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7/30/2019 Claude Lefort e a Democracia
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CLAUDE LEFORT E A DEMOCRACIA:Uma viso contra o senso comum*
Luciano Oliveira
Nascido em 1924 e falecido em 2010, Claude Lefort teve uma significativa audincia no
Brasil na dcada de 80 do sculo que passou sobretudo na sua primeira metade. Seu
livro mais conhecido, A Inveno Democrtica, foi aqui traduzido e muito lido nesses
anos. Vivia-se o processo de abertura poltica do general Figueiredo e os temas da
democracia e dos direitos humanos, nele tratados, favoreceram a acolhida que teve. Eu,
que cursara a universidade nos anos de chumbo da ditadura militar e tivera alguns
colegas presos e torturados, acalentava um tanto vagamente a idia de escrever uma tese
sobre a questo dos direitos humanos no Brasil. Ter vivido sob um regime que fazia da
violao de tais direitos um de seus pilares, tinha-nos ensinado, a mim e minha
gerao, a valorizar, na prtica, o que significava a sua vigncia. Havia, entretanto, um
problema terico a resolver.
Havamos aprendido, com o marxismo, que os direitos naturais e imprescritveis das
gloriosas Declaraes da Revoluo Francesaque, obviamente, todos identificvamos
com alguma arrogncia e escasso preparo como sendo simplesmente uma revoluo
burguesa no eram seno os direitos do homem egosta [...], um indivduo fechado
sobre si mesmo, sobre seu interesse privado e seu capricho privado como diz o prprio
Marx num texto famoso.1 A minha idia era fazer uma anlise crtica dessa leitura,
*Este texto foi preparado para o III Encontro Procad (UFAL-UFPB-UFPE) realizado entre 12 e14 de dezembro de 2012 em Joo Pessoa (PB). Agradeo aos amigos e colegas Lorena Freitas eArtur Stamford o estmulo para escrev-lo e, agora, a oportunidade de public-lo. O seucontedo retoma questes mais longamente desenvolvidas no meu livro O Enigma da
Democracia: o pensamento de Claude Lefort, Piracicaba, S. Paulo, Ed. Jacintha, 2010.
1Karl Marx, A propos de la question juive, em Oeuvres, vol. III, Paris, Gallimard, 1982, p.368. Observo que a leitura de Marx tem por base o texto de uma segunda Declarao
proclamada em 1791, e no o da Declarao de 1789, a qual, talvez por ter sido a primeira,tornou-se a mais conhecida.
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considerando-a, luz da experincia da minha gerao, empobrecedora. Sentia-me,
entretanto, um tanto tolhido na minha pretenso: quem era eu para criticar Marx? Numa
palavra, meus botes eram meus privilegiados interlocutores... Um dia, por causa do seu
ttulo, tive minha ateno atrada para o artigo de Claude Lefort: Direitos do Homem e
Poltica que abre seu livro mais conhecido.2 Nele, Lefort aponta algumas omisses
importantes na leitura de Marx. O que mais me chamou a ateno naquele momento,
considerando os meus propsitos, foi a crtica ao silncio de Marx sobre os artigos 7,
8 e 9 da Declarao, os quais, respectivamente, interditam a priso arbitrria,
instituem o princpio da reserva legal e o da presuno de inocncia de todo acusado,
em relao ao qual, caso se julgue indispensvel prend-lo, todo rigor desnecessrio
vigilncia de sua pessoa deve ser severamente reprimido pela lei (art. 9). O regime
militar tinha de tal forma espezinhado esses princpios, que o seu simples enunciado
uma banalidade em tempos normais tinha naqueles anos adquirido um valor
incalculvel para ns. Lefort criticava a miopia de Marx em no ver nesses dispositivos
uma aquisio irreversvel do pensamento poltico.3
A leitura desse texto foi para mim um acontecimento no sentido forte do termo. Nesses
momentos reconfortante encontrar um autor importante que diz aquilo que no
sabemos ou no temos a ousadia de dizer. No contexto de elaborao de um projeto de
tese, tinha descoberto meu marco terico!4 Mas no foi apenas esse apontamento das
omisses de Marx que me mostrou a potencialidade analtica da reflexo lefortiana para
o meu prprio projeto. Seu texto, afinal, no se resumia a isso. A crtica dos vieses na
leitura marxista servia na verdade de mote para Lefort retomar um dos tpicos mais
recorrentes na sua obra: o desintrincamento para usar um termo bem seu que se
opera no fenmeno democrtico entre a lei e o poder. Como diz ele, o poder se
encontra confinado a limites e o direito plenamente reconhecido em exterioridade ao
2O artigo est publicado emA Inveno Democrtica, So Paulo, Brasiliense, 1983. Neste textousarei, sempre que possvel, as tradues brasileiras dos livros de Lefort. O uso eventual detextos no traduzidos no Brasil ser oportunamente assinalado. Nesses casos, a traduo para oportugus ter sido minha.
3 Claude Lefort, op. cit., p. 51.
4
A tese, sob a orientao do prprio Claude Lefort, foi feita num doutorado na Escola de AltosEstudos em Cincias Sociais, Paris. Alguns de seus achados esto publicados no livroDo NuncaMais ao Eterno RetornoUma reflexo sobre a tortura, S. Paulo, Brasiliense, 2009.
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poder.5 Essa viso pareceu-me bem adequada para enquadrar o objeto emprico que
queria circunscrever, a saber: o aparecimento, no Brasil, de um movimento de defesa
dos direitos humanos opondo-se ditadura militar e sua ordem legal em nome de um
direito a ela no submisso. Mas o que haveria de novo no que dizia Lefort? At aqui,
nada que no pudesse ser subscrito por um jurista convencionalmente liberal. Qual,
ento, a novidade? Ocorre que o texto que tinha em mos no se esgotava a. Nas
reflexes que em seguida fazia sobre o significado poltico de uma sociedade que acolhe
os direitos do homem como seu fundamento, Lefort revelava-se um autor nada
convencional.
A propsito das Declaraes e da base em que se assentam, diz ele: Um novo
ancoradouro fixado: o homem. E fixado, alm disso, em virtude de uma Constituio
escrita: o direito encontra-se categoricamente estabelecido na natureza do homem, uma
natureza presente em cada indivduo. Mas que ancoradouro esse? 6 aqui onde
comeam os problemas: to logo fazemos um esforo no sentido de pensar
empiricamente o que esse homem, verificamos que essa imagem se esvanece. O
prprio Lefort, logo no incio do seu texto, se pe a questo: Se julgamos que h
direitos inerentes natureza humana podemos economizar uma definio daquilo que
prprio do homem? E prudentemente esquiva-se de propor tal definio, observando
que, sem dvida, a resposta se esconderia.7 Ora continua Lefort , a idia de
homem sem determinao no se dissocia da [idia] do indeterminvel. Os direitos do
homem reenviam o direito a um fundamento que, a despeito de sua denominao, no
tem figura.8 Essa indeterminao, alm disso, percorre tambm outras tantas figuras
mticas como Sociedade, Povo, Nao que so, nas democracias, entidades
indefinveis9. Ou, dizendo de uma maneira mais exata, a sua definio est sempre
sujeita ao questionamento, num debate pblico que sem fim.
Usando uma forma de expresso que surge diversas vezes nos seus textos, a democracia
moderna aparece como um regime fundado na legitimidade de um debate sobre o
5Idem, op. cit., p. 52itlicos meus.6Idem, op. cit., p. 54.7
Idem, op. cit., p. 37.8Idem, op. cit., p. 55em itlico no original.9Idem, op. cit., p. 68.
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legtimo e o ilegtimo debate necessariamente sem fiador e sem termo.10 Ao ir
coerentemente at o fim nessa vertente de pensamento, Lefort, valer-se- de frmulas
que na ocasio de minhas primeiras leituras achei um tanto desconcertantes e
recepcionei com estranhamento. Por exemplo, a da democracia como um regime que se
instituio que primeira vista parece um paradoxo em oposio boa sociedade,
ou seja, uma sociedade que pretendesse ter abolido a diviso social.11 O alvo de sua
reflexo, j se percebe, o projeto comunista de construo de uma sociedade sem
classes, empreendimento que, por onde passou, degenerou em totalitarismo.
Lefort foi discpulo, colaborador e depois testamenteiro de Merleau-Ponty, cujo mtodo
fenomenolgico adotou na anlise dos dois fenmenos que constituem o cerne de suas
reflexes: o totalitarismo de um lado e, contra seu pano de fundo sombrio, o que chama
de inveno democrtica. No seu percurso, ainda jovem, encontrou o pensamento
marxista, do qual tornou-se um ativo militante, tendo fundado em 1948, juntamente com
Castoriadis, o grupo Socialismo ou Barbrie, cuja revista com o mesmo nome tornou-se
uma referncia obrigatria no debate contemporneo em torno do marxismo, tendo sido
a primeira publicao de esquerda na Frana a fazer uma crtica sistemtica e
qualificada do stalinismo ento no apogeu. Concomitantemente, d-se o seu terceiro
encontro decisivo: a obra de Maquiavel, cuja leitura despertou nele a convico de que
foi o conflito, e no a sua eliminao, que fez a glria da repblica romana. A partir da,
Lefort, sem por isso deixar de ser um leitor atento de Marx, abandona a perspectiva da
construo de uma sociedade socialista na qual o conflito seria abolido, vendo nesse
projeto o perigo da tentao totalitria, e passa a dirigir o seu pensamento a interrogar o
que considera essencial no fenmeno democrtico: a construo de uma mise-en-scne
fundada sobre a legitimidade do conflito.
A longa convivncia com o autor dO Prncipe marcou definitivamente a concepo
lefortiana sobre o fenmeno poltico, provocando uma reviravolta no significado que ele
passou a atribuir democracia da em diante uma idia fixa nos seus trabalhos. Para
ser mais exato, significou uma mudana de objeto na sua reflexo: do afrontamento
entre capitalismo e socialismo, preocupao da poca de Socialismo ou Barbrie, Lefort
passou a exercitar uma reflexo ininterrupta sobre a oposio entre totalitarismo e
10Pensando o poltico, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1991, p. 57itlicos no original.11A Inveno..., pp. 67 e 68.
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democracia. Se de Merleau-Ponty nosso autor reteve, por assim dizer, o modo
fenomenolgico de olhar, junto com o florentino Lefort desenvolveu a viso da
irredutibilidade da diviso social, abandonando, de modo definitivo, a idia de uma
sociedade harmoniosa. O estranhamento que se sente ao ler Lefort pela primeira vez
mais do que compreensvel: o abandono da idia de boa sociedade, afinal, no seria
exatamente o oposto do que se entende por democracia? A resposta lefortiana,
surpreendente e original, no!
Indo ao essencial da sua leitura de Maquiavel, diz Lefort:
Maquiavel observa que a grandeza de Roma no foi o produto de uma sbia
legislao, mas que ela se edificou ao sabor dos acontecimentos. [...] Os felizes
acontecimentos dos quais Roma se beneficiou, ele os relaciona aos conflitos que
opuseram o Senado e a plebe, chegando a descobrir nesses ltimos o fundamento
da grandeza da Repblica, e a celebrar a virtude da discrdia, da desunione. Ele se
levanta contra a opinio mais espalhada, a opinione de molti, para afirmar em seu
prprio nome (io dico) que aqueles que condenam os tumultos da nobreza e da
plebe maldizem aquilo que foi a causa primeira da existncia da liberdade romana
e prestam mais ateno ao barulho e gritos que eles ocasionaram do que aos bons
efeitos queproduziram.12
Deixando de lado a clssica questo acerca das verdadeiras intenes de Maquiavel
finalmente, teria ele sido maquiavlico, ou no? , Lefort retm insistentemente uma
observao do florentino acerca de duas tendncias diversas que se encontram em
todas as Cidades no sentido de polis: o povo no deseja ser governado nem oprimido
pelos grandes, e estes desejam governar e oprimir o povo.13 Com isso, observa nossoautor, o filsofo florentino havia, bem antes de Marx, percebido a diviso de classes
em todas as sociedades histricas.14 S que, diferena de Marx, ele no cria na
possibilidade de sua superao. Mais do que isso, via nessa diviso a razo mesma da
polis, vale dizer, de um espao pblico agenciado em sua funo. Noutros termos, foi
lanando um olhar positivo sobre os bons efeitos que produziram os tumultos opondo
12Machiavel et la verit effetuale, incrire lpreuve du politique, Paris, Calman-Lvy,
1992, p. 144itlicos no original.13Maquiavel, O Prncipe, So Paulo, Abril Cultural (Coleo Os Pensadores), 1973, p. 45.14Claude Lefort, Repensar o Poltico, inLe temps prsent. Paris: ditions Belin, 2007, p. 360.
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o Senado e a plebe romana que, segundo Lefort, Maquiavel fez uma leitura singular
do regime que eles instituram:
umapolis que, ao invs de se fechar sobre si mesma, acolhe o conflito e inventa,
submetendo-se prova dos acontecimentos e dos tumultos, respostas que
impedem ao mesmo tempo a ameaa constante da tirania e a ameaa constante da
licenciosidade.15
Da a hipteseembrio sem dvida da crtica lefortiana boa sociedade de que o
elogio da Repblica romana recobre uma crtica corrosiva do bom regime, tal qual o
concebiam os autores clssicos.16 Numa palavra, Lefort retm de Maquiavel a viso de
que a diviso social, longe de significar a sua negao, constitutiva dapolis, de toda
sociedade poltica17sociedade poltica democrtica, acrescentaria eu para tornar mais
claro o seu pensamento.
Marcada pelo contexto do incio dos anos 80, a recepo do pensamento lefortiano entre
ns permaneceu muitas vezes num primeiro nvel de leitura, o da defesa do regime
democrtico nas suas formas institucionais. Nesse nvel, ele no um autor
diferenciado. Num nvel menos superficial, entretanto, a viso lefortiana da democracia
chega a desconcertar. Para Lefort, e simplificando bastante, a democracia no um
regime que traz consigo a soluo para o problema da convivncia humana, colocando o
povo no poder e instituindo assim a boa sociedade. Observando que o conceito de
povo remete a algo como uma unidade dotada de identidade numa palavra, a uma
totalidade orgnica , Lefort lembra que tal entidade no existe empiricamente, existe
apenas simbolicamente. No fatos, que figura corporificaria o indefinvel povo? As
respostas que foram dadas no sculo XX incluram a raa ariana, no caso do nazismo, e,no caso do comunismo, o proletariado.
Essa dimenso da obra de Lefort na verdade a sua verdadeira dimenso merece ser
mais e melhor conhecida. Longe de significar um desalento em relao democracia,
ela pe em relevo a sua importncia ao advertir contra os perigos de tentar realiz-la
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crire..., op. cit., p. 145.16Idem, op. cit., p. 143itlico meu.17Idem, op. cit., p. 166.
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num regime sem fissuras que superaria as divises e os conflitos sociais, que ele v
como constitutivos da prpria democracia. Trata-se, a meu ver, de uma viso
particularmente importante nos momentos em que a decepo e uma descrena difusa,
mas generalizada em relao s instituies da chamada democracia formal
sentimento comum e corriqueiro nas democracias podem levar s miragens da boa
sociedade e da verdadeira democracia noutros termos, tentao totalitria.
Didaticamente, Lefort convida a reparar no desintrincamento que se opera entre a
instncia do poder e a instncia da lei, a partir do momento em que se apaga a
identidade do corpo poltico. Na verdadee aqui tocamos numa da frmulas lefortianas
mais famosas o poder aparece como um lugar vazio, e aqueles que o exercem,
como simples mortais que s o ocupam temporariamente. De outro lado, no h lei
que possa se fixar cujos enunciados no sejam contestveis, cujos fundamentos no
sejam suscetveis de serem repostos em questo. J no possvel apagar a diviso
social. Em resumo, a democracia inaugura a experincia de uma sociedade
inapreensvel, indomesticvel, na qual o povo ser dito soberano, certamente, mas onde
no cessar de questionar sua identidade.18 A democracia recusa, como diz Lefort
numa outra feliz expresso, um ponto de sobrevo do saber e do poder.19
interessante notar que Lefort recupera aqui o mesmo termo que Merleau-Ponty utiliza
para fazer a crtica cincia moderna, acusando-a de ser um pensamento desobrevo
em relao ao mundo, com isso pretendendo domin-lo, ao invs de habit-lo. O termo
um desses bastante caros a Lefort, que aqui e ali dele lana mo. Essa recorrncia no
um mero gosto estilstico: ela d conta, a meu ver, da antiga e nunca desmentida
ancoragem lefortiana na fenomenologia existencial, de onde se precav contra a
tentao que ronda todo terico de olhar o mundo como um objeto que ele pode
conhecer inteiramente e manipular a seu bel-prazer. Se na fsica isso possvel mesmo com o risco de se produzir a bomba atmica!, na poltica isso pode levarno
como um risco, mas como uma consequncia lgica tentao e, portanto,
dominao totalitria.
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Idem, op. cit., p. 118itlicos meus.19lements dune critique de la bureaucratie, Paris, ditions Gallimard, 1979, p. 24 itlicomeu.
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Eis por que Lefort insiste repetidamente na viso da democracia como um regime
desincorporado colocado entre dois outros cuja matriz simblica seria uma
incorporao: no caso da monarquia absoluta, o corpo do rei; no caso do totalitarismo,
o corpodo povo. Se, no caso deste ltimo, a palavra corpo vem grafada em itlico,
por uma razo que tambm no releva de um cacoete estilstico, mas por um motivo
que aqui se esclarece: enquanto que no caso da monarquia absoluta o titular da
soberania, o rei, tem efetivamente um corpo no sentido fsico, emprico do termo, no
caso do totalitarismo o titular da soberania, o povo, uma abstrao. E isso no um
detalhe sem importncia.
Para melhor exprimir o que quero dizer, vou recorrer a uma citao um tanto longa de
um de seus intrpretes. Diz ele:
Todo o pensamento poltico ocidental dominado pelo pressuposto,
freqentemente implcito, [de que] existe uma soluo racional para o problema
da convivncia humana. [...] Segundo esse approach, a concepo de uma soluo
harmoniosa, justa, portadora de paz civil e de amizade entre os membros da
coletividade , em princpio, possvel.
Numa palavra, estamos falando da boa sociedade. Ora, sem que isso signifique uma
celebrao da m sociedade, o pensamento de Lefort, ainda segundo o seu intrprete,
erige-se contra esse projeto:
O sonho racionalista de uma sociedade reconciliada consigo prpria e liberta do
conflito , no melhor dos casos, uma utopia inconsistente alimentada por alguns
pensadores sem o p na realidade efetiva; no pior dos casos, um projeto mortferocuja realizao leva necessariamente ao esmagamento da sociedade em seu
conjunto.20
Concordando com essa leitura, acho que a viso lefortiana que dela se extrai infiltrou-se
na minha prpria maneira de encarar a realidade e contribuiu, em alguma medida, para
20 Hugues Poltier, Claude Lefort, la dcouverte du politique, Paris, ditions Michalon, 1997,pp. 35 e 39.
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minha prpria concepo de que, no fundo, e globalmente considerado, o mundo um
problema sem soluo! Ateno: dizer isso no significa afirmar que no haja soluo
para os problemas do mundo... Explico-me. Fascina-me, ao mesmo tempo que me
assusta, a complicada dinmica dos conflitos. Quase sempre, seno sempre, a soluo
para um problema termina gerando um novo problema. Aumenta a longevidade dos
seres humanos, e surge o problema de gesto da terceira idade tanto mais que, com
a libertao das mulheres do jugo da famlia patriarcal algo positivo , j no h
aquelas que aceitam o status de solteironas e so condenadas a cuidar dos pais idosos,
os quais, alis, a depender da condio social, so despachados para os asilos ou as
casas de repouso o lado negativo do processo; as populaes rurais, atradas pelas
luzes fascinantes das cidades, abandonam de bom grado a vida embrutecedora do
campo, e as metrpoles viram megalpoles inadministrveis; aumenta a riqueza da
sociedade e a classe trabalhadora passa a ter acesso ao automvelresultado: surgem os
estressantes engarrafamentos. E assim por diante, e assim sem fim. Ou seja: no apenas
a soluo de um problema gera outro problema, mas chega a ser constitutivo deste! ,
para um esprito apressado, desalentador. Mas a democracia nutre-se desse desalento,
das imperfeies e do inacabamento essencial da experincia humana, e suportar a
conscincia disso um dos fardos do homem moderno.