxford era uma das maiores do mundo com um acervo de 200 volumes. Em um ano ou pouco mais, um estudioso poderia inteirar-se de tudo. A explosão do saber que ocorreu no último século obrigou os intelectuais a delimitarem seus campos de conhecimento, levando, aos poucos, às superespecializações que caracterizam a ciência hoje. Atualmente, um especialista mal e mal é capaz de extrair da grande massa de conhecimentos produzidos aqueles que interessam à sua especialidade. As áreas de saber tornam-se cada vez mais delimitadas, mais técnicas, mais codificadas e, por isso, sempre mais herméticas e inacessíveis aos não-especialistas. Surgem verdadeiros guetos que atuam como reservas impenetráveis para aqueles que não dominam os símbolos, os códigos lingüísticos especiais de modo que

a pesquisa científica dentro da universidade desempenha papel importante não só na produção de novos conhecimentos, mas também na sua capacidade de tornar acessíveis aos seus estudantes os avanços contínuos do saber. Assim, o cientista moderno deve ser também um decodificador, e a importância da

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universidade cresce à medida que aumenta a sua capacidade de decodificar e abranger um número crescente de especialistas nas diversas áreas do saber. (Meis 1996, p. 33)

O papel de decodificador torna-se tanto mais importante quanto mais os resultados das pesquisas vão sendo publicados em revistas internacionais, geralmente em inglês. Estes procedimentos, muitas vezes condenados como elitistas, são na verdade inevitáveis por causa da construção do conhecimento nos fluxos internacionais. A conquista de saber novo depende sempre mais da capacidade de interagir com laboratórios e centros internacionais de pesquisa cujos meios de comunicação sempre se servem do inglês. Nesse contexto, deve ser lembrado também que um dos eixos importantes da problemática "ciência e sociedade" encontra-se no ensino das ciências. Entre as diferentes áreas do saber, uma das que menos se desenvolveram ao longo dos últimos séculos foi a da arte de ensinar. Enquanto a busca do saber avança a passos largos, o ensino de ciências é hoje ainda muito semelhante àquele usado há dois séculos.

A ênfase principal desta forma de ensinar continua sendo a de transmitir ao aluno o maior número possível de informações e, dentro desta perspectiva, espera-se que, ao completarem seus cursos universitários, os estudantes estejam a par dos conceitos atuais das suas respectivas áreas profissionais. Entretanto, a explosão do saber dos últimos anos tornou esta tarefa impossível e, na realidade, não sabemos ainda como preparar os estudantes de forma a

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torná-los capazes de lidar de forma eficiente com a grande quantidade de novas informações gerada a cada ano, condição essencial para uma atuação de ponta. (Meis 1996, pp. 33-34)

Ademais, grande parte do saber é produzido pela indústrias ou organismos governamentais e não é publicado por razões estratégicas ou econômicas. Segundo Meis (1996), nos EUA cerca de 40% dos conhecimentos gerados a cada ano não são divulgados. Aliás, a universidade, acostumada à sua posição hegemônica como produtora de conhecimentos, é hoje obrigada a dividir sempre mais este espaço com outras organizações, especialmente industriais. Em alguns campos, como o da engenharia e o da computação por exemplo, a maior parte das descobertas inovadoras já vem sendo feita fora da universidade. Para os países subdesenvolvidos ainda existe um outro tipo de saber oculto, além daquele mantido em sigilo por entidades governamentais ou industriais. Conforme já mencionamos, trata-se daquele saber, disponível em princípio mas inacessível por causa da falta de especialistas para decodificá-lo, confirmando a importância do novo especialista/decodificador, como já mencionei anteriormente. Vejamos o que diz a respeito disso Meis: "Muitos dos novos conceitos descobertos nos laboratórios de pesquisa somente são apercebidos pela maior parte da população do planeta depois que os produtos dela derivados tenham se inserido na sociedade, gerando novos costumes e hábitos" (Meis 1996, p. 36). Exemplos disso são a pesquisa nuclear, as técnicas anticoncepcionais, a inseminação artificial, a manipulação genética. Lixo atômico, novos comportamentos sexuais, mudança de concepção de paternidade e maternidade,

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mutações genéticas aplicadas em seres humanos são conseqüências dos avanços científicos mencionados dos quais apenas um pequeno círculo de especialistas se apercebia antes. Outro tema da mais alta relevância é a questão da ética. Antes da revolução científica, os conceitos de bem e de mal eram definidos a partir de princípios metafísicos ou teológicos. Com o avanço da ciência, estes tradicionais conceitos de fundamentação transcendental foram sendo substituídos pelos de útil ou inútil bem presos à sua serventia empírica. O uso dos conceitos funciona ou não funciona como paradigmas orientadores da ação humana implica profundas mudanças éticas e sociais, sem que sejam discutidos seus fundamentos e suas conseqüências. A revolução industrial, além de "estabelecer um nova relação entre cidade e campo, lar e trabalho, homens e mulheres, pais e filhos, gerou uma nova ética e novas filosofias sociais". Agora, a época da globalização e da informática "sugere possibilidades de uma nova estrutura de cidadania e democracia nas quais até agora mal se pensou" (Kumar 1997, p. 172). Como se fora profeta, Habermas já alertava num de seus primeiros trabalhos acadêmicos dos anos 60 sobre os riscos da diluição da esfera pública. Hoje realmente constatamos que a privatização e a individuação, possibilitadas pela tecnologia da informação, conduzem ao esvaziamento e à diminuição da esfera pública nas sociedades atuais. Um dos campos da atividade humana onde se sente isso de forma mais clara é o da economia. Medidas econômicas são boas quando funcionam em termos de manutenção e sustentação do sistema econômico vigente e dos interesses a ele atinentes, sejam eles ou não escusos desde um ponto de vista de valores éticos mais gerais. A ação política ou econômica justifica-se a partir de objetivos fixados por interesses sem fundamentação em princípios universais e

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que não foram tematizados socialmente. No dizer de Habermas, o que determina a ação são regras técnicas que se justificam por si mesmas e não por normas e valores, submetidos ao debate público. Nisto, ou seja, na não-tematização das regras técnicas, consiste um dos principais aspectos ideológicos da ciência e tecnologia (cf. Habermas 1982). O que isto representa em termos práticos nos mostra com clareza Viviane Forester ao analisar a situação do desemprego que aflige os trabalhadores. Sua exposição desenha um quadro dramático dos sacrifícios que os seres humanos têm de suportar em termos de desemprego para que o sistema possa ser mantido. E agora podemos formular a pergunta: como se há de comportar a universidade profissionalizante no limiar de uma era que está em vias de suprimir aquilo que se chama trabalho? A universidade é solicitada a formar indivíduos "úteis" à sociedade, o que, no dizer de Forester (1997, p. 13), "significa quase sempre rentável". Nisto encontra-se também o risco de uma avaliação que se propõe simplesmente verificar em que medida a universidade está respondendo a este mandado de formar indivíduos úteis. É urgente superar este "abreviamento" do papel da universidade que reduziu sua função a formar indivíduos para atender "necessidades sociais", sejam elas quais forem e recuperar seu papel de instância crítica da sociedade a partir de interesses humanos mais amplos democraticamente discutidos. Porque a falta de trabalho se tornou uma norma pela qual o excluído se torna dono falido de seu próprio destino que não passa de um número colocado pelo acaso numa estatística (Forester 1997, pp. 10-11), a universidade, talvez inconscientemente, pode tornar-se cúmplice de um crime que uma sociedade, supostamente lúcida e sofisticada, comete contra uma grande parte da

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população, formada por pessoas que se tornam objetos manietados e torturados, mendigantes de um emprego que já estatisticamente não existe. A universidade lhes insufla ânimo e esperança, garantindo-lhes que boa formação garantirá um futuro de inclusão, um futuro cidadão. Estará a universidade consciente da responsabilidade que assume ao prometer, direta ou indiretamente, algo que, sabe, jamais será cumprido? Numa época em que o trabalho que as pessoas têm a oferecer tornou-se supérfluo, a esperança no futuro tornou-se um simulacro. E o que dizer do ideal da formação conscientizadora e crítica que estimula o impulso à mudança e à transformação quando, logo adiante, estes contestadores do sistema terão que se jogar aos pés dos donos do poder que olharão com escárnio para aqueles que imploram "para obter aquilo que vilependiaram" (Forester 1997, p. 16)? Os homens submetem-se à mendicância do emprego, jogando seu orgulho aos pés dos poderosos, porque sabem que pior que a exploração, da qual fatalmente serão vítimas, é a vergonha de sequer serem exploráveis, de serem errantes supérfluos à margem do sistema. Se lermos Hobbes nesta perspectiva, devemos concordar que ele tinha razão com sua famosa frase "homo hominis lupus", a partir da qual ele buscava justificar a necessidade do Estado como instância imprescindível de ordenamento e civilização. Hoje, o Estado lava as mãos e se curva ante o poder supremo do mercado, cujas leis frias fazem girar as mós impassíveis dentre as quais cai esmagado e banhado em seu próprio sangue um número imenso de pessoas que, sob o olhar frio de menosprezo do homo oeconomicus, se perdem no ralo da história. Para estas, a vida torna-se uma insídia que não vale a pena ser vivida porque portada por seres que não dão lucro. E não dão lucro não porque não queiram ou não possam, mas

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simplesmente porque são deserdados do sistema. A sociedade cada vez menos divide-se em classes, em partidos, em favoráveis ou desfavoráveis, mas em excluídos ou incluídos, úteis ou supérfluos. A própria vida, como dizíamos, torna-se supérflua, inútil quando não dá lucro. O pior de tudo é que de tanta discussão, o tema do desemprego e da exclusão torna-se familiar, assumindo um certo ar de inocência como a pobreza que vemos todos os dias diante da porta, na esquina, nas ruas e em belas cores, na televisão. Tudo assume um ar teatral de espetáculo e, como tal, os crimes, as mortes, a violência, os estupros, tudo se torna, de certa forma, inocente. Pelo menos enquanto não nos atinge pessoalmente. Por detrás disso, como bem lembra Forester, está a matriz de tudo que jamais é mencionado: o lucro. "Tudo é organizado, previsto, proibido e suscitado em razão dele, que dessa maneira parece inevitável, como que fundido à própria semente da vida, a ponto de não se distinguir dela" (Forester 1997, p. 19). A sociedade humana ainda faz de conta que o futuro do ser humano é o trabalho, quando, na realidade, este diminui a cada dia que passa. E, apesar das promessas de políticos e empresários, não há nenhuma perspectiva de mudança. É hora de a sociedade tomar consciência de que é preciso procurar novos caminhos. Inclusive, os ricos sistemas dos Estados de Bem-Estar-Social começam a sentir dificuldades em sustentar a imensa legião de desempregados que abrange grande parcela da população. Os salários começam a ser reduzidos, as jornadas de trabalho tornam-se mais breves e institui-se o contrato temporário, o desemprego rotativo. Os desempregados não serão mais constantemente os mesmos, mas cada trabalhador será um desempregado em algum momento. São simulacros que já não enganam a respeito da gravidade da enfermidade social. É preciso começar a pensar

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em alternativas e neste exercício talvez seja útil retomar alguns pensamentos do século passado, apressadamente descartados pelo abuso de alguns sistemas incompetentes que deles se apoderaram, condenando-os ao esclerosamento e ao descarte precoces. Quem sabe, superado o espírito de competição pelo domínio do mundo, tanto tempo sustentado pelas duas grandes potências hegemônicas, surja um novo ambiente de liberdade para repensar a sociedade como um espaço onde todos os seres humanos têm o direito de viver dignamente. A era contemporânea, que não se instalou por culpa da ciência, da tecnologia ou da informática, mas que foi fomentada pelo seu uso unilateral e viezado, não está em sincronia com o homem. Condena-o a viver em seu seio, mas de fato não permite que viva. Pode apenas vegetar, de corpo vergado, olhando o chão pela vergonha de não ser mais útil e de, além de não ser mais útil, ser considerado um peso. A universidade despende um enorme esforço para formar empregáveis que jamais serão empregados. O emprego que a universidade ajuda alguém a conquistar representa necessariamente o sacrifício de outro empregado. Já não se gera nem se cria empregos, apenas os empregos são disputados. A universidade forma pessoas para que elas vençam esta disputa. Por isso há que ter cuidado quando se imagina, nas condições atuais, que a formação profissional é o pleno exercício da função social da universidade. O auxílio é prestado àqueles que conseguem vencer as barreiras de acesso dos famigerados exames de ingresso, o que geralmente está reservado aos filhos já privilegiados da sociedade. Estes então terão, ao final de sua formação, mais condições de vencer a luta. Mas esta luta não é a luta por mais um lugar de trabalho, mas pelo lugar de trabalho de um outro. Se me perdoam a imagem um pouco grotesca, a sociedade de hoje se assemelha

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a um animal que, tendo passado por um genial processo de evolução, resolvesse usar seus mais avançados conhecimentos e técnicas para racionalizar e otimizar seu sistema de amamentação, reduzindo o número de mamas. Tem sentido: reduzir-se-ia a quantidade de leite despendido, ao mesmo tempo em que aqueles filhotes que conseguissem seu lugar teriam leite de melhor qualidade e em maior profusão. Os outros, incompetentes é claro, sofreriam, lamentavelmente, a conseqüência: deveriam morrer. A universidade continua formando para uma sociedade industrial ou, na melhor da hipóteses, pós-industrial que, conforme mostra Castells, já foi ou pelo menos vem sendo substituída pela sociedade informacional, na qual

o trabalho e a estrutura ocupacional não podem ser considerados como sendo o resultado de uma evolução linear, a sucessão histórica dos setores primários e secundários às atividades terciárias. Pelo contrário, há uma mudança fundamental a partir da divisão tecno-organizacional do trabalho a uma matriz mais complexa de unidades de produção e atividades diretivas que ordenam a lógica do sistema ocupacional inteiro. (Castells 1996, p. 12)

O Brasil tem cerca de 15 milhões de jovens. Desses apenas 20% encontram emprego. A média de escolaridade é de 4 anos. Diz-se que a maior parte não arruma emprego por falta de escolaridade. Por isso, na outra ponta, os estudos alongam-se cada vez mais. Acontece que todo este jogo é, pelo menos em grande medida, ilusório, uma vez que o número de empregos é objetivamente limitado. A cada novo empregado

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corresponde um novo desempregado. Quanto mais qualificados existirem, melhor para as empresas. Mesmo supondo uma situação em que todos os aspirantes ao emprego fossem muito bem qualificados, o número de desempregados não seria reduzido, apenas os desempregados seriam mais qualificados, como ocorre nos países do Primeiro Mundo. Quem já visitou cidades européias sabe que não é difícil encontrar motoristas de taxi com curso universitário e, até mesmo, com título de doutor. A universidade encontra-se numa situação extremamente difícil pois, de um lado, ela é a instituição em grande medida responsável pela pesquisa científica cujos resultados, na atual conjuntura, favorecem o capital, e, de outro, é responsável pela formação profissional de um grande número de pessoas que no mercado não encontrarão trabalho, devido, exatamente, ao fator inibidor (de trabalho humano) da ciência e da tecnologia mais avançadas. O sistema produtivo serve-se exatamente dos avanços científicos invertidos em tecnologia para economizar mão-de-obra humana. Uma das características mais marcantes de nossa época é o domínio do pensamento utilitarista. Num mundo em que aumenta constantemente a competitividade, a educação é cada vez mais canalizada para o desenvolvimento das competências necessárias para o mundo do trabalho e não para a reflexão. A racionalidade e a lógica próprias do mundo da produção, do mercado e da geração de lucros expande-se para as outras esferas da vida, de modo que tudo começa a ser medido por tais parâmetros. Até o espaço mais íntimo das relações humanas acaba sendo invadido pelo pensamento utilitarista: o valor do presente que o convidado recebe é estabelecido a partir do valor do presente que recebeu antes. O valor de uma amizade mede-se pelas vantagens que ela pode trazer, na

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lógica custo/benefício. Dos indivíduos exige-se tal eficiência e agilidade no julgamento e posicionamento ante os fatos e eventos, que fica inviabilizado o uso da experiência e da reflexão. Tudo é enquadrado, avaliado e julgado a partir de esquemas preestabelecidos. O ritmo da vida contemporânea exclui a experiência como parâmetro de orientação da vida, uma vez que os esquemas a priori de julgamento, inventados como forma ágil de adaptação dos indivíduos, a tornam dispensável. O indivíduo não pode orientar-se pela racionalidade de sua reflexão que leve em conta o seu bem-estar, mas deve obedecer à lógica de um sistema que se impõe como única forma de sobrevivência. Entre sociedade e indivíduo existe uma relação de amor e de ódio. De amor na medida em que o indivíduo deseja integrar-se a ela para viver e usufruir das regalias que o sistema lhe oferece, e de ódio na medida em que ele, para tanto, deve sacrificar sua autonomia, sua individualidade e intimidade. De certo modo, é obrigado a abrir mão de si mesmo para sobreviver (cf. Crochik 1997, p. 33 ss.). De um lado, a sociedade contemporânea, do mercado e do lucro, está organizada de tal modo que dispensa a adesão dos indivíduos para sua perpetuação; e, de outra parte, pelo caráter individualizante da informática, ela libera e fortalece a posição do indivíduo.

A promessa final do computador, ligado às redes globais de comunicação, é colocar todo o mundo do conhecimento e da informação nas mãos do indivíduo isolado [que] escondido na privacidade de seu quarto, sentado em frente a um terminal de computador. (...) se diverte, educa-se, comunica-se com outras pessoas nas

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estradas da informação e providencia seu sustento prestando o necessário trabalho na economia da informação. (Kumar 1997, p. 168)

No contexto da passagem da sociedade pós-industrial para a sociedade informática, à qual me referi acima, Castells fala de sociedade de fluxos. Refere-se aos "fluxos intercambiados através de redes de organizações e instituições" que, fazendo convergir a evolução social e as tecnologias de informação, criam novas bases materiais para o sistema social (Castells 1996, p. 23). Dentre os vários níveis de atuação destas redes, indicados por este autor, destaca-se o fato de que estas redes "organizam as posições de atores, organizações e instituições nas sociedades e nas economias" bem como o fato de que "a habilidade de gerar novo conhecimento e recolher informação estratégica depende do acesso aos fluxos de tal conhecimento e informações" (Castells 1996, pp. 23-26). Do ponto de vista do nosso objetivo, a principal conseqüência desta realidade é que a habilidade e a capacidade de gerar novos conhecimentos passam a depender do acesso aos fluxos das redes. Vivemos definitivamente numa sociedade de informação, baseada no conhecimento. Porém, este conceito de fluxo tem conseqüências ainda mais amplas e profundas do que sua simples operacionalização através das redes informáticas. O próprio conhecimento tornou-se um permanente fluir, seja do ponto de vista da perda de sua fixidez ou permanência, seja do ponto de vista de sua geração que é feita de modo interativo com a participação de muitos pesquisadores e grupos de pesquisa de diferentes partes do mundo. Nesse sentido,

a materialidade das redes e fluxos cria uma

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nova estrutura social em todos os níveis da sociedade. Tal estrutura é o que atualmente constitui a nova sociedade da informação, uma sociedade que poderia ser chamada sociedade dos fluxos, já que os fluxos não são feitos somente de informação, mas de todo o material da atividade humana (capital, trabalho, mercadorias, imagens, viagens, papéis mutáveis em interação pessoal etc.). (Castells 1996, p. 29)

Encontramo-nos numa nova fase da experiência humana. Em resumo, estamos vivendo numa sociedade envolta num processo de profundas transformações, orquestradas, sobretudo, pelos avanços na tecnologia de armazenamento e transmissão de informações. Esta nova realidade tem reflexos que mudam a sociedade, os indivíduos, as instituições e sua interação. A universidade e sua vocação A universidade tem que se preparar para o "choque do futuro" (Toffler). Da Idade Média para a Moderna, concomitantemente com as transformações epistêmicas às quais nos referimos acima, ocorreu uma profunda transformação da sociedade. Esta passagem implicou uma igual transformação das instituições sociais. Estado, direito, religião, ciência e também o sistema de ensino não permaneceram os mesmos. Se é verdade, como opinam alguns autores, que a sociedade atual está passando por transformações com ordem de grandeza similar às que ocorreram na passagem da Idade Média para a Moderna, pode-se supor que também as instituições haverão de passar por

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transformações de similar ordem de profundidade. Por isso, a universidade está convocada a repensar suas funções institucionais no interior de uma sociedade transformada e em permanente processo de mutação. Este é um ponto importante para uma avaliação inovadora e prospectiva da universidade. Além de avaliar seu desempenho no âmbito das tarefas e funções tradicionais, fundadas em determinado modelo social e epistêmico (tarefa que não deve ser abandonada mesmo porque as transformações não são repentinas e nem abruptas), é preciso que a avaliação reserve espaço para uma reflexão mais radical, vale dizer, para um repensar dos próprios princípios fundantes do atual modelo universitário. A universidade não pode simplesmente continuar celebrando as "narrativas" das disciplinas, dos mestres, da verdade e do conhecimento sem relacioná-las de alguma forma às importantes questões levantadas pelo pós-modernismo a respeito do significado destas narrativas, de suas regulações segundo experiências sociais e éticas e de seus pressupostos no que tange à visão epistemológica do mundo. Para alguns, como Castells,

as universidades não parecem ter emergido como sendo as instituições centrais da sociedade pós-industrial: as corporações (tanto privadas quanto públicas), os sistemas de saúde e escolar e os meios de comunicação são as instituições centrais, profundamente transformadas pelo uso intensivo de novas tecnologias de informação-comunicação. (1996, p. 8)

A linguagem, por exemplo, é um dos elementos centrais a

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partir do qual se deve repensar significados, identidades e políticas. A universidade continua assumindo a posição positivista de linguagem, sem atentar para o fato de que a linguagem é construída a partir do jogo de condicionamentos históricos. Questiona-se hoje radicalmente a visão hegemônica de representação segundo a qual o conhecimento, a verdade e a razão são governados por códigos lingüísticos essencialmente neutros e apolíticos. Verdade e ciência deixam de ser, neste contexto, noções fixas e incontestáveis para tornarem-se representações submetidas à constante problematização e crítica. Se a universidade quiser sobreviver como instituição de pesquisa e produtora do saber, ela deve ser capaz de integrar-se àquilo que é inovador em nossa época. Caso contrário, outras instituições - como institutos avançados ou centros de excelência - serão criadas para a produção de conhecimentos de ponta dos quais a nação necessita. Nesse caso, o risco para a universidade, já no presente mantida à míngua, será ainda maior, pois poderá ocorrer com ela o que ocorreu com as universidades francesas no século XIX, quando foram rebaixadas à condição de primas pobres das Grandes Écoles onde se passou a concentrar a maior parte dos recursos muito embora a universidade continuasse atendendo a grande massa dos alunos. Segundo Alain Renaut, na França as Grandes Écoles têm 4% dos alunos e 30% do orçamento destinado ao ensino superior. Para o autor,

esta divisão do ensino superior em dois setores paralelos traz, seja dito, uma conseqüência mais profunda que reside na indiferença, desde então possível, de ver como socialmente legítimo o destino das universidades. Pois se a

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produção de elites das quais uma nação moderna precisa se efetua em formas mais especializadas de ensino que se encontram nas Grandes Écoles, por que então se preocupar com as universidades? (Renaut 1995, p. 33)

A situação da universidade na França nos remete a refletir, pelo menos em termos de hipótese, sobre a função da universidade no caso de serem criados centros isolados de pesquisa no Brasil, conforme parece ser intenção do atual governo. As duas mais importantes vertentes da universidade moderna, a humboldtiana e a napoleônica, destacaram, respectivamente, a idéia de uma ciência básica, neutra e independente, que por si só deveria ser um fator de formação e de orientação das ações do Estado, e o conceito de ciência aplicada que, referida aos interesses do Estado, deveria formar profissionais para a burocracia estatal e para a própria sociedade. Daí se origina a tensão de duas lógicas diferentes e muitas vezes opostas que ficou preservada na confluência dos dois modelos. De um lado, as exigências do mercado de trabalho que espera um profissional capacitado para integrar-se e desenvolver o sistema produtivo através da competência cognitiva e de suas habilidades e, de outro, a prática acadêmica regida pela lógica das disciplinas científicas (Cunha 1997, p. 23). Hoje se costuma dar grande destaque à relação entre a universidade e o setor produtivo. Trata-se, sem dúvida, de um aspecto importante do desempenho acadêmico, mas o discurso incisivo e, em certos setores fora e dentro da universidade, quase consensual de que a articulação entre a universidade e o setor produtivo é essencial e de que é a partir dele que se mede a "utilidade" da academia é, no mínimo, simplificado para não

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dizer que se encontra carregado de interesses ideológicos. É claro que a cooperação entre universidade e empresa é importante e deve ser estimulada ao máximo, mas é igualmente importante deixar claro que se trata de uma relação complexa que além das vantagens que ambos os lados dela esperam também envolve riscos sobretudo para a universidade. Também não tem lugar um otimismo exagerado uma vez que, em muitos casos, o próprio sistema produtivo descarta a produção das universidades em termos de cultura, ciência e tecnologia (Cunha 1997, p. 24). Em muitos casos, a universidade é lenta demais para o ritmo do mundo empresarial que prefere optar pela compra de pacotes tecnológicos prontos que têm aplicações imediatas. O produto das pesquisas acadêmicas, oferecido de forma bruta desde o ponto de vista de sua aplicação prática, não tem condições de ser absorvido pelo sistema produtivo. Isto gera uma grande frustração, sobretudo naqueles setores acadêmicos que alimentam a esperança da produção de ciência e tecnologia nacionais. Reclama-se do desinteresse das empresas pelo investimento na área de ciência e tecnologia, mas ignora-se os fatores custo (importar tecnologia pronta é muitas vezes mais barato) e tempo. Na realidade, trata-se de uma situação perversa uma vez que a mesma sociedade, a maior interessada na produção de ciência e tecnologia nacionais, exige, como consumidora, produtos de última geração que só podem ser obtidos ou pela importação direta dos produtos ou pela compra rápida do know-how técnico-científico para produzi-los.

Os altos subsídios dados pelos governos dos países desenvolvidos do Norte às suas universidades, como, também, o forte investimento em pesquisa e desenvolvimento

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pelas empresas multinacionais condenam à obsolescência os conhecimentos produzidos em nossas universidades, em proveito da venda de "pacotes tecnológicos" de marcas e de processos. (Cunha 1997, p. 25)

E não há como evitar isso uma vez que os desejos e as necessidades dos consumidores são gerados pela mídia a partir de produtos dos países mais desenvolvidos que por condições que não interessa discutir aqui estão sempre muitos anos à frente dos países em desenvolvimento. Muitas vezes, ao estabelecer laços de cooperação com a empresa, a universidade teme pela perda de sua autonomia de pesquisa. As empresas estão interessadas em pesquisas que podem rapidamente ser vertidas em produtos e que venham a gerar lucros. A universidade, por seu turno, tem interesse na pesquisa básica e quer preservar seu posicionamento crítico. Segundo Cunha,

as universidades da região podem inserir-se no mercado, sem perder sua autonomia, com a condição de determinarem quando, como e para quê farão tal inserção. Mas, sendo fiéis aos seus princípios, elas não poderiam deixar de atuar, também, contra o mercado, cujos mecanismos, tão celebrados nesse momento de globalização hegemonizada, reproduzem eficazmente a miséria e a dominação em nossos países. (1997, p. 25)

Bem se sabe que a universidade não pode simplesmente ser "inquilina da utopia", negando-se a prestar serviços à comunidade ou desenvolver projetos conjuntos com empresas,

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mas, em contrapartida, não pode abrir mão de sua tarefa crítica, abandonando-se à subserviência de reclamos econômicos numa sociedade comandada por grupos de interesse em que amplas margens da população são condenadas à miséria. É preciso ter em conta ainda um outro aspecto que muitas vezes passa desapercebido neste debate sobre a relação entre universidade e empresa. Trata-se da tendência de a universidade submeter-se à lógica do lucro na medida em que privilegia, no seu relacionamento com as empresas, as áreas de maior retorno econômico as quais, por isso, tornam-se focos de atração para boa parte dos alunos e pesquisadores, aliás, pelo poder de atração do retorno econômico, geralmente os melhores. O conhecimento a ser adquirido ou produzido na universidade passa a ser interessante apenas na medida em que for possível transformá-lo em dinheiro. A formação científica ou profissional é mais ou menos valorizada segundo seu potencial de lucro. O poder de compra que este garante é a carteira de identidade do homem contemporâneo. Muda-se a máxima cartesiana "penso, logo existo" para "compro, logo existo", ou seja, quem não é capaz de comprar não existe. Mesmo sem dispor de dados empíricos, nossa experiência nos permite afirmar sem risco que grande parte dos alunos que chegam à universidade apenas espera que ela lhes transmita conhecimentos e habilidades com os quais futuramente possa ganhar dinheiro. Com isso, as universidades são obrigadas a competir num mercado acadêmico cada vez mais dominado pela mesma lei da produtividade e do lucro que rege o mercado em geral. As perguntas fundamentais a respeito do ser humano, da formação, da cultura e da ética são ridicularizadas no interior da academia como "coisas que não servem para nada". O lucro, diz Forrester, torna-se "a única

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lógica, como a própria substância da existência, o pilar da civilização, a garantia de toda a democracia, o móvel (fixo) de toda a mobilidade, o centro nervoso de toda a circulação, o motor invisível e inaudível, intocável de nossas animações" (1997, p. 19). E, referindo isto à universidade, Renaut não entende por que "a gente não se pergunta jamais se a incapacidade de tantos universitários de participarem, com suas competências, dos debates atuais não seria um dos mais cruéis indícios do rebaixamento contemporâneo da universidade" (1995, p. 23). É claro que este não é um problema exclusivo da universidade e talvez nem nasça em seu seio, mas é sem dúvida parte de sua missão contribuir para superá-lo. Trata-se, no fundo, de salvar a dimensão mais profunda do homem preservando-o de sua exteriorização total no material. Para a universidade trata-se de uma questão ética que afeta a essência de sua atividade e de seu sentido social. O que queremos dizer é que o sentido social da universidade está sendo abreviado e reduzido à função de prestar serviços e cooperar com empresas. Sem negar que isto possa também ser socialmente relevante, acreditamos que o sentido social da universidade vai muito além disso. A universidade não pode mais voltar-se exclusivamente para o desenvolvimento unilateral da ciência e tecnologia como se esta perspectiva exaurisse o projeto humano. Há outras questões vitais para a sociedade e para a comunidade a partir das quais a comunidade decide seu futuro. Habermas critica com muita razão a universalização da racionalidade técnica e instrumental que torna a sociedade, como já dizia também Max Weber, não uma comunidade de seres humanos que convivem a partir da adesão a normas dialogicamente estabelecidas, mas um complexo administrado pela imposição de normas técnicas. Ciência e tecnologia que encontram sua

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justificativa na eficiência assumem um papel fortemente ideológico na medida em que fogem da reflexão crítica uma vez que as regras técnicas requerem aceitação incondicional. Parece-nos, por isso, que a universidade, para além de seus evidentes deveres no campo da ciência e tecnologia, deve sentir-se responsável também pela emergência de uma nova responsabilidade favorável à reconstrução de uma sociedade que, sem rejeitar os ganhos da ciência e tecnologia, seja capaz de reinventar uma cultura mais humana. A universidade deve retomar seriamente a questão de sua função social na tensão da cultura e da profissionalização. É preciso encontrar um novo equilíbrio entre a formação técnico/profissional e a formação humanista/cultural. Para isso, é necessário que a universidade leve a sério, em todas as áreas de atuação, sua função cultural. Não se trata apenas de abrir pequenos espaços no currículo para a abordagem de temas humanísticos ou de artes, mas de ampliar com todo o rigor o conceito de formação acadêmica. Isto implica uma revisão profunda da prática acadêmica à qual estamos acostumados atualmente. Para tanto, não se deve partir de idéias gerais a respeito da identidade ideal da universidade para, em seguida, tentar aplicá-las normativamente, como se fazia tradicionalmente, mas construir um novo modelo universitário com base na realidade concreta da sociedade e do homem de hoje. Para isso, nem o local nem o global devem ser considerados isoladamente, mas ambos como fatores inter-relacionados que determinam a sociedade e o homem. É, portanto, mister que a universidade desenvolva a necessária sensibilidade social para que, reconhecendo seus problemas e suas necessidades, possa instituir sua nova identidade e desenvolver estratégias de atuação. O debate sobre as funções da universidade deve, por

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conseguinte, ser posto desde uma perspectiva contemporânea, preservando proximidade com as questões mais relevantes da sociedade, tal como elas se apresentam na realidade. Esta aproximação com o local e o regional representa, de certa forma, um nadar contra a corrente, pois são hegemônicos aqueles interesses que correspondem à racionalidade científico-tecnológica, marcada por uma lógica universalizante que estandartiza formas de ser, de pensar e de agir, próprias do homem concreto, inserido em sua comunidade e cultura. Com relação a este surto homogeneizador, as características e os modos de ser locais são curiosamente considerados alienados. Na sociedade contemporânea, o homem está ameaçado por um processo de desenraizamento quanto à sua cultura e à perda de sua identidade. Mais sério é este risco para as gerações mais jovens que se formam num ambiente de fratura e sem pertença no qual a mídia exerce uma influência avassaladora e sem precedentes na desconstrução da identidade cultural e na elaboração de identidades fluidas e fragmentárias. Neste meio, conforme diz Henry Giroux, "os valores já não nascem a partir de uma pedagogia modernista de fundamentalismo e verdades universais, nem de discursos tradicionais baseados em identidades fixas e com uma estrutura final" (1996, p. 73). Esta realidade constitui talvez o maior desafio para a educação nos dias de hoje, pelo menos se acreditamos que o homem é algo mais que mero objeto de mercado e que a educação deve contribuir para formar este algo mais no homem. Uma das principais tarefas será a de recuperar o espaço humano que já foi perdido. Refiro-me em especial à deplorável situação em que se encontra considerável parcela dos jovens da nova geração. É uma geração que já não aspira a coisa alguma, desnorteada e fragmentada, que espera passar o tempo, que vê a morte e a vida como um espetáculo, que não sente

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responsabilidade social, que cultua a imediatez do momento, da experiência e do prazer. A droga é um prazer assim imediato e representa a fuga de um mundo sem sentimento e sem esperança. Tudo é fluido, precário, relativo. Nada mais abriga nem obriga; nada mais entusiasma, desafia ou compromete. O homem, a sociedade e a própria vida sofrem de um profunda carência de sentido. Este mal, talvez o mais terrível dos nossos tempos, deverá um dia ser enfrentado, quem sabe quando o refúgio da atividade frenética, que a todos agita, ocupa e aliena, não oferecer mais proteção suficiente. A pergunta que se coloca para os educadores, e partimos do princípio de que todo professor universitário deve também ser educador além de cientista e pesquisador, é se já não estão confrontados com um novo tipo de ser humano, forjado na organização de princípios criados pela intersecção da imagem eletrônica que veicula programas como "Faustão", "Gugu Liberato" ou "Silvio Santos", como representantes da cultura popular e do sentimento fatal de indeterminação. O individualismo que estes programas transpiram tem muitas faces, sendo a principal a da irresponsabilidade social inescrupulosa. Uma química fatal que mistura individuação, privatização e desidentificação e funde "as fronteiras entre Estado e sociedade, entre esfera pública e privada, entre sociedade e indivíduo" (Kumar 1997, p. 180). Hoje, confirmam-se muitos dos temores manifestados por Adorno quando ele, já na década de 1930, manifestava sua crítica com relação à "indústria cultural". A mídia, conforme diz Kumar, "não apenas comunica como constrói. Em sua pura escala e ubiqüidade, ela está construindo um novo ambiente para nós, um ambiente que exige uma nova epistemologia social e uma nova forma de resposta" (p. 134). O consumismo, diz o

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mesmo autor em outra passagem, "invadiu os assuntos corporais e sexuais, a publicidade tem procurado nos conscientizar de novas ansiedades de identidade e segurança pessoal e garantir-nos que há mercadorias e serviços que podem satisfazer todas as nossas necessidades e aliviar todos os nossos medos" (p. 200). A cultura do homem que na história representa seu esforço de libertação e a luta por sua autonomia biológica e espiritual é hoje um instrumento de submissão, adestramento e embotamento do homem. A questão da cultura não é apenas um problema individual, mas "ela tornou-se `um produto por direito próprio', o processo de consumo cultural não é mais simplesmente um apêndice, mas a própria essência do funcionamento capitalista" (p. 126). Veja-se a relação ou mesmo a fusão que se estabelece entre cultura e comércio que pode ser constatada no papel decisivo da publicidade que exerce na cultura contemporânea. Na medida em que o homem pode, isto é, quando suas condições intelectuais e econômicas permitem, ele torna-se frio, distante dos conflitos sociais, da angústia, da dor e do sofrimento dos excluídos. A própria ciência, através da suposta exigência metodológica do distanciamento, assume neutralidade ante este objeto. Esta neutralidade e independência de seus objetos lhe confere o direito da generalização e aplicação de seus resultados a qualquer campo. Nesse contexto, coloca-se a questão da relação entre ciência, a qual representa, conforme Habermas, o interesse técnico de domínio e aproveitamento da natureza, e a ética que, segundo o modo de ver do mesmo autor, representa o interesse prático ou o domínio das decisões práticas do ser humano. Progressivamente, o indivíduo se distancia da cultura (Crochik 1996, p. 46), dos impasses da sociedade em que vive. O homem reage com a fuga ante os graves problemas sociais que tanto mais o envergonham

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quanto melhores são as condições científicas e técnicas para resolvê-los. Isto não significa que o indivíduo se torne mais autônomo, pois sua frieza, seu isolamento e seu distanciamento vão de passo com sua submissão às regras técnicas que servem como justificativa ante a falta de vontade coletiva de resolver os problemas. As regras técnicas administram homens e coisas, impedindo que os indivíduos ajam segundo sua própria consciência. Talvez as universidades regionais, por vocação mais próximas do homem do interior, possam poupar-lhe esta dolorosa travessia pelo caminhos errantes da razão moderna, desviada de seus objetivos de raiz, isto é, da construção de uma sociedade melhor e de um homem mais feliz. Kant queria que a razão conduzisse o homem à sua maioridade, dominador de seu entorno e dono de seus atos. O que aconteceu foi este mundo científico-tecnológico cujas regras, em muitos sentidos, são a gaiola de ouro do homem contemporâneo, como já insinuava Weber. Esta sociedade tecnológica tem, de fato, necessidade não apenas de técnicos seguros de suas competências especializadas, mas também de líderes capazes de tomar decisões e de fazer opções de maior amplitude, de desenvolver uma visão mais ampla da área à qual seus saberes e suas habilidades técnicas se aplicam (cf. Renaut 1995, p. 226). "Universidade" não é um conceito unívoco. Há universidades de diferentes tipos e estes se definem pela sua vocação. Esta vocação define-se, por sua vez, a partir do contexto sociocultural na qual ela está envolvida, dos objetivos que cada instituição se propõe e dos recursos humanos e materiais de que dispõe. Só isto seria assunto para longos debates. Para dizê-lo de forma muito pragmática e sucinta, cada universidade precisa assumir sua história e sua identidade na

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intersecção com o ambiente no qual está inserida. Assim, a particularização e a diversidade são a outra face da universalização e padronização do movimento contemporâneo da globalização. Pode-se dizer que os dilemas da universidade giram em torno do universal/local e do social/individual. E é neste sentido que vemos não apenas o caminho por onde as universidades chamadas regionais ou comunitárias devem caminhar, mas a importante missão que têm a cumprir no cenário acadêmico nacional no que diz respeito ao atendimento das necessidades de populações regionais como também ao conhecimento, ao reconhecimento, à preservação e ao desenvolvimento de culturas locais. De outra parte, não se pode amordaçar as universidades com vocação e recursos para o desempenho de um papel mais amplo e universal no campo das ciências básicas, das ciências humanas e da cultura. Conclusão Na primeira parte buscamos desenhar, em rápidos e parciais traços, as grandes transformações que estão ocorrendo no presente momento histórico com conseqüências profundas para o indivíduo e para a sociedade. Foram destacados sobretudo o importante papel da informática como elemento essencial deste processo de transformação e a centralidade da problemática do trabalho ou melhor do não-trabalho. Em seguida, voltamos nossa atenção para a universidade, supostamente a instituição precipuamente encarregada da produção e divulgação de conhecimentos. A universidade que temos ainda está presa às suas raízes modernas e precisa agora encontrar sua identidade e função no novo cenário epistemológico e social. Defasada com relação às principais características da sociedade contemporânea, a universidade precisa repensar de forma profunda sua função e identidade no

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momento histórico atual. Um dos aspectos desse processo deve ser, a nosso ver, a recuperação de sua função crítico-cultural. Estes dois movimentos do texto estiveram constantemente assistidos pelo interesse da relação entre ciência e sociedade, desde o ponto de vista da universidade. Constata-se que a universidade subordinou-se às normas do mercado, passando a instrumentalizar pessoas para determinadas tarefas ao invés de formar indivíduos. O próprio indivíduo abriu mão de si mesmo, de sua formação como ser humano global (que conhece, sente, ama, chora e sofre) para atender exclusivamente aos requerimentos do sistema tecnoeconômico. Ficou reduzido a uma função no sistema. Nesse sentido, a nova realidade que se delineia para as próximas décadas não é apenas um dado que deve ser incorporado pela universidade, mas representa, na atualidade, seu maior desafio. Tanto ela deve pensar criticamente esta realidade e contribuir para seu dimensionamento humano, quanto deve repensar sua própria função e identidade na perspectiva das mudanças que ocorrem. Acreditamos que os fundamentos, assim colocados, podem servir como subsídio para o estabelecimento de uma política universitária no campo da ciência e tecnologia e, também, para dar início a uma reflexão mais ampla sobre os fundamentos da universidade na sociedade de hoje. Science, society and university ABSTRACT: This paper aims to rethink the relationship between science, society and university from the transformations that mark the contemporary time. The hypothesis is that the changes in economical, labor and

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epistemic lewels also affect the meaning of academic practice. Reflecting upon the three concepts present in the title of this article - science, society and university - we conclude that university must rethink its identity establish. This basic reflexive thinking should be the first concern to a university reform. Bibliografia ADORNO, Th. e HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro, Zahar, 1985. BENJAMIN, W. Walter Benjamin (textos), organização e introdução de F.Kothe. São Paulo, Ática, 1985, Série Sociologia. CASTELLS, M. "Fluxos, redes e identidades: Uma teoria crítica da sociedade informacional". In: Novas Perspectivas Críticas em Educação. Porto Alegre, Artes Médicas, 1996, pp. 4-32. CUNHA, L.A. "Universidade e sociedade: Uma nova competência". Revista Adusp nº 9. Abril 1997, pp. 22-25. CHRETIEN, CL. A ciência em ação. Campinas, Papirus, 1994. CROCHIK, J.L. Preconceito - Indivíduo e cultura. São Paulo, Robe Editorial, 1997. FORRESTER, V. O horror econômico. São Paulo, Ed. UNESP, 1997. GIROUX, H. "Jovens, diferença e educação pós-moderna". In: Castells, M. Novas perspectivas críticas em educação. Porto Alegre, Artes Médicas, 1996, pp. 63-85. GOERGEN, P. "A crítica da modernidade e a educação". In: Pro-Posições, n.2(20), 1996, v. 7, pp. 5-28. GRUPPI, L. Tudo começou com Maquiavel. Porto Alegre, L&PM, 1980.

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