Claude Lefort e a Democracia

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/30/2019 Claude Lefort e a Democracia

    1/9

    1

    CLAUDE LEFORT E A DEMOCRACIA:Uma viso contra o senso comum*

    Luciano Oliveira

    Nascido em 1924 e falecido em 2010, Claude Lefort teve uma significativa audincia no

    Brasil na dcada de 80 do sculo que passou sobretudo na sua primeira metade. Seu

    livro mais conhecido, A Inveno Democrtica, foi aqui traduzido e muito lido nesses

    anos. Vivia-se o processo de abertura poltica do general Figueiredo e os temas da

    democracia e dos direitos humanos, nele tratados, favoreceram a acolhida que teve. Eu,

    que cursara a universidade nos anos de chumbo da ditadura militar e tivera alguns

    colegas presos e torturados, acalentava um tanto vagamente a idia de escrever uma tese

    sobre a questo dos direitos humanos no Brasil. Ter vivido sob um regime que fazia da

    violao de tais direitos um de seus pilares, tinha-nos ensinado, a mim e minha

    gerao, a valorizar, na prtica, o que significava a sua vigncia. Havia, entretanto, um

    problema terico a resolver.

    Havamos aprendido, com o marxismo, que os direitos naturais e imprescritveis das

    gloriosas Declaraes da Revoluo Francesaque, obviamente, todos identificvamos

    com alguma arrogncia e escasso preparo como sendo simplesmente uma revoluo

    burguesa no eram seno os direitos do homem egosta [...], um indivduo fechado

    sobre si mesmo, sobre seu interesse privado e seu capricho privado como diz o prprio

    Marx num texto famoso.1 A minha idia era fazer uma anlise crtica dessa leitura,

    *Este texto foi preparado para o III Encontro Procad (UFAL-UFPB-UFPE) realizado entre 12 e14 de dezembro de 2012 em Joo Pessoa (PB). Agradeo aos amigos e colegas Lorena Freitas eArtur Stamford o estmulo para escrev-lo e, agora, a oportunidade de public-lo. O seucontedo retoma questes mais longamente desenvolvidas no meu livro O Enigma da

    Democracia: o pensamento de Claude Lefort, Piracicaba, S. Paulo, Ed. Jacintha, 2010.

    1Karl Marx, A propos de la question juive, em Oeuvres, vol. III, Paris, Gallimard, 1982, p.368. Observo que a leitura de Marx tem por base o texto de uma segunda Declarao

    proclamada em 1791, e no o da Declarao de 1789, a qual, talvez por ter sido a primeira,tornou-se a mais conhecida.

  • 7/30/2019 Claude Lefort e a Democracia

    2/9

    2

    considerando-a, luz da experincia da minha gerao, empobrecedora. Sentia-me,

    entretanto, um tanto tolhido na minha pretenso: quem era eu para criticar Marx? Numa

    palavra, meus botes eram meus privilegiados interlocutores... Um dia, por causa do seu

    ttulo, tive minha ateno atrada para o artigo de Claude Lefort: Direitos do Homem e

    Poltica que abre seu livro mais conhecido.2 Nele, Lefort aponta algumas omisses

    importantes na leitura de Marx. O que mais me chamou a ateno naquele momento,

    considerando os meus propsitos, foi a crtica ao silncio de Marx sobre os artigos 7,

    8 e 9 da Declarao, os quais, respectivamente, interditam a priso arbitrria,

    instituem o princpio da reserva legal e o da presuno de inocncia de todo acusado,

    em relao ao qual, caso se julgue indispensvel prend-lo, todo rigor desnecessrio

    vigilncia de sua pessoa deve ser severamente reprimido pela lei (art. 9). O regime

    militar tinha de tal forma espezinhado esses princpios, que o seu simples enunciado

    uma banalidade em tempos normais tinha naqueles anos adquirido um valor

    incalculvel para ns. Lefort criticava a miopia de Marx em no ver nesses dispositivos

    uma aquisio irreversvel do pensamento poltico.3

    A leitura desse texto foi para mim um acontecimento no sentido forte do termo. Nesses

    momentos reconfortante encontrar um autor importante que diz aquilo que no

    sabemos ou no temos a ousadia de dizer. No contexto de elaborao de um projeto de

    tese, tinha descoberto meu marco terico!4 Mas no foi apenas esse apontamento das

    omisses de Marx que me mostrou a potencialidade analtica da reflexo lefortiana para

    o meu prprio projeto. Seu texto, afinal, no se resumia a isso. A crtica dos vieses na

    leitura marxista servia na verdade de mote para Lefort retomar um dos tpicos mais

    recorrentes na sua obra: o desintrincamento para usar um termo bem seu que se

    opera no fenmeno democrtico entre a lei e o poder. Como diz ele, o poder se

    encontra confinado a limites e o direito plenamente reconhecido em exterioridade ao

    2O artigo est publicado emA Inveno Democrtica, So Paulo, Brasiliense, 1983. Neste textousarei, sempre que possvel, as tradues brasileiras dos livros de Lefort. O uso eventual detextos no traduzidos no Brasil ser oportunamente assinalado. Nesses casos, a traduo para oportugus ter sido minha.

    3 Claude Lefort, op. cit., p. 51.

    4

    A tese, sob a orientao do prprio Claude Lefort, foi feita num doutorado na Escola de AltosEstudos em Cincias Sociais, Paris. Alguns de seus achados esto publicados no livroDo NuncaMais ao Eterno RetornoUma reflexo sobre a tortura, S. Paulo, Brasiliense, 2009.

  • 7/30/2019 Claude Lefort e a Democracia

    3/9

    3

    poder.5 Essa viso pareceu-me bem adequada para enquadrar o objeto emprico que

    queria circunscrever, a saber: o aparecimento, no Brasil, de um movimento de defesa

    dos direitos humanos opondo-se ditadura militar e sua ordem legal em nome de um

    direito a ela no submisso. Mas o que haveria de novo no que dizia Lefort? At aqui,

    nada que no pudesse ser subscrito por um jurista convencionalmente liberal. Qual,

    ento, a novidade? Ocorre que o texto que tinha em mos no se esgotava a. Nas

    reflexes que em seguida fazia sobre o significado poltico de uma sociedade que acolhe

    os direitos do homem como seu fundamento, Lefort revelava-se um autor nada

    convencional.

    A propsito das Declaraes e da base em que se assentam, diz ele: Um novo

    ancoradouro fixado: o homem. E fixado, alm disso, em virtude de uma Constituio

    escrita: o direito encontra-se categoricamente estabelecido na natureza do homem, uma

    natureza presente em cada indivduo. Mas que ancoradouro esse? 6 aqui onde

    comeam os problemas: to logo fazemos um esforo no sentido de pensar

    empiricamente o que esse homem, verificamos que essa imagem se esvanece. O

    prprio Lefort, logo no incio do seu texto, se pe a questo: Se julgamos que h

    direitos inerentes natureza humana podemos economizar uma definio daquilo que

    prprio do homem? E prudentemente esquiva-se de propor tal definio, observando

    que, sem dvida, a resposta se esconderia.7 Ora continua Lefort , a idia de

    homem sem determinao no se dissocia da [idia] do indeterminvel. Os direitos do

    homem reenviam o direito a um fundamento que, a despeito de sua denominao, no

    tem figura.8 Essa indeterminao, alm disso, percorre tambm outras tantas figuras

    mticas como Sociedade, Povo, Nao que so, nas democracias, entidades

    indefinveis9. Ou, dizendo de uma maneira mais exata, a sua definio est sempre

    sujeita ao questionamento, num debate pblico que sem fim.

    Usando uma forma de expresso que surge diversas vezes nos seus textos, a democracia

    moderna aparece como um regime fundado na legitimidade de um debate sobre o

    5Idem, op. cit., p. 52itlicos meus.6Idem, op. cit., p. 54.7

    Idem, op. cit., p. 37.8Idem, op. cit., p. 55em itlico no original.9Idem, op. cit., p. 68.

  • 7/30/2019 Claude Lefort e a Democracia

    4/9

    4

    legtimo e o ilegtimo debate necessariamente sem fiador e sem termo.10 Ao ir

    coerentemente at o fim nessa vertente de pensamento, Lefort, valer-se- de frmulas

    que na ocasio de minhas primeiras leituras achei um tanto desconcertantes e

    recepcionei com estranhamento. Por exemplo, a da democracia como um regime que se

    instituio que primeira vista parece um paradoxo em oposio boa sociedade,

    ou seja, uma sociedade que pretendesse ter abolido a diviso social.11 O alvo de sua

    reflexo, j se percebe, o projeto comunista de construo de uma sociedade sem

    classes, empreendimento que, por onde passou, degenerou em totalitarismo.

    Lefort foi discpulo, colaborador e depois testamenteiro de Merleau-Ponty, cujo mtodo

    fenomenolgico adotou na anlise dos dois fenmenos que constituem o cerne de suas

    reflexes: o totalitarismo de um lado e, contra seu pano de fundo sombrio, o que chama

    de inveno democrtica. No seu percurso, ainda jovem, encontrou o pensamento

    marxista, do qual tornou-se um ativo militante, tendo fundado em 1948, juntamente com

    Castoriadis, o grupo Socialismo ou Barbrie, cuja revista com o mesmo nome tornou-se

    uma referncia obrigatria no debate contemporneo em torno do marxismo, tendo sido

    a primeira publicao de esquerda na Frana a fazer uma crtica sistemtica e

    qualificada do stalinismo ento no apogeu. Concomitantemente, d-se o seu terceiro

    encontro decisivo: a obra de Maquiavel, cuja leitura despertou nele a convico de que

    foi o conflito, e no a sua eliminao, que fez a glria da repblica romana. A partir da,

    Lefort, sem por isso deixar de ser um leitor atento de Marx, abandona a perspectiva da

    construo de uma sociedade socialista na qual o conflito seria abolido, vendo nesse

    projeto o perigo da tentao totalitria, e passa a dirigir o seu pensamento a interrogar o

    que considera essencial no fenmeno democrtico: a construo de uma mise-en-scne

    fundada sobre a legitimidade do conflito.

    A longa convivncia com o autor dO Prncipe marcou definitivamente a concepo

    lefortiana sobre o fenmeno poltico, provocando uma reviravolta no significado que ele

    passou a atribuir democracia da em diante uma idia fixa nos seus trabalhos. Para

    ser mais exato, significou uma mudana de objeto na sua reflexo: do afrontamento

    entre capitalismo e socialismo, preocupao da poca de Socialismo ou Barbrie, Lefort

    passou a exercitar uma reflexo ininterrupta sobre a oposio entre totalitarismo e

    10Pensando o poltico, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1991, p. 57itlicos no original.11A Inveno..., pp. 67 e 68.

  • 7/30/2019 Claude Lefort e a Democracia

    5/9

    5

    democracia. Se de Merleau-Ponty nosso autor reteve, por assim dizer, o modo

    fenomenolgico de olhar, junto com o florentino Lefort desenvolveu a viso da

    irredutibilidade da diviso social, abandonando, de modo definitivo, a idia de uma

    sociedade harmoniosa. O estranhamento que se sente ao ler Lefort pela primeira vez

    mais do que compreensvel: o abandono da idia de boa sociedade, afinal, no seria

    exatamente o oposto do que se entende por democracia? A resposta lefortiana,

    surpreendente e original, no!

    Indo ao essencial da sua leitura de Maquiavel, diz Lefort:

    Maquiavel observa que a grandeza de Roma no foi o produto de uma sbia

    legislao, mas que ela se edificou ao sabor dos acontecimentos. [...] Os felizes

    acontecimentos dos quais Roma se beneficiou, ele os relaciona aos conflitos que

    opuseram o Senado e a plebe, chegando a descobrir nesses ltimos o fundamento

    da grandeza da Repblica, e a celebrar a virtude da discrdia, da desunione. Ele se

    levanta contra a opinio mais espalhada, a opinione de molti, para afirmar em seu

    prprio nome (io dico) que aqueles que condenam os tumultos da nobreza e da

    plebe maldizem aquilo que foi a causa primeira da existncia da liberdade romana

    e prestam mais ateno ao barulho e gritos que eles ocasionaram do que aos bons

    efeitos queproduziram.12

    Deixando de lado a clssica questo acerca das verdadeiras intenes de Maquiavel

    finalmente, teria ele sido maquiavlico, ou no? , Lefort retm insistentemente uma

    observao do florentino acerca de duas tendncias diversas que se encontram em

    todas as Cidades no sentido de polis: o povo no deseja ser governado nem oprimido

    pelos grandes, e estes desejam governar e oprimir o povo.13 Com isso, observa nossoautor, o filsofo florentino havia, bem antes de Marx, percebido a diviso de classes

    em todas as sociedades histricas.14 S que, diferena de Marx, ele no cria na

    possibilidade de sua superao. Mais do que isso, via nessa diviso a razo mesma da

    polis, vale dizer, de um espao pblico agenciado em sua funo. Noutros termos, foi

    lanando um olhar positivo sobre os bons efeitos que produziram os tumultos opondo

    12Machiavel et la verit effetuale, incrire lpreuve du politique, Paris, Calman-Lvy,

    1992, p. 144itlicos no original.13Maquiavel, O Prncipe, So Paulo, Abril Cultural (Coleo Os Pensadores), 1973, p. 45.14Claude Lefort, Repensar o Poltico, inLe temps prsent. Paris: ditions Belin, 2007, p. 360.

  • 7/30/2019 Claude Lefort e a Democracia

    6/9

    6

    o Senado e a plebe romana que, segundo Lefort, Maquiavel fez uma leitura singular

    do regime que eles instituram:

    umapolis que, ao invs de se fechar sobre si mesma, acolhe o conflito e inventa,

    submetendo-se prova dos acontecimentos e dos tumultos, respostas que

    impedem ao mesmo tempo a ameaa constante da tirania e a ameaa constante da

    licenciosidade.15

    Da a hipteseembrio sem dvida da crtica lefortiana boa sociedade de que o

    elogio da Repblica romana recobre uma crtica corrosiva do bom regime, tal qual o

    concebiam os autores clssicos.16 Numa palavra, Lefort retm de Maquiavel a viso de

    que a diviso social, longe de significar a sua negao, constitutiva dapolis, de toda

    sociedade poltica17sociedade poltica democrtica, acrescentaria eu para tornar mais

    claro o seu pensamento.

    Marcada pelo contexto do incio dos anos 80, a recepo do pensamento lefortiano entre

    ns permaneceu muitas vezes num primeiro nvel de leitura, o da defesa do regime

    democrtico nas suas formas institucionais. Nesse nvel, ele no um autor

    diferenciado. Num nvel menos superficial, entretanto, a viso lefortiana da democracia

    chega a desconcertar. Para Lefort, e simplificando bastante, a democracia no um

    regime que traz consigo a soluo para o problema da convivncia humana, colocando o

    povo no poder e instituindo assim a boa sociedade. Observando que o conceito de

    povo remete a algo como uma unidade dotada de identidade numa palavra, a uma

    totalidade orgnica , Lefort lembra que tal entidade no existe empiricamente, existe

    apenas simbolicamente. No fatos, que figura corporificaria o indefinvel povo? As

    respostas que foram dadas no sculo XX incluram a raa ariana, no caso do nazismo, e,no caso do comunismo, o proletariado.

    Essa dimenso da obra de Lefort na verdade a sua verdadeira dimenso merece ser

    mais e melhor conhecida. Longe de significar um desalento em relao democracia,

    ela pe em relevo a sua importncia ao advertir contra os perigos de tentar realiz-la

    15

    crire..., op. cit., p. 145.16Idem, op. cit., p. 143itlico meu.17Idem, op. cit., p. 166.

  • 7/30/2019 Claude Lefort e a Democracia

    7/9

    7

    num regime sem fissuras que superaria as divises e os conflitos sociais, que ele v

    como constitutivos da prpria democracia. Trata-se, a meu ver, de uma viso

    particularmente importante nos momentos em que a decepo e uma descrena difusa,

    mas generalizada em relao s instituies da chamada democracia formal

    sentimento comum e corriqueiro nas democracias podem levar s miragens da boa

    sociedade e da verdadeira democracia noutros termos, tentao totalitria.

    Didaticamente, Lefort convida a reparar no desintrincamento que se opera entre a

    instncia do poder e a instncia da lei, a partir do momento em que se apaga a

    identidade do corpo poltico. Na verdadee aqui tocamos numa da frmulas lefortianas

    mais famosas o poder aparece como um lugar vazio, e aqueles que o exercem,

    como simples mortais que s o ocupam temporariamente. De outro lado, no h lei

    que possa se fixar cujos enunciados no sejam contestveis, cujos fundamentos no

    sejam suscetveis de serem repostos em questo. J no possvel apagar a diviso

    social. Em resumo, a democracia inaugura a experincia de uma sociedade

    inapreensvel, indomesticvel, na qual o povo ser dito soberano, certamente, mas onde

    no cessar de questionar sua identidade.18 A democracia recusa, como diz Lefort

    numa outra feliz expresso, um ponto de sobrevo do saber e do poder.19

    interessante notar que Lefort recupera aqui o mesmo termo que Merleau-Ponty utiliza

    para fazer a crtica cincia moderna, acusando-a de ser um pensamento desobrevo

    em relao ao mundo, com isso pretendendo domin-lo, ao invs de habit-lo. O termo

    um desses bastante caros a Lefort, que aqui e ali dele lana mo. Essa recorrncia no

    um mero gosto estilstico: ela d conta, a meu ver, da antiga e nunca desmentida

    ancoragem lefortiana na fenomenologia existencial, de onde se precav contra a

    tentao que ronda todo terico de olhar o mundo como um objeto que ele pode

    conhecer inteiramente e manipular a seu bel-prazer. Se na fsica isso possvel mesmo com o risco de se produzir a bomba atmica!, na poltica isso pode levarno

    como um risco, mas como uma consequncia lgica tentao e, portanto,

    dominao totalitria.

    18

    Idem, op. cit., p. 118itlicos meus.19lements dune critique de la bureaucratie, Paris, ditions Gallimard, 1979, p. 24 itlicomeu.

  • 7/30/2019 Claude Lefort e a Democracia

    8/9

    8

    Eis por que Lefort insiste repetidamente na viso da democracia como um regime

    desincorporado colocado entre dois outros cuja matriz simblica seria uma

    incorporao: no caso da monarquia absoluta, o corpo do rei; no caso do totalitarismo,

    o corpodo povo. Se, no caso deste ltimo, a palavra corpo vem grafada em itlico,

    por uma razo que tambm no releva de um cacoete estilstico, mas por um motivo

    que aqui se esclarece: enquanto que no caso da monarquia absoluta o titular da

    soberania, o rei, tem efetivamente um corpo no sentido fsico, emprico do termo, no

    caso do totalitarismo o titular da soberania, o povo, uma abstrao. E isso no um

    detalhe sem importncia.

    Para melhor exprimir o que quero dizer, vou recorrer a uma citao um tanto longa de

    um de seus intrpretes. Diz ele:

    Todo o pensamento poltico ocidental dominado pelo pressuposto,

    freqentemente implcito, [de que] existe uma soluo racional para o problema

    da convivncia humana. [...] Segundo esse approach, a concepo de uma soluo

    harmoniosa, justa, portadora de paz civil e de amizade entre os membros da

    coletividade , em princpio, possvel.

    Numa palavra, estamos falando da boa sociedade. Ora, sem que isso signifique uma

    celebrao da m sociedade, o pensamento de Lefort, ainda segundo o seu intrprete,

    erige-se contra esse projeto:

    O sonho racionalista de uma sociedade reconciliada consigo prpria e liberta do

    conflito , no melhor dos casos, uma utopia inconsistente alimentada por alguns

    pensadores sem o p na realidade efetiva; no pior dos casos, um projeto mortferocuja realizao leva necessariamente ao esmagamento da sociedade em seu

    conjunto.20

    Concordando com essa leitura, acho que a viso lefortiana que dela se extrai infiltrou-se

    na minha prpria maneira de encarar a realidade e contribuiu, em alguma medida, para

    20 Hugues Poltier, Claude Lefort, la dcouverte du politique, Paris, ditions Michalon, 1997,pp. 35 e 39.

  • 7/30/2019 Claude Lefort e a Democracia

    9/9

    9

    minha prpria concepo de que, no fundo, e globalmente considerado, o mundo um

    problema sem soluo! Ateno: dizer isso no significa afirmar que no haja soluo

    para os problemas do mundo... Explico-me. Fascina-me, ao mesmo tempo que me

    assusta, a complicada dinmica dos conflitos. Quase sempre, seno sempre, a soluo

    para um problema termina gerando um novo problema. Aumenta a longevidade dos

    seres humanos, e surge o problema de gesto da terceira idade tanto mais que, com

    a libertao das mulheres do jugo da famlia patriarcal algo positivo , j no h

    aquelas que aceitam o status de solteironas e so condenadas a cuidar dos pais idosos,

    os quais, alis, a depender da condio social, so despachados para os asilos ou as

    casas de repouso o lado negativo do processo; as populaes rurais, atradas pelas

    luzes fascinantes das cidades, abandonam de bom grado a vida embrutecedora do

    campo, e as metrpoles viram megalpoles inadministrveis; aumenta a riqueza da

    sociedade e a classe trabalhadora passa a ter acesso ao automvelresultado: surgem os

    estressantes engarrafamentos. E assim por diante, e assim sem fim. Ou seja: no apenas

    a soluo de um problema gera outro problema, mas chega a ser constitutivo deste! ,

    para um esprito apressado, desalentador. Mas a democracia nutre-se desse desalento,

    das imperfeies e do inacabamento essencial da experincia humana, e suportar a

    conscincia disso um dos fardos do homem moderno.