Cinema e Identidades - Mediações Para a Formação Crítica de Professores de Línguas (PEREIRA; MASTRELLA, 2015)

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/25/2019 Cinema e Identidades - Mediaes Para a Formao Crtica de Professores de Lnguas (PEREIRA; MASTRELLA, 2015)

    1/16

    Nonada, Porto Alegre, n.24, 1 semestre 2015ISSN 2176-9893 188

    CINEMA E IDENTIDADES: MEDIAES PARA A FORMAOCRTICA DE PROFESSORES DE LNGUAS

    CINEMA AND IDENTITIES: MEDIATIONS FOR CRITICALLANGUAGE TEACHER EDUCATION

    Lauro Srgio Machado Pereira1Mariana R. Mastrella-de-Andrade2

    Resumo: O cinema potencialmente um mediador de processos de letramento e de construo deidentidades para a formao crtico-reflexiva de professores de lnguas. Nesse sentido, colocamos emfoco trechos do filme O Substituto(2011), o qual apresenta um professor de lngua inglesa. As anlisesmostram que possvel desenvolver reflexes crticas que entendam a natureza das identidadesconstrudas e, assim, fornecer aos professores possibilidades reconstruir positivamente suas identidades.

    Palavras-chave: Cinema/ Identidades de professores/ Formao de professores de lnguas

    Abstract:Cinema is potentially a mediator of literacy processes and of identity construction in languageteachers critical-reflective education. In that sense, we focus on excerpts of the movie Detachment(2011), which shows a teacher of English. The analyses suggest that it is possible to develop criticalthinking to understand the constructed identities and thus provide basis on which teachers can positivelyreconstruct their identities.

    Keywords: Cinema/ Teacher identities/ Language teacher education

    Introduo

    A perspectiva do cinema como um meio altamente significativo e ideolgico teminfluenciado cada vez mais o reconhecimento por parte de professores e pesquisadoresquanto a sua pertinncia pedaggica. Esse interesse reflete nas pesquisas acerca darelao do cinema com a educao (FABRIS, 2008; LOURO, 2000; DUARTE, 2002;

    NAPOLITANO, 2006, entre outros), com o ensino-aprendizagem de lnguasestrangeiras (GOMES, 2006; GARCIA DE STEFANI, 2010; VIGATA, 2011; LIMA,2012, entre outros), bem como do seu papel na formao identitria e profissional de

    professores (DALTON, 1996; FERREIRA, 2003; MAYRINK, 2007; FELIPE, 2009;CHALUH, 2012; SOUZA; LINHARES; MENDONA, 2012 entre outros).

    Tendo em vista que o cinema pode influenciar na construo de identidades dequem ensina e de quem aprende lnguas (Lima, 2012), acreditamos que ele possa serferramenta til no processo de formao de professores de lnguas, provendooportunidades para que o professor em formao sujeito espectador ativo3

    1Mestre em Lingustica Aplicada (UnB). Professor Efetivo do Instituto Federal de Educao Cincia e

    Tecnologia do Norte de Minas Gerais.2 Doutorado em Letras e Lingustica pela Universidade Federal de Gois (2007). Professora doDepartamento de Lnguas Estrangeiras e Traduo da Universidade de Braslia (UnB).3O espectador ativo definido por Alea (1984, p. 48) como aquele que, tomand o como ponto de partida

    o momento da contemplao viva, gera um processo de compreenso crtica [...] e, consequentemente,

    uma ao prtica transformadora diante do dilogo que estabelece entre o plano ideolgico e poltico dofilme e a sua realidade scio-histrica concreta.

  • 7/25/2019 Cinema e Identidades - Mediaes Para a Formao Crtica de Professores de Lnguas (PEREIRA; MASTRELLA, 2015)

    2/16

    Nonada, Porto Alegre, n.24, 1 semestre 2015ISSN 2176-9893 189

    problematize a si mesmo como agente capaz de resistir a legitimao de ideologias dedominao veiculadas pelos filmes. Como consequncia, o uso de filmes possui tambmo potencial de promover o desenvolvimento da cidadania atravs de processos deletramento crtico, uma vez que, no cenrio, urgente que se promova uma formao de

    professores de lnguas pautada em prticas significativas de linguagem e emoportunidades de se refletir criticamente sobre a profisso (GIL; VIEIRA-ABRAHO,2008).

    Nesse sentido, este trabalho objetiva discutir as potencialidades do cinema,enquanto mediador de processos de letramento (KLEIMAN, 1995; SIGNORINI, 2001;BAMFORD, 2013; ALLRED, 2008) e de construo de identidades (WOODWARD,2000; SILVA, 2000), para a formao crtico-reflexiva de professores de lnguas. Paraisso, com base no referencial terico que aqui apresentamos e discutimos, colocamosem foco o filme O Substituto (Detachment, 2011), o qual apresenta um personagem

    professor de lngua inglesa como lngua materna, e analisamos as maneiras comoidentidades de ser professor so construdas no filme e, assim, como o cinema pode

    contribuir como mediador para que a formao de professores de lnguas seja espaoaberto para reflexes crticas sobre a profisso e o fazer docentes. Tendo em vista oobjeto de anlise filme, optamos por utilizar a metodologia de anlise proveniente daAnlise de Discurso Crtica (FAIRCLOUGH, 2001; RAMALHO; RESENDE, 2011),sendo o filme aqui tratado como um texto que suscita discusses em torno das noesde discurso, poder e ideologia que envolvem os sistemas simblicos de representaodas prticas sociais.

    1. A problemtica da identidade

    Dentre os tericos dos Estudos Culturais que discutem questes de identidade,Hall (2005) desenvolve suas reflexes a partir da premissa de que de fato existe umacrise de identidade nas sociedades ps-modernas devido s prprias transformaesocorridas a partir do sculo XX. Em decorrncia disso passa-se a ter um deslocamentodos indivduos de si e de seu mundo scio-cultural. Dessa forma, os sujeitos so entoentendidos como descentrados, fragmentados, contraditrios e mltiplos. Tem-se umacelebrao mvel da identidade, pois o indivduo interpelado a todo o momento, oque constitui e transforma suas identidades por meio das muitas representaesidentitrias disponveis nos sistemas culturais (HALL, 2005, p. 13).

    Se, ento, as identidades no so fixas, importante tambm questionar sobre amaneira como elas so construdas. A identidade e a diferena no so naturalmente

    dadas, mas sim produzidas, criadas. Para Woodward (2000) a identidade marcada peladiferena porque sempre necessita de algo fora dela para existir. Por exemplo, ao dizerque se brasileiro, o sujeito se distingue por aquilo que ele no , ou seja, o outro,uma identidade no-brasileira. Mas o que cria a identidade e a diferena e de quemodo elas so criadas? Ambas so produtos da lngua: na lngua e por meio da lnguaque elas se constituem (MASTRELLA-DE-ANDRADE, 2007).

    Aqui, como exemplo da relao entre identidade e diferena, bastante til paranossas anlises posteriormente, o trabalho de Bauman (1998), para quem a identidadesempre ter sua diferena; a diferena que a constitui. Nesse sentido, o autor fala deduas figuras que povoam o mundo ps-moderno os turistas e os vagabundos frutosde uma sociedade de consumo na qual a velocidade desenfreada move os desejos e a

  • 7/25/2019 Cinema e Identidades - Mediaes Para a Formao Crtica de Professores de Lnguas (PEREIRA; MASTRELLA, 2015)

    3/16

    Nonada, Porto Alegre, n.24, 1 semestre 2015ISSN 2176-9893 190

    liberdade de escolha o bem mais precioso. A velocidade responsvel porcomportamentos e expectativas, ao contrrio da fixidez que caracteriza a modernidade.

    Os turistas e os vagabundos so habitantes do contemporneo que, segundoBauman (1998, p. 110), retratam os heris e as vtimas de nosso tempo. Os turistas so

    os que podem se mover porque assim o desejam; recusam qualquer forma de fixao emovimentam-se, saem e chegam a qualquer tempo e espao para realizar seus sonhos,suas necessidades de consumo. assim seu estilo de vida. Os vagabundos tambm semovem, mas porque obrigados a perambular por ruas annimas de inmeras cidades.So empurrados por uma questo de sobrevivncia e sofrem as restries severas nosespaos de suas perambulaes. Sustentam-se do sonho de um emprego qualquer,aceitam tarefas consideradas indesejveis ou indignas pelos turistas, mas que algum

    precisa fazer.Para Woodward (2000), conceituar identidade importante a partir do

    momento em que se prope a examinar a forma como ela se insere no circuito dacultura4, bem como a forma como a identidade e a diferena se relacionam com a

    discusso sobre a representao. O sujeito d sentido sua experincia e quilo que ele por meio dos significados produzidos pelas representaes. Assim, os discursos e os

    sistemas de representao constroem os lugares a partir dos quais os indivduos podemse posicionar e a partir dos quais podem falar (WOODWARD, 2000, p. 17). Isso podeser aplicado aos filmes, os quais contribuem para a construo de identidade de

    professores, uma vez que neles os sujeitos so interpelados5 consciente ouinconscientemente por vrios discursos6.

    Atualmente, teorizar sobre identidade implica reservar um lugar central ao papelque a representao ocupa nesse processo. Na perspectiva dos Estudos Culturais, ouseja, de acordo com o ps-estruturalismo, o conceito mais adequado de representaoest em conexo com a teorizao em torno da identidade e da diferena, no sentido deque se contrape a uma noo clssica de representao tida como interna ou mental ouque concebe o real no nvel da conscincia (SILVA, 2000). Portanto,

    No registro ps-estruturalista, a representao concebida unicamente emsua dimenso de significante, isto , como sistema de signos, como puramarca material. A representao expressa-se por meio de uma pintura, deuma fotografia, de um filme, de um texto, de uma expresso oral. Arepresentao no , nessa concepo, nunca, representao mental ouinterior. A representao , aqui, sempre marca ou trao visvel, exterior [...]o conceito de representao incorpora todas as caractersticas deindeterminao, ambiguidade e instabilidade atribudas linguagem.(SILVA, 2000, pp. 90-91)

    A representao como algo que ocorre no interior dos signos e que sempreimplica um significado discursivo torna pertinente problematizar as representaescontidas nos filmes, que podem colaborar para a manuteno de identidades distorcidas

    4Circuito desenvolvido por Paul du Gay et alii (1997) e que indica que para se compreender bem umartefato cultural necessrio fazer anlises quanto a processos de identidade, representao, produo,consumo e regulao que imbricam textos ou imagens.5Louis Althusser (1971) utilizou o termo interpelao para explicar a forma pela qual os sujeitos aose reconhecerem como tais: sim, esse sou eu so recrutados para ocupar certas posies-de-sujeito.

    D-se no nvel do inconsciente.6Para mais sobre a teoria da interpelao, ver Althusser (1971).

  • 7/25/2019 Cinema e Identidades - Mediaes Para a Formao Crtica de Professores de Lnguas (PEREIRA; MASTRELLA, 2015)

    4/16

    Nonada, Porto Alegre, n.24, 1 semestre 2015ISSN 2176-9893 191

    de professores de lnguas, dificultando uma viso crtica de identidade e diferena.Desse modo, ao serem usados na formao de professores os filmes devem serdiscutidos na perspectiva da prtica crtico-reflexiva e de questionamento dos sistemasdominadores. Silva (2000, p. 92) prope um currculo pedaggico em que haja

    oportunidades se desenvolverem capacidades de crtica e questionamento dos sistemas edas formas dominantes de representao da identidade e da diferena. Nesse sentido,cremos que o uso de filmes traz a possibilidade de se empreender uma formao crtico-reflexiva de professores de lnguas, pois, a partir do momento em que a identidade passaa ser considerada como ato de tornar-se, o que implica movimento e transformao, eno apenas como descrio nica ou verdadeira, a legitimao das identidadeshegemnicas pode ser questionada.

    2. Cinema, letramento, identidades e formao de professores de lnguas

    Segundo alguns autores, a linguagem cinematogrfica pode ser um espao

    propcio para que os sujeitos, atravs da interao e reflexo crtica, possamressignificar a conscincia que tm de si e dos outros ao mesmo tempo em quereconstroem suas identidades (MAYRINK, 2007, por exemplo). As identidades de

    professores de lnguas apresentadas nos filmes sobre professores podem, assim, servircomo um ponto de partida para tambm serem problematizadas as prprias concepesidentitrias de lngua nativa, lngua estrangeira, falante nativo, falante estrangeiro,

    professor, aluno, etc., bem como o papel desses profissionais na sociedade ao longo dotempo (MAYRINK, 2007), o que aponta, portanto, para a importncia do cinema para otrabalho com identidades na formao crtico-reflexiva de professores de lnguas.

    Dessa maneira, atendendo ao que sugere Gimenez (2005), tomamos o currculosob a tica do conhecimento e o relacionamos com as implicaes que ele traz para asquestes de identidade e subjetividade dos sujeitos professores de lnguas em formaoinicial. Com isso, temos ento o cinema como uma possibilidade de projetar, entender,

    problematizar e contestar a maneira como os futuros professores se veem e so vistos nasociedade. Essa uma prtica que caminha na perspectiva de ensino de lnguas comoletramento (KLEIMAN, 1995; SIGNORINI, 2001), entendendo que a lngua no veculo neutro de transmisso de mensagens, pois

    A linguagem em toda sua complexidade torna-se fundamental no somentena produo de significado e de identidades sociais, mas tambm como umacondio constitutiva para a ao humana. na linguagem que os sereshumanos so inscritos e do forma queles modos de falar que constituem

    sua percepo do poltico, do tico, do econmico e do social. (GIROUX,1999, p. 31)

    Essa prtica caminha tambm na perspectiva do chamado letramento crticomiditico (ALLRED, 2008), o qual encoraja discusses em torno de lngua e cultura.Sendo vital para desafiar esteretipos, esse processo de letramento pode ser parte das

    prticas de formao de professores, nas quais fundamental que o professor se tornesujeito ativo e participativo em relao aos discursos que promovem e reproduzeminjustias e desigualdades, desenvolvendo assim conscincia crtica social etransformadora.

    Os filmes sobre professores so pea-chave para que as identidades

    desprestigiadas do professor de lnguas sejam desconstrudas. Rossi (2004, p. 163)

  • 7/25/2019 Cinema e Identidades - Mediaes Para a Formao Crtica de Professores de Lnguas (PEREIRA; MASTRELLA, 2015)

    5/16

    Nonada, Porto Alegre, n.24, 1 semestre 2015ISSN 2176-9893 192

    verificou em sua pesquisa que os alunos constroem para si trs tipos de identidadeprofissional, a saber: a de professor idealista e transformador (com desejo de mudar o

    ensino da escola pblica); a de professor realista e prtico (ao recusar-se a trabalhar naescola pblica devido baixa remunerao) e, principalmente, a de professor inseguro e

    limitado (ao julgar seus prprios conhecimentos). Desse modo, o trabalhoproblematizado a partir dos filmes pode ir na contramo da perpetuao dessasidentidades, o que contribui para que os futuros profissionais sejam mais seguros de si.Segundo Napolitano (2006, p. 27 e p. 91), os filmes sobre professores e alunos soespecialmente interessantes como elementos de discusso e reflexo sobre prticas

    pedaggicas e os chamados filmes de escola propiciam bons debates sobre osproblemas que enfrentamos no nosso dia-a-dia da atividade educacional.

    Muitos estudiosos tm procurado refletir acerca da relao entre o cinema e aconstruo da identidade e da formao de professores. Apresentamos, assim, algumasdessas pesquisas e seus resultados, a fim de construir a relao entre cinema,letramentos, identidades e formao de professores de lnguas.

    Dalton (1996) concluiu em seu estudo que Hollywood, ao representaridentidades idealizadas de professores no cinema, contribui para que seja mantida umaabordagem de currculo amplamente esttica, poltica e tica, abrindo espao para se

    pensar as realidades de ensino e de formao profissional docente. Em seus estudos,Ferreira (2003) analisou filmes norte-americanos produzidos em uma dcada,observando a representao das histrias de professores e o relacionamento deles comos alunos e o ambiente escolar. Como concluso, foi apontado que o personagemprofessor e a determinao da ideologia do currculo so influenciados pelastendncias histricas e culturais de cada poca.

    Mayrink (2007), observando a proposta das Diretrizes Curriculares para osCursos de Letrasacerca da importncia da universidade como espao de cultura capazde intervir na sociedade, investigou o potencial do cinema como signo que contribui

    para uma formao crtico-reflexiva do futuro professor. Ao constatar que o trabalhocom filmes provocou mudanas na percepo que os participantes tinham de si e dosoutros, a pesquisadora defende que os filmes deveriam fazer parte do currculo daformao inicial e continuada de professores. Isto porque lhes possibilita estabelecerrelao entre teoria e prtica, alm de desencadear discusses sobre professor, aluno,contedo, metodologia e sociedade.

    A forma como o uso do cinema pode contribuir para focar a histria e a culturaafro-brasileiras na educao bsica, o qual garantido pela Lei 10.639/2003, foianalisada por Felipe (2009). Para isso, foi realizada uma pesquisa-ao que mostrou que

    os filmes assistidos possuem alto potencial de estimular reflexes sobre a prticadocente. Alm de problematizar conceitos de raa, etnia, igualdade, diferena, cultura econhecimento, os professores participantes puderam discutir questes da atualidade e sesensibilizaram para o exerccio da alteridade.

    Chaluh (2012), com base nos relatos de seus alunos, acredita que o cinema umlugar possvel de o professor em formao inicial problematizar sua identidade, pois lhe

    permite indagar sobre qual professor ele que vir a ser. Desse modo, constitui-se comoinstrumento de sensibilizao.

    Souza, Linhares e Mendona (2012) estudaram a utilizao de filmes naformao inicial de oito licenciaturas, incluindo Letras-Ingls e Letras-Portugus, a fimde descobrir se eles exercem influncia na formao e na prtica docente dos futuros

    professores. Como resultado, os pesquisadores ressaltam que o cinema na formao de

  • 7/25/2019 Cinema e Identidades - Mediaes Para a Formao Crtica de Professores de Lnguas (PEREIRA; MASTRELLA, 2015)

    6/16

    Nonada, Porto Alegre, n.24, 1 semestre 2015ISSN 2176-9893 193

    professores somente poder fazer diferena se trabalhado de modo mais aprofundado,crtico, e no como um recurso da emoo. Essa afirmao nos conduz, novamente, necessidade de estreitar a relao entre cinema, letramento, identidades e formao de

    professores.

    3. Metodologia

    Ao tratar do cinema como objeto de pesquisa em educao, Duarte (2002)considera que nessa perspectiva o filme muito mais delimitado que o cinema e que,

    portanto, pode ser analisado como um texto passvel de leitura e interpretaesdescritivas diferentes. Alm disso, ao interpretar o filme, o pesquisador deve observartanto sua estrutura interna quanto externa, uma vez que sua significao construda a

    partir da sua vinculao com o universo cultural no qual veiculado, ou seja, o filme sempre um produto cultural. Portanto,

    Para se fazer anlise descritiva de filmes preciso, ento, cruzar os diferentessistemas de significao dos filmes com os elementos de significao queesto presentes nas culturas em que eles so vistos e produzidos, ou seja,

    procura-se identificar e descrever o (s) significado (s) de narrativas flmicasno contexto social de que elas participam. (DUARTE, 2002, p. 99)

    Assim, tendo em vista o objeto de anlise filme, optamos aqui por umametodologia de pesquisa que leva em considerao as teorias j apresentadas no

    referencial terico sobre cinema, identidade e formao de professores de lnguas.Nesse sentido, a teoria da Anlise de Discurso Crtica (FAIRCLOUGH, 2001;RAMALHO; RESENDE, 2011) nos parece til para nossas anlises porque suainterdisciplinaridade terico-metodolgica permite que o pesquisador analise seu objetono intuito de questionar perspectivas particulares de mundo que so tomadas comouniversais nas modalidades discursivo-miditicas. A pertinncia de se analisar os filmesdecorre do fato de eles serem gneros discursivos nos quais podem ser veiculadasideologias hegemnicas de dominao e relaes de poder. Estas precisam, por isso, sercontestadas. Para Ramalho; Resende (2011, p. 21):

    [...] o suporte cientfico oferecido pela ADC, para questionamentos de

    problemas parcialmente discursivos relacionados a poder, envolve o trabalhocom textos, em qualquer modalidade orais, sonoros, escritos, visuais esob qualquer forma entrevistas, reportagens, publicidades, narrativas devida, filmes e assim por diante. (RAMALHO; RESENDE, 2011, p. 21)

    Primeiramente, as imagens dos psteres do filme sero analisadas com base noletramento visual, segundo Bamford (2013). Em seguida, como o foco deste estudo aconstruo da identidade de professor no cinema, os trechos do filme selecionados paratranscrio e anlise apresentam o dilogos da personagem do professor Henry Barthesno contexto de sala de aula. Foram selecionados trs trechos do filme consideradosrepresentativos para anlise de questes identitrias, para a qual utilizamos a categoria

  • 7/25/2019 Cinema e Identidades - Mediaes Para a Formao Crtica de Professores de Lnguas (PEREIRA; MASTRELLA, 2015)

    7/16

    Nonada, Porto Alegre, n.24, 1 semestre 2015ISSN 2176-9893 194

    analtica identificao juntamente com uma leitura dos elementos esttico-visuais quecompem seus contextos (RAMALHO; RESENDE, 2011).

    A seguir, considerando que no h procedimentos fixos de se fazer anlise dodiscurso (FAIRCLOUGH, 2001), apresentamos uma anlise possvel7de um filme que

    pode contribuir como ferramenta para o trabalho na perspectiva crtico-reflexiva deformao de professores de lnguas.

    4. Anlise: O Substituto como possibilidade de formao crtico-reflexiva sobreidentidades de professores de lnguas

    Neste artigo, os psteres e os trechos analisados, como j dito anteriormente, soprovenientes do filme O Substituto (Detachment, 2011). Na abertura do filme somostrados alguns depoimentos de professores sobre suas trajetrias de vida edificuldades enfrentadas na profisso. Dentre eles est o depoimento do professor deingls (Sr. Henry Barthes) que, medida que vai narrando e refletindo sobre a condiode ser professor e a realidade da sociedade e da educao, rememora sua vida pessoal,mostrando como opta por fazer carreira como professor substituto, evitando assim sefixar ou se ligar a qualquer instituio ou sujeitos, numa busca por ser distante ouindiferente quelas realidades e quem delas fazia parte.

    Durante o filme, h flashbacks que remontam infncia do personagem eindicam causas de sua constante melancolia: traumas envolvendo a relao com a mealcolatra j falecida e o av, que est doente no hospital e sua nica famlia. O

    professor demonstra ser um profissional brilhante e competente, mas vive em profundatristeza que o consome a cada dia; mostra-se uma pessoa solitria, mora sozinho em um

    pequeno apartamento e costuma perambular pelas ruas da cidade noite.

    4.1 Os psteres e os ttulos

    Aps a contextualizao do filme, apresentamos primeiramente a anlise de doispsteres8nas verses em ingls e em portugus.

    Ao analisar as imagens dos psteres, considerando o letramento visual(BAMFORD, 2013), o qual envolve a habilidade de saber olhar criticamente umaimagem e perceber suas implicaes ideolgicas, aos professores de lnguas emformao deve-se chamar a ateno para mensagens presentes no discurso dos textos,sobre o pblico a que se destinam, bem como os espaos nos quais circulam. Isso

    porque, uma vez que a mdia exerce um papel fundamental na representao das

    identidades e nos modos pelos quais os sujeitos veem a si e aos outros, ela somente irfornecer mecanismos para que a realidade social seja repensada caso esses sujeitosquestionem seus discursos hegemnicos (RAMALHO; RESENDE, 2011).

    Quando de incio se observam as duas imagens lado a lado possvel perceberque a primeira verso do pster do filme mais problematizadora de uma identidademelanclica e fragilizada de professor do que a verso em portugus, a qual se apresenta

    7 De acordo com Duarte (2002, p. 99): Anlises desse tipo so sempre parciais e provisrias, poisdeixam em aberto a possibilidade de haver outras interpretaes.

    8Devido a questes de direitos autorais, as imagens dos psteres foram omitidas. Caso o leitor queira ter

    acesso a elas, consultar os endereos: e.

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Detachmenthttp://cinecartaz.publico.pt/Filme/310752_o-substitutohttp://cinecartaz.publico.pt/Filme/310752_o-substitutohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Detachment
  • 7/25/2019 Cinema e Identidades - Mediaes Para a Formao Crtica de Professores de Lnguas (PEREIRA; MASTRELLA, 2015)

    8/16

    Nonada, Porto Alegre, n.24, 1 semestre 2015ISSN 2176-9893 195

    como mais situada no espao que a constituia escola. No primeiro pster, o professorHenry Barthes posto em evidncia atravs de um plano em close-up, mas em

    portugus o mesmo personagem enquadrado em plano mdio, o qual distancia ospersonagens do observador. No primeiro pster, a personagem principal, o professor,

    o foco a partir da demonstrao de tenso e angstia em seu rosto. No segundo, por suavez, a figura do professor aparece no espao da sala de aula, com carteiras e livrosdesarrumados, cenrio que permite logo relacionar o ttulo ao papel de professor, que o substituto.

    Tambm h diferena na questo da traduo dos ttulos. Enquanto em ingls ottulo Detachment, que implica em significados como distanciamento, separao,indiferena, o segundo pster, em portugus, traduz o ttulo do filme como O

    Substituto, uma implicao bastante direta sobre a identidade de professor no Brasil 9,onde vrios atuam como substitutos ou com contratos provisrios. Acreditamos queaqui tenhamos tambm oportunidades de problematizar a noo de provisoriedade porque passa muitas vezes a profisso do professor da educao bsica, mesmo quando

    estvel: essa situao se relaciona com a falta de estruturao profissional, de condiesde desempenho da profisso e do baixo valor do diploma de professor (ARANHA;SOUZA, 2013).

    4.2 Identificao: quem o professor?

    As identidades ou representaes presentes nos discursos que circulam nasociedade so construdas atravs da relao que o indivduo estabelece com outrosatores sociais em diferentes nveis e contextos (RAMALHO; RESENDE, 2011). Assim,a identificao do personagem professor Henry Barthes construda por meio daquilo

    que, na interao, outros atores sociais, a comunidade, os professores, a diretora, osalunos, dizem sobre ele e como ele reage a isso. O excerto (1) a seguir mostra o

    personagem se apresentando para a diretora da escola (Sra. Dearden) em seu primeirodia de trabalho:

    Excerto (1)Sra. Dearden:Barth ? Ou Barthes?Sr. Henry Barthes:Barthes. Barthes, senhora.Sra. Dearden:Sr. Barthes. Henry Barthes.Sra. Dearden:Ento voc teve longos perodos emLockeeMacArthur. [...] A margem.Henry Barthes: Bem, onde est o trabalho.Sra. Dearden:Esse um trabalho de um ms, at que possa preench-lo permanentemente. Pedi

    para conhec-lo porque veio muito recomendado como... o melhor substituto da lista.

    Henry Barthes:Isso um endosso meio dbio.[Os dois riem discretamente.]Sra. Dearden:Eu concordo, Sr. Barthes. Voc encontrar muitos de seus alunos abaixo do nvelde suas sries. sua tarefa tentar faz-los ficarem em dia. O mais importante ensinar ocurrculo. Entendido?[Sr. Barthes concorda com a cabea. Em seguida ele aparece caminhando pelo corredor da escolaem direo sala de aula de uma turma do Ensino Mdio. Ele entra na sala.]

    9A trama do filme retrata a questo da educao nos Estados Unidos; para nossas anlises, entretanto,

    trazemos as discusses para os significados discursivos e scio-culturais que a mesma trama adquire noBrasil.

  • 7/25/2019 Cinema e Identidades - Mediaes Para a Formao Crtica de Professores de Lnguas (PEREIRA; MASTRELLA, 2015)

    9/16

    Nonada, Porto Alegre, n.24, 1 semestre 2015ISSN 2176-9893 196

    No excerto citado, encontramos a fala da diretora em elogio ao professor: ele erao melhor substituto da lista. Quais os significados embutidos em ser substituto? Pordefinio, seria algum que est no lugar e na funo de outrem, que seria ento olegtimo ocupante da posio. Ser professor substituto sempre estar em um lugar de

    no pertencimentoaquele que no pertence legitimamente a lugar algum. No filme, oprofessor parece optar por isso: no pertencer. Parece ser tambm uma opo por nofixar-se, estar sempre em movimento.

    Trazemos ento aqui as metforas utilizadas por Bauman (1998). Para o autor,dois personagens estruturam a vida social contempornea: turistas e vagabundos. Como

    j vimos no referencial terico deste trabalho, os dois se constituem como identidade ediferena (WOODWARD, 2000). Os dois se movimentam; um por escolha, o outro pornecessidade. O turista aquele que escolhe se movimentar; o vagabundo aquele que impelido no mundo a no fixar-se, pois no h lugar para ele, no h um lar para oqual ele pode voltar. Segundo Bauman (1998, p. 118), o turista se move por vontade; ovagabundoporque o mundo insuportavelmente inspito. Essa parece ser a forma de

    movimentao do professor Henry no filme, que est sempre mudando de escola,sempre como substituto. Aqui podemos problematizar sobre o mundo inspito da

    profisso do professor de lnguas da educao bsica no Brasil: a falta de salriosatrativos, a falta de estruturao da carreira docente e a falta de preparao das escolas

    para abrigar o ensino de lnguas (salas de aula cheias, muitas vezes sem materialadequado, nmero de aulas insuficientes na grade curricular, etc.).

    Como se pode observar no trecho transcrito anteriormente, a diretora se refere aoprofessor como algum que veio muito recomendado como o melhor substituto dalista, ao que ele mesmo reage comentando que esse um endosso meio dbio. Ser o

    melhor, quando se substituto, no suficiente e o prprio professor demonstra terconscincia disso, colocando sua identidade em xeque. Entretanto, mesmo estando otermo substituto atrelado ao que temporrio e atrelado tambm prpria condio deconstante provisoriedade da profisso, como j discutimos anteriormente, deve-se aqui

    perguntar: qual o compromisso do professor? Para continuar a anlise, nos baseamos notrecho a seguir (excerto 2), quando o professor entra na sala pela primeira vez aps terse apresentado diretora:

    Excerto (2)Sr. Barthes:Bom dia.Turma:Bom dia.Sr. Barthes:Sou o Sr. Barthes. Para aqueles que no sabem, isso Ingls 11A. Ouam, eu tenhouma regra. Apenas uma. Se voc no quer estar aqui, no venha.

    Aluno 1 [Marcus, branco]: Cara, o que isso significa?Sr. Barthes:No cara, Sr. Barthes. O s mudo.

    Marcus:Voc uma porra de um gay.Aluna 1 [Meredith]:Marcus, cala a boca!Marcus:No, cala a boca voc! Sua gorda sapato.Sr. Barthes:Ei Marcus. Adivinha.

    Marcus:O qu?Sr. Barthes:Est livre para sair.

    Marcus:Tipo agora?Sr. Barthes: Tipo agora.

    Marcus:Certo cara.Aluno 2 [nome no identificado, falando para Marcus]:Te vejo depois, cara.Marcus [para o Sr. Barthes]:Quer que eu v para a diretoria?

    Sr. Barthes [para Marcus]:No me importo aonde vai.

  • 7/25/2019 Cinema e Identidades - Mediaes Para a Formao Crtica de Professores de Lnguas (PEREIRA; MASTRELLA, 2015)

    10/16

    Nonada, Porto Alegre, n.24, 1 semestre 2015ISSN 2176-9893 197

    Sr. Barthes [para a turma]: Todos, peguem uma folha de papel. Quero saber quais so suashabilidades de escrita.

    Aluno 3 [Jerry, negro]:E se no tivermos papel?Sr. Barthes [ignorando o Aluno ]: Ok, eis a situao. Voc est morto, certo? Escrevam uma

    breve, mas detalhada dissertao sobre [...]

    Aluno 3 [Jerry, interrompendo o Sr. Barthes]:Ei, idiota! Eu te fiz uma pergunta!Sr. Barthes [continuasem dar ateno a Jerry]:[...] sobre o que um amigo ou um de seus pais

    poderia dizer sobre voc em um funeral. Ok?Aluno 4 [no identificado]: L vem o gorila...Sr. Barthes:Tm 30 minutos.

    Aluno 5 [no identificado]:Ai, merda...Jerry, [agora de p bem prximo do Sr. Barthes]: Eu te fiz uma pergunta, no?[Jerry apanha a maleta do Sr. Barthes de cima da mesa e, em fria, a joga contra a parede.]Sr. Barthes [para Jerry]: Mais alguma coisa?

    Jerry: melhor dar o fora antes que eu acabe com voc.Sr. Barthes [para Jerry]: Aquela maleta no tem nenhum sentimento. Est vazia. Eu tambm notenho sentimentos que possa ferir. Eu entendo que esteja com raiva. Eu costumava ter muitaraiva tambm. Eu entendo. No tem nenhuma razo para ter raiva de mim porque sou uma das

    poucas pessoas aqui tentando te dar uma oportunidade. Agora, vou lhe pedir para apenas sesentar e fazer o seu melhor. E eu te darei uma folha. O que me diz?

    Jerry:Pode me dar uma maldita caneta, tambm?

    No excerto apresentado, encontramos o professor com duas atitudes diferentes.Ao primeiro aluno (Marcus, branco), o professor manda que saia da sala e diz no seimportar para onde ele vai (se para a diretoria ou para fora da escola). O aluno verbaliza

    preconceitos e esteretipos que segregam, como ao cham-lo de gaye ao dizer a umacolega cala a boca voc! Sua gorda sapato. O que podemos ver aqui ocompromisso do professor com uma tica que se recusa a segregar na sala de aulasegundo padres que a sociedade oferece, com base em gnero, sexualidade e padres

    de corpo. O professor se compromete com uma tica que rejeita discursos excludentes,como os que o aluno Marcus verbaliza. Assim, importante, tendo em vista a formaode professores reflexivos, chamar a ateno para o fato de que o ensino de lnguas espao propcio para o trabalho com a problematizao e a desconstruo de discursos,

    j que se ensina ali a lngua por meio da prpria lngua: preciso considerar osefeitos/valores que essa lngua produz na sociedade, refletindo sobre como nossosdiscursos colaboram com a perpetuao do preconceito e da discriminao contra as

    pessoas (URZEDA-FREITAS, 2012).O professor no retira da sala de aula o aluno negro, Jerry, mesmo quando ele,

    enraivecido, joga sua maleta contra a parede. Nesse caso, o professor tenta ignorar oataque de fria do aluno e d a ele um papel para que faa a atividade de escrita etambm reafirma sua prpria identidade ao dizer-lhe que o aluno no teria nenhumarazo para ter raiva dele, pois uma das poucas pessoas aqui tentando te dar uma

    oportunidade. Quando terminao ocorrido, o professor explica posteriormente o quefez aluna que foi chamada de gorda sapato, como mostra o trecho a seguir:

    Excerto (3)[O sinal toca. Todos os alunos saem da sala, com exceo de uma aluna, Meredith, que

    permanece em sala guardando seus cadernos]Meredith: Por que colocou o Marcus para fora e o Jerry no?Henry: Bem, algum tinha de servir de exemplo. Sabe, Marcus agrediu voc verbalmente. E issono permitido nas minhas aulas. E o que eles dizem para mim no importante. Como sechama?

    Meredith: Meredith.

  • 7/25/2019 Cinema e Identidades - Mediaes Para a Formao Crtica de Professores de Lnguas (PEREIRA; MASTRELLA, 2015)

    11/16

    Nonada, Porto Alegre, n.24, 1 semestre 2015ISSN 2176-9893 198

    Henry: Prazer em conhec-la, Meredith.Meredith: Ento, voc no liga mesmo para o que os outros dizem para voc?Henry: Talvez j tenha me acostumado.Meredith: Gostaria de ser forte assim.Henry: No precisa de fora, Meredith, s precisa entender que, infelizmente, a maioria das

    pessoas carece de autoconscincia. Deveria ter isso em mente, j que [...] vai encontr-losnovamente, de todas as idades.

    s agresses feitas contra si mesmo o professor se comporta de formaindiferente e distante. Entretanto, como ressaltamos, ele se pe contra agressesestigmatizantes e preconceituosas a outros alunos, o que revela um compromisso muitoalm de sua posio como substituto. No excerto 3, o professor explica aluna agredidaque o que ela precisa para resistir entender que a maioria das pessoas carece deautoconscincia, afirmando que o que eles dizem para mim no importante. Tendoem vista que a identidade se constitui na relao com a diferena (WOODWARD,2000), de que maneira podemos analisar a identidade do professor mediante aconstruo do termo elesem o que elesdizem para mim no importante? Eles,aqui, se refere a alunos seus alunos, os quais, conforme mostram as cenas, no seidentificam com o sistema escolar, no se comportam adequadamente e tornam a escolaum ambiente inspito, depredado, catico e insuportvel. Esses alunoselespossuemum professor e nessa relao que eles se constituem enquanto sujeitos com papeis eexpectativas socialmente definidas (MASTRELLA, 2007). Entretanto, aparentemente o

    professor os ignora, pois, poder-se-ia pensar, ele era apenas substituto e assim semantinha por indiferena. As anlises dos excertos 2 e 3, porm, nos conduzem aquestionar: ser que a indiferena insistente do professor em no se importar com o queos alunos dizem a ele no poderia ser analisada como uma expresso de seu

    compromisso medida que assim ele consegue permanecer na convivncia com elesenquanto est na escola? Ser que o que o professor de fato coloca distncia noseriam seus comportamentos conturbados e incorrigveis, aparentemente sem esperanade mudana, de maneira que assim ele possa ajud-los? Entendemos que o professor, aocontrrio do que parece, resiste a entender as identidades daqueles alunos como fixas eimutveis e a categoriz-los, possui um compromisso com seu trabalho e com seusalunos e sabe bem por que se mantm na profisso. Na relao com eles, o mesmo elesque aparece em o que eles dizem para mim no tem importncia, o professordemonstra entender o contexto de produo de seus comportamentos e atitudes: ele noresiste aos alunos no so eles que no importam mas aos discursos que elesreproduzem, conseguindo, assim, paradoxalmente sua peregrinao como substituto,

    manter seu compromisso com a profisso.O mesmo tambm pode ser visto no excerto (2), quando o aluno Jerry lana amaleta do professor contra a parede com fria, alm de amea-lo, ao que ele lheresponde: eu entendo que esteja com raiva. Eu costumavater muita raiva tambm. Euentendo. No tem nenhuma razo para ter raiva de mim porque sou uma das poucas

    pessoas aqui tentando te dar uma oportunidade. Assim, possvel compreender que oprofessor possui uma noo segura de quem ele mesmo (apesar de todo odistanciamento e a indiferena com que lida com sua profisso, mudando de escola otempo todo, recusando-se a fixar-se); possui autoconscincia, como ele mesmo afirmano excerto (3), que positivamente constri sua identidade.

    Sobre isso tambm interessante ressaltar que as identidades, no sendo fixas ou

    homogneas, mas construdas na lngua e nos discursos que circulam verdades sobre

  • 7/25/2019 Cinema e Identidades - Mediaes Para a Formao Crtica de Professores de Lnguas (PEREIRA; MASTRELLA, 2015)

    12/16

    Nonada, Porto Alegre, n.24, 1 semestre 2015ISSN 2176-9893 199

    os sujeitos da vida social (WOODWARD, 2000), podem ser tambm resistidas, j queonde h poder, h resistncia(Foucault, 1988, p. 91). A ideia da resistncia aqui no

    passa exatamente pela extino de relaes desiguais ou assimtricas, mas sim pelaproblematizao dos discursos que formam e sustentam o poder, a partir de perguntas

    que questionam a fixidez das regras sociais, como, por exemplo: a quem interessaisso? ou por que isso e no outra coisa? ou por que isso dito aqui, deste modo,

    nesta situao e no em outro tempo e lugar de forma diferente?.Assim, o professorresiste identidade daquele que, sendo substituto, aceitaria a realidade sem se importarcom ela. A identidade da falta de compromisso, que poderia caracterizar o professor, resistida atravs da problematizao que ele faz dos contextos nos quais ele atua.Acreditamos, assim, que o trabalho com filmes para a formao crtico-reflexiva podese constituir como espao de problematizao da profisso e da identidade do professorde lnguas, sendo, ento, espao para possibilidades de agncia, a qual requer queencontremos, dentro das estruturas de poder, formas nas quais podemos pensar, agir enos comportar que, por um lado, reconhecem nossos lugares dentro das estruturas

    sociais, culturais, econmicas, ideolgicas, discursivas, mas, por outro lado, nospermitem, pelo menos, alguma possibilidade de liberdade de ao e mudana(PENNYCOOK, 2001, p 120).

    Consideraes finais

    Neste artigo, enfocamos a maneira como o uso de filmes pode ser til para aformao crtico-reflexiva de professores de lnguas. Apresentamos uma anlise detrechos do filme O Substituto (Detachment, 2011), que mostra a dificuldade e o dramade um professor que opta por nunca se fixar em uma escola como permanente, estando

    sempre em movimento e assim se mantendo distante e parte em uma realidade escolarcatica, reflexo de uma sociedade individualizante e preconceituosa. As anlises sobre amaneira como a identidade do professor construda mostram que, mesmo sendosubstituto, ele possui uma tica comprometida com a resistncia a posiesestigmatizantes dentro da escola e que, na verdade, ele comprometido com a educaoe o ensino ao resistir aos discursos que, aparentemente, o afastam dos alunos, buscandomanter espaos abertos de dilogos com eles.

    As anlises empreendidas se mostram como relevantes para o processo deformao de professores de lnguas e a construo de suas identidades, uma vez quetornar-se professor envolve questes fundamentais de como desenvolver umaidentidade e lidar com as difceis tarefas de construir imagens pessoais que deem conta

    das realidades complexas de salas de aula e escolas e que possam fornecer uma basepara a atuao como professor (CARTER; DOYLE, 1995 apud ORTENZI; MATEUS;

    REIS 2002, p. 155).Tendo em vista toda a trajetria terica e as anlises e a discusso deste artigo,

    nesta seo julgamos pertinente abordar, como corolrio, uma ltima questo: diante deidentidades em geral negativamente marcadas sobre quem o professor de lnguas noBrasil, como lidar, nos cursos de formao, com a desanimadora realidade escolar e ocarter desmoralizado da figura do professor que em geral aparecem nos filmes sobre

    professores e que reproduzem discursos sobre verdades das agruras da profisso e,aparentemente, marcam negativamente suas identidades? Como trabalhar esses filmesna formao de professores sem que eles faam, contrariamente ao que se pretende,

    simples reafirmao da falta de prestgio e sucesso dos docentes?

  • 7/25/2019 Cinema e Identidades - Mediaes Para a Formao Crtica de Professores de Lnguas (PEREIRA; MASTRELLA, 2015)

    13/16

    Nonada, Porto Alegre, n.24, 1 semestre 2015ISSN 2176-9893 200

    Para responder a essa to difcil questo nos apoiamos em Freire (1997), paraquem educar no simples transferncia de contedo, mas conscientizao e vivnciacoletivas e compartilhadas. Dessa forma, acreditamos que no adianta mascarar arealidade escolar e da profisso como se somente o amor do professor pelo que ele faz

    fosse necessrio e suficiente para manter seu compromisso (como a noo deprofessores como sacerdotes que se doam, encontrada em NVOA, 1999). O que fazer,ento, com as identidades negativas de professores que so construdas nos filmes? No possvel nem desejvel neg-las; necessrio, antes, desconstru-las, desnaturaliz-las,ou seja, entender porque determinadas identidades so tidas como normais e muito

    positivas, mediantes as quais todas as outras so negativamente marcadas. Acreditamosque seja necessrio que as salas de aula de formao reflitam criticamente sobre ascondies profissionais e pessoais da atuao docente, buscando entender como asrealidades so histrica, cultural e politicamente construdas. Isso possui um efeitoimportante sobre como os professores so vistos e se veem, sendo ento de grandeimportncia para que eles, conhecendo e refletindo sobre suas prprias identidades, se

    vejam como, embora assujeitados ao sistema hierrquico em muitos momentos,tambm capazes de uma agncia construda no processo discursivo, nos momentos eespaos ambivalentes e contingentes que caracterizam a formao do sujeito em geral, ea profissionalizao do professor em particular (JORDO; BHRER, 2013).Acreditamos, como Hooks (1994, p. 207), que com todas as suas limitaes, a sala deaula continua sendo um lugar de possibilidades, dentro do qual preciso abertura deesprito e de corao que permita encarar a realidade, imaginando, coletivamente,caminhos para nos mover alm das fronteiras.

    Referncias

    ALEA, T. G.Dialtica do espectador: seis ensaios do mais laureado cineasta cubano.[Traduo de Itoby Alves Correa Jr.]. So Paulo: Summus, 1984.

    ALLRED, C. Critical media literacy: a 21st century teaching tool. In: GIL, G; VIEIRA-ABRAHO, M. H. Educao de professores de lnguas os desafios do formador.Campinas: SP: Pontes Editores, 2008, p. 91-104.

    ALTHUSSER, L.Lenin and Philosophy, and other Essays.Londres: Left Books, 1971.

    ARANHA, A. V. S; SOUZA, J. V. A. As licenciaturas na atualidade: nova crise?

    Educar em Revista, Curitiba, n. 50, p. 69-86, 2013.BAMFORD, A. The visual literacy white paper. Disponvel em:http://wwwimages.adobe.com/www.adobe.com/content/dam/Adobe/en/education/pdfs/visual-literacy-wp.pdf.Acesso em: 13 ago. 2013.

    BAUMAN, Z. O mal-estar da ps-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

    CHALUH, L. N. Filmes na formao de futuros professores: educar o olhar. Educaoem Revista, Belo Horizonte, v.28, n.2, pp. 133-152, jun., 2012.

    http://wwwimages.adobe.com/www.adobe.com/content/dam/Adobe/en/education/pdfs/visual-literacy-wp.pdfhttp://wwwimages.adobe.com/www.adobe.com/content/dam/Adobe/en/education/pdfs/visual-literacy-wp.pdfhttp://wwwimages.adobe.com/www.adobe.com/content/dam/Adobe/en/education/pdfs/visual-literacy-wp.pdfhttp://wwwimages.adobe.com/www.adobe.com/content/dam/Adobe/en/education/pdfs/visual-literacy-wp.pdf
  • 7/25/2019 Cinema e Identidades - Mediaes Para a Formao Crtica de Professores de Lnguas (PEREIRA; MASTRELLA, 2015)

    14/16

    Nonada, Porto Alegre, n.24, 1 semestre 2015ISSN 2176-9893 201

    DALTON, M. Currculo de Hollywood: quem o bom professor, quem a boa

    professora.Educao & Realidade, Porto Alegre/RS, v. 21, n. 1, pp. 97-122, 1996.

    DONDIS, D. A sintaxe da linguagem visual. Traduo de Jefferson Luiz Camargo. 3.

    Ed. So Paulo: Martins Fontes, 2007.

    DUARTE, R. Cinema e educao. Belo Horizonte: Autntica, 2002.

    DU GAY, P.; HALL, S.; JANES, L.; MACKAY, H.; NEGUS, K. (orgs.). DoingCultural Studies: the story of the Sony Walkman. Londres: Sage/The Open University,1997.

    FABRIS, E. T. H. Cinema e educao: um caminho metodolgico. Educao &Realidade, Porto Alegre/RS, v.4, n.1, p. 117-133, 2008.

    FAIRCLOUGH, N.Discurso e mudana social. Trad. (org.) Izabel Magalhes. Braslia:Universidade de Braslia, 2001.

    FELIPE, D. A. Narrativas para alteridade: o cinema na formao de professores eprofessoras para o ensino de histria e cultura afro-brasileira e africana na educao

    bsica. 2009. 148p. Dissertao (Mestrado em Educao) Programa de Ps-Graduao em Educao, Universidade Estadual de Maring, Maring, 2009.

    FERREIRA, S. C. O professor como personagem e a escola como cenrio: escola esociedade em filmes norte-americanos (1955-1974). 2003. 200p. Tese (Doutorado emHistria) Programa de Ps-Graduao em Histria, Setor de Cincias Humanas,

    Letras e Artes, Universidade Federal do Paran, Curitiba, 2003.

    FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia - Saberes necessrios prtica educativa. SoPaulo, Brasil: Paz e Terra. Edio de bolso: 1997.

    FOUCAULT, M. Histria da sexualidade, Vol. I: a vontade de saber. 10 ed., Rio deJaneiro: Graal, 1988.

    GARCIA DE STEFANI, V. C. O cinema na aula de lngua estrangeira: uma propostadidtico-pedaggica para o ensino-aprendizagem de espanhol. 2010. 238p. Dissertao(Mestrado em Lingustica)Universidade Federal de So Carlos, So Carlos, 2010.

    GIMENEZ, T. Currculo e identidade profissional nos cursos de Letras/ingls. In:TOMITCH, L. M. B. et al. A interculturalidade no ensino de ingls. Florianpolis:UFSC, 2005, pp. 331-343.

    GIROUX, H. A. Cruzando as fronteiras do discurso educacional. Traduo de MagdaFrana Lopes. Porto Alegre: Artmed, 1999.

    GOMES, F. W. B. O uso de filmes legendados como ferramenta para odesenvolvimento da proficincia oral de aprendizes de Lngua Inglesa. 2006. 132p.Dissertao (Mestrado em Lingustica Aplicada) Programa de Ps-Graduao em

    Lingustica Aplicada, Universidade Estadual do Cear, Fortaleza, 2006.

  • 7/25/2019 Cinema e Identidades - Mediaes Para a Formao Crtica de Professores de Lnguas (PEREIRA; MASTRELLA, 2015)

    15/16

    Nonada, Porto Alegre, n.24, 1 semestre 2015ISSN 2176-9893 202

    HALL, S. A centralidade da cultura: notas sobre revolues de nosso tempo. In:Educao e Realidade, Porto Alegre, v.22, n.2, p. 15-46, jul./dez. 1997.HOOKS, B. (1994) Teaching to transgress:education as the practice of freedom. New

    York: Routledge.

    JORDO, C. M.; BHRER, E. A. C. A condio de aluno-professor de lngua inglesaem discusso: Estgio, identidade e agncia. Educao & Realidade, Porto Alegre, v.38, n. 2, pp. 669-682, abr./jun. 2013.

    KLEIMAN, ANGELA (Org.). Os significados do letramento: uma nova perspectivasobre a prtica social da escrita. Campinas: Mercado de Letras, 1995.

    KRESS, G.; van LEEUWEN, T. Reading Images The Grammar of Visual Design.Routledge Press London, 1996.

    LIMA, L. R. Movies and cartoons in the EFL classroom: for a critical culturalimmersion. In: LIMA, D. C. Language and its Cultural Substrate: Perspectives for aGlobalized World. Coleo Novas Perspectivas em Lingustica Aplicada Vol. 21.Campinas, SP: Pontes Editores, 2012.

    LOURO, G. L. O cinema como pedagogia. In: LOPES, E. M.; FILHO, L. M. F;VEIGA, C. G. (orgs.). 500 anos de educao no Brasil. Belo Horizonte: Autntica,2000, p. 423-446.

    MASTRELLA-DE-ANDRADE, M. R. Ingls como lngua estrangeira: entre o desejodo domnio e a luta contra a excluso. 2007. Tese (Doutorado em Letras e Lingustica)

    Faculdade de Letras, Universidade Federal de Gois, Goinia, 2007.

    MAY, R.A aventura do cinema.Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1967.

    MAYRINK, M. F. Luzes... Cmera... Reflexo: Formao inicial de professoresmediada por filmes. 2007. 286p. Tese (Doutorado em Lingustica Aplicada e Estudos daLinguagem)Programa de Estudos Ps-Graduados em Lingustica Aplicada e Estudosda Linguagem, Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, So Paulo, 2007.

    NAPOLITANO, M. Como usar o cinema na sala de aula. 4. ed.So Paulo: Contexto,2006.

    NVOA, Antnio. (Org.). O passado e presente dos professores. Porto, Portugal: PortoEditora, 1999..ORTENZI, D.I.B.G.; MATEUS, E.F.; REIS, S. Alunas formandas do curso de LetrasAnglo-Portuguesas: Escolhas, marcos e expectativas. In: GIMENEZ, T. (Org.).Trajetrias na formao de professores de lnguas. Londrina: Editora UEL, 2002.

    PAIVA, V. L. M. O. Memrias de aprendizagem de professores de lngua Inglesa.

    Contexturas, n. 9, p.63-78, 2006.

    http://www.veramenezes.com/narprofessores.htmhttp://www.veramenezes.com/narprofessores.htm
  • 7/25/2019 Cinema e Identidades - Mediaes Para a Formao Crtica de Professores de Lnguas (PEREIRA; MASTRELLA, 2015)

    16/16

    Nonada, Porto Alegre, n.24, 1 semestre 2015ISSN 2176-9893 203

    PENNYCOOK, A. Critical Applied Linguistics: a critical introduction. Mahwah, NJ:Lawrence Erlbaum Associates, 2001.

    RAMALHO, V; RESENDE, V. M. Anlise de discurso (para a) crtica: o texto comomaterial de pesquisa. Campinas, SP: Pontes Editores, 2011.ROSSI, E. C. S. A construo do conhecimento e da identidade do professor de ingls.2004. 184p. Dissertao (Mestrado em Estudos da Linguagem) Programa de Ps-Graduao em Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Londrina, Londrina,2004.

    SIGNORINI, I. (org.). Investigando a relao oral/escrito e as teorias do letramento.Campinas, SP: Mercado das Letras, 2001.

    SILVA, T. T. A produo social da identidade e da diferena. In: SILVA, T. T. (Org.)

    Identidade e diferena

    a perspectiva dos estudos culturais. Petrpolis: Vozes, 2000.

    SOUZA. A. G.; LINHARES, R. N.; MENDONA, E. V. L. Luz, cmera e educao: apedagogia do cinema na formao de professores. Interfaces Cientficas Educao.Aracaj, Aracaju, v.01, n.01, pp.9-20, 2012. Disponvel em:. Acessadoem: 15 jul. 2013.

    URZEDA-FREITAS, M. T. Educando para transgredir: reflexes sobre o ensino crticode lnguas estrangeiras/ingls. Trab. linguist. apl., vol.51, n.1, pp. 77-97, 2012.

    VIGATA, H. S. Linguacultura em foco: material audiovisual legendado comomecanismo para o ensino intercultural de espanhol para brasileiros. 2011. 224p.Dissertao (Mestrado em Lingustica Aplicada) Programa de Ps-Graduao emLingustica Aplicada, Universidade de Braslia. Braslia, 2011.

    WOODWARD, K. Identidade e diferena: uma introduo terica e conceitual. In:SILVA, T. T. (org.). Identidade e diferena a perspectiva dos estudos culturais.Petrpolis: Vozes, 2000.

    https://periodicos.set.edu.br/index.php/educacao/article/download/108/82https://periodicos.set.edu.br/index.php/educacao/article/download/108/82