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S ubi a escada contando os degraus. Vinte e nove, se não me engano. A casa de Zé não tem campainha nem companhia. Árvores habitam os terrenos vizinhos. Grito. Grito mais uma vez. Zé vem me receber de cueca e gor- ro. Parece contente com minha visita. Entro cal- culando onde pisar. Zé trabalha muito. Seus tra- balhos, pequenas esculturas em argila, preenchem o chão de sua casa. Ele me serve café. Me oferece um cigarro de palha. É um homem generoso. Solidão . Nos encontramos pela solidão. Só assim nos entendemos. Nos entendemos o suficiente para que seja possível nosso encontro. Ele diz que fez uma escultura para as- sustar os mosquitos. De fato, não há um só mosquito. Solidão. Peço para ver a escultura. Ele diz que é melhor não. Se espanta até um mosquito, eu poderia ficar cego. Ou correr até vomitar meu coração. Tomo mais uma taça de café. É. Zé serve café em taças. É um homem elegante. Tem um recorte de jornal colado na porta do seu banheiro. Uma imagem do Oscar Wilde. Embaixo dela escreveu UNISEX com giz de cera. Zé me oferece uma manga. Zé espera as mangas caírem do pé. Diz que é preciso estar com uma fome gigante para se matar um animal para comer. Também me oferece um palito de dente. Diz que está bem lavado. Eu não aceito a manga e uso o palito para ajustar o fumo do cigarro de palha, que se apaga. Ouço a filha mais nova do Zé gritar do quarto: Estou pronta! Tiro meus sapatos. Zé não permite que se entre em sua casa sem eles, por isso estou calçado até agora. Entro no quarto. Ela é linda. Está nua. Usa colares de ouro. Deito na cama e fecho os olhos. Ela respira fundo. Faz uma oração em espanhol. Então me levanto, saio do quarto, abraço Zé (ele não gosta de agradecimentos ), calço os sapatos e vou embora. Curado. Felipe Mourad - Guarapari, 28/12/2011 Faz Uma Oração em espanhol CONTO UM Atendendo a várias sugestões, inicia- mos hoje nova coluna em nossas páginas na Folha do ES, falando sobre Literatura. Felipe Mourad, um de nossos colaboradores mais habituais, refugiado em seu apartamento de Guaraparí, tem criado muito, e como é de seu feitio, em todas as manifestações artístIcas. Seu primeiro conto não tem título, o que se tra- tando de Mourad, não é de se estranhar. Como também não é de se estranhar a qualidade de tudo que este “enfant terrible” da cultura cachoeirense se propõe a fazer. Outros amigos, diletantes ou profissionais da cultura, jornalistas ou artistas, que tenham interesse em publicar conosco podem fazer contato através do email do cineclube: cineclubejecevaladã[email protected] . TRIBUNA LIVRE PARA OS CRIATIVOS

CINECLUBE JECE VALADÃO

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COLUNAS DO CINECLUBE VEICULADAS NA FOLHA DO ES

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Page 1: CINECLUBE JECE VALADÃO

Subi a escada contando os degraus. Vinte e nove, se não me engano. A casa de Zé não tem campainha nem companhia. Árvores habitam os terrenos vizinhos. Grito. Grito

mais uma vez. Zé vem me receber de cueca e gor-ro. Parece contente com minha visita. Entro cal-culando onde pisar. Zé trabalha muito. Seus tra-balhos, pequenas esculturas em argila, preenchem o chão de sua casa. Ele me serve café. Me oferece um cigarro de palha. É um homem generoso.

Solidão. Nos encontramos pela solidão. Só assim nos entendemos. Nos entendemos o suficiente para

que seja possível nosso encontro. Ele diz que fez uma escultura para as-sustar os mosquitos. De fato, não há um só mosquito. Solidão. Peço para ver a escultura. Ele diz que é melhor não. Se espanta até um mosquito, eu poderia ficar cego. Ou correr até vomitar meu coração. Tomo mais uma taça de café. É. Zé serve café em taças. É um homem elegante. Tem um recorte de jornal colado na porta do seu banheiro. Uma imagem do Oscar Wilde. Embaixo dela escreveu UNISEX com giz de cera. Zé me oferece uma manga. Zé espera as mangas caírem do pé. Diz que é preciso estar com uma fome gigante para se matar um animal para comer. Também me oferece um palito de dente. Diz que está bem lavado. Eu não aceito a manga e uso o palito para ajustar o fumo do cigarro de palha, que se apaga. Ouço a filha mais nova do Zé gritar do quarto: Estou pronta! Tiro meus sapatos. Zé não permite que se entre em sua casa sem eles, por isso estou calçado até agora. Entro no quarto. Ela é linda. Está nua. Usa colares de ouro. Deito na cama e fecho os olhos. Ela respira fundo. Faz uma oração em espanhol. Então me levanto, saio do quarto, abraço Zé (ele não gosta de agradecimentos ), calço os sapatos e vou embora. Curado.

Felipe Mourad - Guarapari, 28/12/2011

Faz Uma Oração em espanhol

CONTO UM

Atendendo a várias sugestões, inicia-mos hoje nova coluna em

nossas páginas na Folha do ES, falando sobre Literatura. Felipe Mourad, um de nossos colaboradores mais

habituais,refugiado em seu apartamento de Guaraparí, tem criado muito, e como é de seu feitio, em todas as manifestações

artístIcas. Seu primeiro conto não tem título, o que se tra-tando de Mourad, não é de se estranhar. Como também

não é de se estranhar a qualidade de tudo que este “enfant terrible” da cultura cachoeirense se propõe a fazer.

Outros amigos, diletantes ou profissionais da cultura, jornalistas ou artistas, que tenham interesse em publicar conosco podem fazer contato através do email

do cineclube:

cineclubejecevaladã[email protected] .

TRIBUNA LIVRE PARA OS CRIATIVOS