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Cleito Pereira dos Santos (org.) · sua concepção específica de totalidade é um dos elementos fundamentais para ... abordagem que procura ... e na miséria. Da educação ao mercado

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Cleito Pereira dos Santos (org.) Nildo Viana (org.)

Capitalismo e Questão Racial

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Cleito Pereira dos Santos (org.) Nildo Viana (org.)

Capitalismo e Questão Racial

Cleito Pereira dos Santos Lisandro Braga Mário Maestri Nildo Viana

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Editora Corifeu Copyright © 2009 by Cleito Pereira dos Santos, Lisandro Braga, Mário Maestri & Nildo Viana Editora Corifeu Ltda. Estrada Boca do Mato, 111 – c. 69 22783-325 – Rio de Janeiro – RJ Tel.: (21) 3416-1358 Capa: Adriana Mendonça Diagramação: Equipe Corifeu Revisão: Alberto Nickerson

1ª edição – Janeiro 2009

A reprodução parcial ou total desta obra, por qualquer meio, somente será permitida com a autorização por escrito do autor. (Lei 9.610, de 19.2.1998).

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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

______________________________________________________________________

Capitalismo e questão racial/ Cleito Pereira dos Santos, Lisandro Braga, Mário Maestri & Nildo Viana

1.ed. - Rio de Janeiro – Corifeu – 2007 – 128 p.

Inclui bibliografia

ISBN 978-85-7794-167-4

1. Capitalismo 2. Brasil - História e crítica. 3. Brasil - Vida

intelectual. 4. Brasil - História. I. Título.

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SUMÁRIO

Prefácio............................................................................................................................03 Nildo Viana Apresentação...................................................................................................................06 Cleito Pereira Raça e Etnia.....................................................................................................................08 Nildo Viana Capitalismo e Racismo....................................................................................................22 Nildo Viana Zurara e a Origem do Racismo........................................................................................31 Mário Maestri Relações Raciais no Brasil Contemporâneo....................................................................51 Cleito Pereira Cotas Raciais: Solução para o Racismo?.........................................................................63 Lisandro Braga Sobre os autores...............................................................................................................81

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PREFÁCIO

O presente livro sobre “capitalismo e questão racial” aborda um tema específico,

as relações raciais, num enfoque amplo, isto é, tratando não de forma isolada e descontextualizada, mas sim no contexto da sociedade capitalista.

Sem dúvida, isto revela opções teóricas e metodológicas. Do ponto de vista metodológico, aqui se prioriza um determinado método de análise. O método dialético e sua concepção específica de totalidade é um dos elementos fundamentais para tal análise. Da perspectiva dialética, não é possível compreender o particular sem entender a totalidade, pois a especificidade do particular está na forma como se relaciona com a totalidade. Traduzindo isto para a questão específica abordada no presente livro, não é possível compreender as relações raciais sem entender a forma específica como esta se organiza na sociedade capitalista e se relaciona com o conjunto de relações sociais que a caracteriza. Da mesma forma, não é possível compreender o racismo sem compreender o modo de produção capitalista.

Esta opção metodológica traz em si algumas opções teóricas. É preciso reconhecer que existem várias formas de se conceber a totalidade, do ponto de vista metodológico, mas aqui a totalidade é o que Marx chama “concreto”, síntese de suas múltiplas determinações, embora tendo uma determinação fundamental. Não precisamos, do ponto de vista além do metodológico, isto é, já adentrando no aspecto teórico, justificar que a teoria do capitalismo desenvolvida por Marx assume papel fundamental neste processo. Sem dúvida, tal como muitos hoje o reconhecem, desde intelectuais declaradamente marxistas até antimarxistas ou mesmo grandes empresários, a explicação do capitalismo apresentada por Marx é insuperável. Assim, compreender o capitalismo passa pela referência a Marx. Sendo assim, as relações raciais, na sociedade capitalista, não pode ser destacada desta base real, que lhe explica.

Assim, o particular e a totalidade se encontram. As relações raciais não caem do céu, são produzidas historicamente, fruto das lutas sociais. Neste sentido, o racismo é um produto social e histórico e somente compreendendo o desenvolvimento histórico e as relações sociais existentes na sociedade moderna é que podemos entender sua razão de ser e por qual motivo existe e permanece sua reprodução, apesar de sua origem em tempos remotos, na aurora do capitalismo.

Desta perspectiva teórica e metodológica surge uma concepção diferenciada das relações raciais tal como colocada por muitos pesquisadores atuais. Uma concepção bastante comum é a de que isola as relações raciais das demais relações sociais. Trata-se de uma concepção frágil, equivocada, ideológica, mas também bastante prejudicial do tendo em vista de suas conseqüências e efeitos práticos.

Isolar a relação entre brancos e negros significa retomar as bases intelectuais do racismo. A percepção apenas da relação imediata, da aparência, não permite ir mais longe, chegar à essência. Essa consciência imediatista, falsa, não ultrapassa o aparente, o que parece “dado”, isto é, não percebe o processo de constituição do fenômeno e suas determinações, sua historicidade e suas relações com o conjunto das demais relações

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sociais. A ideologia que sistematiza isso é fundada em pressupostos que revela valores, sentimentos, interesses, que não se caracteriza pela luta por relações raciais igualitárias, mas sim que apenas busca a permanência da desigualdade, da opressão, ou, no máximo, sua inversão, transformando a relação entre opressor e oprimido, fazendo do oprimido um opressor e vice-versa. Claro que esta segunda hipótese, em nossa sociedade, é apenas uma fantasia irrealizável. A primeira é a realidade cruel do racismo com a qual convivemos. O problema é que ambas as concepções servem para reproduzir o racismo.

Assim, o isolamento das relações raciais cumpre um papel de fornecer uma explicação simples e falsa do racismo e, ao mesmo tempo, reproduzir a estrutura mental da ideologia racista. A luta de raças se torna algo existente e que opõe uma raça à outra, num isolamento fantástico, e assim, o maniqueísmo toma o lugar da compreensão das relações raciais. O maniqueísmo opõe bem e mal e o pensamento racista se estrutura desta forma. Assim, para justificar a opressão racial, a escravidão, etc., os ideólogos afirmam que os negros representam o mal, o inferior, etc. Os negros passam a ter uma essência maligna, perniciosa, negativa.

Do outro lado, há o positivo, o bem, o branco. Isto justifica, legitima e reforça praticamente a opressão racial. Mas não seria impossível pensar essa equação maniqueísta inversamente. Assim, na inversão do maniqueísmo dos ideólogos racistas, temos o seu contrário e irmão gêmeo que simplesmente inverte o bem e o mal, e, neste último caso, são os brancos que passam a ter uma essência maligna, perniciosa, negativa. Os negros, neste caso, passam a representar o bem, o positivo. Nesta fórmula invertida, pouco se pode fazer para abolir a opressão racial. O máximo que se pode fazer é trocar de opressor. E o maniqueísmo se reproduz, assim como se justifica uma nova forma de opressão. A idéia de luta de raças criadas pelos ideólogos é racista, quando isolada e descontextualizada, quando considera que “todos os negros são iguais” e que “todos os brancos são iguais”. Na verdade, estes negros e brancos não são seres sociais, históricos, reais, concretos, são fantasmas da imaginação racista.

Por conseguinte, a chave para compreender o pensamento racista é o maniqueísmo, bem como a receita para escapar dele é partir da perspectiva da totalidade. Somente assim se recupera a história e a sociedade, somente assim se supera seja a aparência essencializada ideologicamente, seja a suposta homogeneidade racial. Somente assim os indivíduos, brancos ou negros, deixam de ser manifestações fantásticas de essências malignas ou benignas e passam a ser vistos como seres sociais, históricos, envolvidos em determinadas relações sociais, portadores de interesses, valores, sentimentos, constituídos social e historicamente a partir de sua posição na divisão social do trabalho e na sociedade dividida em classes sociais.

Assim, é necessário não homogeneizar, essencializar, desistoricizar e dessocializar os brancos e os negros, pois esta é a estrutura do pensamento racista. Neste sentido, é necessário compreender a relação entre capitalismo e questão racial, tema de análise do conjunto de textos deste livro. Assim, os textos aqui presentes não caem na solução fácil e que é hegemônica em nossa sociedade que é reproduzir a estrutura do pensamento racista.

Este livro é uma contribuição para a superação do pensamento e prática racistas. Porém, há obstáculos, pois o pensamento racista tem uma forte base aliada: a consciência imediata das relações sociais, as representações cotidianas ilusórias, as

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ideologias racistas, a competição social, os conflitos sociais, a situação de vida da população negra, etc. Mas se existem obstáculos, também deve existir a luta para superá-los. Esta é uma luta cultural, teórica e prática. Neste sentido, o presente livro é uma das várias tentativas neste sentido.

O conjunto de textos aqui reunidos serve para se pensar de forma diferente da ideologia dominante a questão racial. Claro que muitas contribuições neste sentido já foram produzidas e muitas delas estão citadas nos textos que compõem a presente coletânea. Mas aqui além de se retomar, atualizar e aprofundar algumas destas contribuições, também marca uma possibilidade de um novo espaço para se compreender a estrutura do pensamento racista e buscar superá-lo.

Portanto, este é um livro que apresenta a crítica e aponta alguns elementos para se pensar a realidade racial brasileira dentro de um quadro teórico abrangente e atual. Tem a pretensão de estimular os debates em torno das questões levantadas, propiciando a elaboração de outros textos e artigos que aprofundem a compreensão do racismo no capitalismo. Neste sentido, os textos aqui reunidos são complementares. O texto sobre Raça e Etnia apresenta esclarecimentos conceituais; o texto Capitalismo e Racismo analisa a origem e reprodução do racismo na sociedade moderna, bem como o seu significado. O texto sobre Zurara e a Origem do Racismo é uma análise de um caso específico de desenvolvimento de uma ideologia racista; o texto sobre as Relações Raciais no Brasil Contemporâneo já aborda o caso concreto brasileiro, marcado por uma forte opressão racial. Já o texto Cotas Raciais: Solução para o Racismo? entra na discussão polêmica da implantação do sistema de cotas e suas implicações para as relações raciais, revelando os limites desta política.

Assim, a ordem dos textos parte do geral para o particular, mas é preciso fazer o caminho inverso, principalmente no sentido prático. Que fazer? Sem dúvida, é necessário compreender as relações sociais existentes, as relações raciais estabelecidas e sua dinâmica, para poder propor e agir. Alguns elementos neste sentido são apontados, tal como a luta pela transformação social, bem como também ações mais imediatas, mas são apenas esboços, que se tornaram propostas mais concretas com o desenvolvimento das reflexões aqui apresentadas e com novas contribuições que a partir daqui surgirão. De qualquer forma, o racismo é uma prática fundada em determinadas idéias, e se estas são refutadas, a prática é enfraquecida.

Nildo Viana

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APRESENTAÇÃO

A temática presente neste livro representa as preocupações dos autores dos textos

em enfocar o debate sobre as relações raciais a partir de uma perspectiva diferente das abordagens comuns acerca do tema.

Nesse sentido, dá-se ênfase aos aspectos que configuram a constituição do racismo e sua ligação histórica com o capitalismo. Em outros termos, apresenta-se uma abordagem que procura relacionar racismo com capitalismo, indicando as particularidades desse processo.

As recentes abordagens realizadas pelo movimento negro brasileiro têm-se apresentado de forma ineficaz, uma vez que se preocupam, quase que exclusivamente, com o debate da moda, qual seja: a discussão sobre políticas de ação afirmativa e cotas e, assim, não trata com propriedade a temática do racismo e a estrutura que lhe dá sustentação no Brasil. Isto tem levado ao entendimento, por parte dos ingênuos, de que o combate e o fim do racismo se esgota na adoção de políticas públicas de viés compensatório. Dessa maneira, o racismo é visto como uma questão de estatística. Daí inventaram até a tal da discriminação positiva. Os EUA deveriam servir de exemplo para pensarmos até que ponto a adoção de políticas específicas, sem alterar a estrutura sócio-econômica e político-cultural, são apenas um paliativo para a questão. É preciso ir além das superficialidades. Medidas anti-racistas implicam no questionamento da ordem política e econômica do capitalismo.

O racismo constitui a base real da subjugação dos negros no Brasil. A estrutura sócio-econômica e político-cultural está assentada em práticas raciais que privilegiam determinados grupos e mantêm a maioria na ignorância, no obscurantismo e na miséria. Da educação ao mercado de trabalho, jorram estatísticas informando o que é ser negro. E ser negro aparece associado a baixos índices de escolaridade, a trabalho degradante e rendimentos inferiores, a constantes humilhações e suspeitas.

Este livro trata das relações entre capitalismo e racismo, das relações raciais no Brasil, da educação e das desigualdades raciais, da origem do racismo, das políticas de cotas raciais. Procura oferecer um quadro teórico capaz de desvendar os aspectos significativos da estrutura das relações raciais sob o capitalismo.

A condição do negro deve ser desvendada se quisermos compreender com precisão tal processo. Em que tipo de sociedade vivemos e que relações raciais se constituíram? Quais os mecanismos que sustentam as práticas racistas? Podem os negros superar o capitalismo e o racismo? Algumas destas questões estão presentes ao longo dos textos e os autores procuram respostas, que não são definitivas, para subsidiar um debate que parece deixado de lado por aqueles que, no afã de chegar ao poder, “esquecem” que existem relações sociais e raciais inerentes ao capitalismo e que não basta ir ao topo do poder para mudar a realidade, é preciso mudar a própria sociedade.

Este livro é um livro que toma partido. Os autores não estão apenas se deleitando com respostas vagas acerca de uma temática. Está claro, desde o início, que os autores estão envolvidos no debate e pretendem contribuir com a constituição de uma cultura

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política diferente daquele preconizada pelos adeptos do poder. Inclusive aos que imaginam que fazendo uma política à direita possibilitarão maiores oportunidades para os negros.

Os debates e acúmulos políticos anti-racistas dos anos 1970-80, que culminaram na emergência de um movimento negro atuante, foram esvaziados e acomodados tendo em vista a onda adesista dos militantes de outrora às políticas de governo que procuram amortecer a tensão racial através da cooptação do movimento negro.

Medidas em termos de estatísticas, tais políticas de governo podem e devem elevar o percentual de negros ocupando cargos públicos, o número de universitários, etc., mas e quanto às práticas racistas? Será que os números e estatísticas darão conta de resolvê-las? Óbvio que não!

Hoje está na moda nas mais variadas instituições, públicas e privadas, colocarem negros como peça decorativa de seus comerciais, mostrando assim seu famigerado “compromisso social”. A propaganda transmite a mensagem política de que a sociedade está mudando. Está deixando de ser racista! Este é apenas o discurso conservador daqueles que pretendem realizar uma segunda abolição sem a participação dos negros.

Se não encararmos de frente a questão racial, dificilmente iremos resolvê-la. E resolvê-la implica uma compreensão nítida da sociedade racista em que vivemos. Uma compreensão do capitalismo e das relações raciais enquanto mecanismos de poder e dominação constituídos historicamente e que apresenta suas variadas facetas em cada época, em cada período, em cada momento da história sócio-econômica e político-cultural brasileira.

Portanto, este é um livro que trás a crítica e aponta alguns elementos para se pensar a realidade racial brasileira dentro de um quadro teórico abrangente e atual. Tem a pretensão de estimular os debates em torno das questões levantadas, propiciando a elaboração de outros textos e artigos que aprofundem a compreensão do racismo no capitalismo.

À medida que apresentam uma interpretação teórico-prática do fenômeno racial no capitalismo, os autores contribuem para pensarmos a superação do racismo e das práticas discriminatórias contra grupos sociais. Este é o significado da obra.

Cleito Pereira dos Santos

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Raça e Etnia Nildo Viana

Na atualidade, vem tornando-se comum considerar os termos raça e etnia como equivalentes. Raça e etnia não revelam, segundo esta perspectiva, realidades distintas. No entanto, consideramos problemática esta redução de um termo a outro e apresentaremos, no presente texto, uma discussão sobre as diferenças e semelhanças entre estes termos.

Esta é uma tarefa difícil, pois ambos os termos são polêmicos e estão envolvidos em questões políticas e ideológicas, tal como se vê nos fenômenos do racismo e do preconceito étnico. A situação se complica mais ainda quando recordamos que tanto o conceito de raça quanto o de etnia são confundidos com outros termos, tais como o de casta, classe, nação, entre outros.

Iremos, aqui, iniciar nossa discussão com uma análise do conceito de raça e posteriormente do conceito de etnia e, por último, iremos relacionar ambos. Mas, antes de mais nada, iremos esclarecer o que entendemos por conceito. O conceito é uma “expressão da realidade” (Marx, 1989) e, como tal, existem dois momentos que serão analisados por nós: a realidade e sua expressão conceitual. Porém, tal como colocou Bakhtin (1990), existe uma polissemia no signo provocada pelos conflitos sociais e desta forma uma mesma palavra recebe significados distintos. Por isso, ao lado da realidade e de sua expressão conceitual, teremos também que considerar a expressão ideológica da realidade, já que esta é que dificulta a compreensão dos fenômenos em questão e que proporciona visões e usos das expressões raça e etnia de forma equivocada e socialmente destrutiva.

O Conceito de Raça O conceito de raça nos apresenta uma dificuldade enorme. Esta dificuldade tem

sua origem no fato de que raça remete às diferenças físicas no interior da espécie humana. O problema é que tais diferenças são superficiais (relativas à aparência) e que o processo histórico provocou um encontro de raças e, conseqüentemente, uma intensa miscigenação.

Essa dificuldade permite que alguns afirmem existir duas raças e outros postulam a existência de duzentas (Banton, 1979; Garn & Coon, 1978), e não faltam os que encontram números intermediários de raças (três, quatro, trinta, etc.). Porém, para se definir o número de raças humanas existentes é necessário, anteriormente, definir o conceito de raça. Geralmente ele é definido a partir da consideração de que ele trata de diferenças físicas. John Lewis, por exemplo, coloca que “define-se uma raça como sendo um grupo que tem, em comum, certo conjunto de caracteres físicos inatos, e uma origem geográfica dentro de certa área” (1965, p. 106).

Esta definição, no entanto, é insuficiente. Que tipo de diferenças físicas? Geralmente se fala da cor da pele, dos cabelos e outras características físicas. Mas existem diferenças internas entre determinados “tipos” de cabelo, cor de pele, por exemplo. A distinção que alguns biólogos fazem entre genótipo e fenótipo é extremamente útil:

“O genótipo de um indivíduo é simplesmente a sua dotação genética, a soma total do material hereditário recebido por um indivíduo de seus genitores e outros ancestrais. O fenótipo de um indivíduo é o que

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vemos, isto é, as estruturas e suas funções. Segundo uma série de regras de desenvolvimento, o fenótipo é produzido a partir do genótipo pela interação com o ambiente” (Shorrocks, 1980, p. 21).

Podemos dizer que as diferenças raciais ocorrem na esfera do fenótipo. Estas são diferenças superficiais (cor da pele, forma e cor dos cabelos, formas faciais, etc.), tal como colocamos anteriormente. No entanto, isto não resolve a questão que colocamos acima. A sua única vantagem reside no fato de deixar claro que as diferenças raciais (fenotípicas) não proporcionam nem superioridade nem inferioridade e que, portanto, qualquer tese que remeta a algum tipo de pretensão de superioridade racial é destituída de qualquer valor teórico, sendo apenas uma ideologia racista, da qual trataremos mais adiante.

Pensar em raças humanas significa pensar em divisões na espécie humana e isto requer esclarecer que tipo de divisão é esta. Pensar em espécie humana significa enfatizar o que existe em comum em todos os seres humanos. O ser humano constitui uma espécie que se diferencia das outras espécies do mundo animal. Os biólogos admitem que no mundo animal existam “subespécies” no interior de uma espécie. No caso da espécie humana tal divisão é inexistente (alguns defendem a tese de que em épocas remotas existiam três subespécies humanas, mas que só uma sobreviveu, a atual). A idéia de subespécie nos traz a visão da diferença não só fenotípica como também genotípica. Por isso não devemos confundir subespécie com raça. A espécie humana, pelo menos a partir de um momento histórico longínquo, não possui subespécies e a raça só pode ser compreendida como uma divisão no interior de uma espécie e se houvesse subespécie seria uma divisão no interior desta.

Podemos definir raça como uma população que possui em comum um conjunto de características físicas (fenotípicas) hereditárias que se transformam através da relação com o meio ambiente e da miscigenação. Um indivíduo pertence a uma raça se possuir este conjunto de características diferenciadoras. Este conjunto, por sua vez, é transmitido hereditariamente e por isso características físicas derivadas de acidentes físicos ou biológicos não fazem parte deste conjunto. Tal conjunto de características físicas são fenotípicas e não genotípicas.

Desta definição decorrem algumas conseqüências, tais como as observadas pelo psicólogo Otto Klineberg:

“Pode-se, pois, definir uma raça como um grande grupo de homens, que possuem em comum certas características físicas determinadas por hereditariedade. As outras características, não-físicas, que foram atribuídas às raças, são neste caso secundárias, uma vez que não entram em seu conceito ou definição, não sendo usadas, por exemplo, na classificação racial. Assim, quando um psicólogo (Moss) escreve que ‘uma raça é um grupo de pessoas que têm a mesma origem remota e, conseqüentemente, apresentam traços físicos e mentais (o grifo é nosso) diversos dos de outras raças de origem completamente diferente’, incorpora em sua definição um juízo que carece de prova e sobre o qual por enquanto não há acordo. Da mesma forma, quando um antropólogo (Hrdlicka) afirma que ‘os caracteres que distinguem as raças humanas são morfológicos, fisiológicos, químicos, psicológicos e ainda, patológicos’, ultrapassa francamente os limites da doutrina antropológica aceita. Por definição, os caracteres que distinguem as raças humanas são morfológicas; o resto está por provar-se” (Klineberg, 1966: 18).

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Este autor é bastante moderado em sua explicação. No entanto, podemos dizer que não há a possibilidade de ser provada qualquer outra diferença que não seja fenotípica. Os elementos chamados “psicológicos” ou mentais não possuem nenhuma relação com diferença racial. A mente é constituída socialmente e não hereditariamente. Logo, a diferença racial não é e nem poderia ser mental, apenas poderia ser cultural, dependendo do relativo isolamento que é superado pelo contato racial a partir de determinado momento do desenvolvimento histórico. A diferença racial é apenas física e apenas fenotípica, pois no que se refere ao genótipo não há diferença. Desta forma, resta apenas a aparência física para distinguir raça, o que é tão sem importância que deveria ser até abandonado tal conceito devido sua irrelevância, se não fosse o processo histórico e social que transformou uma diferença tão irrelevante em algo muito diferente, devido às relações de dominação e opressão que se constituíram a partir do momento em que usaram tais diferenças para legitimar e justificar tais relações.

A compreensão do conceito de raça pressupõe uma discussão sobre o processo histórico do desenvolvimento das raças. A partir da definição de raça acima, podemos considerar que existem três raças humanas: a caucasóide, a negróide e a mongolóide (Lévi-Strauss, 1970; Lewis, 1965). Claro que mesmo partindo da definição acima é possível se considerar um número diferente de raças existentes, variando de acordo com as características físicas e suas variações que forem selecionadas. Sem dúvida, como todo processo classificatório de situações complexas, existe uma grande dose de convencionalidade, mas, além disso, existem os pressupostos teóricos ou ideológicos por detrás de toda classificação. Consideramos que a distinção racial se refere apenas a um conjunto de diferenças físicas hereditárias relativamente grandes, o que significa que pequenas diferenças físicas não constituem uma raça, pois, se formos considerá-las, corremos o risco de encontrar uma infinidade de raças. Tais diferenças, de nossa perspectiva, se expressam nas três raças acima citadas.

No entanto, um novo problema emerge: com o crescente processo de miscigenação se pode pensar em “raças puras”? Não existe, a nosso ver, sentido em se pensar em raças puras, pois isto remeteria ao problema da fenotipia pura, o que é um contra-senso, pois a relação com o meio ambiente pode alterar algumas das características físicas fenotípicas. Não se trata de pensar em pureza racial e sim de observar quais são as diferenças que distinguem uma raça de outra, e tal diferença ocorre no interior de uma semelhança muito mais profunda, tanto ao nível genotípico quanto fenotípico, além de psíquica e social. O processo histórico que proporcionou um alto grau de miscigenação traz uma nova dificuldade que deve ser resolvida. As raças humanas possuem sua origem num mesmo espaço territorial e se reproduziam enquanto raças mais ou menos sem miscigenação devido ao isolamento espacial que não permitia, na maioria dos casos, contatos raciais. A raça negra, por exemplo, tem sua origem no continente africano e seu desenvolvimento ocorreu de forma relativamente isolada das demais raças até o momento histórico de expansão do capitalismo. A raça amarela, por sua vez, tem sua origem no continente asiático e regiões próximas.

O desenvolvimento do modo de produção capitalista rompe com todos os isolamentos espaciais, pois é sua característica o expansionismo, ao contrário dos modos de produção pré-capitalistas. Os contatos raciais se tornam cada vez mais freqüentes e inevitáveis. A partir deste momento histórico se pode falar em relações raciais, e junto com elas a opressão e a miscigenação. A opressão cria os conflitos raciais e a miscigenação cria uma dificuldade em se definir a qual raça diversos indivíduos pertencem, pois eles acabam recebendo herança fenotípica de mais de uma raça. No entanto, esta herança fenotípica é predominante de uma ou outra raça e desta

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forma é possível definir a qual raça o indivíduo pertence. Por exemplo, os chamados “mulatos” e “pardos” possuem uma herança fenotípica predominantemente negra e por isso não constituem “raças” e sim fazem parte da raça negra.

As relações raciais entre brancos e negros nasceram sob o signo da expansão capitalista. A escravidão negra marca o nascimento de relações raciais conflituosas, marcada pela exploração e opressão dos negros pelos “brancos” (ou melhor, por alguns brancos, os componentes das classes dominantes – a burguesia e a classe senhorial). Assim surge o racismo, que iremos discutir mais adiante.

A transferência de grandes contingentes da população negra para o Brasil, os Estados Unidos, entre outros locais, é um capítulo importante no processo de miscigenação, que é reforçado pelo processo de migração de todas as raças para regiões habitadas originalmente por outras raças (brancos na África, negros na América, amarelos na Europa e América, etc.).

Portanto, o conceito de raça não se refere a nenhuma diferença física importante entre os seres humanos, sendo que a produção ideológica de diferenças imaginárias entre as raças é que adquirem importância explicativa de diversos fenômenos, incluindo o racismo. Por conseguinte, podemos dizer que tanto para as chamadas ciências naturais quanto para as chamadas ciências sociais, o conceito de raça possui importância mínima, mas que, com a emergência do racismo, acaba ganhando grande importância para a compreensão das relações sociais contemporâneas.

Racismo e Ideologia Podemos definir o racismo como uma prática de discriminação racial (Viana,

1994). O racismo emerge a partir de relações raciais conflituosas, marcadas pela opressão de uma raça sobre outra. As relações raciais são relações instauradas entre as raças humanas e podem ser igualitárias ou se fundamentar na opressão. As relações raciais igualitárias colocam a questão racial como algo destituído de importância. Porém, no caso de relações raciais conflituosas, o conflito é expressão da discriminação racial e junto com ela a ideologia racista.

Os pressupostos da ideologia racista são a idéia de superioridade de uma raça sobre a outra. A superioridade racial inventada pelos ideólogos racistas se encontra na afirmativa de que as diferenças físicas entre as raças não são apenas fenotípicas, mas também genotípicas ou na afirmativa de que a diferença não é apenas física, mas também mental, cultural e/ou moral. Sem dúvida, existe uma infinidade de ideologias racistas (Banton, 1979), mas elas possuem uma das formas de fundamentação acima colocadas.

O racismo surge num momento histórico preciso, o da ascensão e desenvolvimento do capitalismo. A escravidão negra fornecia o elemento necessário para a emergência da ideologia racista e seu fundamento foi, no início, religioso e, posteriormente, racionalista com pretensões científicas, tal como na concepção darwinista da evolução e na concepção geográfica do “espaço vital” (Marco, 1987; Viana, 2000; Banton, 1979; Lewis, 1965) inspirada no darwinismo e retomada recentemente pela etologia e sociobiologia (Viana, 2000; Christen, 1981; Lumsden & Wilson, 1985; Wilson,1992; Ruse, 1982; Wallace, 1985). Estas ideologias, no entanto, não surgiram gratuitamente. Elas vieram para justificar a escravidão negra, o expansionismo colonial e imperialista, entre outros fatos históricos.

A ideologia racista também se fortalece e expande em momentos de crise, pois neste momento torna-se interessante para a classe dominante criar um “inimigo imaginário” (ou “bode expiatório”, como dizem os psicólogos) para desviar a atenção das verdadeiras determinações da crise. Isto pode ser feito tanto através da

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culpabilização de raças ou grupos internos (alegando que estes constituem raças...) como grupos externos (neste último caso, aponta-se para uma guerra que tende a reconstituir a unidade nacional dilacerada por seus conflitos internos) (Viana, 2007).

Neste momento devemos distinguir a ideologia racista que se fundamenta em diferenças raciais existentes mas falseadas e a ideologia “racista” que se fundamenta numa atribuição falsa de diferença racial. Este último caso pode ser exemplificado pelo nazismo, que pregava a superioridade da raça ariana (que nem sequer constitui uma raça, pois o laço de ligação entre os “arianos” é de origem lingüística) sobre a “raça dos judeus” (que também não constitui uma raça, pois o seu laço de ligação, por sua vez, é religioso). O racismo que tem como fundamento diferenças raciais reais pode ser exemplificado no preconceito racial de brancos contra amarelos (“asiáticos”) e vice-versa. Com isto queremos dizer que se trata realmente de preconceito racial, que se refere a raças realmente existentes, embora sua ideologia da superioridade seja tão falsa quanto no caso anterior. Este tipo de racismo pode ser exemplificado no caso do racismo citado pelo antropólogo Clyde Kluckhon (1972) dos norte-americanos contra os imigrantes japoneses e chineses, que tinham sua fonte na disputa pelo mercado de trabalho e na disputa imperialista do final da década de 30.

Voltando ao nosso assunto original, outra fonte de geração da ideologia racista e do preconceito racial se encontra na sociabilidade instaurada na sociedade capitalista, fundamentada na mercantilização e burocratização das relações sociais e na competição social desenfreada no sentido da busca de status, poder, riqueza, ascensão social, etc. Esta competição ocorre em todas as esferas da vida social (no trabalho, para conseguir “subir de cargo”; no mercado de trabalho, para conseguir emprego; entre empresas capitalistas, na disputa pelo mercado consumidor; nas escolas, pelo melhor desempenho ou para ter acesso, etc.). Esta competição generalizada cria uma animosidade e qualquer diferença existente serve de pretexto para se buscar colocar o concorrente como inferior e a questão racial aparece muitas vezes como este pretexto almejado.

A diferenciação social e a lumpemproletarização de indivíduos negros, no caso da relação raciais negros-brancos, também fornecem fundamentos para as ideologias racistas e para o preconceito racial, pois as condições de vida e a possível criminalidade derivada da situação social aparece como demonstração da “inferioridade racial” sem qualquer vínculo com a questão social.

Outro fundamento se encontra no que Lobrot (1977) denominou generalização afetiva: “Assinalemos imediatamente que não se trata de um fenômeno de natureza cognitiva, mas sim afetiva” (p. 65). Este autor acrescenta que:

“Tal generalização afetiva é extremamente comum. É ela que está, por exemplo, na origem do racismo. Dizer ‘todos os negros são sujos e imorais’, ‘todos os judeus são avaros e ladrões’, etc. e regular seu comportamento por tais juízos pertencem ao domínio do racismo. Mas alguém que sistematicamente tem medo de todos os animais, ou do escuro, ou dos carros, etc., também é vítima dessa generalização” (Lobrot, 1977: 66).

Na base dessa generalização se encontra os sentimentos de medo, raiva, inveja, etc. No caso do racismo ou de outras formas de preconceito contra outros grupos sociais, o confronto com um indivíduo com determinadas características físicas (racismo, sexismo) ou culturais (outras formas de preconceito) provoca a generalização para todos os outros indivíduos com as mesmas características.

Desta forma podemos dizer que o racismo não tem nenhum fundamento real, pois sua gênese se encontra nos conflitos sociais, interesses e sentimentos formados

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numa sociedade baseada na divisão de classes sociais antagônicas e marcada pela opressão e conflitos sociais variados.

Vários pesquisadores, sensíveis ao problema do racismo, buscam substituir ou simplesmente abandonar o conceito de raça, partindo do pressuposto de que se não existem raças humanas, então não há o menor sentido no “preconceito racial”. Mas tal solução é ilusória, pois o mundo das ideologias não só utiliza as diferenças raciais (ou qualquer outro nome que se lhe dê: etnia, classe, nação) realmente existentes como cria diferenças inexistentes, inclusive raciais (a “raça ariana” e a “raça judaica”, por exemplo).

O fundamento do racismo não se encontra nos termos utilizados pelos cientistas e por isso não possui efeito nenhum o seu abandono (como o conceito de raça). Também não são as diferenças raciais realmente existentes que geram o racismo, pois elas são apenas a matéria-prima para que os interesses e sentimentos manifestem o racismo. Isto é tão verdadeiro que basta citarmos a criação de raças imaginárias para observarmos que na falta desta matéria-prima se cria outra. Em outras palavras, o racismo possui uma gênese social que nos remete à mentalidade dos racistas e não à realidade das diferenças raciais e, por isso, negar esta última não altera a primeira. Por conseguinte, é uma ilusão querer abolir o racismo abandonando o conceito de raça.

O Conceito de Etnia O conceito de etnia também é problemático, embora não tanto quanto o de raça.

As várias definições do termo etnia podem ser agrupadas em duas concepções fundamentais: a primordial e a situacional. O antropólogo Clifford Geertz, coloca o seguinte:

“Por ligação primordial entende-se aquela que provém dos ‘dados’, ou mais precisamente – visto que a cultura está inevitavelmente envolvida nestes assuntos – dos ‘dados’ supostos da existência social: contigüidade imediata e ligação forte principalmente, mas para além destas a disponibilidade proveniente do fato de se ter nascido numa determinada comunidade religiosa, de se falar a mesma língua, ou mesmo um dialeto de uma língua, e de se seguir determinadas práticas sociais. Considera-se que esta semelhança de sangue, fala, costumes, etc., possui um poder de coação indescritível e por vezes esmagador de e em si própria. Está-se ligado aos parentes, aos vizinhos, aos correligionários, ipso facto não só em resultado da atração pessoal e da necessidade de convívio, do interesse comum e da obrigação moral assumida, mas também, pelo menos em grande parte, em virtude de certo sentido absoluto e inexplicável atribuído ao próprio laço em si” (apud. Rex, 1988: 48).

A concepção situacional considera a etnia como um “recurso útil”. Ela é utilizada para se reivindicar junto a uma organização social determinados interesses e para atingir certos objetivos. Da mesma forma, outros grupos podem utilizar a etnia como pretexto para negar determinados direitos (Rex, 1988).

Estas duas concepções podem ser consideradas as principais mas não esgotam a diversidade de abordagens sobre etnia, embora possamos considerar que as demais concepções são derivadas delas. Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart (1998) apresentam seis concepções diferentes de “etnicidade”:

1) A etnicidade como dado primordial: baseia-se na similaridade intrínseca fundamentada na herança cultural transmitida pelos antepassados, sendo a fonte de ligações primárias e fundamentais (Shils, Geertz, Kallen);

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2) A etnicidade como extensão do parentesco (sociobiologia): a idéia básica dessa concepção se fundamenta na tese sociobiológica do “egoísmo genético”, segundo a qual o egoísmo tem sua fonte nos genes e os indivíduos são geneticamente determinados a buscar o “sucesso reprodutivo” através da reprodução dos genes de um indivíduo e daqueles com os quais compartilha os genes, os seus parentes (Van der Berghee);

3) As concepções instrumentalistas e mobilizacionistas: tal concepção considera a etnicidade como um recurso utilizável na luta pelo poder político ou bens econômicos (Glazer, Moynihan). Ela pode ser subdividida em três concepções: a) as concepções fundamentadas no individualismo metodológico da “escolha racional”. Segundo esta concepção, a formação dos grupos étnicos ocorre quando os indivíduos não conseguem adquirir riqueza e poder através de estratégias individuais, e por isso formam grupos a partir de diferenças culturais e/ou raciais para consegui-lo (Banton); b) a concepção do colonialismo interno. Esta concepção surge para explicar a expansão do “etno-nacionalismo” na sociedade capitalista e se baseia na tese da “divisão cultural do trabalho” entre centro e periferia, interpretando a etnicidade como instrumento de lutas coletivas, como forma de solidariedade que aparece em resposta à discriminação e desigualdade, constituindo, assim, uma consciência política coletiva (Hechter); c) A concepção de “grupo de interesse”. Para esta concepção, as etnias são instrumentos que exercem influência nas políticas públicas de acordo com seus interesses (Vicent, Geschwender, Gellner);

4) A concepção economicista. Esta concepção – que os autores denominam “neomarxista”, sem justificar o que há de novo nessa abordagem pretensamente marxista – centra sua atenção nas funções que as divisões étnicas e raciais preenchem no capitalismo, enfatizando a busca por uma força de trabalho barata e a disputa pelo mercado de trabalho, esvaziando de conteúdo o termo etnia;

5) A concepção neoculturalista. Para esta concepção a etnia é um “sistema cultural” ou “sistema simbólico”, constituindo um “sistema de significações” coercitivas que realizam a distinção entre o “nós” e os “outros” que serve de base para a ação e interpretação do outro (Drumond, Aronson, De Vos, Deshen, Epstein, Simon).

6) A concepção interacionista. Tal concepção considera a etnicidade como “um processo contínuo de dicotomização entre membros e outsiders, requerendo ser expressa e validada na interação social” (Poutignat e Streiff-Fenart, 1998: 111). Ela se opõe às concepções primordialistas/essencialistas ao enfatizar os aspectos generativos e processuais da etnia (Barth, 1998).

Por conseguinte, observamos que a expressão etnia possui inúmeras definições e é concebida sob diferentes formas. No entanto, consideramos que grande parte destas definições não é mais que mera estratégia para se construir artificialmente um “objeto de estudo”, pois o que denominam etnia pode ser considerado como o equivalente de classe social, movimentos sociais, grupos sociais, etc., e não devemos deixar de observar que sua construção se realiza, na maioria dos casos, por sociólogos e não por antropólogos – que tradicionalmente trabalham com o termo etnia – e tomam como referencial os grupos sociais conflitivos de nossa sociedade capitalista. As concepções instrumentalistas possuem o equívoco comum de pensar a etnicidade em termos dos valores da sociedade capitalista moderna – que pulverizou os valores tradicionalistas e colocou em seu lugar o frio e calculista predomínio do dinheiro (Marx & Engels, 1988). Segundo estas abordagens, os valores tradicionalistas permanecem apenas como instrumentos dos valores modernos que tomaram seu lugar como finalidade.

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A abordagem economicista cai no reducionismo e não consegue apresentar uma visão satisfatória dos conflitos sociais devido a isto e a sua desconsideração com a questão cultural e sentimental. A abordagem interacionista não ultrapassa a percepção da produção e reprodução da identidade coletiva de grupos e diferenciação cultural em geral e confunde isto com a questão da etnicidade. A concepção sociobiológica se baseia num determinismo genético destituído de fundamentação e sem nenhuma argumentação sólida por detrás e revela um racismo disfarçado em suas concepções (Viana, 2000; Montagu, 1978; Fromm, 1975).

Resta-nos, portanto, a concepção primordialista, que nos parece mais próxima da tradição etnológica. Uma posição próxima é defendida pelo antropólogo português Carlos Lopes: “Definamos a etnia como uma entidade caracterizada por uma mesma língua, uma mesma tradição cultural e histórica, pela ocupação de um mesmo território, por uma mesma religião e sobretudo pela consciência coletiva de pertença a essa comunidade” (Lopes, 1982: 33).

Porém, consideramos esta definição demasiadamente restrita e a-histórica e por isso preferimos trabalhar com a idéia de etnia da seguinte forma: uma etnia é uma coletividade (sociedade ou comunidade) de indivíduos que são (ou se originaram) de um mesmo território e que possuem, também, uma unidade e homogeneidade cultural (mesma língua, religião, crenças em geral, valores, etc.) e uma identidade coletiva de pertencimento a esta etnia.

A nossa definição de etnia é próxima da de Geertz e Lopes, mas possui um elemento diferenciador: o aspecto histórico. Ao colocar que uma etnia pode ser tanto uma sociedade quanto uma comunidade, apontamos para a realidade histórica de transição de uma sociedade para uma comunidade, ou seja, de uma coletividade autônoma para uma coletividade dependente – esta posição difere da do sociólogo Tönnies (1977), que vê a comunidade como uma coletividade que possui relações internas de dependência enquanto que para nós ela se caracteriza por uma relação de subordinação externa em relação a uma sociedade, uma coletividade mais ampla – sendo que podemos dizer que uma sociedade é uma coletividade auto-suficiente e uma comunidade é uma parte dependente da sociedade. As populações indígenas formam sociedades até o momento em que são integradas na sociedade capitalista, tornando-se comunidades, ou seja, coletividades dependentes. Quando afirmamos que uma etnia é uma coletividade que habita um mesmo território ou então é oriunda de um território compartilhado anteriormente por todos os seus membros, apontamos para a possibilidade de deslocamento territorial de uma etnia. Esta posição também é próxima à do antropólogo francês Auzias (1978), que busca recuperar a historicidade da etnia em contraposição às concepções a-históricas.

Por isso podemos distinguir duas formas de etnia: a etnia fundamentada em laços fortes e a etnia fundamentada em laços frágeis, sendo que, originalmente, toda etnia possui laços fortes e é com o processo histórico de desenvolvimento capitalista que ela se torna etnia de laços frágeis, o que é um passo para a abolição de tal etnia. Desta forma, observamos que a etnia é uma coletividade típica de algumas sociedades não-capitalistas e que com o processo de expansão do capitalismo vai sendo subordinada e/ou superada pelo capitalismo.

Isto também coloca uma outra característica da etnicidade: os indivíduos que compõem uma etnia compartilham o mesmo passado, a mesma tradição histórica e cultural e, desta forma, ninguém pode “aderir” a uma etnia, tal como se pode aderir a uma religião. Esta é uma distinção fundamental entre etnicidade e religiosidade.

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Outro elemento importante a se ressaltar é a diversidade enorme de etnias. Basta citarmos a diversidade de sociedades indígenas para observarmos isto. Mas não apenas as sociedades indígenas se constituem etnias, embora elas sejam o seu melhor exemplo, principalmente quando se fala de etnia de laços fortes.

A nossa definição se insurge contra a banalização do conceito de etnia, que a partir de determinadas definições passa a ser aplicado às coletividades tão distintas que fica difícil distinguir etnia de classe social, nação, religião, etc. A partir da definição acima colocada não se pode confundir etnia e classe, etnia e religião e com diversas outras coletividades. Sem dúvida, alguns poderão afirmar que, mesmo partindo desta definição, se pode confundir etnia e nação. Isto só é possível se o conceito de nação for esvaziado de seu conteúdo histórico (ela surge com o capitalismo e a formação dos estados-nações) e se deixarmos de lado que na maioria das nações não existe unidade cultural e sim pluralidade (de religião, línguas, tradições) e não existe homogeneidade e sim heterogeneidade (de valores, crenças, etc., que se vê, por exemplo, na divisão de classes). A possibilidade de se confundir etnia e raça será tratada mais adiante.

O Preconceito Étnico O etnocentrismo, se fossemos basear na etimologia do termo, se fundamenta

numa concepção que distingue entre a nossa etnia e a outra, considerando a nossa como sendo o “centro”, a “superior” e a outra como “periferia”, como “inferior”. Mas não é exatamente esta a definição apontada por diversos antropólogos. Tomemos um exemplo:

“O etnocentrismo é uma visão de mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência. No plano intelectual, pode ser visto como a dificuldade de pensarmos a diferença; no plano afetivo, como sentimentos de estranheza, medo, hostilidade, etc.” (Rocha, 1994: 0 7).

Outro antropólogo expressou isto da seguinte forma: “A atitude mais antiga e que se assenta em fundamentos

psicológicos sólidos, pois tende a reaparecer em cada um de nós quando se nos depara numa situação inesperada, consiste em repudiar pura e simplesmente as formas culturais – morais, religiosas, sociais, estéticas – mais afastadas daquelas com que nos identificamos. ‘Modos de selvagens’, ‘isso não é de nosso costume’, ‘não se deveria permitir isso’, etc., tantas reações grosseiras que traduzem essa mesma gastura, essa mesma repulsa, em presença de maneiras de viver, de crer e de pensar que nos são estranhas” (Lévi-Strauss, 1970: 236).

Citemos mais uma definição semelhante e que foi a de quem introduziu este termo nas ciências sociais: o etnocentrismo é a “visão de mundo na qual o centro de tudo é o próprio grupo que o indivíduo pertence; tomando-o por base, são escalonados e avaliados todos os outros grupos” (Summer, apud. Hoebel, 1987, p. 437).

Uma leitura atenta destas citações nos permite observar que nenhum dos autores utilizaram a expressão etnia. Fala-se em grupos ou formas culturais. A omissão do termo etnia é algo que merece reflexão. Isto se deve ao fato de que, se podemos nos referir às sociedades indígenas, entre outras coletividades, como etnias, não podemos nos identificar como uma etnia. Sendo assim, a expressão etnocentrismo é equivocada. Na verdade, existe uma idéia de superioridade e centralidade da cultura ocidental, formada e hegemônica a partir do desenvolvimento capitalista, que não ela como um todo, mas apenas a que possui hegemonia, a cultura burguesa. Mas, além da idéia de

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superioridade e centralidade, existe o ponto de partida desta idéia, constituída pela mentalidade da cultura burguesa. Porém, todo preconceito parte da mentalidade do preconceituoso para avaliar as demais culturas e grupos. A idéia de superioridade pode ou não estar presente, tal como no racismo, no qual o racista considera sua raça “superior”. Podemos, assim, pensar perfeitamente em preconceito racial e em racismo.

Porém, um indivíduo ou grupo pode avaliar outro grupo ou indivíduo como inferior, selvagem, defeituoso, sem partir de uma identidade própria de grupo marcada pela unidade cultural. Em outras palavras, existem casos em que a) o preconceito produz uma distinção de identidade entre o “nós” e o “outro” e existem casos em que b) o “nós” é difuso e não tem como referência um grupo específico (pode ter como referência algo mais amplo, como, por exemplo, a cultura burguesa, originariamente um “europocentrismo”, seu local de nascimento, mas que se expandiu por todo mundo e por isso acabou se distinguindo de comunidades, etnias, nações, etc.). No primeiro caso podemos citar a xenofobia e o racismo, e no segundo, o preconceito étnico. A cultura burguesa é hegemônica sem ser única, já que existem outras manifestações culturais na sociedade capitalista, o que é omitido pela expressão “cultura ocidental”, que muitas vezes serve para um preconceito étnico às avessas, produzido por essa mesma cultura burguesa.

Desta forma, o termo etnocentrismo é equivocado e por isso deve ser substituído por preconceito étnico. Alguns podem considerar que o termo tradicionalmente utilizado deve permanecer justamente devido à tradição, mas tal procedimento é contrário ao pensamento teórico que deve buscar conquistar cada vez mais uma precisão e clareza conceitual.

Por conseguinte, o preconceito étnico acaba reproduzindo algumas características que são comuns ao racismo, tal como a idéia de superioridade-inferioridade, embora tenha mais diferenças do que semelhanças, pois, para citar apenas um exemplo, no racismo há uma idéia de luta de raças de caráter maniqueísta, tal como observou Sartre (1960), o que não ocorre no caso do preconceito étnico.

O preconceito étnico vai se expandir concomitantemente com a expansão capitalista. A sociedade capitalista com sua cultura burguesa vai, devido ao seu expansionismo, encontrar diversas etnias (na África, na América, etc.) e irá buscar subjugá-las. A escravidão negra no Brasil, por exemplo, significou a transferência de diversos indivíduos de diferentes etnias (bantos – que englobava os angolas, os benguelas, os congos e os mocanbiques – e os sudaneses – que englobava os iorubas, os gêges, os minas, os fanti, etc.) para um estado-nação emergente que significou sua integração nesta sociedade. As sociedades indígenas no Brasil e nos Estados Unidos foram – e continuam sendo – dizimadas física ou culturalmente, pois isto é uma exigência da expansão capitalista.

O encontro com estas etnias e a necessidade de subjugá-las irá se tornar o principal fundamento do preconceito étnico, que irá contestar a moral, os costumes, a religião das etnias contactadas, para eleger a moral, os costumes e a religião dominantes na sociedade capitalista como superiores e civilizadas. As etnias contactadas são qualificadas como “inferiores” “bárbaras”, “atrasadas”. Obviamente que isto, ao contrário do que pensa Lévi-Strauss, não se trata de “fundamentos psicológicos sólidos” e “atitude mais antiga” e sim determinados interesses e determinado tipo de cultura que necessita subjugar as demais e assim legitimar e justificar essa relação de dominação instaurada. Embora todo grupo e indivíduo tenham a tendência em avaliar e analisar tudo o que lhe cerca a partir de sua perspectiva, isto só se torna problemático e gera preconceito quando esta perspectiva é fundada em interesses de dominação e

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exploração, em uma mentalidade competitiva (Viana, 2008), entre outras características da cultura burguesa (e não da cultura ocidental em geral, ou seja, toda produção cultural produzida no ocidente).

Como a expansão capitalista é uma expansão também territorial, então a ligação entre etnia e território passa a ter importância fundamental. Os conflitos sociais derivados daí estão envolvidos fundamentalmente na luta pela terra e a expansão capitalista vai, paulatinamente, provocar uma desapropriação territorial e isto provoca, em muitos casos, a destruição de etnias, cujo processo se inicia de forma mais abrupta e radical com o extermínio físico ou com a chamada “aculturação”, que, no início, se caracteriza pela transição de etnia com laços fortes para uma etnia com laços frágeis. Neste contexto, o preconceito étnico irá justificar e legitimar tal processo e, como nossa sociedade não é homogênea, grande parte da população que poderia se opor a ele acaba acatando-o devido a esta legitimação.

Raça e Etnia A partir da definição de raça e etnia colocadas anteriormente, podemos observar

facilmente que estes conceitos se referem a realidades distintas. A raça é constituída por semelhanças físicas e etnia pela unidade cultural. Realidades distintas, conceitos distintos.

No entanto, se recordarmos o processo histórico, veremos que em alguns casos raça e etnia se confundiram. As diversas etnias “africanas”, “brasileiras”, etc., são compostas por apenas uma raça e isto não poderia ser diferente, pois as etnias constituem sociedades auto-suficientes sem relações mercantis e, por conseguinte, sem grandes necessidades de contatos culturais, o que permite a reprodução da mesma herança fenotípica. Por conseguinte, toda etnia é composta por apenas uma raça. Porém, a recíproca não é verdadeira, pois uma raça pode, e historicamente isto ocorreu, constituir uma diversidade de etnias. O continente africano, por exemplo, era habitado quase que exclusivamente pela raça negra, que, no entanto, se dividia em numerosas etnias, com territórios, línguas, costumes, etc., diferentes.

O processo de expansão capitalista tornou mais radical esta separação entre raça e etnia, pois a sociedade capitalista não permite a existência de etnias no seu interior e foi integrando as populações do mundo inteiro, o que significa a destruição das etnias. O capitalismo removeu etnias de seus territórios e destruiu sua unidade cultural (as etnias negras) e rompeu com o isolamento racial com o processo de escravidão e migração populacional.

Na sociedade contemporânea, é impossível considerar que uma raça constitui apenas uma etnia. Um negro brasileiro possui muito mais afinidade cultural com um branco e um “amarelo” brasileiro do que com um negro africano ou norte-americano, embora o racismo e a origem territorial comum criem uma certa identidade entre eles, mas não se trata de identidade étnica e sim racial – produzida pelas relações raciais conflituosas –, pois falam línguas diferentes, possuem costumes diferentes, etc. Mesmo entre os negros brasileiros existem diferenças culturais grandes dependendo da região em que moram.

Neste sentido, se torna importante deixar claro a distinção entre os conceitos de raça e etnia. Uma raça se constitui através de semelhanças físicas em comparação com as diferenças físicas em relação a outras raças e uma etnia se constitui através de sua unidade cultural. Por isso, confundir raça e etnia mais dificulta a superação do racismo e do preconceito étnico do que contribui para sua erradicação. Por isso, julgamos necessário abrir espaço para se pensar a superação do racismo e do preconceito étnico a partir de uma reflexão teórica que demarque suas diferenças.

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Capitalismo e Racismo Nildo Viana

A questão racial vem sendo abordada sob as mais variadas perspectivas teóricas,

mas poucas são as análises marxistas a seu respeito. Consideramos que a busca da compreensão do racismo remete, necessariamente, aos recursos teóricos do materialismo histórico-dialético e é este o procedimento que será adotado aqui. Por conseguinte, o estudo do racismo, sob perspectiva marxista, nos obriga a procurarmos na história e no conjunto das relações sociais a sua origem e as determinações que possibilitam sua reprodução nas sociedades capitalistas contemporâneas.

O racismo não é apenas uma ideologia. Ele é, também, um conjunto de práticas sociais. O racismo é uma prática social de discriminação racial. Essa prática discriminatória não ocorre apenas no mundo das idéias e valores, mas também no mercado de trabalho, no nível de renda, nas relações de poder, etc. Podemos dizer que é o racismo (conjunto de práticas sociais de discriminação racial) que cria a ideologia racista, ou seja, a ideologia vem a posteriori para justificar o racismo, tal como definido acima. Não é a ideologia racista que cria o racismo, mas, ao contrário, é o racismo que cria a ideologia racista. Portanto, o racismo é a “fonte” da ideologia racista. Contudo, uma vez existindo, a ideologia racista reforça o racismo. A ideologia racista, como toda ideologia, é mobilizadora, isto é, produz práticas e, desta forma, gera racismo, criando um círculo reprodutor que dificulta a compreensão de que a origem e essência deste fenômeno se encontra nas relações raciais concretas.

Mas pensar em racismo pressupõe a definição do conceito de raça. A definição desse conceito é tão variada que alguns, partindo de sua definição, sustentam que existem apenas duas raças enquanto que outros afirmam que existem duzentas raças. Também já se defendeu a identidade do conceito de raça com outros conceitos, tais como: casta, classe, etc. A definição que consideramos mais correta é a que coloca que ela é expressão das diferenças físicas entre membros da espécie humana. Porém, tais diferenças são apenas na aparência física, são diferenças fenotípicas.

Entretanto, não existe nenhuma fundamentação para se afirmar que existe superioridade de uma raça sobre outra, pois estas diferenças de caracteres físicos não fornece nenhuma vantagem mental, moral ou física de uma raça sobre outra. Além disso, o desenvolvimento físico, mental e moral do ser humano é condicionado socialmente e, portanto, as diferenças só podem ser explicadas pelo seu contexto social e histórico e não por diferenças raciais.

Concordamos, portanto, com a definição de raça apresentada por John Lewis:

“Define-se uma raça como sendo um grupo que tem em comum, certo conjunto de caracteres físicos inatos e uma origem geográfica dentro de certa área. Existem três raças maiores assim definíveis – a caucasóide, a mongolóide e a negróide – além de algumas raças menores. Estas raças originaram-se quando ocorreram variações em alguma raça perdida, em diversas partes do mundo onde, durante séculos, o isolamento manteve

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separado os tipos resultantes. Entretanto, as raças secundárias não conservaram o menor grau de pureza” (Lewis,1968, p. 106) 1.

A partir desta definição do conceito de raça, podemos definir o que são relações raciais. Segundo Oliver Cox, as relações raciais são “o comportamento que se desenvolve entre as pessoas que estão conscientes das respectivas diferenças físicas, autênticas ou imputadas” (apud. Banton, 1979, p. 149). Entretanto, é necessário um esclarecimento sobre as diferenças físicas “imputadas”: as relações raciais possuem sua particularidade mas não estão desligadas das demais relações sociais (“econômicas”, “políticas”, culturais, etc.) e estas são, geralmente, dominadas pela visão ideológica sobre elas e isto cria a possibilidade de se imputar diferenças físicas inexistentes, pois no conjunto das relações sociais isto pode ser vantajoso para determinados grupos e indivíduos.

Portanto, precisamos descobrir sob quais relações sociais surge o racismo e que tipos de relações sociais tomam possível sua reprodução. Somente uma análise histórica poderá nos esclarecer sobre essas questões. Se analisarmos o período histórico que abrange o escravismo antigo até o século 16 não veremos nenhum caso de discriminação racial, pois, tal como colocou o antropólogo R. Linton: “Antes do século XVI não havia no mundo a consciência de raça, nem havia incentivo algum para que essa consciência surgisse” e ele acrescenta que, na antigüidade:

“Os povos clássicos conheciam apenas um grupo de tipo físico acentuadamente diferente do seu. Eram os negros nilóticos, cujo território ficava a distancia demasiado grande para que lhes dessem importância, fosse como inimigos, fosse como fontes de escravos. Portanto, a atitude clássica em relação a esse povo era neutra. De fato, os poetas gregos mostravam tendências a idealizá-los mais que aos bárbaros seus vizinhos, aos quais conheciam melhor e comumente se referiam aos nilóticos com os ‘felizes etíopes’” (Linton, 1962, p. 62-63).

Assim chegamos à conclusão de que a partir do século 16 houve uma mudança histórica que criou a necessidade do racismo e da ideologia racista2. Esta mudança foi a adoção da escravidão negra no novo mundo. Se a escravidão no mundo antigo não tinha nenhuma conotação racial, o mesmo não se pode dizer em relação ao “novo mundo”. Podemos dizer que, no caso especial do Brasil, mas que pode ser generalizado à todos países escravistas do continente americano, a colonização estava ligada às necessidades de acumulação primitiva de capital dos países europeus e que foi graças a ela que se formou um modo de produção escravista colonial-exportador, o que pressupõe a monocultura, a grande lavoura e o trabalho escravo3.

A acumulação primitiva de capital produziu o modo de produção escravista colonial e o tráfico negreiro. A polêmica sobre os motivos da adoção do trabalho escravo dos negros africanos continua viva, mas podemos concordar com a tese de que 1 Faz-se necessário ressaltar que focalizaremos, neste texto, o conflito racial entre negros e brancos,

embora haja elementos teóricos e referências generalizáveis a todos os conflitos raciais. 2 Segundo Sérgio Buarque de Holanda, os escravos negros em Portugal eram vítimas do racismo, mas

este era muito mais brando do que o que surgiu posteriormente e persiste até hoje. Além disso, ele não era acompanhado por uma ideologia que o justificasse (cf. Holanda, 1990).

3 Cf. Prado Júnior (1989); Furtado (1979).

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o tipo de produção implantada nos países escravistas exigia uma grande quantidade de força de trabalho não encontrada nem no local de produção nem na Europa ocidental e daí a necessidade de buscá-la na África. Segundo E. Willians:

“Com a população limitada da Europa no século XVI, os trabalhadores livres necessários para cultivar cana-de-açúcar, tabaco e algodão no novo mundo, não podiam ser fornecidos em quantidades adequadas para permitir a produção em grande escala. A escravidão foi necessária por causa disso e para conseguir escravos os europeus recorreram primeiro aos aborígenes e depois à África” (Willians, 1975, p. 10).

Portanto, é com o desenvolvimento das sociedades européias no período de transição ao capitalismo e a sua expansão comercial e colonial que se cria uma nova situação histórica que altera o caráter das relações raciais criando e consolidando o racismo. É a adoção do trabalho escravo dos negros e o tráfico negreiro que torna necessário uma ideologia que justifique essa prática social de discriminação racial. Os dominadores europeus não só sentiam necessidade de justificar para si mesmos as condições subumanas e a exploração sistemática efetuada por eles sobre os escravos negros como também procuravam, sem muito sucesso, inculcar isto nos escravos para facilitar sua dominação.

A ideologia da superioridade racial atravessou duas fases:

“As primeiras tentativas para racionalizar o domínio europeu baseavam-se em sanções sobrenaturais. Como os europeus eram cristãos e a maioria dos povos dominados não o era, parecia natural que o Deus todo-poderoso dos cristãos recompensasse seu próprio povo. Os proprietários de escravos negros podiam mesmo justificar a prática da escravatura por uma passagem do antigo testamento, na qual os filhos de Ham eram condenados a ser ‘cortadores de lenha e tiradores de água’. Essas sanções sobrenaturais, porém, cedo começaram a perder sua força e os brancos procuraram racionalizações naturalistas. A teoria da evolução e da sobrevivência dos mais aptos era o instrumento que precisavam”(Linton, 1962, p. 64).

O darwinismo surge como o mais eficiente fundamento da ideologia racista. O seu evolucionismo com base na “luta pela vida, “sobrevivência dos mais aptos” e na “herança dos caracteres adquiridos” servia para justificar a escravidão negra no Novo Mundo. Geralmente se aceita a diferenciação entre o darwinismo original – utilizado apenas na esfera da biologia – e o darwinismo social – que é a aplicação da “teoria” biológica da seleção natural à sociedade. A razão dessa diferenciação se encontra, segundo seus defensores, no próprio Darwin, que aplicaria suas teses apenas ao mundo dos seres vivos, “biológico” e não ao mundo social, humano. Isto, entretanto, não é verdade. Se isto não ficou claro em A Origem das Espécies, em A Descendência do Homem ficou evidente, pois neste livro ele aplicava suas teorias as sociedade humanas, inclusive utilizando-se das teses malthusianas. O próprio Darwin, como ficou demonstrado em seu diário de bordo publicado sob o título Viagem de um Naturalista

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ao Redor do Beagle (Darwin, 1979; Darwin, 1974) Darwin, 1981), assumia posições claramente racistas4. Entretanto, Darwin apenas foi um dos ideólogos que procuraram, intencionalmente ou não, justificar a nova situação social. Posteriormente, surgiram muitos outros que, baseando-se nele ou não, buscaram fundamentar “cientificamente” a ideologia racista, tais como Gobineau, Lapouge, etc.

Mas se a origem histórica do racismo não é motivo de muita polêmica, o mesmo não ocorre a respeito do que torna possível a reprodução da ideologia racista em nossa época. Existem aqueles que dizem que a ideologia racista sobrevive devido à “herança cultural” enquanto outros sustentam que ela permanece devido à “dominação branca”. Consideramos que para saber por qual motivo a ideologia racista se reproduz nas sociedades contemporâneas é necessário, inicialmente, compreender seu processo de produção e reprodução. Toda ideologia possui uma base real que ela apresenta de forma invertida (Marx & Engels, 1991). Portanto, só pode existir uma ideologia racista existindo uma base real que lhe dê sustentação. A base real da ideologia racista só pode ser o racismo, tal como o definimos anteriormente. O racismo cria a ideologia racista e esta o justifica e incentiva sua reprodução.

Entretanto, o racismo da época escravista é diferente do racismo da época contemporânea. Explicar esta diferença é o primeiro passo para compreender a permanência da ideologia racista nos dias de hoje. Para compreendermos a situação do negro nas sociedades capitalistas contemporâneas é preciso ver que em todas as sociedades escravistas coloniais a abolição da escravidão significou apenas o fim do cativeiro e do trabalho forçado, ou seja, mudou-se apenas o seu status de escravo para homem livre. Mas qual passou a ser a situação social desse “homem livre”? Quais são as possibilidades da população negra de se reproduzir em igualdade de condições com as outras camadas da população?

Em todas as sociedades em que houve o fim do trabalho escravo (como, por exemplo, o Brasil e os Estados Unidos) a integração do negro nas sociedades pós-escravistas se deu da mesma forma: em uma situação subalterna e de marginalização social. As sociedades escravistas coloniais apresentavam o escravo negro como sendo a “base” da “pirâmide social” em nível de vida. As condições precárias de vida dos escravos negros, a principal classe explorada do modo de produção escravista colonial, quase não eram compartilhadas por outras camadas sociais. As sociedades pós-escravistas alteram a forma da divisão de classes mas a conserva5, ou seja, surgem novas relações de classes mas continua existindo classes sociais e aqueles que pertenciam às classes exploradas no modo de produção anterior tendem a pertencer às classes exploradas do novo modo de produção.

A divisão da sociedade em classes no escravismo colonial era, ao mesmo tempo, uma divisão racial, já que os escravos eram negros e os senhores de escravos eram brancos. Nas sociedades pós-escravistas, os negros deixam de pertencer a uma única classe e se dividem entre as diversas classes que compõem a sociedade capitalista. Entretanto, a maioria esmagadora dos negros passam a compor as classes exploradas da sociedade capitalista, tais como o proletariado, o campesinato, o lumpemproletariado, etc., que também possuem condições precárias de vida e, assim sendo, os negros continuam, em matéria de nível de vida, formando, juntamente com os componentes brancos das classes exploradas, a “base da pirâmide social”.

4 Para uma crítica ao darwinismo, cf.: Viana (2001); Marco (1987); Hirst (1977); Lewis (1969); Banton

(1976); Viana (2003). 5 Para o caso do Brasil, cf. CAMILO TORRES (1965); para o caso dos EUA, cf. BARAN & SWEEZY (1978).

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Por conseguinte, as condições de vida da população negra criavam a possibilidade de interpretar tal situação como “natural”, ou seja, como produto não de uma determinada situação social mas sim de uma condição natural: a raça. John Lewis nos chamou a atenção sobre esse mesmo assunto:

“É preciso também que se compreenda que quando as pessoas são destituídas de seus direitos, consideradas inferiores, forçadas a viver em más condições e tratadas como animais, elas desenvolverão muitas qualidades más. Então, aqueles que as exploram apontarão as conseqüências do tratamento que lhes dão como razão para mantê-las numa posição de degradação e inferioridade. Privamos as pessoas de instrução e depois queixamo-nos de que são analfabetas. Fazemos delas o que são, depois indagamos como se pode esperar que as recebamos em nossas casas em igualdade de condições” (Lewis, 1969, p. 116).

O modo de produção capitalista condiciona o conjunto das relações sociais e instaura uma verdadeira sociabilidade capitalista. Esta tem como uma de suas principais características a competição social, expressa na busca de status, ascensão social, etc. Isto tudo produz uma forma também específica de mentalidade: a mentalidade burguesa. Esta reproduz, no plano das idéias, a sociabilidade capitalista6. Este fato acaba provocando uma rivalidade interna nas classes exploradas.

Segundo Baran e Sweezy:

“O resultado claro disso tudo é que cada grupo de status tem a necessidade psicológica enraizada de compensar os sentimentos de inferioridade e inveja para com aqueles que estão acima, na escala social, pelos sentimentos de superioridade e desprezo em relação aqueles que se acham abaixo. Sucede, pois, que um grupo especial de párias no fundo da estratificação social, funciona como uma espécie de pára-raios par as frustrações e hostilidade de todos os grupos em posição mais elevada. Pode-se dizer que a própria existência do grupo de párias é uma espécie de harmonizador e estabilizador da estrutura social – tanto mais que estes apenas desempenham seu papel passiva e resignadamente. Tal sociedade torna-se com o tempo tão completamente saturada com o preconceito racial que este mergulha no nível do subconsciente, convertendo-se numa parte da ‘natureza humana’ de seus membros” (Baran & Sweezy, 1978, p. 264-265).

As sociedades capitalistas contemporâneas são formadas por classes sociais antagônicas e vivem em uma permanente guerra civil oculta. Por conseguinte, é necessário reconhecer que a ideologia racista também se fundamenta nas contradições do capitalismo, ou seja, na luta de classes. A estratégia do “dividir para conquistar” é adotada eficazmente pela classe dominante desde que Maquiavel escreveu O Príncipe. Isto assume um caráter mais visível no capitalismo contemporâneo que se caracteriza pelo incentivo à competição em todas as esferas da vida social. Vejamos um exemplo. Os trabalhadores são obrigados, devido a existência do exército industrial de reserva, a competir pelo emprego. Isto cria conflitos internos na classe trabalhadora e a 6 Sobre mentalidade burguesa e sociabilidade capitalista, cf. Viana (2002).

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preferência dos empregadores pelo trabalhador branco provoca conflitos raciais que ofuscam as verdadeiras determinações do desemprego e dos baixos salários – que é a dinâmica do modo de produção capitalista – e assim amortece a luta de classes.

A sociedade capitalista vive constantes crises cíclicas. Nós sabemos que toda crise apresenta a necessidade de sua solução. A classe revolucionária e a classe dominante precisam fundamentar teórica ou ideologicamente a ação política necessária para se concretizar a “solução” proposta. A solução da classe revolucionária é a revolução social e a da classe dominante é a contra-revolução. Ambas passam a combater um inimigo. A diferença está em que o inimigo apontado pela classe revolucionária é real e o apontado pela classe dominante é imaginário. Toda crise traz insegurança e por isso as classes exploradas buscam descobrir os “responsáveis” ou as determinações que a provoca. A classe dominante busca ocultar o seu papel no processo – que é o de conservar as relações sociais em crise e que geram a crise – e inventa o inimigo imaginário, que é responsabilizado pela crise. Assim, o inimigo real inventa um inimigo imaginário7.

A invenção de um inimigo imaginário é uma forma de deslocar o conflito de classe para um conflito nacional, racial, religioso, etc. O inimigo real (a classe dominante) cria sua ausência e, ao mesmo tempo, a presença de um inimigo imaginário (por exemplo: os judeus na Alemanha nazista, as “bruxas” na inquisição, os comunistas no golpe de estado de 64 no Brasil, os “agentes do imperialismo”, "contra-revolucionários” ou “inimigos do povo” no capitalismo de estado da URSS, Leste Europeu, China, etc.). A invenção de um inimigo imaginário estrangeiro tem como objetivo criar ou fortalecer a identidade nacional, mas somente porque ela está dilacerada internamente pelos seus conflitos de classes, ou seja, busca-se transformar a contradição interna em externa e com isso “aboli-la” (tal como no caso argentino da guerra das Malvinas).

A concentração do mal em um inimigo imaginário reconstrói a identidade coletiva perdida. Assim, um partido burguês pode apresentar como “inimigo do povo” o atual governo no burguês e com isso ofuscar a visão do verdadeiro inimigo e aparecer como a alternativa que restauraria o equilíbrio social. Contudo, não devemos pensar que a classe dominante faça isso de forma planejada e consciente, embora muitas vezes isto ocorra, tal como no exemplo de Hitler. Uma afirmação dele deixa isto claro:

“Em geral, a arte de todos os verdadeiros chefes do povo de todos os tempos consiste em concentrar a atenção do povo em um único adversário, em não deixar dispersar-se... A arte de sugerir ao povo que os inimigos mais diferentes pertençam à mesma categoria é de um grande chefe... É preciso sempre colocar na mesma pilha uma pluralidade de adversários os mais variados” (apud. Agacinski, 1991, p.136-137).

A partir do momento que a ideologia burguesa triunfa e as classes exploradas aceitam a luta contra o inimigo imaginário personificado e este é destruído, vê-se que isto não significava a destruição da verdadeira fonte da contradição e da crise. Daí surge a necessidade de criar novos “inimigos imaginários” para ser objeto de ataque quando

7 Alguns apontamentos interessantes sobre a criação do inimigo imaginário, apesar das deficiências da

análise que “desconhece” a luta de classes como determinação fundamental do fenômeno, são apresentadas por: Agacinski (1991).

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as contradições se acirrarem novamente. É isto que possibilita a produção de “inimigos imaginários potenciais”. Quando se toma necessário para a reprodução capitalista, ou seja, quando a crise se instala, busca-se sua destruição para evitar o acirramento da luta de classes e possibilidade de revolução social.

Da perspectiva da classe revolucionária é um equivoco buscar a destruição de um inimigo (real ou imaginário) personificado em indivíduos reais (burgueses, negros, brancos, judeus, católicos, liberais, fascistas, etc.) ou em um indivíduo particular (o presidente da república, o líder do partido fascista, o chefe da igreja conservadora, etc.), pois isto significa destruir a imagem e não as relações sociais que engendram as classes sociais antagônicas, a exploração, a alienação, etc., e, portanto, o inimigo real que busca conservar estas relações8. A destruição de pessoas que sustentam determinadas relações sociais não significa a destruição destas, pois elas poderão se reproduzir e, assim, produzir novas pessoas para sustentá-las. Além disso, isto apenas reforçaria a ideologia dominante, porque o inimigo real é uma classe social que deve sua existência à determinadas relações de produção e a abolição destas (e, conseqüentemente, da classe dominante) não pode ser realizada com o extermínio de indivíduos reais.

Os “inimigos imaginários potenciais” são aqueles grupos diferenciados já existentes na sociedade. Estes podem ser os negros, os estrangeiros, os judeus, os comunistas, etc. Portanto, a luta de classes no capitalismo engendra, através da ação da burguesia, a reprodução do racismo por quatro motivos fundamentais; a) a classe dominante busca, em sua luta contra o proletariado, dividir a classe trabalhadora jogando uma parte dela contra a outra, utilizando-se de suas diferenciações e, entre estas, a diferenciação racial; b) para ofuscar a visão dos conflitos de classes ela busca desviar a atenção para outros tipos de conflitos, tal como o conflito racial; c) para evitar sua identificação com as relações sociais opressoras e em crise, ela busca responsabilizar certas camadas sociais por esta situação, sendo a população negra uma dessas camadas; d) quando as contradições se acirram e ameaçam transformar a guerra civil oculta em guerra civil aberta torna-se necessário, para a classe dominante, concentrar “o mal” em uma camada social especifica e a população negra (assim, como os judeus. os “comunistas”, os homossexuais, etc.) é uma reserva potencial que pode ser utilizada. Além disso, o racismo pode ser reforçado por motivos conjunturais:

“Em 1935, a maior parte dos americanos caracterizava os japoneses como ‘progressistas’, ‘inteligentes’, e ‘industriosos’. Sete anos mais tarde, esses adjetivos cederam lugar a ‘astutos’ e ‘traiçoeiros’. Quando se precisava de trabalhadores chineses na Califórnia, eles eram ‘frugais’, ‘sóbrios’ e ‘respeitadores da lei’, ao passo que, quando se defendia a lei da exclusão, passaram a ser ‘imundos’, ‘repugnantes’, ‘inassimiláveis’, ‘dominados pelo espírito de clã’ e ‘perigosos’ ” (Kluckhon, 1972, p. 132.).

Assim, dependendo da conjuntura, se reforça ou enfraquece os preconceitos e o racismo. A necessidade de força de trabalho pode beneficiar, momentaneamente, imigrantes, estrangeiros, etc., e o seu excesso pode provocar o efeito contrário. 8 “A revolução proletária não precisa do terror para realizar seus fins, ela odeia e abomina o assassinato.

Ela não precisa desses meios de luta porque não combate indivíduos, mas instituições, porque não entra na arena cheia de ilusões ingênuas que, perdidas, levariam a uma vingança sangrenta” (Luxemburgo, 1991, p. 103).

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Portanto, estas são as determinações do racismo e da ideologia racista. Mas elas são reforçadas pela “herança cultural” dos tempos da escravidão. Acontece que a tese de que a ideologia racista se reproduz exclusivamente devido à “herança cultural” é simplesmente ideológica. A herança cultural só se sustenta devido às condições reais de vida da população negra e aos conflitos sociais acima citados, pois assim são produzidas “comprovações empíricas” que lhe fornece uma certa credibilidade na esfera das representações cotidianas. Caso contrário, a luta secular dos negros seria suficiente para aboli-la. A herança cultural, na falta de uma “base real” que lhe dê sustentação, desapareceria com o passar do tempo. A tese da “dominação branca”, por sua vez, é apenas uma ideologia racista invertida. Desconhecer as condições históricas concretas que produziram o racismo e possibilitam sua reprodução apresentando-o como resultado da “dominação branca” é dar nova fundamentação ideológica ao racismo. Nesse caso, passa-se a colocar a questão apenas em termos de luta de raças. Tal tese apresenta as seguintes dificuldades: a) o que explica, se o problema é unicamente racial, a dominação branca sobre os negros a não ser sua “superioridade racial”? b) a luta dos negros passa a ser exclusivamente contra os brancos e a solução só seria possível com o aniquilamento dos últimos ou então com a substituição da “dominação branca” pela “dominação negra”, o que significa apenas a mudança da “raça dominante” e não a abolição do racismo; c) ao se colocar os brancos como o inimigo a ser combatido, troca-se inimigo real – a classe dominante que busca conservar as relações de produção capitalistas e as condições de produção e reprodução do racismo – por um inimigo imaginário, caindo numa eterna luta inútil, pois não vai à “raiz’ do problema e por isso ele continua sem solução; e d) reforça-se, assim, a ideologia racista, já que os brancos se sentirão ofendidos por serem tomados como “inimigos” e isto pode gerar antipatias e, conseqüentemente, perdas de aliados potenciais. Com isso se presta um bom serviço à estratégia burguesa do “dividir para conquistar”.

É claro que o racismo do oprimido tem fundamentos diferentes do racismo do opressor. O racismo do oprimido é uma resposta equivocada que alguns negros dão à sua situação de opressão e à necessidade de superá-la. É uma posição política equivocada e que não leva a nenhum resultado positivo, embora seja desculpável para aqueles que compreendem o fenômeno. Acontece que são poucos os que compreendem este fenômeno e sua existência é um retrocesso para o movimento de libertação dos negros.

A base real da ideologia racista, como já dissemos, é o racismo praticado nas sociedades capitalistas contemporâneas. A afirmação de um antropólogo sobre esta questão é extremamente correta: “a discriminação ‘racial’ é, sem nenhuma dúvida, apenas parte do problema mais geral da discriminação social” (KLUCKHON, 1972, p. 134). A condição social serve de “naturalização” da “inferioridade” racial. Assim a “inferioridade” social possibilita, juntamente com outros fatores, a ideologia da inferioridade racial.

Na ideologia, esta relação aparece invertida: é a “inferioridade” racial que causa a “inferioridade” social. No entanto, não podemos a partir disto chegar a conclusão simplista de que não existe “discriminação racial”, pois a discriminação social se utiliza das diferenças físicas para se realizar de forma especifica e direcionada a uma parte da população: a negra.

A superação do racismo só pode ser realizada com a concomitante superação do modo de produção capitalista e a implantação do modo de produção comunista. Portanto, o movimento negro deve articular sua luta especifica – anti-racista – com a luta geral das classes exploradas – anticapitalista. Existe uma unidade entre a luta anti-

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racista e a luta anticapitalista. Esta unidade se encontra no fato de ser impossível superar o racismo sem a superação do capitalismo.

Entretanto, a abolição do capitalismo não gera, automaticamente, a abolição do racismo. A superação do racismo só ocorrerá num quadro de transformações sociais que rompam com as relações raciais desiguais produzidas pelo modo de produção capitalista. Acontece que a superação do capitalismo ocorre num processo complexo e contraditório que não elimina imediata e automaticamente as formas capitalistas de regularização das relações sociais, tal como a ideologia racista. E esta, uma vez existindo e se reproduzindo durante o período revolucionário, poderá incentivar a permanência de relações raciais desiguais e, assim, ameaçar a própria construção de uma sociedade autogerida, devido aos conflitos sociais provocados por esta situação. Por isso, torna-se necessário articular a estratégia específica do movimento negro com a estratégia global do movimento operário.

A estratégia específica do movimento negro é aquela que marca a luta desse movimento contra o racismo. Isto inclui desde lutas imediatas como a denúncia do racismo, a luta por uma legislação anti-racista, a crítica das ideologias racistas, a busca de mudanças nas relações raciais nos movimentos sociais, etc., até a outras mais a longo prazo tal como a constituição de relações raciais igualitárias no conjunto da sociedade, e a instauração da autogestão social, sua condição de possibilidade. É principalmente, mas não unicamente, uma luta cultural que se inicia na atual sociedade e só termina com o fim completo do racismo na sociedade comunista já constituída.

Para que a construção de uma nova sociedade, baseada em relações raciais igualitárias, se concretize, é necessário romper com a reprodução do racismo no movimento operário e demais movimentos sociais. Sabemos que mesmo os militantes de organizações “ditas” revolucionárias e dos mais variados movimentos sociais (estudantil, urbanos, etc.) introjetam a mentalidade burguesa e aspectos da ideologia dominante e as reproduzem em sua prática social. Entre estes aspectos da ideologia burguesa que tais militantes reproduzem estão o racismo, o sexismo, etc. Isto se toma possível por causa da pressão das “idéias dominantes” e da sociabilidade capitalista. O movimento negro deve, então, buscar a realização de uma revolução cultural anti-racista desde já, no interior dos movimentos sociais, e deve permanecer realizando este trabalho cultural até mesmo no período de consolidação da sociedade autogerida para combater a “herança cultural” e, assim, evitar retrocesso, já que outros obstáculos estarão atuando simultaneamente e em conjunto podem dificultar a emancipação humana.

Podemos dizer, para concluir, que a razão de ser do movimento negro é a luta contra o racismo e, conseqüentemente, contra o capitalismo. Ele não deve se “anular” diante do movimento operário mas sim se articular com ele buscando a constituição de uma sociedade sem classes e com relação raciais igualitárias.

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Zurara: A Crônica da Guiné

e os Primórdios do Racismo Anti-Negro

Mário Maestri

Os primórdios da escravidão em Portugal No segundo século antes de nossa era, com a chegada das legiões romanas, o escravismo instalou-se como forma de produção dominante nos atuais territórios portugueses. A partir de então, a economia daquelas regiões centrou-se em torno da vila rustica, explorada pela mão-de-obra escravizada e voltada para o mercado mundial de então (Columella, 1977; Giardina e Schiavone, 1981; Kolendo, 1980; Petit, 1986; Staerman e Tofimova, 1975). Nesse contexto, em modo geral, a instituição escravista obedeceu a mesma trajetória conhecida em outras regiões da Europa, ao menos até a Reconquista. O domínio visigótico sobre a Lusitânia deu-se no contexto da desorganização das relações internacionais do Império Romano. O que não impediu que a prática da escravidão tenha prosseguido singularmente ativa sob a nova ordem, que legislou em forma detalhada sobre ela no Código Visigótico. O historiador português Manuel Heleno assinala: “Como uma classe quase equivalente à dos escravos romanos, os visigodos aceitaram, ao estabelecerem-se no século V na Hispânia, sem dificuldade a escravidão ali existente.” A mão-de-obra escravizada continuou a reproduzir-se “pelo nascimento, casamento, cativeiro, sanção penal, consentimento voluntário e abuso da força” (Heleno, 1933, p. 66). Em 711, os muçulmanos atravessarem o estreito de Gibraltar, permanecendo na Península Ibérica por oito séculos, de onde foram expulsos, em 1492, em forma definitiva. A reconquista feudal-cristã dos atuais territórios portugueses foi mais precoce. “O Porto e Braga foram reconquistados cerca de 868. Coimbra voltou [...] à posse cristã em 1068 e Lisboa em 1147.” Silves foi libertada em 1189, Alcácer do Sal, em 1217 e, finalmente, o Algarve, em 1249 (Saraiva, 2001, p. 34).

Por um lado, a reconquista cristã da Ibéria melhorou a sorte dos “servos originários” que, anteriormente sob o jugo mouro, passaram ao jugo dos novos senhores cristãos. Mas, pelo outro, fortaleceu a escravidão, devido aos abundantes apresamentos de cativos realizados pelos cristãos, nos territórios sob controle muçulmano. Ao contrário do que comumente se acredita, em Portugal como alhures, a Reconquista não determinou a extinção da escravidão de cristãos. Entretanto, dos séculos IX ao XI, boa parte da “população inferior [cristã] das províncias de Além-Douro e Beira” teria evoluído da servidão pessoal para a servidão da gleba, em um movimento que registrou verdadeiro progresso sócio-produtivo. A seguir, ela assumiria o status de colonos livros, em geral arrendatários de terras gravadas com foros feudais. Essa “diminuição dos escravos originários” teria sido acompanhada por forte “incremento dos muçulmanos” escravizados (Saraiva, 2001, p. 119). O que não justifica a proposta de Alexandre

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Herculano9 de “não ter havido na Península, a partir do século VIII, servidão pessoal, tirante a dos muçulmanos cativos de guerra”. 10

Segundo parece, nos primeiros tempos da Reconquista, os muçulmanos teriam sido passados simplesmente pelo fio da espada. A seguir, adotou-se comumente a prática de justiçar os guerreiros e escravizar as populações restantes. Muito logo, a Reconquista passou a significar para os senhores da guerra promessa da posse de terras e de trabalhadores escravizados. Com o confronto peninsular islamo-cristã, a guerra e as razias tornaram-se os grandes meios de produção de cativos. “[...] um dos objetivos das expedições que os cristãos faziam durante a Primavera por terras de mouros era [...] capturar homens para servirem na propriedade senhorial, onde a população semi-serva estava diminuindo rapidamente e para onde dificilmente se encaminhava os homens livres” (Heleno, 1933).

Mesmo após a conquista do Algarve, em meados do século 13, eram comuns razias nos territórios inimigos para obter bens, gados e cativos. Reduziam-se mouros à escravidão durante os socorros militares concedidos pelos senhores lusitanos à Castela contra o reino de Granada. O comércio e a pirataria foram também importantes fontes de abastecimentos de cativos mouros. “Dos meados do século XIII à conquista de Ceuta (1415) a escravidão alimentou-se principalmente das expedições e assaltos às costas do Norte da África.” (Heleno, 1933, p. 133). Em meados do século 15, Eanes de Zurara registrou em sua Crônica de Guiné que os primeiros navegadores enviados pelo príncipe dom Henrique para explorarem a costa atlântica da África orientavam-se para a “costa de Granada, outros corriam por o mar de Levante, até que filhavam – do latim, piliare – grossas presas dos infiéis, com que se tornavam honradamente para o reino” (Zurara, 1973, p. 51).

Escravidão moura Mesmo após a expulsão de Portugal dos judeus e dos mouros que não quisessem

se converter, decretada, em 1497, não era incomum o ingresso de mouros em Portugal, de livre e espontânea vontade, para negociar, escapar da fome, fugir de perseguições políticas, etc. ou, mais numerosos, trazidos como cativos da costa mediterrânica ou atlântica do norte da África (Braga, 199, p. 51). No contexto da conquista e reconquista da península ibérica, a escravidão passou a justificar-se sobretudo pelo ato de guerra e pelo fato religioso, e não mais pela qualidade intrínseca do cativo, como propunha a visão aristotélica da escravidão. A própria característica étnica desqualificou-se como razão de cativeiro diante do pressuposto religioso, sobretudo porque eram pouco perceptíveis as diferenças raciais entre o mouro e o moçárabe, isto é, o cristão que vivia nos territórios ibéricos dominados pelos árabes.

Mesmo quando o cativo era comprado ao mercador, ele era sobretudo um infiel filhado na guerra, em terra ou no mar. Ou um seu descendente que herdava o status minorado de sua mãe – partus sequitur ventrem, determinava o direito romano. Nesse contexto, não havia por que duvidar da justiça da escravidão. O destino e o tratamento do mouro em terras cristãs eram semelhantes ao do cristão em possessões islamitas. A grande justificativa da redução de um homem livre à escravidão era ter sido capturado em uma guerra justa. Quando era resgatado, não havia qualquer infâmia no ter sido escravizado. Como veremos com mais detalhes, a definição da justeza de uma guerra

9 Cf. HERCULANO, Alexandre. Do estado das classes servas na Península desde o VIII até o XII século.

[1858]. Opúsculos, III, 1876. 10 Cf. HELENO (1933, p. 112, 117).

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cabia à Igreja e, secundariamente, ao Estado. E entre todas as guerras justas não havia outra que fosse mais justa do que a terçada em prol da expansão da fé em Cristo.

Os momentos finais da Reconquista deram-se em contexto de profunda intransigência religiosa, transformando-se a “santa fé” na principal razão legitimadora da luta senhorial pelo domínio de terras e de trabalhadores. Nesse contexto, a religião era a justificativa por excelência da escravidão, como apenas assinalado. A redução do mouro ao cativeiro era o justo castigo por sua ofensa pessoal à divindade verdadeira (Tinhorão, 1988, p. 45). O fato de que o mouro capturado na guerra, comprado no comércio ou nascido no cativeiro fosse o escravo por excelência não criava relação necessária entre religião e servidão. Jamais houve impedimento de escravizar cristãos. Mesmo que as Partidas de Afonso X [1221-1282], rei de Castela, restringisse desde o século 13 a “redução a escravos” aos infiéis.

Senhores cristãos fugiram dos mouros portando seus cativos de mesmo credo que prosseguiram na servidão. Moçárabes foram escravizados pelos barões cristãos. O mouro convertido e seus filhos batizados não deixavam de ser cativos. Diversas transgressões puniam os cristãos com o cativeiro: delitos civis, venda de armas aos infiéis, etc. 11 Na Baixa Idade Média e no Renascimento, a Igreja prosseguiu apoiando e legislando sobre a escravidão. “Em 1294, o papa Celestino V nada opunha ao fato de um cristão livre se vender voluntariamente como escravo. Inclusive, condenava à escravidão todo o cristão que auxiliasse os muçulmanos, fornecendo-lhes armas” (Pimentel, p. 19).

Da escravidão Moura à Africana: Denominações Em Portugal, não houve solução de continuidade nem salto de qualidade entre a escravidão moura e negra. Ao contrário, elas conviveram por um muito longo tempo, sem contradições. Porém, a transição da dominância da primeira para a segunda foi bastante rápida e deu-se devido à maior oferta do cativo negro-africano arrancado das costas africanas. Porém, essa transição ensejou importantes evoluções nas representações das classes proprietárias sobre a escravidão e na própria nominação do trabalhador escravizado. Até o século XI, devido à importância da escravidão e da própria legislação romana, o trabalhador escravizado europeu era designado por nomes provenientes do latim – servus, mancipium, criatio, homines. Na Península Ibérica, com o confronto muçulmano-cristão, o cativo passou a ser designado como mouro. Inicialmente, mouro designava o habitante da Mauritânia. Isto é, das regiões do Saara ocidental de onde chegaram grande parte das tropas islâmicas que invadiram a Península Ibérica. A seguir, esse apelativo pátrio foi estendido a todos os muçulmano, originários ou não da África Dessa denominação nasceu o vocábulo português moirejar ou mourejar, ou seja, trabalhar como mouro, muito duro, como escravo.

Na Europa, foi tão lenta a metamorfose do trabalhador escravizado em trabalhador feudal que não foi plasmada uma nova categoria para descrever a nova forma de subordinação. O produtor direto adscrito a uma gleba, mas gozando de direitos de uso sobre ela e de maior ou menor liberdades diante do seu explorador, prosseguiu sendo denominado de servus ou, nas palavras correspondentes das línguas neo-latinas, servo, serve, etc. Isto é, escravo (Dockes, 1979, p. 19). Em fins do décimo século, quando esse processo de transição realizara-se plenamente, e ocorrendo um fortalecimento relativo das relações escravistas, generalizou-se o uso de um novo designativo para o trabalhador escravizado, diante da impossibilidade de prosseguir 11 Cf. HELENO (p. 117, 125, 131, 132).

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denominando-o por uma categoria que então se consolidara como referente do produtor feudal hegemônico, o servo.

Na Antigüidade, os cativos eram comumente denominados pela suas nacionalidades. Assim sendo, não raro, em muitas línguas, uma denominação pátria estrangeira perdia o sentido inicial de apelativo étnico-nacional para descrever o homem submetido à escravidão, quando os trabalhadores escravizados eram obtidos, em grande número, naquelas regiões. As guerras de Otão I [912-973], o Grande, duque da Saxônia, inundaram a Europa com cativos trazidos da Esclavônia [Balcãos], que foram denominados de escravos. Com o passar dos anos, o termo escravo perdeu o sentido étnico-nacional, passando a descrever o homem que conhecia a servidão plena. Ou seja, o servus da Antiguidade. Na Lusitânia, o uso do designativo escravo foi tardio. Até meados do século 15, a dominância da escravidão de muçulmanos levou a que o termo português substitutivo de servus fosse mouro. Isto é, o muçulmano reduzido à escravidão.

Em Portugal, o uso da palavra “escravo” surgiu após a contradição posta pelo ingresso sistemático de negro-africanos no país. Salvo engano, o seu primeiro registro escrito teria ocorrido nos anos 1450, logo após a sistematização do tráfico negro-africano. Porém, durante muito tempo, o terno “escravo” continuou sendo designação erudita, pouco comum entre a população (Pimentel, 1995, p. 20). Tamanha fora a impregnação semântica do vocábulo “mouro” com o sentido de “escravo” que o muçulmano livre e o cativo alforriado eram chamados de “mouro livre” e “mouro forro”. Mouro, sem adjetivo, era o muçulmano sujeito ao cativeiro. No mesmo sentido, os primeiros negro-africanos desembarcados em Portugal foram denominados de “mouros negros”. Mesmo se eram reconhecidamente pagãos e não vinham da Mauritânia (Carboni e Maestri, 2003).

A impropriedade da designação dos negro-africanos como “mouros negros” aumentava ainda mais quando eles convertiam-se ao cristianismo. Assim, apesar de serem designados de mouros, eram cristão, jamais haviam sido muçulmanos e não provinham da Mauritânia! (Tinhorão, 1988, p. 47). No século 15, em Portugal, a palavra “negro” designava de “forma genérica, todos os tipos raciais de pele morena”. Portanto, os mouros eram também chamados de negros. Em inícios do século 16, com o afluxo de negro-africanos, os cativos de cor negra mais intensa foram chamados de “homem preto” e “mulher preta” e, a seguir, “preto” e “preta” (Carboni e Maestri, 2003, p. 77). Nesse novo contexto, a palavra "escravo”, então de uso já comum, passou a significar “apenas posição servil [plena], sem qualquer conotação religiosa” ou racial. Desde então, falava-se de “escravos pretos”, de “escravos negros”, de “escravos mouros” e de “escravos brancos” (Saunders, 1994, p. 13).

Portugal: A Escravidão do Preto na Cidade Em 1527-32, o primeiro censo lusitano demonstrou que o Reino teria 282.734

fogos, com uma população estimada entre um milhão e meio de habitantes. Com 13.010 fogos, Lisboa possuiria de cinqüenta a sessenta e cinco mil habitantes, localizando-se portanto entre as grandes metrópoles da Europa da época (Marques, 2001, p. 155). Em 1551, dezenove anos após a conclusão daquele censo, levantamento realizado por Cristóvão Rodrigues de Oliveira apontou que a cidade teria cem mil habitantes, entre eles, “nove mil e novecentos e cinqüenta escravos”. O cômputo não abrangia a população mestiça e afro-descendente liberta e livre, possivelmente já significativa (Tinhorão, 1988, p. 112).

A contagem minuciosa dos cativos sugere como mais possível um erro para menos na computação da população escravizada. Se a população lisboeta fosse

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cinqüenta mil, os cativos seriam vinte por cento da população; se fosse cem mil, dez por cento. Os especialistas dividem-se entre os dois números ao estimarem a população escravizada da cidade. Em todo caso, em meados do Quinhentos, a escravidão negra era já claramente dominante, ainda que subsistissem cativos mouros, em número decrescente, fornecidos pelo comércio e pelas operações no norte da África. Salvo engano, não temos avaliações sobre o peso da escravidão moura nesses anos.

Tinhorão assinala que em Lisboa os cativos negros trabalhavam nos serviços mais pesados, mais sujos e mais fedorentos. Labutavam na estiva; na descarga e no abastecimento do carvão; na venda da carne de gado, de peixe, de mariscos. Cativos limpavam de “canastra à cabeça” as ruas da cidade. Uma importante atividade dos cativos urbanos era caiar as paredes das residências urbanas. Eram sobretudo mulheres escravizadas que despejavam os potes contendo os dejetos humanos na Ribeira – os cabungos ou tigres do Brasil colonial e imperial. Cativas também vendiam água em potes e outros produtos em balaios pelas ruas e praças da capital e lavavam roupas nas águas do Tejo.

O trabalho doméstico era importante atividade das pretas e pretos escravizados que trabalhavam em grande número nas ricas residências urbanas e em menor número nas moradias menos abonadas. A não ser por salários muito vantajosos, o trabalhador livre relutava a se empregar nessa atividade tida como degradante. Ter um doméstico livre estava fora das possibilidades de “gente de posses médias” (Tinhorão, 1988, p. 117). Como no Brasil escravista, em Portugal desses anos, os cativos domésticos eram verdadeiros paus-para toda-obra. Faziam as compras; traziam a água das fontes; despejavam potes na Ribeira; cozinhavam; passavam; arrumavam; transportavam os proprietários; trabalhavam nos quintais das residências urbanas.

A importância do trabalhador doméstico escravizado era fenômeno urbano geral. Em março de 1535, o padre flamengo Nicolau Clenardo [c.1493-1542] escrevia de Évora, terceira cidade em população do Reino: “Os escravos pululam por toda a parte. Todo o serviço é feito por negros e mouros cativos. Portugal está a abarrotar com essa raça de gente. [...].” Destaque-se o fato que o clérigo enfatizava a escravidão moura, após a negra. O professor e latinista completava sobre os trabalhos domésticos: “Dificilmente se encontrará uma casa, onde não haja pelo menos uma escrava desta. É ela que vai ao mercado comprar as coisas necessárias, que lava a roupa, varre a casa, acarreta a água, e faz os despejos à hora conveniente: numa palavra, é uma escrava, não se distinguindo de uma besta de carga senão na figura” (Tinhorão, 1988, p. 10).

Cativos ao ganho Era igualmente comum que os proprietários mandassem cativos oferecer produtos

ou serviços pelas ruas da cidade, cobrando-lhes uma renda fixa, diária ou semanal. O que fosse obtido acima dessa renda revertia ao cativo para sua alimentação e manutenção, o que lhe permitia, em alguns casos, viver independentemente do escravista – “viver em casa per si” (Tinhorão, 1988, p. 10). Como no Brasil escravista, tal foi a generalização desse uso que proprietários dependiam em parte ou totalmente dos cativos postos ao ganho para sobreviverem. Em 1526, Tomé Lopes, guarda-mor da Torre do Tombo, requereu apoio de dom João III já que, segundo ele, a peste lhe ceifara sua mulher e mais quatorze escravos “que era a fazenda que tinha”. Destaque-se o elevado número de cativos do malogrado Tomé Lopes (Tinhorão, 1988, p. 119).

Também era importante o trabalho do cativo negro nos ofícios urbanos. Em novembro de 1494, o médico e humanista alemão Jerônimo Müzer escreveu suas impressões da capital portuguesa, ressaltando a importância do trabalho escravizado no artesanato: “Vimos também enorme ferraria com muitos fornos, onde fazem âncoras,

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colubrinas [peça de artilharia], etc., e tudo o que diz respeito ao mar. Eram tantos os trabalhadores negros junto aos fornos, que nos poderíamos supor entre os Ciclopes no antro de Vulcano” (Tinhorão, 1988, p. 10). Mesmo que os trabalhos historiográficos lusitanos sejam ainda mais restritos no relativo à participação do trabalhador escravizado no meio rural, tudo assinala uma importância igual ou próxima do negro-africano nas grandes propriedades campestres. Tinhorão lembra que, a partir da segunda metade do século 15, o cativo africano seria de grande serventia no desbravamento de campos inculto, ao escassear a mão-de-obra, há muito livre da servidão da gleba.

Quando das cortes de 1472-3, proprietários requereram que o rei impedisse a saída de africanos do Reino. As razões eram claras: “[...] fazem grande povoação em vossos reinos e são causa de se fazerem terras novas e romper matos e abrir país e outros proveitos, e esses da África são de rendição [rendimento] e melhor será ficar a rendição [rendimento] deles em vossos reinos que os estrangeiros gozarem delas [...]”(Tinhorão, 1988, p. 99). Menos três décadas após a chegada dos primeiros negro-africanos, os senhores lusitanos vacilavam ainda na forma de denominá-los, referindo-se apenas à origem dos cativos – a África. Chama a atenção que o rei não acedeu, precisamente devido aos “mores preços” obtidos no mercado mundial. Ao contrário do Brasil, em Portugal, a mão-de-obra escravizada era categoria social subordinada, dominando, quanto aos interesses metropolitanos da época, as rendas fundiárias produzidas pelos homens livres e as rendas do comércio ultramarino, nas quais as rendas do tráfico se destacavam.

Estima-se que, no século dezesseis, dez por cento da população rural do Algarve seria composta de negro-africanos ou afro-descendentes escravizados. Uma realidade que se apoiaria na muito antiga tradição da região de emprego de mouros feitorizados na agricultura. No Alentejo, terra de grandes propriedades, comumente arrendadas a lavradores, seria também importante o uso de “pretos” escravizados ((Tinhorão, 1988, p. 101). Em 19 de setembro de 1761, quando Pombal proibiu, por alvará, o ingresso de escravos em Portugal, em um momento em que a mineração brasileira vivia momento de bonança e, portanto, de carência de cativos, “apenas nas províncias transtaganas [além do Tejo] ainda trabalham nos campos nada menos de 4000 a 5000 mil escravos” (Tinhorão, 1988, p. 105).

Como assinalado, Em Portugal, mesmo importante, a mão-de-obra negro-africana escravizada ocupou papel subordinado, tanto nas cidades como no campo. Ao contrário do Brasil, onde a produção livre habitou sempre os interstícios da sociedade negreira, no mundo português dos séculos quinze e dezesseis, eminentemente agrícola, no campo, dominou, sempre, o trabalho livre dos pequenos proprietários; dos arrendatários rurais; dos assalariados rústicos. A força e a coesão do escravismo lusitano nasciam sobretudo dos proventos obtidos pelas classes dominantes no tráfico negreiro, na produção escravista americana, no comércio com as colônias escravistas da América e da África. Sobretudos nos séculos quinze, dezesseis e dezessete, a exploração subordinada de trabalhadores negro-africanos em Portugal cimentava esses interesses negreiros.

Coesão escravista O golpe dado em 1761 por Pombal à produção escravista metropolitana não

significou qualquer ruptura lusitana com a ordem negreira. Ao contrário, como parte do mesmo movimento, a administração portuguesa reforçou o comércio e a produção escravistas em Angola e no Brasil, através da fundação de companhias privilegiadas destinadas a incentivar a produção comercial-negreira. A coesão do escravismo lusitano nascia do fato de que a Coroa, os cortesãos, os letrados, os comerciantes, os armadores,

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os clérigos, as irmandades religiosas, etc. dependiam, direta ou diretamente, em maior ou menor forma, da boa continuidade do tráfico e da exploração produtiva do trabalhador escravizado colonial.

Em um país em que as riquezas das Índias, do Brasil e da África fortaleceram o absolutismo e as classes aristocrático-rurais, a burguesia portuguesa restringiu sua ação sobretudo à esfera comercial, com escassos interesses na produção fabril. Nesse sentido, até o fim do tráfico, ela manteve-se atrelada aos interesses negreiros e, a seguir, coloniais-africanos (Capela, 1974; Carreira, 1979). O apoio da população plebéia ao tráfico e à escravidão constitui questão mais complexa que exige trabalhos e investigações, salvo engano, ainda não disponíveis. Nesse processo, certamente os interesses da burguesia comercial no tráfico e na escravidão contribuíram para uma importante neutralidade, se não apoio, das classes plebéias lusitanas à escravidão e ao colonialismo, classes que conheceram, sempre, independência político-ideológica relativa às classes dominantes rurais e urbanas.

Mesmo que a escravidão metropolitana tenha recebido poderoso golpe com a proibição da introdução de cativos em 1761, o comércio negreiro lusitano com o Brasil, sobretudo angolano e moçambicano, interromperam-se apenas em 1850, por necessidade e vontade do império brasileiro, pressionado pelo governo inglês.12 Porém, o tráfico transatlântico português de trabalhadores escravizados chegou ao fim apenas em 1865, com a derrota dos estados escravistas na Guerra da Secessão. Em fins do século 19, quando se conclui o tráfico lusitano, as elites portuguesas faziam já grandes esforços para reconquistar na exploração do africano na África o que haviam perdido na expatriação destes últimos como cativos.

Num processo salvo engano ainda não elucidado plenamente em todas as suas mediações, o racismo anti-negro produzido como reflexo da exploração do africano no tráfico e na escravidão, desdobra-se na visão racista e preconceituosa ensejada pela exploração dos nativos das colônias africanas. Num processo que se assemelha a um ponto que avança para alcançar um mesmo plano horizontal, mas em um segmento superior de uma espiral, o racismo gerado sobretudo durante a exploração escravista do africano em Portugal, consolidada com a dominação colonial, consubstancia-se, sob outras formas, no forte racismo contra o operário negro-africano, mão-de-obra super-explorada no Portugal atual.

Zurara: Escravidão e Ideologia A entronização de dom Afonso V e a derrota e a morte de dom Pedro, seu tio, regente de Portugal em 1439-48, na batalha de Alfarrobeira, em 20 de maio de 1449, consolidaram o domínio da grande nobreza, em detrimento dos segmentos burgueses e populares que sustentaram, primeiro, a instalação da dinastia de Avis, em 1383-5 e, a seguir, o malogrado regente (Saraiva, 2001, p. 127). Ainda mais desde então, a alta aristocracia portuguesa foi a grande privilegiada das rendas do Reino, substancialmente acrescidas pelo comércio africano que se apoiaria, a seguir, mais e mais, na captura, transporte e venda na Europa e na América do negro-africano escravizado. No mundo das representações culturais, o eclipsar-se do cronista real Fernão Lopes diante de Eanes de Zurara registrou o declínio político e social da burguesia e das classes laborais urbanas e rurais, fortalecidas relativamente durante a gênese da dinastia de Avis, e o correspondente zênite da grande aristocracia lusitana.

12 Conferir, entre outros: BETHELL (1976); CONRAD (1985); GOULART, (1975); MARQUES, (1999);

SALVADOR, (1981); UNESCO, (1978).

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Fernão Lopes teria nascido em uma cidade do litoral português, quando do exórdio da dinastia de Avis. Em 1418, ainda jovem, foi agraciado com a elevada função de guarda-mor das escrituras da Torre do Tombo e, no ano seguinte, com a também digníssima posição de cronista do reino. Ele foi igualmente tabelião geral e conselheiro real. 13 Apenas o apoio decisivo da burguesia, de oficiais e da raia miúda das cidades e dos campos à dinastia de Avis, contra a grande aristocracia ibérica, apoio apresentado pela historiografia abusivamente como revolução burguesa, explica a dignidade funcional de Fernão Lopes, apesar de sua origem vilã que se expressava no fato de possuir um cunhado sapateiro. Fernão Lopes revolucionou na forma e no conteúdo a historiografia de sua época, representando talvez o seu mais elevado momento. Sua obra de maturidade, a Crônica de dom João I, concluída possivelmente em 1443, foi redigida em linguagem simples, de raiz comunal e urbana, que espanta os contemporâneos pela modernidade da sua concisão, precisão e elegância (Saraiva, 2001, p. 149). Tem-se explicado o caráter singularmente expressivo e dramático da prosa de Fernão Lopes como tradução erudita da rica narrativa oral popular lusitana. Ou seja. Ela seria a potenciação criativa de narrativa que, assentando profundas raízes na literatura e na tradição oral popular de cunho realista, valorizava e legitimava aquela tradição citadina e rural (Saraiva, 2001, p. 149). José Hermano Saraiva propõe que a Crônica de dom João I seja “mais um livro de história”, na acepção moderna do termo, do que uma crônica, como então se compreendia. O historiador português defende que tenha sido o “primeiro livro de história que se escreveu em Portugal e, durante muito tempo, o único”. A grande revolução da Crônica de dom João I foi epistemológica. Fernão Lopes analisou a revolução de 1383-5 a partir da sua experiência como espectador da revolução de 1438-9. O livro registrava a visão da história de um “homem do povo, morador de Lisboa, parente de mesteirais”, que, ao viver na primeira pessoa os fatos de 1438-9, compreendera os interesses e a força social das classes ditas inferiores (Saraiva, 1990, p. 12-13). Fernão Lopes incorporaria na sua obra magna o papel essencial do povo nos acontecimentos de 1383-5, a partir da genial compreensão do caráter decisivo das classes não-aristocráticas na imposição de dom Pedro como regente, em 1439-48. Seriam essas determinações histórico-culturais que explicariam o anacronismo aparente de narrativa historiográfica que tem como herói o povo e explica os fatos a partir das forças e interesses sociais em cena. Fernão Lopes exalta o poder e a autonomia da raia miúda: “Era maravilha de ver que tanto esforço dava Deus neles e tanta covardice nos outros, que castelos que os antigos reis, por longos tempos jazendo sobre eles com força de armas não podiam tomar, os povos miúdos, mal armados e sem capitão, com os ventres ao sol, ante de meio dia os filhavam pela força!” (Lopes, p. 162). A revolução metodológica e formal realizada por Fernão Lopes não teria descendência direta, de curto e médio prazo, nas letras portuguesas. Hermano Saraiva defende que Crônica de Dom João I não seja “uma voz no amanhecer dos tempos democráticos, mas um último e solidário protesto contra a mudança inexorável” (Saraiva, 1990, p. 25). Talvez seja mais correto registrar o eclipsar-se da voz de Fernão Lopes como expressão da agonia das forças burguesas e mesteirais urbanas, silenciadas – a ferro e forro – pela aristocracia rural que reinaria inconteste sobre o país, por longos séculos, apoiada na força ensejada pela rapinagem 13 INSTITUTO PORTUGUÊS DO LIVRO. Dicionário cronológico de autores portugueses. Mira-Sintra:

Europa-América, 1985. I vol. p. 116;

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das colônias africanas e americanas, aprofundando Portugal na dependência e no anacronismo. Reação literária Em 1454, em desgraça, Fernão Lopes foi aposentado e substituído por Gomes de Eanes no cargo de “guardador” das escrituras reais. Ele já perdera para o sucessor a elevada posição de “cronista real”, possivelmente após o trágico desfecho da regência de dom Pedro, no início de reinado de dom Afonso V [1448-1481] (Saraiva, 1990, p. 6-7). Gomes Eanes de Zurara nasceu entre 1410 e 1420. Após carreira militar de pouca relevância, já homem maduro, iniciou sua bem remunerada carreira de escriba louvaminheiro da alta nobreza, enquanto Fernão Lopes ocupava ainda as funções de guarda-mor das escrituras e cronista real (Bragança, 1973, p. 39). A vitória de Zurara expressava a consolidação de novos paradigmas culturais que propunham o afastamento aristocrático da cultura e da linguagem popular, das quais Fernão Lopes era expressão excelente. Na narrativa em prosa, imperavam agora as citações dos clássicos greco-romanos e as frases e vocábulos alatinados, tortuosos e rebuscados, de uso e compreensão restritos aos iniciados. Apesar de reconhecer “grande autoridade” ao seu genial antecessor, Zurara diria em forma pretensiosa que ele fora homem de “comunal saber”. Ou seja, de saber “plebeu”, pertencente à “comuna” e, portanto, estranho e desconhecedor da cultura que tinha como erudita, aristocrática e superior (Saraiva, 1990, p. 7-8). Mikhail Bakhtin lembra que cada “época e cada grupo social tem seu repertório de formas de discursos na comunicação sócio-ideológica”, e que as modificações nessa esfera expressam comumente modificações infra-estruturais significativas (Bakhtine, 1999, p. 112). A substituição do arguto historiador, criador de linguagem revolucionária, pelo pomposo e superficial cronista expressava a consolidação da grande aristocracia lusitana e a frustração das classes burguesas lusitanas. Em relação a Fernão Lopes, foi geral o decaimento de forma e de conteúdo da narrativa histórica de Zurara, que retornou aos padrões da crônica, vertida em linguagem gótica. Ao apresentar a Crónica da Guiné com erudição e sensibilidade, José de Bragança descreve-a como “longa e por vezes fastidiosa narrativa, enferma dessa árida deformação do espírito da cavalaria medieval que rematou no Quixote” (Bragança, 1972, p. 47). Zurara registra na Crónica de Guiné a visão tradicional da história como obra da vontade e da decisão dos príncipes, determinados esses últimos pelos astros, uns e outros obedientes à vontade divina. Retrata as classes ínfimas livres como incapazes dos elevados sentimentos próprios à nobreza e descreve os homens e mulheres escravizados – sobretudo negro-africanos – como seres próximos à bestialidade.

O cronista real interrompeu sua narrativa em 1448 e assinalou 1453 como data da conclusão de sua redação. A análise interna do documento evidencia a interpolação de acréscimos posteriores àquele ano. Zurara registra no texto a morte de dom Henriques, em 1460, e há indícios da introdução de capítulos, num texto inicial, que, este sim, talvez tenha sido concluído em 1453. Como Fernão Lopes, Eanes de Zurara apoiou sua narrativa em depoimentos orais; na farta documentação que tinha acesso; em narrativas e crônicas anteriores, das quais se serviu com a liberalidade habitual da época. Em verdade, o livro tem duas grandes vocações que expressam as duas grandes almas que o inspirava. Por um lado, Crónica de Guiné é uma espécie de livro tombo, onde se registra minuciosamente o número de cativos e o avanço dos navegadores lusitanos na costa africana. Por outro, é a narrativa enobrecedora dos ataques rapinadores lusitanos das

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pobres comunidades de pescadores daquelas regiões. O abismo entre a grandiloqüência da linguagem empregada e a mesquinharia dos feitos descritos impacta profundamente o leitor contemporâneo. No capítulo “Como tomaram os dez mouros”, temos a descrição de uma das tantas operações bélicas lusitana, em verdade, um simples movimento de pirataria contra populações civis desprotegidas. “Porém a vontade, que andava já acesa no feito, não quis deixar lugar a razão, e sem outro temor, seguiram avante, até que chegaram onde uns poucos de mouros [...] os quais não tão somente tiveram coração de se defender, mas ainda de fugir. Eram todos dez, contando aí homem e mulheres e moços.” Tratava-se da rapinagem de dez adultos, mulheres e crianças, por grupo aguerrido de soldados bem armados. (Zurara, 1973, p. 188).

Pirataria pequena Verdadeiramente brutal é a narrativa cavalheiresca do assalto à aldeia desarmada

pelos “homens de peleja”: “Ora – disse Álvaro Vasques – eis a nossa presa está ante nossos olhos, pero está tão descoberta, que de necessidade seremos vistos antes que a ela cheguemos; e porque me não parece tamanha que possa ter gente com que nós não possamos [...] cada um corra o mais que poder, e assim rijamente vamos a eles, e se não pudermos tomar os mancebos, tomaremos os velhos e mulheres e moços pequenos; e [...] qualquer que se intrometer de defesa, sem nenhuma piedade seja morto, e os outros prendei como poderdes.” (Zurara, 1973, p. 192). Ou seja, uma enorme correria de piratas para escravizar alguns poucos velhos, mulheres e crianças desarmadas.

Como assinalado, a Crónica de Guiné constitui espécie de livro tombo das rapinagens praticadas nas costas atlânticas da África Branca, a Terra dos Mouros, quando os lusitanos abandonavam seus navios e lançavam-se como cães famélicos sobre comunidades desprotegidas. Ele encerra-se com a substituição dessas razias pelo resgate do cativo, quando, já na Terra dos Negros, os rapinadores depararam-se com as numerosas e aguerridas comunidades negro-africanas. Efetivamente, ao vencerem o rio Senegal, os lusitanos compreenderam que de ceifadores que obtinham primícias abundantes na Terra dos Mouros terminavam comumente ceifados na Terra dos Negros. Estarrecido, o cronista registra desgostoso que, nas novas terras, comumente, os portugueses terminavam levando mais bordoadas do que conseguiam dar: “[...] e já sabeis que a gente desta terra não é assim ligeira de filhar como nós desejamos, que são homens mui fortes e avisados e percebidos em suas pelejas [...]”(Zurara, 1973, p. 208). Crónica de Guiné sequer é narrativa de viagens, já que revela grande despreocupação com a realidade geográfica e etnográfica africana devassada pela primeira vez pelos olhos europeus, preocupando-se obsessivamente quase apenas com o registro do número exato de cativos e das circunstâncias gerais do aprisionamento dos africanos. Zurara move-se em espaço ideológico agrário-aristocrático, sem deixar de expressar os interesses escravistas, vigentes havia séculos em Portugal. Sobretudo porque havia correspondência, e não contradição, entre um e outro. O direito e o poder dos superiores sobre os inferiores e dos amos sobre os cativos alicerçavam o mundo em que vivia e a visão com que via o mundo. O período regencial de dom Pedro conhecera o fortalecimento da grande aristocracia e da expansão mercantil na África atlântica, em detrimento das conquistas militares na África mediterrânica. A obra de Zurara constitui narrativa tardia, de cunho medieval, que procura enobrecer os atos da pirataria africana apresentando-os como fatos fidalgos de arma contra inimigos desumanizados pela natureza vil. A linguagem grandiloqüente e o estilo retorcido eram os recursos formais com os quais Zurara procura dar foros de nobreza aos mesquinhos atos de pirataria contra populações aldeãs

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desarmadas. Eles terminam reforçando o caráter pastiche da narrativa, ao potenciar o abismo que separava os fatos de suas representações.

A Reconquista ensejara ideologia feudal-escravista, de vocação religiosa, que justificava a execução e a captura indiscriminadas de velhos, adultos, jovens e crianças muçulmanos. Essa visão de mundo apoiava a expansão territorial e a apropriação da força de trabalho do espaço territorial e da mão de obra islâmica pela aristocracia feudal cristão. A conquista das terras, o extermínio de vidas, a servidão perpétua dos corpos eram a recompensa da luta contra os inimigos da fé verdadeira. Os céus bendiziam e a Igreja acalorava e recebia as primícias das cavalgadas terrestres e das razias marítimas contra os sequazes de Mafamede. Essas visões de mundo foram também esteio dos interesses mercantis que, durante a expansão marítima e a conquista africana, americana e asiática, garantiram rendas supimpas para a alta, média e pequena aristocracia e importantes lucros para a burguesia mercantil.

Intelectual orgânico Zurara registra a fusão do aristocratismo e do mercantilismo, ao descrever

epicamente a pequena pirataria contra povoados de pescadores e ao verbalizar as razões dualistas daquelas expedições. Os lusitanos aterrorizariam essas populações “por serviço de Deus e do Infante [...] e honra e proveito” de si “mesmos” (Zurara, 1973, p. 201). A Crônica de Guiné constitui panegírico da grande aristocracia, na pessoa do Infante, e justificação da empresa escravista de saque. A glória antes obtida no assalto aos castelos marroquinos era agora conquistada abarrotando as cobertas dos navios de aldeões livres reduzidos à escravidão. Zurara refere-se obsessivamente aos primeiros negreiros enobrecidos nas praias devido a feitos realizados durante o filhamento das populações da costa. A narrativa de Zurara é produto e registro direto do momento em que se organizava o saque escravista da África. Ele próprio lembra ter sido observador contemporâneo à chegada dos primeiros cativos trazidos das costas atlânticas: “[...] que eu, que esta história escrevi, vi tantos homens e mulheres daquelas partes tornados [...].”(Zurara, 1973, p. 46). Pobre na forma e no conteúdo, Crónica de Guiné constitui valioso registro das elaborações ideológicas ensejadas pela organização do tráfico atlântico e, a seguir, pela escravização do negro-africano, para os quais não era funcional a apologia criada anteriormente para justificar o cativeiro do mouro. Talvez o momento de maior expressividade de Crónica de Guiné é a primeira grande repartição, em Lagos, de cativos apenas chegados das costas atlânticas. Este foi também o primeiro registro direto das duras e cruéis condições de transporte dos cativos do tráfico atlântico. Lançarote registra a triste situação física e psicológica dos cativos, ao dirigir-se a dom Henrique, pedindo que sejam desembarcados e levados a um “campo”, “além da porta da vila” de Lagos: “E agora estes mouros, pelo grande tempo que andamos no mar, assim pelo nojo que [...] terão em seus corações, vendo-se fora da terra de sua natureza e postos em cativeiro”, sem terem “algum conhecimento de qual será seu fim; daí a usança que não hão de andar em navios; por tudo isto vem assaz mal corregidos e doentes [...].”(Zurara, 1973, p. 120). Obtida a magnânima licença, no dia seguinte, 8 de agosto de 1444, às portas da vila de Lagos, com a presença do Infante, 235 cativos foram desembarcados para serem quintados, repartidos e vendidos: “[...] muito cedo pela manhã por razão da calma, começaram os mareantes de correger [concertar] seus batéis e tirar aqueles cativos, para os levarem segundo lhes fora mandado [...]”(Zurara, 1973, p. 122). Os berberes capturados na costa atlântica dominariam entre os cativos. Havia também alguns negro-africanos, obtidos nas mesmas regiões, alguns deles cativos dos próprios azenegues

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[idzāgen]. Ao descrever berberes e negro-africanos, Zurara registra a precoce hierarquização e desqualificação estética e essencial dos cativos, tidos por belos e brutos, por plena e parcialmente humanos, no momento em que se refere aos fatos, no início da segunda metade do século 15. “[...] posto juntamente naquele campo, era uma maravilhosa cousa de ver [...] havia alguns de razoada brancura, fremosos e apostos; outros menos brancos, que queriam semelhar pardos; outros tão negros como etíopes [tiópios], tão desafeiçoados assim nas caras como nos corpos, que quase parecia, aos homens que os esguardavam, que viam as imagens do hemisfério de baixo.” (Zurara, 1973). É tão grande a tensão da narrativa da dor e da tristeza dos prisioneiros que ela destoa da profunda aridez geral da Crónica. É possível que Zurara tenha transcrito o relato de alguma outra crônica, como era normal e habitual aos cronistas de então. A. C. Saunders sugere que, eventualmente, a “compaixão” seja de escrito perdido de Afonso de Cerveira “de quem o cronista copiou passagens inteiras” (Saunders, 1994, p. 74).

Descrição pungente Segue Zurara em Crónica da Guiné: “Mas qual seria o coração, por duro que ser pudesse, que não fosse pungido de piedoso sentimento, vendo assim aquela campanha? Que uns tinham as caras baixas e os rostos lavados com lágrimas, olhando uns contra os outros; outros estavam gemendo muito dolorosamente, esguardando a altura dos céus, firmando os olhos em eles, bradando altamente, como se pedissem acorro ao Padre da Natureza ”. A descrição assinala que os cativos expressavam como podiam o desespero: “[...] outros feriam seu rosto com suas palmas, lançando-se tendidos no meio do chão; outros faziam suas lamentações em maneira de canto, segundo o costume de sua terra, nas quais, posto que as palavras da linguagem aos nossos não pudesse ser entendidas, bem correspondia ao grau de sua tristeza” (Zurara, 1973, p. 122). Ainda maior é a tensão da narrativa ao referir-se ao desespero dos cativos ao serem separados dos familiares, sucesso que o cronista descreve com cores singularmente fortes: “Mas para seu dó ser mais acrescentado, sobrevieram aqueles que tinham cargo de partilha e começaram de os apartarem uns dos outros”.

Para porem os “quinhões em igualeza”, obedecia-se à “necessidade de se apartarem os filhos dos padres, e as mulheres dos maridos e os uns irmãos dos outros. A amigos nem a parentes não se guardava nenhuma lei, somente cada um caía onde o a sorte levava!” Desesperados, os infelizes, tentavam resistir à separação: “Que tanto que os tinham postos em uma parte, os filhos, que viam os padres na outra, alevantavam-se rijamente e iam-se para eles; as madres apertavam os outros filhos nos braços e lançavam-se com eles de bruços, recebendo feridas, com pouca piedade de suas carnes, por lhe não serem tirados!” (Zurara, 1973, p. 123). São raros os estudos e poucas as informações sobre a recepção da ideologia e das práticas escravistas pelas classes subalternizadas em Portugal, quando da organização do tráfico atlântico. A Crónica de Guiné valoriza-se também pelo seu registro da rejeição da população à repartição dos cativos. Em sua História social dos escravos e libertos negros em Portugal, A. Saunders lembra que “o primeiro leilão de escravos em Lagos foi interrompido por gente do povo enfurecida ao ver a separação das famílias” de cativos. Destaque-se que o “povo” referido era possivelmente o trabalhador livre que vivia da “força” do trabalho de suas “mãos” (Saunders, 1994, p. 63). As palavras do cronista não deixam margens à dúvida sobre a profunda indignação popular com as cenas presenciadas. Zurara registra: “E assim trabalhosamente os acabaram de partir, porque além do trabalho que tinham com os cativos, o campo era todo cheio de gente, assim do lugar como das aldeias e comarcas

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de arredor, os quais deixavam em aquele dia folgar suas mãos, em que estava força do seu ganho, somente por ver aquela novidade. E com estas cousas que viam, uns chorando, outros departindo, faziam tamanho alvoroço, que punham em turvação os governadores daquela partilha” (Zurara, 1973, p. 123).

Última região de Portugal a ser reconquistada, o Algarve possuía na época importante população moçárabe, mourisca e muçulmana. Como vimos, os moçárabes haviam adquirido cultura islâmica, sem perder a religião católica. Os mouriscos eram muçulmanos que haviam se convertido ao cristianismo, muitas vezes formalmente. Isto é, eram cristãos novos de muçulmanos (Braga, p. 23). Em Mouriscos e cristãos no Portugal quinhentista, Isabel Braga lembra que até fins daquele século os “mouros viviam apartados da maioria cristã nas mourarias, um pouco por todo o reino, mas especialmente ao sul do Tejo” (Braga, p. 28). Portanto, não é improvável uma identificação étnica, religiosa e lingüística, maior ou menor, de parte da população presente à partilha.

Mundos diversos Haveria eventualmente razões sócio-econômicas para a oposição popular, já que

a introdução de novos braços servis determinaria a queda dos salários dos jornaleiros e aumentaria os preços dos arrendamentos cobrados pelos proprietários no Algarve. Eventualmente, esses e outros sentimentos contribuíam ao desagrado registrado pelo cronista da distribuição e venda de 235 cativos em leilão público. É interessante registrar que foi clara a diversa aceitação por parte da aristocracia e da população livre do ingresso de mouriscos em Córdoba em fins do século 16. 14

Indiferente aos sentimentos dos miseráveis protagonistas e dos humildes espectadores do triste espetáculo, em “cima de um poderoso cavalo”, o infante dom Henrique a tudo assistia, já que a ele coube o quinto das presas, ou seja, 46 cativos, em parte distribuídos entre a “gente” de seu paço que o acompanhava. Isso porquê, lembrava Zurara, registrando o princípio da expansão do poder feudal cristão pelos suseranos, como forma de expansão do cristianismo, que sua maior riqueza seria, não a obtenção do vil lucro, indigno de um tão grande senhor, mas o “grande prazer na salvação daquelas almas, que antes eram perdidas”. No dia anterior, antes mesmo do leilão, a Igreja, grandes sustentáculo ideológico da empresa feudal e escravista, já recebera sua parte do botim humano: “[...] primeiramente que se em aquilo outra cousa fizesse, learam [levaram] em oferta o melhor daqueles mouros à igreja daquele lugar, e outro pequeno [...] enviaram a S. Vicente do Cabo [...].”

O capítulo 26, posterior à descrição da “partilha”, é sobremaneira valioso, já que é dedicado quase totalmente à justificativa da captura, distribuição e uso, em especial dos cativos ali repartidos e vendidos e, em geral, de todos os homens e mulheres filhados pelos portugueses, até a época em que Zurara escrevia. Apesar de se referir à introdução de um carregamento de cativos proveniente da África Branca, em 1444, o capítulo foi certamente escrito em um momento em que a escravidão negro-africana superava já a moura. A primeira linha de defesa de Zurara da escravidão é o bom tratamento dos cativos e a benignidade relativa da nova vida sob a escravidão. Propostas retomadas por quase todos os intelectuais defensores da instituição, durante e após sua vigência. Segundo o cronista, os africanos superariam a tristeza inicial devido ao bom acolhimento que teriam recebido e ao tomarem conhecimento da “grande abastança” da terra em que viveriam, como cativos, verdadeira emancipação da miséria que haviam conhecido, na África, como homens livres. 14 Cf. DONCEL,1983. Apud Braga (1999, p. 34).

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Zurara propõe que aqueles cativos foram tratados “como servidores livres, como naturais da própria terra”, sobretudo por que se convertiam facilmente ao cristianismo. Lembra que, ao contrário dos mouros habituais, esses prisioneiros não “trabalhavam de fugir”, o que ressalta, salvo engano por primeira vez, no relativo ao africano, o valor da distância entre a terra de nascimento e a de escravidão, na submissão do trabalhador escravizado. Esta proposta foi igualmente retomada ao se defender a superioridade do cativo negro-africano sobre o americano, no Brasil. O cronista propõe que os amos mandariam as crianças filhadas aprender ofícios, possivelmente para tornarem-se ganhadores, e forrariam e casariam os adultos com “mulheres naturais da terra”, entregando-lhes “fazendas” para administrar, numa dissolução das relações escravistas pelas feudais. As “viúvas honradas” perfilhavam cativas ou deixavam-lhes dotes, para bem casarem-se. Esses cenários apologéticos da servidão dos primeiros africanos escravizados trazidos desde as costas atlânticas da África parecem apoiar-se na descrição romantizada da realidade e na generalização de casos singulares. É também crível que, no Algarve, os cativos conhecessem existência próxima da servidão. Zurara registra que nunca viu, “a nenhum” dos cativos do leilão, nos “ferros como aos outros cativos”. Observação que registra as duras condições de vida dos outros cativos (Zurara, 1973, p. 126). O cronista registra a seguir a principal e mais duradoura justificativa do tráfico e da escravidão. Ou seja, o pagamento, com o cativeiro do corpo, durante a breve vida terrena, o imposto necessário para a aquisição da libertação da alma, na vida eterna espiritual. Um argumento válido tanto para o berbere islamizado como para o negro-africano pagão.

O homem e a besta Na ocasião que explica a escravidão como necessária à liberdade da alma, propõe que ela era imprescindível para que o cativo – nesse caso negro-africano – se elevasse do estado próximo à barbárie no qual se encontrava empantanado, devido a sua humanidade imperfeita ou parcial. Esse argumento é dirigido essencialmente ao negro-africano. Quando Zurara escrevia sua Crónica, as regiões mais desenvolvidas do mundo islâmico ultrapassavam ainda em esplendor o reino português. E foi, como já assinalado, nesses anos, que o cativo negro-africano começou a superar o cativo mouro, como mão-de-obra escravizada em Portugal. “E assim que onde antes viviam em perdição das almas e dos corpos, vinham de todo receber o contrário: das almas, enquanto eram pagãos, sem claridade e sem lume da santa Fé; e dos corpos, por viverem assim como bestas, sem alguma ordenança de criaturas razoáveis [que vivem pela razão], que eles não sabiam que era pão, nem vinho, nem cobertura de pano, nem alojamento de casa”. Zurara refere-se à razão complementar que demarcaria a irracionalidade das populações negro-africanas, destinadas naturalmente ao cativeiro. “[...] e o que peor era, a grande ignorância que em eles havia, pela qual não haviam algum conhecimento de bem, somente viver em uma ociosidade bestial” (Saunders, p. 67; Zurara, p. 126).

No capítulo 55, ao descrever o assalto, em 1445, comandado por Laçarote aos cada vez mais escassos mouros à ilha de Tinder, na volta de pouca frutífera expedição à Terra dos Negros, Zurara retomou a justificava apologética da servidão devido à humanidade incompleta, apresentada por Aristóteles e retomada, por, entre outros pensadores cristãos, Egidio Colonna, autor que conhecia (Zurara, 1973, p. 67). Após relatar o assalto de pacatos nativos que carregavam asnos – “E finalmente foram ali presos por gente LVII [57]; alguns foram mortos e outros fugiram.” –, recrimina duramente os mouros e mouras por fugirem, em vez de irem oferecer os punhos às

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algemas, devido às vantagens espirituais e materiais que certamente obteriam com a escravidão (Zurara, 1973, p. 283).

Propõe o cronista real que, em Portugal, mesmo “em senhoria alheio”, os cativos conheceriam a salvação da alma e a bem-aventurança do corpo. “Oh! e se [...] aquestes [os mouros] que fugiam [aos portugueses] houvera um pequeno conhecimento das cousas mais altas! Por certo [...] aquela mesma trigança que levavam fugindo, trouveram por se vir para onde salvassem suas almas e repairassem suas vidas [...]” Como já vimos, a liberdade material na África seria uma ilusão, considerando-se o caráter bestial das vidas que ali conheceriam: “[...] que pero a eles parecesse que vivendo assim viviam livres, em muito maior cativeiro jaziam seus corpos, considerada a disposição da terra e a bestialidade da vida [...]”.

Para Zurara, a grande conquista garantida para o cativo seria a libertação espiritual: “[...] quanto mais a perdição das almas que sobre todalas cousas devera ser mais sentido”. Zurara propunha que, mesmo não ficando provado que a troca da liberdade, na África, pelo cativeiro, em Portugal, garantisse a felicidade nessa vida, as benesses da salvação do espírito seriam reconhecidas após a morte, certamente. “[...] ainda que os olhos corporais não conhecessem alguma parte desta benventurança, os olhos do verdadeiro conhecimento, que é a alma limpa com infinda glória, recebidos em este mundo os santos sacramentos, com alguma pequena de fé, [os mouros] partidos desta vida, em breve poderam conhecer o erro de sua ceguidade.” Destaque-se que não havia argumento contra essa proposta – ou seja, a breve vida material como ante-sala da imortalidade do espírito –, no interior da narrativa cristã, que constituía ideológica do Estado, imposta pela própria força (Zurara, 1973).

Diferenças na igualdade

As classes escravistas da Antiguidade haviam desenvolvido a proposta da necessidade da escravidão do homem semi-bestial, como uma necessidade natural, social e individual ao ser escravizado. Segundo Aristóteles, a natureza criara as coisas diferentes, na procura da especialização, já que o melhor “instrumento” era o que serve para “apenas” um “mister”, e não para muitos. Assim, seres de essência diversa complementam-se, cada qual desempenhando a função para que era criado, na consecução de fins que lhes eram comuns (Aristóteles, 1957, p. 5). Porém, a hierarquização desses seres obedecia à natureza. Assim sendo, os seres naturalmente mais elevados comandavam os objetivamente menos perfeitos. “A autoridade e a obediência não só são cousas necessárias, mas ainda [...] úteis. Alguns seres, ao nascer, se vêem destinados a obedecer; outros, a mandar” (Aristóteles, 1957).

Eram determinações da natureza que o pai dominasse o filho, o homem a mulher, o senhor o escravo. “[...] a todos os animais é útil viver sob a dependência do homem. Os animais são machos e fêmeas. O macho é mais perfeito e governa; a fêmea o é menos, e obedece. A mesma lei se aplica naturalmente a todos os homens” (Aristóteles, 1957, p. 12). Refutando o direito da servidão nascida da força, em prol da servidão originada pela inferioridade natural, Aristóteles consolidava ideologicamente a ordem escravista, negando o direito de escravização do grego e a validade do bárbaro de emancipar-se pela força.

Aristóteles racionalizava a escravidão, ao hierarquizar o desenvolvimento da espécie humana. “Há também, por obra da natureza e para a conservação das espécies, um ser que ordena e um ser que obedece. Porque aquele que possui inteligência capaz de previsão tem naturalmente autoridade e poder de chefe; o que nada mais possui além da força física para executar, deve, forçosamente obedecer e servir – e, pois, o interesse

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do senhor é o mesmo que o do escravo.” (Aristóteles, 1957, p. 4). A inferioridade dos “animais domésticos”, que serviriam com “sua força física” aos escravizadores nas “necessidades quotidianas”, materializaria-se nos seus próprios corpos de brutos. “Há na espécie humana indivíduos tão inferiores a outros como o corpo o é em relação à alma, ou a fera ao homem; são os homens nos quais o emprego da força física é o melhor que deles se obtém. [...] tais indivíduos são destinados à escravidão [...]” (Aristóteles, 1957, p. 13). A narrativa aristotélica seria adaptada pelas elites portuguesas que passaram propor que o negro-africano livre, incapaz de desenvolver-se na África, era alçado a um patamar civilizacional superior, como cativo, na América e na Europa. A escravidão seria um quase privilégio. Essa proposta tornou-se uma das mais longevas justificativas dos negreiros e escravistas. Ela chegou aos nossos dias, retomada por ideólogos para justificar historicamente a escravidão e alicerçar as argumentações triviais do racismo contemporâneo e da incapacidade africana à civilização.

Sinais de bestialidade Os sinais de bestialidade do negro-africano do litoral eram evidentes. Eles não conheciam os dois mais nobres alimentos – o pão e o vinho –; não se alimentavam com comidas complexas; desconheciam as vestimentas e andavam nus. Sua linguagem era rústica e incompreensível e as suas armas, muito pobres. Ao descrever populações africanas, Zurara relatava: “As mulheres vestem alquices [mantos] [...] com os quais somente cobrem os rostos, e por ali entendem que acabam de cobrir toda sua vergonha, que os corpos trazem todos nus.” Zurara lembra que a nudez era “um das causas” capazes de identificar a “bestialidade” humana, pois os homens que possuem razão seguem a “natureza” “cobrindo aquelas partes” “que ela mostrou que deviam ser cobertas”, ao pôr nelas “cerco de cabelos”, para mostrar que as “queria esconder” (Zurara, 1973, p. 324). Uma visão do encobrimento capilar das partes desonestas do corpo que certamente diminuía o tradicional status nobre da cabeça e que obrigaria os calvos a se cobrirem com chapéus e barretes para não serem acusados de impudícia! Em Portugal, o negro-africano aprenderia o português, superando os falares bárbaros; seria vestido, cobriria suas vergonhas; comeria o pão e beberia o vinho; não mais passaria fome; viveria em casas de homens, e não em tugúrios de animais; submeteria-se a governo legítimo, e não viveria à margem da lei, como as bestas (Saunders, p. 67). Destaque-se que todas essas conquistas eram de realização hipotética, não se materializando, nos fatos, na prática, considerando-se as condições de existência do cativo, no relativo à alimentação, ao vestuário, à moradia, à proteção pela lei. Porém, para o cronista real, o “peor” pecado e maior signo de semi-animalismo era precisamente o fato de que os pretos vivessem em uma “ociosidade bestial”. Ou seja, que se assemelhassem às bestas por não se dedicarem a um trabalho produtivo sistemático, em proveito e sob a autoridade de um senhor. Nas sociedades classistas, é constante a acusação dos segmentos dominantes de que as classes ditas inferiores – escravo, servo, índio, caboclo, operário – não se dedicarem naturalmente ao trabalho produtivo devido a uma constituição ou disposição natural, moral ou social – raça, preguiça, vício, corrupção, decadência, hábitos, etc. Nessas narrativas, trabalho produtivo é apenas aquele realizado em favor das classes exploradoras. Dessa imperfeição supra-histórica, as ditas elites deduziam, no passado, a necessidade da compulsão física ao trabalho e, no presente, da compulsão econômica. Ou seja, que o produtor direto jamais receba uma remuneração que lhe permita uma autonomia em relação à produção compulsória, mesmo relativa.

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Como apenas assinalado, essa concepção assentava-se na valoração do trabalho produtivo apenas quando organizado para produzir trabalho excedente possível de ser apropriado pelos segmentos sociais exploradores que se compreendem, não como parte dependente, mas como verdadeiros demiurgos do mundo social. A divisão da humanidade em seres humanos plenos e seres humanos incompletos era necessária à justificativa da escravidão, sobretudo de populações que não conheciam o cristianismo e não podiam ser punidas por rejeitá-lo. Sobretudo porque o monogenismo cristão propunha que todos os homens possuíssem alma e fossem irmãos, descendendo de um casal primordial – Adão e Eva. O capítulo 25, dedicado à partilha realizada sob supervisão de dom Henrique, iniciara-se, efetivamente, pelo registro retórico da identidade entre o escravizador e o escravizado, a partir da pertencia a uma mesma humanidade: “Eu te rogo [celestial Padre] que as minhas lágrimas nem sejam dano da minha consciência, que nem por sua lei daquestes, mas a sua humanidade constrange a minha, que chora piedosamente o seu padecimento. E se as brutas animálias, com seu bestial sentir, por um natural instinto conhecem os danos de seus semelhantes, que queres que faça minha humanal natureza, vendo assim ante os meus olhos aquesta miserável campanha, lembrando-me de que são da geração dos filhos de Adão!” ? (Zurara, 1973, p. 122).

A visão tendencialmente democrática e comunitarista do unitarismo cristão primitivo, que assentava raízes nas visões cosmológicas de comunidades primitivas do Oriente, antagonizava-se poderosamente com a realidade e a ideologia aristocrática, feudal e escravista cristã da época. Apoiando-se em operações ideológicas efetuadas já na Antiguidade e na Idade Média, Zurara registrava a dissolução dessa contradição através da diferenciação essencial dos aparentemente iguais. O cronista reconhece o monogenismo cristão: “Mas para que falo eu estas cousas, em quanto sei que somos todos filhos de Adão, compostos de uns mesmos elementos e que todos recebemos alma como criaturas razoáveis!”

Por destino natural Porém, mesmo sendo todos os seres humanos formados da mesma matéria, Zurara

lembra que, por vontade divina, alguns teriam sido organizados em forma imperfeita, necessitando portanto para viverem em sociedade do jugo do homem superior. Retomando a visão aristotélica, já adaptada ao cristianismo por Isidoro de Sevilha, no século sexto, esclarece que essa imperfeição expressava-se sobretudo na incapacidade moral de seguir o reto caminho: “Bem é que os instrumentos em alguns corpos não são tão dispostos para seguir as virtudes, como são outros, a que Deus por graça outorgou tal poderio, e carecendo dos primeiros princípios de que prendem os outros mais altos, fazem vida pouco menos de bestas [...].” Para completar seu argumento, Zurara reapresenta a visão tripartida do mundo [de Platão], mais própria ao republicanismo escravista do que à ordem aristocrático-feudal. A primeira e mais elevada parte da humanidade seria formada por todos aqueles que viviam apenas em contemplação – os filósofos, os sacerdotes, etc. A segunda, seria composta pelos que viviam em sociedade, “nas cidades”, “aproveitando seus bens e tratando uns com os outros”. A classe dos homens livres proprietários de trabalhadores escravizados. A parte imperfeita do mundo social seria formada pelos que “vivem nos ermos, afastados de toda conversação, os quais, porque não hão perfeitamente o uso da razão, vivem assim como bestas”, desde os primeiros tempos, “sem acrescentarem alguma parte de sabedoria em seu primeiro uso”. Mesmo imperfeitos, possuiriam “seus padecimentos, como as outras criaturas razoáveis, assim como amor e ódio e esperança [...].” (Zurara, 1973, p.162). Descendente dos mesmos pais e feitos da mesma matéria,

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mas originalmente imperfeitos, esses homens incompletos possuíam as principais qualidades humanas – entre elas a de trabalhar. Suas vontades tinham porém que ser comandadas, para viverem na ordem e obterem a salvação, na vida de lá, e a fortuna mínima, na de cá. Como assinalado, uma das grandes qualidades do cativo negro-africano era ter registrada somaticamente – pele, feições, cabelo, etc. – sua inferioridade natural.

Algumas justificativas da escravidão registradas por Zurara em Crónica de Guiné tiveram grande sucesso. Outras, ao contrário, não prosperaram. No último caso encontra-se a explicação bíblica do destino dos negro-africanos à servidão. Essa argumentação judaico-mulçumana do cativeiro dos povos da África Negra foi associada à visão cristã-medieval da escravidão como resultado do pecado original. Segundo a Génesis, ao sair da arca, Noé tinha três filhos – Sam, Cam e Jafet. Ao criar a vinha e o vinho, Noé embriagou-se e “despiu-se completamente dentro de sua tenda”. Cam comentou com seus irmãos ter visto o progenitor nu. Ao recuperar-se da esbórnia, Noé amaldiçoou Canaã, filho de Cam, pelo pecado do pai, determinando que fosse “escravo” dos tios15. Na Bíblia, não há ligação dos descendentes de Canaã aos negro-africanos. O cronista real registra, em forma condicional, a proposta da predestinação bíblica dos negro-africanos ao cativeiro: “[...] estes negros, postos que sejam mouros como os outros, são porém servos daqueles por antigo costume, o qual creio que seja por causa da maldição que depois do dilúvio lançou Noé sobre seu filho Cam, pela qual o maldisse, que sua geração fosse sujeita a todalas outras do mundo, da qual estes descendem [...]”. Zurara registra autoridades que corroboravam a tradição bíblica da escravidão negro-africana. Ele lembrava que essa era a posição do “arcebispo D. Rodrigo de Toledo e assim Sosepho, no livro das Antiguidades dos Judeus e ainda Gualtero” como “outros autores que falaram das gerações de Noé depois do saimento da arca” (Zurara, p. 85). Vozes silenciadas Gomes Eanes de Zurara foi intelectual orgânico das classes dominantes lusitanas, na plena acepção gramsciana do temo, no momento em que o comércio escravista estruturava-se como atividade econômica. Ele viveu do trabalho intelectual, retribuindo seus empregadores através da coleta, seleção, sistematização, ampliação, refinamento, etc. das representações do mundo social produzidas pelas elites. Como já assinalado, sua Crónica de Guiné constituiu esforço de servir a dois grandes senhores, já que esforçou para integrar os valores pecuniários do mercantilismo em nascimento às visões de mundo da grande aristocrática medieval. Como também proposto, essa operação gerou as esdrúxulas tentativas de nobilitar os mesquinhos atos de pirataria na costa africana. O caráter precoce da produção literária de Zurara, realizada no momento mesmo em que se estruturava o tráfico escravista atlântico e se iniciava a substituição da dominância do cativo mouro pelo preto, concluída em meados do século 16, permite o acompanhamento, nos séculos seguintes à produção daquele escrito, da mais ou menos feliz trajetória dos argumentos apologéticos que arrola sobre o cativeiro e a exploração do cativo, combatidos, em Portugal, por fracas mas corajosas vozes dissonantes, como as de Fernão de Oliveira e António Nunes Ribeiro Sanches (Oliveira, 1970; Sanches, s/d). Crónica de Guiné registra igualmente que a ideologia escravista da Antiguidade e

15 GÊNESIS. 9.

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da Alta Idade Média foram materiais basilares na conformação das justificativas da escravidão negra dos Tempos Modernos. Crónica de Guiné permite organizar um rol sintético das explicações e justificativas sobre a escravidão, em geral, e do cativeiro dos negro-africanos, em especial. Ao ser escravizado, o cativo, mouro ou guiné, era salvo nas almas e nos corpos. A expansão e a defesa da verdadeira fé justificava portanto a perda da liberdade do infiel ou do gentio, sobretudo porque ele conquistava a possibilidade da libertação eterna. Mas, sobretudo o negro-africano, era também escravizado por constituir ser estruturalmente inferior que necessitava do jugo para elevarem-se à civilização, já que incapaz do trabalho produtivo e da vida organizada, por moto próprio. Na Europa e na América, ele conheceria uma existência material superior. Considerando-se a inadequação do discurso tradicional sobre a servidão do mouro, impunha-se uma nova racionalização que apoiasse a submissão do negro-africano, destinada, em primeiro lugar, aos próprios segmentos portugueses e europeus dominantes e, a seguir, aos extratos livres subalternos e, em última instância, aos próprios objetos desse discurso – os trabalhadores escravizados. Como assinalado, pouco sabemos da receptividade da ideologia escravista pelos segmentos populares. Zurara registra a oposição dos jornaleiros ao leilão de Lagos e o apoio da população lisboeta às rapinagens nas praias africanas. Ainda que não seja claro o sentido que dê para o termo “povo”: “[...] que os clamores do povo eram tão grandes; quando viam levar aqueles cativos em cordas ao longo daquelas ruas, louvando as grandes virtudes do Infante [...].” (Zurara, p. 169). As narrativas escravistas destinavam-se igualmente aos cativos. Em forma crescente, aos tendencialmente integrados à sociedade lusitana através do aprendizado da língua, conversão ao catolicismo e realização de funções mais complexas. Em forma decrescente, aos empregados em tarefas duras, executadas sobretudo através da compulsão física. Também é muito limitado o conhecimento das contra-representações à ideologia escravista pelos escravizados, sobretudo as avançadas diretamente por estes setores (Braga, 1999). Realidades que as classes dominantes lusitanas esforçaram-se para reprimir sua produção, difusão e registro.

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Relações Raciais no Brasil Contemporâneo

Cleito Pereira dos Santos O tema das relações raciais tem sido recorrente nos recentes debates acerca da

problemática da discriminação racial e da conseqüente desigualdade de oportunidade a que estão sujeitos brancos e negros1 dentro da sociedade nacional. Pretendemos abordar este assunto dando ênfase às questões levantadas por algumas perspectivas teóricas tais como a de Florestan Fernandes e a de Carlos Hasenbalg.

Uma Interpretação das Relações Raciais: Florestan Fernandes Nos anos 50, Florestan Fernandes e Roger Bastide iniciaram uma série de estudos

patrocinados pela UNESCO que tinha como objetivo verificar o suposto caráter democrático das relações raciais no Brasil (Skidmore, 1991; Telles, 1991). Estes estudos culminaram na modificação substancial da interpretação até então vigente acerca das relações raciais no contexto da sociedade brasileira. De uma sociedade tida como racialmente resolvida passamos à constatação de que os grupos raciais se posicionam diferentemente no interior da ordem social e de que a distribuição das posições sociais está ligada ao preconceito e à discriminação racial praticada contra os negros.

De acordo com Florestan Fernandes:

A sociedade brasileira largou o negro ao seu próprio destino, deitando sobre seus ombros a responsabilidade de reeducar- se e de transformar-se para corresponder aos novos padrões e ideais de homem, criados pelo advento do trabalho livre, do regime republicano e capitalista (Fernandes, 1978, p. 20).

De certa forma podemos compreender a exclusão do negro do cenário social como conseqüência direta do processo de abolição da escravidão. Em outras palavras, a inserção do negro aconteceu de forma lenta com a ocupação dos setores mais subalternos na sociedade.

A economia competitiva, como o símbolo da modernização da estrutura produtiva da sociedade brasileira, desenvolveu-se como conseqüência imediata da abolição da escravidão. Em outras palavras, o negro sofreu as conseqüências diretas de um processo marcado pelas desiguais condições de acesso às novas ocupações econômicas advindas da mercantilização da economia.

Isto acarretou, antes de tudo, a inserção desigual dos vários grupos raciais na economia competitiva, ressaltada por Fernandes como processo de racionalização econômica em curso visando a constituição de um novo modelo de organização da vida econômica e social. Nesse processo, evidentemente, ainda segundo Fernandes, a integração do negro foi retardada uma vez que o processo imigratório colocado em prática pelo governo nacional priorizou a utilização de braços europeus dentro de uma concepção, então em voga, de que os imigrantes brancos representavam o advento da

1 Utilizarei a categoria Negro para designar pretos e pardos.

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civilização e da modernização da sociedade nacional. Assim, tomemos a afirmação de Fernandes:

O estrangeiro aparecia,(...), como a grande esperança nacional de progresso por saltos.(...). Desse ângulo, onde o “imigrante” aparecesse, eliminava fatalmente o pretendente “negro” ou “mulato” , pois entendia-se que ele era o agente natural do trabalho livre. (Fernandes, 1978, p. 27).

Neste sentido, Fernandes demonstra que o desenvolvimento da economia competitiva em São Paulo solapou as expectativas de negros e mulatos, uma vez que esses estratos raciais não estavam preparados dentro de um quadro de concorrência para enfrentar a adaptabilidade do trabalhador importado para aquelas tarefas condizentes com a nascente economia capitalista. Portanto, as oportunidades econômicas não seriam igualmente desfrutadas pelos grupos raciais em função do ponto de partida assimétrico a que foram submetidos.

De acordo com este autor:

O regime escravista não preparou o escravo (e, portanto, também não preparou o liberto) para agir plenamente como “trabalhador livre” ou como “empresário”. Ele preparou-o, onde o desenvolvimento econômico não deixou outra alternativa, para toda uma rede de ocupações e de serviços que eram essenciais mas não encontravam agentes brancos. Assim mesmo, onde estes agentes apareceram (como aconteceu em São Paulo e no extremo sul), em conseqüência da imigração, em plena escravidão os libertos foram gradualmente substituídos e eliminados pelo concorrente branco (Fernandes, 1978, p. 27).

Dessa forma, o negro foi empurrado para os setores mais subalternos da sociedade, pois o trabalho livre não lhe propiciou as condições de inserção nos setores dinâmicos da economia competitiva. Por outro lado, os trabalhadores imigrantes tiveram a seu favor amplas possibilidades de ascensão social em função das condições sociais inerentes à economia de mercado nascente.

A estrutura social fundada no pós-abolição não absorveu a mão de obra negra em função de que o agente do trabalho escravo não contava com as condições sociais adequadas a esta nova realidade. Ou seja, o negro saindo de um modo de vida escravista encontrou todas as dificuldades de adaptação à estrutura social em construção. O processo de inserção, por conseqüência, teria que ser doloroso e excludente.

De acordo com Hasenbalg:

Com a desagregação do regime escravista, segundo Fernandes, a mudança no status legal de negros e mulatos não se refletiu numa modificação substancial de sua posição social. À falta de preparo para o papel de trabalhadores livres e ao limitado volume de habilidades sociais adquiridas durante a escravidão acrescentou- se a exclusão das oportunidades sociais e econômicas resultantes da ordem social competitiva emergente. Os ex- escravos e homens livres de cor foram relegados à margem inferior do sistema produtivo, dentro de formas econômicas pré- capitalistas e áreas marginais da economia urbana (Hasenbalg,1979, p. 72).

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Evidentemente que Fernandes atribui ao modo como se organizou a produção tipicamente competitiva o papel de canalizador das tensões vividas pela não incorporação do negro ao mercado de trabalho. De certa forma, ainda segundo este autor, temos a sobrevivência de arcaísmos do passado no interior de uma ordem social competitiva. Em outras palavras, a discriminação racial e o preconceito contra os negros configuram reminiscências do passado que, paulatinamente, perderiam o poder classificatório numa economia de mercado.

Nesse sentido, enquanto um arcaísmo do passado, a discriminação racial e o preconceito constituem elementos fundantes de uma estratificação social segundo critérios bem definidos de cor da pele. Isto implica a percepção do racismo como parte de uma herança do passado que sobrevive na sociedade nacional. Paulatinamente, as transformações na economia competitiva provocarão o desaparecimento desses resquícios, uma vez que a mesma está fundada em critérios racionais de competitividade que não comportam arcaísmos de outras épocas.

Assim:

O preconceito e a discriminação racial apareceram no Brasil como conseqüências inevitáveis do escravismo. A persistência do preconceito e discriminação após a destruição do escravismo não é ligada ao dinamismo social do período pós-abolição, mas é interpretada como um fenômeno de atraso cultural, devido ao ritmo desigual de mudança das várias dimensões dos sistemas econômico, social e cultural (Hasenbalg, 1979, p. 73.).

Daí a ênfase de Fernandes no entendimento da ordem social competitiva, pois, à medida que esta se desenvolvesse, teríamos a superação desses mecanismos de discriminação racial. As desigualdades sociais seriam resolvidas à proporção que os negros fossem integrados à economia de mercado e as distinções sociais entre brancos e negros dessem lugar a uma situação de igualdade nas oportunidades de ocupação, renda e educação. Dessa maneira:

Fernandes argumenta que o modelo arcaico de relações raciais só desaparecerá quando a ordem social competitiva se libertar das distorções que resultaram da concentração racial de renda, privilégio e poder. Assim, uma democracia racial autêntica implica que negros e mulatos devam alcançar posições de classe equivalentes àquelas ocupadas por brancos (Hasenbalg, 1979, p. 74).

Desse modo, a interpretação fornecida por Fernandes pressupõe a compreensão da ordem social capitalista como expressão exata dos valores democráticos e da igualdade das oportunidades fundados no critério racional da competência. Como podemos perceber, este autor apresenta uma interpretação dinâmica da realidade brasileira e, portanto, considera a eliminação das barreiras raciais um acontecimento necessário ao pleno desenvolvimento da economia competitiva. Por isso:

Visto que o desenvolvimento econômico e a plena constituição da ordem social competitiva são considerados como os principais processos subjacentes à eliminação dos aspectos arcaicos das relações raciais , F.

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Fernandes é levado a uma visão cuidadosamente qualificada, porém otimista, sobre o futuro das relações raciais brasileiras(Hasenbalg, 1979, p. 74).

Esta teoria nos leva a explicar o racismo, no contexto da sociedade de classes, como algo que tem sua raiz no passado. Na economia competitiva sobrevivem elementos da organização social anterior os quais constituem anomalias que o desenvolvimento posterior da economia de mercado tratará de corrigir, tornando o processo de ascensão- integração do negro possível nos quadros da ordem social capitalista. Nessa perspectiva:

Após a abolição do escravismo, argumenta Fernandes, a sociedade herdou do antigo regime um sistema de estratificação racial e subordinação do negro. A persistência desta estratificação após a emancipação é devidamente atribuída aos efeitos do preconceito e discriminação raciais. Apesar da compreensiva e meticulosa dissecação das relações raciais brasileiras, a principal debilidade interpretativa resulta dessa conceituação do preconceito e discriminação raciais como sobrevivências do ancien regime . Essa perspectiva, relacionada à teoria de caráter assincrônico da mudança social, explica os arranjos sociais do presente como resultado de “arcaísmos” do passado. Assim, o conteúdo “tradicional” ou “arcáico” das relações raciais, revelado pela presença de preconceito e discriminação raciais, é considerado como um remanescente do passado. O modelo tradicional e assimétrico de relações raciais, perpetuado pelo preconceito e pela discriminação, é considerado uma anomalia da ordem social competitiva. Em conseqüência, o desenvolvimento ulterior da sociedade de classes levará ao desaparecimento do preconceito e discriminação raciais. A raça perderá sua eficácia como critério de seleção social e os não- brancos serão incorporados às posições “típicas” da estrutura de classes (Hasenbalg, 1979, p. 75-76).

Notadamente, Fernandes elabora uma interpretação das relações raciais brasileiras em termos de desagregação da estrutura social anterior o que implica a compreensão do contexto das relações raciais contemporâneas como o resultado imediato da conjugação de forças sociais presentes na batalha da abolição. Porém, outro aspecto nitidamente perceptível é o fato deste autor associar a economia competitiva à posterior eliminação da discriminação e do preconceito racial dando vazão à compreensão de que a expansão capitalista possibilitaria a adequação das relações raciais à estrutura de classes da sociedade brasileira.

As desigualdades raciais estariam, desse modo, condicionadas pela sobrevivência de resquícios da sociedade escravista na realidade sócio-econômica nacional. Assim Fernandes apresenta uma perspectiva otimista quanto à inserção dos negros na estrutura de classes da economia competitiva. Isto equivaleria a dizer que as relações raciais pautadas pela subordinação do negro, paulatinamente, seriam superadas enquanto se ampliasse o espectro da economia capitalista.

Segundo Arruda:

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No quadro dessas considerações, explicitam-se concepções do autor: a noção de ordem social competitiva, ou sociedade capitalista, enquanto forma de estratificação aberta e tendencialmente democrática; a identificação do mito à ideologia, numa acepção mais restrita a esse fenômeno de natureza simbólica. Nesse sentido, Florestan trabalha com a noção de mito no sentido diverso da tradição antropológica, ou seja, enquanto universo de representações exclusivas. De outro lado, a discussão do mito da democracia racial permite-lhe ultrapassar certas visões dominantes e “representa uma recusa à visão conservadora que marca o debate não somente sobre a questão racial, mas também na Sociologia no Brasil” [BASTOS, Apud. ARRUDA.]. No interior desses parâmetros analíticos, o sociólogo desenvolve a segunda parte de sua reflexão, quando a ordem social competitiva expande-se no sentido capitalista no momento da Segunda Revolução Industrial, o que possibilita o reequacionamento das formas de integração do negro (Arrunda, 1998, p. 196)..

Certamente o trabalho que investiga as relações raciais levado a cabo por Fernandes constata a existência do fenômeno das desigualdades de oportunidades entre brancos e negros. No entanto a preocupação investigativa deste autor o leva à percepção da solução nos termos de um reordenamento das relações sociais, econômicas e políticas no interior da economia competitiva.

Em suma, este autor demonstra o caráter desigual das relações entre brancos e negros e desmistifica a noção de democracia racial à medida que apresenta, em contraposição, elementos discriminatórios presentes no cotidiano das relações raciais no Brasil2. Porém associa estes desajustes sociais à existência de resquícios da escravidão ainda marcando a realidade brasileira.

Ainda, de acordo com Arruda:

Apesar da tendência à assimilação, o prestígio e o poder permanecem enleados aos princípios sociais dominantes herdados do passado e encarcerados pela ordem branca. A lentidão e descontinuidade do ritmo da integração apontam para os dilemas de uma história que não rompe as cadeias do passado. No âmbito da sociedade de classes, apesar do nuançamento da relação entre negro e condição social ínfima, os egressos da escravidão não se constituíram em ameaça às posições do branco e sequer entraram no universo das percepções deste.(...). Na impossibilidade de constituir-se, efetivamente, em sujeito da sua trajetória social, o negro vivencia uma realidade do preconceito contraditória, que pode ser tanto neutralizada, quanto acirrada, em função da tradição cultural da sociedade. Esta via de ligação entre o passado, o legado cultural da sociedade escravista e o presente sofre as injunções de circunstâncias e não foi gestada na dinâmica intrínseca à ordem social competitiva (Arruda, 1996, p. 199).

Dessa forma, a interpretação oferecida por Fernandes aponta para o entendimento do presente – sociedade capitalista – como algo ainda incompleto – sobrevivência de 2 Confira as obras de Fernandes (1972; 1978).

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aspectos do passado escravista – e, portanto, as práticas discriminatórias seriam como um corpo estranho no emaranhado de relações sociais capitalistas.

Discriminação e Desigualdades Raciais Apresentando uma perspectiva teórica distinta de Florestan Fernandes em A

Integração do Negro na Sociedade de Classes e O Negro no Mundo dos Brancos, Carlos Hasenbalg em Discriminação e Desigualdades Raciais no Brasil aponta o fato da situação dos pretos e dos pardos (para este autor: os não- brancos) no contexto social brasileiro não ser apenas o produto direto de uma herança do passado. De acordo com esta concepção, as situações de discriminação e desigualdade racial configuram aspectos de uma estratificação social na qual os não-brancos estão sistematicamente expostos às desvantagens advindas desse sistema de classificação através da cor da pele.

A raça é vista, aqui, como um dos elementos fundantes na estruturação das relações sociais. A subordinação dos negros é explicada a partir do entendimento dos mecanismos, definidores da posição dos grupos raciais, que operam no interior da sociedade.

O passado escravista não é visto como o elemento explicativo para um contexto de oportunidades desiguais a que estão sujeitos brancos e negros. Nesse sentido, os mecanismos que operam na manutenção das desigualdades raciais fazem parte da constituição e do funcionamento da sociedade de classes. Em outras palavras, o grupo racial hegemônico desfruta de vantagens sociais e econômicas que explicam a continuidade da discriminação e da desigualdade racial.

O estudo das relações raciais deve levar em conta as variadas formas de inserção social presente em cada região do país, uma vez que o desenvolvimento sócio-econômico aconteceu de maneira desigual e, portanto, os grupos raciais tiveram acesso diferenciado aos bens econômicos e sociais em cada região. A localização geográfica explica, em termos, os diferenciais de educação, rendimento, natalidade, mortalidade, fecundidade e ocupação, dentre outros.

Nesse sentido, os estudos realizados por Andrews, Tamburo, Bercovich e Lovell indicam as dificuldades dos afro-brasileiros em conseguirem os mesmos índices de educação, de renda, de mortalidade, de natalidade e de fecundidade que o segmento racial branco (Andrews, 1992; Tamburo, 1991; Bercovich, 1991; Lovell, 1992). Isso implica níveis diferenciados de inserção social e perpetua desigualdades no acesso às oportunidades de ascensão e mobilidade social.

Enquanto o Sudeste expandia sua atividade econômica, via industrialização, o resto do país, tido como subdesenvolvido, continuava com suas atividades voltadas para a agricultura, ou seja, as atividades tradicionais que resultam baixo desenvolvimento urbano (Hasenbalg, 1979; Telles, 1991).

Como já havia sido constatado por Andrews, Hasenbalg, Barcellos e outros pesquisadores, a menor participação dos negros no mundo urbano constitui um obstáculo à participação nas atividades mais dinâmicas da vida social(Andrews, ; Hasebalg, 1979; Barcellos, 1992). O fato do segmento racial branco ter se deslocado mais rapidamente para a economia urbana possibilitou-lhe a apropriação das melhores oportunidades de participação na economia competitiva (Fernandes, 1978).

A inserção do negro no mundo do trabalho aconteceu de forma irregular, uma vez que a política de imigração, então levada a cabo pelo governo brasileiro, apontava objetivamente para a substituição do negro enquanto participante da sociedade nacional. O ideal de branqueamento, que constituía a ideologia racial das elites, tinha como conseqüência a exclusão dos negros (Fernandes, 1978).

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Dessa maneira, a constituição do mercado de trabalho nacional capitalista foi marcada pela adoção de critérios que privilegiavam o grupo racial branco:

Os Empresários capitalistas exercem suas preferências étnicas e raciais no mercado de trabalho de acordo com as possibilidades e os recursos disponíveis. Em São Paulo, os cafeicultores e industriais deram-se ao luxo de beneficiar- se do subsídio do Estado, à parte do fluxo imigratório que concorreu para a formação do mercado de trabalho capitalista na região. No Rio de Janeiro, onde a imigração foi espontânea e não subsidiada, os imigrantes também foram os preferidos na formação da classe operária industrial, mas o seu número não foi suficiente para preencher todas as vagas que se abriram na indústria. No Nordeste, onde não houve imigração, a ordem de preferência, possivelmente, foi a seguinte: brancos da terra, mestiços e, por último, negros. Essas preferências dos empresários redundaram, em todas as regiões, num padrão nítido de estratificação racial em que os negros ficam concentrados na base da hierarquia ocupacional (Hasenbalg, 1992, p. 23).

Portanto, ao contrário da perspectiva de Fernandes, Hasenbalg aponta para o fato das desigualdades raciais estarem associadas aos privilégios sociais e econômicos que ocasionam a existência da discriminação racial contra os negros.

O racismo, assim, não é visto como algo herdado da sociedade escravista e que tende a desaparecer com o desenvolvimento da economia competitiva ou capitalista. Antes, faz parte da classificação forjada pelo grupo racial dominante no sentido de manter determinadas vantagens sócio-econômicas.

Novamente entra em cena o ideal racial de tornar o Brasil um país branco, de ascendência predominantemente européia. De acordo com Skidmore, as elites construíram uma idéia de nação fundada na exclusão do negro através do processo de imigração que iria “branquear” a sociedade (Skidmore, 1976).

A partir dessa perspectiva, compreende- se que a discriminação racial e o racismo fazem parte de um “projeto” do que deveria ser a nação. Não estava entre as preocupações mais urgentes do segmento branco dominante o destino dos indivíduos egressos da escravidão e a política imigratória posta em prática pelo Estado evidencia esta expectativa.

De acordo com Telles:

O propósito do embranquecimento se tornou explícito nos debates da elite brasileira do século XlX em relação às diversas alternativas para substituir a força de trabalho, majoritariamente escrava, que dentro de pouco tempo seria manumissa pela abolição. A elite se preocupava com o prestígio internacional brasileiro, já que o racismo científico da época levava os países europeus a desprezarem a América Latina devido a seus grandes contingentes de africanos e indígenas. O Congresso brasileiro resolveu incentivar a imigração de trabalhadores europeus para aumentar a proporção de brancos na população (Telles, 1993. p. 6).

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Para Barcellos, efetivamente, a abolição não se fez acompanhar de medidas capazes de reduzir os níveis de pobreza a que estavam sujeitos os agentes do trabalho escravo:

Último país a extinguir o trabalho escravo, a abolição brasileira não se fez acompanhar de medidas que efetivamente garantissem a superação das condições de vida necessariamente empobrecidas geradas pelo regime de trabalho forçado. Ao invés de medidas que gerassem um melhor padrão sócio-econômico para os escravos – a essa altura já minoria entre a população de negros, uma vez que a abolição final foi precedida de um lento mas permanente processo de erosão do sistema que levou a progressivas parcelas de libertos – uma política de substituição da mão-de-obra nacional pelos imigrantes aprofundou o drama social em que se encontravam os negros (Barcellos, 1992, p. 3).

O contexto das relações raciais, então, está marcado pela existência de discriminação e desigualdade atuando como elementos de manutenção de prestígio e poder do grupo racial dominante e não como resquícios do passado como acreditava Fernandes nas pesquisas realizadas em São Paulo. A ordem social competitiva se assenta na existência e realimentação de critérios de classificação fundados na cor da pele.

As relações entre brancos e negros foram moldadas por critérios de classificação racial francamente voltados para a subordinação social daqueles que haviam sido o foco central do sistema escravista, ou seja, os descendentes dos africanos. A discriminação e a desigualdade racial funcionavam como mecanismos do próprio processo de constituição da sociedade pós-abolição.

A constituição de uma ideologia nitidamente racista ao longo do processo de desestruturação e fim do escravismo, conforme Skidmore, está associada à constituição e consolidação da nação. Nota-se a deliberada intenção da elite emergente em marginalizar aqueles indivíduos que até então haviam impulsionado a economia escravista.

Disso resulta uma completa subordinação dos negros à estrutura social assentada na existência do trabalho assalariado, do mercado tipicamente capitalista e de uma estratificação social que leva em conta o critério racial na distribuição das oportunidades de acesso a determinados produtos sociais, como lazer, educação, trabalho, moradia e outros (Lovell, 1991). A existência e a continuidade das desigualdades raciais contraria a tese de Fernandes quanto ao posterior desaparecimento da discriminação racial e das desigualdades fundadas na cor da pele à medida que ocorrer o desenvolvimento da economia competitiva, capitalista.

Desigualdades Educacionais, Ocupacionais e de Renda As investigações mais significativas acerca da temática educação e origem racial têm

demonstrado a existência de uma notável relação entre cor da pele e sucesso escolar. Podemos situar esta realidade a partir dos trabalhos de Barcellos (1992), Hasenbalg & Silva (1991), Rosemberg & Pinto (1988), dentre outros.

A educação é tomada como ponto relevante para a percepção das desigualdades – tomadas como diferenças entre oportunidades e realizações – uma vez que indica o grau de inserção dos grupos de cor na sociedade.

Portanto a verificação da desigualdade racial no campo educacional possibilita a compreensão do fenômeno aqui estudado.

De acordo com Barcellos:

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A realização educacional tem sido amplamente relacionada à origem social do indivíduo. De fato, o desempenho educacional parece depender não só do rendimento acadêmico do próprio aluno, mas também da estrutura familiar e da posição que o indivíduo ocupa nessa estrutura. Neste sentido, algumas variáveis de background familiar – notadamente ocupação do pai, escolaridade dos pais e renda familiar – são apontadas como fortes preditores do desempenho escolar (Barcellos, 1992, p. 18).

No entanto existem polêmicas quanto às influências do padrão sócio-econômico dos pais na determinação do sucesso escolar dos filhos.3 Segundo Rosemberg, indivíduos negros estão mais expostos às desvantagens no sistema educacional, uma vez que têm acesso a um tipo de escola com situação de aprendizagem defasada. Assim, os negros estudariam nas piores escolas – notadamente no período noturno – onde estaria operando uma segregação espacial configurada pela existência de distinção entre a cor dos alunos do período noturno e do diurno e o tipo de ensino que recebem.

Ainda segundo esta autora, brancos e negros se encontram em situação diferenciada quanto aos ganhos relativos à educação. Mesmo quando atingem níveis de renda equivalentes às famílias brancas, os indivíduos negros não apresentam a mesma taxa de escolarização. Nesse sentido:

Os dados informam, também, que a escola é de mais difícil acesso para a criança e o jovem negros, mesmo que eles provenham de famílias que obtêm rendimentos equivalentes aos de famílias brancas(...). Comparando-se as taxas de escolarização nas diferentes faixas etárias e nos diferentes níveis de renda entre os segmentos raciais, observa- se que a taxa de escolarização dos negros é sempre inferior à dos brancos. É, pois, possível afirmar que o sistema de ensino interpõe empecilhos para o acesso e a permanência na escola para crianças e jovens negros (Rosemberg & Pinto, 1988, p. 36).

O fator renda opera, também, como um poderoso mecanismo de seletividade social. Comparando a desigualdade racial no Brasil e nos Estados Unidos, Andrews constata que embora tenham acontecido modificações estruturais significativas a partir dos anos 50 e, mais notadamente, nos anos 80:

Os empregos profissionais e administrativos se expandiram exponencialmente, enquanto a agricultura sofria acentuado declínio em importância. Ambas as mudanças, contudo, redundaram em benefícios desproporcionais para a população branca, que abandonou a agricultura a uma taxa muito mais rápida que a dos não-brancos e aproveitou as novas oportunidades no trabalho de escritório white collar em números muito maiores que os não- brancos (Andrews, 1992, p. 70).

3 Aqui não iremos nos ater a esta questão. Para melhor compreensão do debate consulte BARCELLOS

(1992).

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Evidentemente, o processo de urbanização, ao abrir novas possibilidades sócio-econômicas, fez com que contingentes populacionais tipicamente agrários se deslocassem em busca das vantagens advindas de tal processo. No entanto, as oportunidades surgidas com a modernização do sistema produtivo foram apropriadas de forma desigual pelos segmentos raciais da população.

Em outras palavras, as novas ocupações surgidas com tal modernização e que conferiam um novo status às camadas sociais foram de exclusiva inserção do segmento racial branco da população. Ou seja, o preenchimento das novas ocupações que geravam melhores rendas não se abriu à competição direta dos indivíduos negros.

Estudos realizados por Lovell indicam que – no período que compreende 1960 a 1980 – a discriminação salarial cresceu em relação aos homens e mulheres afro-brasileiros, apesar do crescimento econômico verificado neste intervalo (Lovell, 1992).

Tal constatação indica que as desigualdades e discriminações quanto a salário, ocupação e educação não serão, necessariamente, eliminadas com o desenvolvimento econômico. Isto contraria as afirmações de alguns estudiosos segundo os quais as questões relativas à raça seriam secundárias à medida que o desenvolvimento econômico se intensificasse.

A maior inserção do segmento racial branco no quadro da economia urbana pós-50, conforme Andrews, implicou, também, maiores ganhos educacionais por parte desse segmento. As funções sócio-econômicas surgidas a partir da modernização do sistema produtivo exigiam mão-de-obra com maior qualificação e, por conseguinte, a educação passou a ser um mecanismo usado na seletividade dos quadros que iriam administrar e dirigir a economia urbana emergente.

Para Andrews, o quadro educacional brasileiro se apresenta de maneira desigual, uma vez que os diferenciais são absolutamente elevados no que diz respeito à escolarização dos grupos raciais. Essa diferenciação constitui um entrave para a integração dos indivíduos negros à produção moderna em uma economia competitiva.

Os ganhos em escolaridade também foram verificados por Hasenbalg, que demonstrou como brancos e negros se posicionam no processo educacional. De acordo com este autor, as desigualdades educacionais entre estes grupos raciais ocorrem à medida que os negros (na definição do autor os não-brancos, que incluem pretos e pardos) adquirem níveis de escolaridade inferiores aos brancos. O acesso e a permanência na escola são verificados a partir do entendimento dos mecanismos que operam no sentido da discriminação racial.

A trajetória educacional dos grupos de cor é marcada pela desigualdade no acesso e na permanência. Assim, para o grupo negro, os ganhos com educação são bem menores que para o grupo branco. De acordo com Hasenbalg:

A evidência acumulada aponta para a conclusão de que níveis crescentes de industrialização e modernização da estrutura social não eliminam os efeitos da raça ou cor como critério de seleção social e geração de desigualdades sociais (Hasenbalg & Silva, 1991, p. 241).

Nestes termos, podemos compreender a educação como local de exclusão fundada no critério cor como elemento essencial para o entendimento da produção e reprodução das desigualdades sociais. O analfabetismo, a repetência e a evasão escolar, que ainda marcam a trajetória dos estudantes negros, operam como perpetuadores de uma situação de baixa mobilidade social a que estão sujeitos estes indivíduos.

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Nesse sentido, a percepção de Hasenbalg quanto ao fenômeno racial aponta para o entendimento da educação como mecanismo de seletividade social, uma vez que a mesma estaria operando de forma a manter determinados processos que implicam discriminação e preconceito contra os negros.

Na sociedade de classes moderna, o capitalismo, as relações raciais estão marcadas pelas formas desiguais expressas no preconceito e na discriminação raciais. Estes funcionam como um mecanismo de exploração, haja vista o fato de negros, e outros grupos raciais, estarem submetidos a condições de trabalho, educação e renda inferiores a determinados outros indivíduos pertencentes a grupos hegemônicos do ponto de vista cultural, político, econômico e social.

A discriminação, um dos aspectos da ideologia racial, funciona como um regulador das expectativas sociais dos indivíduos dominados e serve, também, para impor-lhes a aceitação da sua condição subalterna na sociedade, uma vez que são considerados inferiores e, portanto, passíveis de serem objetos da violência, tanto física quanto simbólica, por parte dos discriminadores. Esta é a lógica do racismo.

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Cotas raciais: solução para o racismo?

Lisandro Braga

Como explicar a existência do racismo na atualidade? De onde vem esse racismo

que atinge quase metade da população nacional em precárias condições de sobrevivência? O capitalismo contemporâneo baseia-se na competição social em busca de privilégios, status, poder e ascensão social que acaba por jogar os trabalhadores uns contra os outros, dividindo-os e enfraquecendo-os. Acreditamos que é nesse sentido que o racismo fortalece o capitalismo, ou seja, dividindo a classe explorada para enfraquecê-la e facilitar sua dominação pela burguesia. E essa talvez seja uma das principais razões para que o racismo permaneça, mesmo após a abolição da escravidão, sendo uma realidade cruel e inegável no Brasil e no mundo.

Diante dessa realidade, têm surgido diversas discussões nos meios acadêmicos, nos movimentos negros, nas instituições políticas e na sociedade civil como um todo, acerca da necessidade de adoção de mecanismos que possam reverter esse quadro de “exclusão” social da população negra brasileira. A proposta mais discutida é a que defende políticas públicas de inclusão dos negros nas várias instituições públicas e/ou privadas através da reserva de cotas para as populações que tem sido vítimas de processos históricos marginalizantes.

O problema, para nós não se resume a encontrar argumentos que justifiquem ou não a adoção de reserva de cotas para negros nas universidades públicas, mas sim se o simples acesso à universidade consiste no principal obstáculo para a resolução da desigualdade racial, ou se o Estado neoliberal com o seu caráter de classe que tem como função assegurar e conservar a dominação e a exploração da classe minoritária e dominante sobre a classe majoritária e dominada - juntamente com sua política, cada vez maior, de afastamento da responsabilidade dos assuntos sociais sob a alegação de que esses pertencem ao âmbito privado - possa adotar medidas que reverta a situação da grande maioria da população negra brasileira que ocupa os extratos sociais mais inferiores? E se seria possível a abolição das desigualdades raciais sem a abolição das desigualdades de classes?

A hipótese que perpassa todo o centro da análise a que propomos realizar – os “limites” da política de cotas raciais – consiste em procurar saber se os benefícios que tal política possa atingir não se tratam de meros paliativos que se limitam a gerar benefícios individuais e não coletivos, uma vez que beneficiaria somente a parcela da população negra que detém o capital cultural, visto que grande parte da população negra, que vive “às margens” da participação social, possui outras prioridades imediatas tais como, alimentação, emprego, moradia, acesso ao transporte, educação básica, que acabam por ser primárias e um pré-requisito ao acesso à educação superior.

Além disso, resta saber se mesma não representa uma estratégia do Estado neoliberal de reduzir gastos sociais, uma vez que o mesmo ao adotar cotas raciais, evita de investir recursos na melhoria da qualidade da escola pública, na ampliação das vagas nas universidades e nos principais problemas sociais que afetam milhares de brasileiros

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pobres que sofrem com a da falta de terras, moradia, saúde, segurança, emprego, alimentação, lazer etc.

Capitalismo e racismo Apesar da crença consolidada de vivermos em uma democracia racial, na qual a

miscigenação tem servido de argumento para afirmar o quanto é harmoniosa a relação entre brancos e negros, as estatísticas de bem estar social têm nos mostrado o quanto é imensa a distância que separa a minoria privilegiada da população branca da maioria da população negra pobre em relação à participação nos diversos setores e instituições sociais – alimentação, saúde, educação, moradia, segurança, lazer. A falta de conhecimento sobre os verdadeiros motivos que explicam essa distância tem contribuído para a produção, reprodução e manutenção do preconceito racial, tanto do branco contra o negro, quanto do negro contra seu próprio grupo de pertença racial.

O argumento – racista - mais utilizado para explicar os problemas e as dificuldades enfrentadas pelos negros é o que encara a cor da pele e as características fenotípicas como diferenciador de raças vistas como superiores e/ou inferiores. Dessa forma, segundo Souza,

“a questão racial está, portanto, manipulada de forma a conservar os segmentos e grupos dominados dentro de uma estrutura já estabelecida e assim se confunde o plano miscigenatório, biológico, com o social e econômico. As oportunidades de trabalho e ascensão social não são idênticas para negros e brancos, mas joga-se sobre o negro a culpa de sua inferioridade social, econômica e cultural” (apud FERREIRA, 1991, p. 38).

Argumentos desse tipo têm favorecido a introjeção, por parte do negro, de um julgamento de inferioridade que o faz acreditar que sua situação social se deve ao fato de pertencer a determinado grupo racial e não às condições opressivas e desiguais que marcaram a história secular de milhares de homens e mulheres nesse país.

Vivemos em uma sociedade socialmente desigual, na qual a questão “raça” está intimamente associada, uma vez que parcela significativa da população nacional que sofre essa desigualdade é formada por negros. Porém, tal quadro sempre foi apontado pelas classes dominantes, que ao utilizar a ideologia racial de superioridade/inferioridade, como sendo da responsabilidade da inferioridade do negro e sua conseqüente capacidade de inseri-se na sociedade livre e competitiva capitalista.

O racismo é fruto do capitalismo comercial europeu do século XVI, que ao necessitar de extensa mão-de-obra para as lavouras produtoras de matérias-primas e gêneros tropicais da América, elaborou teorias que “justificaram” a escravidão, excluindo da raça humana os negros, que passaram a ser considerados “desalmados”, portanto, passivos de se tornarem escravos. Percebe-se que, o racismo é fruto da necessidade da burguesia comercial européia de acumular capital. Apesar dessa explicação ser, até certo ponto, convincente, por si só a escravidão e toda herança colonial gerada pela mesma não são suficientes para explicar as desigualdades raciais contemporâneas.

Outro argumento que, embora seja comum, demonstra-se como sendo um equívoco interpretativo, é o que afirma a existência da ideologia racista - que tende a afirmar a existência de raças superiores e raças inferiores e que, portanto justificaria escravização das últimas sobre as primeiras - como algo anterior à escravidão moderna ocorrida nas Américas. A base explicativa de tal argumento seria a existência de tal ideologia já nas sociedades escravistas da Antiguidade Clássica, porém, nem mesmo em tais sociedades

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tal afirmação era aceita plenamente, inclusive a própria concepção aristotélica de escravidão natural não era aceita sem contestações. Na Antiguidade Clássica a escravidão era justificada pela sua utilidade e não por critérios raciais. O escravo geralmente era prisioneiro de guerra ou escravo por dívidas e isso independia da sua pertença racial, visto que vários escravos pertenciam à mesma raça dos seus escravizadores. Não havia na Antiguidade Clássica uma necessidade de justificar a escravidão a partir da ideologia racial, e isso se explica pela natureza das relações sociais desse período que eram marcadas por uma rígida divisão hierárquica e na divisão de grupos legalmente desiguais – cidadãos e escravos -, nas quais o escravo estava submetido à força física do seu proprietário que dispunha até mesmo do direito de matá-lo. Portanto, percebe-se que “em sociedades tão hierárquicas a escravidão era apenas um dentre o espectro de vários status desiguais, não requerendo explicação especial” (CALLINICOS, 2005).

De acordo com Wood,

“uma comparação com os outros únicos exemplos históricos de escravidão na mesma escala irá ilustrar o fato de nada haver de automático na associação de escravidão com racismo tão violento, e pode mesmo sugerir que há algo específico ao capitalismo nesse efeito ideológico. Na Grécia e na Roma antigas, apesar da aceitação quase universal da escravidão, a idéia de que ela se justificava pelas desigualdades naturais entre seres humanos não era um valor dominante. A única exceção importante, a concepção aristotélica de escravidão natural, nunca foi aceita. A opinião mais comum parecia ser a de que a escravidão era uma convenção, ainda que universal, que se justificava simplesmente com base na sua utilidade. De fato, aceitava-se até mesmo que instituição tão útil seria contrária à natureza. Essa visão aparece não somente na filosofia grega, mas eram também aceita no direito romano, no qual havia um conflito reconhecido entre o ius gentium, o direito convencional das nações, e o ius naturale, o direito da natureza” (2003, p. 230).

E porque, então, o capitalismo necessitou justificar a escravidão no novo mundo? Que interesses existiam por trás de tais justificativas? O período no qual o capitalismo veio se consolidando como modo de produção dominante – século XVII e XVIII -, foi marcado por uma série de revoluções burguesas contra a estrutura que ficou conhecida como Antigo Regime. Tal estrutura era marcada por uma rígida divisão estamental na qual a burguesia, apesar de ser uma classe rica, estava excluída de toda participação política e social. Para romper com essa situação, a burguesia, juntamente com seus ideólogos, elaboraram uma série de filosofias denominadas iluministas, nas quais defendiam o uso da razão, da ciência, da dúvida metódica e do método experimental, como caminhos para se atingir o progresso da humanidade. Camuflado pelas idéias humanitárias de liberdade, igualdade, fraternidade, cidadania, direitos do homem etc. é que a burguesia promoveu uma série de revoluções para adquirir participação política e implementar a teoria liberal de livre mercado, livre concorrência, leis econômicas da oferta e da procura etc. Essas concepções de liberdade e igualdade – burguesa – se resumiam em afirmar a existência de indivíduos formalmente livres e iguais, e portanto, “dispostos” – nesse caso os trabalhadores - a venderem sua força de trabalho aos capitalistas. Porém, nesse mesmo período, tal burguesia se enriquecia e acumulava capital

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com mão-de-obra escrava africana em duplo sentido, através do tráfico negreiro e através da exploração do trabalho escravo nas lavouras de gêneros tropicais e matérias-primas da América.

Com o intuito de superar tal contradição – exigência de igualdade e liberdade de um lado; e escravidão do outro – é que os ideólogos burgueses elaboraram teorias que “justificaram” a escravidão, afirmando não serem os africanos seres humanos, ou que os mesmos pertenciam às raças ditas inferiores. O racismo “formou-se como parte do processo através do qual o capitalismo tornou-se o sistema econômico e social dominante” (CALLINICOS, 2005). Pois,

“enquanto cresciam a opressão colonial e a escravidão nos postos avançados do capitalismo, cada vez mais a força de trabalho da metrópole se proletarizava; e a expansão do trabalho assalariado, a relação contratual entre indivíduos formalmente iguais e livres, trouxe consigo a ideologia da igualdade e da liberdade formais. Na verdade, essa ideologia, que nos planos jurídico e político nega a desigualdade fundamental e a falta de liberdade da relação econômica capitalista, sempre foi elemento vital da hegemonia do capitalismo (...) Foi precisamente a pressão estrutural contra a diferença extra-econômica que tornou necessário justificar a escravidão excluindo da raça humana os escravos, tornando-os não-pessoas alheias ao universo normal da liberdade e da igualdade. Talvez porque o capitalismo não reconheça diferenças extra-econômicas entre seres humanos, tenha sido necessário fazer as pessoas menos que humanas para tornar aceitáveis a escravidão e o colonialismo que eram tão úteis ao capital naquele momento histórico” (Wood, 2003, p. 230-231).

Outro fator histórico importante, para compreender o racismo no Brasil, é a forma como ocorreu a Abolição da escravidão. A respeito desse fato, as palavras de José Murilo de Carvalho são esclarecedoras: “A libertação dos escravos não trouxe consigo a igualdade efetiva. Essa igualdade era afirmada nas leis mas negada na prática. Ainda hoje, apesar das leis, aos privilégios e arrogância de poucos corresponde o desfavorecimento e a humilhação de muitos” (2002, p.53).

A abolição da escravidão no Brasil foi realizada segundo os interesses da elite dominante que passava a ver no trabalho escravo um grande obstáculo à modernização e ao desenvolvimento do capitalismo. A incompatibilidade do regime escravocrata ao desenvolvimento capitalista é que levou à abolição, e dessa forma, seria mais correto afirmar que a elite econômica do país é que se livrou dos escravos e não o contrário, pois, depois da abolição os negros foram abandonados à sua própria sorte, sem que a sociedade lhe assegurasse mínimas condições de sobrevivência. A abolição veio ampliar a já imensa maioria da população marginalizada e socialmente oprimida, uma vez que

“aos libertos não foram dadas nem escolas, nem terras, nem empregos. Passada a euforia da libertação, muitos ex-escravos regressaram a suas fazendas, ou a fazendas vizinhas, para retomar o trabalho por baixo salário. Dezenas de anos após a abolição, os descendentes de escravos ainda viviam nas fazendas, uma vida pouco melhor do que a de seus antepassados escravos. Outros dirigiram-se às cidades, como o Rio de Janeiro, onde foram engrossar a grande parcela da

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população sem emprego fixo. Onde havia dinamismo econômico provocado pela expansão do café, como em São Paulo, os novos empregos, tanto na agricultura como na indústria, foram ocupados pelos milhares de imigrantes italianos que o governo atraía para o país. Lá, os ex-escravos foram expulsos ou relegados aos trabalhos mais brutos e mais mal pagos” (Carvalho, 2002, p. 52).

Mas como explicar a existência do racismo na atualidade? O capitalismo contemporâneo baseia-se na competição social em busca de privilégios, status, poder e ascensão social que acaba por jogar os trabalhadores uns contra os outros, dividindo-os e enfraquecendo-os. Além disso, é de extrema importância para o funcionamento do capitalismo e de sua extração de mais-valor, a existência de níveis salariais diferenciados que acabam por serem fornecidos pela ideologia racista, que dessa forma procura justificar os baixos salários dos trabalhadores negros em relação aos trabalhadores brancos e, conseqüentemente, criar conflitos entre os trabalhadores, dividindo-os. É, portanto, nesse sentido que o racismo fortalece o capitalismo, ou seja, dividindo a classe explorada para melhor dominá-la. Dessa forma, portanto,

“os trabalhadores são obrigados, devido a existência do exército industrial de reserva, a competir pelo emprego. Isto cria conflitos internos na classe trabalhadora e a preferência dos empregadores pelo trabalhador branco provoca conflitos raciais que ofuscam a verdadeira causa do desemprego e dos baixos salários – o que é a dinâmica do modo de produção capitalista – e amortecem a luta de classes” (Viana, 1994, p. 12)

Não só os trabalhadores negros tendem a perder com o racismo, mas também os trabalhadores brancos, pois a idéia de que os trabalhadores brancos se beneficiam do racismo, não passa de uma ideologia da classe dominante para ocultar o verdadeiro interesse que as mesmas possuem na manutenção do racismo, que tem como único objetivo manter as classes exploradas - formadas tanto por trabalhadores brancos quanto por trabalhadores negros - desunidas na luta contra a opressão. Segundo Callinicos,

“O racismo ajuda a manter o capitalismo funcionando, e assim perpetua a exploração dos trabalhadores, brancos e negros. Os trabalhadores brancos aceitam idéias racistas não porque lhe tragam benefícios, mas por causa do modo pelo qual a competição no mercado de trabalho entre grupos diferentes de trabalhadores é reforçada pelos esforços conscientes e inconscientes dos capitalistas, engendrando divisões raciais em larga escala. No máximo, o que trabalhadores brancos recebem é o consolo imaginário de serem membros da raça superior, o que contribui para que não percebam quais são os seus interesses reais” (Callinicos, 2005).

Sendo assim, o racismo só pode ser abolido através de uma revolução social na qual tanto negros quanto brancos estejam unidos na luta contra seu explorador comum e numa frente de batalha mais ampla entre oprimidos e opressores que caracteriza a história da sociedade humana e da superação de toda desigualdade que se baseia na

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realidade material gerada pelo capitalismo. Dessa forma, o racismo só pode ser superado com a superação do próprio capitalismo.

Porém, torna-se necessário explicitar a origem do racismo e sua lógica no capitalismo contemporâneo – divisão da classe trabalhadora, níveis salariais diferenciados e conforto psicológico aos trabalhadores brancos – para que os trabalhadores superem suas divisões raciais e, assim, fortaleça a luta contra o capitalismo, seu verdadeiro inimigo.

Cotas raciais: micro-freformismo Diante de toda a problemática da questão racial brasileira exposta anteriormente,

têm surgido diversas discussões nos meios acadêmicos, nos movimentos negros, nas instituições políticas e na sociedade civil como um todo, acerca da necessidade de adoção de mecanismos que possam reverter esse quadro de “exclusão” social da população negra brasileira. A proposta mais discutida e que tem gerado milhares de posicionamentos antagônicos sobre como implementá-la, é a que defende políticas públicas de inclusão dos negros nas várias instituições públicas e/ou privadas através da reserva de cotas para as populações que tem sido vítimas de processos históricos marginalizantes.

Para que possamos compreender tais políticas, torna-se necessário defini-las: a política de cotas faz parte de um conjunto de ações afirmativas que pretendem através de ações públicas ou privadas proverem oportunidades e/ou outros benefícios a pessoas e/ou grupos, com base em sua pertença racial que foram, e ainda são, vítimas de condições desiguais de oportunidades construídas historicamente.

No caso do Brasil, essa política direcionou-se para a adoção de reserva de cotas para os negros nas universidades públicas. Porém, tal proposta tem sido amplamente contestada por diversos setores da sociedade sob diversas alegações, como por exemplo, a que defende que esse mecanismo contraria o princípio do mérito individual, pois determinados grupos serão privilegiados com a reserva de cotas, uma vez que indivíduos negros poderiam ter acesso a uma vaga na universidade com média inferior a de indivíduos brancos que correria o risco de ficar fora da universidade mesmo com média superior à do negro.

Além do mais, continua as argumentações contrárias, seria algo bastante complicado adotar cotas para negros no país, uma vez que o Brasil é um país mestiço. Como definir quem é negro no Brasil? O que se percebe, em tais argumentos, é a presença, ainda marcante, do mito da democracia racial que pretende afirmar o eufemismo brasileiro de que somos todos morenos, e que, portanto, seria impossível definir quem é branco e quem é negro no Brasil. Em um país onde as pessoas têm preconceito de ter preconceito, a adoção de cotas, segundo esse argumento, “significariam o reconhecimento de raças e distinções de raças no Brasil e isso contraria o credo brasileiro de que somos um só povo, uma só nação” (Guimarães, 1999, p. 176).

Em relação à falácia do discurso meritocrático, vale, aqui, ressaltar que quando se trata de indivíduos competindo em condições extremamente desiguais, a noção de mérito torna-se uma ilusão, uma ideologia e que, portanto, tal discurso não se justifica. Outro argumento contrário à adoção de cotas para negros consiste em afirmar que, estando a grande maioria dessa população nos níveis sociais mais baixos da sociedade, com baixa escolaridade, não seria mais adequada a adoção de medidas de cunho universalistas, tais como, políticas de melhoria do ensino público, de universalização do acesso à assistência médica; moradia; alimentação; lazer; transporte e daí por diante, ou seja, numa ampliação da “cidadania” a população mais pobre do país, e dessa forma, os negros não seriam os mais beneficiados?

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A idéia geral que perpassa toda a discussão em torno da adoção de cotas raciais nas universidades brasileiras, baseia-se numa visão dualista da sociedade que seria formada pelos incluídos e pelos excluídos/marginalizados. Partindo desta premissa, é que vários teóricos têm discutido a necessidade da adoção de cotas raciais nas universidades públicas como uma forma de tentar reverter o quadro de exclusão social em que se encontra o segmento racial negro, criando condições que facilitem – nesse caso o acesso à universidade – a inclusão dos negros no mercado de trabalho, no mercado de consumo, na participação da cidadania etc. Porém, torna-se necessário desvendar o véu que ofusca a realidade das relações sociais em sua totalidade, com seus construtos ideológicos, tais como os termos inclusão, exclusão e o conceito de marginalidade. Segundo Viana,

“A ideologia da exclusão social se fundamenta numa concepção dualista da sociedade, na qual existiriam os incluídos e os excluídos. Assim se obscurece o fato de que a realidade concreta é constituída como uma totalidade. Esta totalidade é a das classes sociais, que lhe fornece sua dinâmica através de suas lutas. Assim, na concepção dualista da sociedade, só existiriam os incluídos e os excluídos, tal como se fossem independentes e separados, faltando aqui também a idéia de relação, no interior de uma totalidade” (2003a, p. 2).

A tese da marginalidade vem sido discutida desde a década de 70 na Europa e também na América Latina. A preocupação com tal discussão na América Latina se justifica pelo alto índice de desemprego, pobreza e miséria no continente. Tais índices têm gerado preocupações tanto do ponto de vista do capital que procura amortecer os conflitos sociais, quanto do ponto de vista do proletariado que busca intensificar o processo das lutas de classes.

Analisar a sociedade tendo como ponto de partida a divisão entre os que se encontram incluídos e os que se encontram excluídos é um tanto quanto problemática, pois acaba por obscurecer o fato de que a realidade concreta da sociedade capitalista é formada por uma totalidade: a existência de classes sociais distintas, com interesses distintos que são movidos pelos conflitos entre as classes. Além disso, a ideologia da inclusão/exclusão acaba por homogeneizar tais segmentos e encará-los como fenômenos isolados e independentes um do outro, pois ao encarar a sociedade dividida entre incluídos e excluídos, enxergando nos primeiros um ideal a ser atingido, a resolução dos problemas dos excluídos se resumiria em encontrar mecanismos que garantam sua inclusão.

Dessa forma, todo problema social acaba por se resolver através da inclusão dos excluídos na participação social, ou seja, na integração à sociedade capitalista e, conseqüentemente, na sua reprodução e no afastamento de qualquer ameaça que tais excluídos poderiam representar à sociedade dominante.

Segundo tal ideologia, a participação “produtiva” na sociedade capitalista acaba por ser vista como o ideal, ou seja, algo que precisa ser atingido por todos, pois assim se atinge a realização plena dos indivíduos e, conseqüentemente, representaria a superação do problema da “marginalidade”. Porém, o que está explícito nesse discurso é que tal ideologia busca ofuscar a lógica do funcionamento da sociedade capitalista que ao se consolidar no século XVIII, com a Revolução Industrial, dividiu a sociedade em duas classes antagônicas, a burguesia e o proletariado, ou seja, os opressores e os oprimidos.

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No entanto, é válido ressaltar que os opressores – a burguesia – possuem classes auxiliares formada pelo exército, pelos latifundiários, pela burocracia estatal etc – e o proletariado vem acompanhado de outros grupos denominados por Marx de lupemproletariado que forma o setor mais empobrecido das classes oprimidas – entre outras classes, o campesinato. O lupemproletariado formou-se, na Inglaterra no período da Revolução Industrial, por todos aqueles indivíduos que alijados dos seus meios de produção no campo, através dos cercamentos1, se viram obrigados a migrarem para os centros urbanos e viverem em péssimas condições de sobrevivência, porém, não sendo incorporados pelo trabalho industrial formaram o exército industrial de reserva, ou seja, um grupo que mesmo não sendo incorporado pelo trabalho industrial era de extrema importância para os interesses capitalistas, uma vez que acabava por pressionar os salários dos trabalhadores para baixo ao disputar uma vaga no mercado de trabalho, disposto até mesmo a trabalhar por salários inferiores.

Mas o que deve ficar claro é que não há sentido em afirmar que a sociedade moderna encontra-se dividida entre os incluídos e os excluídos, pois na concepção marxista a divisão social na sociedade capitalista é marcada por dominantes e dominados e aqueles que ideologicamente são denominados de “excluídos” – no sentido liberal da palavra -, e que para nós formam o lupemproletariado, não se encontra isolado e excluído da participação na sociedade capitalista, pois, os mesmos compõe a lógica de funcionamento do capitalismo, uma vez que representam o exército industrial de reserva e todo os benefícios advindos de sua existência.

No caso do Brasil e dos demais países de capitalismo subordinado, o processo de lupemproletarização é mais intenso e visível, pois está na base de sua formação. Como já foi dito anteriormente, o processo de abolição da escravidão criou um imenso número de pessoas despojadas dos meios de sobrevivência que vieram somar ao já existente índice de miseráveis brancos e mestiços, que devido a uma agressiva concentração fundiária foram obrigados a migrarem dos campos para as cidades e viverem em condições extremamente precárias e miseráveis. Dessa forma, formou-se no Brasil o exército industrial de reserva que tanto serviu aos interesses da burguesia industrial brasileira.

Devido à posição que os países de capitalismo subordinado ocupam na economia capitalista global, a tendência a lupemproletarização acaba por ser maior, pois acompanhando as condições explicitadas acima, está o fato de seu processo de industrialização ter ocorrido tardiamente e a, conseqüente, dificuldade que tais países possuem em disputar com as potências imperialistas uma vaga no mercado externo, além da existência de um restrito mercado interno, formado apenas pela burguesia e suas classes auxiliares, pois o grosso da população se encontra desempregada, ou com salários miseráveis que mal dá para reproduzir sua força de trabalho, ou seja, alimentar-se.

Dentro do modelo econômico atual – neoliberalismo –, tal tendência a proletarização de parcela significativa da população tende a se intensificar, uma vez que as potências imperialistas cada vez mais assumem uma posição protecionista e exercem uma pressão cada vez maior para que os países, dependentes economicamente das mesmas, abram constantemente seus mercados, gerando assim uma grande quantidade de falências nas empresas nacionais, ou obrigando-as a encontrar novas formas de extração de mais-valor dos seus trabalhadores. É dentro desta perspectiva que podemos entender as atuais ondas de desemprego, contratos temporários e terceirização de alguns setores

1 Segundo Ellen Wood, “a primeira grande onda de cercamentos ocorreu - na Inglaterra - do século XVI

e representou a extinção dos direitos comunais e consuetudinários de uso dos quais dependia a sobrevivência de muitas pessoas – camponeses” (2001, p. 91).

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da economia. Além disso, o estado brasileiro retira cada vez mais os investimentos dos setores sociais, tais como educação, saúde, moradia e segurança e os substitui por políticas de cunho assistencialistas e paliativas. O que se percebe, portanto, é que o

“neoliberalismo brasileiro abre ainda mais as portas para o capital estrangeiro e seus produtos e assim destrói parte do capital nacional, o que gera desemprego. O estado capitalista brasileiro, com sua contenção de gastos públicos, privatização, abandono de políticas estatais de assistência social, agrava ainda mais a situação de grande parte da população. Isto é mais grave ainda quando se nota que as políticas estatais e os gastos do governo brasileiro com a resolução dos problemas sociais sempre foram ínfimos, comparando-se com os realizados pelos países imperialistas, embora alguns programas assistencialistas venham sendo implantados (bolsa-escola, renda cidadã etc.)” (Viana, 2003a, p. 7).

Atualmente, e mais do que nunca, torna-se cada vez mais claro que vivemos em um

mundo profundamente desigual, indigno e opressivo para a grande maioria da população mundial. Está mais do que evidente que o neoliberalismo está longe de realizar todas as suas promessas de diminuição das desigualdades, pelo contrário, nas últimas décadas o abismo que separa a minoria privilegiada da maioria esmagada pelo capital tem se tornado cada vez maior 2 .

As perspectivas para o futuro na sociedade moderna são amedrontadoras, pois tal sociedade vem criando uma grande massa de lupemproletários que cada vez mais se vê impossibilitada de se incluir na produção econômica mundial. Acredita-se que no futuro apenas 1/5 da população mundial será responsável por manter a economia mundial funcionando, os 4/5 restantes formará a “população sobrante”. “Em outras palavras, o período da passagem do momento da exclusão para o momento da inclusão está se transformando num modo de vida, está se tornando mais do que um período transitório” (Martins apud Viana, 2003a, p. 33).

O simples relato da existência dos incluídos e dos excluídos na sociedade moderna não explica nada sobre a dinâmica do funcionamento do sistema capitalista – mesmo porque ambos fazem parte da mesma lógica: garantir a reprodução dos lucros capitalistas - que se baseia na exploração de uma classe sobre outra, nem tampouco propõe qualquer alternativa que possa efetivamente superar a opressão de milhares de proletários e lumpemproletários que, como já foi dito anteriormente, têm vivido em condições extremamente desfavoráveis de sobrevivência. Sendo assim,

“podemos dizer que é a implantação do regime de acumulação integral que gera um amplo processo mundial de lumpemproletarização, e que tal processo é mais intenso nos países capitalistas subordinados. No mundo da ideologia, ao contrário, a “exclusão social” é o inexplicável e o indesejável. Nada mais do que isto. A descrição é, portanto, suficiente. Mas para aqueles que têm compromisso com o processo de transformação social, a questão fundamental reside na explicação de sua gênese e nas

2 “Juntos, 358 bilionários deste mundo são tão ricos quanto 2,5 bilhões de pessoas, quase a metade de

toda a população do planeta”. ( Martin & Schumann, 1999, p. 40)

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possibilidades de superação tanto da lumpemproletarização quanto da exploração do proletariado, o que nos remete não a visão dicotômica e ideológica dos incluídos e excluídos e sim à necessidade de abolir o modo de produção capitalista e na estratégia política de articular lutas imediatas com o objetivo final, exigências específicas juntamente com exigências globais. Mas para se fazer isto é preciso superar o mundo ideológico que media nossa visão do mundo concreto, ou, em outras palavras, é necessário superar a ideologia da exclusão social, bem como muitas outras ideologias e compreender o real processo social, pois somente assim a razão será libertadora e contribuirá com a emancipação humana” (Viana, 2003b, p. 33).

A adoção de cotas raciais se insere no quadro das políticas estatais que tem como objetivo garantir a reprodução da força de trabalho enquanto mercadoria e a ampliação do mercado consumidor. Seguindo essa perspectiva, o segmento racial negro marginalizado e excluído dessa participação, tanto como força de trabalho quanto mercado consumidor, torna-se um potencial para a adoção de cotas para as universidades, pretendendo “capacitá-lo” para o mercado. Porém, tal perspectiva representa um paradoxo uma vez que aproximadamente 70% desse segmento racial encontra-se nos níveis de extrema miséria, logo se percebe que tal segmento não será beneficiado com tais cotas, o que conseqüentemente impedirá que eles formem tanto uma força de trabalho mercadoria quanto um provável mercado consumidor.

Os benefícios que tal política possa atingir se restringem a meros benefícios individuais e não coletivos, uma vez que beneficiará somente a parcela da população negra que detém as pré-condições materiais e o capital cultural3 exigido para o ingresso à universidade, visto que grande parcela desse segmento racial, que vive “às margens” da participação social, possui outras prioridades imediatas – alimentação, emprego, moradia, acesso ao transporte, educação básica etc. – que acabam por ser primárias e um pré-requisito ao acesso à educação superior. Segundo Viana,

“este é um exemplo de política tipicamente paliativa, isto é, neoliberal. As cotas (raciais, étnicas, sociais) não visam resolver nenhum problema social ou minimizá-lo consideravelmente. O que este tipo de política visa é beneficiar artificialmente uma parcela da população sem aumentar seus gastos e buscando cooptar tais “beneficiados”, legitimando o neoliberalismo. Basta olhar os dados estatísticos sobre a população negra no Brasil, por exemplo, para ver que o sistema de cotas na universidade atinge uma ínfima minoria desta, que é justamente a sua parcela melhor posicionada na sociedade” (2005).

As políticas públicas possuem uma característica funcional ideológica que se apresenta através do discurso da reintegração dos desvios sociais que são definidos como anormais, ou seja, alheio à lógica de funcionamento da sociedade capitalista. Seguindo a

3 “Bagagem” cultural e intelectual adquirida em relações sociais favoráveis pela condição material e

financeira que determinados indivíduos recebem e transmitem na família, na escola, no bairro, no acesso ao lazer, tais como teatro e cinema, e em vários outros espaços de convívio que tais condições materiais lhes propiciam.

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linha de pensamento desse discurso ideológico, a função das políticas públicas consiste em garantir a retomada da normalidade através da implementação de tais políticas. Sendo assim, a política de cotas reintegraria os negros à participação na sociedade, uma vez que a anormalidade dessa situação se deve à herança do modelo escravista implantado na sociedade brasileira no século XVI e do racismo. Para compreendermos melhor essa lógica basta nos atentarmos ao discurso de que as cotas representariam uma espécie de pagamento de “dívidas históricas” para os negros. Tal discurso, mais uma vez, oculta ao invés de esclarecer a verdadeira origem do problema, não só de parcela da população negra, mas sim de toda a classe de proletários e lumpemproletários que, como já foi dito, formam uma realidade concreta totalmente diferente desse discurso ideológico, pois tal realidade concreta não consiste em uma anormalidade da sociedade e sim parte integrante da lógica do funcionamento geral do capitalismo.

Os limites da política de cotas

Como vimos no inicio do capítulo, nossa principal preocupação é saber se o Estado neoliberal – sendo ele tudo aquilo que expomos anteriormente - possa realmente através de tais políticas públicas reverter esse terrível quadro em que se encontra a população negra brasileira. E para responder a essa questão é válido localizar o contexto em que as políticas públicas nascem para melhor compreender suas funções.

O desenvolvimento das políticas públicas e suas transformações é resultado das mudanças pelas quais o Estado sofre na passagem do modelo integracionista para o modelo neoliberal – no início da década de 80 - acompanhada de uma crescente dificuldade de acumulação de capitais e da crescente queda na taxa média de lucro. Dessa forma, tal Estado procura se reorganizar com o intuito de garantir a reprodução do capital, que acaba por levá-lo a promover uma “reestruturação produtiva” que realiza uma reorganização do trabalho tendo como base o aumento da extração de mais-valor, mediante o esmagamento dos direitos trabalhistas e da redução drástica dos gastos sociais, pois

“o estado neoliberal é um complemento necessário para a luta pelo aumento da extração de mais-valor. A desregulamentação das relações de trabalho, o fim da política de ‘pleno emprego’, são ações estatais, entre outras, que atingem diretamente o processo de valorização. Além disto, a redução dos gastos estatais e o ‘livre mercado’ buscam proporcionar uma política estatal favorável à retomada da acumulação capitalista (...)” (Viana, 2003a, p. 95).

É somente dentro desse contexto que se pode compreender os reais interesses que estão por trás das políticas – públicas – de cotas raciais. Pois com o intuito de diminuir gastos o Estado neoliberal apenas substitui parcela da população branca por outra parcela da população negra que através da reserva de cotas obtêm o acesso ao ensino superior, evitando, assim, de investir recursos na melhoria da qualidade da escola pública e na ampliação das vagas nas universidades.

Torna-se claro, então, que a reserva de cotas raciais não passam de medidas paliativas que visam camuflar a realidade do Estado neoliberal. Portanto, “o discurso da igualdade de oportunidades, da eliminação das discriminações, da proteção dos fracos, da criação de novos direitos sociais é a expressão manifesta da ideologia liberal”

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(Faleiros, 1987, p. 48). Porém, tal discurso é condizente também com o neoliberalismo, não sendo uma característica restrita a ideologia liberal.

Outro aspecto importante, e que está implícito no discurso da promoção de políticas públicas para a população negra, é o do caráter “neutro” do Estado que se apresenta como estando acima dos interesses das classes sociais e que se posiciona a favor dos mais desfavorecidos e como o protetor dos fracos e impossibilitados, procurando solucionar os problemas das populações mais necessitadas. Dessa forma, tal discurso oculta o caráter de classe – dominante – do Estado, fortalecendo o fetichismo do mesmo que passa a se apresentar como o único meio capaz de promover a igualdade, a justiça distributiva e a eqüidade, além de camuflar a origem das desigualdades sociais geradas pelo próprio desenvolvimento do capital e de esvaziar as relações de luta de classes que acompanham tal desenvolvimento e que acaba por representar uma ameaça e a possibilidade de uma superação desse modelo e da criação de uma nova sociabilidade.

A proposta de adoção de cotas raciais nas universidades públicas brasileiras tem sido amplamente discutida por alguns intelectuais, geralmente, pertencente a determinadas instituições de ensino superior, simpáticos às teorias pós-modernas e que procuram compreender a realidade do capitalismo contemporâneo – se é que eles acreditam na existência do mesmo – como sendo uma multiplicidade fragmentada e difusa, na qual não podemos mais afirmar a existência de um único modo de produção, nem de uma única forma de relação social.

Para tais intelectuais, as pessoas não se identificam mais como pertencendo a essa ou aquela classe, mas sim através de identidades particulares como negros, mulheres, gays, lésbicas, que não são definidas por uma base econômica. Portanto, se não há um sistema único – o capitalismo –, como querem os pós-modernos, o mesmo não pode ser superado, nem sequer combatido, e o máximo que se pode esperar são reformas estatais gradativas. É dentro desta perspectiva micro-reformista e pós-moderna que se pode entender as políticas de cotas raciais.

Os defensores das políticas de ações afirmativas – juntamente com o novo pluralismo, multiculturalismo e a política da identidade que formam a agenda pós-moderna - alegam que as cotas seriam responsáveis pela construção de uma verdadeira democracia no país, uma vez que incluiria na participação social uma parcela da população próxima a 50% da população nacional e que vive à margem do sistema. No entanto, tais defensores se negam a discutir os reais mecanismos e suas relações de poder que permitem a reprodução do racismo no mundo contemporâneo e o benefício que ele gera para as classes dominantes. A ocultação de tais mecanismos dificulta a luta contra as reais condições geradoras das desigualdades raciais: o sistema capitalista.

Em última instância, as ações afirmativas pretendem construir uma sociedade democrática que valorize as diversas identidades raciais gerando igualdades de oportunidades através de concessões realizadas pelo Estado - o que na nossa concepção é bastante contraditório, devido ao caráter de classe do Estado que tem como função assegurar e conservar a dominação e a exploração de classe -, porém, abstendo-se da negação do capitalismo e negando qualquer proposta de emancipação do homem que envolva o conceito marxista de classes, sob a alegação de que esse não consegue explicar a complexidade da fragmentação de identidades que caracteriza o mundo pós-moderno.

O que podemos perceber no discurso culturalista e pós-moderno dos intelectuais que analisam a questão racial – e defendem a adoção de cotas - de forma fragmentada e independente do contexto social totalizante do capitalismo, é que existe uma falta de compromisso e projeto político para os setores nos quais tais intelectuais posam como defensores, pois seus discursos não explicam nada sobre a origem da desigualdade racial

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e sua contribuição para a reprodução do capital - divisão da classe trabalhadora, níveis salariais diferenciados e conforto psicológico aos trabalhadores brancos - que pretende transformar tudo em mercadoria e, conseqüentemente, gerar alienação e promover a exploração humana, mas pelo contrário, pois o que tal discurso promove é a ocultação dessas realidades, além de

“(...) nos fazer abrir mão da idéia de socialismo e substituí-la pelo – ou incorporá-la ao – que se supõe seja uma categoria mais inclusiva, a democracia, um conceito que não ‘privilegia’ classe, como o faz o socialismo tradicional, mas trata igualmente todas as opressões (...) Nenhum socialista duvida da importância da diversidade ou da multiplicidade de opressões que precisam ser abolidas. E democracia é – ou deveria ser – o que propõe o socialismo. Mas não fica claro que o novo pluralismo – ou o que passou a ser chamado de ‘política da identidade’ – é capaz de nos levar muito além da afirmação de princípios gerais e de boas intenções” (Wood, 2003, p. 220).

Mas todo esse descaso com as análises totalizantes possui algumas razões de existirem, pois como bem lembrou Eagleton

“compreender uma totalidade complexa envolve certo volume de uma análise rigorosa. Por isso mesmo, não é de surpreender que um pensamento sistemático e árduo como este esteja fora de moda e seja ignorado como fálico, cientificista ou qualquer outra coisa no tipo de período que estamos imaginando. Se não há nele nada particular que nos indique onde estamos – se somos um professor em Ithaca ou Irvine, por exemplo – podemos nos dar o luxo de sermos ambíguos, evasivos, deliciosamente vagos” (1999, p. 26).

As opressões, sejam elas de raça ou de gênero, se encontram dentro de um sistema social mais amplo no qual a categoria classe social ganha destaque – sem que necessariamente, outras “identidades” sejam menosprezadas – pois, procura compreender as desigualdades na perspectiva da existência de grupos opressores e grupos oprimidos dentro do sistema capitalista. Dessa forma o materialismo histórico dialético busca colocar as relações sociais de produção nos alicerces da sociedade, sem, no entanto, reduzir e simplificar a maneira como essas relações estruturam a opressão. Pelo contrário, pois os estudos histórico-materialistas, ao invés de estudarem determinadas formas específicas e fragmentadas de opressão – como racismo e sexismo - buscam compreender e analisar como essas opressões funcionam dentro do sistema que envolve o domínio de uma classe sobre outra.

“Porque a opressão não resulta do fato de alguns indivíduos apresentarem certas características como ‘da classe’. Ao contrário, os marxistas consideravam que pertencer a uma classe social significa ser oprimido ou opressor. Classe significa nesse sentido categoria totalmente social, o que não acontece com o fato de ser mulher ou de ter um certo tipo de pigmentação da pele” (Eagleton, 1998, p. 62).

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O marxismo não nega que os “novos” movimentos sociais e seus objetivos de

emancipação de raça e gênero possuem forças promissoras. Porém, seus objetivos deveriam ser incorporados ao projeto mais abrangente e totalizador do socialismo com o intuito de fortalecê-lo no combate ao capitalismo – o verdadeiro responsável pela criação e manutenção do racismo - e não no sentido de submeter-se a ele, fechando qualquer possibilidade de rompimento e superação do mesmo. Pois,

“um respeito sadio pela diferença e a diversidade, e pela pluralidade das lutas contra os vários tipos de opressão, não nos obriga a descartar todos os valores universalistas aos quais o marxismo, em sua melhor expressão, sempre esteve ligado, ou a abandonar a idéia de uma emancipação humana universal. Ao contrário, até mesmo as formas mais moderadas de ‘pluralismo’ têm se mostrado insustentáveis sem o apelo a certos valores universalistas, tal como o princípio liberal clássico da ‘tolerância’” (Wood, 1999, p. 18).

A adoção de cotas para a população negra não é suficiente para que a mesma atinja a desejada “igualdade de oportunidades”, pois tal medida consiste em uma política pública que visa reproduzir o sistema capitalista – num período em que o mesmo aumenta a exploração e a Lumpemproletarização - uma vez que apenas pretende ampliar a inclusão de trabalhadores negros no mercado, sem, no entanto, contestar a forma pelas quais tais trabalhadores, assim como os trabalhadores brancos, são explorados pelo capitalismo. Sendo assim, “a função mais importante da política social consiste em regulamentar o processo de proletarização” (Lenhardt & Offe, 1984, p. 22).

Acreditamos que a emancipação da população negra possa realmente ocorrer quando a mesma aliar seus interesses específicos – o fim da desigualdade racial gerada pelas práticas racistas e discriminatórias – a outros interesses mais totalizantes como a luta contra a opressão de uma classe sobre outra e canalizá-los contra seu gerador comum, o capitalismo. Esse deveria ser o foco da luta contra todas as condições desumanas a que estão submetidos milhares de trabalhadores – tanto negros quanto brancos - proletários e lumpemproletários em todo o mundo, pois “uma sociedade genuinamente pluralista só se pode alcançar por uma oposição firme a seus antagonistas” (Eagleton, 1998, p. 71).

Conclusão Concluímos esse trabalho afirmando que o racismo contra o negro no Brasil surgiu

concomitantemente com o desenvolvimento do capitalismo mercantil, e suas mudanças posteriores, também, estão envolvidas com a necessidade de reprodução do capitalismo. Tal sistema econômico veio se articulando no intuito de tirar proveito do racismo através da divisão que o mesmo gerava, e ainda gera, na classe trabalhadora, levando ao enfraquecimento da mesma, e conseqüentemente, facilitando o aumento da extração de mais-valor através dos níveis salariais diferenciados para brancos e negros e mediante a cooptação de parcela dos trabalhadores brancos, que como já foi dito anteriormente, recebem o consolo de pertencerem à raça superior. Isso nos leva a perceber a estratégia do capital de desviar o foco da realidade concreta – a exploração capitalista – criando para isso um inimigo imaginário – os negros.

O que é válido ressaltar aqui, é que o capitalismo tem demonstrado que consegue facilmente conviver com as lutas fragmentadas e isoladas propostas pelas teorias pós-

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modernas e pelos “novos movimentos sociais”, uma vez que esses não apontam para uma luta pela superação do capitalismo. O que se percebe é que tais movimentos e seus intelectuais acabaram por se render ao capitalismo, alegando que o mesmo ou não existe ou não pode ser superado. E que o máximo que se pode obter são reformas gradativas, que nesse caso significa a aprovação por parte do Estado de reserva de cotas para os negros nas universidades públicas, como forma de pagar a “dívida histórica” que a sociedade tem com a população negra.

É claro que por detrás de todo esse discurso ideológico, existe uma razão concreta e um projeto político governamental, que consiste em diminuir gastos sociais criando cotas ao invés de investir numa educação pública de qualidade, pois é menos dispendioso reservar cotas, e assim substituir parcela da população branca por parcela da população negra – detentora de maior capital cultural e não a parcela mais pobre – do que ampliar os números de vagas nas universidades públicas.

Podemos afirmar que toda a problemática social da população negra que se encontra nos estratos sociais mais pobres e miseráveis é muito mais complexo que o simples acesso ao ensino superior, visto que tais setores sociais sofrem com uma carestia cada vez maior de necessidades básicas para a sua sobrevivência, e que tais tendências tendem a aumentar no modelo neoliberal de Estado, que cada vez mais se afasta das responsabilidades sociais, transferindo-as para os serviços privados, através de uma maciça onda de privatizações, que passam a serem amenizadas por programas assistencialistas, tais como o fome zero; a bolsa-escola; os amigos da escola; as cotas raciais, sociais e étnicas etc.

Portanto, a política de cotas não passa de um micro-reformismo de caráter pós-moderno que não possui nenhuma articulação com um projeto de transformação social, pelo contrário, pois tal medida acaba reproduzindo o capitalismo, uma vez que força o processo de proletarização da mão-de-obra dos setores que serão “beneficiados” com tal política. Além do mais, tais medidas acabam promovendo a cooptação dos indivíduos beneficiados com as cotas, e gera uma imagem benéfica do Estado que passa a se apresentar como instituição neutra, acima dos interesses das classes sociais, que representa e protege os setores populacionais mais pobres e desprotegidos. Dessa forma se intensifica o processo de fetichismo do Estado e oculta seu caráter de representante da burguesia, do capital e de todas as suas medidas de exploração dos trabalhadores, tais como o esmagamento das conquistas trabalhistas etc.

Concordamos com Viana, quando em relação à política de cotas afirmou que:

“propor aumento das vagas ao invés de cotas, melhoria dos demais níveis de ensino ao invés de privilegiar os privilegiados de um grupo “desprivilegiado” (cuja maioria é desprivilegiada, mas não todos...), entre outras propostas, seria o caminho da articulação entre propostas imediatas e concretas com a formação de uma ação que não é produto de paternalismo estatal que beneficia uma minoria e sim de lutas populares que beneficiam a maioria. Ninguém nunca consegue sua libertação se assumindo como “vítima” e pedindo aos seus algozes a sua libertação, quando isto ocorre com alguns indivíduos, o que se faz é transformar a “vítima” num novo algoz” (2005).

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SOBRE OS AUTORES: Cleito Pereira dos Santos é Graduado em Ciências Sociais/UFG e em Economia/UCG; Mestre em Sociologia/UFMG; Doutor em Sociologia/UFMG. Autor de diversos artigos em Revistas Científicas e capítulos de livros. E-mail: [email protected] Lisandro Braga é Graduado em História/UEG; Especialista em Ciência Política/UEG; Professor e Autor de diversos artigos em Revistas Científicas. [email protected] Mário Maestri é Doutor em História pela UCL, Bélgica, e professor do Programa de Pós-Graduação em História da UPF. Autor de diversos livros, entre os quais, Os Senhores do Litoral (Porto Alegre, Ediufrgs, 1994); O Escravismo Antigo (São Paulo, Atual, 1994); Servidão Negra, Trabalho e Resistência no Brasil Escravista. (Porto Alegre, Mercado Aberto, 1988); A Linguagem Escravizada (São Paulo, Expressão Popular, 2003); Carcaça de Negro (Porto Alegre, Tché! 1988), Gli italiani e l'espansione marittima portoghese. (Perugia: Edizioni Guerra, 2000); Breve história da escravidão. (Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987); L'Esclavage au Brésil (Paris: Karthala, 1992), etc. E-mail: [email protected] Nildo Viana é Graduado em Ciências Sociais/UFG; Especialista em Filosofia/UCB; Mestre em Filosofia/UFG; Mestre em Sociologia/UnB; Doutor em Sociologia/UnB e autor de diversos livros, entre os quais Estado, Democracia e Cidadania (Rio de Janeiro, Achiamé, 2003); O Que São Partidos Políticos (Goiânia, Edições Germinal, 2003); A Dinâmica da Violência Juvenil (Rio de Janeiro, Booklink, 2004); Heróis e Super-Heróis nas Histórias em Quadrinhos (Rio de Janeiro, Achiamé, 2005); Introdução à Sociologia (Belo Horizonte, Autêntica, 2006); Escritos Metodológicos de Marx (Goiânia, Alternativa, 2007); O Fim do Marxismo (São Paulo, Giz Editorial, 2007); A Consciência da História (Rio de Janeiro, Achiamé, 2007); A Esfera Artística (Porto Alegre, Zouk, 2007); Os Valores na Sociedade Moderna (Brasília, Thesaurus, 2007); Senso Comum, Representações Sociais e Representações Cotidianas (São Paulo, Edusc, 2008). E-mail: [email protected]