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Claudia Gray SANGUE GELAD O E VERNIGHT vol. 2 Tradução Raquel Lopes

Claudia Gray SANGUE GELADO · 2011-07-11 · pedra da sala dos registos na torre norte. O padrão cobria as paredes a partir do chão, gelando até o tecto com a lgo quebradiço e

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Claudia Gray

SANGUE GELADOEVERNIGHT

vol. 2

TraduçãoRaquel Lopes

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Prólogo

As paredes começaram a fi car cobertas de gelo.Fascinada, observei fi os de gelo a tecerem -se e entrelaçarem -se pela

pedra da sala dos registos na torre norte. O padrão cobria as paredes a partir do chão, gelando até o tecto com algo quebradiço e branco. Alguns cristais de neve, pequenos e brancos, pairavam no ar.

Tudo era delicado e etéreo – e nada natural. O frio cortante da sala atravessava -me a pele e deixou -me gelada até à medula. Quem me dera não estar ali sozinha. Se houvesse ali outra pessoa a ver aquilo, talvez eu acreditasse que era real. Talvez acreditasse que não corria perigo.

O gelo quebrou -se com um estrondo tão grande que saltei de susto. Perante o meu olhar atónito (a minha respiração estava acelerada e entre-cortada), o gelo que gravava a janela turvou a visão do céu nocturno lá fora e bloqueou o luar; mesmo assim, eu continuava a conseguir ver. A sala agora tinha luz própria. Todos os fi os de gelo na janela se apar-taram em várias direcções que, longe de serem aleatórias, criavam um padrão sinistro, uma forma reconhecível.

Um rosto.O homem de gelo que eu via fi tava -me também. Os seus olhos escuros

e zangados apareceram com um pormenor tal que parecia estar a olhar

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para mim. O rosto no gelo era a imagem mais vívida que eu alguma vezhavia visto.

O frio apunhalou -me o coração quando compreendi: ele estava mesmoa olhar para mim.

Dantes, eu não acreditava em fantasmas…

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Capítulo 1

À meia -noite, a tempestade começou.Nuvens escuras deslizavam pelo céu, cobrindo as estrelas. O vento

cada vez mais forte enregelou -me; madeixas do meu cabelo vermelho fustigavam -me a testa e as maçãs do rosto. Puxei o capuz da minha gabar-dina preta e protegi a mochila debaixo dela.

Apesar da tempestade que se aproximava, os jardins de Evernight ainda não estavam completamente às escuras. E nada menos do que escuridão absoluta serviria. Os professores da Academia Evernight conseguiam ver no escuro e ouvir através do vento. Todos os vampiros o conseguiam.

Claro que, em Evernight, os professores não eram os únicos vampiros. Dentro de dois dias, o ano lectivo iria começar e os estudantes chega-riam: e a maioria era composta por mortos -vivos tão poderosos e antigos quanto os professores.

Eu não era poderosa nem antiga; e ainda estava muito viva. Mas, de certa forma, era uma vampira – fi lha de dois vampiros, estava destinada a tornar -me também uma – e tinha apetite por sangue.

Já conseguira escapulir -me por entre os professores, contando com o auxílio dos meus poderes e também com pura sorte. Mas naquela noite esperava pela escuridão total. Queria estar tão camufl ada quanto possível.

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Acho que estava nervosa por ser a primeira vez que forçava a entradanuma casa.

Dizer forçar a entrada faz com que isto pareça reles, como se eu fosseapenas invadir a casa das carruagens onde a senhora Bethany morava esaqueá -la para fi car com dinheiro, jóias ou algo do género. E eu tinhamotivos mais importantes para o fazer.

A chuva começou a cair e o céu foi fi cando mais escuro. Corri pelosjardins, lançando alguns olhares para as torres de pedra da escolaenquanto avançava. Ao deslizar pela relva molhada e escorregadia até àcasa das carruagens de telhado de cobre, fui acometida por uma hesitaçãoincómoda. A sério? Vais invadir -lhe a casa? Invadir a casa de quem querque seja? Tu nem sequer descarregas música sem pagares. Era surreal: tirarda mochila o meu cartão laminado da biblioteca e usá -lo para outra coisaque não requisitar livros. Mas estava determinada. Ia fazê -lo. No máximo,a senhora Bethany ausentava -se da academia três vezes por ano, pelo quea minha oportunidade era naquela noite. Fiz o cartão passar por entre aporta e a ombreira e comecei a tentar arrombar a fechadura.

Cinco minutos depois, ainda estava a agitar o cartão da biblioteca semqualquer resultado, já com as mãos frias, molhadas e desajeitadas. Na TV,esta parte parecia sempre tão fácil. Provavelmente, os criminosos a sérionão demoram mais de dez segundos a fazer isto. Porém, estava a tornar--se cada vez mais óbvio que eu não era grande criminosa.

Desistindo do plano A, comecei a procurar outra opção. Ao início, asjanelas não pareciam muito mais prometedoras do que a porta. É claroque eu podia ter partido o vidro de qualquer uma delas, abrindo -a comfacilidade, mas isso lançaria por terra a componente não ser apanhadado meu plano.

Ao contornar a casa, foi com surpresa que vi que a senhora Bethany deixara uma janela aberta – apenas uma fresta. Era tudo o que eu precisava.

Enquanto levantava devagar a janela, vi no parapeito uma fi leira devioletas -africanas em pequenos vasos de barro. A senhora Bethany tinha-

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-as deixado num lugar onde poderiam apanhar ar fresco e talvez alguma chuva. Era estranho pensar que a senhora Bethany se preocupava com algum ser vivo. Arredei com cuidado os vasos para ter espaço para me içar e passar pela janela.

Entrar por uma janela aberta? Também é muito mais difícil do que parece na televisão.

As janelas da senhora Bethany eram bem altas, o que implicava ter de saltar só para lá chegar. A ofegar, comecei a impulsionar -me para o inte-rior, e foi com difi culdade que não caí no chão lá dentro. Estava a tentar aterrar de pé. Mas passara primeiro a cabeça pela janela e não podia virar -me a meio. Um dos meus sapatos enlameados bateu com força numa das janelas e eu arquejei, mas o vidro não se partiu. Lá consegui descer o que me faltava e deixar -me cair no chão.

– Muito bem – sussurrei, deitada no tapete entrançado da senhora Bethany, com as pernas ainda por cima da cabeça, encostada ao parapeito e muito encharcada. – E esta era a parte fácil.

A casa da senhora Bethany parecia -se com ela; tinha o mesmo toque e até o mesmo cheiro – forte e penetrante, com alfazema. Dei -me conta de que estava no seu quarto, o que fez com que me sentisse ainda mais uma intrusa. Apesar de saber que a senhora Bethany tinha viajado até Boston para conhecer «potenciais alunos», não conseguia libertar -me da sensação de que ela poderia apanhar -me a qualquer momento. Essa perspectiva aterrorizava -me. Já estava a começar a fi car bloqueada, a recolher -me no meu íntimo como sempre que sentia medo.

Mas depois pensei no Lucas, o rapaz que eu amava – e que tinha perdido.

O Lucas não quereria ver -me assustada. Quereria que me mantivesse forte. A sua memória deu -me coragem e eu obriguei -me a levantar -me e a lançar mãos à obra.

Prioridades em primeiro lugar: tirei os sapatos enlameados, para não deixar mais lama na casa. Também pendurei a gabardina no puxador da

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porta mais próxima para não pingar por todo o lado. Depois fui à casade banho e agarrei numa mão -cheia de lenços de papel que usei paralimpar os meus sapatos e tudo o que já tinha sujado. Enfi ei os lenços numbolso da gabardina para poder deitá -los fora noutro sítio. Se havia umapessoa paranóica o sufi ciente para procurar provas de uma intrusão noseu próprio caixote do lixo, essa pessoa era a senhora Bethany.

Achei surpreendente que a directora tivesse escolhido viver ali. A Aca-demia Evernight era grande, grandiosa até, toda feita de torres de pedra egárgulas – muito ao estilo dela. Aquele lugar pouco mais era do que umcasebre. Por outro lado, ali ela tinha privacidade. Não me era difícil crerque a senhora Bethany prezasse isso acima de tudo o mais.

A secretária parecia o local indicado para começar. Sentei -me nacadeira de madeira com um espaldar duro, afastei um retrato em silhuetade um homem do século xix numa moldura prateada e comecei a esqua-drinhar os papéis que ali encontrei.

Caro senhor Reed,Avaliámos a candidatura do seu fi lho Mitch com grande interesse.

Apesar de ser como é óbvio um estudante excepcional e um jovem exem-plar, lamentamos informá -lo…

Um aluno humano que queria estudar aqui – e que a senhora Bethany rejeitara. Por que permitiria que alguns humanos frequentassem a Aca-demia Evernight mas outros não? Por que consentiria que entrassemhumanos de todo num dos poucos redutos vampíricos que subsistiam?

Caros senhor e senhora Nichols,Avaliámos a candidatura da vossa fi lha Clementine com grande inte-

resse. Trata -se como é óbvio de uma estudante excepcional e de umajovem exemplar, pelo que é com prazer que…

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Qual seria a diferença entre Mitch e Clementine? Felizmente, o sistema organizado da senhora Bethany facultou -me acesso directo às candida-turas dos dois, mas ao analisá -las não descortinei quaisquer respostas. Ambos tinham obtido notas assustadoramente altas nos exames fi nais e apresentavam imensas actividades extracurriculares. Examinar as listas de êxitos deles fez -me sentir a maior baldas do mundo. Nas fotografi as, tinham uma aparência bastante normal: não eram lindos, nem feios, nem gordos, nem magros, apenas normais. Ambos viviam na Virgínia – Mitch num prédio de apartamentos em Arlington e Clementine numa casa antiga no campo – mas eu sabia que tinham de ser podres de ricos para sequer equacionar estudar nesta escola.

Tanto quanto eu conseguia perceber, a única diferença entre o Mitch e a Clementine era que o primeiro tinha mais sorte. Os pais enviá -lo -iam para um colégio interno normal para a classe alta na costa leste, onde se entrosaria com outros miúdos ultra -ricos e jogaria lacrosse, andaria de iate ou faria o que quer que se fi zesse nesses sítios. A Clementine, entretanto, viveria rodeada de vampiros. Apesar de nunca vir a sabê -lo, pressentiria que algo aqui estava muitíssimo errado. Nunca se sentiria segura. Nem eu me sentia segura na Academia Evernight, e eu acabaria por me transformar numa vampira – um dia.

Um relâmpago iluminou as janelas, seguido por um trovão segundos depois. A tempestade não tardaria a piorar; estava na altura de regressar. O desapontamento invadiu -me enquanto tornava a dobrar as cartas e as colocava no seu lugar. Estivera tão certa de que obteria respostas naquela noite; em vez disso, nada aprendera.

Não é verdade, disse a mim mesma enquanto vestia a gabardina e olhava para os vasos. Ficaste a saber que a senhora Bethany gosta de violetas -africanas. Isso vai ser mesmo útil.

Arrumei as violetas no parapeito tal como estavam antes de eu entrar e saí pela porta da frente que, por sorte, se trancava automaticamente. Era típico da senhora Bethany não deixar sequer esse pormenor ao acaso.

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O vento voltou a fustigar -me o rosto com chuva tão forte que sentiaas faces a arder enquanto corria na direcção da Academia Evernight.Algumas janelas dos apartamentos dos professores ainda tinham uma luzdourada, mas já era tarde o sufi ciente para que eu não me preocupassepor alguém poder ver -me. Encostei o ombro à pesada porta de carvalho,que se abriu obedientemente sem o mínimo rangido. Ao fechá -la atrásde mim, pensei que estava a salvo.

Até me aperceber de que não me encontrava sozinha.Em alerta, escrutinei a escuridão do grande átrio. Era um amplo espaço

aberto, sem recantos ou colunas onde alguém pudesse esconder -se, peloque devia conseguir ver quem lá estava. Mas não via ninguém. Estremeci;de súbito, parecia -me que estava muito mais frio, como se me encontrassenuma caverna húmida e intimidante e não entre as paredes de Evernight.

As aulas só começariam dali a dois dias, pelo que na escola só está-vamos eu e os professores. Mas qualquer professor teria de imediatocomeçado a ralhar comigo por estar nos jardins àquela hora e a meio deuma tempestade. Não fi caria a espiar -me no escuro.

Pois não?Hesitante, dei um passo em frente.– Quem está aí? – sussurrei.Ninguém respondeu.Talvez estivesse a imaginar coisas. Agora que pensava nisso, na verdade

eu nada ouvira. Apenas sentira, aquela estranha impressão que por vezestemos de alguém estar a observar -nos. Passara toda a noite preocupadacom o facto de alguém poder ver -me, pelo que podia estar a ser infl uen-ciada por essa preocupação.

Depois vi qualquer coisa mexer -se. Percebi que uma rapariga estavado lado de fora do grande átrio, a espreitar. De pé, envolvida num longoxaile, estava do outro lado de uma das janelas – a única que tinha vidrotransparente e não vitral. Devia ser da minha idade. Apesar de estar achover imenso, ela parecia completamente seca.

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– Quem és? – Dei mais alguns passos na direcção dela. – És aluna aqui? O que estás…

Desapareceu. Não fugiu, não se escondeu… nem sequer se mexeu. Num instante estava ali, no seguinte já não. A pestanejar, fi tei a janela durante mais alguns segundos, como se ela pudesse tornar a aparecer no mesmo sítio por artes mágicas. Não o fez. Aproximei -me mais para tentar ver melhor, vi um resquício de movimento e, alvoroçada, saltei – mas depois dei -me conta de que estava perante a minha própria imagem refl ectida no vidro.

Bem, que estupidez. Acabaste de entrar em pânico ao veres a tua cara.Não era a minha cara.Mas só podia ser. Se alguns estudantes novos tivessem chegado

naquele dia, eu saberia, e Evernight fi cava numa área tão isolada que era impossível imaginar um estranho a vaguear por ali. A minha imaginação hiperactiva voltara a pregar -me uma partida; só podia ter sido o meu refl exo. Nem sequer estava tanto frio ali, bem vistas as coisas.

Quando parei de tremer, subi pé ante pé pela escadaria até ao pequeno apartamento que eu e os meus pais partilhávamos no Verão, mesmo no topo da torre sul de Evernight. Felizmente, estavam a dormir profunda-mente; quando atravessei o corredor em bicos de pés, ouvi a minha mãe a ressonar; se o meu pai conseguia dormir com aquele barulho, conseguiria dormir durante a passagem de um furacão.

Ainda me sentia aturdida pelo que vira lá em baixo; o facto de estar ensopada não contribuía para fi car mais bem -disposta. Mas nada disso me importunava tanto quanto ter falhado. A minha grande tentativa de arrombamento resultara em nada.

Não que eu pudesse fazer alguma coisa a respeito dos alunos humanos em Evernight. A senhora Bethany não ia deixar de os aceitar só por eu dizer para não o fazer. Para além disso, eu tinha de admitir que ela os protegia, vigiando os estudantes vampiros para garantir que estes não lhes bebiam nem um pouco de sangue.

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Mas ter conhecido o Lucas deixara -me consciente de quão poucocompreendia da existência dos vampiros, apesar de ter nascido nessemundo. Ele levara -me a ver tudo de uma forma diferente, tornara -memais propensa a fazer perguntas e a precisar de respostas. Mesmo quenão tornasse a vê -lo, sabia que me dera um dom ao acordar -me para arealidade maior e mais sombria. Já não podia tomar o que me rodeavacomo garantido.

Depois de despir as roupas molhadas e de me aconchegar debaixodos cobertores, fechei os olhos e lembrei -me do meu quadro preferido,O Beijo, de Klimt. Tentei imaginar que eu e o Lucas éramos os amantesretratados nessa pintura, que era o seu rosto que estava tão perto do meu,e que conseguia sentir -lhe a respiração na minha face. Já não nos víamoshavia quase seis meses.

Nessa altura ele fora obrigado a fugir de Evernight porque a sua verda-deira identidade – caçador de vampiros da Cruz Negra – fora revelada.

Ainda não sabia como lidar com o facto de o Lucas fazer parte de umgrupo de pessoas que se dedicava a destruir a minha espécie. De igualforma, também não estava certa de como o Lucas se sentia por eu seruma vampira, algo que ele só percebera depois de nos termos apaixo-nado. Nenhum de nós escolhera ser o que éramos. Em retrospectiva,parecia inevitável que nos separássemos. E, no entanto, eu ainda acredi-tava, no meu íntimo, que estávamos destinados a fi car juntos.

Apertando a almofada contra o peito, tentei tranquilizar -me: Pelomenos em breve não terás tanto tempo para sentir a falta dele. Daquia nada as aulas recomeçam e fi carás mais ocupada.

Espera aí. Estarei reduzida a esperar que as aulas comecem?Não sei como, mas acabei de descobrir todo um novo nível de patético.

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Capítulo 2

No primeiro dia de aulas, pouco depois da madrugada, a procissão começou.

Os primeiros alunos, poucos, chegaram a pé. Saíram do bosque, com roupas simples e, na maioria, uma única mochila pendurada ao ombro. Julgo que alguns deles tinham passado a noite a caminhar. Os seus olhos ansiosos perscrutavam a escola à medida que se aproximavam, como se esperassem obter de imediato as respostas que procuravam. Ainda antes de ter visto o primeiro rosto conhecido – o do Ranulf, que tinha mais de mil anos e nada compreendia dos tempos modernos – soube quem eram os estudantes daquele grupo. Eram os perdidos, os vampiros mais velhos. Não causavam problemas a quem quer que fosse; fi cavam ao fundo, a estudar, a ouvir, a tentar compensar os séculos que tinham perdido.

No ano anterior, o Lucas misturara -se com eles para entrar. Lembrava--me de como aparecera, vindo do nevoeiro, no seu longo casaco preto. Apesar de saber que não valia a pena, continuei a observar as caras de todos os alunos que chegavam a pé, desejando poder tornar a ver a dele.

À hora do pequeno -almoço, os carros começaram a surgir. Observava--os a partir do corredor entre as salas de aula, dois pisos acima, pelo que conseguia ver os emblemas nos capôs: Jaguar, Lexus, Bentley. Havia

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pequenos carros desportivos italianos e jipes grandes o sufi ciente paraque os carros desportivos estacionassem lá dentro. Percebia que eramdos alunos humanos, porque nenhum vinha sozinho. A maioria fazia--se acompanhar pelos pais, alguns traziam também irmãos e irmãs maisnovos. Até reconheci a Clementine Nichols, que tinha um rabo -de -cavalocastanho -claro e sardas no nariz. Fiquei espantada ao ver a senhoraBethany no jardim a ir ao encontro de quase todos, estendendo a mãotão graciosamente como uma rainha a receber cortesãos. Parecia quererfalar com os pais e sorria -lhes com calor como se estivesse a estabeleceramizades para toda a vida. Embora soubesse que estava a fi ngir, tinha deadmitir: fazia -o na perfeição. Quanto aos alunos humanos, quanto maistempo passavam no jardim e olhavam para as imponentes torres de pedrada Academia Evernight, mais os seus sorrisos esmoreciam.

– Ah, estás aqui!Desviei o olhar da cena lá em baixo e virei -me para o meu pai, que se

forçara a levantar -se cedo para a ocasião. Estava de fato e gravata, comoum professor deveria vestir -se, mas o cabelo ruivo -escuro e desalinhadorevelava bem mais da sua verdadeira personalidade.

– Sim – respondi, sorrindo -lhe. – Acho que queria só ver o que se passa.– Estás à procura dos teus amigos? – Os olhos do meu pai brilharam

quando se colocou a meu lado e espreitou pela janela. – Ou a mirar osrapazes novos?

– Pai.– Estou a afastar -me, conforme solicitado. – Ergueu as mãos. – Pareces

um pouco mais contente com isto do que no ano passado.– Era quase inevitável, não era?– Suponho que sim – respondeu o meu pai e ambos nos rimos.

No ano anterior, eu sentia -me tão anti -Evernight que tentara fugir no diada chegada dos alunos… parecia ter sido numa outra vida. – Olha, sequeres tomar o pequeno -almoço, acho que a tua mãe já ligou a máquinados waffl es.

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Apesar de por hábito se alimentarem apenas do sangue que a escola provi-denciava através de carregamentos clandestinos, os meus pais asseguravam--se sempre de que eu tinha a comida a sério de que ainda precisava.

– Subo daqui a um segundo, está bem?– Está. – Pousou -me a mão no ombro por um instante antes de se virar

e começar a ir -se embora.Lancei um último olhar aos jardins. Algumas famílias continuavam a

deambular por ali ou a arrastar malas de viagem, mas a terceira e última vaga de alunos tinha começado a chegar.

Todos vinham sozinhos, em carros alugados. Havia alguns táxis, mas, na sua maioria, os automóveis eram sedans ou limusinas alugados. Ao saírem, aqueles alunos já envergavam o uniforme da escola (ajustado à medida de cada um) e mostravam um cabelo lustroso e penteado com cuidado para trás. Nenhum trazia malas; eram deles as muitas caixas e arcas que tinham chegado a Evernight nas duas semanas anteriores, con-tendo os seus muitos pertences. Com desagrado, vi a Courtney, uma das pessoas de quem menos gostava, a acenar descontraída a algumas das outras raparigas. Ela, tal como muitas outras, usava óculos de sol. Isso signifi cava que tinham uma particular sensibilidade à luz solar, o que, por seu turno, queria dizer que não bebiam sangue havia algum tempo. Deviam estar a fazer dieta, para parecerem mais magras e ferozes.

Estes eram os vampiros que precisavam de ajuda para se adaptar ao século xxi mas que não estavam por completo perdidos com as mudan-ças temporais. Eram aqueles que ainda tinham poder – e que não permi-tiriam que ninguém da escola se esquecesse disso. Pensava neles sempre da mesma maneira.

Eram «os tipos de Evernight».

Quando acabei os waffl es e desci, o grande átrio estava a abarrotar comuma multidão de estudantes a conversar e a rir. Durante alguns minutos,

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limitei -me a vaguear por ali, sentindo -me pequena, até ouvir uma vozsobrepor -se à vozearia:

– Bianca!– Balthazar! – respondi -lhe, sorrindo e levantando a mão por cima da

cabeça num aceno entusiasmado. Era um rapaz grande, tão alto e mus-culado que poderia parecer -me intimidador ao furar pela multidão parame alcançar, não fosse a bondade nos seus olhos e o sorriso amigável quelhe ocupava todo o rosto.

Pus -me em bicos de pés para lhe dar um abraço apertado.– Como foi o teu Verão?– Foi óptimo. Trabalhei no turno da noite de uma doca em Baltimore –

disse com o deleite que qualquer outra pessoa usaria para descrever umasférias de sonho em Cancún. – Eu e os outros que lá trabalhavam fi cámosamigos, divertimo -nos muito em bares. Aprendi a jogar bilhar. E tambémvoltei a fumar.

– Acho que os teus pulmões aguentam. – Sorrimos um para outro, sempodermos completar a piada enquanto estivéssemos rodeados por alunoshumanos. – Precisas de ajuda para organizar o teu relatório?

– Já está feito e deixei -o na secretária da senhora Bethany. – Todos osvampiros tinham de passar os meses de Verão «entrosados no mundomoderno», como indicava o trabalho que lhes era atribuído, e subme-ter relatórios das suas experiências no início de cada ano lectivo. Erauma espécie de variante infernal de uma composição subordinada aotema «O Que Eu Fiz nas Férias de Verão». O Balthazar olhou em redor.– A Patrice já cá está?

– Vai passar algum tempo na Escandinávia. – Um mês antes, eu tinharecebido um postal com uma imagem de fi ordes. – Diz que termina numano ou dois. Acho que conheceu lá um rapaz.

– Que pena – comentou o Balthazar. – Estava a contar ver mais carasconhecidas. Para além da que se aproxima com rapidez de nós, às quatrohoras.

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– O que queres dizer? – Tentei perceber que coordenadas seriam as quatro horas, mas logo ouvi a voz dela a atravessar o burburinho. O som era idêntico ao de unhas a raspar num quadro negro.

– Balthazar. – A Courtney estendeu -lhe uma mão como se esperasse que ele a beijasse. O Balthazar apertou -a e depois soltou -a. O sorriso de batom brilhante dela nem por um segundo vacilou. – Tiveste um Verão maravilhoso? Eu estive em Miami, a aproveitar a zona dos clubes. Foi altamente. Devias ir lá com alguém que conheça os sítios mais populares.

– Estou surpreendida por te ver aqui – intrometi -me. Surpreendidapareceu -me descrever o que sentia de uma maneira mais delicada do que desapontada. – Não achei que tivesses gostado disto o ano passado.

Ela encolheu os ombros.– Pensei desistir mas, na primeira noite que passei em Miami, apercebi-

-me de que estava a usar um vestido da estação anterior. E os meus sapatos eram, tipo, de há três anos. Tremenda gafe! Tornou -se óbvio que preci-sava de me actualizar mais, pelo que concluí que podia aguentar mais uns meses em Evernight. – O seu olhar já se focara de novo no Balthazar. – Além disso, gosto sempre de passar mais tempo com velhos amigos.

Comentei:– Se eu quisesse saber mais de moda, não iria para um sítio onde toda

a gente veste uniforme.A boca do Balthazar contorceu -se. A Courtney semicerrou os olhos,

mas o seu sorriso limitou -se a crescer enquanto observava a minha cami-sola sem forma e que não fora ajustada à medida do meu corpo e a minha saia de pregas.

– E tu nunca te interessaste por moda. Obviamente. – Deu uma palma-dinha no ombro do Balthazar. – Falamos depois. – E, saracoteando -se, foi -se embora, com o rabo -de -cavalo a oscilar de um lado para o outro ao ritmo dos seus passos.

– Eu queria dar -me melhor com ela este ano – balbuciei. – Acho que não mudei tanto quanto pensava ter mudado.

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– Não tentes mudar. És fantástica tal como és.Desviei o olhar, envergonhada. Parte de mim pensava: Oh, não, agora

vou ter de desiludir o Balthazar outra vez. A outra parte era incapaz deevitar fi car satisfeita por ele me ter dito aquilo. Sentira -me tão solitáriadurante todo o Verão – sem o Lucas, sem quem quer que fosse – e saberque estava ali mesmo alguém que gostava de mim era como receber umcobertor quente depois de meses de frio.

Antes de conseguir pensar na melhor forma de lhe responder, ouviu--se um sinal para que todos se calassem. A multidão em peso virou -sepor instinto para o pódio ao fundo do grande átrio. A senhora Bethany estava prestes a discursar.

Vestira um fato justo e cinzento, mais apropriado ao século xxi do queo que ela costumava usar e que, não obstante, lhe frisava a beleza aus-tera. Apanhara o cabelo escuro num penteado elegante e tinha brincosde pérolas a brilhar nas orelhas. Em vez de olhar para os estudantes, osseus olhos escuros fi tavam algo um pouco acima de nós, como se, paraela, mal fôssemos visíveis.

– Bem -vindos a Evernight. – A sua voz ecoava pelo grande átrio.Todos se endireitaram mais. – Alguns de vocês já frequentavam a acade-mia. Outros terão ouvido falar da Academia Evernight ao longo de anos(talvez as vossas famílias vos tenham falado deste sítio), interrogando -sese alguma vez ingressariam na nossa escola.

Era o mesmo discurso que pronunciara no ano anterior mas, destavez, ouvi -o de maneira diferente. Escutei as mentiras implícitas em cadafrase cuidadosa, a forma como ela falava para os vampiros ali presentesque já ali estavam há vinte ou duzentos anos.

Como se me lesse os pensamentos, a senhora Bethany fi tou -me; o seuolhar de falcão atravessou a multidão. Fiquei tensa, esperando que meacusasse de lhe ter invadido a casa enquanto ela estivera fora.

Em vez disso, fez algo ainda mais surpreendente. Abandonou oguião.

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– A Academia Evernight tem um signifi cado diferente para cada pes-soa que vem para aqui – começou. – É um lugar de aprendizagem, um lugar de tradição e, para alguns, um refúgio.

Só para as criaturas nocturnas e sugadoras de sangue, pensei. Caso contrário? Não é grande refúgio.

Com uma mão, gesticulou para alguns dos novos alunos; as suas unhas longas cintilavam em tons de vermelho sob a luz que atravessava os vitrais das janelas. Para meu grande espanto, ela estava a apontar para os estudan-tes humanos… embora, é claro, eles não pudessem compreender porquê.

– Para usufruírem ao máximo do vosso tempo em Evernight, terão de perceber o que esta escola signifi ca para os vossos colegas. É por isso que incito aqueles que têm mais experiência a aproximarem -se dos novos alunos. Protejam -nos. Aprendam coisas sobre as suas vidas, os seus inte-resses e o seu passado. Só assim a Academia Evernight poderá atingir os seus verdadeiros objectivos.

Algumas pessoas bateram palmas hesitantes: humanos que não sabiam o que fazer.

– Okay, isto foi estranho – murmurou o Balthazar sob o aplauso ligeiro. – Se eu não a conhecesse, julgaria que a senhora Bethany tinha acabado de pedir a toda a gente que fosse amistosa.

Acenei com a cabeça, que estava a mil. Por que quereria a senhora Bethany que os vampiros se aproximassem dos alunos humanos? Se não queria que os humanos se magoassem – e eu ainda estava convencida de que ela não queria que isso acontecesse –, o que pretenderia de facto?

– As aulas começarão amanhã. – O costumeiro sorriso superior tinha regressado ao rosto da senhora Bethany. – Aproveitem este dia para conhecer os vossos companheiros, sobretudo os que aqui estão pela pri-meira vez. Estamos contentes por vos ter cá, e esperamos que aproveitem ao máximo a vossa passagem por Evernight.

– Achas que se afeiçoou a nós? – perguntou -me o Balthazar assim que as pessoas voltaram a socializar.

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– A senhora Bethany? É difícil. – Por um momento, equacioneiperguntar -lhe o que pensava de todo aquele mistério da «política deadmissões». Ele era inteligente e, apesar de respeitar a directora, nãotomava o que ela dizia como um evangelho. Além disso, já andava poreste mundo havia mais de três séculos; com certeza, seria capaz deencarar a minha dúvida com a perspectiva necessária para, sob umaluz diferente, conseguir apresentar uma resposta original. Mas essaperspectiva também podia levá -lo a pensar que a pergunta se prendiacom a minha relação com o Lucas – algo de que ele não gostaria de serrecordado.

Nesse momento, o Balthazar sorriu e acenou a outra pessoa; eraimpossível dizer a quem no meio daquela multidão, em especial tendoem conta que ele era amigo de quase toda a gente.

– Depois falamos, está bem? – gritei para as costas dele, já a afastar -se.– Claro!Por um instante, senti -me sozinha sem ele. Estava rodeada por vampi-

ros – vampiros a sério, poderosos, sensuais e fortes, com séculos de expe-riência por detrás daqueles rostos belos e jovens. Eu ainda não era umavampira completa e a distância entre nós não diminuíra muito durante omeu primeiro ano em Evernight. Ao pé deles, continuava a ser pequena,ingénua e esquisita.

Tudo isso eram razões para me encaminhar prontamente para o andarde cima, concluí. Teria uma nova companheira de quarto e mal podiaesperar para falar com ela.

Quando entrei no dormitório, a Raquel suspirou.– Bem -vinda de volta… ao inferno.Estava deitada de costas sobre o colchão, com os braços estendidos.

Tinha o bornal amarrotado no chão, como que vazado, e tanto as suasroupas como o material de pintura estavam espalhados em volta. Pare-cia que tinha esvaziado o bornal e desistido nesse ponto de desfazer asmalas.

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– Também gosto de te ver. – Sentei -me na borda da minha cama. – Pensava que pelo menos fi carias contente por este ano podermos par-tilhar o quarto.

– Acredita em mim, és a única razão por que consigo suportar a ideia de estar aqui outra vez. Conta lá, os teus pais subornaram a senhora Bethany ou algo do género? Se sim, estou a dever -lhes um grande favor.

– Não, foi pura sorte. – Era quase uma mentira. Os meus pais não tinham pedido quaisquer favores à senhora Bethany mas, aparentemente, o número de vampiros e humanos que tinham ingressado na academia era ímpar, tanto no caso dos rapazes como no das raparigas. Dado que eu ainda comia comida normal mais do que bebia sangue, fui considerada a vampira com mais possibilidades de esconder a verdade de uma humana quando jantássemos nos quartos, como era costume em Evernight.

Conseguir fi car com a Raquel, porém… isso fora pura sorte. Sorte, e o facto de quase todas as outras raparigas humanas que ali tinham feito o décimo ano se terem assegurado de que frequentariam o décimo pri-meiro noutra escola. Não podia julgá -las por isso.

– Então – disse eu, esforçando -me por manter um tom divertido –, para além de passares mais tempo na minha fascinante companhia, por que voltaste? Bem sei que não era o que tinhas planeado.

– Sem ofensa, mas nem sequer a tua fascinante companhia seria sufi -ciente para me fazer mudar de ideias. – A Raquel rebolou na cama e fi cou de barriga para baixo, de forma a olhar de frente para mim. Cortara o cabelo escuro ainda mais curto do que no ano anterior; mas pelo menos fora a um cabeleireiro, pelo que o corte tinha bom aspecto, ainda que parecesse um pouco punk. – Disse aos meus pais que queria experimen-tar outro sítio. Talvez ir viver com os meus avós em Houston, frequentar a escola de lá. Nem quiseram ouvir. A Academia Evernight é «privada» e «exclusiva» e isso devia chegar -me, alegaram.

– Mesmo depois de saberem… do Erich…A boca da Raquel contorceu -se num esgar trocista.

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– Disseram que ele com certeza estava só a tentar meter -se comigo.Que eu sou demasiado reservada com os rapazes e que tinha de aprendera «gostar de alguém que gostasse de mim».

Fiquei a fi tá -la, atónita. O Erich não fora um namorado em potênciacom excesso de zelo, mas sim um vampiro decidido a persegui -la e amatá -la. A Raquel não sabia isso, mas percebera que ele era perigoso.Se eu tivesse contado aos meus pais que alguém me assustara metade doque o Erich assustara a Raquel, o meu pai ter -me -ia abraçado até que eutornasse a sentir -me segura e a minha mãe de certeza teria atacado essapessoa com um taco de basebol. Os pais da minha amiga tinham -se ridodela e haviam -na enviado de volta para o sítio que ela detestava.

– Lamento – disse -lhe.Ela encolheu um ombro.– Devia ter sabido que não iam prestar -me atenção. Nunca prestaram.

Nem quando eu…– Quando tu o quê?Não respondeu. Em vez disso, sentou -se e apontou com um ar acusa-

dor para a parede atrás de mim.– Então, vamos ter de fi car com o Klimt?Eu tinha pendurado a estampa por cima da cama. O Beijo era tão impor-

tante para mim que me esquecera de que a Raquel nunca o tinha visto.– O quê? Não gostas?– Bianca, esse quadro está tão visto. Há ímanes de frigorífi co e canecas

com essa imagem!– Quero lá saber. – Talvez seja estúpido gostar de uma coisa só porque

toda a gente gosta mas, na minha opinião, é ainda mais estúpido nãogostar porque toda a gente gosta. – É lindo, é uma das minhas coisaspreferidas e está na minha metade do quarto. Por isso, aguenta -te.

– Talvez pinte a minha parte do quarto de preto – ameaçou -me ela.– Isso não seria assim tão mau. – Imaginei colocar estrelas, daquelas

que brilham no escuro, nas paredes e no tecto, como tinha no quarto

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quando era pequena. – Seria fantástico, mesmo. É uma pena que a senhora Bethany não nos deixe fazê -lo.

– Quem diz que ela se oporia? Já fi zeram tudo o resto para tornar este sítio o mais sinistro possível. Por que não cobrir tudo de preto? – Fui invadida pela imagem mental das torres de pedra da escola em preto luzidio: era quase tudo o que precisava para estar no território do castelo do Drácula.

– Incluindo as casas de banho. Incluindo as gárgulas. Pensava que não conseguíamos tornar Evernight mais assustadora, mas conseguíamos, não?

– Continuaria a ser melhor do que estar em casa. – Os olhos da Raquel fi caram estranhos quando disse isto… tão cansados que, por um momento, pareceu mais velha do que os vampiros que nos rodeavam durante a reunião de boas -vindas.

Queria perguntar -lhe mais coisas sobre o que acontecera com os pais, mas não sabia como. Enquanto tentava encontrar as palavras adequadas, a Raquel falou com brusquidão:

– Anda lá e ajuda -me a arrumar esta porcaria.– Que porcaria?– A minha tralha.– Ah – exclamei eu, acenando com a cabeça enquanto nos levantáva-

mos e encaminhávamos para as caixas e o bornal dela que estavam num canto. – Essa porcaria.

Depois de fazermos a cama dela e de arrumarmos as poucas coisas que trouxera, a Raquel quis dormir uma sesta. Os pais dela não eram ricos, como a maioria das famílias dos estudantes humanos de Evernight; em vez de ser levada até à porta da academia num sedan luxuoso, tivera deapanhar um autocarro em Boston antes da madrugada, mudar duas vezes de autocarro e esperar por um táxi para chegar à escola. Estava exausta

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e adormeceu ainda antes de eu ter acabado de atar os atacadores dossapatos para sair.

A Raquel está aqui com uma bolsa, pensei. Isso signifi ca que a senhora Bethany, na verdade, está a pagar -lhe para que frequente esta escola. Por que faria ela isso?

Todos os estudantes humanos estão aqui por um motivo, e o caso daRaquel prova que não é por causa do dinheiro. Mas por que será? Será quea Raquel é ainda mais importante do que os outros?

Mais perguntas e ainda nenhumas respostas.Passeei até aos jardins para ver quanto teria Evernight mudado, agora

que os outros alunos tinham chegado. Os humanos falavam ansiosos unscom os outros, fazendo novos amigos, enquanto os vampiros os obser-vavam, lânguidos e desdenhosos.

O meu estômago fez barulho. Era quase hora de almoço. Esperava sera única vampira a pensar em comer enquanto olhávamos para os huma-nos mas, decerto, não era.

– Ei, Binks!Nunca me tinham chamado Binks; porém, soube logo que só uma

pessoa o faria, mesmo antes de reconhecer a voz.– Vic!Ele caminhava descontraído pelos jardins na minha direcção, com um

grande sorriso no rosto. Como de costume, fi zera alguns ajustes ao uni-forme de Evernight; em vez das cores da escola, tinha a gravata decoradacomo uma rapariga havaiana pintada à mão, e trazia o seu adorado bonédos Phillies1 na cabeça. Corremos ao encontro um do outro, abraçámo--nos a rir e ele fez -me girar de tal forma que os meus pés deixaram detocar no chão.

Quando me largou, sentia -me tonta mas continuava a sorrir.

1 Philadelphia Phillies, equipa de basebol norte -americana. (N. da T.)

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– Tiveste um bom Verão? Recebi as tuas fotografi as de Buenos Aires, mas depois não soube mais de ti.

– Depois de toda a diversão à beira -mar, puseram -me a trabalhar. A Companhia Woodson tem um programa de estágios de Verão e o meu pai só dizia: «Tens de aprender como funciona o negócio da família.» Mas quando és um estagiário… Não aprendes como as coisas funcionam. Tudo o que aprendes é como os outros gostam do café. Passei o resto do Verão a tentar lembrar -me de quem queria um café com leite de soja bem quente. Foi mesmo foleiro. E tu? Ficaste aqui encafuada o tempo todo?

– Passámos o 4 de Julho em Washington. Basicamente, a minha mãe arrastou -nos para vermos monumentos e coisas dessas. Mas gostei muito do Museu de História Natural: tinham alguns meteoritos em exibição em que se podia tocar… – A mão do Vic entrou no bolso da minha saia. Fingi que não reparava no envelope que segurava. O meu coração come-çou a bater mais depressa. – Bem, foi divertido. Pelo menos consegui pas-sar uma semana fora daqui, que, apesar de isto ser aborrecido durante o ano lectivo, é bem pior quando fi co aqui praticamente sozinha. – Estava a tagarelar, sem prestar a mínima atenção ao que ia dizendo. – Nalguns fi ns -de -semana fui a Riverton, mas não fi z muito mais. Hmm, pois.

– Temos de pôr a conversa em dia depois – disse o Vic, que como é evidente compreendia que eu não era capaz de pensar noutra coisa senão no item que ele acabara de me enfi ar no bolso. – E se nos encontrássemos depois do jantar? Podias conhecer o meu novo companheiro de quarto. Parece muito fi xe.

– Está bem, claro. – Eu teria concordado mesmo que ele tivesse suge-rido que nos encontrássemos para rapar as cabeças. Sentia a adrenalina a percorrer -me o corpo e a entontecer -me. – Encontramo -nos aqui?

– Podes crer.Sem mais palavras, afastei -me dele a correr, dirigindo -me para o mira-

douro de ferro ao fundo dos jardins. Felizmente, não estavam lá outros alunos, o que signifi cava que ainda o tinha só para mim.

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Subi os degraus e instalei -me num dos bancos. O espesso dossel defolhas de hera protegeu -me dos raios de Sol enquanto eu levava a mãoao bolso e retirava o que o Vic lá deixara – um pequeno envelope branco,endossado apenas com o meu nome.

Por um segundo, não fui capaz de o abrir. Tudo o que conseguia fazerera fi tar a caligrafi a que recordava tão bem. A carta fora -me enviadaatravés do Vic, pelo seu antigo companheiro de quarto.

O Lucas.