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72 Revista da EMERJ, v. 7, n. 26, 2004

Cláusulas Contratuais Gerais, Cláusulas

Abusivas e o Novo Código Civil

JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO

Professor da Universidade de Lisboa

1. A génese do �contrato de adesão�A problemática que nos propomos versar só se apreende devida-

mente se tivermos presente a viragem radical que no plano da funda-mentação da validade dos negócios jurídicos foi realizada no séc. XVIII.

Anteriormente, a vinculatividade dos contratos estava dependen-te de um controlo da  sua  Justiça  intrínseca. De  tal maneira que,  naIdade Média, Justiça e Direito quase se confundiam.

Mas o voluntarismo germina e desenvolve-se, acabando por seracolhido como a causa geral da vinculatividade do Direito. No planodos contratos, trouxe a fundamentação destes na autonomia da vonta-de. O contrato vale porque foi querido � pacta sunt servanda.

O individualismo e o liberalismo, a seguir triunfantes, levaram aoextremo esta orientação. O conteúdo dos contratos torna-se irrelevante:a obrigatoriedade destes assenta no consentimento, pois se a parte con-sentiu, não se pode desvincular.

O relativismo, o positivismo e o formalismo, que se desenvolvemdo séc. XIX e persistem até hoje, dão um bom caldo de cultura para estavisão. Só um vício do consentimento pode pôr em causa a validade docontrato.  A  Justiça  é  incognoscível:  não  é  operacional  comodeterminante da validade dos contratos.

Mas logo a partir do séc. XIX este paradigma começa a ser postoem causa, pelos resultados a que conduz.

Para o nosso tema, interessa-nos particularmente o que respeita aoque  se  chamou o contrato de adesão. A  sociedade  industrial  trouxe asgrandes concentrações urbanas e profundas desigualdades. Nasce a soci-edade de massas. E nesta, é impossível manter a negociação individualiza-da dos contratos. Grande número de contratos passa a ser predisposto

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pela parte económico-socialmente mais forte, de modo que aos destinatá-rios só resta aderir ou abster-se. O diálogo particular desaparece.

Mas poderá ainda falar-se, nessas circunstâncias, em contrato?A que fica reduzida a autonomia privada?

De facto, não há para o aderente liberdade de criação de tiposnegociais, nem liberdade de estipulação. Nem sequer há na maior par-te dos casos  liberdade económica de celebração, porque o aderentenão pode prescindir de bens ou serviços essenciais.

Mas há a liberdade jurídica de celebração. Desde que o aderenteconsentiu, fica vinculado. Pacta sunt servanda.

A discussão desloca-se então, no séc. XIX e em todo o séc. XX,para a análise do consentimento do aderente. Pergunta-se se esse con-sentimento tem falhas que inquinem o contrato. Quer dizer, de inícioprocura-se combater as grandes anomalias destes contratos, em que opredisponente se reserva sempre todas as vantagens, através do recur-so a princípios gerais do direito.

Mas apenas se conseguem tímidos retoques, porque as ordens ju-rídicas não ofereciam meios de combate directo a essas situações. Nãohá praticamente cláusulas gerais para controlo do conteúdo dos contra-tos. Só restam por isso os pressupostos comuns dos negócios jurídicos:� a capacidade do aderente� o objecto do consentimento e o conhecimento das cláusulas que estepressupõe� o erro� a interpretação negocial (e a integração).

1) No que respeita à capacidade, suscitam-se problemas em hi-póteses tão banais como a do menor que viaja no ónibus. Como podecelebrar um contrato?

A questão não parece ter encontrado resposta no novo CódigoCivil brasileiro, ao contrário do que acontece em códigos europeus re-centes.

Porém, a dificuldade não é específica do contrato de adesão. Mani-festa-se em todos os actos da vida corrente que são praticados por meno-res. Por isso dispensamo-nos de o examinar especificamente neste lugar.

2) O desconhecimento do conteúdo do contrato representou oponto principal do debate. Como dizer que o aderente consente quan-do as cláusulas lhe são comunicadas após a celebração do contrato?

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Ou quando estão afixadas nas paredes da loja? Ou quando se inseremem letra quase ilegível no verso do formulário?

Por outro lado, realisticamente, revela-se a impossibilidade práti-ca de o aderente conhecer todas as cláusulas, porque se não, não che-ga a contratar: passa o tempo a ler clausulados. Todos nós, juristas ounão, celebramos afinal contratos sem tomar conhecimento das cláusu-las predispostas.

3) Poderia pensar-se em  invocar o erro. Mas, ainda que  fossepossível, não seria remédio adequado. O aderente teria de pedir a anu-lação de cada contrato quando estivesse em erro. O que não é obvia-mente uma solução praticável.

4) No domínio da  interpretação, os melhores autores foram de-fendendo  o  princípio  que  a  interpretação  se  deveria  fazer  contra  opredisponente. Este tem a experiência que lhe permite formular as cláusu-las que o defendam: se uma cláusula é ambígua, só a ele é imputável.

2. A génese das �cláusulas contratuais gerais�Tudo isto foi lento, penoso e insuficiente. A verdade é que os ins-

trumentos gerais não eram adequados para resolver questões inteira-mente novas.

Para além disso, havia uma ambigüidade na colocação da ques-tão. Falando-se em �contrato de adesão�, referia-se a uma modalidadede contrato, caracterizada por ser imposto em bloco sem possibilidadede discussão pelos destinatários. Mas a questão era mais vasta, e dife-rente. Não se tratava de um tipo de contrato, mas de uma categoria decláusulas. Bastava que uma cláusula fosse imposta ne varietur, aindaque todas as outras fossem objecto de negociação, para que a questãoda maior força negocial se suscitasse. Não haveria então contrato (todo)de adesão, mas haveria cláusula(s) unilateralmente imposta(s).

Só com o Código Civil  italiano em 1942 se dá o grande passoneste sentido. Este prevê as chamadas condições gerais dos contratos. Edetermina que as cláusulas onerosas devem ser expressamente aceitas.

Se o avanço foi grande no que respeita à configuração do tema,não o foi na solução trazida. Esta é irrealista: é impossível que nos con-tratos  de  massa,  nos  serviços  fundamentais  como  a  água  ou  aelectricidade, por exemplo, haja uma aceitação individualizada de cláu-sulas predispostas.

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A lei alemã de 1978, chamada AGBGesetz, dá outro passo. Fazuma regulação mais completa, que se tornou paradigmática. E entrana valoração do conteúdo, determinando quando estas cláusulas ge-rais são proibidas.

Há porém que observar que, mais ainda talvez que a proteger oaderente, a lei alemã se destina a assegurar o tráfego jurídico. A primei-ra preocupação é impor que estas cláusulas se integrem no conteúdodo contrato. O critério determinante é colocado na cognoscibilidade:as cláusulas compõem o contrato, desde que ao destinatário seja dadaa possibilidade de tomar conhecimento delas.

Temos assim consolidada a categoria das �condições gerais dos con-tratos�, como cláusulas predispostas unilateralmente para uma generali-dade de pessoas, que não têm possibilidade de discutir o seu conteúdo. Asvárias ordens jurídicas européias foram regulando esta matéria.

A lei portuguesa trouxe um progresso no ponto de vista da desig-nação, uma vez que passou a falar de �cláusulas contratuais gerais�,em vez de �condições gerais dos contratos�. Assim evita o termo condi-ção,  que  é  ambíguo.  Poderia  ter  avançado mais  no  saneamentoterminológico, se tivesse adoptado a epígrafe �cláusulas negociais ge-rais�. Com efeito, pode haver cláusulas inalteravelmente predispostasem negócios unilaterais: seja o caso de valores mobiliários, como osrelativos a derivados (futuros e opções)1.

Ainda  no  domínio  da  terminologia,  falamos  em predisponentepara designar aquele que dita inalteravelmente as cláusulas do negó-cio. Pouco interessa que, no rito negocial, ele apareça como o propo-nente ou o aceitante. Assim, nos contratos de seguros, a companhiasurge formalmente como o aceitante de propostas que lhe são dirigidas.Mas é ela quem predispõe unilateralmente as cláusulas, e por isso é opredisponente.

Do outro  lado  está  o aderente.  A  sua  posição  é  sempre  a  deaderente  às  cláusulas  contratuais  gerais.  A  designação  não  implicaqualquer retorno à figura do �contrato de adesão�.

De  todo o modo,  a  disciplina  das  cláusulas  contratuais  geraisevoluiu a partir daí no sentido de se concentrar sobretudo na determi-nação das cláusulas predispostas que deveriam ser proibidas. Ou atra-

1 Cfr. o nosso Derivados (no prelo).

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vés do controlo por cláusulas gerais, como a boa-fé, ou através de elen-cos  de  cláusulas  inadmissíveis,  ou  por  formas  mistas,  entra-sedirectamente na apreciação do conteúdo.

A categoria das cláusulas contratuais gerais não teve praticamenteacolhimento no Brasil. Não o teve na lei; e a doutrina e a jurisprudênciacontinuaram a  referir o  contrato de adesão, e não a categoria maisescorreita das cláusulas contratuais gerais.

Foi o contrato de adesão que veio a  ter consagração  legal noCódigo de Protecção e Defesa do Consumidor; e é ele que surge agorareferido nos arts. 423 e 424 do novo Código Civil (NCC)2.

Serão considerados nos lugares respectivos. Agora há que obser-var que, se bem que a técnica seja diferente, desde que haja num con-trato uma ou mais cláusulas contratuais gerais o contrato é qualificadocomo contrato de adesão. Mas a  correspondência não é biunívoca:aqueles artigos do Código Civil  também abrangem os contratos quecontenham cláusulas individuais, desde que do mesmo modo tenhamsido predispostas, sem possibilidade de alteração pelos destinatários.Destas falaremos seguidamente, a propósito das cláusulas abusivas.

3. A génese do instituto das cláusulas abusivasA partir da segunda metade do séc. XX surge novo instituto: o das

cláusulas abusivas, por influência dominante do movimento de protecçãodo consumidor.

O  consumidor  é  a  parte  negocialmente mais  fraca.  Há  queprotegê-lo contra cláusulas abusivas, porque emanação da maior for-ça do fornecedor.

Mas o carácter abusivo da cláusula não está dependente de estaser geral ou singular. Mesmo em contratos individualmente pactuadossurgem cláusulas abusivas: aqui se dá a separação da técnica das clá-usulas contratuais gerais. A questão estará então somente em determi-nar os critérios da abusividade das cláusulas.

Esta categoria  foi  irrompendo em numerosas  leis de defesa doconsumidor da Europa. É também aquela que acaba por receber con-sagração no Código de Protecção e Defesa do Consumidor brasileiro3.

2 O art. 423 é objecto da proposta de alteração de Ricardo Fiúza, que examinaremos mais tarde.

3 Lei n.º 8078, de 11 de Setembro de 1990.

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A relação desta matéria com as categorias precedentes tornou-se difícil. O Código do Consumidor brasileiro a todas integra (emboraas �cláusulas contratuais gerais� só mediatamente, através dos contra-tos de adesão). Torna-se por vezes difícil determinar o que pertence aumas e outras.

O problema não é específico do Brasil. A Comunidade Européiadesenvolveu regras sobre as cláusulas abusivas nos contratos com con-sumidores. Essas regras vieram a ser transpostas para os ordenamentosinternos, passando normalmente a figurar nos mesmos diplomas queregulavam  já  as  cláusulas  contratuais  gerais.  A  coexistência  não  foipacífica, porque as cláusulas abusivas individuais não se prestam à dis-ciplina que foi estabelecida tendo em vista as cláusulas gerais4.

Mais especificamente dedicado à matéria das cláusulas abusivas,temos  no  Código  do  Consumidor  o  Capítulo  VI  (Da  ProtecçãoContratual), Secções I e II.

A Secção I é intitulada �Disposições gerais� e a II �Das cláusulasabusivas�. Mas da primeira secção constam disposições que tradicio-nalmente  haviam  sido  associadas  à  problemática  das  cláusulascontratuais gerais, mas agora aplicadas também às cláusulas individu-ais abusivas: como sejam a necessidade de conhecimento das cláusu-las pelos consumidores (art. 46) e a interpretação destas da maneiramais favorável ao consumidor (art. 47)5.

Entra-se depois nas cláusulas abusivas, indicando-se as que sãonulas de pleno direito (art. 51). Não se referem às cláusulas gerais, cujaproblemática é até muito ultrapassada; mas estas estão também segu-ramente abrangidas, desde que tenham conteúdo abusivo.

Por outro  lado, não só se não exige que as cláusulas abusivassejam gerais, como se admite que tenham sido objecto de negociaçãoindividual. O que é decisivo é o próprio carácter abusivo das cláusulas.

Perante isto, qual a posição do Código Civil?Falar de um código que não entrou ainda em vigor é sempre uma

tarefa de alto risco. Mas podemos dizer que a categoria da cláusula abusiva

4 Cfr. sobre esta matéria o nosso  "Cláusulas contratuais gerais, cláusulas abusivas e boa fé",  inRevista da Ordem dos Advogados  (Lisboa),  ano 60,  II,  Abr/00,  573-595;  e  in  separata  àRevista Forense,  v.  352,  103-114.

5 Trata-se depois também dos escritos que vinculam o fornecedor (art. 48), do direito de desistên-cia (art. 49) e da garantia contratual (art. 50).

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não é nele acolhida como tal. O que o código regula, aliás brevemente,nos arts. 423 e 424, são os contratos de adesão. Portanto, a lei civil só aesses contratos se aplicaria. Daqui resultaria que as regras sobre cláusu-las abusivas continuariam a só beneficiar o consumidor.

Mas surge uma dificuldade de grau maior. O Código do Consu-midor, embora de modo tecnicamente incorrecto, generalizara já a to-das as pessoas algumas regras que tinham sido inseridas visando apa-rentemente o consumidor só. O art. 29 do Código do Consumidor, queabre o Capítulo V (Das Práticas Comerciais) declara já que se equipa-ram aos consumidores  todas as pessoas, determinadas ou não,  �ex-postas às práticas�6 previstas nesse capítulo e no seguinte. O capítuloseguinte é o VI, donde consta a disciplina das cláusulas abusivas, queora examinamos.

Essa disciplina era pois já genérica. Surge o Código Civil e omi-te-a, salvo no que respeita aos contratos de adesão. Devemos concluirque os restantes preceitos deixaram de se aplicar às pessoas que nãoforem  consumidores?

Não houve revogação tácita, porque não há incompatibilidade.Também não houve revogação expressa, porque só o Código Civil e a1ª parte do Código Comercial foram revogados (art. 2045 NCC). Po-deria pensar-se na revogação global, resultante de uma matéria ter sidocomplexivamente regulada de novo7. Mas as cláusulas abusivas e, maisgenericamente, a valoração do conteúdo dos negócios não foram ge-nericamente disciplinadas pelo NCC: há apenas fragmentos, em parti-cular os relativos ao contrato de adesão.

Atrevemo-nos por  isso a supor que as disposições gerais cons-tantes do Código do Consumidor continuam em vigor. Pelo menos, tudoindica que isso está conforme à intenção do legislador, pois não se vêque o NCC pretendesse alterar a situação que resultava já do Códigodo Consumidor. Este fora aproveitado, na falta de aprovação do novoCódigo Civil, para actualizar alguns aspectos fundamentais da ordemjurídica brasileira.

6 A expressão traz dificuldades de interpretação, mas abrange sem dúvida a exposição às cláusu-las  abusivas.

7 O Direito � Introdução e Teoria Geral � Uma Perspectiva Luso-Brasileira,  2ª  ed.bras. (12ª geral), Renovar (Rio de Janeiro), 2001, nº 174.

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4. A integração no conteúdo do contrato e o mútuo consensoPassamos a examinar o regime global destas cláusulas resultante

do Código do Consumidor e do NCC. Comecemos pelo ponto prioritário,que consiste em saber quando se considera que as cláusulas se inte-gram no conteúdo do contrato.

Não se encontra regra que imponha que estas cláusulas sejamobjecto de estipulação específica8. A indagação passa então a centrar-se no requisito da aceitação do destinatário. Nomeadamente, quandoestá em causa um contrato, como se pode dizer que se formou o acor-do, ou mútuo consenso, das partes?

Este ponto é fundamental, mas o Código Civil nada diz. Pode porisso criar-se o cepticismo quanto à qualificação da relação assim forma-da como contratual. Mas por outro lado, se não há um contrato, comoaplicar o regime contratual a estas situações, como toda a gente faz?

Verifica-se um recuo, consistente em exigir, em vez do conheci-mento (e portanto o consentimento) efectivo, a mera cognoscibilidadecomo pressuposto do mútuo consenso. Assim procedia já o art. 1341do Código Civil italiano.

O art. 46 do Código do Consumidor exige que seja dada ao des-tinatário a oportunidade de tomar conhecimento prévio do conteúdo. Oscontratos também não obrigarão se os instrumentos forem redigidos demodo a dificultar a compreensão. Ainda, o art. 54 § 3º exige que oscontratos de adesão escritos sejam redigidos em termos claros e legíveis;e o § 4º, que as cláusulas que implicarem limitações sejam redigidas comdestaque, permitindo a sua imediata e fácil compreensão.

Vemos assim que  se  fez  já o  trânsito, do  conhecimento efectivopara a cognoscibilidade e inteligibilidade fácil do conteúdo. Há muitasmaneiras de ocultar uma informação; até serve para o efeito o excesso deinformação, que disfarce no amontoado de dados a cláusula que é juridi-camente relevante. O Direito reage contra estes processos ardilosos.

Mas  surge o Código Civil  e nada  se encontra, a propósito docontrato de adesão. Como proceder então?

Pode-se apelar para cláusulas de cúpula,  como a boa-fé, quefora  proclamada  com  generalidade  imediatamente  antes  (art.  422

8  Excetua-se o art.  18  § 2.º  do Código do Consumidor,  que determina que  nos  contratos  deadesão a cláusula de alteração do prazo de sanação do vício do produto deverá ser convencionadaem separado, por manifestação expressa do consumidor.

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NCC). Mas o apoio em cláusulas  tão gerais é  inseguro, e por outrolado não é possível reconduzir todas as hipóteses em que não foi dadoconhecimento prévio a condutas de má-fé.

Há que recordar que aqueles princípios do Código do Consumi-dor são já hoje apresentados como genéricos (art. 29); e que concluíra-mos que a intenção do NCC não foi a de os revogar. São trechos dadisciplina civil, mas permanecem infelizmente fora da codificação civil.

Daqui resulta que estas cláusulas, sejam genéricas sejam indivi-duais abusivas, devem ser apresentadas ao destinatário previamente àcelebração do negócio, em condições de poder ser dele conhecidas. Seo não forem a conseqüência é radical: não se integram no conteúdo docontrato. Não são sequer inválidas, porque não chegam a ser conteú-do contratual.

Na mesma  situação  devemos  considerar  as  überraschendeKlauseln, por aparecerem em lugares surpreendentes do contrato. Istovai contra a fácil apreensão da cláusula que a lei reclama. Em conse-qüência a cláusula de surpresa não é inválida: mais do que isso, nãoproduz efeito algum. Diríamos que é uma cláusula inexistente.

Mas uma coisa é a cláusula ser cognoscível, outra ter sido objectodo mútuo consenso.

É impossível falar de uma presunção de conhecimento das cláu-sulas cognoscíveis. A presunção exprime id quod plerumque accidit. Aexperiência diz-nos pelo contrário que é uma fatalidade que a quasetotalidade  dos  contratos,  pelo  menos  dos  que  contêm  cláusulascontratuais gerais, sejam celebrados sem as pessoas tomarem conheci-mento dos seus termos.

Isto leva-nos para caminhos cada vez mais perigosos. O mútuoconsenso  é  objecto  de  corrosão. Transita-se  de  um mútuo  consensosobre  um  conteúdo  para  um  consenso  na  celebração  do  negócio,  enão propriamente sobre as cláusulas constitutivas deste.

É um ponto que não podemos aprofundar. Pelo menos, have-rá que pôr limites a esta suficiência do consenso a ficar vinculadopor um contrato. Nunca poderia bastar um acordo em branco desujeição a um contrato ou a cláusulas predispostas pela outra par-te. Deve haver um consenso sobre a celebração de um certo con-trato,  sobre certo objecto. E para além disso, é essencial que noacordo se delimite um conteúdo económico determinado. Tudo o

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que  se  afastar  do  núcleo  económico  em que  se  acordou  já  estáfora do mútuo consenso.

Ainda, e no que respeita às cláusulas contratuais gerais / contra-tos de adesão, a lei só admite essa forma de vinculação porque pressu-põe que o predisponente estabelece o regime que está dentro da nor-malidade daquela relação. Essa é a contrapartida imposta pela ordemjurídica ao reconhecimento dum poder unilateral de regulação. Se ascláusulas saem da normalidade e o predisponente aproveita a sua mai-or  força  para  sacrificar  os  destinatários,  já  as  cláusulas  predispostasnão podem valer, porque deixam de satisfazer a ratio da norma que asadmite.

5. O erroSuponhamos que se ultrapassa essa fase. As cláusulas integram-

se no conteúdo do contrato. E se, não obstante, o destinatário (que nãotem o conhecimento efectivo do conteúdo) está em erro sobre elas?

Passa-se à problemática do erro, que é como dissemos uma dasclássicas neste domínio. O erro, se relevante, seria um vício na forma-ção de vontade. A ignorância duma dada cláusula equivaleria aqui aoerro, pois sempre haveria a falsa representação da realidade (mesmoque por incompleição).

Nos termos gerais, o erro terá de ser essencial para ser relevante.Que acontece pois, se o destinatário está em erro essencial quanto aoconteúdo do contrato?

Deverão concorrer ainda os demais pressupostos de relevânciado erro. Será sobretudo  importante saber se se deve exigir ou não adesculpabilidade do erro, que o NCC não refere expressamente (arts.138 e segs.)9.

Se mesmo o erro indesculpável viciar o negócio, haverá que nosinterrogarmos sobre as consequências da leviandade do errante. Have-rá  então  responsabilidade  civil,  nos  termos  da  chamada  culpa  incontrahendo. Mas a responsabilidade tem efeito apenas sobre o dever

9 Cfr. o nosso Direito Civil � Teoria Geral � II � Acções e Factos Jurídicos, 2.ª ed., CoimbraEditora,  2003,  n.º 72,  em  que  concluímos  que  se  o  erro  é  censurável,  o  agente  não  podeprevalecer-se dele; mas se a contraparte for por sua vez censurável, por o erro ser reconhecível eela não o ter reconhecido, a desculpabilidade do erro deixa de novo de ser exigida.

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de indemnizar. Não cria obstáculo ao exercício da faculdade de anula-ção do contrato � e apenas esta é o nosso objecto.

Mas,  como  dissemos  já10,  o  recurso  ao  erro,  mesmo  a  seradmissível, só dá uma defesa muito escassa, particularmente no domí-nio dos contratos de massa. A anulação exige a iniciativa do destinatá-rio da cláusula viciada: o art. 177 NCC dispõe que a anulabilidade nãotem efeito antes de julgada por sentença. Fica pois a anulação depen-dente de acção judicial. Na maior parte dos casos seria ruinoso intentá-lo, perante a exiguidade dos valores em jogo.

Deverá haver outros meios de protecção do destinatário das cláusulas.

6. A interpretaçãoMesmo antes  de  haver  lei,  criou-se  a  tradição  da  interpretatio

contra  stipulatorem.O art. 47 do Código do Consumidor determinou que as cláusulas

contratuais serão interpretadas da maneira mais favorável ao consumi-dor. Dissemos já que esta é uma das disposições que foi generalizada,para aproveitar mesmo aos destinatários não consumidores (art. 29).

O NCC retoma esta matéria a propósito do contrato de adesão.O art. 423 dispõe que, havendo no contrato cláusulas ambíguas oucontraditórias, adoptar-se-á a interpretação mais favorável ao aderen-te. É uma regra de todo justificada, como dissemos11, porque toda adificuldade de interpretação é imputável ao predisponente.

Mas já há outro elemento a anotar. O Projecto Fiuza de alteraçãoao NCC atinge também este preceito. Para além da generalização, es-tabelece uma redacção mais favorável ao aderente; e elimina a restri-ção às cláusulas ambíguas ou contraditórias.

Pode suscitar-se também a problemática da integração12. Podemter ficado pontos por regular no contrato, que todavia são necessáriospara a efectivação deste. Se os elementos verdadeiramente essenciaisdo contrato forem já definitivos � portanto, se há o acordo económico ea estruturação jurídica mínima que lhe corresponde � o contrato pode

10 Supra, n.º 1.

11 Supra, n.º 1.

12  Não  discutimos  aqui  se  se  trata  de  verdadeira  integração,  se  da  chamada  interpretaçãocomplementadora  do  contrato.

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ser  integrado,  dentro  do  espírito  do  aproveitamento  ou  conservaçãodos negócios jurídicos.

Mas o mesmo critério básico continua aqui aplicável. A cláusulaintegranda, na dúvida, será a favorável ao aderente. O predisponenteteve todas as condições para prever uma solução diferente13.

7. O conteúdoChegamos ao ponto  fundamental, que é o  relativo ao próprio

conteúdo destas cláusulas.A situação que antecedeu o Código do Consumidor era difícil; só

princípios gerais, sem concretização, permitiriam entrar na apreciaçãodo conteúdo das cláusulas. Isto criava grande insegurança14.

O Código do Consumidor regula o contrato de adesão, mas éomisso quanto ao conteúdo das cláusulas. O preceito de maior interes-se era o do art. 6 V, que declara direito básico do consumidor a modifi-cação das cláusulas  contratuais que estabeleçam prestações despro-porcionais ou a sua revisão em razão de factos supervenientes que astornem excessivamente onerosas. Mas esta matéria é restrita ao Direitodo Consumidor; escapa à generalização ex art. 29.

O NCC não acolheu nenhuma previsão da disciplina do contrato deadesão do Código do Consumidor. Apenas o Projecto Fiuza generaliza o §3.º, que originaria um novo § 1.º do art. 423. Mas mesmo este respeitaà integração das cláusulas no conteúdo dos contratos, de maneira a seremcompreensíveis pelos destinatários, e não ao conteúdo destas.

A novidade do NCC está no art. 424, que determina que sãonulas  no  contrato  de  adesão  as  cláusulas  que  estipulem a  renúnciaantecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio.

13 Matéria  ainda  conexa  à  da  interpretação  é  a  constante  dos  arts.  30  e  35  do Código  doConsumidor,  sobre  a  relevância  da  publicidade:  obriga  o  fornecedor  e  permite,  em  caso  derecusa, a  rescisão do  contrato. Mas esta  regra não parece admissível  fora dos  contratos  comconsumidores.  Por  seu  lado,  o NCC não  contempla  estes  pontos,  nem  sequer  esclarece  se  aproposta  deve  ser  interpretada  de  acordo  com a  publicidade  do  proponente. Mas  a  questãoultrapassa já a matéria das cláusulas que aqui nos ocupa.

14 Assim, Orlando Gomes alvitrou a hipótese da nulidade das cláusulas gerais (de contratos deadesão) que se afastassem de disposições supletivas. Não vemos nenhuma verossimilhança emsemelhante  entendimento,  uma  vez  que  se  trata  justamente  de  regras  supletivas. O mesmodiremos da atribuição de um poder  de  revisão ao  juiz,  que  nem  tem base positiva  nem  seriadesejável. Quanto ao recurso ao princípio geral da boa-fé, veja-se a crítica que adiante fazemos.

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O enunciado é difícil de interpretar. Os elementos que pertencemà natureza do negócio são típicos. Quererá dizer que se não pode re-nunciar antecipadamente a elementos do tipo?

Seja qual for a interpretação, o preceito deixa-nos perplexos. Sãodezenas as previsões de cláusulas proibidas que surgem nas leis moder-nas. Teremos de concluir que a lei brasileira só encontrou matéria deproibição nesta cláusula singular?

Do art. 424 resulta porém um aspecto positivo: a nulidade queatribui à cláusula. Ficamos a saber que a conseqüência do recurso acláusulas proibidas (ou à cláusula proibida) é a nulidade.

Porém, se o NCC pouco nos orienta no controlo do conteúdo dascláusulas, já nos parece ser muito importante a proximidade que existe noCódigo do Consumidor entre esta matéria e a das cláusulas abusivas15.

Dissemos  que  esta  disciplina  foi  generalizada  pelo Código  doConsumidor16. Dissemos  também que  entre  as  cláusulas  abusivas  secontam as cláusulas contratuais gerais abusivas. Como por outro ladojá sabemos que não há que entender o laconismo do Código Civil so-bre a matéria como significativo duma revogação,  temos de concluirque o principal manancial a que recorrer para a determinação das clá-usulas proibidas são hoje os arts. 51 a 53 do Código do Consumidor.

Passamos então a examinar os critérios legais de determinaçãodas cláusulas proibidas.

8. Critério de determinação das cláusulas proibidasProcurando caracterizar fundamentalmente o esquema legal, ve-

mos que a consequência estabelecida coincide com a do NCC. O art.51 do Código do Consumidor abre com as palavras: �São nulas depleno direito...�.

A lista das cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de pro-dutos e serviços é exemplificativa. Logo no proémio se diz que são nulas,�entre outras, as cláusulas...�.

15 Embora se trate de uma proximidade que não originou o lançamento de referências. O art. 54,sobre contrato de adesão, segue imediatamente a disciplina das cláusulas abusivas, sem haverreciprocamente  nenhuma  remissão.

16 Salvo se razões particulares obstarem a essa generalização. Será o caso do art. 51 § 4.º, quefaculta ao consumidor requerer ao Ministério que ajuíze a competente acção... Trata-se de típicaregra de protecção do consumidor, não generalizável. Nas relações que se não estabeleçam entrefornecedor e consumidor, aplicam-se as regras normais.

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Isto está em sintonia com o que se passa noutras ordens jurídi-cas. Mas surpreende que não se dê um critério para determinação deessas outras cláusulas proibidas, contra o que estabelecem legislaçõesem situação semelhante.

Afinal, esse critério surge de envolta com previsões singulares, noinciso IV do art. 51: são nulas as cláusulas que �estabeleçam obrigaçõesconsideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvan-tagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade�.

De facto, não há uma especificidade típica, há o mero enunciadode critérios gerais. Basta pensar que entre estes critérios ou qualifica-ções se encontra a própria categoria que haveria que esclarecer � sãoabusivas as cláusulas que estabeleçam obrigações abusivas. Nada adi-anta como orientação neste domínio.

Tirando esta previsão inútil, resta ainda no preceito uma sobreposiçãode critérios. São nulas as cláusulas que estabeleçam obrigações:� iníquas� que importem desvantagem exagerada� incompatíveis com a boa-fé� incompatíveis com a eqüidade.

Esta complexidade pode porém ser reduzida.Iníquo é o que contraria a Justiça.A desvantagem exagerada caracteriza justamente a situação de

injustiça objectiva17.A lesão da eqüidade é ainda lesão da Justiça. Mas caracteriza-se

por ser a Justiça do caso concreto: permite a apreciação de todas ascircunstâncias do caso, o que em geral não é permitido.

Há contradição no recurso simultâneo à Justiça e à eqüidade. Noconcurso de ambas, a eqüidade prevalece, porque permite a conside-

17 A �vantagem exagerada� é esclarecida no § 1.º, mas de modo pouco satisfatório. No inc.  Icaracteriza-se por ofender os princípios fundamentais da ordem jurídica, o que pela sua vacui-dade não diz nada e leva a confundir com a cláusula ilícita; no inc. II fala-se em restringir direitosfundamentais inerentes à natureza do contrato, expressão que é afim da usada no art. 424 NCC,que já comentámos no número anterior; no inc. III fala-se em se mostrar excessivamente onerosapara o consumidor, o que é um sinónimo de exageradamente desvantajosa. Há todavia algunsaspectos úteis a anotar. O inc. II fala em ameaçar �o equilíbrio contratual�, o que mostra que éa questão do  equilíbrio  ou proporção,  logo da  Justiça,  que  está  em  causa. O  inc.  III mandaatender às circunstâncias peculiares do caso, o que aponta para a recondução à equidade, queapontaremos a seguir.

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ração de aspectos particulares do caso. Realiza-se a Justiça de formamais concretizadora que a habitual.

Isto significa que os  três primeiros critérios se  reduzem afinal auma apreciação pela eqüidade.

Resta a contrariedade à boa-fé. Mas sobre este critério alternati-vo falaremos em particular no número seguinte. Veremos que o critériodeve ser afinal rejeitado e que o único critério geral a reter é o da Justi-ça, na sua manifestação pela eqüidade.

A equidade é apenas o critério da valoração de casos não especifi-cados. No que respeita às verdadeiras especificações constantes das res-tantes alíneas, já o critério não é o da equidade, mas o da injustiça objectivada situação. Assim, a cláusula que estabeleça inversão do ónus da provaem prejuízo do consumidor (inc. VI) é nula sem mais, independentementede qualquer apreciação das circunstâncias do caso concreto.

O critério geral do inc. IV ainda nos dá outro ensinamento, namedida em que condena as obrigações que coloquem o consumidorem �desvantagem exagerada�.

Não é qualquer desvantagem que pela cláusula é proibida por-que abusiva. É necessário que essa desvantagem seja exagerada. Inter-vém aqui uma consideração de segurança, que impede que qualquerdesproporção seja relevante para o direito.

Com efeito, seria inviável que todo o negócio pudesse ser postoem causa, por invocação dum desequilíbrio no seu conteúdo. A instabi-lidade social criada seria devastadora, e nenhum sistema judicial pode-ria suportar a conflituosidade daí resultante. Por isso a lei exige a des-vantagem exagerada. É necessário que a desproporção seja manifestapara que a repressão das cláusulas abusivas seja actuada.

Este princípio é generalizável a todas as cláusulas proibidas quese fundem na injustiça do conteúdo.

9. A boa-fé: um pseudo-critérioPode suscitar-se, como critério alternativo ao da Justiça  (ou da

equidade), o critério geral da boa-fé. Seria abusiva a cláusula que con-trariasse os princípios da boa-fé.

Este recurso surge em várias legislações. O critério geral da leiportuguesa  exprime-se mesmo  assim:  �São  proibidas  as  cláusulas

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contratuais gerais contrárias à boa-fé�18. E, no que respeita às cláusu-las abusivas, o mesmo critério fundamental foi adoptado pela Directrizda Comunidade Européia n.º 93/13, de 5 de Abril19, e é seguido porvários  Estados-membros.

Supomos porém que o recurso à boa-fé é meramente semântico,e não abrange na realidade esta situação.

O  critério  da  boa-fé,  para  cobrir  o  domínio  das  cláusulascontratuais gerais, foi adoptado pela jurisprudência alemã, quando nãohavia lei a que se arrimasse. Procurou-se então o refúgio numa cláusulageral. Tendo-se hesitado entre a boa-fé e os bons costumes, acabou porse preferir a boa fé. Quando surgiu depois, a AGBGesetz recolheu es-tes antecedentes e fixou a boa-fé como cláusula geral.

O critério irradiou deste modo para outros países europeus. Maistarde, quando se deu a intervenção comunitária no domínio das cláu-sulas abusivas, a afinidade de situações levou a que se adoptasse tam-bém como critério geral a boa-fé.

São estes possivelmente os antecedentes da lei brasileira, tal comoda portuguesa. Mas não parece serem justificativos.

A boa-fé pode ser objectiva ou subjectiva. Mas como critério de valoraçãode cláusulas contratuais, só a boa-fé objectiva pode estar em causa20.

A boa-fé objectiva manifesta-se em regras de conduta, que fixemo correcto comportamento inter-relacional. Ora, este esquema é aquitotalmente inaplicável. Não se fixam padrões de conduta, antes se jul-gam cláusulas objectivas para concluir se elas devem ou não ser rejeita-das perante a ordem jurídica.

Que o critério se tivesse desenvolvido na Alemanha antes de ha-ver  lei compreende-se como um mero recurso para suprir  justamenteessa  falha de  lei:  foi  uma entorse  científica para obter  um  resultadoprático. Mas o que se não compreende é que o critério tenha subsistido

18 Art. 15 do Dec.-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, sobre cláusulas contratuais gerais.

19  Art.  3/1.  Esta  directriz,  que  regula  as  cláusulas  abusivas,  caracteriza-as  por,  a  despeito  daexigência de boa fé, se originar um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor. Tema curiosidade de cumular desequilíbrio objectivo e  inobservância da boa fé.

20 Não há matéria ou estado subjectivo a avaliar. Nomeadamente, o mal não está na exigênciado cumprimento. Se a obrigação fosse válida, a exigência seria impecável. O não poder exigir émera decorrência da  invalidade da cláusula.

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uma vez sobrevinda a lei. E menos ainda, que tenha passado para leisestrangeiras, justamente quando o bordão da boa-fé se tornava total-mente dispensável, por haver já lei em que se apoiar.

O critério geral estava agora contido na lei: era o da despropor-ção ou desequilíbrio criado nas situações. Era, em palavras mais sim-ples, a injustiça da situação criada.

Por que não se reconheceu então a realidade, e se operou a fugapara a boa-fé, apesar do carácter falacioso deste recurso?

Porque  o  subjectivismo  reinante  impunha  uma  roupagemsubjectiva, ainda que a cobrir uma realidade objectiva.

Mas esse é aspecto que será considerado a final. Por agora, ficaconfirmado que o único critério utilizável é o da Justiça, na sua manifes-tação como equidade.

10. O enunciado legalA análise das previsões  legais  levaria a um casuísmo que seria

deslocado empreender aqui. Limitamo-nos ao que possa  ter carácterainda comum.

Como observação geral, notamos uma certa confusão entre cláu-sulas abusivas e cláusulas ilícitas. As cláusulas violadoras de disposiçãolegal são ilícitas: nada adianta incluí-las entre as cláusulas abusivas, esó dificulta a determinação do que sejam estas cláusulas. É o que sepassa com a previsão do art. 51 inc. XIV � as cláusulas que infrinjamnormas ambientais. Ou ainda com o inc. II � as cláusulas que subtrai-am ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga a quetiver direito. Deles  resultará quando muito a cominação de nulidadepara uma infracção que estava já prevista por outra norma.

Limitando-nos  às  restantes,  poderiam  fazer-se  várias  classifica-ções. A lei portuguesa distingue as cláusulas proibidas consoante sur-gem  nas  relações  com  consumidores  e  entre  empresários.Descodificando, diremos que há uma rede mais apertada que repre-senta o regime comum das cláusulas abusivas, e uma rede de malhamais larga restritamente aplicável nas relações entre empresários, quese considera não carecerem de tanta protecção.

Esta distinção não tinha até agora correspondente na lei brasilei-ra. Mesmo a generalização operada pelo art. 29 do Código do Consu-midor só beneficiava quem estivesse sujeito às práticas comerciais pre-

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vistas,  pelo  que  dificilmente  abrangeria  os  empresários  que  agissemcomo  tal.  Com  o  novo Código Civil,  toda  a  questão  terá  de  serreponderada.

A  lei portuguesa distingue ainda, dentro de cada categoria, ascláusulas absoluta e relativamente proibidas. As primeiras são taxativas,as segundas são adoçadas por uma valoração complementar: excessi-vo, sem justificação, sem contrapartida adequada, etc.

A lei brasileira é pouco sensível a proibições relativas. Mas não asdesconhece de todo. Assim, o art. 51 inc. I do Código do Consumidorpermite limitar a indemnização devida pelo fornecedor ao consumidor � pessoa jurídica �em situações justificáveis�.

As proibições constantes deste preceito são ainda susceptíveis devários agrupamentos. Podem ter por fundamento:1) o desequilíbrio das posições das partes, por atribuírem poderes uni-laterais ao fornecedor

É o caso dos incs. IX a XIII.2) a ablação de direitos do consumidor

É o caso dos incs. I a III21.3) a imposição de obrigações fora das normais à parte não fornecedora

É o caso dos incs. VII e VIII.Na  prática,  as  cláusulas mais  freqüentes  são  as  cláusulas  de

irresponsabilidade (ou de limitação da responsabilidade) e as que inver-tem o ónus da prova em detrimento do consumidor22.

Curiosamente, uma cláusula que tem grande ocorrência e signi-ficado em Portugal � a cláusula da alteração das regras do risco � nãoé contemplada no Código do Consumidor.

As relações financeiras têm uma disciplina especial no art. 52 doCódigo do Consumidor. Mas note-se que as obrigações que se estabele-cem no corpo do artigo são obrigações de informação. A orientação temsido desenvolvida em legislação financeira avulsa,  favorecida possivel-mente pela tese que pretende que o desequilíbrio entre fornecedor e con-sumidor é colmatado pela informação do consumidor. Fornecida esta, oprincípio da autonomia da vontade já podia retomar o seu império.

21 E eventualmente do inc. XVI.

22 Sobre estas, veja-se o inc. VI.

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11. Efeito sobre o contrato da existência de cláusula eminfracção

Qual a  sorte do contrato,  se  se detecta nele uma cláusula eminfracção?

Não é necessário recorrer aos princípios gerais, porque há dispo-sições específicas neste domínio.

Há que distinguir duas modalidades:� as cláusulas que não se chegam a integrar no contrato� as cláusulas abusivas.

1) Cláusulas que não se chegam a integrar no contratoSão as cláusulas excluídas por não ter sido dado conhecimento

delas, nos devidos termos, aos destinatários.A consequência é aqui a de os contratos não obrigarem os con-

sumidores (art. 46 do Código do Consumidor). Mas não se torna ex-presso qual o vício que está em causa.

2) Cláusulas abusivasA cláusula é nula (art. 51, proémio). Mas o § 2.º esclarece que a

nulidade da cláusula não invalida o contrato.Portanto, o caminho para que aponta é o da redução legal. O

contrato subsiste, mas depurado da cláusula inquinada. Não há sequerque atender à vontade real ou tendencial das partes, que seria de regrasegundo o art. 184 NCC, porque a  lei  comanda autoritariamente aprodução do efeito redução.

Mas a lei estabelece um limite. O contrato é inválido quando asupressão da cláusula, apesar dos esforços de integração, importar ónusexcessivo para qualquer das partes.

Daqui decorre que, ocorrendo cláusula nula, a primeira  tarefaque se impõe é a de integrar o contrato, substituindo essa cláusula. Seisso não for possível, ou se daí derivar em todo o caso ónus excessivo,então o contrato é irremediavelmente nulo.

Mas esclarece-se que o ónus excessivo relevante pode recair so-bre qualquer das partes. Aqui o Código abandona a sua parcialidadeem relação ao consumidor e atende também ao ónus excessivo do for-necedor. Justificadamente, porque o ónus excessivo é injusto, seja qualfor a parte que grave.

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A lei não estabelece disciplina análoga para o caso de a cláusulanão  se  ter  chegado  a  integrar  no  contrato. Mas  pode  acontecer  domesmo modo que o contrato, sem aquela cláusula, traga um ónus ex-cessivo para qualquer das partes. Haverá então que aplicar por analo-gia a previsão do art. 51 § 2.º, porque há a mesma razão de decidir.

12. As limitações do sistema civil

Formos percorrendo os vários regimes que permitem a interligaçãodos três institutos que estudamos. Vimos que há pontos de confluência,mas há também diferenças irredutíveis.

Confirmamos que o instituto das cláusulas negociais gerais nuncachegou a ser acolhido na ordem jurídica brasileira. Regras que lhe sãoespecificamente dirigidas noutras ordens jurídicas, como a criação dumregisto específico de cláusulas contratuais gerais proibidas, são impensáveisno Brasil. Mas nem por  isso as cláusulas contratuais gerais deixam deestar ínsitas na disciplina dos contratos de adesão; tal como participamda listagem das cláusulas abusivas, se o seu conteúdo for abusivo.

Quanto às cláusulas abusivas, apesar de a sua génese estar noDireito do Consumidor, foram objecto dum processo de generalização.Podem hoje  ser  entendidas  como  categoria  aberta,  o que permite odesenvolvimento progressivo da matéria.

Mas  justamente neste ponto há que estar prevenido, para nãocriar uma ideia errada do que representa esta generalização. Não po-demos supor que a matéria das cláusulas abusivas saltou do Código doConsumidor para o Código Civil, para se tornar um instituto comum,de que todas as pessoas participam igualmente.

Não é assim, porque há duas ordens de restrições.1) Por um lado, nem todas as regras disciplinadoras das cláusu-

las abusivas são transferíveis para o Direito Civil.Como tivemos oportunidade de verificar, há certas regras que só

se fundam na protecção do consumidor, pelo que são resistentes a umageneralização.

Outras  regras não  foram nunca declaradas extensivas aos nãoconsumidores. Assim, o art. 6 V do Código do Consumidor, que procla-ma direito básico �a modificação das cláusulas contratuais que estabe-

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leçam prestações desproporcionais�23. Esta regra, cuja conjugação comas regras do Capítulo VI provoca aliás consideráveis dificuldades, nãofoi objecto de nenhuma cláusula de generalização.

Isto significa que os não consumidores, pelo menos a uma primeiravista, não têm acesso à possibilidade de modificação de cláusulas abusivas.

2) Por outro lado, a generalização das regras a pessoas que nãosão consumidoras não significa a sua universalização.

Como temos observado, a generalização que o art. 29 do Códi-go  do  Consumidor  opera  faz-se  em  benefício  das  pessoas,�determináveis ou não, expostas às práticas� previstas.

E essas práticas são práticas das entidades fornecedoras (cfr. art.39, por exemplo).

Isto significa que as regras continuam a ser unilaterais, ainda quenão beneficiem apenas consumidores. Os fornecedores, agindo comotal, não poderão beneficiar delas nas relações que entre si estabeleçam,invocando por exemplo a desvantagem exagerada. Terão de recorreraos princípios gerais do direito.

Nem  sequer  há uma disciplina autónoma das  cláusulas  usadasnas relações entre fornecedores, ao contrário do que acontece no direitoportuguês. Isto é conseqüência de a figura da cláusula contratual geralnão ter sido por si objecto de regulação na ordem jurídica brasileira.

Donde resulta que, mesmo explorando todas as potencialidadesde expansão das previsões legais, não é possível chegar a um sistemaintegrado na disciplina das cláusulas abusivas. O sistema civil � quenão o do consumidor � está ainda por completar.

Mas isto é uma inversão, porque o que caracteriza antes de maisas pessoas é serem cives, cidadãos, e não consumidores.

13. Superação do voluntarismo?Partimos da demonstração de que o nosso sistema é tributário do

voluntarismo, triunfante a partir do séc. XVIII.Mas  vimos  também  que,  neste  como  aliás  em muitos  outros

sectores, se foram introduzindo correcções no modelo dominante, em

23 Além da sua revisão em razão de factos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.Mas neste  caso há que  considerar o disposto  sobre a  resolução do  contrato por onerosidadeexcessiva, nos arts. 478 a 480 NCC.

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que voltava a pairar, mais ou menos declarada, a preocupação pelaJustiça do conteúdo.

O séc. XX terá encerrado um ciclo? O ponto de gravidade estarásendo deslocado de novo, da vontade para a Justiça do conteúdo?

Não há decerto um movimento que se afirme com essa finalida-de. Mas em muitos sectores se chega igualmente à conclusão que situ-ações manifestamente injustas não podem merecer protecção jurídica.

O novo Código Civil trouxe vários contributos ao domínio da re-levância decisiva do conteúdo.

Prevê por exemplo a lesão, no art. 157.Regula a onerosidade superveniente excessiva, nos arts. 478 a 480.No que nos importa, regula o contrato de adesão e não fecha a

porta à recepção da disciplina das cláusulas abusivas, através da rele-vância dada à desproporção ou desequilíbrio objectivo das prestações.

Até onde se pode chegar por este caminho?Além das fronteiras a atribuir às cláusulas abusivas, não estará

em germe um princípio mais radical, que se poderia enunciar assim: amanifesta injustiça do conteúdo retira à situação validade ou eficácia?

Este é um movimento em marcha, nalguns pontos até muito adi-antado em vários países.

Há agora condições, com o novo Código Civil, para suscitar aquestão também no Brasil.

A resposta não pode ser imediata. Tem de ser estruturada na aná-lise de numerosas situações em que as consequências jurídicas normaissofrem  embates  em  consequência  da  desproporção ou  desequilíbriodas situações em presença.

E deve prolongar-se ainda na pesquisa de todo o regime jurídicoque consequentemente lhes fica associada.

Mas isto é já outra linha de indagação. Por ora, basta ter deixadoa porta entreaberta.¿