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http://karjos.blogspot.com/2004_07_05_karjos_archive.html Ao iniciar esta minha intervenção desejo agradecer ao centro de Formação do SPRC o convite que me foi endereçado para participar nestas acção de formação. O Painel que nos convoca para este encontro e que organiza este nosso debate propõe-nos um tema para discussão assaz interessante: “Interculturalidade na Sociedade e na Escola”. Como facilmente se compreenderá a minha intervenção, neste debate, não poderia deixar de se centrar na relação que a comunidade cigana estabelece com a instituição escolar. A escolarização das crianças ciganas, através da reflexão que suscita e das práticas pedagógicas a que pode conduzir, poderá fazer emergir um conjunto de saberes que se tornam proveitosos para a escolarização de todos. A escolarização das crianças ciganas ou de outras minorias culturais ou étnicas assenta, de uma forma geral, em muitos equívocos. Não poderei, como facilmente se compreende, analisar exaustivamente todos eles, mas procurarei referenciar alguns desses equívocos e, também desta forma, contribuir para que o nosso debate seja, um debate que faz apelo à reflexão, um debate interessante, motivador e questionador das nossas certezas. Conheço as inúmeras dificuldades que se colocam à escolarização da maioria das crianças ciganas, nomeadamente aos professores do primeiro ciclo. Sei que o problema é complicado, que não ajuda nada simplificar uma realidade que é em si mesma complexa. Mas, também sei que somente uma reflexão questionadora das nossas práticas permitirá encontrar respostas para uma mais fácil escolarização das crianças ciganas. E isto, porque o futuro das comunidades ciganas depende, em grande parte, das modalidades de escolarização utilizadas para a escolarização destas crianças. É por isso que esta minha intervenção é simultaneamente uma análise e uma reflexão sobre ideologias, designadamente políticas e sobre as práticas que as inspiram. Estaremos todos de acordo em dizer que globalmente, a escolarização das crianças ciganas tem sido até agora, um

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http://karjos.blogspot.com/2004_07_05_karjos_archive.html

Ao iniciar esta minha intervenção desejo agradecer ao centro de Formação do SPRC o convite que me foi endereçado para participar nestas acção de formação. O Painel que nos convoca para este encontro e que organiza este nosso debate propõe-nos um tema para discussão assaz interessante: “Interculturalidade na Sociedade e na Escola”. Como facilmente se compreenderá a minha intervenção, neste debate, não poderia deixar de se centrar na relação que a comunidade cigana estabelece com a instituição escolar. A escolarização das crianças ciganas, através da reflexão que suscita e das práticas pedagógicas a que pode conduzir, poderá fazer emergir um conjunto de saberes que se tornam proveitosos para a escolarização de todos.

A escolarização das crianças ciganas ou de outras minorias culturais ou étnicas assenta, de uma forma geral, em muitos equívocos. Não poderei, como facilmente se compreende, analisar exaustivamente todos eles, mas procurarei referenciar alguns desses equívocos e, também desta forma, contribuir para que o nosso debate seja, um debate que faz apelo à reflexão, um debate interessante, motivador e questionador das nossas certezas. Conheço as inúmeras dificuldades que se colocam à escolarização da maioria das crianças ciganas, nomeadamente aos professores do primeiro ciclo. Sei que o problema é complicado, que não ajuda nada simplificar uma realidade que é em si mesma complexa. Mas, também sei que somente uma reflexão questionadora das nossas práticas permitirá encontrar respostas para uma mais fácil escolarização das crianças ciganas. E isto, porque o futuro das comunidades ciganas depende, em grande parte, das modalidades de escolarização utilizadas para a escolarização destas crianças. É por isso que esta minha intervenção é simultaneamente uma análise e uma reflexão sobre ideologias, designadamente políticas e sobre as práticas que as inspiram.

Estaremos todos de acordo em dizer que globalmente, a escolarização das crianças ciganas tem sido até agora, um fracasso. Na sua maioria as crianças de etnia cigana não completam a escolaridade obrigatória.

A cultura cigana é uma cultura de resistência. A sua secular capacidade de adaptação remeteu-os para uma tradição de mudança, mudança dentro da tradição. As grandes transformações económicas, políticas e sociais das últimas décadas, designadamente as que se relacionam com os grupos sociais e culturais considerados “desfavorecidos”, “minoritários”, “marginais”, entre outros, obrigaram os ciganos a desenvolver novos meios de adaptação. Esta nova realidade obriga as diferentes comunidades ciganas as renovadas adaptações no caso de pretenderem manter uma relativa independência económica e cultural. Para conseguir estes objectivos, muitas comunidades ciganas, começam a procurar a escola, porque somente a escolarização lhes permite “tirar a carta”, como referem. A resistência cultural cigana, também aqui se manifesta. Para não serem absorvidos pela cultura dominante, a única defesa dos ciganos é utilizarem a escola sem se renderem a ela.

Uma análise critica das condições de escolarização das crianças ciganas facilmente nos remeterá para as seguintes duas considerações: primeiro, os ciganos não são um “problema social” nem um “grupo problemático”, como demonstrarei, nesta minha intervenção; em segundo lugar a “questão escolar” é mais um problema de ordem política e económica, do que um problema de escola e de pedagogia, na medida em que

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o seu peso é relativo quando compreendido numa realidade que é muito complexa. A questão cigana é mais um problema da Sociedade do que um problema pedagógico.

As políticas foram sempre, no que se refere aos ciganos, políticas de negação das pessoas e da sua cultura. As diferentes políticas podem ser agrupadas em torno de três grandes categorias: a exclusão, a reclusão e mais recentemente a inclusão. Não se excluindo mutuamente, estas políticas, do ponto de vista histórico, evoluíram da exclusão para a inclusão.As políticas de exclusão das comunidades ciganas caracterizavam-se pela expulsão, proibições diversas e punições, punições estas, que passavam pela marcação com ferros em brasa, enforcamento etc. Mas, como perseguir com estas políticas custa dinheiro e as expulsões fazem perder braços ao Estado, a política de exclusão irá transformar-se em políticas de reclusão. Esta política é entendida como a integração, de forma autoritária e geralmente violenta dos ciganos na sociedade que os rodeia. A partir do século XV e até 1856 os ciganos tornam-se escravos do Estado, do clero e da nobreza da sociedade romena. A falta de braços remete-os para as galés, a resistência dos ciganos as políticas de reclusão torna licito disparar sobre eles e privá-los da vida. Na Suíça, como em muitos outros países, a organização filantrópica Pro Juventute encarrega-se de fechar em instituições educativas ou dar para adopção as crianças ciganas que são retiradas aos pais (1926 e 1973). Mas, também esta política se manifestou globalmente ineficaz, surgindo a partir da segunda metade do século XX a político de inclusão. Independentemente dos eufemismos utilizados, esta política caracteriza-se no fundamental pela vontade de assimilação dos ciganos como procurarei demonstrar.

As imagens que se construíram acerca dos ciganos tendem a apagar/ignorar todos os aspectos culturais e fazer emergir os ciganos como um “problema social”. As imagens que se constroem e que se cristalizam torna-os num “problema social”, é necessário “reintegra-los” no resto da sociedade. Manifestam “inadaptações sociais” quando se pretende inclui-los, razão pela qual, as políticas de inclusão consideram a necessidade de os inserir no espaço social e esquecer o seu espaço cultural e étnico. Estas políticas tendem a construir um cigano imagético e não real: o cigano não é definido como é, mas sim como é necessário que seja, por motivos de ordem sócio-política.

Para o Estado a políticas de inclusão apresentam vantagens face à reclusão. Baseia-se no espírito da época, é politicamente correcto, é mais eficaz, mais radical, mais igualitário e o incluso é recompensado pelo seu alinhamento. A “integração social” é benéfica e compensatória: os ciganos mandam os seus filhos à escola e recebem o rendimento Mínimo Garantido.

Todos acham que conhecem os ciganos. E de uma forma geral são poucos os que não exprimem de uma forma categórica o seu conhecimento dos ciganos. Existem mesmo, entre nós, “especialistas” que falam sobre as questões ciganas. Mas na realidade o que se tem são ideias que se foram construindo sobre os ciganos a partir do século XV e que se foram rapidamente cristalizando sob a forma de estereótipos. Os ciganos são pouco conhecidos. Na realidade o que se manifesta mais em relação a eles é um certo romantismo ou alarmismo, e o pior é que na maior parte das vezes a realidade é largamente ultrapassada pelo imaginário. A assimilação ou a rejeição constrói argumentos para os seus discursos e justificações para os seus actos. As atitudes menos negativas para com os ciganos expressaram-se e expressam-se, pela simpatia romântica

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ligada ao folclore ou uma certa curiosidade intelectual mesclada de compaixão, mas logo que a oportunidade surge são de imediato reactivados os aspectos mais negativos das imagens que se criaram dos ciganos. O cigano imaginado, as imagens manipuladas são representações que nos remetem para a necessidade de questionar a nossa relação com as comunidades ciganas.

Foi no âmbito das políticas multiculturais de assimilação que se desenvolveu a noção de “dificuldades de adaptação” aos contextos sociais e culturais, se construiu a ideia de aluno “instável”, “atrasado”, ”inadaptado”. Rótulos que tem regras processuais de funcionamento que são estigmatizantes para as crianças ciganas. Estas teorias sendo efémeras e já contraditadas persistem em existir.

A integração é um mal necessário, defendem alguns. Não estou convencido. A integração é do ponto de vista sociológico, o primeiro passo para a assimilação. A integração é sempre a das crianças consideradas como as “outras”, as “diferentes”, as “mal integradas”, as “inadaptadas”, as que devem dar um passo para se aproximarem da escola que as integrará. É uma concepção etnocentrica, que se desenvolve, segundo o meu ponto de vista, num espírito contrário ao que postula a educação intercultural. E esta postula que o pluralismo cultural só se transforma em interculturalidade, se as trocas forem igualitárias.

Para a criança cigana os significantes utilizados na escola não remetem para nenhum significado. A criança está habituada a manipular realidades concretas e simbólicas que não correspondem às da escola, não está preparada para ter sucesso numa escola que não se adapta a ela, que valoriza registos diferentes dos seus. Os conteúdos de ensino e possivelmente as formas de o apresentar não são adequados porque não emergem de uma pedagogia “centrada sobre aquele que aprende”. Uma criança não pode levar duas experiências sociais e culturais paralelas, saltando de uma para a outra cada vez que passa a porta da escola. Numa concepção intercultural da escola são as características da criança que deve servir de base as opções pedagógicas e não um obstáculo, como acontece quando são desvalorizadas. Sendo assim, aceitar a criança cigana na escola significa ter em conta o que se passa fora da escola, nos diferentes domínios económicos, educativos, habitacionais, entre outros, em que a criança vive.

A cultura cigana quando se expressa na escola aparece quase sempre como um “anexo” e de uma forma geral manifestar-se através do folclore. Uma escola intercultural deve mostrar-se flexível na sua estrutura e funcionamento de forma a permitir que culturas diferentes se exprimam de formas diferentes. Deve contrapor a uma pedagogia assimilacionista - segundo o qual todas as crianças devem aprender o mesmo, no mesmo tempo e ao mesmo ritmo -, uma pedagogia que preconiza o respeito pelo pluralismo, que admite que as vias de acesso ao conhecimento podem ser múltiplas e que todas as culturas merecem o mesmo respeito.

A educação intercultural continua a ser um projecto. Um projecto que se deve consubstanciar numa “pratica social vivida”. A interculturalidade não pode visar uma hibridação intelectual dos alunos, através da manipulação pedagógica, mas antes o seu enriquecimento e a compreensão mútua por meio de aprendizagens baseadas nos antecedentes culturais de cada um deles. A manipulação folclórica é muitas vezes feita sob a capa de uma interculturalidade mal compreendida, de elementos culturais próximos dos estereótipos: dança, musica, culinária não pode ser separados da

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compreensão dos respectivos contextos. Não necessitamos de falar de pedagogia intercultural para valorizar tudo o que vai no sentido da aceitação do outro. O papel da escola é esse, deverá ser esse: participar na valorização e na compreensão das diferenças e transformar os antagonismos em diferenças mais bem compreendidas. A interculturalidade permite desenvolver uma “pedagogia do sucesso”, não sanciona as desigualdades iniciais face à cultura, não trata todos como iguais, não nega as diferenças para que estas não resultem no seu reforço. A interculturalidade permite que indivíduos diferentes vivam a sua diferença sem, no entanto, ficarem reduzidos a ela. Valoriza o que a criança faz e o que sabe fazer, em vez de penalizar o que faz mal ou que não sabe fazer, uma vez que não foi preparada para isso. A valorização constrói confiança e esta gera progressão no saber.

A pedagogia intercultural não se apresenta como uma “ementa única”, uma “ementa obrigatória”, mas é igualmente um facto, que nesta pedagogia cada um não “como o que lhe apetece”. E Porquê? Porque a pedagogia da interculturalidade pressupõe a valorização dos elementos das diferentes culturas em presença. É uma “ferramenta de negociação”. A pedagogia da interculturalidade edifica-se quando os objectivos são as aprendizagens de base úteis para a criança, para uma adaptação activa ao seu meio, que lhe permite fazer parte dele e ser sujeito da sua existência. Estes conteúdos curriculares inserem-se numa lista muita aberta, e deve continuar sempre aberta. Não se trata de unificação, mas de adaptação. A educação intercultural constrói e implica uma atitude simultaneamente receptiva e criativa de toda a comunidade escolar.

É importante esclarecer que os objectivos da pedagogia intercultural e dos professores não é “formar ciganos”. Não tem essa vocação, não tem essa possibilidade, nem ninguém espera que o façam. O que se espera é que a escola dê às crianças meios para valorizarem a sua cultura, não que o façam em vez delas. Os desafios que a interculturalidade nos coloca, nada têm a ver com a formação de professores “especialistas” em cultura cigana ou de outra qualquer. O maior desafio que a interculturalidade coloca aos professores tem a ver fundamentalmente com a sua própria formação. E esta deve permitir que os professores sejam formados para o acolhimento da diversidade através da flexibilização dos conteúdos, sem ideias preconcebidas sobre as crianças. A sua formação deverá ser concebida de forma a não ser, ou ser o menos possível, um agente de aculturação.A formação inicial e contínua de professores merecem, para terminar, o seguinte comentário: é necessário ter cuidado com as práticas aqui desenvolvidas. Normalmente as instituições do ensino superior, por razões diversas e complexas, desenvolvem políticas formativas que padecem de alguma ambiguidade, ambiguidade esta que acabam por remeter os formandos para menus formativos em que se aprende a “domesticação em conformidade”. O papel da investigação e dos investigadores é de extrema importância para a edificação de um novo olhar sobre as comunidades ciganas. Deveremos, no entanto, também aqui estar atentos e assumir uma atitude reflexiva e critica no sentido de denunciar estudos, que partindo de textos africanistas e/ou americanistas fazem generalizações abusivas, perigosas e falsas sobre as comunidades ciganas. É importante referir que a posição do investigador, no domínio cigano, não é fácil. Mas, é necessário e muito importante que se faça investigação acerca da história e cultura cigana em Portugal, para que desta forma, se compreenda mais e melhor a heterogeneidade cultural existente nas diversas comunidades ciganas.

A grande urbe deixou de ser monocultural e o novo conceito de cidadania já não é

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sustentado apenas pela cultura dominante.

Obrigado pela vossa atenção.BibliografiaFonseca, Isabel (1996) “ Enterrem-me em Pé”. S. Paulo, Companhia das LetrasFraser, Angus (1998) “História do Povo Cigano”, Lisboa: Editorial Teorema.Liégeois; Jean- Pierre (2001) “Minoria e Escolarização: o rumo cigano”, Lisboa, EntreculturasTouraine, Alain (1998) “Iguais e Diferentes Poderemos Viver Juntos?”, Lisboa: Instituto Piaget.Wieviorka, Michel (1995) “A Democracia à Prova – Nacionalismo, Populismo e Etnicidade”, Lisboa: Instituto Piaget.Wieviorka, Michel (1995) “Racismo e Modernidade”, Lisboa: Bertrand Editora.

# posted by Cajo @ 7/05/2004 03:37:00 PM 0 comments links to this post