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C12 Caderno 2 DOMINGO, 10 DE NOVEMBRO DE 2013 O ESTADO DE S. PAULO Fotografia Livros QUEM É L ilian desconfiou que Artur iria deixá-la. Que seu amor por ela estava acabando. O Ar- tur nem a chamava mais de Lili! Li- lian decidiu que a solução era provo- car ciúmes em Artur. Como? Comprou um buquê de flores, es- creveu num cartãozinho “Lilian: me diga quando...”, assinou – depois de pensar muito num bom nome para amante – “Renê” e mandou entrega- rem o buquê com o cartãozinho no seu próprio endereço. Deu certo. Foi o Arthur quem rece- beu as flores na porta. Disse: – Flores para você. Lilian, fingindo surpresa: – Flores? Para mim? – E um cartãozinho. – Um cartãozinho? – Posso abrir? – Não! Deixa que eu... Mas Artur já estava lendo o cartão- zinho. – Muito bem. Quem é Renê? – René? – “Lilian, diga quando”. Assinado, Renê. – Eu não tenho a menor... – “Diga quando” o quê? Hein? Hein? E quem é esse Renê? – Eu... O tapa foi tão forte que Lilian caiu de costas no sofá. Quando se er- gueu, estava sorrindo. O Artur sen- tia ciúmes. O Artur ainda a amava, afi- nal. O Artur ainda a amava! Paft. Novo tapa. Do sofá, eufórica, Lilian gritou: – É uma brincadeira! Fui eu que man- dei as flores. Fui eu que escrevi o... Não pode terminar porque o Artur começou a sufocá-la com uma almofa- da do sofá. *** É preciso explicar que Lilian não só vi- via com Artur há apenas seis meses, tempo insuficiente para se conhecer uma pessoa, como não entendia a raça dos homens. Homem não tem ciúmes porque ama. Ciúmes não é uma ques- tão entre o homem e a pessoa que ama. Ou é, mas a pessoa que ele ama é ele mesmo. Ciúmes é sempre entre o ho- mem e ele mesmo. – Quem é esse Renê? Hein? Hein? Súbito, o Artur parou de sufocá-la com a almofada. Levantou-se. Tinha se dado conta de uma coisa. Disse: – Eu sei quem é esse Renê. Eu conhe- ço esse Renê! A Lilian ainda tentou chamá-lo de volta. – Não existe nenhum Renê! Fui eu que inventei! Mas o Artur já tinha saído de casa, de- pois de passar no quarto e pegar o revól- ver da gaveta da mesinha de cabeceira. *** Lilian passou o resto do dia rondando pela casa, nervosíssima. Quando ou- viu o ruído da chave na fechadura, cor- reu para a porta. O Artur entrou sem olhar para ela. – Onde você estava? O que aconte- ceu? – Artur não respondeu. Foi para o quarto trocar de roupa. Lilian foi atrás. Havia respingo de sangue na camisa do Artur. O tiro fora de perto. Ele não trou- xera o revolver de volta. Provavelmen- te, o jogara em algum matagal. Lilian: – O Renê do cartãozinho... Artur tapou a sua boca com a mão. Disse: – Não se fala mais nesse nome nesta casa. Nunca mais. Está ouvindo? E depois: – Esse aprendeu a não se meter com a mulher dos outros. *** Naquela noite, nenhum dos dois dor- miu. Lilian pensando “Renê, Renê... Quem é que eu conheço com esse no- me? Quem é esse Renê, meu Deus? Ou quem era”. De madrugada, amaram-se louca- mente. O Artur dizendo: – Viu o que eu faço por você? Viu? Era a primeira vez que se amavam assim em pelo menos três meses. Ele até a chamou outra vez de Lili. *** Durante dias, Lilian procurou nos jornais uma notícia sobre a morte de Renê. Nada nonoticiário policial. Ne- nhum registro de desaparecimento. Nada nos avisos fúnebres. Quem se- ria aquele Renê? No fim de mais seis meses, Artur anunciou que iria dei- xar Lilian. – Não vai não – disse Lilian. E acrescentou que, no momento em que ele saísse pela porta, ela tele- fonaria para a polícia. A polícia gosta- ria de saber do fim de um certo Re- nê... – Você faria isso, Lili? – Experimenta. Artur ficou. Nascido em Florianópolis há 62 anos, ele começou sua carreira como fotojornalista da sucursal do ‘Estado’ em Santos. Já publicou mais de 40 livros, sendo Terra Brasil o livro de fotografia brasileiro mais vendido de todos os tem- pos (mais de 100 mil exempla- res vendidos). Precursor da fotografia ecológica no País, Alcântara acumulou diversos prêmios internacionais em seus 40 anos de carreira. SEGUNDA-FEIRA LÚCIA GUIMARÃES TERÇA-FEIRA ARNALDO JABOR QUARTA-FEIRA ROBERTO DAMATTA QUINTA-FEIRA LUIS FERNANDO VERISSIMO SEXTA-FEIRA IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO MILTON HATOUM SÁBADO LAURA GREENHALGH MARCELO RUBENS PAIVA SÉRGIO AUGUSTO DOMINGO VERISSIMO JOÃO UBALDO RIBEIRO HUMBERTO WERNECK FÁBIO PORCHAT FOTÓGRAFO Santos. Livro de fotos de Araquém Alcântara. Editora: Terrabrasil (170 págs., R$ 79). Lançamento: 5/12, na Casa da Frontaria Azulejada (R. do Comércio, 96, Centro de Santos). As imagens históricas de uma tribo muito sofisticada ARAQUÉM ALCÂNTARA Santos ganha um livro de Araquém Alcântara, cuja carreira começou no cais da cidade Ciúmes Antonio Gonçalves Filho Comemorando 40 anos de pro- fissão, o fotógrafo Araquém Al- cântara lança simultaneamente dois livros, Santos, sobre a cida- de onde passou a infância e a juventude, e um outro que traz seu nome no título, primeiro vo- lume da Coleção Ipsis de Foto- grafia Brasileira, ambos com fo- tografias em preto e branco. O segundo é uma síntese da carrei- ra desse que é considerado um dos maiores fotógrafos de natu- reza do País. Nele estão conti- das algumas imagens igualmen- te selecionadas para o livro San- tos, mas em dimensões meno- res (14 x 16 cm). Santos não é um livro para tu- ristas. Vale dizer, não é uma de- claração ufanista, mas um ba- lanço amoroso e crítico de um fotógrafo que começou sua car- reira registrando a imagem de despossuídos e marginaliza- dos. Por isso mesmo, a região privilegiada pelas lentes do fo- tógrafo não é a orla da praia, mas o centro da cidade, domi- nado pela atmosfera melancóli- ca do porto – e nunca é demais lembrar, como evoca Ara- quém, que a cidade começou a nascer no cais do Valongo, on- de um vapor britânico marcou a primeira operação interconti- nental, em 1892. A primeira exposição indivi- dual do fotógrafo usava a ima- gem de urubus de uma maneira um tanto alegórica, aproximan- do os abutres dos seres segrega- dos de forma escancarada pela sociedade. Em 1973, sufocada pela ditadura, a santista, que ha- via sido no passado uma socie- dade culta e politizada, tentava se vingar da truculência do regi- me humilhando os proscritos. “Sempre tive esse lado de pro- duzir material combativo, mos- trando esse tipo de horror”, atesta o fotógrafo que, no livro, troca a imagem de alegres turis- tas circulando pelos jardins da praia pelo trabalho escravo de estivadores que, nos anos 1970, disputavam para carregar sacas de café nas costas. Há, é claro, a imagem do pas- sado monumental de uma cida- de que não era só o mítico por- to de marinheiros tatuados e prostitutas, mas uma celebra- ção da riqueza burguesa, tradu- zida nos prédios do centro. “Cheguei na cidade com seis anos e fiquei impressionado com o tamanho dos navios que aportavam em Santos, além da beleza dos edifícios da rua do Comércio, hoje em ruínas”. Fe- lizmente, ela começa a dar si- nais de revitalização, como mostra uma foto feita este ano na Casa da Frontaria Azuleja- da, construída em 1865 e final- mente restaurada. Para o livro da Coleção Ipsis de Fotografia Brasileira, que te- rá 10 volumes (dedicados a pro- fissionais como Cristiano Mas- caro e Nair Benedicto), o cura- dor Eder Chiodetto selecionou fotos do começo da carreira de Alcântara, em Santos, mas am- pliou a panorâmica desse fotó- grafo peregrino que já fotogra- fou o Brasil inteiro, inclusive as regiões mais remotas. Coincidentemente, no livro, estão registros da tribo dos Zo’ és feitos por Araquém em 2005 no rio Cuminapanema, os mes- mo índios fotografados por Ro- gério Assis no livro Zo’é (leia tex- to abaixo) em 1989 e vinte anos depois. Além dos Zo’és, Ara- quém mostra no pequeno gran- de livro da Ipsis o retrato do ge- nocídio indígena no Brasil, sin- tetizado numa imagem dramáti- cas de crianças ingaricós vesti- das com trapos. Para uma etnia sofisticada, que concebe o universo como ter- ras e céus sobrepostos, segun- do explicação da antropóloga Dominique Tilkian Gallois, o encontro dos índios da tribo Zo’é com o fotógrafo paraense Rogério Assis foi não só o come- ço de uma bela amizade como de um registro histórico igual- mente requintado. Em1989, Ro- gério se tornou o primeiro fotó- grafo a ter contato com o povo Zo’é, naquela época ameaçado por uma epidemia de gripe leva- da por missionários. Vinte anos depois ele voltou à Amazônia, na região dos rios Cuminapanema, Erepecuru e Urucuriana, para visitar a Fren- te de Proteção Etnoambiental Cuminapanema mantida pela Funai e registrar a iniciativa do órgão, de defender o isolamen- to da terra indígena. O resulta- do é o livro Zo’é (128 páginas, R$ 70), que a Editora Terceiro No- me coloca agora nas livrarias . Outra fotógrafa, Rosely Naka- gawa, chama a atenção no livro para a difícil integração do fotó- grafo ao cotidiano da tribo. Co- mo registrar o ócio sem um olhar crítico, sendo Assis um ho- mem urbano que, por natureza, não pode esperar? “Percebe- mos nessas imagens uma postu- ra sutil, delicada, de se deixar desaparecer entre os outros pa- ra se tornar um deles”, diz ela, evocando a defesa dos ociosos pelo escritor escocês Robert Louis Stevenson, que passou pe- los mares do Sul para entender como viviam os antípodas. A primeira lição de Assis no convívio com a tribo foi apren- der que não existia um cacique ou um pajé para comandar ou manipular a tribo de forma tirâ- nica. Suas fotos mostram os Zo’ és sempre brincando, resolven- do suas diferenças não com agressões físicas, mas na con- versa. As crianças são educadas com liberdade e mamam até os três anos, sempre que desejam. Aos quatro, já podem circular livremente pelo pátio da aldeia e visitar familiares. O livro de Assis presta parti- cular atenção às crianças, mas cobre praticamente tudo o que interessa a um antropólogo, dos cuidados que as moças têm com suas tiaras, a obsessão pe- los banhos, os cuidados na con- fecção de cordéis de fibra de curará e a escarificação com dente de cotia nas pernas dos rapazes. Uma bela introdução do mundo dos Zo’és. / A.G.F. VERISSIMO A beleza no porto DIVULGAÇÃO FOTOS DIVULGAÇÃO A seco. Barco em Bragança, no Pará, à espera da maré alta Família Brasil Bolsa de Café. Prédio de 1922 representou a riqueza do município Livre. Criança Zo’é pode mamar até os 3 anos

Ciúmes FamíliaBrasil Lsites.unisanta.br/hemeroteca/arquivos/a932.pdfde onde passou a infância e a juventude,eumoutroquetraz seunomenotítulo,primeirovo-lumedaColeçãoIpsisdeFoto-grafiaBrasileira,amboscomfo-tografias

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C12 Caderno 2 DOMINGO, 10 DE NOVEMBRO DE 2013 O ESTADO DE S. PAULO

Fotografia Livros

QUEM É

L ilian desconfiou que Arturiria deixá-la. Que seu amorpor ela estava acabando. O Ar-

tur nem a chamava mais de Lili! Li-lian decidiu que a solução era provo-car ciúmes em Artur. Como?

Comprou um buquê de flores, es-creveu num cartãozinho “Lilian: mediga quando...”, assinou – depois depensar muito num bom nome paraamante – “Renê” e mandou entrega-rem o buquê com o cartãozinho noseu próprio endereço.

Deu certo. Foi o Arthur quem rece-beu as flores na porta. Disse:

– Flores para você.Lilian, fingindo surpresa:– Flores? Para mim?– E um cartãozinho.– Um cartãozinho?– Posso abrir?– Não! Deixa que eu...Mas Artur já estava lendo o cartão-

zinho.– Muito bem. Quem é Renê?– René?– “Lilian, diga quando”. Assinado,

Renê.– Eu não tenho a menor...– “Diga quando” o quê? Hein?

Hein? E quem é esse Renê?– Eu...O tapa foi tão forte que Lilian caiu

de costas no sofá. Quando se er-gueu, estava sorrindo. O Artur sen-

tia ciúmes. O Artur ainda a amava, afi-nal. O Artur ainda a amava! Paft. Novotapa.

Do sofá, eufórica, Lilian gritou:– É uma brincadeira! Fui eu que man-

dei as flores. Fui eu que escrevi o...Não pode terminar porque o Artur

começou a sufocá-la com uma almofa-da do sofá.

***É preciso explicar que Lilian não só vi-via com Artur há apenas seis meses,tempo insuficiente para se conheceruma pessoa, como não entendia a raçados homens. Homem não tem ciúmesporque ama. Ciúmes não é uma ques-tão entre o homem e a pessoa que ama.Ou é, mas a pessoa que ele ama é elemesmo. Ciúmes é sempre entre o ho-mem e ele mesmo.

– Quem é esse Renê? Hein? Hein?Súbito, o Artur parou de sufocá-la

com a almofada. Levantou-se.Tinha se dado conta de uma coisa.

Disse:– Eu sei quem é esse Renê. Eu conhe-

ço esse Renê!A Lilian ainda tentou chamá-lo de

volta.– Não existe nenhum Renê! Fui eu

que inventei!Mas o Artur já tinha saído de casa, de-

pois de passar no quarto e pegar o revól-ver da gaveta da mesinha de cabeceira.

***

Lilian passou o resto do dia rondandopela casa, nervosíssima. Quando ou-viu o ruído da chave na fechadura, cor-reu para a porta. O Artur entrou semolhar para ela.

– Onde você estava? O que aconte-ceu?

– Artur não respondeu. Foi para oquarto trocar de roupa. Lilian foi atrás.Havia respingo de sangue na camisa doArtur. O tiro fora de perto. Ele não trou-xera o revolver de volta. Provavelmen-te, o jogara em algum matagal. Lilian:

– O Renê do cartãozinho...Artur tapou a sua boca com a mão.

Disse:– Não se fala mais nesse nome nesta

casa. Nunca mais. Está ouvindo?E depois:– Esse aprendeu a não se meter com

a mulher dos outros.***

Naquela noite, nenhum dos dois dor-miu. Lilian pensando “Renê, Renê...Quem é que eu conheço com esse no-me? Quem é esse Renê, meu Deus? Ouquem era”.

De madrugada, amaram-se louca-mente. O Artur dizendo:

– Viu o que eu faço por você? Viu?Era a primeira vez que se amavam

assim em pelo menos três meses. Eleaté a chamou outra vez de Lili.

***

Durante dias, Lilian procurou nosjornais uma notícia sobre a morte deRenê.Nadanonoticiário policial.Ne-nhum registro de desaparecimento.Nada nos avisos fúnebres. Quem se-ria aquele Renê? No fim de mais seismeses, Artur anunciou que iria dei-xar Lilian.

– Não vai não – disse Lilian.E acrescentou que, no momento

em que ele saísse pela porta, ela tele-fonariapara a polícia. A polícia gosta-ria de saber do fim de um certo Re-nê...

– Você faria isso, Lili?– Experimenta.Artur ficou.

✽ Nascido em Florianópolishá 62 anos, ele começou suacarreira como fotojornalistada sucursal do ‘Estado’ emSantos. Já publicou mais de40 livros, sendo Terra Brasil olivro de fotografia brasileiromais vendido de todos os tem-pos (mais de 100 mil exempla-res vendidos). Precursor dafotografia ecológica no País,Alcântara acumulou diversosprêmios internacionais emseus 40 anos de carreira.

SEGUNDA-FEIRALÚCIA GUIMARÃES

TERÇA-FEIRAARNALDO JABOR

QUARTA-FEIRAROBERTO DAMATTA

QUINTA-FEIRALUIS FERNANDOVERISSIMO

SEXTA-FEIRAIGNÁCIO DE LOYOLABRANDÃOMILTON HATOUM

SÁBADOLAURA GREENHALGHMARCELO RUBENSPAIVASÉRGIO AUGUSTO

DOMINGOVERISSIMOJOÃO UBALDO RIBEIROHUMBERTO WERNECKFÁBIO PORCHAT

FOTÓGRAFO

Santos.Livro de fotosde AraquémAlcântara.Editora:Terrabrasil(170 págs.,R$ 79).Lançamento:5/12, na Casada FrontariaAzulejada (R.do Comércio,96, Centro deSantos).

As imagens históricas de uma tribo muito sofisticada

ARAQUÉM ALCÂNTARA

Santos ganha umlivro de AraquémAlcântara, cujacarreira começouno cais da cidade

Ciúmes

Antonio Gonçalves Filho

Comemorando 40 anos de pro-fissão, o fotógrafo Araquém Al-cântara lança simultaneamentedois livros, Santos, sobre a cida-de onde passou a infância e ajuventude, e um outro que trazseu nome no título, primeiro vo-lume da Coleção Ipsis de Foto-grafia Brasileira, ambos com fo-tografias em preto e branco. Osegundo é uma síntese da carrei-ra desse que é considerado umdos maiores fotógrafos de natu-reza do País. Nele estão conti-das algumas imagens igualmen-te selecionadas para o livro San-tos, mas em dimensões meno-res (14 x 16 cm).

Santos não é um livro para tu-ristas. Vale dizer, não é uma de-claração ufanista, mas um ba-lanço amoroso e crítico de umfotógrafo que começou sua car-reira registrando a imagem dedespossuídos e marginaliza-dos. Por isso mesmo, a regiãoprivilegiada pelas lentes do fo-tógrafo não é a orla da praia,mas o centro da cidade, domi-nado pela atmosfera melancóli-ca do porto – e nunca é demaislembrar, como evoca Ara-quém, que a cidade começou anascer no cais do Valongo, on-de um vapor britânico marcoua primeira operação interconti-nental, em 1892.

A primeira exposição indivi-

dual do fotógrafo usava a ima-gem de urubus de uma maneiraum tanto alegórica, aproximan-do os abutres dos seres segrega-dos de forma escancarada pelasociedade. Em 1973, sufocadapela ditadura, a santista, que ha-via sido no passado uma socie-dade culta e politizada, tentava

se vingar da truculência do regi-me humilhando os proscritos.“Sempre tive esse lado de pro-duzir material combativo, mos-trando esse tipo de horror”,atesta o fotógrafo que, no livro,troca a imagem de alegres turis-tas circulando pelos jardins dapraia pelo trabalho escravo de

estivadores que, nos anos 1970,disputavam para carregar sacasde café nas costas.

Há, é claro, a imagem do pas-sado monumental de uma cida-de que não era só o mítico por-to de marinheiros tatuados eprostitutas, mas uma celebra-ção da riqueza burguesa, tradu-

zida nos prédios do centro.“Cheguei na cidade com seisanos e fiquei impressionadocom o tamanho dos navios queaportavam em Santos, além dabeleza dos edifícios da rua doComércio, hoje em ruínas”. Fe-lizmente, ela começa a dar si-nais de revitalização, comomostra uma foto feita este anona Casa da Frontaria Azuleja-da, construída em 1865 e final-mente restaurada.

Para o livro da Coleção Ipsisde Fotografia Brasileira, que te-rá 10 volumes (dedicados a pro-fissionais como Cristiano Mas-caro e Nair Benedicto), o cura-dor Eder Chiodetto selecionoufotos do começo da carreira deAlcântara, em Santos, mas am-pliou a panorâmica desse fotó-grafo peregrino que já fotogra-fou o Brasil inteiro, inclusive asregiões mais remotas.

Coincidentemente, no livro,estão registros da tribo dos Zo’és feitos por Araquém em 2005no rio Cuminapanema, os mes-mo índios fotografados por Ro-gério Assis no livro Zo’é (leia tex-to abaixo) em 1989 e vinte anosdepois. Além dos Zo’és, Ara-quém mostra no pequeno gran-de livro da Ipsis o retrato do ge-nocídio indígena no Brasil, sin-tetizado numa imagem dramáti-cas de crianças ingaricós vesti-das com trapos.

Para uma etnia sofisticada, queconcebe o universo como ter-ras e céus sobrepostos, segun-do explicação da antropólogaDominique Tilkian Gallois, oencontro dos índios da triboZo’é com o fotógrafo paraenseRogério Assis foi não só o come-ço de uma bela amizade comode um registro histórico igual-mente requintado. Em1989, Ro-gério se tornou o primeiro fotó-grafo a ter contato com o povoZo’é, naquela época ameaçadopor uma epidemia de gripe leva-da por missionários.

Vinte anos depois ele voltou à

Amazônia, na região dos riosCuminapanema, Erepecuru eUrucuriana, para visitar a Fren-te de Proteção EtnoambientalCuminapanema mantida pelaFunai e registrar a iniciativa doórgão, de defender o isolamen-to da terra indígena. O resulta-do é o livro Zo’é (128 páginas, R$70), que a Editora Terceiro No-me coloca agora nas livrarias .

Outra fotógrafa, Rosely Naka-gawa, chama a atenção no livropara a difícil integração do fotó-grafo ao cotidiano da tribo. Co-mo registrar o ócio sem umolhar crítico, sendo Assis um ho-

mem urbano que, por natureza,não pode esperar? “Percebe-mos nessas imagens uma postu-ra sutil, delicada, de se deixardesaparecer entre os outros pa-ra se tornar um deles”, diz ela,evocando a defesa dos ociosospelo escritor escocês RobertLouis Stevenson, que passou pe-los mares do Sul para entendercomo viviam os antípodas.

A primeira lição de Assis noconvívio com a tribo foi apren-der que não existia um caciqueou um pajé para comandar oumanipular a tribo de forma tirâ-nica. Suas fotos mostram os Zo’

és sempre brincando, resolven-do suas diferenças não comagressões físicas, mas na con-versa. As crianças são educadascom liberdade e mamam até ostrês anos, sempre que desejam.Aos quatro, já podem circularlivremente pelo pátio da aldeiae visitar familiares.

O livro de Assis presta parti-cular atenção às crianças, mascobre praticamente tudo o queinteressa a um antropólogo,dos cuidados que as moças têmcom suas tiaras, a obsessão pe-los banhos, os cuidados na con-fecção de cordéis de fibra decurará e a escarificação comdente de cotia nas pernas dosrapazes. Uma bela introduçãodo mundo dos Zo’és. / A.G.F.

VERISSIMO

A belezano porto

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A seco.Barco emBragança,no Pará, àespera damaré alta

Família Brasil

Bolsa de Café. Prédiode 1922 representou a

riqueza do município

Livre.CriançaZo’é podemamar atéos 3 anos