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Cinqüenta anos depois de Hiroshima John Rawls O qüinquagésimo ano após o bombardeio de Hiroshima é uma ocasião para refletir sobre o que se deve pensar a respeito. Foi de fato um grande erro, como muitos hoje pensam, e muitos pensaram na época, ou há uma justificativa para isso? Acredito que tanto o bombardeio das cidades japonesas que começou na primavera de 1945 e o eventual bombardeio atômico de Hiroshima, em 6 de agosto, foram de fato erros muito graves, e corretamente vistos como tais. A fim de apoiar essa opinião, apresento o que considero os princípios que devem governar a condução da guerra - jus in bello - de povos democráticos. Esses povos possuem fins de guerra diferentes do que Estados não-democráticos, especialmente totalitários. Estados como a Alemanha e o Japão, que procuraram dominar e explicar os povos submetidos e, no caso da Alemanha, sua escravização quando não extermínio. Embora não possa propriamente justificá-los aqui, inicio apresentando seis princípios e pressupostos em apoio a essas proposições. Espero que pareçam razoáveis; e certamente são familiares, como se aproximam muito do pensamento tradicional sobre o assunto. O objetivo de uma guerra justa conduzida por uma sociedade democrática decente* é uma paz justa e duradoura entre os povos, especialmente com seu atual inimigo. Uma sociedade democrática luta contra um Estado que não é democrático. Isto se segue do fato de que povos democráticos não guerreiam entre si, e uma vez que estamos tratando das regras de guerra tais como se aplicam a esses povos, assumimos que aquilo contra o que a sociedade luta é antidemocrático e que seus objetivos expansionistas ameaçaram a segurança e as instituições livres dos regimes democráticos e causaram a guerra. Na condução da guerra, uma sociedade democrática deve distinguir cuidadosamente entre três grupos: os líderes e autoridades do Estado, seus soldados e sua população civil. O motivo dessas distinções se baseia no princípio de responsabilidade: dado que aquilo contra o que o Estado luta é antidemocrático, os membros civis da sociedade não podem ser aqueles que organizaram e provocaram a guerra. Isto foi feito por seus líderes e autoridades apoiados por outras elites que controlam e gerem o aparato de Estado. São responsáveis, desejaram a guerra e, por fazê-lo, são criminosos. Mas os civis, muitas vezes mantidos na ignorância e influenciados pela propaganda, não são. E isto é verdade mesmo que alguns civis tenham mais conhecimento e adiram com entusiasmo à guerra. Na condução da guerra por parte de uma nação muitos casos marginais como esse podem existir, mas são irrelevantes. No que se refere aos soldados, eles, assim como os civis, e excetuando os oficiais mais graduados, não são responsáveis pela guerra, mas são alistados ou de outras maneiras forçados a fazê-lo, seu patriotismo sendo com freqüência explorado de forma cruel e cínica. As bases

Cinqüenta Anos Depois de Hiroshima

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A bomba de Hiroshima foi a bomba que dizimou centenas de japoneses e depois de anos de guerra, pós o fim a mesma.

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Cinqenta anos depois de Hiroshima

Cinqenta anos depois de Hiroshima

John Rawls

O qinquagsimo ano aps o bombardeio de Hiroshima uma ocasio para refletir sobre o que se deve pensar a respeito. Foi de fato um grande erro, como muitos hoje pensam, e muitos pensaram na poca, ou h uma justificativa para isso? Acredito que tanto o bombardeio das cidades japonesas que comeou na primavera de 1945 e o eventual bombardeio atmico de Hiroshima, em 6 de agosto, foram de fato erros muito graves, e corretamente vistos como tais. A fim de apoiar essa opinio, apresento o que considero os princpios que devem governar a conduo da guerra - jus in bello - de povos democrticos. Esses povos possuem fins de guerra diferentes do que Estados no-democrticos, especialmente totalitrios. Estados como a Alemanha e o Japo, que procuraram dominar e explicar os povos submetidos e, no caso da Alemanha, sua escravizao quando no extermnio.

Embora no possa propriamente justific-los aqui, inicio apresentando seis princpios e pressupostos em apoio a essas proposies. Espero que paream razoveis; e certamente so familiares, como se aproximam muito do pensamento tradicional sobre o assunto.

O objetivo de uma guerra justa conduzida por uma sociedade democrtica decente* uma paz justa e duradoura entre os povos, especialmente com seu atual inimigo.

Uma sociedade democrtica luta contra um Estado que no democrtico. Isto se segue do fato de que povos democrticos no guerreiam entre si, e uma vez que estamos tratando das regras de guerra tais como se aplicam a esses povos, assumimos que aquilo contra o que a sociedade luta antidemocrtico e que seus objetivos expansionistas ameaaram a segurana e as instituies livres dos regimes democrticos e causaram a guerra.

Na conduo da guerra, uma sociedade democrtica deve distinguir cuidadosamente entre trs grupos: os lderes e autoridades do Estado, seus soldados e sua populao civil. O motivo dessas distines se baseia no princpio de responsabilidade: dado que aquilo contra o que o Estado luta antidemocrtico, os membros civis da sociedade no podem ser aqueles que organizaram e provocaram a guerra. Isto foi feito por seus lderes e autoridades apoiados por outras elites que controlam e gerem o aparato de Estado. So responsveis, desejaram a guerra e, por faz-lo, so criminosos. Mas os civis, muitas vezes mantidos na ignorncia e influenciados pela propaganda, no so. E isto verdade mesmo que alguns civis tenham mais conhecimento e adiram com entusiasmo guerra. Na conduo da guerra por parte de uma nao muitos casos marginais como esse podem existir, mas so irrelevantes. No que se refere aos soldados, eles, assim como os civis, e excetuando os oficiais mais graduados, no so responsveis pela guerra, mas so alistados ou de outras maneiras forados a faz-lo, seu patriotismo sendo com freqncia explorado de forma cruel e cnica. As bases sobre as quais eles podem ser diretamente atacados no so pelo fato de serem responsveis pela guerra, mas pelo fato de que um povo democrtico no pode se defender de outra maneira, e defender-se preciso. Sobre isto no h escolha.

Uma sociedade democrtica decente deve respeitar os direitos humanos dos membros do outro lado, tanto civis como soldados, por dois motivos. Um porque simplesmente possuem direito pelo Direito dos Povos. O outro motivo ensinar aos soldados e civis inimigos o contedo desses direitos pelo exemplo de como se aplicam em seu caso. Deste modo, seu significado fica mais claro para eles. So conferidos a eles um certo status, o de membros da sociedade humana que possuem direitos como pessoas humanas. No caso dos direitos humanos em guerra o aspecto do status tal como aplicado a civis recebe uma interpretao estrita. Isto significa, tal como o entendo aqui, que no podem jamais ser diretamente atacados exceto em tempos de crise extrema, cujo carter discuto abaixo.

Continuando com o pensamento de ensinar o contedo dos direitos humanos, o prximo princpio que povos justos, por suas aes e proclamaes devem divulgar durante a guerra o tipo de paz que visam e o tipo de relaes que eles buscam entre as naes. Ao faz-lo, mostram de uma maneira aberta e pblica a natureza de seus objetivos e o tipo de povo que so. Estes ltimos deveres recaem em grande parte sobre os lderes e autoridades dos governos de povos democrticos, uma vez que se encontram na melhor posio para falar pelo povo todo e para agir de acordo com o princpio. Embora todos os princpios precedentes tambm especifiquem deveres da conduo do Estado, isto especialmente verdadeiro no que se refere aos princpios 4 e 5. A maneira pela qual a guerra conduzida e as aes que a levam a seu trmino permanecem na memria histrica dos povos e podem estabelecer as condies para a paz futura. Deve-se ter sempre em vista esse dever na conduo do Estado.

Por fim, notamos o lugar do raciocnio meios-fins na avaliao de uma ao ou poltica no que se refere sua adequao para se atingir o objetivo da guerra ou para no causar mais malefcios do que benefcios. Essa maneira de pensar - seja seguindo um raciocnio utilitrio (clssico), seja pela anlise custo-benefcios, seja avaliando interesses nacionais, seja ainda de outras maneiras - deve sempre ser enquadrada e estritamente limitada pelos princpios acima. As normas de conduo da guerra estabelecem certas linhas que limitam a ao justa. Os planos e estratgias da guerra, e a conduo das batalhas, deve permanecer dentro desses limites. (A nica exceo, repito, em pocas de crise extrema.)

Em conexo com o quarto e quinto princpios da conduo da guerra, afirmei que eles obrigam especialmente os lderes das naes. Eles ocupam a posio mais eficiente para representar as metas e obrigaes de seus povos, e s vezes se tornam estadistas. Mas quem o estadista? No existe um cargo de estadista, como h o de presidente, ou chanceler, ou primeiro-ministro. O estadistas um ideal, como o ideal do indivduo honesto ou virtuoso. Estadistas so presidentes ou primeiros-ministros que se tornam estadistas mediante sua performance e liderana exemplares no exerccio de seus cargos em pocas difceis desafiadoras e manifestam fora, sabedoria e coragem. Guiam seu povo durante perodos turbulentos e perigosos pelo que so estimados para sempre, como um de seus grandes estadistas.

O ideal do estadista sugerido pelo dito: o poltico olha para a prxima eleio, o estadista para a prxima gerao. tarefa do estudante de filosofia olhar para as condies permanentes e os interesses reais de uma sociedade democrtica justa e boa. tarefa do estadista, no entanto, discernir essas condies e interesses na prtica; o estadista v mais profundamente e mais longe do que a maioria dos outros e percebe o que precisa ser feito. O estadista precisa ter a apreenso correta, ou aproximadamente correta, do que se deve fazer e faz-lo logo. Washington e Lincoln foram estadistas. Bismarck no. Ele no visualizou os reais interesses da Alemanha num futuro mais distante, e sua avaliao e motivos foram com freqncia distorcidos por seus interesses de classe e por seu desejo de ser o nico chanceler da Alemanha. Os estadistas no precisam ser desinteressados e podem ter seus prprios interesses ao ocuparem o cargo, mas precisam ser imparciais em seus julgamentos e avaliaes dos interesses da sociedade e no devem ser influenciados, especialmente em tempos de guerra e crise, por paixes de vingana e retaliao contra o inimigo.

Sobretudo, devem se apressar em direo ao fim de alcanar uma paz justa, e evitar as coisas que tornam essa meta mais difcil. Nesse sentido, as proclamaes de uma nao devem deixar claro (o estadista deve providenciar isso) que o povo inimigo ter direito a seu prprio regime autnomo e a uma vida plena e decente aps a paz ter sido restabelecida com segurana. O que quer que seus lderes lhes digam, quaisquer represlias que eles possam razoavelmente temer, no devem ser mantidos como servos ou escravos aps sua rendio, ou terem negadas no momento devido suas plenas liberdades; e podem muito bem conquistar liberdades que no possuam antes, como ocorreu com alemes e japoneses, afinal. O estadista sabe, se outros no o sabem, qe todas as descries do povo inimigo (no de seus governantes) inconsistentes com isso so impulsivas e falsas.

Voltando-nos agora para Hiroshima e o bombardeio de Tquio, consideramos que nenhum dos dois casos se caracteriza como situao de crise extrema. Um aspecto a ser considerado que uma vez que (suponhamos) no existem direitos absolutos - direitos que devem ser respeitados em qualquer circunstncia - h ocasies m que civis podem ser diretamente atacados por meio de bombardeio areo. Houve momentos durante a guerra em que a Inglaterra podia propriamente falando ter atacado Hamburgo e Berlim? Sim, quando a Inglaterra estava sozinha e em desespero enfrentando o poderio alemo superior; alm disso, esse perodo se estenderia at que a Rssia tivesse claramente repelido o primeiro avano alemo no vero e outono de 1941, sendo capaz de fazer frente Alemanha at o fim. Nesse caso o ponto de demarcao deve ser situado em outro lugar, digamos o vero de 1942, e certamente tomando por referncia Stalingrado. No me demorarei nisto, pois a questo crucial que sob nenhum condio poderia permitir-se que a Alemanha vencesse a guerra, e isto por dois motivos bsicos: primeiro, a natureza e a histria da democracia constitucional e seu lugar na cultura europia; e segundo, o mal peculiar do nazismo e o mal moral e poltico enorme e incalculvel que ele representava para a sociedade civilizada.

O mal peculiar do nazismo precisa ser compreendido, dado que em algumas circunstncias um povo democrtico pode julgar melhor aceitar a derrota em termos da paz oferecida pelo adversrio caso esta seja razovel e moderada, no o sujeitando a humilhao e tendo em vista um relacionamento poltico futuro efetivo e decente. Porm, a caracterstica de Hitler era que ele no aceitava qualquer possibilidade de um relacionamento poltico com seus inimigos. Eles deviam ser sempre subjugados por meio de terror e brutalidade, e governados pela fora. Desde o incio, por exemplo, a campanha contra a Rssia foi uma guerra de destruio contra os povos eslavos, os habitantes originais permanecendo, se tanto, apenas como servos. Quando Goebbels e outros protestaram dizendo que a guerra no poderia ser vencida dessa forma, Hitler se recusou a dar-lhes ouvidos.

No entanto, se est claro que durante a exceo de crise extrema valia para a Inglaterra nas primeiras fases da guerra, jamais valeu em qualquer poca para os Estados Unidos em sua guerra com o Japo. Os princpios da conduo da guerra sempre se aplicaram nesse caso. Na verdade, no caso de Hiroshima, muitos envolvidos nos altos escales do governo reconheceram o carter questionvel do bombardeio e esses limites foram ultrapassados. No obstante, durante as discusses entre os lderes aliados em junho e julho de 1945, o peso do raciocnio prtico meios-fins prevaleceu. Sob a contnua presso da guerra, tais dvidas morais no conseguiram obter uma viso expressa e articulada. medida que a guerra progredia, o pesado bombardeio de civis nas capitais Berlim e Tquio e em outros lugares era cada vez mais aceito do lado aliado. Embora quando no incio das hostilidades Roosevelt tenha instado ambos os lados para que no cometesse a barbaridade desumana de bombardear civis, por volta de 1945 os lderes aliados passaram a assumir que Roosevelt teria usado a bomba sobre Hiroshima. O bombardeio surgiu como um desenvolvimento do que ocorrera antes.

As razes prticas meios-fins para justificar a bomba atmica lanada sobre Hiroshima foram as seguintes:

A bomba foi lanada para apressar o final da guerra. evidente que Truman e a maioria dos outros lderes aliados pensavam que teria esse efeito. Outra razo foi que salvaria vidas, onde as vidas que contavam eram as dos soldados americanos. de se presumir que as vidas dos japoneses, militares ou civis, valiam menos. Nesse caso, os clculos de menos tempo e mais vidas salvas estavam correlacionados. Alm disso, jogar a bomba daria ao Imperador e aos lderes japoneses uma maneira de salvar sua honra, uma questo importante considerando a cultura samurai. Na verdade, no final alguns poucos lderes supremos japoneses quiseram fazer uma ltima investida sacrificial, mas foram vencidos por outros apoiados pelo Imperador, que ordenou a rendio em 12 de agosto, tendo recebido a promessa de Washington de que o Imperador poderia permanecer contanto que ele compreendesse que tinha de obedecer s ordens do comandante militar americano. A ltima razo que menciono que a bomba foi lanada para impressionar os russos com o poder americano e torn-los mais receptivos s nossas reivindicaes. Essa razo objeto de grandes discusses, mas apresentada por alguns crticos e acadmicos como importante.

Como essas razes evidentemente no refletem os limites sobre a conduo da guerra, concentro-me numa questo diferente: o fracasso da conduo do Estado por parte dos lderes aliados e por que isso ocorreu. Truman certa vez descreveu os japoneses como animais que deviam ser tratados como tais; porm, quo insensato soa hoje descrever os alemes e japoneses de brbaros e animais! Sobre os nazistas e militaristas Tojo, sim, mas eles no so o povo alemo e japons. Churchill, mais tarde, admitiu que ele levou o bombardeio demasiado longe, movido pela paixo e intensidade do conflito. Um dever da conduo do Estado no permitir que tais sentimentos, por mais naturais e inevitveis que sejam, alterem o curso que um povo democrtico deve seguir ao lutar pela paz. O estadista compreende que as relaes com o atual inimigo possuem especial importncia: pois, como afirmei, a guerra precisa ser conduzida de maneira aberta e pblica, de modo a tornar possvel uma paz duradoura e amigvel com o inimigo derrotado, e prepara o seu povo para o modo como eles esperam ser tratados. Seus temores atuais de serem submetidos a atos de vingana e retaliao precisam ser desfeitos; inimigos atuais devem ser vistos como associados numa paz futura compartilhada e justa.

Estas observaes deixam claro que, em minha opinio, tanto Hiroshima como o bombardeio das cidades japoneses foram grandes males que os deveres da conduo dos negcios de Estado exigem que os lderes polticos evitem na ausncia de exceo de crise. Tambm acredito que isso poderia ter sido feito com pouco custo em outras ocorrncias. Uma invaso era desnecessria nessa poca, j que a guerra estava efetivamente terminada. No entanto, seja isso verdade ou no, isto no importa. Sem a exceo de crise, esses bombardeios so grandes males. claro, porm, que uma expresso articulada dos princpios da guerra justa apresentados na ocasio no teriam alterado o resultado. Era simplesmente muito tarde. Um presidente ou primeiro-ministro precisam ter examinado cuidadosamente essas questes, de preferncia, muito tempo antes, ou pelo menos quando tiverem o tempo e o lazer para pensar atentamente a respeito. Reflexes sobre a guerra justa no podem ser ouvidas no calor e na presso dos eventos prximo ao final das hostilidades; as pessoas, e um grande nmero delas, esto ansiosas, impacientes e esgotadas.

De modo similar, a justificao da democracia constitucional e a base dos direitos e deveres que ela deve respeitar devem ser parte da cultura poltica pblica e discutida nas diversas associaes da sociedade civil como parte da educao de cada um. No claramente ouvida na poltica comum do dia a dia, mas deve ser pressuposta como o fundo, no o assunto cotidiano da poltica, exceto em circunstncias especiais. Do mesmo modo, no houve apreenso anterior suficiente da importncia fundamental dos princpios da guerra justa para que sua expresso tenha bloqueado o apelo do raciocnio prtico meios-fins em termos de um clculo de vidas, ou do tempo que faltava para a guerra terminar, ou de algum outro balano de custos e benefcios. Esse raciocnio prtico justifica muita coisa, demasiado facilmente, e fornece uma maneira para um poder dominante tranqilizar quaisquer preocupaes morais que possam surgir. Se os princpios da guerra forem apresentados nesse momento, facilmente entram como apenas mais um fator a ser levado em conta.

Outro fracasso na conduo dos negcios do estado no foi tentar entrar em negociaes com os japoneses antes que qualquer medida mais drstica como o bombardeio de cidades ou o bombardeio de Hiroshima fosse tomada. Uma tentativa conscienciosa de faz-lo era moralmente necessria. Como um povo democrtico, devemos isso ao povo japons - embora no que concerne a seu governo a coisa seja diferente. Houve discusses no Japo por algum tempo para encontrar uma maneira de terminar a guerra, e em 26 de junho o governo havia sido instrudo por parte do Imperador para faz-lo. Ele deve certamente ter se dado conta de que, com a marinha destruda e as ilhas externas tomadas, a guerra estava perdida. verdade, os japoneses estavam iludidos pela esperana de que os russos pudessem se revelar seus aliados, mas as negociaes so precisamente para desfazer as iluses desse tipo alimentadas pelo outro lado. Um estadista no tem liberdade para considerar que tais negociaes podem diminuir o desejado efeito de choque de ataques subseqentes.

Truman foi de muitas maneiras, em certas ocasies, um bom presidente. Mas a forma como ele terminou a guerra mostrou que ele fracassou como estadista. Para ele, foi uma oportunidade perdida, e uma perda igualmente para o pas e suas foras armadas. Diz-se s vezes que questionar o bombardeio de Hiroshima um insulto para as tropas americanas que combateram durante a guerra. difcil de compreender isso. Devemos ser capazes de olhar para trs e examinar nossas faltas aps cinqenta anos. Esperamos que os alemes e japoneses faam isso - "Vergangenheitsverarbeitung", como diz o alemo. Por que no deveramso faz-lo tambm? No pode ser porque pensamos que conduzimos a guerra sem erro moral!

Nada disso altera a responsabilidade da Alemanha e do Japo pela guerra, nem seu comportamento no decorrer da mesma. Duas doutrinas niilistas devem ser enfaticamente repudiadas. Uma expressa pela observao de Sherman, "A guerra o inferno", de modo que tudo vale para termin-la o quanto antes se puder. A outra afirma que todos somos culpados, de modo que estamos todos no mesmo barco e ningum pode censurar ningum. Ambas so superficiais e negam todas as distines razoveis; so invocadas falsamente para tentar desculpar nossa m conduta, ou para requerer que no sejamos condenados.

O vazio moral desses niilismos se manifesta no fato de que sociedades civilizadas decentes e justas - suas instituies e leis, sua vida civil e cultura de fundo e costumes - dependem todas, absolutamente, de fazer distines morais e polticas significativas em todas as situaes. Com certeza, a guerra um tipo de inferno, mas por que deve isso significar que todas as distines morais deixam de valer? E admitindo-se que s vezes todos ou quase todos podem ser em alguma medida culpados, isso no significa que todos o so igualmente. No existe jamais um momento em que estejamos livres de todos os princpios e restries morais e polticas. Esses niilismos so pretextos para se libertar desses princpios e restries que sempre se aplicam a ns de maneira plena.

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[O artigo acima de Rawls de 1995, e foi traduzido por Luiz Paulo Rouanet em 13 de Setembro de 2001 dois dias aps o atentado ao World Trade Center, nos EUA].

Luiz Paulo Rouanet Editor do Portal Brasileiro da Filosofia? e-mail: [email protected]