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Cineclube de Joane 1 de 9 Paulo Rocha – Cinema Mundo (parte I) Com a estreia de Se eu fosse ladrão... roubava, obra póstuma e (possível) súmula da sua arte sempre mesclada com a vida, exibiremos Verdes Anos (1963) e Mudar de Vida (1966), obras que tornaram Paulo Rocha uma das figuras incontornáveis do Cinema Novo e uma das principais ascendências nas obras de alguns dos cineastas mais notáveis do cinema português contemporâneo: Pedro Costa, Teresa Villaverde e Joaquim Sapinho. Já havíamos passado pela obra de Rocha com a exibição da obra-prima O Rio do Ouro (1998), por A Raiz do Coração (2000) que confirmara a sua abertura a outros mundos, numa constante renovação e paixão por outras culturas de que o “asiático” A Ilha dos Amores (1982) faz figura de proa e que, por isso, incluiremos na segunda parte do ciclo que dedicaremos em breve ao cineasta, que também incluirá a imersão no universo de Amadeo de Sousa-Cardoso, com a exibição de Máscara de Aço contra Abismo Azul (1989). Cineclube de Joane, Junho de 2015 Se Eu Fosse Ladrão…Roubava de Paulo Rocha (Portugal, 2011) sinopse Um pequeno lavrador de S. Vicente vê o seu pai morrer com a peste que dizima o País. Alguns anos mais tarde, de todos os irmãos, Vitalino é o mais aguerrido e toma o lugar de homem da casa. Mas a aldeia onde vive é muito pequena para as suas aspirações e decide rumar ao Brasil deixando as suas irmãs encarregadas dos trabalhos da casa. Partindo da memória familiar e da matéria dos seus filmes, Paulo Rocha revisita as suas origens e as referências maiores da sua vida e obra, numa construção complexa, que é conscientemente testamental embora só diretamente auto-biográfica. O motor inicial do filme é a evocação da infância e juventude do pai do autor, em particular o sonho obsessivo deste, na altura partilhado por muitos, de emigrar para o Brasil, para onde partiu efetivamente em 1909. Mas este tema familiar cruza-se desde o início com o grande mundo da obra de Rocha, num puzzle de raccords temáticos que se dirige para dentro e para trás (a busca do centro ou da origem…) tanto quanto para fora (a constante ampliação de sentido, a identidade de um país). Paulo Rocha fala portanto da sua própria necessidade de partir, e da interrogação de Portugal através da distância, assim como fala da morte, mas também da doença e de um medo tornados endémicos, corrosivos de um país. Titulo Original: Se Eu Fosse Ladrão…Roubava (Portugal, 2011, 100 min) Realização: Paulo Rocha Argumento: Regina Guimarães, Paulo Rocha, João Carlos Viana Interpretação: Carla Chambel, Chandra Malatitch, Isabel Ruth, Joana Bárcia, João Pedro Vaz, Lima Duarte, Luís Miguel Cintra, Márcia Breia Fotografia: Acácio de Almeida Montagem: Edgar Feldman Produção: Gafanha Filmes Som: Olivier Blanc Distribuição: Midas Filmes Estreia: 7 de Maio de 2015 Classificação: M/12

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Paulo Rocha – Cinema Mundo (parte I)

Com a estreia de Se eu fosse ladrão... roubava, obra póstuma e (possível) súmula da sua arte sempre mesclada com a vida, exibiremos Verdes Anos (1963) e Mudar de Vida (1966), obras que tornaram Paulo Rocha uma das figuras incontornáveis do Cinema Novo e uma das principais ascendências nas obras de alguns dos cineastas mais notáveis do cinema português contemporâneo: Pedro Costa, Teresa Villaverde e Joaquim Sapinho. Já havíamos passado pela obra de Rocha com a exibição da obra-prima O Rio do Ouro (1998), por A Raiz do Coração (2000) que confirmara a sua abertura a outros mundos, numa constante renovação e paixão por outras culturas de que o “asiático” A Ilha dos Amores (1982) faz figura de proa e que, por isso, incluiremos na segunda parte do ciclo que dedicaremos em breve ao cineasta, que também incluirá a imersão no universo de Amadeo de Sousa-Cardoso, com a exibição de Máscara de Aço contra Abismo Azul (1989). Cineclube de Joane, Junho de 2015

Se Eu Fosse Ladrão…Roubava de Paulo Rocha (Portugal, 2011)

sinopse Um pequeno lavrador de S. Vicente vê o seu pai morrer com a peste que dizima o País. Alguns anos mais tarde, de todos os irmãos, Vitalino é o mais aguerrido e toma o lugar de homem da casa. Mas a aldeia onde vive é muito pequena para as suas aspirações e decide rumar ao Brasil deixando as suas irmãs encarregadas dos trabalhos da casa. Partindo da memória familiar e da matéria dos seus filmes, Paulo Rocha revisita as suas origens e as referências maiores da sua vida e obra, numa construção complexa, que é conscientemente testamental embora só diretamente auto-biográfica. O motor inicial do filme é a evocação da infância e juventude do pai do autor, em particular o sonho obsessivo deste, na altura partilhado por muitos, de emigrar para o Brasil, para onde partiu efetivamente em 1909. Mas este tema familiar cruza-se desde o início com o grande mundo da obra de Rocha, num puzzle de raccords temáticos que se dirige para dentro e para trás (a busca do centro ou da origem…) tanto quanto para fora (a constante ampliação de sentido, a identidade de um país). Paulo Rocha fala portanto da sua própria necessidade de partir, e da interrogação de Portugal através da distância, assim como fala da morte, mas também da doença e de um medo tornados endémicos, corrosivos de um país.

Titulo Original: Se Eu Fosse Ladrão…Roubava (Portugal, 2011, 100 min) Realização: Paulo Rocha Argumento: Regina Guimarães, Paulo Rocha, João Carlos Viana Interpretação: Carla Chambel, Chandra Malatitch, Isabel Ruth, Joana Bárcia, João Pedro Vaz, Lima Duarte, Luís Miguel Cintra, Márcia Breia Fotografia: Acácio de Almeida Montagem: Edgar Feldman Produção: Gafanha Filmes Som: Olivier Blanc Distribuição: Midas Filmes Estreia: 7 de Maio de 2015 Classificação: M/12

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Verdes Anos de Paulo Rocha (Portugal, 1963)

sinopse Júlio, de dezanove anos, vem da província para Lisboa, tentar a sorte como sapateiro. No dia da chegada, um incidente leva-o a conhecer Ilda, jovem da mesma idade, empregada doméstica em casa próxima da oficina onde Júlio trabalha. Júlio sente-se num ambiente estranho e hostil, desenrolando-se uma série de peripécias que lhe despertam a desconfiança em relação a Ilda, que decide romper o namoro.

Verdes Anos é uma obra de mocidade, um filme confessional, contado com pudor, como que a pedir desculpa, o choque entre a aldeia pura e a cidade corrupta, ou, se quisermos, o choque entre o fim da adolescência e a entrada no tempo adulto. Mas Paulo Rocha soube evitar a retórica e servir-se de uma história muito simples (...), retirando-lhe o melodrama e a retórica através da singeleza, da naturalidade, da sinceridade, do estado de graça dos jovens actores, mas insinuando-lhe o sangue e a morte por debaixo da ilusão de um real agradável, descontraído, quotidiano. Luís de Pina, in História do Cinema Português, ed. Europa-América, col. Saber, 1986

Festival de Locarno 1964 (Suiça) - Pémio Vela de Prata / Opera Prima

Titulo Original: Verdes Anos (Portugal, 1963, 91 min) Realização: Paulo Rocha Argumento: Nuno Bragança, Paulo Rocha Interpretação: Ruy Furtado, Isabel Ruth, Rui Gomes Fotografia: Luc Mirot Montagem: Margharethe Mangs Produção: António da Cunha Telles Música: Carlos Paredes Distribuição: Midas Filmes Estreia: 29 de Novembro de 1963 Classificação: M/12

Mudar de Vida de Paulo Rocha (Portugal, 1966)

sinopse Furadouro, próximo de Ovar. Enquanto Adelino cumpria o serviço militar em África, Júlia casou com o seu irmão Raimundo, como ele pescador. A luta pela sobrevivência, contra o mar e a tradição, marcam esse conflito amoroso e a paixão que renasce, para Adelino, quando é atraído pela natureza selvagem da jovem Albertina. Terra, mar, homem e progresso interligam-se num drama constante.

Mudar de Vida, opus 2 de Rocha, introduziu na obra deste novas direcções, entre o legado nostálgico de Os Verdes Anos e os rumos da sua obra futura. Pano de fundo é a emigração, fenómeno que nos anos 60 afectara profundamente o tecido social e cultural português. E é o primeiro filme de Rocha em que se afirma a influência do cinema japonês, nos belos planos de juncos, névoa e rio, ao mesmo tempo que se acentua a forma de requiem que o enredo obriga por vezes as imagens - que do estudo psicológico. Adelino, nitidamente vencido pela guerra onde combateu, algures no ultramar, é uma figura de homem perplexo, como era o jovem sapateiro de Verdes Anos, um homem talvez ainda imaturo, incapaz de abarcar o entendimento da vida e o entendimento das pessoas." Luís de Pina, in História do Cinema Português, Ed. Europa-América, Col. Saber, 1986

Titulo Original: Mudar de Vida (Portugal, 1966, 103 min) Realização: Paulo Rocha Argumento: António Reis, Paulo Rocha Interpretação: Isabel Ruth, Constança Navarro, Maria Barroso Fotografia: Elso Roque Montagem: Paulo Rocha, Margharethe Mangs Produção: Fernando Matos Silva, António da Cunha Telles Música: Carlos Paredes Distribuição: Midas Filmes Estreia: 20 de Abril de 1967 Classificação: M/12

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Festival de Cinema de Locarno recorda Paulo Rocha Agencia Lusa

O Festival de Locarno, na Suíça, inicia hoje uma homenagem a Paulo Rocha, com a estreia do último filme do realizador, "Se eu fosse ladrão... roubava". A longa-metragem, derradeiro filme do cineasta português, vai ser exibida hoje, em estreia mundial, no festival de cinema de Locarno. Esta semana, o festival irá ainda homenagear o realizador, que morreu em dezembro passado aos 77 anos, com a exibição dos filmes que marcaram o Novo Cinema português: "Os Verdes Anos", distinguido em 1964 em Locarno, e "Mudar de Vida" (1966), numa versão restaurada digitalmente pela Cinemateca, com a colaboração do realizador Pedro Costa.

Na quinta-feira haverá ainda uma mesa redonda para falar sobre o cinema de Paulo Rocha, com a participação da atriz Isabel Ruth, do realizador Pedro Costa, do subdiretor do Museu do Cinema, José Manuel Costa, e do crítico de cinema Roberto Turigliatto, especialista no autor português.

"Se eu fosse ladrão... roubava", que Paulo Rocha deixou completo antes de morrer, tem uma "característica testamental, mas não se fica por aí", afirmou José Manuel Costa à agência Lusa. "Não tem nada de nostálgico. Ele volta atrás, às memórias da família dele, do pai, mas é também um filme sobre o país, sobre a cultura, sobre a identidade".

O encenador Jorge Silva Melo, que assina um texto sobre a obra, disse à Lusa que está "magistralmente filmado". "É uma despedida com vitalidade". Até ao final do ano, a Cinemateca pretende fazer uma antestreia nacional do filme, assim como uma nova homenagem a Paulo Rocha, mostrando o conjunto da sua obra.

Ladrão que rouba a si mesmo

Augusto M. Seabra, Público de 31 de Janeiro de 2014

Não há outro filme assim, vagamente que seja. Na sua obra derradeira Paulo Rocha conta a história do pai mas faz também a sua própria autobiografia enquanto realizador. Se eu fosse

ladrão…roubava é um filme extraordinário, com ante-estreia hoje na Cinemateca.

O que é um “filme-testamento”? Em rigor não há nenhuma definição, apenas possibilidades de percepção, sendo certo que essa dimensão testamentária está longe, muito longe, de coincidir com o facto factual de “derradeiros filmes”, não deixando de também o ser.

Até agora, eram dois os exemplos maiores de filmes que, logo quando os vi, me surgiram como “testamentários”, O Sacrifício de Andrei Tarkovski e The Dead de John Huston, cabendo ainda assinalar O Testamento de Orfeu de Jean Cocteau. Mas não posso deixar de citar um outro exemplo: quando em 1990 se deu o caso único de participarem no Festival de Cannes Sonhos de Akira Kurosawa e A Voz da Lua de Federico Fellini, especulava-se muito que o filme do japonês seria o seu último, coisa que de resto já se dissera a propósito do precedente Ran; pois bem pressentia e escrevi, que era sim “testamentário” o filme de Fellini, o que se veio a confirmar, enquanto Kurosawa ainda faria mais dois filmes, Rapsódia em Agosto e Madadayo/Ainda Não, este sim claramente um “filme-testamento”.

A esta tão particular lista acrescenta-se agora Se fosse ladrão…roubava de Paulo Rocha, obra surgida mesmo já postumamente, e este é um filme incomparável.

Se de todos os filmes que nos importam podemos dizer que são objectos singulares e diferente dos outros, nunca, em vez alguma, vi um filme assim.

Se eu fosse ladrão…roubava é uma história familiar, qual regresso às origens, a história do pai do realizador, personagem aqui de seu nome Vitalino (incrível nome, espantosa aparição de Chandra Malatich), mas é também, de modo inédito, uma autobiografia em cinema, incluindo excertos de quase todos os filmes de Rocha, de Os Verdes Anos (1963) a Vanitas (2004), apenas com excepção de O Desejado ou As Montanhas da Lua (1987), ausência sobre a qual muito se podia e pode especular. Isto já de si é espantoso mas ainda mais é o encadeamento dos

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diversos extractos, numa narrativa não linear é certo, mas ainda assim com recorrentes nexos e paralelismos.

Ouvi muitas vezes a Paulo Rocha um adjectivo que só a ele conhecia, “pasmoso” – pois bem, Se

eu fosse ladrão…roubava é mesmo um filme de pasmar!

A primeira imagem é a de uma capela, logo trazendo à memória uma cena capital de todo o cinema de Rocha, uma de Mudar de Vida (1966), essa cena de corte que divide o filme em dois, quando Adelino descobre Albertina a roubar as esmolas na Albertina (Isabel de Ruth de novo) num local de nome memorável, a Capela de Nossa Senhora de Entre-as-Águas – cena que aparecerá mais tarde nesta revisão de autobiografia em filme.

Diga-se aliás que já Mudar de Vida, depois do “lisboeta” Os Verdes Anos, tinha também algo de regresso às origens, feito nas proximidades dos locais de família de Rocha, na zona de Ovar, em locais como o Furadouro e a Gafanha.

Só que desta vez vamos mesmo à história familiar, e entra-se directo na matéria relembrando a morte do avô e os seus incitamentos a que Vitalino parta para o Brasil – história que é desde logo enunciada pelo próprio realizador, em “voz off”. E do pai passamos ao filho, o próprio Paulo Rocha, com a cena que sempre retive como a mais emblemática do realizador, quando ele, no papel de Camilo Pessanha em A Ilha dos Amores (1982), dita o célebre verso inicial de Inscrição: “Eu vi a luz num país perdido. /A minha alma é lânguida e inerme. / Ó! Quem pudesse deslizar sem ruído! /No chão sumir-se, como faz um verme...”. Ele viu a luz num país perdido…

É simplesmente incrível a quantidade de rimas internas ao filme, por exemplo entre a morte do avô e a morte de Amadeo de Sousa-Cardoso, autor que Rocha abordou em Máscara de Aço

contra Abismo Azul (1989), ambas no ano da peste de 1917. Há as idas para o Brasil e o regresso, como em O Rio do Ouro (1998). Há o regresso ao “local do crime”, quando mesmo no final deste filme há o célebre fim de Os Verdes Anos, com Júlio a matar a namorada, Ilda, e o famoso “Ai minha senhora!” dela. E há, obsessivamente os cemitérios e campas, na zona da família ou no distante Japão.

Mas é também insólito este título, Se fosse ladrão…roubava – que afinal também esse vem de um filme anterior.

Numa espantosa cena numa praia, Isabel Ruth surge alucinada, com os cabelos desgrenhados. Só esse momento merece alguma atenção: sempre se indicou a influência de Mizoguchi em Paulo Rocha; acontece que esse plano mais se aproxima de Kurosawa, mormente do desvario do velho rei no final de Ran. Ouve-se também uma cantilena: “Se fosse ladrão roubava/roubava aquela menina” e logo depois a mesma já em O Rio do Ouro – e a passagem imediata é para o baile de Os Verdes Anos. Enfim os exemplos são infindáveis e estou sempre a descobrir outras coisas a cada visão do filme.

Como é óbvio – e esse é um ponto de interrogação maior – compreendo e amo perdidamente este filme porque também vou reconhecendo os extractos dos anteriores neles incluídos, e não posso portanto imaginar qual será a reação de espectadores que irão ver o filme sem conhecimento dos outros, embora me pareça difícil não ser tocado pela sua beleza e o seu lado fúnebre.

Se eu fosse ladrão…roubava tem esta noite enfim a sua ante-estreia portuguesa na Cinemateca. E já agora citem-se as presenças tutelares de dois intérpretes no cinema de Rocha, Isabel Ruth e Luís Miguel Cintra, mas também, espantosa, de Márcia Brei, e de três colaborações capitais, de Regina Guimarães no argumento, de Acácio de Almeida na fotografia e de Edgar Feldman na montagem.

Repito: não conheço de todo um filme tão singular quanto este. Se fosse ladrão…roubava é deveras um filme pasmoso e extraordinário.

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Morreu o cineasta Paulo Rocha Joana Amaral Cardoso e Cláudia Carvalho, Público de 29 de Dezembro de 2012

Autor de Os Verdes Anos, Mudar de Vida ou A Ilha dos Amores morreu aos 77 anos.

O cineasta português Paulo Rocha, autor de Os Verdes Anos (1963), morreu na manhã deste sábado aos 77 anos, no Hospital da Arrábida, em Vila Nova de Gaia. "Cada um dos filmes de Paulo Rocha é um objecto singular", disse o realizador e professor de Cinema João Mário Grilo ao PÚBLICO. "São grandes documentários da vida portuguesa."

Fonte da família disse ao PÚBLICO que o realizador, que estava doente há algum tempo, se encontrava hospitalizado. Paulo Rocha sofreu um acidente vascular cerebral há cinco anos.

Com a morte de Paulo Rocha, e depois do desaparecimento de Fernando Lopes, perde-se mais uma das referências do Cinema Novo português. "É um momento muito triste para a cultura portuguesa e para o cinema português em particular", frisa João Mário Grilo, que considera que Paulo Rocha "foi o que melhor soube fazer a relação entre a poética do cinema e a poética do país", com uma visão artística que incluía a pulsão de "mudar o cinema para mudar o país".

Na década de 1960 em que Rocha começou a filmar, diz Grilo, tanto Rocha quanto Fernando Lopes "usam a arte para interpelar a vida", tendo de "filmar contra a maré, fazendo literalmente das tripas coração, numa altura em que rebentam as novas vagas [cinematográficas]" em França ou em Itália. "Há uma conjuntura que o Paulo lê muito bem e incorpora-a. Cada um dos filmes do Paulo Rocha é um objecto singular em que há uma relação directa entre as personagens e a história - são grandes documentários da vida portuguesa."

Património para as novas gerações

Com uma carreira de 50 anos, Paulo Rocha frequentou o curso de Direito, mas iniciou-se no cinema em 1959, ano em que decide partir para Paris para estudar realização. Três anos depois conclui o curso e torna-se assistente de realização do cineasta francês Jean Renoir.

Logo depois volta a Portugal, onde trabalha como assistente de Manoel de Oliveira em Acto de Primavera, em 1963. Nesse ano, assina umas das mais importantes obras do cinema português, Os Verdes Anos. Com produção de António da Cunha Telles, é com esta primeira longa-metragem que se torna num dos nomes de referência do Cinema Novo. Protagonizado por Isabel Ruth, Rui Gomes, Ruy Furtado, Cândida Lacerda, Paulo Renato e Carlos José Teixeira, premiado no Festival de Locarno e no Festival de Acapulco, é um retrato da Lisboa em expansão dos anos 1960, do seu provincianismo e do sufoco de uma geração jovem. Esse património era intrínseco ao cinema de Pedro Costa, Teresa Villaverde ou Joaquim Sapinho tal como se mostraram ao mundo nas suas obras de estreia, respectivamente O Sangue, A Idade Maior ou Corte de Cabelo. E continua a ser uma referência afectiva no cinema de João Salaviza.

A força e influência desse legado explica-se para João Mário Grilo porque na década de 1960 "as pessoas tinham muito poucos meios para filmar e os filmes só são possíveis através de alianças muito sólidas - e hoje há uma atenção a isso, à ideia de que é na realidade, no mundo, que estão os principais aliados dos filmes". "Porque o ecrã é isso também uma pele muito fina entre o cinema e a vida. Hoje voltou-se a ganhar [nesse novo cinema dos jovens cineastas portugueses] a realidade que a televisão foi empobrecendo. O cinema está hoje a redescobrir uma poética na própria vida. O Paulo descobriu no país uma série de camadas sobrepostas e foi capaz de as filmar nessa sobreposição, algo diferente do que fazem os média [e os telejornais, em que tudo surge segmentado]."

Novamente ao lado de Cunha Telles, Paulo Rocha realiza em 1967 Mudar de Vida, filme que tem a emigração como tema de fundo. Rodado no Furadouro, nas proximidades de Ovar, Mudar de Vida conta a história de Adelino, um homem que combateu na Guerra Colonial em África e que regressa depois à sua terra e à comunidade piscatória de onde saíra.

Foi director do Centro Português de Cinema, de 1973 a 1974, depois de ser membro da comissão instaladora da Escola de Cinema. Entre 1975 e 1983 foi adido cultural da Embaixada de Portugal em Tóquio, no Japão, onde estudou a vida e obra de Wenceslau de Moraes, o escritor português que em finais do século XIX partiu para o Oriente, onde morreu em 1929. Paulo Rocha interessou-se tanto por Moraes que acabou por realizar dois filmes baseados na sua vida e obra, A Ilha dos Amores (1982) - sobre o choque entre os dois mundos e as duas culturas do Ocidente e do

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Oriente; integrou, em 1982, a selecção oficial do Festival de Cinema de Cannes - e A Ilha de Moraes (1983). Esse período marcou também as suas escolhas na abordagem ao cinema, com um forte pendor pela cinematografia nipónica. Ainda influenciados pela cultura nipónica: O Desejado – As Montanhas da Lua (1987), Portugaru San - O Senhor Portugal em Tokushima (1993), uma peça de teatro filmada, e Imamura, o Livre Pensador (1995).

Segundo o catálogo da Cinemateca Portuguesa, Mudar de Vida é "uma das obras mais complexas e extremas de todo o cinema português".

As fantasias autobiográficas de Paulo Rocha – Na rodagem de Olhos Vermelhos (Se eu fosse ladrão... roubava) Sérgio C. Andrade, Público de 19 de Junho de 2009

Será um filme-"puzzle", cruzamento de histórias autobiográficas com personagens ficcionadas. Uma viagem a correr para trás, até à aldeia de camponeses e varinas de "Mudar de Vida" e à cidade de "Os Verdes Anos".

Em pleno campo, na freguesia de São Vicente de Pereira Jusã, Ovar, numa manhã da Primavera insegura que nos acompanhou, um "acampamento" inesperado destoa na paisagem verdejante. Duas tendas de plástico azul resguardam do sol do meio-dia, de um lado, a câmara de filmar e, de outro, a "régie" onde se acomodam (e se resguardam do sol) o realizador, a anotadora, as actrizes no intervalo da cena que estão a filmar, a maquilhadora, a decoradora, o bombeiro e...o jornalista, que quer estar o mais próximo possível da "Acção".

Visto de fora, o quadro poderia fazer lembrar a divertida cena da cabine do paquete no filme dos irmãos Marx "Uma Noite na Ópera". Mas, aqui, a visível irritação do assistente de realização, Paulo Guilherme, não permitia pensar em comédia. Ele via nessa situação antes uma abusiva ocupação de território necessário ao eficaz decorrer da rodagem...

No meio de todos, indiferente ao bulício em volta, o realizador Paulo Rocha, sentado na sua cadeira de rodas, entusiasma-se com a imagem que lhe é dada pelo ecrã do equipamento digital de alta definição, um enquadramento sobre um cenário sugestivamente bucólico: "Isto está tão próximo da pintura, que eu até tenho dificuldade em perceber como é que vai ficar, no final!"...

A cena que estava a ser filmada, e que precisou de meia dúzia de repetições - "Agora podemos ensaiar e experimentar à-vontade, porque com o vídeo não filmamos a metro, como o fazíamos com a película", graceja o realizador -, passava-se em 1918, tempo de guerra e de outra pandemia que se preparava também para dizimar milhões de pessoas na Europa e no mundo. Duas velhas mulheres percorrem um carreiro num caminho enlameado, no regresso da missa, com seis crianças, resguardadas por dois largos guarda-chuvas de pastor. São a mãe delas (Isabel Ruth) e a Tia das Presas (Márcia Breia), figuras que se perceberá serem dominantes em "Olhos Vermelhos" - título provisório do novo filme de Paulo Rocha, que teve agora as duas primeiras semanas de rodagem na terra dos antepassados do realizador, na Beira Litoral.

Regresso ao passado

O cenário não podia ser mais explícito do desejo do autor de "Os Verdes Anos" (1963) de voltar atrás, na sua vida, na história da sua família e, por extensão, da história de um certo Portugal cada vez mais longínquo mas que permanece presente em pequenos sinais e em muitos lugares do país. "O meu pai nasceu ali em baixo. A casa ainda tem a cama onde o meu avô morreu. Do outro lado da rua, é a casa onde casou a minha tia", recorda Rocha, já sentado no quintal de uma vivenda próxima - é a hora do almoço e do intervalo neste terceiro dia de filmagens com actores -, que se diferencia das anteriores por ser uma típica casa de brasileiro torna-viagem, paredes azul desbotado, construída nos anos 1920/30 pelo tio do realizador. Nesta hora, associa-se ao grupo a actual proprietária da moradia, Cármen, a prima mais velha de Rocha (n. Porto, 1935).

"Lembro-me dele muito pequenininho. Era uma gracinha, um bonequinho que eu tinha para brincar...", ri-se Cármen, com um tom de intimidade que deixa o realizador desvanecido. "Não contes os segredos todos, se não...", replica Paulo Rocha, e começa a desfiar as histórias da família e do lugar, que ele decidiu transportar para "Olhos Vermelhos", num enredo que está

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ainda a ser "reescrito" por Regina Guimarães, colaboradora regular do cineasta desde "O Rio do Ouro" (1998). "A reescrita dela é milagrosa. Estou encantado", diz.

Algumas pontas para perceber a extensão e diversidade das fontes que estão na origem de "Olhos Vermelhos", um projecto que Rocha acalenta desde há mais de uma década, que só foi aprovado pelo Instituto do Cinema e do Audiovisual no ano passado e que deverá ser terminado no próximo Outono, de novo com rodagens em Ovar e também em Arouca, no Porto e em Lisboa.

Há um casal luso-iraquiano que é visita frequenta da casa de Cármen. "Ela é uma portuguesa convertida ao Islão, com véu e tudo, por via do casamento com um iraquiano que foi ferido na guerra Irão-Iraque e que fugiu ao regime de Saddam Hussein. Têm cinco filhos e são muito felizes...".

Há uma ex-professora primária "que se mostrou talentosíssima para a moda", decidiu apostar numa fábrica de calçado - que se vê ao longe, a partir da casa de São Vicente -, e conseguiu mesmo "impor ao Christian Dior um modelo de bota alta desenhada por ela", conquistando, a partir daí, o sucesso mundial...

Há a história de pequenos lavradores, há dois séculos atrás, ascendentes da família Soares Malaquias, de Ovar, do lado da mãe de Paulo Rocha, e que enriqueceram subitamente porque, um dia, a charrua deles "bateu numa pequena panela cheia de objectos de ouro, que foram vender ao Porto"...

Todas estas estórias vão desembocar na casa e na terra da família do pai do realizador (a personagem no filme chama-se Vitalino e, enquanto jovem, é interpretado pelo quase estreante Chandra Malatitsch, mas na idade adulta será o brasileiro Lima Duarte), que viveu entre Ovar e o Porto, e que também ele foi um bem-sucedido "brasileiro torna-viagem". "É uma forma de eu tentar perceber-me, e perceber de onde vêm as minhas virtudes e defeitos", diz o realizador, que apresenta também "Olhos Vermelhos" como "uma fantasia" para fazer justiça ao pai, que desapareceu "prematuramente". "Eu estava a apresentar o “Mudar de Vida” (1966) no Brasil, quando ele morreu. Achei uma injustiça que ele tenha falecido tão cedo, e resolvi inventar uma vida sucessiva, uma fantasia, para ele continuar a viver."

Uma equipa afectiva

Regressando ao "plateau": a cena que estava a ser filmada com Isabel Ruth e Márcia Breia sucedia a outras rodadas nos dias anteriores, na mesma aldeia, recriando a morte e o enterro do pai de Vitalino (Luís Miguel Cintra). A certa altura, Rocha resolve que deve acrescentar ao guião um grande plano que não estava previsto, mas que ajudará a explicar um gesto com a mão que a Tia das Presas faz recorrentemente, e que na aldeia era visto como uma emanação do espírito do pai desaparecido. Márcia Breia - que teve de receber assistência médica em pleno campo após ter sido ferrada por uma vespa - é uma estreante no "plateau" de Rocha. "Ela é extraordinária no modo como apanha a personagem e como reinventa os seus gestos", diz o realizador, rendido à equipa que o acompanha. "Depois que tive um AVC, mexo-me mal e, por isso, procuro as pessoas que sei que podem colaborar mais facilmente comigo", diz Paulo Rocha.

Acácio de Almeida, director de fotografia que começou a trabalhar com o realizador nos anos 70, e fez a imagem de "A Ilha dos Amores" (1982); a já citada Regina Guimarães e a artista plástica Manuela Bronze, figurinista desde "O Rio do Ouro", e que foi agora recuperar para "Olhos Vermelhos" os vistosos chapeirões das varinas de Ovar; Júlia Buisel, a anotadora habitual de Manoel de Oliveira, constituem o núcleo cinéfilo e afectivo de Rocha. Nele entrou também agora, a dirigir o som, Olivier Blanc, que fez "Juventude em Marcha" de Pedro Costa - "o realizador de quem toda a gente agora fala nos festivais", realça Paulo Rocha.

Mas, de entre todos eles, destaca-se Isabel Ruth, a sua actriz mais fiel e que vem do tempo dos seus "verdes anos" (e de "Mudar de Vida", "O Desejado, "O Rio do Ouro", "A Raiz do Coração", "Vanitas"). "Ela é a que me dá menos trabalho a filmar. Nunca me cria problemas, mesmo se às vezes é difícil e complicada; acaba por fazer sempre dez vezes melhor do que aquilo que lhe proponho".

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Isabel Ruth refere-se à presença recorrente nos filmes de Rocha como algo de "óbvio". "Às vezes, não há escolhas. Há sempre a vontade de trabalhar e o desejo de fazer cinema. E fazer cinema na idade que tenho, e nos tempos que correm, é um privilégio, uma bênção", diz a actriz. Este trabalho com Paulo Rocha pode, aliás, vir a adquirir um significado especial para ambos. É que neste seu projecto autobiográfico, o realizador está a pensar recuperar não só os filmes familiares que possui, em 8 mm e 16 mm, mas também sequências da sua filmografia profissional. E aqui a actriz tem presença dominante. "Tenho em casa imagens da Isabel Ruth nos papéis mais diversos, nalguns casos em personagens que são o contrário umas das outras. Com elas estou a pensar construir um retrato cubista dela", diz o realizador.

Este projecto poderá satisfazer um desejo antigo de Isabel Ruth, que é também o de fazer "uma espécie de autobiografia", com imagens documentais em paralelo com alguma ficção. Até lá, "Olhos Vermelhos" vai-se construindo como um "puzzle", o que é já uma marca do cinema de Paulo Rocha, nota Isabel Ruth. "Às vezes, é engraçado não sabermos para onde caminhamos. Estamos habituados a sentir sempre o chão debaixo dos pés. Mas a vida cada vez nos tira mais o tapete. Muitas vezes, é aí que descobrimos que também temos asas, e começamos a voar".

Neste "puzzle" vão entrar também sequências dos filmes da vida de Rocha e o imaginário da pintura. O autor do documentário ficcionado sobre a vida e obra de Amadeo de Sousa-Cardoso, "Máscara de Aço Contra Abismo Azul" (1989), convoca o imaginário e "as máscaras visionárias" do pintor de Amarante para o seu trabalho. Até porque, recorda, "o Amadeo morreu na mesma semana em que morreu o meu avô, ambos vitimados pela pneumónica". Muitos dos homens que então sobreviveram foram procurar melhores ares e melhor fortuna para o Brasil. É também destas raízes que nasceu e vive Paulo Rocha.

Paulo Rocha: o realizador que "viveu" cinema Mário Jorge Torres, Publico de 29 de Dezembro de 2012

É um cineasta maior, uma das referências incontornáveis de um cinema livre e inconformista gerado num país sem indústria, mas com uma força imagética em que muitas vezes não acreditamos.

Quando morre um grande cineasta – Paulo Rocha, esta manhã, aos 77 anos –, alguém que mudou a paisagem representativa de uma cinematografia como a nossa, o pior a fazer é perder muito tempo com dados biográficos: nasceu no Porto em 22 de Dezembro de 1935, abandonou os estudos de Direito para ir estudar cinema no IDHEC, em Paris, foi assistente estagiário do grande Jean Renoir em O Cabo de Guerra (1962) e assistente de Manoel de Oliveira sobretudo em Acto de Primavera (1963).

Ou seja, “viveu” cinema, desde a sua participação na fundação do Cine Clube Católico com Bénard da Costa ou Nuno Bragança até à sua estreia como realizador com Verdes Anos (1963), o filme que transformou tudo no cinema português: da forma de conceber o espaço urbano, integrando na estafada dicotomia cidade-campo uma nova e radical forma de exílio, até à direcção de actores – rostos marcantes de uma nova visualidade, como Isabel Ruth, ou a recuperação de uma irreconhecível teatralidade, como Paulo Renato –, passando pelas condições de produção e de escrita – um cinema “pobre”, actuante, urgente e poético. Verdes Anos não representa apenas o início do Cinema Novo, é o manifesto de uma forma revolucionária de olhar para nós e para as nossas atávicas contradições, com poucos meios, muita imaginação e com um lirismo pungente: cerca de 50 anos depois permanece vivo e perturbante, como um retrato de família de um país e de uma sociedade em ruptura e em carne viva.

Segue-se-lhe, com a sequencialidade possível num cinema bissexto, outra obra-prima, desta vez rimando com as ruínas do neo-realismo, que Rocha recompõe com o mesmo rigor e petrificação com que o poeta Carlos de Oliveira, num território afim de dunas e ventos imemoriais, refaz o seu imaginário poético nos anos 60: Mudar de Vida (1966) toca na essência do nosso trágico atavismo, filmando o mar e as sombras de um passado atabafante com o desassombro de quem pensa em fotogramas um mundo que formalmente se reformula a cada olhar. Bastariam estas duas obras iniciais, às quais o cinema português que veio depois tudo deve, para que aqui e

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agora o estivéssemos a lembrar com aquele ar atónito de menino grande e desengonçado que a velhice e a doença não deixariam ocultar.

O resto (e é muito) tardou e foi-se espaçando ao sabor das muitas hesitações e dificuldades que se levantam a quem faz cinema neste Portugal de eternas crises feito: o belíssimo A Ilha dos Amores (1982), desmesurada homenagem ao cinema japonês que tanto amava, com luzes vindas de um Mizoguchi transfigurado e planos-sequência de um Ozu revisto sob pretexto de um Wenceslau de Moraes mais sonhado do que biografado; o desequilíbrio de O Desejado (1987), sempre em busca de desafiar a narratividade; o regresso à genialidade na perfeição irregular de O Rio do Ouro (1998), num território que tocava o de Oliveira, mas que se lhe contrapunha em delirante e quase surreal sinfonia de sons e cores com personagens que voam para, como na pintura de Marc Chagall, unir o real mais violento ao onirismo mais poético. E saltamos pequenas (mas importantes) incursões pelo modernismo em Máscara de Aço contra Abismo Azul (1989), para televisão, ou um dos melhores documentários sobre mestre Oliveira (1993), concebido como “arquitecto” de um mundo que Rocha recebera enquanto pedra angular.

Com a mudança de século, o realizador procurava, com a mesma ousadia de sempre, redescobrir-se em universos que, por vezes, lhe resistiam: A Raiz do Coração (2000), musical com travestis e transfigurações nocturnas, na busca de um cinema popular como o que descobrira, para espanto de muitos, em A Costureirinha da Sé (incursão colorida do “neo-realista” Manuel Guimarães, em 1959, pelos resquícios da opereta e da comédia à portuguesa), escolhida para uma retrospectiva própria com selecção de outros, causou nos que o admiravam grandes perplexidades que ainda se não resolveram e que Vanitas (2004) ajudou a agudizar.

Por descobrir fica Olhos Vermelhos [título de rodagem, entretanto mudado para Se Eu Fosse Ladrão, Roubava], um canto do cisne de que pouco se sabe. De uma vida cheia e intensa, feita de sonhos concretizados e desfeitos, fica um cineasta maior, uma das referências incontornáveis deste cinema livre e inconformista, gerado num país sem indústria, mas com uma força imagética em que muitas vezes não acreditamos: bastaria a fabulosa elipse da morte de Ilda, a frágil heroína de Verdes Anos, para podermos afirmar que Paulo Rocha está vivo naquela arte estranha de projecções de realidades que nunca existiram.