Claudio Weizmann

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  • 7/23/2019 Claudio Weizmann

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    UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

    CLUDIO WEIZMANN

    Educao Musical: Aprendendo com o Trabalho Social de

    uma

    Orquestra de Violes

    So Paulo

    2008

    MUSICAL

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    CLUDIO WEIZMANN

    Educao Musical: Aprendendo com o Trabalho Social de

    uma

    Orquestra de Violes

    Orientadora: Prof. Dr. Maria da Graa Nicoletti

    Mizukami

    So Paulo

    2008

    MUSICAL

    Dissertao apresentada Universidade

    Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial

    para a obteno do ttulo de Mestre em

    Educao, Arte e Histria da Cultura.

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    CLUDIO WEIZMANN

    EDUCAO MUSICAL:

    Aprendendo com o Trabalho Social de uma Orquestra de Violes

    Aprovado em

    BANCA EXAMINADORA

    ____________________________________________________________Prof. Dr Maria da Graa Nicoletti Mizukami Orientadora

    Universidade Presbiteriana Mackenzie

    ____________________________________________________________Prof. Dr Ilza Zenker Leme Joly

    Universidade Federal de So Carlos

    _____________________________________________________________Prof. Dr. Norberto Stori

    Universidade Presbiteriana Mackenzie

    Dissertao apresentada Universidade

    Presbiteriana Mackenzie como requisito

    parcial para a obteno do ttulo de Mestre

    em Educao, Arte e Histria da Cultura.

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    Precisamos de desafios para podermos romper os

    obstculos e, para isso, devemos ser insistentes,

    persistir, estudar, dedicarmos-nos com intensidade,

    pedir ajuda, at que se consiga ser bem sucedido. A

    persistncia um aprendizado e a vitria uma

    conquista sobre si mesmo! (Flvia, aluna de 16 anos

    da Orquestra Sinfonia do Cerrado).

    Eu amo a msica e nunca vou abandonar esta veia

    artstica. Gostaria de seguir outra rea, mas o saber

    no ocupa espao (Tamara, aluna de 15 anos da

    Orquestra Sinfonia do Cerrado).

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    Agradeo CAPES/PROSUP pela concesso da

    bolsa de estudos no perodo de janeiro a junho

    de 2008, e ao MACKPESQUISA/RESERVA pelo

    apoio financeiro que viabilizaram a realizao

    desta pesquisa.

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    AGRADECIMENTOS

    Professora Doutora Maria da Graa Nicoletti Mizukami, pela orientao,

    amizade, pelas oportunidades de desenvolvimento profissional e pessoal, que com

    diretrizes seguras e constante incentivo me aceitou e, com sua competncia, me levou

    a concluir este trabalho e a criar novas perspectivas.

    Aos Professores Doutores Ilza Zenker Leme Joly e Norberto Stori pelas valiosas

    contribuies durante o processo de qualificao deste trabalho.

    Ao programa de Ps-Graduao em Educao Arte e Histria da Cultura e todos

    os seus Professores Doutores, pela formao proporcionada dentro de uma exemplar

    proposta acadmica de interdisciplinaridade.

    Ao Professor Doutor Arnaldo Doraya Contier pelas elucidaes conceituais e

    metodolgicas, oferecidas na disciplina de Histria da Cultura deste programa de Ps-

    Graduao e que contriburam determinantemente para os aspectos da Histria Cultural

    desenvolvidos neste trabalho.

    Orquestra Sinfonia do Cerrado e Associao Amigos da Cultura de

    Niquelndia, e todos os seus alunos, monitores, diretores, funcionrios, pais, e

    coordenadora Mrcia Alves Vila Nova, que realizam um trabalho educacional e humano

    do mais alto gabarito e receberam esta pesquisa prestando auxlio e entusiasmo

    inenarrveis.

    Aos Professores Luciano Paulo Alves, James Silvrio Medrado Sobrinho, Diane

    Alves Vieira, Joely Alves da Conceio, Mirian Lopes Guimares e Felipe Eugnio

    Vinhalpela confiana, empenho e unio da equipe pedaggica da Orquestra Sinfonia

    do Cerrado.

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    Ao grupo de estudos e pesquisas dos professores capacitadores que atualmentecoordeno, composto pelos Bacharis, Compositores, Maestros e Professores Thales

    Maestre, Rodolfo Alexandre de Oliveira, Paulo Frederico Teixeira, Flvio Henrique

    Fevereiro Leite, Gabriel Nvia, Joo Luiz Pereira dos Santos, Juliana Castro, Phillipe

    Antunes, Rafael Rodrigues Garcia e Emerson Pereira da Inveno in memorian, pelo

    empenho, criatividade e colaboraes, sem as quais o meu trabalho como educador

    musical ficaria diminudo, ou no mnimo, muito empobrecido.

    Aos amigos Jos Carlos Bertoni, Eduardo Lima, Zmarqs e toda a turma do

    mestrado pelas inumerveis colaboraes.

    s Bibliotecas da Universidade Livre de Msica Tom Jobim, da Faculdade

    Mozarteum de So Paulo, da Universidade Presbiteriana Mackenzie por disponibilizar

    em seus acervos vrias das referncias bibliogrficas aqui pesquisadas.

    Professora Mestra Janete de Andrade Sartori, pelos aconselhamentos que melevaram a buscar esta capacitao de ps-graduao.

    Ao Lar das Crianas da Congregao Israelita Paulista que atravs de sua

    Orquestra Jovem disponibilizou Congressos e Fruns para publicao do artigo

    Responsabilidade Musical referente s atividades programadas deste trabalho.

    Anglo American e suas empresas filiadas, atravs do seu presidente e seu ex-presidente Walter De Simoni e Pedro Paulo Batista e suas equipes, que muito mais do

    que patrocinadores do projeto cultural aqui pesquisado, conhecem cada aluno, diretor e

    professor num empenho pessoal e permanente zelo pela arte-educativa aqui descrita.

    Aos meus pais, esposa e filha, Jos e Lydia, Anglica e Liandra pelo permanente

    sorriso, persistente incentivo e infinito amor dedicados.

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    RESUMO

    O presente estudo mostra as possibilidades educacionais ainda pouco compreendidas

    e exploradas no ensino musical, utilizando para isto os resultados do projeto scio-

    cultural-musical denominado Orquestra Sinfonia do Cerrado. Este projeto foi

    construdo nos princpios da prtica educacional crtico-reflexiva e estruturado nas

    dinmicas do ensino coletivo na sala de aula em comunidades de aprendizagem,

    criando as condies e credibilidade para um trabalho que atendesse s necessidades

    sociais e culturais, respeitando a condio dos jovens e propondo transformaes sem

    perder o foco na qualidade artstica. O profissionalismo, a clareza de objetivos e a

    construo de linguagens e metodologias nortearam a prtica artstico-educativa,

    influenciando o planejamento, o desenvolvimento, o repertrio e os resultados do

    projeto, que tambm ecoam na vida familiar e social dos adolescentes. Esta prtica

    determinou elevados valores de qualidade musical, auto-realizao e conscientizao

    social e humanstica, democratizao e incluso cultural destes jovens de famlias debaixa renda que participam de uma Associao Cultural no interior de Gois. Esta

    pesquisa mostra a complexidade tanto das aes do projeto cultural, que envolvem a

    msica, a aula, o aluno, o professor e a sociedade, como da metodologia utilizada que

    consegue abordar a multidirecionalidade terica necessria para a investigao

    sincrnica dos fatores pedaggicos, histrico-culturais e dos saberes especficos

    musicais.

    Palavras-chave: msica e comunidade de aprendizagem, projeto cultural e

    complexidade, prtica artstico-educativa, educao musical de adolescentes, ensino

    coletivo-investigativo de instrumento.

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    ABSTRACT

    The present thesis seeks to examine the still little understood and under-explored

    potential of music education, based on the analysis of the results of a socio-cultural

    musical project, the Orquestra Sinfonia do Cerrado. This project was built around the

    principles of a critical-reflective educational practice, and structured within the dynamics

    of a collective teaching process pertinent to learning communities, establishing the

    necessary conditions and credibility for work that could attend to social and cultural

    necessities, with a respect for the peculiarities of the young students involved, yet

    without abandoning a strong focus on artistic quality. A drive for professionalism, clarity

    of goals, and the construction of languages and methodologies guided the artistic and

    educational practice, orienting the planning, development, repertoire and results of the

    project, which also had consequences over the social and family life of the participants.

    The project resulted in highly elevated values of musical quality, self-accomplishment

    and social and humanistic awareness of the teenaged students, as well as the political

    and cultural empowerment of these low-income adolescents from an NGO based on thestate of Gois, Brazil. The research here reported shows the complexity of the cultural

    project itself, which ties music, lessons, students, teachers and society together, as well

    as the complexity of the methodology employed in order to deal with the theoretical

    multidimensionality required in order to establish a synchronic investigation of

    pedagogical, historical, and cultural factors, along with the specific musical knowledge

    acted upon.

    Keywords: music; communities of learning; cultural project; complexity; artistic

    educational practice; music education of adolescents; collective teaching.

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    LISTA DE ILUSTRAES

    Quadro 1 Base de Conhecimento- Levantamento nosso feito com dois

    grupos: 1-quinze graduandos de educao musical da Faculdade

    Mozarteum de So Paulo entre 2006 e 2007 durante uma aula

    que ministro da matria Instrumento Complementar I e II

    oferecida aos estudantes do segundo ano. 2- Grupo de

    trabalho e pesquisa composto por sete professores do Projeto

    Orquestras Cidades

    autoria nossa 27

    Quadro 2 Grandes educadores musicais da primeira metade do sculo vintedescritos por Gainza (1998) 29

    Quadro 3 Uma outra anlise musicalautoria nossa 40

    Figura 1 Aluno iniciante do projeto Sinfonia do Cerrado foto Autoria nossa 36

    Figura 2 Desenho de Semp disponvel emhttp://www.site-magister.com/bts/synthese1d.htm acessado em11/12/2007 37

    Figura 3 Trecho de partitura de Carulli - Referncia na prpria pgina 41

    Figura 4 Orquestra Sinfonia do Cerrado no altar do Santurio de Nossa

    Senhora da Abadia do Muqum GO fotoautoria nossa 45

    Figura 5 Alunos e coordenadores administrativos fotoautoria nossa 46

    Figura 6 Aluna do projeto Sinfonia do Cerrado fotoautoria nossa 48

    FigurA 7 Maestro com aluno da Sinfonia do Cerrado - fotoautoria nossa 54

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    Figura 8 Captura de imagem da filmagem em vdeo da Me da Htala

    autoria nossa 56

    Figura 9 A Htala dando entrevista equipe mvel de TV fotoautoria nossa__________________________________________57

    Figura 10 Partitura de Asa BrancaUtilizada na metodologia do Projeto Sinfonia do Cerrado 61

    Figura 11 Partitura de Mulher RendeiraUtilizada na metodologia do Projeto Sinfonia do Cerrado 62

    Figura 12 Partitura de UirapuruUtilizada na metodologia do Projeto Sinfonia do Cerrado 63

    Figura 13 Partitura de Foi Boto SinhUtilizada na metodologia do Projeto Sinfonia do Cerrado 64

    Figura 14 - Partitura de Habanera (violo I)Utilizada na metodologia do Projeto Sinfonia do Cerrado 65

    .Figura 15 Partitura de Habanera (violo 4)

    Utilizada na metodologia do Projeto Sinfonia do Cerrado 66

    Figura 16 Partitura de Tico-Tico no FubUtilizada na metodologia do Sinfonia do Cerrado 67

    Figura 17 leo sobre tela O VioleiroDisponvel em www.cecac.org.br acesso em: 23/02/2008 73

    Figura 18 Cartaz publicitrio da Casa EdisonDisponvel em cifrantiga.wordpress.com acesso em: 10/03/2008 82

    Figura 19 Foto de Francisco Alves

    Disponvel em www.radioclaret.com.br acesso em: 12/05/2008 85

    Figura 20 Foto de GarotoDisponvel em brazilianguitar.net acesso em: 12/05/2008 88

    Figura 21 Foto de Joo GilbertoDisponvel em www2.uol.com.br acesso em: 15/03/2008 92

    Figura 22 Foto de Caetano VelosoDisponvel em marciadistasio.com acesso em: 15/03/2008 94

    .

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    Figura 23 Foto de Gilberto Gil

    Disponvel em www.klickeducacao.com.bracesso em: 15/03/2008 95

    Figura 24 Foto de Roberto CarlosDisponvel em onne.com.br acesso em: 15/03/2008 96

    Quadro 4 Dimenses e contextos autoria nossa 113

    Tabela 1 Comparativo da aula individual com a aula coletivaautoria nossa 171

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    SUMRIO

    1 Introduo 15

    2. Educao Musical Rudos, descompassos e desafinaes 20

    2.1 A harmonizao (e a humanizao) das teorias 27

    2.2 Afinando os discursos o msico e o professor de msica 33

    2.3 O dueto professor-aluno 36

    2.4 Uma outra anlise musical 40

    3 O Palco da pesquisa 45

    3.1 O lcus e os primeiros passos 46

    3.2 Fatores scio-culturais 48

    3.3 O ensino coletivo investigativo (uma sinfonia afinadssima) 52

    3.4 A Me da Htala 56

    3.5 As msicas 60

    3.6 O instrumento genuinamente brasileiro 70

    3.6.1 Uma guitarra rf 73

    3.6.2 Nosso violo ganha o mundo, mas continua mundano no Brasil 79

    3.6.3 O Brasil continua aprendendo violo de um jeito diferente 82

    3.6.4 O violo apaixonado e apaixonante da Era do Rdio 85

    3.6.5 Os dez anos onde tudo aconteceu 92

    3.7 Os solistas do nosso grande concerto 101

    4 Sopranos, Contraltos, Tenores e Baixos (a voz dos pesquisados) 104

    4.1 A voz dos pais e diretores 106

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    4.2 A voz dos alunos iniciantes 118

    4.3 A voz dos alunos intermedirios 126

    4.4 A voz dos alunos avanados 138

    4.5 A voz dos professores 148

    5 Consideraes finais 160

    5.1 Sobre a feitura deste relatrio 161

    5.2 Sobre os projetos sociais 163

    5.3 Sobre a msica nas escolas 164

    5.4 Sobre os professores de msica 169

    5.5 Sobre as futuras pesquisas 169

    5.6 Sobre as escolas de msica 171

    5.7 Sobre a metodologia de ensino 172

    5.8 Sobre a metodologia de pesquisa 176

    5.9 Sobre o autor 179

    6 Referncias bibliogrficas 181

    APNDICE A Instrumentos da coleta de dados da pesquisa de campo 185

    APNDICE B Arquivos em pastas do DVD que acompanha este trabalho 189

    ANEXO A Poesia de Vincius de Moraes 190

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    1 Introduo

    Este estudo objetiva analisar os processos de ensino-aprendizagem de msica

    que ocorrem no Projeto Cultural Orquestras Cidades1 implantado em trs cidades do

    Estado de Gois. O recorte da pesquisa enfoca a cidade de Niquelndia-GO que

    atravs do projeto mencionado criou a Orquestra Jovem e o curso de formao

    instrumental denominados Sinfonia do Cerrado.

    O curso de formao instrumental em violo atende 230 pr-adolescentes e

    adolescentes entre 10 e 17 anos de idade, tendo como critrio seletivo o

    socioeconmico voltado para famlias com renda de at dois salrios mnimos.

    Os alunos so divididos em classes dos nveis iniciante, intermedirio e

    avanado, que recebem duas aulas semanais ministradas em horrio extra-escolar por

    quatro jovens professores da cidade. Os professores fazem um curso de capacitao

    contnua com professores especializados, que visitam a cidade uma vez por ms e

    ministram uma oficina intensiva de trs dias, mesclando encontros com os professores,

    professores e alunos e ensaio geral da orquestra. Os professores especializados

    tambm fazem uma tutoria semanal via e.mail, telefone e correio com envio departituras, livros e textos.

    A orquestra formada pelos alunos tem uma intensa atividade pedaggica, um

    ensaio geral semanal e exerce permanente atuao scio-cultural, apresentando-se em

    entidades, escolas locais, eventos cvicos, religiosos e folclricos.

    O texto apresenta elementos e circunstncias que influenciam diretamente a

    qualidade do ensino e, em termos tericos e metodolgicos, esto ausentes da

    pedagogia tradicional da msica, bem como de trabalhos e pesquisas mais recentes,que no se aprofundam nas entranhas e nas problemticas sociais e culturais o

    suficiente para garantir a democratizao real do ensino musical e sincronicamente a

    qualidade artstica oriunda desta democratizao2.

    1Projeto Orquestras Cidades est inscrito no MINC sob o(s) PRONAC: 02-0687/2004; 03-6119/2005;05-5227/2006; 06-10513/2007, disponveis para consulta no sitehttp://www.cultura.gov.br/apoio_a_projetos/lei_rouanet/acesso em: 23/11/2007.2O conceito de democratizao na educao aqui abordado refere-se ao de trs autores: 1) educarpara a formao reflexa e crtica, e a luta pela justia social de Freire 2) dar voz aos alunos de diferentesorigens tnicas, culturais e sociais de Zeichner 3) educar atravs da formao de Comunidades de

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    Chega-se a esta concluso no momento de vida onde h um acumulo de vasta

    vivncia como pedagogo musical e maestro, que abrange desde as mais renomadasinstituies de ensino musical de So Paulo at o sistema prisional de recuperao de

    adolescentes.

    Como no foram encontradas na bibliografia da pedagogia musical e nos

    trabalhos acadmicos as teorias que dessem conta de questes diversas de ensino,

    procuraram-se esses enunciados em outras reas de conhecimento para trazer novas

    leituras conceituais ao meu cotidiano profissional. Foram encontradas essas fontes na

    rea da Educao, e este encontro levou aos questionamentos:

    Por que, no termo Educao Musical, a palavra Educao no caminha na

    mesma direo e sentido da palavra Musical na dimenso pedaggica da msica?

    Por que aquilo que se l nos autores da educao no aparece em muitos

    meios, planejamentos e metodologias do ensino musical, se, afinal, os educandos so

    os mesmos?

    Por que os professores que se aplicam aos processos mais humanos continuam

    a ser tratados como especiais, intuitivos ou idealistas, se existe uma fundamentao

    terica para as aes de construo de novos conhecimentos, da afetividade e darealizao humana no cotidiano da sala de aula?

    Para responder a estas questes e mostrar as possibilidades do pensar

    educacionalmente em msica, no momento histrico em que a sociedade se reorganiza

    a largos passos em busca de novas abordagens do conhecimento, mostrar-se- o

    trabalho realizado na Cidade de Niquelndia, atravs de dados pr-coletados,

    entrevistas e relatos, e tambm de uma discusso metodolgica para a abordagem

    adequada da pesquisa.

    Este um estudo sobre a prtica pedaggico-musical de uma Orquestra de

    Violes numa ONG da cidade de Niquelndia GO, com uma descrio dos fluxos

    multidimensionais do processo de ensino-aprendizagem, dos planejamentos, das

    crenas e prticas, repertrios e aes artsticas do projeto.

    Aprendizagem, ou seja, processo de ensino-aprendizagem coletivo de Lipman, tanto na dimensoqualitativa das comunidades de investigao, quanto na abertura de maior nmero de oportunidades deacesso ao estudo e para todos.

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    Com isso, puderam-se evidenciar questes que ainda passam desapercebidas,

    tanto pelos msicos quanto pelos profissionais da educao, e disponibilizar conceitosque colaboraram no desencadeamento de novas teorias, por vezes criadas pelos

    prprios professores em suas aes de ensino musical, atravs do rigor cientfico de

    uma investigao complexa: educacional musical cultural.

    Acredita-se que, ao final deste relatrio, ser possvel estabelecer parmetros,

    conceitos, teorias e metodologias que consigam esclarecer ou apontar todas as

    relaes que envolvem e so envolvidas pelo processo de ensino-aprendizagem

    musical.

    Espera-se que esta pesquisa sirva aos jovens professores no trabalho prtico

    com seus alunos, na construo de planejamentos mais humanos e contemporneos e

    no enfrentamento das adversidades que surgem no momento em que esses

    professores preocupam-se com novas formas de pensar e agir e passam por profundos

    dilemas e transformaes nos seus trabalhos em no nosso mundo.

    Este relatrio composto da seguinte forma: O Captulo 1. Introduo,

    contextualiza, justifica e aponta as questes de pesquisa.

    No captulo 2., Rudos, descompassos e desafinaes, concatenam-se os

    processos pessoais que levaram questo de pesquisa com autores afins, mostrando

    a percepo das principais problemticas e inadequaes dos planejamentos nas

    instituies de ensino musical, como as pontes podem ser aproveitadas, a importncia

    do foco no ser humano e no nos contedos e no virtuosismo a qualquer custo.

    Tambm so apontadas as deficincias e limitaes dos mtodos de ensino musical e asuperficialidade do ensino de msica nas escolas formais e nos trabalhos ditos sociais.

    Mostra-se em 2.1. a Harmonizao (e a humanizao) das teorias, a

    necessidade dos entrelaamentos das teorias que vo alm das especificidades da

    msica e dos discursos dos pedagogos musicais, atravs dos eixos de conhecimento

    que aparecem no cotidiano da sala de aula.

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    Em 2.2., Afinando os discursos, (o msico e o professor de msica) apontam-se

    as diferenas entre o profissional professor e o profissional msico, e a distino deabordagem formativa quando o foco o aluno e no a nfase no virtuosismo. Tambm

    mencionam-se alguns cuidados de abordagem nas relaes professor-aluno.

    No item 2.3., O dueto professor aluno, examinam-se as sensibilidades iniciais

    do contato entre o mundo do aluno e os mundos da msica e do professor.

    Em 2.4., Uma outra anlise musical, procura-se evidenciar os enfoques dados

    pelo pedagogo musical quando da escolha ou de uma composio onde o principal

    objetivo o passo necessrio e possvel para os alunos iniciantes. O tema musical

    serve de elemento intermedirio e motivador, sem reducionismo, sem a primazia das

    questes estticas que aparecem progressiva e multidimensionalmente durante o

    processo de ensino-aprendizagem.

    Enuncia-se o princpio de que a pedagogia trata do aluno inapto e a importncia

    de investigar os elos culturais e as origens dos alunos que ainda no despertaram

    totalmente para o estudo pleno da msica. Mostra-se que o pedagogo musical acreditana evoluo de todos e de cada aluno.

    No captulo 3., O Palco da pesquisa, h uma aproximao gradual do lcus, do

    contexto, das famlias, do ambiente e do nosso ator principal: o aluno. Aproximando

    ainda mais, so mostrados detalhes dos instrumentos de estudo deste aluno: as

    partituras e o violo. Descrevem-se os dados de um estudo exploratrio e um

    diagnstico que detecta a presena de fortes fatores humanos, sociais e culturais emtorno, e em conjunto, com os fatores musicais e pedaggicos.

    Em 3.1., O Lcus e os primeiros passos, aparece a Cidade de Niquelndia e

    como surgiu ali o Projeto Sinfonia do Cerrado.

    Em 3.2., Fatores Scio-culturais, explica-se o porque da escolha de

    Niquelndia em funo das manifestaes culturais populares oriundas das diferentes

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    etnias que compem a sua populao e a importncia deste conhecimento por parte do

    professor. Tambm mostra-se como isto incide nas questes pedaggicas musicais.Em 3.3., O ensino coletivo investigativo (uma sinfonia afinadssima), mostra-se

    como e porque da opo pelo ensino coletivo e se esclarece qual a concepo de

    ensino coletivo adotada pelo projeto. Evidencia-se que o ambiente investigativo criado

    nas salas de aula favorecem um alto grau de desenvolvimento musical e cultural do

    aluno, ao mesmo tempo em que impede avaliaes precipitadas do aluno que tem mais

    dificuldades. Tambm aparecem as formas de como uns colaboram com os outros

    mediados pelo professor.

    Em 3.4., A me da Htala, transcreve-se o depoimento de uma me que

    expressa suas alegrias, suas dificuldades, suas dvidas em relao aos filhos que

    estudam no projeto Sinfonia do Cerrado. A maioria das questes abordadas neste texto

    se revela neste depoimento numa amplitude que vai desde as metas da ONU para a

    educao do sculo vinte e um at a simplicidade das primeiras msicas que a filha

    tocou, exemplificadas em 3.5. as msicas. Mostra-se tambm a importncia do violo

    na msica, na sociedade e no projeto cultural em 3.6. O instrumento genuinamente

    brasileiro.

    No Captulo 4., Sopranos, contraltos, tenores e baixos (a voz dos pesquisados),

    h o registro analisado da pesquisa de campo realizada atravs de entrevistas com os

    principais atores da Orquestra Sinfonia do Cerrado. Essas entrevistas foram realizadas

    em cinco Rodas de Conversa, num formato metodolgico muito coerente com as aes

    coletivas do projeto cultural em foco.

    No Captulo 5. Consideraes finais esto as concluses e as possveis

    contribuies.

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    2 Rudos, descompassos e desafinaes

    A experincia educacional de vinte e cinco anos, no ensino de instrumento musical

    para pr-adolescentes e adolescentes, mostrou necessidades e apresentou desafios

    para pesquisar, dominar e aplicar saberes que vo muito alm dos aspectos inerentes

    ao contedo especfico, da prtica e da teoria musical.

    Percebeu-se desde as primeiras aes de ensino que surgiam situaes, na

    prtica das aulas, onde a msica tocada e os estudos dos alunos eram influenciados

    por outros fatores, tais como: a amizade, o aprendizado com o outro, as experinciasextra-aula trazidas por cada um, o mpeto de conseguir fazer cada vez melhor para o

    professor e para a classe, a vontade de ser reconhecido por algo belo que conseguiu

    fazer por conta prpria, a conquista e a alegria de conseguir fazer, a paixo pelo violo,

    o exemplo do professor.

    As escolhas dos repertrios tambm revelaram influncias significativas nessas

    inter-retroaes pedaggicas, principalmente manifestadas pelo encantamento e

    motivao, nas dimenses do querer fazer e do conseguir fazer. comum o alunodeclarar: eu gosto desta msica, porque esta eu sei! Ou ainda quando uma aluna sai da

    aula cantarolando e danando aquela melodia pelos corredores.

    No desempenho da profisso de professor de msica, a primeira experincia

    ocorreu dentro de um trabalho social, gratuito e instalado no anfiteatro de uma escola

    pblica municipal3, onde foi possvel vivenciar e constatar, desde o incio, a imensa

    fora qualitativa do ensino coletivo, contradizendo o paradigma tradicional que institui a

    aula individual de instrumento musical como a nica possibilidade de pleno domnio

    tcnico-musical.

    A concluso inicial foi de que essas situaes, que podem-se chamar situaes

    humanas, surgiam no cotidiano dos trabalhos com a msica, pois se lidava diretamente

    com a sensibilidade, o mstico e a cultura no seu aspecto mais direto: pessoal, familiar,

    religioso, da coletividade mais prxima e da mais distante. Ou seja, num certo momento

    3Escola Municipal de Primeiro e Segundo Graus 1 de Maio: Guaruj, So Paulo, 1984.

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    cabia a suposio de que a msica, em si, teria este poder intrnseco. Swanwick (2003)

    atribui este poder caracterstica metafrica da msica.

    Existe uma mudana metafrica que caminha para alm dos materiaisescutados como se tivessem forma expressiva e dos gestosrealinhados como se tivessem uma existncia independente. Estatransmutao desperta o forte sentido de significncia, tofreqentemente notado por aqueles que valoram a msica [...] mediantetais experincias ideais, desenvolvemos sensibilidade para aprender oser de outras pessoas, a excelncia da forma, o estilo de perodoshistricos distantes, e a essncia de outras civilizaes (p.32).

    Gainza (1988) tambm chama a ateno para este conceito fundamental dapedagogia musical.

    Tanto a receptividade como a capacidade projetiva mediante e atravsda msica supe a existncia de vnculos positivos entre um indivduo eos fenmenos musicais. [...] Uma vez assegurado o vnculo, a msicafar por si s grande parte do trabalho de musicalizao, penetrando nohomem, rompendo barreiras de todo tipo, abrindo canais de expresso ecomunicao em nvel psicofsico, induzindo atravs de suas prpriasestruturas internas, modificaes significativas (p.101).

    A participao ativa do sujeito no ato da musicalizao no mobilizaapenas aspectos mentais conscientes que conduzem a uma apreciaoobjetiva da msica, mas tambm uma gama ampla e difusa desentimentos e tendncias pessoais. Por esse motivo a msica , para aspessoas, alm do objeto sonoro, concreto, especfico e autnomo,tambm aquilo que simboliza, representa ou evoca (p.34).

    Notou-se, num segundo momento e depois de decorridos dez anos iniciais, que o

    aproveitamento e a dinamizao das situaes humanas resultavam em um

    engajamento maior dos alunos com as propostas do curso, e tambm interferiam de

    forma altamente positiva nos aspectos de qualidade, quantidade, tempo de

    permanncia ou menor desistncia, projees de futuro referentes busca de

    universidades e do profissionalismo na rea da msica.

    Apesar de a prtica pedaggica citada poder ser considerada bem sucedida e

    gerar expressivos resultados, havia uma problemtica nas instituies e escolas que

    abrigavam os cursos: as teorias e planejamentos no conseguiam identificar e

    responder dentro dos objetivos, contedos, estratgias e avaliaes s muitas

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    situaes de carter humano e pessoal dos alunos, dos professores e do ambiente de

    ensino-aprendizagem enquanto meio criativo de novas propostas.Dentro da dinmica das aulas surgiam iniciativas inesperadas que no estavam

    previstas no planejamento. Por exemplo: a idia de formar uma orquestra de violes,

    tocar uma msica sugerida pelos alunos ou por um pai, ou ainda por um funcionrio,

    incluir um flautista que irmo de um aluno.

    Essas situaes de ensino surgem tanto dos desafios propostos, quanto pelas

    interaes nos processos de aprendizagem musical que se dimensionam, para alm

    dos contedos especficos do ensino musical. No processo da aprendizagem

    evidenciou-se tambm que cada aluno aprende de uma maneira e evolui por diferentes

    caminhos, trazendo diferentes experincias. Uns aprendem com os outros e o grupo

    forma um sistema auto-regulado com identidade prpria e nica.

    Foi exatamente a que surgiram os primeiros impasses. Como lidar com estas

    questes inovadoras do trabalho pedaggico que surgem naqueles momentos

    inesperados e como planejar o ensino musical de forma a valorizar o que nos mais

    caro: a criatividade?

    H um entendimento equivocado nas instituies de ensino musical conhecidas, eacredita-se que isto deva ocorrer em muitas outras, pois j h tempo o ensino do

    instrumento musical tratado, planejado e avaliado sob a ptica do virtuosismo, do

    talento inato, dos mtodos cognitivistas designativos e nas aulas individuais, ainda

    alheios a muitos avanos e contribuies cientficas, educacionais sociolgicas e

    comunicacionais correlatos, desenvolvidos no sculo vinte, ignorando necessidades

    epistemolgicas mais prementes da nossa poca.

    Gainza (1988) mostra que a viso da pedagogia musical tradicional contradiz oprprio sentido da educao que, por princpio, acredita na evoluo de todos.

    [...] a pedagogia tradicional da msica contribuiu para a difuso , emface da aptido musical, de uma posio indefinida que dificulta econfunde ainda mais o panorama real da relao do indivduo com amsica. Em certos meios ainda se aceita, sem questionar, que osmsicos nascem, no se fazem e que, portanto, a aptido musicalrestringe-se a alguns seres privilegiados. Ento seria apenas porrevelao, e no por um ato de vontade, que se acederia msica, oque parece confirmar-se com a funo mgica destinada msica nas

    comunidades primitivas (GAINZA, 1988, p.36).

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    As conseqncias do primitivismo e desatualizao dos muitos profissionais e

    instituies de educao musical levam a profundas distores nos nveis: terico-conceitual que seguem o mtodo e a linearidade, filosfico que no leva em conta as

    questes humanas, pois direcionado para o individualismo, no sentido de ter apenas

    o indivduo como referncia de desenvolvimento pedaggico, e paradigmtico, pois no

    reconhece o professor de msica como educador e sim como um msico que transmite

    conhecimentos.

    Estas distores disseminam conflitos organizativos e profissionais, pois no

    permitem emergir novos planejamentose aes revitalizadoras atravs da cultura, com

    sucessivas perdas para o indivduo, para a sociedade, para a escola e para o prprio

    meio musical (MORIN, 2005, p.97).

    Ficam ocultas tambm as prticas bem sucedidas de inmeros professores que

    conseguem estabelecer relaes mais profundas com os alunos no que se refere s

    escolhas do educando, influenciadas pela autoridade do conhecimento do educador,

    pela afetividade, pelo exemplo de sua vida e principalmente por um projeto pedaggico

    engajado, original ou audacioso.

    Outro entrave a metodologia de ensino, pois o termo educao musical s aceito e pesquisado no mbito da musicalizao infantil, como se em outras idades no

    fosse possvel uma aproximao da msica. A melhor idade, porm, para desenvolver

    conscientizao e abstrao musical no a infncia e sim a adolescncia, pela prpria

    capacidade de formular questionamentos e auto-organizao, o pr-adolescente sente

    e pensa globalmente, apesar de no ter ainda conscincia das transformaes que j

    comearam a se operar no seu interior (GAINZA,1988, p. 23).

    Permanece tambm uma limitao que incide nos materiais didticos eplanejamentos lineares, focados apenas nos contedos aditivos do conhecimento

    especfico; so pouco atraentes e estimulantes para os alunos. Os livros de partituras

    ou solfejo no passam de releituras requentadas de segunda mo de coisas antigas,

    eurocntricas e afastadas da nossa cultura. Alm disso, so compartimentados e

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    reducionistas4, isto , no dialogam com outras reas do conhecimento, mesmo em

    relao cultura musical brasileira que reconhecidamente to rica.

    O livro didtico deveria ser desafiador, vivo e estimulante para o aluno,conduzir investigao e pesquisa, rico na apresentao deexperincias jovens e no uma verso dessecada da experincia adulta,vibrar com o choque de idias e fazer os contedos irem ao encontrodas mentes das crianas e jovens (LIPMAN, 1995, p.333).

    A nfase conteudista dos planejamentos das escolas de msica tambm no

    permite que ocorra uma real capacitao profissional do aluno para o mercado de

    trabalho atual, que se abre em trs grandes reas: pedagogia, terceiro setor e novas

    tecnologias de informao e comunicao. Nessas reas exigemse saberes

    diversificados, atuais, pedagogias dinmicas, expressividade e capacidade de trabalhar

    em equipes heterogneas, com grande oportunidade de emprego para os futuros

    profissionais da msica.

    Como se no bastasse esta problemtica, h um outro cenrio alm das escolas

    de msica onde surgiu a questo da qualidade do ensino: a msica nas escolas formais

    e nos trabalhos sociais. No s a escola de msica que se fecha para uma amplitudeeducativa, mas as entidades educacionais tambm desprezam a qualidade musical.

    notrio tambm que uma no dialogue com a outra.

    H viso superficial dentro das instituies educacionais e entidades sociais de

    que a educao musical serve de complemento educao formal. Faz-se comum a

    confuso da rea musical com entretenimento, festejos ou atividade ocupacional, um

    passatempo, uma subcultura5para a qual a escola messianicamente se oferece a abrir

    um espao, ou pior, institui-se uma atividade para acalmar as crianas ou tir-las das

    ruas, como bradam alguns projetos sociais.

    A educao musical das escolas pode tornar-se um sistema fechadoquando deixa para trs ou pega os restos de idias e eventos do mundomais amplo.[...]...a contribuio da educao institucional para aeducao musical pessoal poder ser negligente e, inclusive, negativa.

    4Morin define os contedos reducionistas como aqueles descontextualizados em relao s suas origens e a suaspossibilidades, onde o todo est separado da parte e a parte est separada do todo. Reducionismo o oposto deComplexidade (MORIN, 2005, p.13).5O conceito de subcultura para Swanwick (2003) de uma reduo das reais dimenses da cultura e no deve serentendido como a existncia de uma cultura que seja superior outra.

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    [...] Uma conseqncia disto que os estudantes podem ter muito poucointeresse para a msica da escola, vendo-a como uma curiosa

    subcultura musical (SWANWICK, 2003, p.113).

    Dada a capacidade que a msica tem de agregar saberes e aes complexas,

    pode-se supor que a escola pode encontrar na msica as possibilidades

    transdisciplinares dos conhecimentos, e esses caminhos no se abrem atravs de

    atividades paliativas e mornas. Assim foram transformados os muitos cursos de msica,

    informtica, artesanato e a aula de artes.

    Continuam vigentes as infinitas lacunas de uma falida compartimentao dos

    saberes que hoje busca caminhos para se reencontrar com o humano, agora, e mais do

    que nunca, em carter de urgncia, mediante os problemas humanitrios e planetrios.

    Morin (2005) aponta esta problemtica iniciando um de seus textos com a frase de

    Rousseau no seu livro Emlio: Nosso verdadeiro estudo o da condio humana.

    O estudo da condio humana no depende apenas do ponto de vistadas cincias humanas. No depende apenas da reflexo filosfica e dasdescries literrias. Depende tambm das cincias naturais renovadas

    e reunidas [...]. O que estas cincias fazem apresentar um tipo deconhecimento que organiza um saber anteriormente disperso ecompartimentado. Ressuscitam o mundo, a Terra, a Natureza noesque nunca deixaram de provocar o questionamento e a reflexo nahistria de nossa cultura e, de uma nova maneira, despertam questesfundamentais: o que o mundo, o que a nossa Terra. Elas nospermitem situar a condio humana no cosmo, na Terra, na vida(MORIN, 2005, p.35).

    A escola depara-se com um grande desafio que no consegue prover: a

    interdisciplinaridade, que relaciona disciplinas umas com as outras atravs de temas

    transversais, e a transdisciplinaridade, que extingue as disciplinas e pensa todas

    agregadas a sistemas complexos e sua relao com a vida e com o mundo, como a

    Ecologia e o Ecossistema, agregando sentidos intelectuais-perceptivos aos contedos.

    Hoje a compartimentao do conhecimento e a hiperespecializao profissional

    so considerados como o principal problema de formao da nossa cultura e dos

    nossos ncleos educacionais em relao s solues de questes globais,

    humanitrias e ecolgicas que so transdisciplinares (MORIN, 2005, p.13).

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    Verifica-se, dentro da vivncia no ambiente escolar e dos processos de ensino-

    aprendizagem, que a msica estabelece dilogos diretos com a sensibilidade, a tcnica,a histria, a sociologia, a matemtica, a religio, as temticas, o humanismo e a

    criatividade. Esse potencial do ensino musical ainda subutilizado, e at negado, por

    muitos diretores de escolas e faculdades em funo de uma mentalidade ainda

    vinculada ao Mtodo de Descartes (1596-1650) e anlise, que acreditavam na

    eficincia absoluta do conhecimento produzido pela separao e linearidade de

    aprendizado de cada saber.

    Por sua vez, as escolas de msica permanecem totalmente alheias s

    contribuies da educao, produzindo um tipo de ensino artesanal, individualista,

    elitista, duro, sectrio, idolatra e avaliao traumtica. Parece que vivem num mundo

    parte, tanto que a msica est legalmente voltando ao currculo escolar no presente

    momento, e em determinadas escolas de msica e faculdades no h nenhuma

    discusso organizada ou informal sobre este cabal e gigantesco assunto.

    Conforme o que foi brevemente exposto guisa de apontamento, h a

    necessidade de uma investigao mais atenta e criteriosa que permita enxergar que a

    questo da educao musicalpode, e tem que, ser repensada e recontextualizada paraatender a desafios complexos, desenvolver o entendimento das duas linguagens

    educao e msica - e gerar procedimentos renovadores. Mais uma vez, na expresso

    educao musical, parece que a palavra musical anda para um lado e a palavra

    educaopara o outro.

    Nesta investigao sobre uma prtica musical numa ONG da cidade de

    Niquelndia aparecem com muita nitidez os vrios elementos que se agregam ao

    ensino musical com uma descrio dos fluxos multidimensionais do processo deensino-aprendizagem, dos planejamentos, das crenas e prticas, repertrios, das

    vidas dos professores e dos alunos.

    Espera-se que ao mostrar que as diversas teorias coadunam-se fluentemente

    dentro do Projeto Sinfonia do Cerrado, esta pesquisa sirva aos jovens professores nos

    seus trabalhos prticos e na construo de planejamentos que explorem, sem receio,

    todas as belezas e a plenitude, da educao musical.

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    2.1 A Harmonizao (e a humanizao) das teorias

    Antes de pesquisar os processos de ensino-aprendizagem, cabe um exame

    dentro de um panorama geral e apenas para constatao, os eixos dos contedos que

    aparecem ou influenciam o aprendizado dos alunos e as decises diretas do professor

    durante uma aula de msica. Isto pode nos dar uma orientao sobre a complexidade e

    as mltiplas dimenses da nossa pesquisa, sem que se precise com isso aprofundar

    em cada um dos assuntos neste texto. A tabela a seguir foi montada perguntando a

    uma classe de futuros professores de msica quais os assuntos e preocupaes

    pedaggicas que aparecem numa aula6, seguindo o modelo de Shulman (2004, p.92):

    Quadro 17

    6Cf. em Lista de Ilustraes a autoria deste levantamento.7 Ilustraes do quadro 1, da esquerda para a direita: desenho annimo da renascena mostrando a mesa deperspectiva antes do domnio da geometria, retratando uma forma primitiva de desenhar um alade / foto deFrancisco Trrega (1902) / foto de Frank Sinatra e Tom Jobim gravando Garota de Ipanema (1962) / foto daExortao Cvica de Canto Orfenico no estdio do Vasco da Gama (Rio de Janeiro,1942).

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    Shulman, em suas pesquisas a partir da dcada de 1980, realiza amplos estudos

    que buscam saber o que bons professores fazem que os distinguem dos professorescomuns. Sua contribuio fundamental quando mostra perspectivas terico-

    metodolgicas para a investigao do processo de ensino-aprendizagem que formam a

    Base de Conhecimento onde o raciocnio pedaggico envolve vrios aspectos e

    conhecimentos mltiplos, simultneos e no limitados apenas pelo conhecimento

    especfico e imutvel da matria curricular.

    A base de conhecimento para o ensino consiste de um corpo de

    compreenses, conhecimentos, habilidades e disposies que sonecessrios para que o professor possa propiciar processos de ensinare de aprender, em diferentes reas de conhecimento, nveis, contextos emodalidades de ensino. Essa base envolve conhecimentos de diferentesnaturezas, todos necessrios e indispensveis para a atuaoprofissional. mais limitada em cursos de formao inicial, e se tornamais aprofundada, diversificada e flexvel a partir da experinciaprofissional refletida e objetivada. No fixa e imutvel. Implicaconstruo contnua, j que muito ainda est para ser descoberto,inventado, criado. Para Shulman (1986,1987), a base de conhecimentose refere a um repertrio profissional que contm categorias deconhecimento que subjazem compreenso que o professor necessita

    para promover aprendizagens dos alunos. Trata-se de um modelo quefoi desenvolvido considerando o conceito de ensino como profisso,envolvendo delimitao de campo de conhecimento que pode sersistematizado e partilhado com outros: os profissionais do ensinonecessitam de um corpo de conhecimento profissional codificado ecodificvel que os guie em suas decises quanto ao contedo e formade trat-lo em seus cursos e que abranja tanto o conhecimentopedaggico quanto conhecimento da matria.Shulman (1987) explicita vrias categorias dessa base de conhecimento(conhecimento de contedo especfico, conhecimento pedaggico geral,conhecimento do currculo, conhecimento pedaggico do contedo,conhecimento dos alunos e de suas caractersticas, conhecimentos dos

    contextos educacionais, conhecimento dos fins, propsitos e valoreseducacionais) que podem ser agrupadas em: conhecimento do contedoespecfico, conhecimento pedaggico geral e conhecimento pedaggicodo contedo (MIZUKAMI, 2004).

    A assuno de que os mltiplos saberes esto presentes no cotidiano das aes

    do ensino musical j seria um fator importante para se avanar, porm isto implicaria

    em reconhecer que existem diversos fluxos tericos imbricados neste processo e que

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    muitos desses itens listados no quadro 1 ficariam do lado de fora das principais teorias

    da educao musical.Examinando tambm alguns dos autores mais influentes da educao musical

    atravs de uma panormica oferecida por Gainza (1988, p.102):

    A fim de compreender e caracterizar os traos maus, tpicos do que se poderiadenominar de educao musical contempornea, pode-se retornar s primeiras dcadas dopresente sculo (sculo vinte), quando comearam a ocorrer no campo da pedagogia musicaluma srie de transformaes que constituem uma verdadeira revoluo no campo das idias eda prtica pedaggico-musical. Tratou-se ento de recuperar a educao musical das crianas,

    atravs da atividade e da experincia, da vivncia musical, que se achava extraviada no maismecnico e estril dos intelectualismos.Do estudo e desencadeamento do processo encarregar-se-iam destacados pedagogos

    musicais em diferentes pases de Europa e Amrica do Norte. Entre as personalidades maisrepresentativas que decidiram e orientaram a reforma educativa musical, pode-se citar, emprimeiro lugar, o pedagogo suo Emile Jaques-Dalcroze (1865-1950) que com suasdescobertas abalou as bases tradicionais do ensino e aprendizagem do ritmo musical e damsica em geral.

    A partir de 1940 assistiu-se ao nascimento e rpida difuso de importantes mtodosque contriburam para enriquecer e estabelecer ainda mais exaustivamente o panorama daprtica pedaggica. Entre esses se encontra o mtodo Martenot, compositor francs, inventordo instrumento de ondas que leva o seu nome, o qual incorpora importantes recursos para oensino do canto e da iniciao musical, baseados na psicologia infantil e nas tcnicas deconcentrao e relaxamento corporal.

    O compositor alemo Carl Orffrealiza, mais tarde, decisivas contribuies no campoda rtmica, da criatividade de instrumentos musicais didticos e da integrao das diferentesmanifestaes artsticas e expressivas. O compositor e pedagogo hngaro Zoltn Kodlytenta e consegue generalizar o ensino musical em seu pas, aplicando a extraordinriavitalidade e o poder educativo do folclore musical.

    O japons Shinichi Suzuki pesquisa com xito o ensino coletivo de um dosinstrumentos considerados menos aptos para a iniciao musical: o violino. Atravs de umaprtica pedaggica intensiva, que desenvolve em seu pas natal e que logo se difunde pornumerosos pases europeus e americanos, confirma a vigncia de sua tese sobre aimportncia que tem para a educao musical da criana a qualidade de seu ambiente sonoro,que centralizar na figura da me- que segundo se afirma -deve participar ativamente com acriana nas experincias e na aquisio de conhecimentos musicais.

    Entre as personalidades pedaggicas mais destacadas da primeira metade do sculo

    vinte deve-se citar tambm o filsofo e psicopedagogo musical Edgar Willems, de origembelga, que desenvolveu na Sua - ptria do eminente psiclogo contemporneo Jean Piaget -suas bases psicolgicas da educao musical, hoje amplamente difundida no mundo e bemconhecida particularmente na Amrica Latina.

    Quadro 2

    Estudou-se as metodologias e as prticas destes grandes mestres em leituras e

    contatos interdisciplinares com professores que assim trabalham com as crianas e

    tambm atravs de cursos e vivncias adquiridas. So utilizados nas aulas inmeros

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    idias e exerccios inspirados nessas metodologias, que alm de contriburem para a

    prtica, tambm oferecem nveis elevados de percepo do processo pedaggico.Ao participar de cursos, oficinas e palestras ministrados por alguns dos mais

    influentes educadores musicais atuais, foi possvel ter o privilgio de conviver

    brevemente com Swamwik, Koelhuter, Shaffer e Gainza, que estudam a linguagem

    metafrica, expressiva, filosfica e reflexiva da msica nas vivncias de aprendizagem.

    Koelhuter trouxe contribuies para a escuta sensvel, a universalidade por um

    caminho espiritualista e transcendental da msica, mostrando que a arte ocidental

    serviu inicialmente s religies e depois cincia. Hoje a arte deve encontrar um

    caminho que sirva humanidade.

    Gainza preocupou-se em libertar os msicos e alunos dos bloqueios sofridos

    pela sensibilidade e pela criao durante o estudo e durante a vida profissional. Esses

    bloqueios so gerados principalmente nos processos pedaggicos que, segundo

    Gainza, precisam passar por uma total atualizao. uma das mais expressivas

    fundadoras das novas reas da psicopedagogia musical e da musicoterapia.

    Schafer publicou vrios trabalhos originais destinados aos professores, nos quais

    resume suas interessantssimas experincias educativas com jovens e crianas. Talvezo ttulo dessas obras consiga transmitir a atmosfera de inovao e criatividade que

    prima em sua obra pedaggica: O compositor na Aula, Limpeza dos Ouvidos, A nova

    Paisagem Sonora, Quando as Palavras Cantam, O rinoceronte na Aula, O Ouvido

    Pensante, A Afinao do Mundo.

    Apresenta-se aqui um enunciado dos conceitos e contribuies que estes

    autores produziram de forma revolucionria, que so obrigatrios nas nossas aes

    de ensino e guiam muitos momentos desta pesquisa.Falta, porm, educao musical uma teoria que permita que todos estes

    conceitos e teorias sejam utilizados simultaneamente, no em mtodos fechados, em

    nfases especficas, mas que tambm considere que os outros itens enumerados no

    quadro 1 possam penetrar metodologicamente nas aulas de forma inteligvel e no

    casual ou marginal.

    O quadro 1 tambm mostra que os conhecimentos musicais especficos so

    apenas a metade da base de conhecimentonecessria pedagogia musical.

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    Carr, no seu livro Por una teoria para la Educacion, nos guia na superao

    dessa dificuldade ao definir o que uma teoria e quando ela surge:

    Numa regra geral, os problemas tericos aparecem quando algo no oque se cr que . Em outras palavras, surgem quando ocorrem feitosinexplicveis em termos das crenas e dos conhecimentos em uso, e oobjetivo da investigao terica consiste em superar estas discrepnciaselaborando novas teorias que garantam que o que era problemticodeixe de ser. [...] Os problemas educativos surgem quando as prticasutilizadas resultam de algum modo inadequadas com respeito a seu fim(CARR, 1996, p.108, traduo nossa).

    Carr tambm nos mostra que a educao no pode utilizar-se apenas de uma

    nica corrente terica e que as teorias mais interessantes e apropriadas surgem nas

    prprias situaes educativas, pois o fracasso de uma prtica mostra tambm o

    fracasso de uma teoria que acreditava-se ser eficaz nesta prtica.

    Os professores so os melhores transmutadores tericos e produzemteorias baseadas nas suas crenas, vivncias e percepes pessoais.Os professores possuem mais hipteses sobre as suas prticas do queaqueles que os investigam (ZEICHNER, 1993, p.20).

    As idias expostas, sob a ptica de uma abordagem contempornea da

    educao, abrem a possibilidade de uma investigao cientfica sobre a educao

    musical que permite a entrada das questes humanas e dos mltiplos conhecimentos

    nas nossas salas de aula. Novos viticos se abrem para os planejamentos e projetos,

    com construes que valorizam o trabalho e as capacidades dos alunos e

    principalmente dos professores. Ao investigar valores e os mltiplos conhecimentos dos

    atores do projeto podem aparecer alguns dilemas do pensar:

    De cima para baixo X pensar com projetos dos professores

    Linearidade X multidirecionalidade

    Pensamento crtico-reflexivo X mtodo

    Criatividade pedaggica X cognitivismo pedaggico

    Pesquisas culturais X hegemonias culturais

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    H de se aproximar o estudo em direo s dimenses do professor e do aluno,

    na busca de um levantamento mais sutil dos mltiplos saberes necessrios, para terxito nas diversas situaes de ensino e que possam contribuir com o desenvolvimento

    dos alunos, principalmente nos momentos em que eles realmente esto necessitando e

    buscando sua evoluo de vida atravs da msica noutras referncias da vivncia

    musical, ou fala, e no exemplo do professor.

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    2.2 Afinando os discursos o msico e o professor de msica

    Difcil e complicada a tarefa do pedagogo. Um duplo compromisso perante o homem e perante sua cultura exige que viva no presente,compartilhando e compreendendo o mundo exterior e as inquietaesespirituais dos seus alunos, sem descuidar da sua ancestral misso,aquela que consiste em preservar a cultura, rastreando no passado asessncias vivas e resgatveis desse mesmo homem que hoje opreocupa (Violeta Hemsy de Gainza, 1982)

    Uma faceta curiosa, e s vezes tenebrosa, do ensino musical e a da convivncia

    de duas foras apaixonantes: O mito arrebatador da arte e o humano presente epersistente da educao.

    A importncia do virtuosismodos referenciais artsticos e estticos ou o carter

    integral e sem concesses dos saberes musicais especficos no ensino de arte

    inegvel, porm muitas questes esto ausentes do discurso pedaggico musical

    referentes aos percursos possveis para a coexistncia qualificada entre a arte e a

    educao.

    Todos os educadores tiveram suas vises sobre a educao transformadas no

    sculo vinte, numa contextualizao histrica que passou por duas grandes guerras.

    Novas propostas artsticas e epistemolgicas, da psicologia da educao

    transdisciplinaridade, das novas tecnologias sociedade do conhecimento, dos bens

    intangveis s polticas sociais, da indstria cultural ao jogo de poder internacional, da

    responsabilidade social s necessidades brasileiras perante esses desafios.

    A educao musical tambm no poderia ficar nos moldes mestre-discpulo do

    ateli renascentista ou dos conservatrios estruturados no treinamento aditivo-

    cognitivo do sculo dezenove. Os educadores musicais deixaram suas contribuies,como j relatado.

    H, porm, uma pergunta que os atuais jovens professores de msica ainda tm

    muita dificuldade de responder: voc um professor ou um msico? Na maioria das

    vezes a resposta imediata : sou msico, que tambm ensina.

    notrio que, enquanto o professor de msica no se identificar orgulhosamente

    com a sua profisso, permanecero problemas para ele evidenciar para si mesmo as

    suas origens e identidades, e tambm a profisso permanecer desvalorizada

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    institucionalmente e, por conseqncia, socialmente; e isto interessa esta

    investigao. Para lidar com as origens dos alunos, o professor precisa conhecer ereconhecer as suas prprias origens, pois:

    [...]uma das tarefas mais importantes da prtica educativo-crtica propiciar as condies em que os educandos em suas relaes uns comos outros e todos com o professor ou a professora ensaiam aexperincia profunda de assumir-se. Assumir-se como um ser social ehistrico como ser pensante, comunicante, transformador, criador,realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar.Assumir-se como sujeito porque capaz de reconhecer-se como objeto. A

    assuno de ns mesmos no significa a excluso dos outros. aoutredade do no eu, ou do tu, que me faz assumir a radicalidade domeu eu.A questo da identidade cultural, de que fazem parte a dimensoindividual e a de classe dos educandos, cujo respeito absolutamentefundamental na prtica educativa progressista, problema que no podeser desprezado. Tem que ver diretamente com a assuno de ns

    por ns mesmos. isso que o puro treinamento do professor no faz,perdendo-se e perdendo-o na estreita e pragmtica viso do processo.[...] s vezes, mal se imagina o que pode passar a representar na vidade um aluno um simples gesto do professor (FREIRE, 1996, p.41-42,grifo nosso).

    A linguagem artstica tratada no seu mais alto nvel de busca, criao e pesquisa,

    bem como a referncia dos grandes artistas objetivo imutvel. H, porm, de existir

    uma cincia que dialogue diretamente com a evoluo do ser humano, que atue e

    interfira entre o caos referencial e de oportunidades artsticas na vida cotidiana de

    jovens e crianas, e a mgica porta do universo artstico, um procedimento que no

    apenas sirva como elemento intermedirio de iniciao musical, mas entendido como

    uma rea do conhecimento, com produo conceitual e construo estimulante,

    transformadora e de pensamento criativo prprio: A EDUCAO MUSICAL.

    Os discursos, os referenciais e os paradigmas do virtuose e do educador so

    completamente diferentes.

    O virtuose pensa as questes do belo artstico, a subjetividade do indivduo e o

    contato com a obra, a anlise, a arte enquanto possibilidade cientfica e acadmica

    esttica, a experincia esttica do contato com a obra de arte, o belo enquanto fator

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    cultural. Seus referenciais so os grandes artistas, grandes compositores e grandes

    intrpretes.O educador celebra o ser humano, suas evolues mentais, fsicas e espirituais,

    percebe as idades e o desenvolvimento, as fases sensrias, as diferenas de

    personalidade e o encontro com a natureza e a espiritualidade, a escola como a grande

    fonte humanizadora para a sociedade, o contato direto com a realidade do aluno, o

    ensino musical ativo, que interfere no individual e no coletivo do aluno.

    Cabe aqui o cuidado com estas diferenciaes, pois os objetivos dos

    planejamentos destas duas linhas de pensamento tambm so bem distintos.

    O objetivo pela ptica do virtuose a obra, a performance, a perfeio, a

    sublimao, a esttica, o conceito.

    O objetivo da educao desenvolvimento pleno do aluno.

    A arte do virtuose a sua obra, performance e criao.

    A arte do professor de msica tambm uma pessoa, um ser humano. Sua obra

    o aluno.

    O professor aqui apresentado sabe como valorizar a msica e como valorizar o

    aluno, e isto o diferencia e diferencia o projeto cultural dos outros que no funcionam

    nem musicalmente, nem humanamente.

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    2.3 O Dueto professor-aluno

    Quando um msico entra na sala de aula, ele no mais um msico, um

    professor de msica! Um professor que tambm toca muito bem um instrumento, um

    Educador Musical e no um pseudomusico que ensina para sobreviver.

    [...] uma das maiores diferenas entre a pedagogia antiga e a moderna a capacidade ativa e a sensao de poder que o professor sente dianteda msica. Professor no que teve condies de lidar de outramaneira com a msica, mas sim aquele que ensina ativamente, na

    prtica, como se fazem as coisas. [...] No questo de proceder como,por exemplo nas aulas tradicionais de ditado musical, onde o professorse limita a repetir passivamente cinco vezes seguidas a mesma frase,sem dar aos alunos alguma ajuda concreta (GAINZA, 1988, p.54).

    O posicionamento do professor importante, no apenas perante a msica, mas

    tambm em relao ao aluno que estar sob os seus cuidados, pois esta relao

    imediata inicialmente mais forte do que a relao do aluno com a msica, em cujo

    trajeto, ele ainda dar o primeiro passo.

    O primeiro contato do aluno, de qualquer idade,

    com o instrumento lembra muito mais uma cena

    infantil, at manifestada pela sua postura corporal

    respirao e olhar, do que uma obra de arte.

    Ns mesmos j passamos por inmeros

    momentos na vida onde isto ocorreu. Quando

    aprendemos a andar, tomar gua no copo, comer com

    talheres. O primeiro contato com o instrumento nada tem a ver com a experincia

    esttica.

    uma experincia fisiolgica.

    O primeiro contato com o professor tambm definitivo. O professor pode parecer

    um gigante assustador e o mtodo algo muito aborrecido. O que ensinado

    provavelmente importa menos que o esprito com que comunicado e recebido...

    Figura 1 foto de aluno iniciante doProjeto Sinfonia do Cerrado

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    [...] No h mais professores; apenas uma comunidade de aprendizes.[...] naturalmente o professor diferente, mais velho, mais experiente,mais calcificado. o rinoceronte na sala de aula, mas isso no significaque ele deva estar coberto com uma couraa blindada. O professorprecisa permanecer uma criana (grande), sensvel, vulnervel e abertoa mudanas. A melhor coisa que um professor pode fazer colocar nacabea dos alunos a centelha de um tema que a faa crescer, mesmo

    que este crescimento tome formas imprevisveis. [...] Muitofreqentemente, o ensino responde a questes que ningum faz(SCHAFER, 1991, p.282).

    No trabalho com o ensino de msica, muitos outros aspectos ligados

    sensibilidade entram em questo na formao do aluno. No h apenas resultados no

    aprendizado dos contedos especficos e no so possveis avaliaes precisas em

    curto prazo. Podemos perceber apenas alguns indicadores do momento futuro da

    orquestra e dos seus alunos.

    Ao lecionar principalmente para crianas e adolescentes, a avaliao tambm

    evolutiva, se d por vrios critrios. Alguns alunos logo manifestam grande talento e

    engajamento com o estudo e trabalho artstico almejando seguir o curso superior de

    msica, mas os resultados vo muito alm disso. Muitas crianas mudaram

    decisivamente sua viso de mundo e de si mesmas, manifestadas em atitudes e relatos

    surpreendentes dos pais e educadores. Muitos caminhos se abriram. Isto o que vale!

    O virtuose bem-vindo, mas ovirtuose conseqncia e no objetivo.

    Figura 2 desenho de Semp

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    Uma vez descrita a importncia do posicionamento do professor e seus

    objetivos, falta aqui estudar um outro aspecto pouco presente nas investigaeseducacionais: as responsabilidades dos alunos, pois s existe evoluo se os

    compromissos gerados forem mtuos. A maior parte dos discursos educativos recentes

    coloca as responsabilidades do aprendizado nos professores, nos planejamentos, nas

    teorias e nos organizadores do ensino. Esquece-se da parte do aluno a da famlia.

    Assim como o professor deve saber responder a pergunta por que que

    fazemos o que fazemos na sala de aula? (ZEICHNER, 1993, P. 19 e NVOA, 1995,

    p.16), o aluno deve ser formado, desde o incio, para a auto-reflexo, pois este aspecto

    que no pertence ao conhecimento especfico da matria curricular, influenciar em

    todas as decises do aluno e por conseqncia guiar todo o seu trajeto de

    aprendizado. um acordo, um compromisso, uma aposta.

    Uma estratgia traz em si a conscincia da incerteza que vai enfrentar e,por isso mesmo, encerra uma aposta. [...] A aposta a integrao daincerteza f ou esperana. A aposta no est limitada aos jogos deazar ou aos empreendimentos perigosos. Ela diz respeito aosenvolvimentos fundamentais de nossas vidas (MORIN, 2005, p.62).

    Esta concepo geradora de compromissos e responsabilidades incide na

    definio do que esperamos dos nossos alunos na msica e na aquisio de

    autonomia e futura cidadania. Queremos um aluno curioso, participante, envolvido,

    pesquisador, comprometido. Repleto de alegria, generosidade e esperana. Um dos

    principais ensinamentos para o aluno, que h momentos em que tudo depende

    tambm do seu esforo.

    nesta sutileza dos compromissos, responsabilidades, apostas, exemplos dodueto professor-aluno que reside um dos aspectos mais belos do que Freire (1996)

    chama de uma esttica para a educao. E por isso, ...

    [...] que ensinar no transferir contedo a ningum, assim comoaprender no memorizar o perfil do contedo transferido no discursodo professor. Ensinar e aprender tm que ver com o esforometodicamente crtico do professor de desvelar a compreenso de algoe com empenhoigualmente crtico do aluno de ir entrandocomo sujeito

    em aprendizagem, no processo de desvelamento que o professor ou

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    professora deve deflagrar. Isso no tem nada que ver com transfernciade contedo e fala da dificuldade mas, ao mesmo tempo, da boniteza da

    docncia e da deiscncia (p.118, grifo nosso).

    Uma vez identificados, o professor e o aluno desta pesquisa, segue uma

    apreciao sobre a msica que se ensina e a msica que se aprende.

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    2.4 Uma outra anlise musical

    A escolha de uma pea musical como contedo ocorre mediante uma anlise

    prvia da obra e a empatia com o grupo. Esta anlise, porm no apenas musical.

    Provavelmente os desajustes das partituras usadas no ensino musical causem

    muitos problemas, no s pelas exigncias de ordem gramatical, mas sim do que e

    de como est escrito.

    Os Estudos para Violo de Carulli (que viveu entre 1770 e 1841) mereceriam

    uma investigao mais aprofundada neste sentido, pois suas obras revelam nitidamentea preocupao pedaggica focada no aluno iniciante e nas dificuldades. Percebe-se em

    sua obra a clara preocupao metodolgica que o autor estabelece no grau de

    dificuldade de leitura e do manuseio do violo, com objetivos bem especficos para

    cada fase e cada avano.

    Quadro 3

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    Suas obras so, ao mesmo tempo, desafiadoras e acessveis, didticas e

    atraentes, muito bem construdas musicalmente, e ainda esto em afinao com aslinguagens renovadoras ou dialogando com formas musicais interessantes de sua

    poca. Este pensamento nos mostra a presena de preocupaes pedaggicas em

    interseco com a fluncia da arte musical, permitindo que seus alunos transitassem

    em nveis de musicalizao e tcnicos, ambicionados numa determinada fase do

    ensino, sem que fosse preciso abrir mo do prazer e da beleza musicais.

    Neste trecho do belssimo Estudo em L menor8, hoje ainda utilizado na

    pedagogia violonstica mais por tradio do que pela epistemologia proposta pelo autor.

    Carulli limita metodologicamente o uso do violo na posio de casa 1, isto , utiliza

    apenas as quatro primeiras casas do brao do violo e uma escrita musical, onde a

    localizao das notas na pauta e no instrumento exigem apenas um conhecimento

    inicial do aluno, sem entrar nas tessituras mais agudas e utilizando os graves sempre

    com as cordas soltas na primeira parte da obra. Esto presentes as alternncias

    tcnicas das escalas, acordes e arpejos, as quais encerram o principal objetivo

    pedaggico deste estudo, sem perder a graa e a leveza meldica, rtmica e harmnica

    da mais singela forma cano ternria A-B-Ado perodo clssico.

    8Carulli F. Metodo Completo per Chitarra;G. RICORDI & C. Editori, Milano - p.18.

    Figura 3 partitura do andante em Am de Carulli

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    As obras de Carulli sempre contribuem para o acrscimo de alguma tcnica ou

    compreenso musical que o aluno ainda no tinha. Neste sentido, Carulli j incorporavao conceito de conhecimento pedaggico do contedo.

    A referncia que Carulli nos oferece importante, pois mostra que o ato de

    tornar um estudo acessvel no significa uma simplificao mutiladora dos aspectos

    expressivos e culturais de uma msica em funo de enxergar o universo infantil com

    uma reduo do universo adulto, ou pior ainda supor que para tocar uma msica

    preciso superar metodicamente a leitura de cada nota, cada figura musical, cada

    acidente para muito depois ter o direito de tocar uma msica. Este erro de pensamento

    focado na linearidade e no reducionismo que leva o aluno, at hoje, a ter que fazer

    exerccios repetitivos e inexpressivos. o principal caminho da frustrao e da

    desistncia.

    Carulli foi um grande compositor. No queria, com seus estudos, negar os

    exerccios necessrios ao desenvolvimento tcnico-mecnico, mas diferente o mundo

    do aluno que j est consciente desta importncia e daquele que ainda no est. H o

    aluno que j se definiu, mas tambm h o brilhante talento do aluno que ainda est

    experimentando ou o futuro melhor aluno da turma que ainda no superou algumadificuldade inicial.

    Para um aluno que j possui uma percepo musical superior, os estudos de

    Carulli podem parecer enfadonhos, porm para o aluno que tem dificuldades iniciais

    mais acentuadas estes estudos conseguem gerar pontes para um futuro envolvimento

    superior. No foram poucos os alunos com dificuldades iniciais que vi superarem

    musicalmente os que tinham facilidades.

    Neste sentido, Gainza nos mostra que a verdadeira pedagogia musical acreditano aluno inapto.

    Um professor se dedica principalmente queles que tm problemas. [...]Os gnios, como bem sabemos so poucos; o problema residiria, entoem como proceder para dar vigor ao inexpressivo e maior rigor tcnicoao mais sensvel ou ao mais impulsivo. Nisto consiste o enfoque da atualpedagogia, que no permanece impassvel ou inativa diante darealidade do educando (GAINZA p.54 e p.72).

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    Na viso anrquica, sbia e bem humorada de Schafer, o aluno inapto merece

    no apenas uma ateno especial na pedagogia, mas tambm os crditos de algunsdos momentos mais criativos do aprendizado e at da histria da msica ocidental

    (SCHAFER p.280-281).

    Talvez alguns dos mais excelentes recursos musicais possam serresultado da limitao da inteligncia humana e no da inspirao. Porexemplo, aceita-se geralmente que o organum medieval (cantado emquartas e quintas paralelas) tenha surgido quando alguns membros dogrupo de cantores enganaram-se quanto altura das notas docantocho. Da mesma forma, senso comum que o cnone nasceu

    quando algumas vozes se atrasaram, ficando atrs das vozes principais.Se isso for verdade, poderamos concluir que o organum foi invenodos desafinados enquanto o cnonefoi a dos lerdos (SCHAFER p.280-281).

    Esta observao de Schafer revela tambm o quanto pode ser criativa a ao

    pedaggica na sala de aula se as situaes forem bem mediadas pelo professor. As

    contextualizaes da sala de aula sero abordadas no captulo 3.

    Na escolha e aplicao dos contedos reside grande parte do despertar detalentos e do gosto musical. A boa escolha das msicas no depende do gosto pessoal

    do professor, ou seja, h um parmetro metodolgico para isto.

    A boa obra no pode ser difcil de mais a ponto de no poder ser aprendida, nem

    fcil demais a ponto de no gerar desafios, causar desinteresse, ou privar o aluno das

    suas verdadeiras e futuras capacidades de evoluo. Quando a obra musical ensinada

    sintetiza saberes, curiosidades e significantes, os alunos e alunas saem cantarolado-a e

    danando pelos corredores.

    Outro fator metodolgico, como j foi visto, o potencial metafrico da obra musical

    escolhida para os estudos. Este potencial est ligado aos significados da msica em

    relao histria cultural, que descortina a contextualizao temporal do aluno, na

    curiosidade despertada pelos choques culturais que ocorrem no cotidiano, na poltica,

    nos costumes, no hilrio ou dramtico de cada poca e local.

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    As teorias dos principais educadores musicais esto focadas no aspecto do

    desenvolvimento do aluno, num sentido psicolgico, cognitivo, sociabilizante, folclrico,perceptivo, afetivo, criativo e humanstico. Porm, h um esquecimento investigativo

    da histria cultural que incide nos contedos, nas msicas, ou seja, no centro do

    planejamento e das aes de ensino est a cultura. Parafraseando Caetano Veloso:

    Alguma coisa acontece no meu corao, que s quando cruza a Bossa Nova, Bach e o

    Rei do Baio (aluso nossa a Sampa, de Caetano Veloso).

    Apesar da insero da cultura musical no repertrio parecer bvia, isto no

    acontece na pedagogia musical. Um caso exemplar foi o projeto do Canto Orfenico

    que direcionou a educao musical em toda as escolas do Brasil durante trinta e um

    anos, no absorveu sequer uma msica tocada nas rdios9. H ainda muitos cursos de

    instrumento e bacharelados em que a cultura musical brasileira no entra pela porta da

    frente (WERNECK, 1983, p.100 - 101).

    Os significantes esto latentes tambm na dimenso da memria afetiva ligada

    ao folclore, o que Suzuki (1983) chamou de lngua materna. Por isso h um elo

    terico no especial cuidado em valorizar a msica folclrica brasileira que o universo

    lingstico imediato dos nossos alunos, mas no s isto, tambm a valorizao msicade outros povos como forma de conhec-los, reconhecer suas identidades e gerar

    pontes para o reconhecimento das nossas prprias identidades10 tnicas, familiares,

    sociais, brasileiras e planetrias.

    A importncia de o conhecimento pedaggico estar diretamente ligado ao contedo

    e elaborao dos repertrios musicais ser reforada no prximo captulo que mostra o

    ambiente e o lcus da pesquisa onde ocorre o curso de formao instrumental e a

    Orquestra Sinfonia do Cerrado.

    9 Esta verificao pode ser feita no Manual do Canto Orfenico e no Guia Prtico de Heitor Villa Lobos. Aspublicaes oficiais foram distribudas para todas as escolas e encerravam o repertrio que deveria ser utilizadopelos professores em todo o territrio nacional (Ministrio da Educao e Desporto, ocupado durante o governo deGetlio Vargas por Gustavo Capanema).10obs.- a msica de outros povos tambm no penetrou, em nenhum momento, o programa do Canto Orfenico.Atualmente h utilizao das msicas de outros povos nas escolas que divulgam o mtodo Kodly, atravs dasdanas circulares.

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    3 O Palco da pesquisa

    Neste captulo sero mostrados

    o trajeto, as circunstncias, o contexto

    e o lcus da pesquisa e explicado o

    que originou o projeto cultural, quais

    as problemticas iniciais e as aes

    de implantao, as influncias scio-

    culturais e alguns dados pr-coletados

    que indicam a forte presena de

    resultados amplos do processo de ensino-aprendizagem, os quais interessam para

    responder questo de pesquisa11.

    Tambm ser mencionado o cuidado valorativo que o autor e toda a equipe

    diretiva, administrativa e pedaggica, tiveram que tomar para o desenvolvimento

    contnuo do projeto cultural. Para tal, sero utilizados dados do estudo exploratrio

    realizado na cidade de Niquelndia e com o grupo de professores tutoriais queministram o curso de formao dos professores locais.

    11Cf. RESUMO

    Figura 4 Foto da Orquestra Sinfonia do Cerrado em concertona Igreja de Nossa Senhora da Abadia do Muqum

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    3.1 O Lcus e os Primeiros Passos

    Esta investigao ocorrer no Projeto Sinfonia do Cerrado, implantado desde

    outubro2002 na Associao Amigos da Cultura de Niquelndia [AACN].

    Niquelndia situa-se no estado de Gois, a 250 Km de Braslia e 340 Gainza Km

    de Goinia, o acesso por rodovias recentemente asfaltadas BR 414 e 153, GO 237 e

    327.

    Niquelndia foi fundada em 1735 com o nome de So Jos do Tocantins. Antes

    da fundao a regio era habitada pelos ndios Avacanoeiros, que ocupavam uma

    vasta regio desde o norte at o centro-sul de Gois. O potencial mineral da regio foi

    descoberto na dcada de 1960 quando a cidade mudou o seu nome. Niquelndia tem

    como principal fonte econmica a extrao de Nquel e Cobalto, possui 50.000

    habitantes, no tem cinema nem teatro, conta com 6 escolas municipais, 6 escolas

    estaduais e 5 particulares, 4 hospitais e 4 postos de sade.

    Sinfonia do Cerrado12

    um pseudnimo artstico dadopelos prprios dirigentes da

    AACN para um projeto cultural

    com a msica denominado

    Orquestras Cidades

    implantado, por iniciativa e

    patrocnio de uma grande

    empresa mineradora, em trscidades do interior de Gois,

    nas quais a empresa possui

    stios de extrao e

    beneficiamento mineral.

    12Cerrado umtipo de vegetao de mdio porte e ecossistema predominante na Regio Centro Oestedo Brasill.

    Figura 5 Foto dos alunos e professores com uniforme na sala de aula e aofundo os logotipos da orquestra, do patrocinador e do Ministrio da Cultura

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    O autor foi convidado para elaborar e coordenar o projeto Orquestras Cidades

    pela assessoria da presidncia da empresa na cidade de So Paulo em 2000. Nestaocasio a empresa detectava a problemtica da falta de atividades que mobilizassem

    culturalmente e socialmente os jovens nas cidades de Gois onde esto instaladas as

    usinas de extrao e beneficiamento mineral. De acordo com o presidente da empresa,

    havia grandes problemas com o cio, envolvimento com drogas, criminalidade juvenil e

    falta de perspectivas de auto-realizao na faixa etria dos 10 aos 18 anos (pr-

    adolescncia e adolescncia).

    A implementao do projeto Orquestras Cidades ocorreu inicialmente na

    Fundao Esprita Nova Vida na cidade de Catalo em 2001 atravs dos benefcios da

    Lei de Incentivos Cultura MINC, com trs metas operacionais gerais: a implantao

    de um curso de formao instrumental gratuito para 120 adolescentes, um curso de

    capacitao contnua para 4 professores da cidade e fazer a estria da orquestra

    pedaggica de violes no prazo de um ano. Este mesmo modelo operacional foi

    implementado em 2002 na cidade de Niquelndia e em 2004 na cidade de Barro Alto,

    todos com a preocupao de atender s problemticas sociais sem abrir mo do

    respeito, percepo, valorizao e utilizao pedaggica das culturas locais que sediferenciam nos trs stios do projeto.

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    3.2 Fatores scio-culturais

    A escolha de Niquelndia como recorte da pesquisa ocorreu devido

    diversidade cultural local e tambm dificuldade de acesso e contato com as obras de

    arte no locais, pela inexistncia de teatros, cinemas e centros culturais na cidade.

    Niquelndia possui manifestaes culturais permanentes e de grande significado

    tradicional, oriundo de diversas culturas tnico-histricas, e que nos revelam tambm as

    origens do seu povo e seus costumes.

    Das origens indgenas h a Festa do Divino e as Folias de Reis que ocorrem no

    ms demaio. Das origens africanas e quilombolas ocorrem as congadas no ms julho e

    a romaria do Muqum no ms de agosto, a qual considerada uma das maiores

    romarias brasileiras com cerca de 80 mil fiis durante 15 dias. Nossa Senhora do

    Muqum protetora do antigo quilombo situado no local do atual santurio erguido em

    2003 com capacidade para acolher 27 milpessoas.

    Este estudo exploratrio sobre a presena de fatores culturais que expressam as

    origens tnico-histricas fundamental para abordar esta pesquisa, pois quando

    lidamos com alunos oriundos de diferentesetnias, ndios, negros entram em questo

    os valores e linguagens pertinentes ao

    preparo cultural dos professores.

    Isto interessa nossa pesquisa, para

    mostrar uma questo do ensino musical que

    no est inscrita nas metodologias de

    ensino da msica, e que ainda no foisuficientemente aprofundada pelas teorias

    dos educadores musicais e pelos trabalhos acadmicos, mesmo os mais recentes.

    Algumas pesquisas atuais e os Parmetros Curriculares Nacionais [PCN] de Artes,

    elaborados pelo Ministrio da Educao em 1997, chegam a propor repertrios de

    origens tnicas e cuidados com as identidades de forma genrica, porm o nosso foco

    o dilogo direto com os alunos e a comunidade enquanto sistemas organizativos e

    valorativos nicos e indivisveis, com qualidades especficas de um todo contextual.

    Figura 6 Foto da aluna do nvel intermedirio eintegrante da Orquestra Sinfonia do Cerrado

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    No h duas situaes com a mesma qualidade de penetrao (LIPMAN, 2001, p.333-

    334).Valores e linguagens das chamadas minorias tnicas tambm influenciam um

    grupo que est diretamente ligado ao ambiente desta pesquisa:

    O aluno de famlia pobre.

    Zeichner (1993, p.14-15) nos mostra a necessidade do aprofundamento

    necessrio aos cuidados com a situao social da criana como ateno primordial do

    professor, e tambm a inadequao das reformas educativas de cima para baixo, nas

    quais os professores aplicam passivamente os planos desenvolvidos por outros atores

    sociais, institucionais e/ou polticos.

    Toda a minha experincia em escolas oficiais enquanto estudante,professor e formador de professores, teve lugar em escolas onde ascoisas s poderiam correr normalmente se houvesse muita reflexo porparte dos professores. [...] Tambm tenho desenvolvido esforos parapromover a causa da profissionalizao dos professores em paralelocom a construo de uma sociedade mais justa e descente. Na minha

    opinio, os dois conceitos (a profissionalizao dos professores e umasociedade mais justa esto necessariamente ligados. Apesar de todosos progressos feitos na divulgao do uso de mtodos de ensino quebuscam a resposta do aluno, como a instruo da lngua, a abordagemdo processo de ensinar a escrita, o ensino da mudana conceitual eoutras verses atualmente em moda de uma prtica de ensino muitoesclarecida, no podemos ter a veleidade de dar o mesmo ensino dequalidade a toda a gente. Muitas crianas, sobretudo pobres e de cor,continuam a ser deixadas para trs pelas reformas educativas. Um dosgrandes temas do meu trabalho tem sido a minha tentativa de relacionaro desenvolvimento do professor com a luta pela justia social para todasas crianas.

    Zeichner cita Hillard e Ellwood para denunciar o problema13, que ele chama de

    ignorncia cultural dos educadores em relao s expresses lingsticas oriundas da

    voz dos alunos. Esta questo extremamente relevante, no apenas por uma razo

    13A pesquisa de Zeichner foi realizada nos Estados Unidos da Amrica, porm pertinentementetraduzvel e relevante num sentido amplo que aborde outros pases e grupos humanos minoritrios ouexcludos culturalmente. A leitura ampla da pesquisa de Zeichner atingiria, por exemplo, a linguagem dosrepentistas nordestinos ou dos afros-descendentes baianos, entre inmeras outras.

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    humana e tica, mas porque o saber da lingstica vai influenciar diretamente no

    entendimento e nas escolhas dos contedos programticos e dos repertrios musicais.

    Para que os professores tenham xito nos trabalhos a desenvolver comos alunos de culturas diferentes das suas, imprescindvel que oprograma de formao proporcione muito mais do que simplesmente aintelectualizao de questes interculturais. O desenvolvimento dosprofessores, nesta rea, s possvel se o seu prprio comportamentonum ambiente intercultural for alvo de avaliaes e experimentaes(HILLARD, 1974, pp. 49-50, apud. ZEICHNER, 1993, p.102).

    Se os alunos mestres estudassem lingstica durante tempo suficiente

    para perceberem que, por exemplo, um dialeto afro-americano temtantas regras e to lingisticamente sofisticado como o dialetoconhecido por anglo-americano padro, mostrar-se-iam menosinclinados a considerar seus alunos pouco inteligentes s porque falamum dialeto diferente. Se estudassem tambm a histria e a literaturaafro-americana, apreciando o imenso amor lngua que percorre acultura afro-americana, seriam capazes de reconhecer, nos seus alunosde cor, uma aptido e uma fora lingstica que poderiam seraproveitadas nas aulas...(ELLWOOD, 1990, p.3, apud. ZEICHNER,1993, p.103).

    Vemos isso aparecer, por exemplo, na declarao de amor de Tiro ao lvaro

    (Adoniran Barbosa, 1960) onde a sua maneira de se expressar reflete a voz popular e

    do homem pobre. exatamente por isso que Adoniran, s vezes tratado apenas como

    alegoria, passa a agregar um valor forte quando da escolha das suas obras enquanto

    contedo pedaggico e repertrio dos alunos.

    De tanto lev frexada do teu olh

    Meu peito at

    Parece sabe o qu?

    Tauba de tiro ao lvaro

    No tem mais onde fur, no tem mais......

  • 7/23/2019 Claudio Weizmann

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    Em Foi Boto Sinh (1933), Waldemar Henrique compe uma situao em que

    um negro relata a dois brancos sobre a tragdia de uma ndia num mito amazonenseconhecido como a Lenda do Bto:

    Tajapanema choro no terreiro

    Tajapanema choro no terreiro

    E a virgem morena

    Sumiu no costeiro

    Tajapanema vort a chor

    Tajapanema vort a chor

    Quem tem filha moa

    bom vigi

    fio bto sinh,

    foi bto sinh

    qui veio tente a moa lev

    no tar danar

    Aquele dout

    era um bto sinh

    era um bto sinh

  • 7/23/2019 Claudio Weizmann

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    3.3 O Ensino coletivo investigativo - uma sinfonia afinadssima

    O fato de estarmos atentos a estes valores e s origens tnicos-culturais e scio-

    econmicas no significou a busca de um planejamento e metodologias de ensino

    especficas para estas crianas e jovens, mesmo porque isto significaria a separao

    enquanto grupo diferenciado esgotando grande parte das pontes de dilogo14 com

    diversas culturas, o que tambm reforaria os preconceitos e designaes j existentes.

    neste ponto que tivemos que entender o que significa incluso social, e as aes que

    levam realmente realizao desta incluso e na maneira de investigar a comunidade

    de aprendizagem, pois o projeto social acredita nos alunos e deve ter expectativas

    elevadas (ZEICHENER, 1993, p.84, grifo nosso). A maior incluso cultural a da

    valorizao humana e de todos os seres humanos.

    O primeiro elemento comum de muitas opinies contemporneas, arespeito da eficincia dos professores junto aos alunos, o fato de osprofessores acreditarem que todos os alunos podem ser bem sucedidose comunicarem esta convico aos seus alunos (p.85).

    Alguns cuidados foram tomados nas dimenses de seleo, metodologia

    planejamento e principalmente na estruturao das classes e condutas de atividades as

    quais chamamos de Ensino Coletivo, e Lipman (2001) chama de Comunidade d