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1 Cleunice Orlandi De Lima autora de “Depois do suicídio” “Depois do aborto” “O guarda-noturno” “Festa na escola” e dos livros didáticos “Professora de Papel – Histórias para alfabetizar” Capa: detalhe de escultura de Johann Gottfried Schadow - 1798

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Cleunice Orlandi De Lima autora de

“Depois do suicídio” “Depois do aborto” “O guarda-noturno”

“Festa na escola” e dos livros didáticos “Professora de Papel – Histórias para alfabetizar”

Capa: detalhe de escultura de Johann Gottfried Schadow - 1798

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Agradecimentos

Dr. Paulo César Camargo Thomé, pelas informações de caráter médico.

Dr. Celso Alexandre Bottos pelas informações de caráter psicológico.

Reinaldo Luiz Bozelli, pelas informações de caráter religioso.

Dedicatória

Dedico este livro Às crianças.

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APRESENTAÇÃO

Esta obra não é dirigida a ninguém em particular. A nenhuma religião, a nenhuma filosofia, a ne-nhuma associação. Mas a todas elas!

Ela foi escrita aos jovens, aos pais, aos avós – e a você. “Anjo ferido” visa atingir donas de casa, chefes de família, chefes religiosos, professores, dirigen-

tes de associação, médicos, psicólogos, psiquiatras, toda a vasta gama de profissionais liberais e aqueles todos que têm contato direto ou indireto com crianças.

Pela primeira vez o assunto é focalizado num livro, o qual tem a suprema coragem de autopsiar tema tão delicado, de usar como eixo central matéria tão hermeticamente proibitiva – heresia até, dirão alguns - e que, justamente por jamais haver sido objeto de análise, continua fazendo estragos, continua promovendo dramas particulares que confundem estudiosos da psique por ignorar-lhe as causas.

Certamente, no início da leitura você terá de fazer certo esforço para não interrompê-la, acreditan-do que o enredo seja por demais simplório, uma afronta à sua inteligência.

No decorrer do drama porém, começará a perceber o quanto você próprio foi vítima de procedi-mentos semelhantes.

Chegando ao final, fechará o livro com a sensação de que esta história poderia ter sido a sua his-tória. Agradeça a Deus por não sê-lo!

E lembrar-se-á que, no mínimo uma vez na vida, você próprio utilizou-se dos mesmos meios em relação aos pequeninos e reavaliará este comportamento.

Como todo romance de fundo psicológico, o tema é desenvolvido inicialmente de maneira amena e, de certa forma ingênua, objetivando deixar claro cada pormenor e acompanhar, passo a passo, o processo mental de quem ainda não tem capacidade para julgar por si.

Os intrincados meandros psíquicos percorrem caminhos próprios com desfechos fortemente ines-perados.

A autora

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CONTEÚDO

Agradecimentos Dedicatória Apresentação A Vila Verde Moradores e moradias 13 de agosto – 3ª feira 14 de agosto - 4 ª feira 15 de agosto - 5 ª feira 16 de agosto - 6 ª feira 17 de agosto - sábado 18 de agosto - domingo 19 de agosto - 2 ª feira 20 de agosto - 3 ª feira 21 de agosto - 4 ª feira 22 de agosto - 5 ª feira 23 de agosto - 6 ª feira 24 de agosto - sábado 25 de agosto - domingo 26 de agosto - 2 ª feira 28 de agosto - 3 ª feira 28 de agosto - 4 ª feira Epílogo Sobre a autora

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A VILA VERDE

Era uma colina de inclinação suave, em terreno que se ondulava em altas e baixas elevações a perder de vista. Pelo lado sul, um córrego encachoeirado, de águas claras - o Rio das Pedras. Ao norte, a baixada terminava em inúmeras nascentes, pequenos fios que deixavam o terreno alagadiço, formando o que batizaram por Brejão. Transposto o Brejão, montes cober-tos por mata densa, árvores centenárias de intensa galhada, local quase hostil aos avanços do homem: a Floresta dos Morre-tes.

De leste a oeste, a colina era cortada por uma estrada de terra pouco movimentada. Um ou outro veículo motorizado pas-sava por ali. A estrada era mais frequentada por veículos de tração animal e homens a cavalo, além de um ônibus que partia de Ipoty e por ali passava por volta das oito da manhã, rumo a Serra Baixa. Beirando o meio dia, o mesmo ônibus retornava ao ponto de origem.

O que diferenciava esta colina das demais à sua volta era a povoação plantada na sua parte mais central: a Vila Verde. Esta não passava de um enfileirado de casas modestas construídas em ambos os lados da estrada, guardando certa distância entre si. A estrada era pois, a única rua do lugarejo.

O viajante que por ali passasse no sentido leste-oeste via, como primeiro sinal de povoação próxima, um minúsculo ce-mitério e, só depois de uns duzentos metros é que mais adivinhava do que via as primeiras casas, praticamente invisíveis em meio à vegetação. Seis ou sete moradias de cada lado da estrada antes de atingir o ponto central da vila, muito semelhante a uma sede de fazenda. A seguir mais meia dúzia de casas, todas muito humildes, quintais enormes, com muitas árvores à frente e entre elas.

Depois de uma curva à esquerda, o viajante já estava fora dos limites da aldeia, quase sem se aperceber que estivera den-tro dela.

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MORADORES E MORADIAS

No ponto mais central da Vila Verde ficava a casa do Dr. Luciano. Era o que se poderia considerar uma residência de luxo, se comparada às demais do lugarejo. Construção sólida, alta, cercada por muro baixo encimado por grade de ferro formando arabescos complicados. Varanda de pilares retorcidos, jardim em toda a volta, garagem mais pegada à casa, en-trada para carro com portão duplo, mais um portãozinho de acesso à entrada principal. Trepadeiras de primavera lilás quase sempre floridas escondiam parte da varanda.

O Dr. Luciano era médico aposentado, dono de fazenda de muitos alqueires que começava ali no seu quintal e se esten-dia por todo o lado sul da estrada, atravessava o rio das Pedras e continuava na colina vizinha. Viúvo, filhos casados, mora-va sozinho naquele casarão que era seu retiro após a aposentadoria. Dividia o tempo entre cuidar do jardim, alimentar por-cos e galinhas, passear pela propriedade e cochilar na rede da varanda. Quando restava algum pedaço de dia, este era passa-do entre prosa e cerveja na casa comercial do Seu Leonel.

Mesmo afastado da profissão, o Dr. Luciano atendia a algum caso sem gravidade da vizinhança, ou quando grave o bas-tante para impedir a remoção do doente à cidade. Em casos assim, sua própria residência servia de hospital para internação. Não cobrava coisa alguma por estes atendimentos esporádicos, desde que a aposentadoria e a renda da fazenda lhe propor-cionavam o suficiente às poucas necessidades.

Durante o dia, o médico tinha a companhia de uma empregada de meia idade, a D. Etelvina. Solteira, morava sozinha na última casa na direção oeste, à saída para Serra Baixa. Magra, pequena, cabelos grisalhos, olhos claros e fisionomia mater-nal, D. Etelvina era o braço direito – e o esquerdo também - do doutor. Sempre que havia algum paciente a atender, ela atuava como enfermeira e desempenhava com tanta eficiência e carinho esta função que, na vila, era mais conhecida como enfermeira do que como empregada doméstica.

No outro lado da rua, bem à frente da residência do doutor, uma casinha simples, desabitada há bastante tempo encon-

trava-se em reformas para receber novos moradores. A porta principal ladeada por duas janelas de madeira se abria para a escola, ali ao lado. O conjunto: parede, porta e janelas dava a curiosa impressão de um rosto, tendo as janelas como olhos e a porta como enorme boca espichada para cima, numa eterna exclamação.

Uma cerca de arame farpado separava o quintal desta casa em reformas, do quintal da escola. O prédio escolar continha apenas duas salas de aula ligadas entre si por galpão coberto. Ao fundo, diminuta construção

servia de depósito aos objetos didáticos de pouco uso. Funcionando apenas no período da manhã, a escola era regida por duas professoras de Ipoty, que chegavam e partiam no ônibus que fazia a linha diariamente.

D. Zuleica, delicada, loira, sorridente, de pequena estatura aparentava qualquer coisa de infantil, apesar dos trinta e cinco anos de idade. Lecionava para o primeiro e o segundo anos na mesma sala de aula, concomitantemente.

D. Maura, mais velha, era o oposto da companheira: alta, grandalhona, cabelos escuros já riscados de branco; olhar gra-ve, expressão compenetrada, pouco sorria. Era professora do terceiro e quarto anos.

Ambas começaram suas carreiras ali mesmo, na Vila Verde, há bastante tempo, sendo que D. Maura viera com bastante antecedência. Ano após ano, nutriam esperanças de uma vaga em Ipoty e, pelo andamento das coisas acreditavam que, na-quele mesmo ano, estariam lecionando em escola da cidade mais próxima às suas casas, sem mais aquelas cansativas via-gens diárias.

O quintal da escola era amplo, cercado por fios de arame. À esquerda, vizinhava com aquela casa em reformas; pela di-reita, limitava-se com um terreno plantado em eucaliptos. Neste terreno, o Padre Nicolau planejava a construção da casa paroquial quando fosse designado um padre de verdade para a aldeia.

Bem à frente da escola e à esquerda da casa do médico, estava a capela. Era uma igrejinha que parecia nutrir a pretensão

de ser igreja de cidade. Uma janela oval de cada lado, vitrais coloridos, altar com apoio de mármore sustentava a imagem da padroeira. Pequena sacristia ao lado do altar; pia batismal e confessionário no outro lado, davam a simetria necessária ao templo. Porta de madeira entalhada, uma torrezinha com complexo de superioridade exibia quatro buracos redondos que, nalgum dia, seriam preenchidos por relógios. O sino de bronze era um luxo que o Dr. Luciano fizera questão de trazer.

A vila não possuía seu próprio padre. Os serviços religiosos eram restritos a um terço rezado às tardes de domingo pelo que chamavam Padre Nicolau, dono da máquina de beneficiar arroz ali pertinho.

Quando jovem, o Padre Nicolau sentia profunda atração pelo sacerdócio. Chegou mesmo a estudar durante anos, prepa-rando-se para as funções da sua vocação. Não chegou a se ordenar. Doente dos pulmões, precisou fazer rigoroso tratamento fora dos muros do colégio. No sanatório de recuperação conheceu e se apaixonou por uma enfermeira, com a qual se casou.

Ao nascer o filho, a esposa sofreu violento processo hemorrágico que a levou ao túmulo. A criança, depois de pouco mais de uma semana, partiu ao encontro da mãe. Angustiado, Nicolau recebeu o fato como castigo do céu por haver aban-donado a vida religiosa. Nunca mais pensou em se casar nem em retomar os estudos. Transferiu-se para a Vila Verde onde

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abriu seu negócio de beneficiar arroz e ali ficou até o momento, quando já se aproximava dos setenta anos de idade, quase todos vividos a serviço de Deus.

Colaborou na construção da capela e, com seus conhecimentos sobre religião, passou a exercer as funções sacerdotais nos serviços menores. Recebeu da Diocese mais próxima, autorização para ministrar extrema-unção e cerimônias fúnebres, conquanto Ipoty, a cidade mais próxima, distava trinta quilômetros do local, tornando-se impraticável, à década à qual nos reportamos, a presença de um padre para serviços de tal urgência.

Nicolau poderia, se quisesse, ser responsável por deveres mais abrangentes como oficializar matrimônio, batizado e co-munhão; preferiu porém, não assumir tais compromissos por acreditá-los sacramentos sérios demais - e seriam levados mais a sério, se realizados por sacerdote ordenado. Não obstante, sua pessoa impunha grande respeito, sendo considerado pelo pessoal da região como padre, e não como cidadão comum.

Além dos terços rezados aos domingos, o Padre Nicolau tinha mais uma obrigação religiosa que impusera a si mesmo: preparar crianças para a primeira comunhão. Para este preparo, nas tardes de terças-feiras reunia as crianças e lhes ministra-va aulas de catecismo.

Casamentos e batizados - em número reduzido - eram efetuados em Ipoty quando a família disso fazia questão; ou então, na própria Vila Verde, nas visitas do Padre Dimas uma vez por ano, quando aconteciam solenidades de casamentos, batiza-dos e primeira comunhão sempre em cerimônias festivas, no maior acontecimento anual do lugar.

Pelo lado esquerdo, a capela possuía um espaço livre, chão de grama e, após este estava a máquina de beneficiar arroz de

propriedade do Padre Nicolau. O prédio da máquina era um barracão comprido, paredes baixas, muitas portas paralelas à estrada. Ao fundo, um quartinho sem janelas onde estava montado o motor gerador de energia elétrica para a aldeia. O Pa-dre Nicolau era o encarregado de fazê-lo funcionar todas as manhãs e, ao anoitecer, das dezoito às vinte e duas horas. Fios elétricos saíam dali e seguiam em ambas as direções, de poste em poste segurando lâmpadas que, mesmo no maior dos esforços, não conseguiam fornecer mais que pobre claridade para a rua e para as casas da vila.

Parede-meia com a máquina de arroz, a casa do seu proprietário, o Padre Nicolau. Era residência pequenina e graciosa, com jardineiras floridas na janela e varandinha redonda guarnecendo a porta principal.

Defronte a máquina de arroz e, ao lado daquele terreno de eucaliptos, a casa comercial da aldeia. Era um prédio grande e alto, com quatro portas olhando para a rua e mais duas portas laterais. Esta casa de comércio -

ou loja, como era chamada por todos - vendia desde doces cor-de-rosa até tecidos, ferramentas, chapéus e calçados, passan-do por grande variedade de outras miudezas: armarinhos, objetos escolares, bebidas, enlatados, artigos de pescaria, brinque-dos, revistas, livros de bolso, secos e molhados e mais uma porção de outros objetos grandes e pequenos.

Anexa à loja, na parte dos fundos, a residência dos seus proprietários: Seu Leonel e D. Edna, mais os filhos Valentino e Anita, crianças com onze e nove anos de idade, respectivamente.

Seu Leonel era um quase quarentão. Estatura elevada, forte sem ser gordo, pele queimada, cabelos e olhos claros. Tipo roceiro, gestos largos, riso fácil e conversador, era figura simpática e bastante popular. Casou-se com moça da cidade após namoro de pouco mais de um ano.

D. Edna era o oposto do marido: fina de corpo, olhos e cabelos escuros, maneiras delicadas, certo ar de intelectual que lhe era justo por ter sido criada na cidade, onde chegou a frequentar bom colégio quando adolescente. Mesmo depois conti-nuou mantendo bom nível de leitura, fato que a diferenciava das demais mulheres do lugarejo. De início, encontrou dificul-dade em se adaptar à vida acomodada do povoado; agora, quase treze anos depois, estava perfeitamente à vontade como se tivesse nascido e crescido naquele lugar. Já não falava em se mudar para Ipoty e nem fazia muita questão de visitar os fami-liares que lá ficaram.

Seguindo a estrada, as últimas casas, de distância a distância, entre pomares e árvores nativas, terrenos cobertos por tre-

padeiras selvagens e pomares. Naquela direção, na última casa morava D. Etelvina, empregada do Dr. Luciano. Os quintais deste lado da estrada estendiam-se, praticamente até o Brejão, terreno alagadiço que separava a Vila Verde

da quase intocada Floresta dos Morretes. A aldeia possuía também seu campo de futebol que abrangia o fundo da capela e da máquina de beneficiar arroz. Nas

tardes de domingo, após o terço, os moradores do lugar e das propriedades vizinhas assistiam às disputas entre os times da região. Eram espetáculos muito concorridos que traziam um pouco de distração àquele povo tão carente de quaisquer for-mas de lazer.

De resto, tudo era calma. Galinhas e suas ninhadas ciscavam pela rua; porcos andavam livremente e dormitavam em bu-

racos feitos na terra; os meninos maiores acompanhavam o pai no trabalho do campo e os menores brincavam, jogavam

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bola feita de trapos no campo de futebol, escorregavam naquela montanha de palha de arroz ao fundo da máquina. Muito dificilmente era avistada uma pessoa transitando ou conversando ao portão, tendo em vista que o clima era de trabalho cons-tante. Carroças, charretes e pequenos caminhões dos arredores paravam de quando em quando defronte a máquina do Padre Nicolau trazendo grãos em casca ou buscando arroz limpo para venda ou consumo. A seguir, seus condutores faziam parada obrigatória na casa comercial do Seu Leonel para algumas compras, uma bebida, uma descansada, uma boa prosa. A loja era o centro de notícias num raio de muitos quilômetros em derredor.

Assim era a Vila Verde, que recebeu este nome devido à grande quantidade de áreas arborizadas que disputavam espaço com as construções.

13 DE AGOSTO - 3ª FEIRA

I

Estamos num lugarejo chamado Vila Verde. O calor sufocava já nas primeiras horas do dia; o sol no céu sem nuvens prometia aumento de temperatura. Não havia

aquela aragem que às vezes move as folhas e traz algum alívio às pessoas e animais. Era o calor abafado, eram as queima-das, eram os pastos ressequidos, eram as folhas secas caindo sem vontade e formando tapete colorido de amarelo, vermelho e marrom pondo em tudo, certo ar de tristeza. No rosto de cada um lia-se a espera pelo mês seguinte, quando seria primave-ra outra vez.

O dono da loja saiu à calçada, ergueu o olhar à procura de sinais de chuva. Às suas costas, uma voz brincou: - Não adianta ficar rezando! Não há uma única nuvem. Cansei o pescoço, de tanto procurar. - Ah! Então o senhor já andou rezando também? Duas sonoras gargalhadas e entraram ambos para o interior da loja. - É... Uma chuva até que não seria mau. - Não é época de chuvas. Vai um mês bem batido antes das águas. - Nem é época de calor tão forte, pois nem saímos do inverno. O certo neste mês é ventania, derrubada de folhas secas,

pelagem das árvores no preparo da primavera. - Se ventasse, pelo menos... - Se ventasse haveria poeira. Veja uma cerveja geladinha pra mim. - É preferível poeira a este calor. E como quer geladinha, se o senhor desliga a energia? Tem cerveja meio gelada. Vai

assim mesmo? - Serve. E uma chuva é preferível ao calor e à poeira. Dia virá em que teremos energia elétrica de verdade por aqui. - Claro! Sua cerveja meio gelada. Que mais? - Um copo. - Opa! Desculpe, padre! Sabe, é a distração, pensamentos longe... Pronto, seu copo! - Algum problema? - Era a voz do padre, com inflexão característica. - Não, não! É que com este sol forte aumenta a procura por cerveja. O estoque está no fim e estou sem ânimo para ir à

cidade buscar mais; agora porém, não tenho por onde escapar. Acho que vou amanhã cedinho. Pode ser que até lá, o calor esteja mais manso – explicou o vendeiro.

- Tomara – falou o padre despejando a cerveja no copo. - Não dá para esperar mais; estou sem reserva nenhuma. O ruim é deixar a Edna sozinha cuidando da casa e da loja, o

dia inteiro. - D. Edna tem boa companhia. O Valentino já ajuda na loja e a Anita pode ajudar na casa. Trabalho de criança é pouco,

mas quem despreza é louco. Riram os dois e a conversa continuou no mesmo tom por mais um tempo.

II

- Crianças, não adianta reclamar do calor. Reclamando, ele não vai embora, parece até que fica pior. O que temos a fazer

é esquecer. - Esquecer, que jeito? – perguntou um aluninho conversador. - Desviando a atenção para outra coisa, explicou a professora.

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- Que outra coisa, se a gente está suando? - Vamos lá, eu ajudo! Fechem os cadernos, deixem de conversa e fiquem em posição de ouvir. - Oba! A senhora vai contar uma história? - Mais ou menos. Não é bem uma história... Cândido, feche o caderno! - O que a senhora vai falar, D. Maura? Só quero ver como é que vai acabar com o calor. - Não vou acabar com calor coisa nenhuma! Só vou desviar o pensamento de vocês, falando sobre o nosso folclore, igual

a ontem. - Que bom! De qual bicho a senhora vai contar? Do saci outra vez? - O saci foi ontem - e ele não é bicho. - Eu sei, mas conte de novo! - Não. Hoje, será outro personagem e vocês vão gostar. É o caipora. - Caipora? Que nome gozado! Parece catapora! Sabe, D. Maura, quando eu tive catapora... – a interrupção era um meni-

no sentado lá no fundo. - Não vai contar da sua doença, não senhor! Pode falar, professora! – o corte foi feito por Valentino, que demonstrou

bastante autoridade. - Bem, crianças, o caipora é personagem lendário e, se é lenda, não é de verdade. Há quem o chame por curupira. Há

quem diga que curupira e caipora são seres diferentes. - E qual é o nome certo? - Não sei. No sul, ele tem um nome. No norte, outro nome. Gosto mais do nome caipora. De qualquer forma, ele é o pro-

tetor dos animais da floresta. - D. Maura, ele é feio igual ao saci? - Muito mais! Dizem que ele pode tomar qualquer forma mas, a mais conhecida é a de um moleque de cabelos cor de

fogo, corpo todinho coberto por pelos compridos, dentes verdes e pés ao contrário. - De que jeito é pé ao contrário? - Calcanhar pra frente e dedos pra trás. - Que feiúra! O que ele faz de ruim pra gente? - De ruim, de ruim mesmo, o caipora só faz se a gente judiar dos animais. Ele cuida dos bichos da floresta, protegendo-

os contra caçadores. - Ele sai correndo com o bicho no colo? - Não. O caipora só admite caçador que mate por necessidade de comer. Quando descobre alguém matando por distra-

ção, só para treinar pontaria, só por esporte ou maldade, ele joga um feitiço em cima do coitado, que se arrepende pelo resto da vida.

- O caçador vira estátua de sal? - Não. O caipora faz o caçador se perder na mata. Preocupado em achar o caminho de volta, ele se esquece de perseguir

os animais. - Quantos caiporas existem? - Um só. - Um só? Então, como é que consegue tomar conta de tudo quanto é bicho do mundo? - Ele é como um deus. É o deus dos animais. Consegue ver tudo, consegue estar em todos os lugares ao mesmo tempo. - D. Maura, se um bicho bem bravo, daqueles bem bravos mesmo, quiser matar a gente e a gente matar ele primeiro, o

caipora castiga a gente? - Legítima defesa? Neste caso, não. Para salvar a própria vida, o caipora perdoa. - Se a gente caçar só passarinho ele fica enfezado? - Sim, senhora! Afinal, passarinho é animal, não é? - Na Floresta dos Morretes existe caipora? - Se ele consegue estar em todos os lugares, então na Floresta dos Morretes ele está também. - Professora, o Valentino vive matando passarinho. E não é pra comer, não! - Você precisa contar, sua linguaruda? - fez Valentino, olhando feio para Anita. - Preciso, sim! Você é meu irmão e não quero que fique perdido na Floresta dos Morretes. - Eu nunca fui lá! Como é que vou me perder num lugar que não vou? A menina dirigiu-se à professora, como que para tirar a prova: - D. Maura, se o Valentino estiver caçando do lado de cá do Brejão, o caipora pode fazer ele atravessar o brejo e se per-

der nos Morretes? - A lenda diz que sim. - Lenda? Então é lenda? - perguntou Valentino com expressão de desprezo. - Sim. Eu disse que era lenda, lembra? Faz parte do folclore – respondeu a professora.

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- Então não tem perigo viu, sua fofoqueira! - fez o menino para Anita. A mulher explicou: - Toda lenda é criada a partir de um fato aumentado pelo medo ou imaginação, ou de uma boa mentira. Daí, aumenta-se

aqui, inventa-se ali e pronto! Está a lenda de boca em boca, passada de um lugar a outro. Pois vou contar um caso interes-sante sobre o caipora.

D. Maura continuou a falar, interrompida a cada instante pelas crianças que nem se lembravam mais do calor. Valentino por sua vez, como que desligou seu aparelho de ouvir e ligou o aparelho de pensar: “- É claro que é tudo mentira! D. Maura fala como se eu não entendesse as coisas. Já matei tantos, tanto passarinho, não

erro uma pedrada! Se cada vez que acerto, o caipora me fizesse ficar perdido nos Morretes, então eu moraria lá, faz tempo! - olhou em torno, passando de um companheiro a outro e continuou a pensar: - Os outros matam também. Era pra estarmos todos perdidos no meio da floresta. Não ia caber tanta gente lá dentro.” - e riu baixinho.

Valentino era menino forte e bastante crescido para seus onze anos. Vivendo na vila desde o nascimento e fazendo parte

da natureza agressiva do lugar, era um elemento perfeitamente adaptado às cores, às formas, às atividades ali praticadas. Correr sem camisa, trepar em árvores, varar cercas, treinar pontaria, andar a cavalo, nadar no Rio das Pedras, ajudar um e outro no trabalho pesado fizeram dele um rapazinho rijo, músculos firmes, reflexos rápidos. Cabelos lisos e pretos iguais aos da mãe, olhos escuros, pele queimada com algumas sardas, não era um garoto que poderia ser considerado bonito. O que sobressaía nele era a vivacidade, a energia, a capacidade de pensar rápido, formular perguntas, elaborar respostas, ra-ciocinar de maneira muito acima do esperado. Inteligente, aprendia facilmente o que lhe era ensinado; aprendia até o que não ensinavam bastando que observasse as coisas à sua volta. Não tinha amigos mas não fazia inimigos. Gostava de todos da aldeia, todos gostavam dele pelo jeito simpático e prestativo. Saía-se muito bem nas conversas com pessoas mais velhas, mas preferia ficar sozinho ou acompanhado por Cacau, seu cachorro. Não apreciava as brincadeiras infantis, por achá-las infantis demais.

Passava boa parte do tempo olhando os animais e tentando descobrir seus segredos, seus pensamentos mais escondidos. Acreditava que eles conversavam entre si, que as árvores trocavam ideias. Para Valentino, não só os bichos e as plantas se comunicavam como também as casas, os fios de arame, os postes da rua, os grãos de areia. Tudo conversava, todos conta-vam coisas aos demais. Quaisquer seres, com vida ou sem ela, possuíam sentimentos, amavam e odiavam igual gente; cada coisa entendia a outra, mesmo não pertencendo à mesma espécie. Uma pedra podia falar tão facilmente com um sapo, quan-to um sapo com outro sapo. Tudo tinha vida, tudo ajudava na execução dos acontecimentos sobre a Terra.

À força de observá-los desde muito pequenino, o garoto acabou por identificar-se de tal forma aos seres não humanos, que acreditava ouvir e entender sua linguagem. Julgando conhecer o idioma de cada coisa, supunha que cada coisa também entendia suas palavras e, por isso, conversava com seres racionais e irracionais, animados e inanimados com a mesma de-senvoltura.

Os pais achavam graça naquelas conversas a sós e nunca o reprimiram. - Nesta idade, vale tudo. Quando crescer vai sentir vergonha ao lembrar que batia papo com panela, minhoca e goiabeira

ao mesmo tempo. Vai dar muita risada quando lembrar que chegou a separar briga entre pedregulhos e bananeiras. No entanto, aos onze anos Valentino ainda conservava os mesmos hábitos de cumprimentar e trocar ideias com tudo e

com todos. Não se sentia nem um pouco constrangido quando surpreendido por outras pessoas num destes monólogos que, para ele, eram diálogos. No seu modo de pensar, as pessoas também se comunicavam com as coisas e com os animais, mas negavam esta capacidade, por vergonha de confessá-lo. Ele não; conversava e não se envergonhava.

Valentino tinha seu mundo particular situado fora do alcance da compreensão de qualquer outro ser humano. Era um mundo voltado para dentro de si, mas que continha pontos de contato com o mundo exterior, o mundo dos outros.

Possuía elevada sensibilidade artística que o levava a copiar, quase com perfeição, os elementos da natureza em dese-nhos graciosos e pinturas; ampliava gravuras e criava as suas próprias. Seus traços eram firmes, contínuos e precisos, quase sem necessidade de correção - dotes estes que eram muito requisitados pelo Padre Nicolau em cartazes de propaganda e avisos sobre eventos religiosos.

Outra característica que fazia Valentino diferente dos demais garotos da sua idade era o gosto pela leitura; neste particu-lar havia puxado à mãe e ela sentia orgulho por isso. Tinha preferência por literatura policial e, mesmo na sua pouca idade, conseguia acompanhar o enredo de um romance desta natureza, descobrindo o assassino bem antes do autor revelá-lo. À falta deste tipo de leitura, lia tudo o que lhe caísse às mãos, inclusive revistas, romances água com açúcar e livrinhos infan-tis da loja, antes que fossem vendidos. Fizera sua bibliotecazinha particular formada por livros da loja que mais gostara e por outros que o pai trazia da cidade especialmente para ele.

Como todas as crianças da vila, cumpria as obrigações religiosas, restritas às aulas de catecismo e aos terços dominguei-ros. Enquanto as outras pessoas esperavam, com impaciência o fim do sermão, Valentino acompanhava atentamente aquilo que o Padre Nicolau dizia; transferia aquelas explicações para seu mundinho privado e as fazia combinar com aquilo tudo que já existia dentro de si. Pelas palavras do padre e pelo que ouvia em casa, imaginava um Deus que não ajudava a pessoa

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alguma, que não ouvia as orações, que não dava a mínima atenção aos pedidos e às súplicas e que castigava a cada falta, por pequena que fosse. Era um Deus bárbaro e vingativo, que se divertia às custas de quem o desobedecesse.

Assim era o Valentino. Por fora, um quase adulto num corpo de quase homem. Por dentro, uma criança crédula, cheia de dúvidas e soluções próprias - no mais das vezes, discordantes daquelas comuns à maioria.

Anita, a irmã, era diferente em todos os aspectos: magra e miúda, parecia bem mais nova do que realmente era. Loura,

cabelos lisos, olhos verdes como os do pai, pele clara. Gostava de seus brinquedos, apreciava as amizades, não era dada a indagações filosóficas como Valentino. Não entendia a linguagem dos bichos e achava perda de tempo o irmão ficar falando com lagartos e pernilongos. Ela gostava de animais, sim - mas não a ponto de ficar contando isso a eles. Frequentava a esco-la e a igreja sem entrar em detalhes, sem problemas íntimos, sem ligar importância aos conselhos e sermões do padre. Fazia o que era feito pela maioria.

III

Os dois irmãos estavam almoçando ao chegar da escola, quando uma galinha cacarejou naquele terreno de eucaliptos ao

lado da casa. - Opa! Descobri de qual lado veio o barulho dela! Hoje eu acho o ninho! Vou procurar agorinha mesmo. - Não vai, não senhor! - Por quê, mãe? - Hoje é terça-feira. Esqueceu a aula de catecismo? - Puxa! Logo hoje, que detectei o lado do canto dela! - “Detectei”! Hmmm! Ele anda falando difícil heim, mãe? - e para o irmão, completou: - Convencido! - Linguaruda! - Não vão começar com brigas outra vez, por favor! - Então, eu vou procurar o ninho! - Amanhã, o ninho vai estar no mesmo lugar. Hoje, catecismo; amanhã, ninho de galinha! - Sabe, mãe... não vai dar pra ir à igreja; estou com uma dor de cabeça! Acho que é o calor. Dentro da capela é ainda

mais quente e a dor vai piorar. - Mentira dele, mãe! É desculpa pra procurar o ninho! Até agora não tinha dor. Foi só falar em catecismo, pronto! Ficou

doente! - olhou com sarcasmo para o irmão e completou: - Mentiroso! - Mãe, numa hora qualquer eu arrebento esta fofoqueira! A mulher ignorou a dor do menino, o aparte da menina, o reinício da briga e saiu para o quintal. - Enredeira! Precisa ficar me irritando a toda hora? - Preciso! Você estava mentindo, e mentir é pecado. Pecado mortal! Eu não quero que vá para o inferno. O garoto mudou a voz num arremedo: - Ah, ela não quer que eu vá para o inferno, não quer que eu me perca nos Morretes, não quer que o caipora me enfeitice,

não quer nada de ruim para mim! - endireitou a fisionomia e arrematou: - Se fosse tão boazinha, não me provocaria a cada instante.

A mãe retornou e Anita falou, em tom choroso: - Manhê, hoje é a segunda terça-feira que eu não posso levar minha filhinha ao catecismo... Quando é que o pai vai bus-

car ela no conserto? - Só quando ele for a cidade. - E quando ele vai? - Amanhã, talvez. Se for, eu peço pra ele trazer. Emburrado ainda, Valentino aparteou: - E fale também pra trazer mais livros, que eu já li tudo o que tem em casa. Pouco depois saíram ambos os irmãos, rumo à capela. Lá já estavam outras crianças à espera. Anita chegou correndo e foi entrando na brincadeira. Valentino, mais vagaroso, mãos nos bolsos, caminhava olhando o

chão. Chegou, sentou-se numa pedra rente à parede da igreja sem dar atenção aos demais. Não achava coisa alguma de interessante naquela correria e gritaria. Preferiu olhar para cima procurando descobrir o que uma nuvem dizia à outra en-quanto apostavam corrida no céu. Percorreu com o olhar toda a extensão azul lá do alto, sem ver nuvem alguma e ficou imaginando a tristeza do céu, sozinho, cheio de calor, sem ter com quem conversar.

- Olhem, o Padre Nicolau está chegando!

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- Nossa! Já? - Que pena! Nem deu tempo pra gente brincar direito... - Vamos formar fila, gente! Fila! Todos pra fila! - É isso mesmo! Depressa, antes que ele chegue! Os menores na frente! - Não senhor! Os menores vão na frente é na fila da escola. Aqui, vai na frente quem chega primeiro. Pode ir lá no fim,

que você acabou de chegar! Valentino, como que não percebeu aquele alvoroço. Não entrou em forma; esperou que os outros sumissem de vista den-

tro da capela antes de se levantar e seguir sozinho, como se não pertencesse àquela turma. Lá dentro o calor era mais sensível. Suando, abanando-se com as mãos, enxugando o suor da testa, cada criança tomou

seu lugar. O Padre Nicolau abriu as janelas e deu um tempo para que os pequenos voltassem à calma; depois passou à ora-ção de entrada e à primeira parte da aula, quando abordava tema de orientação e formação de caráter.

A voz do catequizador, pausada e grave, encontrava eco nas paredes e soava com maior autoridade por assemelhar-se a uma trovoada.

O assunto era “Amor para com todos os seres criados por Deus”. Estas palavras foram pronunciadas pelo padre sem que alguém do grupo prestasse maior atenção ao significado. Quando foram escritas no pequeno quadro-negro foi que Valentino percebeu-lhe a abrangência. Ficou olhando para aquelas palavras, avaliando uma a uma ao mesmo tempo que pensou:

- Amor para com todos os seres criados por Deus... Então os bichos entram nisso? Passarinho também? – uma expressão de enfado cobriu-lhe o rosto - Chii! Logo hoje que a D. Maura falou, vem o padre falando a mesma coisa. Vou ter de aturar duas vezes a mesmo sermão.

Ficou sentindo certo incômodo como se, na coincidência, houvesse a intromissão direta da vontade de Deus; como se o Criador tivesse resolvido mandar uma advertência a ele, Valentino, maior matador de pássaros do lugar.

As palavras do padre eram quase que as mesmas da professora, com a diferença que ela falara de lenda e agora, o enfo-que era religioso. O garoto ficou se achando o alvo exclusivo daquela exposição. Não sabia como se portar; não sabia para onde dirigir o olhar, não sabia o que fazer com as mãos. Parecia-lhe que as outras crianças estavam cientes de que o assunto era só para ele; não tinha porém, como fazer calar a voz do intermediário de Deus. Embaraçado, tirou o estilingue do bolso e ficou a virá-lo nas mãos, a olhar para o objeto com uma ponta de culpa. Foi o bastante para que um dos meninos dissesse:

- Padre, o Valentino está treinando pontaria aqui dentro! O catequizador olhou para o acusado e disse, com voz dura: - Muito bem, Senhor Valentino! Guarde esta arma. - Arma? Que arma? Isto é um estilingue! Atiradeira! Funda, não vê? - Estilingue, atiradeira ou funda, não importa o nome. Isto é arma usada contra os passarinhos. Neste ponto cortou uma voz feminina: - Padre, matar passarinho é pecado? Valentino olhou cheio de rancor para a dona daquela voz - sua irmã - que se sentia protegida pela presença do padre. Es-

te respondeu sem hesitar: - É claro que é pecado! Os pássaros não são criaturas de Deus? Ficou à espera da resposta que não veio. E repetiu a pergunta dando margem a uma única resposta: - Heim? Pássaros são ou não criaturas de Deus? - São! - respondeu um coro de vozes em perfeita sintonia, como se ensaiadas a concordar. - Sim! Todo animal é criatura de Deus; portanto, qualquer maldade contra eles é pecado. - Pecado original, venial ou mortal? - Matar passarinho que não esteja nos prejudicando; matar por prazer é pecado mortal. Só há perdão se o sujeito matar

para comer, ou em legítima defesa. Só nestes dois casos não é crime. Anita e as demais crianças viraram-se para Valentino com sorriso irônico, como se dissessem: “- Está vendo só? Bem

feito pra você!” Até este ponto o garoto estava ouvindo mas, desde que o acusavam nominalmente, passou à defesa: - Há tantos passarinhos no mundo! Se a gente matar alguns, quem é que vai notar a falta? Por breve segundo, o Padre Nicolau ficou sem resposta; logo recompôs-se porém, e resolveu usar a pergunta para uma

exposição profunda que mexesse com o sentimento dos pequenos ouvintes: - Boa pergunta! - e dirigindo-se às demais crianças: - Todos prestando atenção para a resposta. O Valentino disse que há

pássaros demais e que, se alguns forem mortos, não farão falta. Olhou diretamente para o rapaz e, com voz troante: - Não é bem assim. Realmente, para os seres humanos, um passarinho a mais ou a menos não faz diferença. Mas para as

aves não é a mesma coisa. Elas possuem família tanto quanto você. A família dos pássaros é composta por pai, mãe e dois filhotes – calou-se à espera que a informação fosse absorvida; depois, dirigindo-se sempre a Valentino, foi adiante: - Pode ser que você tenha matado um passarinho-pai, justamente na hora em que ele saía do ninho à procura de alimento aos filho-

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tes. Já pensou nisso? Valentino sustentou o olhar do outro e, com os ombros, fez um gesto vago como se aquilo não o afetasse. Ato contínuo,

em voz cheia de cinismo, respondeu: - Não. O senhor poderia me explicar no que isso é tão importante? - Pois vamos aos motivos! Fez longa pausa. Andou de um lado para outro naquele curto espaço de chão em que se achava, olhos voltados para os

próprios pés. Ao reerguer a cabeça, a fisionomia estava modificada. O tom de voz era outro, tornada intencionalmente me-lodramática. Fazendo gestos amplos, teatrais com pausas estratégicas e fixando ponto inexistente, passou a discorrer como se o fizesse a ampla platéia de adultos, sob a luz de refletores:

- Vamos imaginar a situação: Lá no alto daquela árvore, numa serena forquilha dos galhos, há um ninho... Ninho feito palha a palha, trançado com cuidado pelo casalzinho. Vieram os ovos dos quais nasceram dois filhotes. Agora, neste ninho bem pequeno estão os pais e os filhinhos conversando, planejando o futuro, sorrindo felizes...

Valentino esboçou leve sorriso, pensando: “- Não falei? Os bichos conversam, todos sabem disso mas fingem não saber. E se o padre conhece até seus assuntos é porque já andou conversando com eles. Sem querer, se traiu. São todos uns fingi-dos, como se eu é quem tivesse inventado esta história de entender fala de animal. Vamos ver no que vai dar.” - não expres-sou este pensamento em voz alta; agora tinha a certeza e isso lhe bastava.

- Aí, um dos filhotes diz que está com fome – continuava o padre - O outro filhote diz que está com fome também. O passarinho-pai deixa a esposa cuidando do ninho e sai à procura de alimento aos seus meninos. Logo adiante porém... Hó, quanta fatalidade...! Logo adiante, alguém o derruba com uma pedrada! - o padre levou a mão ao peito, como se ele próprio tivesse recebido o golpe e, após uma pausa, continuou: - O pássaro cai, agonizando... o sangue escorre do ferimento... o machucado dói, mas ele nem percebe, nem liga pra dor... só pensa nos filhinhos que estão com fome... tenta voar... no esfor-ço, cai de vez... e morre...

Suspendeu momentaneamente a palavra, imobilizando o gesto e olhando o vácuo. Retornou o olhar em Valentino e tor-nou com voz mansa, quase num sussurro, enquanto os ouvintes retinham o respirar:

- E os filhotes ficam lá, à espera... cada vez com mais fome. Chorando, barriguinha vazia, chamando o pai sem saber que ele está morto... Imaginemos quanto é triste este quadro!

Silenciou de propósito dando oportunidade para que as crianças imaginassem a cena. A dramaticidade da fala atingiu seus objetivos, machucando os coraçõezinhos. Ninguém ousava falar. Só Valentino arriscou um aparte, para desgosto de Nicolau:

- Ainda sobra a mãe! Com certeza, ela também sabe procurar comida! O padre andou alguns poucos passos cabisbaixo, procurando palavras e tom apropriados à resposta. Ao retornar à fala

sua voz era um fio, que foi crescendo em tonalidade: - Ah, a mãe! Ela ficou tomando conta do ninho, protegendo os filhos contra as outras aves... Cansada de esperar pelo

marido, ouvindo o piar cada vez mais choroso dos seus meninos, a coitadinha fica sem saber o que fazer. Os filhotes são novinhos demais; sem penas não podem voar, não sabem se defender. A passarinha não quer deixá-los sozinhos, mas tam-bém não pode deixar que sintam fome. Além da preocupação pelos filhos, ela pensa no marido que já deveria ter voltado... mas não pode falar isso em voz alta, não deseja assustar os pequeninos. E resolve sair ela mesma, à procura de comida. E os filhotes ficam ali sem companhia, sem proteção, sem imaginar os perigos que correm.

Fez nova pausa. Assumiu expressão dura representando maldade: - Nisso, aparece um gavião! Ele vê as avezinhas, dá um sorriso de triunfo e voa diretamente para elas. Os filhotes desco-

nhecem o perigo, mas pressentem que algo terrível está para lhes acontecer. Eles piam, choram, chamam pela mãe, gritam pelo pai, pedem ao gavião que os poupe. O gavião finge que não ouve e vai arrancando os pedacinhos... porém os filhotes estão ainda vivos ainda, implorando piedade! Vejam quanta dor! Estão vivos e, mesmo assim, seus pedaços vão sendo ar-rancados a bicadas e sendo devorados!

Mais uma parada para retomar o tom piedoso: - Quando a ave-mãe volta com a minhoca no bico, encontra a casa vazia contendo apenas restos de sangue. Quanta afli-

ção! Quanto desespero, quanto sofrimento! Sai sem rumo à procura dos seus bichinhos e jamais reencontra! Volta ao ninho e ali fica amargurada, à espera do marido para contar-lhe a desgraça e chorarem juntos. Mas ele também não volta! A coita-da fica sozinha no mundo... Cheia de desgosto perde o amor pela vida; perde a fome, emagrece, enfraquece, só chora de saudade do lar feliz que perdeu. E acaba morrendo aos poucos. Morre de tanta tristeza!

Novo silêncio astucioso. O padre vagou o olhar para o chão como que enternecido por aquele drama. A maioria das cri-anças procurava disfarçar os olhinhos cheios de lágrimas. Fingindo ignorar esta reação, o homem virou-se de repente, mu-dou de expressão, encarou Valentino e o acusou diretamente:

- Aquela avezinha perdeu toda a família por sua causa! - apontou o indicador para o garoto. Valentino estremeceu e o homem continuou, sublinhando a palavra você: - Você desmanchou aquele lar feliz! Com seu estilingue - que diz não ser arma - não matou apenas uma ave! Você matou

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toda uma família! Quantos e quantos lares já destruiu desta forma? ... Heim? Responda, Valentino! Sentindo o dedo de Deus a lhe tocar a consciência, o acusado ficou imóvel percebendo-se agora, cada vez menor diante

daquele juiz que representava a voz divina na Terra. Sentiu-se arrasado; evitaria no entanto que o outro percebesse o peso que lhe ia na alma. Enquanto houvesse uma saída ele a transformaria em pergunta, procurando despistar o mal estar e con-fundir o oponente:

- Padre, veja bem: se eu não matar, os outros matarão. É a mesma coisa! As famílias dos passarinhos não vão ficar des-truídas do mesmo jeito? - e sustentou o olhar do homem à sua frente. Este, teve de se esforçar para encontrar um argumento à altura e, na resposta pisou doído nas palavras: os outros e você:

- Ah, sim! Os outros matarão! Os outros carregarão este pecado mortal para o túmulo! Os outros terão de se justificar perante Deus! Os outros queimarão eternamente no inferno, serão cozidos nos caldeirões ferventes, serão espetados, pela eternidade afora nos garfos demoníacos! Deixe que os outros façam o que quiserem, porque Deus os castigará, tenha a cer-teza! Procure você manter-se na linha reta! Procure você, o caminho do céu! Deixe que os outros paguem por estes crimes horrendos e hediondos - não você!

Depois de curta reflexão e certa insegurança, Valentino perguntou ainda: - Padre, e o gavião que mata os filhotes? Ele vai para o inferno também? O catequizador mudou o tom e respondeu quase sorrindo: - Gavião, não! Ele mata porque precisa comer! É diferente de matar por crueldade ou por diversão. Se não mata ele não

tem como se sustentar e, se não come, não vive. Além disso, gavião não tem aulas de catecismo, não aprende o que é certo e o que é errado. É diferente de você, que já aprendeu o que deve e o que não deve ser feito.

Valentino sentira-se culpado logo no início da aula, ao perceber a coincidência dos assuntos tratados na escola e na igre-ja e só continuou debatendo por orgulho, para não se mostrar acovardado diante daquela meninada que ele considerava tola. Mas sentiu-se profundamente tocado com a representação do padre, sentiu sincera piedade pelas aves. E, para coroar este estado de espírito, sentiu medo do inferno! Avaliou o calor que teria de enfrentar pela eternidade e, se não era fácil suportar o calor daqueles últimos dias, o que dirá do fogo do inferno? Assustado com aquilo tudo, perguntou com mais humildade:

- Padre... e os outros? Aqueles que já matei? O homem sentiu-se satisfeito com o tom da pergunta e respondeu em tom paternal: - É diferente, filho! Antes, você matava sem saber que era pecado e, neste caso, o castigo é menor. Deus não leva muito

em consideração porque não havia conhecimento do mal. Esqueça os que já matou. Basta que não caia no mesmo erro en-tendeu? - e sorriu bondosamente.

- Entendi... – respondeu Valentino quase num sussurro. - Mais alguma pergunta? Pela mente de Valentino passou uma idéia divertida. Sabia que estaria falando tolice, mas não resistiu à vontade de dei-

xar o padre sem resposta. Pareceu pensar e voltou à carga: - É, tenho mais uma dúvida, mas... Silenciou. De propósito fitou timidamente o padre, que o encorajou: - Faça a pergunta, vamos! Pode falar, estou aqui para tirar suas dúvidas. Rindo por dentro mas fingindo seriedade, Valentino seguiu: - Vamos que eu mereça o inferno, Deus me manda para lá depois que eu morrer. Mas... e se eu não morrer? Como consequência àquela pergunta tão fora de propósito, uma porção risinhos disfarçados foram captados por Valenti-

no. O próprio padre riu e o garoto não se incomodou; mantinha o ar insolente e firme, como se a reação dos demais é que era fora de propósito. E tornou à pergunta depois de segundos:

- Estou perguntando e quero a resposta! - novamente encarou o padre: - E se eu não morrer? O homem ficou desconsertado, não esperava aquilo. E respondeu o óbvio: - Valentino... todos nós morreremos. Esta pergunta não tem sentido. Notando que o padre perdera a pose, a certeza e o equilíbrio racional, o garoto sentiu-se desafrontado. Mesmo que tives-

se de capitular diante dos argumentos já apresentados, não sairia de todo um perdedor. Era sem sentido aquela pergunta, ele o sabia, mas conseguira fazer o outro titubear. E continuou naquela vingançazinha saborosa:

- Eu sei. Mas vamos supor que eu não morra. Suponhamos que eu consiga ficar vivo. E aí, o que acontece? - Bem... isto é uma tolice, mas tentemos fingir que você não vai morrer... Como é mesmo a pergunta? - É assim: O inferno é o lugar para onde vão todos os ruins do mundo. Se eu sou ruim, vou pra lá. Mas só posso ir pro

inferno depois de morto. E o que acontece se eu merecer o inferno mas não morrer? - Ah, entendi! Faz de conta que você não morre nunca. Neste caso, Deus não poderá mandá-lo para o inferno, porque in-

ferno é lugar das almas pecadoras – e não dos vivos, mesmo que pecaram. - Era isso que eu queria saber. Mas como é que fica? Neste caso, eu não pago os meus pecados? - Deus arranja um jeito de você morrer, não tenha dúvida. Tendo encontrado um ponto vazio onde pisar, Valentino colocava seus argumentos, ciente da improdutividade das per-

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guntas e da inexistência de respostas. Ainda assim mantinha o ar grave de quem discute assunto da mais alta relevância: - Padre, o senhor voltou ao ponto de saída. Estou falando em não morrer! Falo em manter-me vivo por toda a eternidade. As crianças acompanhavam em silêncio e já sem zombaria aquela conversa estranha, porque a atitude de Valentino não

era a de quem estivesse brincando. O padre também o percebeu e, para não esticar o assunto, respondeu com outra pergunta: - Você tem medo da morte, Valentino? - E quem não tem? Todos sentem medo de morrer, porque todos pecam. Pode ser um pecadinho de nada, mas todo mun-

do faz algum. Sabendo que a dívida vai ser cobrada no inferno, a gente quer ficar de fora. O senhor mesmo acabou de dizer que não se pode entrar no inferno com corpo e tudo. Quanto mais se vive, mais se demora a sofrer nos caldeirões do diabo, não é assim? – apontou o dedo acusador num gesto abrangente - E estas crianças bobas aí, que ficam me acusando, também têm medo de morrer, porque já fizeram muito pecado!

E se deliciou ao notar a surpresa em cada fisionomia que não tinha o que retrucar, considerando que ele falava a mais pura verdade. Também o padre estava admirado com tanta clareza, com tanta coragem e teve de admitir o raciocínio reto do garoto, sem perder de vista o assunto que os levou àquele debate. Aliás, já era hora de retomar as rédeas:

- O que disse tem algum fundamento, mas não precisa temer a morte; e pode se livrar de ir para os caldeirões sem preci-sar manter-se vivo pela a eternidade afora.

- Como? - No seu caso, é só não matar passarinhos nunca mais. Se seu pecado for só este, basta se arrepender, pedir perdão por

aqueles que já matou e não tornar no erro. - Pedindo perdão, Deus perdoa? – o tom era de dúvida. - Sim. É para isso que existe a confissão e a comunhão. A hóstia limpa a alma do pecador. Se quiser ser perdoado agora

mesmo, é só fazer um juramento de nunca mais matar pássaros. Você jura? - Jura o quê? - Emendar-se dos crimes cometidos, nunca mais cair em tentação, nunca mais matar passarinhos. Se pedir clemência ao

Criador, eu o perdoarei em nome Dele. Será absolvido, não sofrerá castigo do céu, não irá para o inferno. Promete? Valentino não respondeu de pronto. Ficou pensando naquele Deus que existia no seu mundinho reservado que não per-

doava, que mais castigava do que ajudava. E ponderou que poderia estar enganado. Afinal, o padre falava com tanta convic-ção! E depois, havia aquela coincidência de ouvir duas vezes no mesmo dia, em lugares diferentes, de pessoas diferentes, explicações idênticas sobre o mesmo assunto. Poderia ter sido o próprio Deus a lhe mandar o recado - e se fosse aviso vindo de Deus, não poderia haver dúvida! Deus não seria tão mau se estivesse querendo salvá-lo do inferno.

- Valentino, estou esperando! - Esperando o quê? - Sua resposta. Você promete não cair em tentação? - Sim... eu prometo. - Ótimo! Então fique de joelhos, mãos postas e repita em voz alta o que eu disser. Sem pressa, o menino se ajoelhou, colocou as mãos em posição de prece e foi repetindo: - Eu, Valentino, prometo ao Criador, de todo o meu coração, nunca mais matar pássaros sem necessidade de me alimen-

tar e sem ser em legítima defesa. Se repetir o erro, o Senhor meu Deus poderá castigar-me da maneira mais terrível que escolher, inclusive mandar-me aos sofrimentos do inferno por toda a eternidade. E peço perdão pelas aves que já matei. Amém.

Valentino repetia, refletindo o significado de cada palavra em particular e o sentido delas todas, em conjunto. Arrepiou-se e engasgou por duas vezes durante o juramento, percebendo a responsabilidade de suas ações a partir daquele dia.

IV

- Cacau, você precisava ter visto a cara do padre! Falou umas coisas que arrepiei! - ... - Eu? Oras, como você queria que eu reagisse? Aí, na frente de todo mundo, que chato! Aqueles bobocas dando risadi-

nha, cochichando, me olhando de um jeito... - ... - É, senti vergonha sim, mas não foi só isso. Fiquei com medo também. - ... - Não. Só pra mim. Para os outros, ele não disse nada e eles também matam passarinho. Matam quase igual, mas muito

menos que eu, né? Hmmm! É mesmo! Que gozado! Agora que você falou, eu lembrei. Sabe o que eu pensei naquela hora? - ... - Eu sabia que você não sabia. Pois na hora me veio na cabeça que o padre recebeu um recado de Deus, para me falar

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daquele jeito. Faz sentido. - ... - Pode ser. É que Deus não manda recado assim, igual nós mandamos; só inspirou o padre a falar. Acariciando a cabeça do cachorro que o olhava como se o estivesse entendendo, perguntando, respondendo e sugerindo,

Valentino continuou: - Outra coisa que me encuca é que nunca pensei em faltar ao catecismo. E hoje, justo hoje, que Deus queria continuar a

conversa que a D. Maura começou; quando Deus fazia questão da minha presença na capela, foi que o capeta me fez querer ficar em casa. Ah, foi o capeta sim! Só pode ter sido arte dele.

- ... - Pois é, é isso mesmo! E ainda por cima, o satanás me fez descobrir a direção do ninho daquela galinha! E não é de ago-

ra que eu venho de olho nela. Justamente hoje, justo quase na hora do catecismo, é que fui descobrir! - ... Valentino olhou de banda para o animal como quem está ouvindo grande asneira e explicou, com toda paciência: - Por que hoje, Cacau? Você não entendeu, seu burro? Era para que eu sentisse vontade de procurar o ninho e não fosse

à igreja, com certeza! Faltando ao catecismo, não receberia o recado de Deus. Só pode ter sido isso. Tirou a mão da cabeça do animal, parou de falar, fixou um ponto qualquer do espaço e refletiu, à meia voz: - Por que só hoje Deus resolveu me mandar o aviso? Sempre matei tudo quanto é passarinho e só hoje... a não ser que...

É... pode ser, faz sentido! Olhou para o cão e falou: - Sabe o que é, Cacau? Vou explicar e vê se entende na primeira vez: Cada pessoa pode matar certo número de passari-

nho; se passar deste número, já não tem salvação. Eu, que sou o campeão nisso aí, devo ter atingido a minha quantia. O capeta, que também faz as contas dos bichos que a gente mata, sabia que eu tinha atingido o número e que Deus ia usar a aula de catecismo pra me trazer o aviso. Aí, ele tentou me iludir com o ninho da galinha, fez de tudo tentando me desviar da capela pra que o recado não fosse dado. Eu continuaria matando e ele ia se apoderar da minha alma. Mas enganei o chifru-do, fui ao catecismo, recebi o aviso, fiz o juramento. Agora, não posso matar nada nem ninguém pelo resto da vida.

- ... - Ah, sim, com certeza! A capetaiada vai ficar em volta de mim, me tentando de tudo quanto é jeito! Só que não sou bur-

ro de fazer aquilo que eles querem. Valentino sorriu feliz, por haver enganado o dono do inferno: - Sabe? Quando eu falei na capetaiada descobri uma coisa. Sabe o que é? - ... - Curioso você, heim? Pois descobri que a vida de capeta não é tão boa como se pensa. Coitado deles! - ... - Veja bem: Há quantos anos eles estão lá, naquele servicinho de castigar pecador? - ... - É! Desde que o mundo foi fabricado há muitos, muitos milhares e milhões de anos! Quanta gente já deve estar lá den-

tro? Assim ó, de gente! E todo dia chega mais! As almas chegam de trem, um trem comprido, que vai despejando gente sem parar e já saindo em busca de mais. Almas novas dia e noite batendo na porta e mais o mundaréu que já está lá. Muito mais gente no inferno do que gente viva na Terra. E o número de capetas não cresceu, são sempre os mesmos!

- ... - Não senhor! Deus não promove nem rebaixa ninguém a capeta. É só aquele tanto e acabou! - ... - Ah, deve ser grande! Na sua opinião, quanto você acha que ele mede? - ... - Tamanho da Vila Verde? Seu burro, neste espaço não cabe quase ninguém! O inferno deve ser maior que a Terra intei-

ra, porque aquilo lá deve estar hoje com... uns bilhões de trilhões de pecador - ou mais ainda! Bastante né? - ... Imaginando as cenas e entre gargalhadas, Valentino respondeu: - Ah, eu falei que eles são uns coitados porque... raciocine comigo: já imaginou o trabalhão para dar conta de castigar

sem parar, aquele povo todo? Cada um dos diabinhos tem o cargo de judiar de, pelo menos, quanto? Um milhão de pecador! O capetão-chefe tem de ficar de olho no relógio e gritando: “Hora de espetar condenado e colocar na churrasqueira!” Cada diabo corre espetar de um em um, acender o fogo embaixo de cada espeto, ficar virando todos eles ao mesmo tempo senão queima! - Valentino deu uma gargalhada - “Hora de fritar condenado!”. E lá vão os coitados dos satanazinhos desespetando cada um daquele milhão de almas e ir jogando elas nas caldeiras; jogando com cuidado, senão espirra óleo fervente e quei-ma mais o capeta do que o condenado. Ah, que gozado! - deu outra gargalhada - “Hora de assar condenado!” “Hora do banho de fogo!”. “Hora de condenado dormir em cima de brasa!” E tem hora pra caminhar em cima da chapa quente, hora

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de ir pro forno... Ah, sim! e tem também hora de dar comida pros condenados! Nesta hora, é um rebuliço! Cada capeta tem de preparar bandeja com brasas na travessa e um copo de água fervendo. As almas do inferno comem brasa, sabia? - nova gargalhada - Imagine só o tempo que leva a capetada na hora de arrumar cozinha! Lavar pilhas de bandejas que devem me-dir muitos quilômetros e mais quilômetros de altura... Ah, Cacau é muita trabalheira! Tirar condenado de um castigo e pas-sar pro outro sem parar, por toda a eternidade... E não acabou ainda.

- ... - Tem sim, quer ver só? Enquanto os pecadores dormem em cima das brasas, os diabinhos têm de aproveitar o tempo li-

vre e procurar lenha seca. Cada um tem de recolher lenha pro seu milhão de almas. - ... - Isso mesmo, eu nem tinha pensado nisso, Cacau! Que tantão de lenha cada um tem de recolher! Coitados dos capetas! Ficou cismando um momento ou dois com um sorriso maroto e continuou: - E tem uma coisa lá, que deve ser dura até pra eles mesmos: o calor! É um calor dos diabos, aquele monte de fogueira,

de fornalha, tudo aceso de uma vez só, aquela fumaceira que entra nos olhos, no nariz, na boca. E ouvindo dia e noite o choro, os gritos dos pecadores! Os pobres capetas não podem dormir, nem descansar, nem sentar, nem conversar, nem nada! Não podem descuidar do fogaréu, não pode faltar lenha. E tudo o que eu falei é feito dentro daquela roupa vermelha aperta-dinha, suada, sem botão pra vestir e desvestir... Tolerar aqueles chifres enroscando em tudo quanto é lugar, ter de carregar aquele rabo comprido com cuidado, senão queima! - Valentino gargalhou com vontade - Por isso é que eles são magros daquele jeito, Nunca ouvi falar em capeta gordo. Também! Com tanta correria!

... - Ordenado? Que ordenado, seu bobo? No inferno não tem salário. Diabo trabalha sem ganhar um único tostão! Têm de

obedecer as ordens do chefão trabalhando de graça, sem aposentadoria, sem férias, nem domingo, nem dia santo, sem diver-são de jeito nenhum, nunca! Viu só como capeta sofre? Bem feito pra eles! E ainda tem os serviços externos.

- ... - Bem, no caso deles, serviço externo é ficar tentando pecador vivo que, como eu, está cai-não-cai. Ambos ficaram sem falar, por instantes e foi Cacau a puxar prosa: - ... - O céu? Ah, o céu! - os olhos do garoto brilharam de modo diferente. Sorrindo, respondeu: - Uma gostosura! Tem tudo

de bom: tem circo, parque com roda gigante, biblioteca cheinha de livros... - ... - Livro de missa? Não, que ideia boba, você endoideceu? Nem bíblia! O céu é pra gente se divertir e não pra sofrer, seu

burro! Lá só tem revista em quadrinho, livro de detetive, livro de historinha pras crianças pequenas, livro tudo quanto é jeito. Menos bíblia, livro de missa e de reza.

- ... - Rezar, Cacau? Ah, como você me cansa! Pra que rezar no céu? Quem chega no céu já rezou tudo o que tinha de rezar

aqui na Terra. Lá, a gente ganha uma coroinha, uma camisola de pano que brilha, um par de asas e pode voar pra onde qui-ser. Uma delícia!

- ... - Sim, comida também, é claro! Macarronada, chocolate, brigadeiro, bolo com glacê, sorvete, hmmm... - ... - Tem sorvete sim senhor, porque lá tem energia elétrica. Não é igual aqui com gerador mixuruca, que liga e desliga. Lá

tem energia de verdade dia inteiro, noite inteira. - ... - Tamanho? - Valentino parou, pensou e respondeu como se estivesse raciocinando: - Sabe, eu até acho até que o céu

não é grande. Nem precisa, está quase vazio! Deve haver uns santos por lá, que morreram faz tempo... Hoje não se sabe de ninguém que vira santo. Anjinho tem bastante, porque criança que morre antes dos sete anos vira anjo... e só! Gente grande tem bem pouco, quase nada porque no céu não entra quem tiver pecado. E quem é que não tem? O grosso do povo vai mesmo é pro inferno.

- ... - Cachorro no céu? Nunca ouvi falar... Mas deve haver também céu e inferno pra cachorro. E trate de ser bonzinho, que

no céu de cachorro deve ter bastante osso e um montão de cadelinha bonita.

14 DE AGOSTO - 4ª FEIRA

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I

Logo cedo, Seu Leonel abriu a loja, fez o levantamento das mercadorias em falta, preparou a lista de compras. De onde estava, gritou à esposa:

- Edna, vê se apressa o almoço, que não quero me atrasar. Daqui a pouco, o calor vai estar forte outra vez! - Já fez a lista? - perguntou ela, da cozinha. - Acho que está pronta. Você poderia dar uma olhada, ver o que falta marcar. - Não agora. Depois. Ao mesmo tempo que cuidava das panelas, a mulher aproveitou para lavar e estender uma porção de roupas no varal. Fi-

caria difícil fazer esta tarefa mais tarde, na ausência do marido pois teria ela de tomar conta da loja. Deu os últimos toques no almoço, atravessou a sala em direção à parte comercial da casa.

- A comida está pronta. Vá almoçar, eu fico aqui. - Almoçar a esta hora, sem fome... Lembrou de mais alguma coisa pra pôr na lista? - Se não sei o que você anotou, como vou saber o que falta? - Vá falando. Se não anotei, anoto agora. - Sardinha em lata, manjuba seca, vassoura... - Estão na lista. Que mais? - Linha branca de carretel número 40, borracha, lápis de cor... coisas de escola. - Material escolar, havia esquecido... Pronto. Que mais? - Lâmpada, agulha de mão. Acho que só. - bateu a mão na testa e completou: - Ah, não esqueça de passar na casa da mi-

nha irmã e apanhar a boneca da Anita, que não fala noutra coisa. - Já ia esquecendo esta maldita boneca. Só faltava voltar sem ela. - E livros pro Valentino. Policiais, de preferência. - Livros pro Valentino... completo! Há dias ele vem reclamando não ter o que ler. Na última vez, você lembra? - Última vez do quê? - Que estive na cidade. Ele foi me esperar na estrada, me fez parar o caminhão só pra perguntar se eu havia comprado li-

vros. E já era noite fechada! Nunca vi gostar de ler deste jeito! - Ainda bem. Quanto a Anita... só pensa em brincar. - Aos nove anos, quem é que se interessa por leitura? - O Valentino sempre gostou. Antes ainda de aprender a ler, já andava com livro na mão. - O Valentino é diferente em tudo.

II

A lenda do caipora e o juramento feito na capela não saíam da cabeça de Valentino. Naquela manhã, prestou pouca aten-

ção às explicações de D. Maura. Copiou, respondeu e calculou tudo de maneira rápida como era seu feitio; e depois, como era seu feitio também, enquanto os colegas se demoravam nos mesmos deveres, ficou pensando.

Ele estava sentindo necessidade de encontrar alguém com quem conversar, contar coisas. É verdade que ele falava com bichos e objetos e, naquele dia preferia que outros humanos não ouvissem seus assuntos, porquanto se encontrava receoso, impressionado demais como jamais estivera e não queria demonstrar esta fraqueza. Impossível portanto, contar seus temores à carteira por exemplo, com tantos pares de ouvidos à sua volta. Em outras manhãs, conseguia reprimir a vontade de falar até que estivesse longe daquela criançada xereta. Hoje no entanto, não conseguia esperar. E ficou imaginando um jeito de desabafar, escapando à curiosidade dos companheiros. Decidiu por fim, aliviar as tensões, escrevendo-as.

“- Meu caderno de classe foi começado ontem, tem muitas páginas limpas. É grossão, cabe bastante coisa. O ruim é que ele fica aqui na escola e, se eu quiser continuar escrevendo em casa, não vou poder. Ah, quer saber? Melhor ainda! Melhor mesmo se fica na escola! Sendo de uso só em classe, ninguém lá em casa vai ler o que está escrito e nem D. Maura vai des-confiar nada, aposto e ganho!”

Abriu o caderno na última página, virou-o de cabeça para baixo e começou: Hoje é dia 14 de agosto, quarta-feira. Estou sendo vigiado pelos deuses. Eles estão esperando que eu cometa mais um pecado mortal contra as aves, para me castigar. Sei disso, porque ontem

recebi dois recados. O primeiro foi na escola, pela D. Maura; depois foi na capela, pelo Padre Nicolau. Ouvi dos dois, o mesmo assunto sobre matar passarinhos. A minha quantia já está vencida e, se eu matar mais um, o

castigo vem dos dois deuses: do deus de gente, chamado Deus mesmo - e do deus dos bichos, chamado caipora. Caipora com letra maiúscula, porque é um deus.

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O Caipora vai me fazer ficar perdido na Floresta dos Morretes; o Deus de verdade vai me mandar pro inferno quando eu morrer. Sabendo disso, o capeta, que é o deus da maldade – este, eu escrevo com minúscula, porque ele é ruim. Pois o capeta já está todo contente, pensando que sou bobo e que vou acabar no meio do fogaréu, lá no inferno dele.

O Padre Nicolau falou de um jeito estranho, até parece que não era ele quem estava falando. A voz ficou mais grossa e ele falava baixo, dava um medo! Contou umas coisas, que fiquei até gelado. Percebi o tamanho do meu pecado.

Depois, ele me fez jurar, de joelhos, com as mãos postas, que nunca mais vou matar passarinho. Foi um juramento sé-rio. Parece que Deus ia inspirando ele; ele ia falando em voz alta e eu ia repetindo em voz alta também.

Jurei e vou cumprir. Sei que o diabo vai ficar me tentando, mas tenho de resistir senão minha alma não terá salvação.”

III

- Quem está na cozinha? - Sou eu, mãe. Anita. Acabei de chegar da escola, entrei pelos fundos. - E o Valentino? - Ouviu a galinha cantar e saiu correndo. Foi procurar o ninho. - Decerto, nem almoçou. - Não. - E você? Almoçou? - Estou começando. - Quando acabar venha ficar na loja, que eu preciso recolher a roupa do varal. Parece que vai chover. Pouco depois, a menina empurrou o prato vazio e foi revezar a mãe na loja. - Cadê o pai? - Foi à cidade. - Que bom! Ele vai trazer a Lúcia? - Que Lúcia? - Minha filhinha! Esqueceu que ela chama Lúcia? - Não, não esqueci e falei pra ele trazer. Você encheu a latinha de comida do Cacau? - Não enchi, não. Acho que ele foi com o Valentino. - Não foi. Veja, ele está dormindo lá fora, perto da soleira. - Quando o Valentino chegar, ele dá. - Não senhora! Cachorro também precisa comer. Vá arranjar comida e água pra ele, eu espero. - Tudo eu! Tudo eu! - e chamou: - Cacau, vem papar! O céu estava sendo encoberto rapidamente. Seria uma chuva fora de estação secundando o calor infernal dos últimos di-

as. A julgar por estes sinais, cairia uma tempestade e não uma chuva comum. D. Edna preocupava-se pelo marido que, a estas horas já estaria em Ipoty. O aguaceiro poderia impedi-lo de voltar na-

quele dia. Não que a viagem fosse longa mas alguns trechos ficavam intransitáveis quando chovia. Foi à porta e olhou o céu que havia escurecido ainda mais. Afastou a preocupação pelo marido e o pensamento voou para seu menino:

“- Procurar ninho de galinha com o temporal que está chegando! Só o Valentino mesmo...” - e remoeu algumas incerte-zas que a assaltavam já fazia ..tempo: “- Não entendo o Valentino. Inteligente, ele é. Parece normal quando defende seus pontos de vista, quando briga com a irmã, quando faz perguntas de gente grande e deixa a todos embaraçados. Tem assunto de adulto, entende as histórias intrincadas dos livros... mas às vezes me parece tão anormal! A falta de amigos, a falação até com o pau da horta! Sempre diferente dos outros! – abanou a cabeça devagar - Não, não pode estar com algum problema psicológico. De qualquer forma, seria bom se fizesse uma consulta. Por outro lado, pode ser que seja tão amadurecido, que não encontre entre as crianças da vila quem tenha assuntos à altura dos seus e, por isso, se afasta. Prefiro pensar que seja assim. Devo conversar com o Leonel; é possível que ele também haja percebido algo errado e não queira comentar comigo.”

IV

- Hoje eu acho o ninho, hoje eu acho! Ela cantou aqui no meio dos eucaliptos, ouvi bem de onde veio o som. - e gritou: - Galinháááá! Onde você escondeu seus ovos? Eu descubro, não adianta esconder, sua boba! Passando por um eucalipto troncudo, olhou-o com respeito e perguntou: - O senhor sabe que procuro o ninho daquela galinha preta, não sabe? - ...

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- Não? Pois agora, já está sabendo - e deu uma risada franca, ruidosa e cristalina, como se fazendo coro à risada prolon-gada da árvore. Parou de rir, olhou em torno, baixou o tom de voz e confabulou: - Conte pra mim o lugar do ninho dela. Não conto a ninguém que foi o senhor quem me falou.

- ... - Não sabe? Chiii! Então só me conte de qual lado ela veio cantando. Eu descubro o resto. - ... - Tudo bem, se o senhor estava olhando para o outro lado é só falar para qual lado olhava, que eu procuro pelo lado con-

trário. Fácil, né? - ... - Quê? Olhava as professoras subindo no ônibus, lá na estrada? - ficou na ponta dos pés, esticou o pescoço naquela dire-

ção; olhou de novo para o eucalipto, duvidando: - Puxa, como é que daqui dá pra ver? Eu não enxergo nem a estrada! - ... - Ah, claro! Daí de cima, o senhor vê longe. Desculpe, cheguei a pensar que estivesse mentindo. Mas se olhava a rua,

quer dizer que o ninho está mais lá no fundo, mais perto do Brejão. Obrigado, Seu Eucalipto! Passar bem! Daqui a pouco eu volto e mostro os ovos pro senhor.

Saiu e foi se embrenhando por entre as ramas, sempre perguntando, olhos grudados no chão, nas pequenas moitas, nos montículos de folhas secas. Seguia quase de gatinhas abrindo as folhas com as mãos, esquadrinhando lugares que poderiam ser bons esconderijos de galinha.

Os eucaliptos foram rareando, e ele andando sempre abaixado na direção que acreditava ser a certa. A vegetação agora era de porte menor e foi decrescendo em tamanho até que ele se achasse em campo aberto. Com dor

nas costas por andar curvado, Valentino ergueu-se, apoiou as mãos nos quadris, flexionou o tronco para trás, respirou fundo. Com as mãos nesta posição, sentiu o contato com o estilingue no bolso traseiro da calça. Retirou-o e ralhou com ele:

- O que você está fazendo aqui? Eu deveria tê-lo deixado em casa, pra não cair em tentação. Mas já que veio... bem, ma-tar passarinho não posso; mas nada impede de treinar pontaria. Acertar pau seco não é pecado. O que você acha? Vamos?

Procurou um pedregulho no chão, armou o estilingue, olhou em torno escolhendo um alvo. Fechou um olho, mirou dis-plicentemente o oco de um tronco por onde acabara de passar e esticou bem as borrachas.

Já ia soltar a pedra quando um pássaro, alvoroçado talvez pelos sinais de chuva próxima, passou voando baixo chegando a tocar-lhe os cabelos. Com o susto, Valentino virou-se para a ave e soltou a pedra. O animal foi cair logo adiante.

Neste ato, a consciência não tomou parte. Foi pela surpresa, pelo roçar das asas nos cabelos, pela circunstância de estar com o estilingue armado e esticado, e não pelo desejo de matar. Aliás, antes ainda que a pedra saísse do controle de suas mãos,- mas tarde demais para deter o movimento,- Valentino já sentiu o peso da ação a machucar-lhe o peito.

Quando a ave caiu, o rapaz correu naquela direção esperando não tê-la ferido de morte. Abaixou-se, pegou-a nas mãos e tudo voltou à sua mente: os filhotes piando de fome, o gavião, o ninho vazio, os restos de sangue, o caipora. Voltou-lhe a expressão acusadora do padre, dedo em riste: “- A ave perdeu a família por sua causa! ... Os outros matarão! ... Os outros queimarão no inferno! ... prometo nunca mais matar passarinhos... inferno por toda a eternidade... caldeirões ferventes...”

Valentino sentiu um nó apertando forte seu tórax enquanto a ave exalava os últimos suspiros. Apertou-a contra si, como se quisesse transmitir-lhe vida e, com seu carinho, compensar-lhe o dano.

- Fale comigo, passarinho! Vamos, converse! Por favor, pelo amor de Deus, diga alguma coisa! Pode me xingar que eu não ligo, mas fale! Qualquer coisa vamos, diga qualquer coisa!

Esperou alguma resposta e, como esta não viesse, tentou explicar-se: - Sabe, eu não queria matar você. Atirei aquela pedra porque... porque sou mau! É isso! O satanás não fica tentando cri-

ança boa; só gente ruim como eu! E quando se é ruim por dentro, não adianta querer parecer bonzinho por fora... O capeta venceu...

A avezinha morreu em suas mãos. Valentino sentiu ódio por si mesmo; sentiu as lágrimas embaraçando-lhe a visão e, com voz embargada, continuou falando:

- ... O capeta venceu. Minha quantia estava vencida e ele sabia disso! Mas ele sabia também que sou mau! Deus me avi-sou, Deus tentou me salvar e eu desobedeci! Não tenho salvação, não tenho salvação! Vou arder no inferno. Acabou, tudo acabou para mim!

Por longos minutos ficou se recriminando, apertando sempre o pássaro contra o peito, numa vã esperança de que ele pu-desse voltar à vida. Depois, reconhecendo inúteis seus esforços, cavou um buraco com as mãos e enterrou o animal, sem parar de soluçar. Se não podia devolver-lhe a vida, dar-lhe-ia um túmulo. Achava-se agora o pior menino do mundo, sem direito a pedir perdão a Deus, sem direito a quaisquer esforços para se redimir.

No momento em que arrastava os punhados de terra sobre o corpinho morto, um trovão soou forte. Numa associação de idéias, Valentino ligou aquele som à voz grave do Padre Nicolau vibrando em ecos nas paredes da

capela. Esta associação fê-lo crer que o trovão fosse a voz de Deus ralhando com ele, exigindo vingança. À procura do ninho de galinha, o rapazinho não percebeu as nuvens quase negras que encobriam o sol; não notou a mu-

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dança do tempo, não fez ligação entre o ribombar que ouviu e a chuva que estava por cair. Só quando o trovão tossiu seco foi que reparou nas nuvens pesadas de um cinzento muito escuro. Com lágrimas escorrendo, ele se levantou e acabou de cobrir com o pé o pequeno túmulo. Depois saiu correndo como que fugindo de si mesmo, como que deixando para trás o pecado mortal, como que procurando esconder-se do próprio Deus. Corria e falava sozinho; eram frases sem sentido para quem o pudesse ouvir, mas cheias de significado para aquela mente em pânico.

Sabedor da gravidade da falta, o psiquismo de Valentino procurou entrar em equilíbrio na autopunição. O crime cometido estava no campo da consciência e o castigo seria a consequência natural, vindo de ambos os deuses. Fora do controle dos comandos do raciocínio, o inconsciente trabalhou de modo a resgatar, por si mesmo, a falta prati-

cada. Sabendo - através da pergunta da Anita na manhã anterior - que o caipora fá-lo-ia atravessar o Brejão caso matasse uma ave do lado de cá, os próprios mecanismos internos atuaram de modo que, sem o perceber, Valentino caminhasse de encontro à punição. Os pés afundaram na terra mole e pantanosa do brejo, mas ele não o notou. O sistema de autodefesa não registrou o perigo; o cérebro não recebeu mensagem de alerta; o instinto de sobrevivência não foi acionado e Valentino seguiu caminhando. O Brejão era o limite que os pais impunham aos filhos de até onde se podia chegar, mas levado pela necessidade de autopunir-se, seguiu a esmo para o interior da mata desconhecida.

V

A brisa agitava as árvores. O vento tomou o lugar da brisa. A ventania dominou tudo. O céu escureceu de vez e, num

dado momento, Valentino se deteve. O instinto de sobrevivência parece ter acordado e ele olhou em volta, com espanto. Não sabia onde se encontrava, nem como viera parar ali. Por todo lado árvores centenárias, trepadeiras nativas, arbustos selvagens, moitas de espinhos, cipós pendentes, troncos apodrecidos. Nenhum caminho, nenhuma picada, nenhum sinal de presença humana. Até os animais se faziam ausentes abrigados, com certeza, da tempestade que adivinhavam no ar.

O garoto tentou voltar por onde viera, mas não sabia de onde viera. A ventania agitava os galhos como se mão invisível os quisesse arrancar; folhas caíam sobre ele, nuvens negras faziam

escurecer ainda mais as sombras da mata, o céu era invisível por entre o emaranhado de galhos folhudos lá no alto. Os fe-nômenos que antecedem à tempestade na floresta deram a Valentino, motivos para crer que já estava recebendo seu castigo. Tudo o que o cercava e o que julgava ver e ouvir deixava-no mais e mais amedrontado. As árvores pareciam querer agarrá-lo. Fugia de umas, ia ao encontro de outras que lhe retinham os passos, que o olhavam de maneira odiosa. Sentiu-se encar-cerado numa prisão viva, pensante, racional. O vento assobiava por entre os ramos, zombando dele. Fazendo-se ouvir acima disso tudo, a voz cavernosa de Deus, na linguagem desconhecida dos trovões. O conjunto era a ante-sala do inferno.

Continuou andado aos tropeções. Espinhos feriam-lhe a pele; cipós levados e trazidos ao sabor da ventania pareciam querer açoitá-lo. Valentino passou a ter a sensação de que seria impossível sair vivo daquele cenário de horrores.

“- Matar-me! É isso que eles querem! Não estão só me fazendo medo, não! Se o ofendido fosse só o caipora, ele teria me empurrado aqui e me deixaria perdido. Mas Deus, o deus de gente quer cobrar a mesma dívida! Ele quer que eu morra para me mandar ao inferno! Não! Eu não posso morrer! Não vou morrer! Não quero ir para aquelas fogueiras!”

Procurando escapar à morte, Valentino acelerou os passos, mesmo não tendo a mínima noção sobre onde se encontrava e qual direção a tomar. Na pressa, enroscou o pé numa raiz e foi cair de bruços sob um enorme tronco apodrecido. Ao virar-se, viu uma aranha na teia construída a poucos centímetros dos seus olhos. Devido à proximidade, a aranha lhe pareceu gigantesca, mil vezes maior que o normal.

A ilusão de ótica aliada ao temor da morte bloqueou completamente o poder de diferenciar o real da fantasia. Sentiu que aquele ser monstruoso preparava a rede para aprisioná-lo e este fato fez com que o terror atingisse o clímax fazendo com que algo se rompesse na sua estrutura psicológica. Deixou escapar um grito medonho e perdeu os sentidos.

A chuva caiu com força. A água fria banhando aquele corpo caído fez com que despertasse do breve desmaio. A aranha ainda estava lá: negra, peluda, enorme no seu ponto de vista. Agora, ela se balançava na teia devido aos pingos que, tocando os fios, faziam com que se movimentassem.

Valentino ergueu-se rápido e saiu dali - e foi a tempo, pois um raio veio atingir uma das árvores próximas de onde esti-vera caído. Novamente o garoto foi lançado ao chão e permaneceu com o rosto afundado nas folhas úmidas por instantes. Jamais supusera assistir de perto a espetáculo tão lindo quanto violento, luminoso e ensurdecedor. O fogo proveniente do raio foi apagado pela própria chuva sem maiores perigos ou prejuízos para a mata. Entontecido, Valentino se levantou e caminhou às cegas em razão da forte luminosidade haver lhe suprimido a visão momentaneamente.

“- Querem me matar mesmo! Quase conseguiram! Desta vez falharam, mas vão continuar tentando. Tenho de ser mais esperto que eles, perceber as armadilhas e me livrar delas.”

Após a tempestade, o céu clareou. Roupas molhadas, botinas encharcadas, Valentino andava feito sonâmbulo. O olhar estava vazio de expressão e não mais refletia o medo. Em seu espírito, a sensação de estar sendo perseguido por seres invi-síveis. A falta de expressão no olhar era amplamente compensada pelo trabalho mental não traduzido em palavras orais,

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com receio de ser ouvido pelas árvores: “- Deus pensa que não descobri o plano deles, mas aposto que sei tudo. Ele mandou parar a tempestade, mandou voltar a

cor azul do céu, mandou afrouxar o cerco só pra eu pensar que estou livre do castigo. Ele já ordenou ao caipora que me deixe sair da floresta. Tenho certeza que vou encontrar o caminho de casa, mas a perseguição vai continuar quando eu tiver saído daqui. Este é um acerto de contas entre Deus e eu. Afinal, já fiz o que não deveria fazer, não sirvo para mais nada mesmo! Já perdi a alma para o diabo... para que me conservar vivo? Vai ser uma briga de gato e rato; o gato quer ver o rato morrendo aos poucos, pedindo clemência antes do golpe último. Estou sentenciado à morte, mas vou fingir coragem, assim Deus saberá que não vai ser tão fácil acabar comigo.”

Deu um leve sorriso com um só canto da boca e continuou: “- A estas horas, a notícia do acontecido àquele passarinho já chegou à aldeia junto à notícia da minha condenação à

morte, mais a sentença ao inferno decretada pelo próprio Deus. As árvores já contaram umas às outras; cada uma passou o assunto adiante, em direção à vila. Aposto como já há planos em andamento para me liquidar. Não sei como, nem quem vai ser incumbido desta tarefa, mas eu descubro! O gato vai ficar admirado com a esperteza do rato. O ataque pode vir de quem eu menos esperar, mas estarei vigilante dia e noite.”

Lembrou-se da aula de catecismo da tarde anterior, que parecia ter acontecido há tanto tempo: “- Falei que Deus não poderia me mandar pro inferno se eu ficasse vivo e perguntei o que aconteceria se eu não morres-

se. Foi tudo brincadeira, só para desnortear o padre e aqueles bobocas que me olhavam com superioridade. Mas agora não é brincadeira! Não vou morrer mesmo! Só quero ver como é que eu vou entrar no inferno, com corpo e tudo!”

Como que corroborando com o raciocínio de pouco antes, Valentino reconheceu uma pista do lugar onde se encontrava e, daí em diante foi fácil encontrar o caminho de casa. Sentiu-se desde já vencedor daquele acerto de contas:

“- Não disse? Não disse que iam me deixar sair? Pois deixaram! Isto prova que sou mais esperto que todos os deuses juntos, pois descobri logo de cara, as intenções de me deixar vivo por enquanto. E, se concluí certo este detalhe é porque estou na pista certa quanto ao resto. Agora, é ter o maior cuidado e não ir confiando assim, sem mais nem menos, em qual-quer um. Nem planta, nem bicho, nem pedra, nem nada! Nunca mais vou conversar com nenhum deles.”

VI

A Vila Verde estava lá, do jeitinho como Valentino a havia deixado. Apenas vestígios da tempestade estavam presentes

mas, aos seus olhos aquela aldeia já não era mais a mesma; estava recebendo-o com frieza, expressões de hostilidade camu-flada em indiferença. Percebia uma coisa conversando com a outra, à sua passagem - no entanto, só conseguia entender banalidades.

“- Mudam de assunto quando chego perto. Fingem não me ver.... cada pé de capim, cada ramo caído, tudo me dá as cos-tas. Viraram meus inimigos!”

Fez de conta que não percebeu e chegou em casa. A porta dos fundos estava trancada por causa da chuva e ele entrou pe-lo lado da loja. Viu a mãe que, no momento, estava de costas - e sentiu-se em segurança. Ela não deixaria que o maltratas-sem. O cachorro deitado junto à porta levantou e correu-lhe ao encontro, fazendo festas. Valentino ajoelhou-se, abraçou-o com força:

“- Cacau é meu quase irmão. De um irmão, não preciso ter medo.” Virando-se, a mãe o viu. Abriu um sorriso por vê-lo em segurança depois daquele quase dilúvio. Saiu de trás do balcão e

se aproximou, dizendo num misto de carinho e censura: - Graças a Deus você voltou! O que aconteceu que se atrasou tanto? Ainda ajoelhado ao lado do cão, Valentino ergueu o olhar para a mãe sem responder de pronto, como se não houvesse

entendido a pergunta. Não se lembrava direito dos fatos que antecederam à morte daquele pássaro; nem ao menos conseguiu recordar o que o levara fora de casa, naquele dia.

- Responda, filho! Por que demorou tanto a voltar? Ao mesmo tempo ouviu-se a voz da irmã, cuja presença Valentino não havia notado: - Achou o ninho da galinha? Só então veio-lhe à lembrança os ovos que procurara com insistência e só então, encontrou o que dizer: - Não, eu não achei; e foi por isso que me demorei. Mas amanhã encontro aquele ninho, nem que leve o dia inteiro né,

Cacau? Amanhã, você vai me ajudar e juntos, a gente é invencível. - acariciou o animal, fugindo a maiores detalhes. - E onde se escondeu durante o temporal? - insistiu D. Edna. - Choveu aqui também? – espantou-se Valentino, que acreditara ter sido a tempestade apenas sobre si mesmo. - Ora, filho, que pergunta! Decerto que sim! Onde você se escondeu da chuva? - Naquelas pedras grandes lá perto do Brejão. Anita não deixou de dar um sorriso sarcástico:

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- Brejão? Você foi procurar ovos no Brejão? Acha que galinha é tonta de fazer ninho na água? A mãe ajoelhou-se, segurou-o pelos ombros, examinou-o atentamente: - Você está todo molhado, rasgado, arranhado. Veja, todo esfolado! E há sangue em sua camisa. Como foi isso? Você se

machucou? Valentino sentiu-se estremecer ao ouvir falar naquele sangue - estremecimento que, à mãe, não passou despercebido. Ele

não respondeu; limitou-se a observar suas roupas e ferimentos. Demorou o olhar naquele resto de sangue, mancha perdida no meio da sujeira e viu-se de novo segurando o passarinho de encontro ao peito. E inventou:

- Isso não é sangue. É sujeira daquelas pedras onde estive. Elas são vermelhas e eu fiquei encostado nelas. - E por que o arrepio? Vá! Vá depressa antes que se resfrie de vez. Tire as roupas molhadas, tome um banho quente, pas-

se desinfetante nestes machucados; e depois vá almoçar, que passou o dia todo sem comer. O garoto entrou em casa levando a fisionomia carregada, olhar sem vivacidade, andando por andar. Fez o que a mãe

mandara fazer e depois trancou-se no quarto em companhia de Cacau. Lá dentro contou-lhe o que aconteceu desde que saíra de casa. O animal ouvia atentamente, sem fazer perguntas.

- Você nem faz idéia! Venha ver! Sinta como o coração dispara quando penso naquela aranha! - segurando a patinha do cão, encostou-a ao próprio peito. - Está sentindo? Só de lembrar fico deste jeito. E veja como fico arrepiado, só em falar nela! Olha como minhas mãos tremem. Um horror! Pois nem o raio que quase me matou me amedrontou tanto quanto aque-la aranhona!

Olhou dentro dos olhos do cachorro, esticou o indicador em sua direção: - Isso é segredo, heim! Contei pra você, mas não vá sair por aí espalhando. - ... - Nem pensar! Nem minha mãe, nem meu pai! Aqui em casa, ninguém deve saber. Pense bem: do jeito que a minha mãe

é preocupada, é capaz de morrer, se souber. - ... - Saber o quê? Vou ter de explicar tudo de novo? Ela não pode nem sonhar que estou condenado à morte. Nem à Anita

você conta, mesmo que ela insistir muito. Promete? O cachorro prometeu. - Então, está combinado. Se alguém ficar sabendo é porque você contou, entendeu? Confio em você, amigão! Agora,

pronto! Vá brincar lá fora e se faça de bobo. Preste atenção em qualquer assunto relacionado a mim. Qualquer coisa estra-nha, me avise. Pode ir, que vou descansar.

VII

Na loja, a proprietária atendia aos poucos fregueses. Uma ruga de preocupação lhe riscava a testa pelo marido que não

chegara ainda. Temia que a chuva houvesse afetado a estrada, a ponto de impedir-lhe a passagem. Vez ou outra, Anita ia espiar pela porta da rua:

- Ele não vem vindo ainda, mãe. E já é quase hora da janta. Depois, as perguntas e os comentários, aos quais a mulher respondia sem prestar atenção: - Será que ele vai trazer minha boneca? Estou com uma saudade da minha filhinha! Sabe, D. Edna, a Lúcia, minha filha,

foi passar as férias na casa da tia dela na cidade, mas precisa voltar porque as aulas vão começar hoje à noite. Se perder aula, repete o ano. E o pai prometeu uma surra se ela não passar. Eu não gosto de bater nela, mas o pai... sabe como são os homens... - depois de uma pausa, um quase monólogo - Já sei! Eu vou trocar o nome dela. Já enjoei daquele nome. Tam-bém! Já faz quase um ano que ela se chama Lúcia. Vi na revista, outro nome: Eliana. Eliana é muito mais bonito, não é? Heim mãe? Não é?

- É o quê? - Eliana não é nome mais bonito que Lúcia? - É. - Então, pronto! A minha filha se chama Eliana. Manhê, a Eliana vai demorar muito a chegar? - Não. - Então... - virando-se para o cão: - Cacau, vem cá outra vez. Enquanto a Lúcia... Lúcia, não! Enquanto a Eliana não

chega, você vai ser o meu filho. Vem nanar no meu colo, depois faço a sua mamadeira. Valentino deitou-se, dormiu e teve pesadelos em que a Floresta dos Morretes havia se transformado em inferno, tendo

uma aranha negra o tempo todo a persegui-lo. Era um sono inquieto, sem descanso para o corpo nem para a mente.

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15 DE AGOSTO - 5ª FEIRA

I

- Eu quero de amarelinha! - Brinquedo de mulher? Nada disso! A gente vai brincar é de barata! - Barata no alto? - Barata sem fim. - Vale figa? - Sem figa. - Ah, não! Cansa muito! - Então, vá brincar de roda com as meninas. - Tudo bem! Barata sem fim, sem figa, sem nada. Primeiro ano entra? - Entra quem quiser. - Café-com-leite? - Café-com-leite. Vamos! Quem quiser brincar, vai começar. É barata sem fim, café-com-leite! Uma porção de crianças rodeou aquele que ia dar início à brincadeira. Valentino não brincava nem perdia tempo em observar a correria. Estava parado junto à cerca de arame farpado apoiado

numa estaca, de costas para os companheiros. Olhava atentamente a casa que estava sendo reformada, já em fase final de acabamento. Ninguém diria que, dentro dele, houvesse se processado alguma mudança, mas os episódios dos dois últimos dias modificaram sua estrutura psicológica. Estava condenado à morte - e ao inferno - e procurava indícios de armadilhas em todos os seres, vivos ou não, que estivessem à sua volta. A mania de perseguição que passou a sofrer fazia com que visse expressões hostis em todas as coisas que antes, eram suas amigas. Aquela casa em reformas por exemplo, até ontem era uma casa contente por estar ficando bonita, ansiosa por conhecer os novos moradores. Hoje, aquelas janelas que pareci-am olhos fingiam não vê-lo ali parado. A casa só não o agredia por estar com os pés fincados no chão, mas desabaria sobre ele se entrasse por aquela porta que, retorcida, parecia desprezá-lo.

“- Ela nem liga pra minha desgraça e nem procura disfarçar. Estou aqui faz tempo e ela nem me olhou, não me disse na-da. Parece mentira que ainda ontem reclamava do calor, querendo saber se dentro da escola é mais quente que aqui fora. Não serei eu a puxar prosa.”

Saiu e atravessou, imperturbável, como se estivesse sozinho naquele quintal, o bando de crianças que corriam. Parou junto à cerca oposta que separava a escola do terreno de eucaliptos. Olhou para cada uma das árvores e não captou pensa-mento algum que pudesse alegrá-lo. Nem um bom-dia ouviu em resposta quando as cumprimentou. Que diferença dos dias anteriores quando, nem bem o viam chegar, cada qual queria falar mais que a outra, perguntando coisas, contando coisas!

Desviou o olhar para o chão. Ao fazê-lo viu um formigueiro ali, no outro lado da cerca. Era um formigueiro pequeno e Valentino se admirou por nunca havê-lo notado.

“- Pudera! Como notar, se os eucaliptos falavam tanto que nem dava conta de ouvir e responder a todos?” Ficou de cócoras, observando o entra e sai das formigas. “- Nunca conversei com elas. Será que me conhecem? Acho que vou puxar prosa. Pode ser que, por nunca termos con-

versado, elas não sejam ainda minhas inimigas.” - pensou no que diria aos bichinhos e, por fim, resolveu que não diria coisa alguma: - “Não! Se eu falar, pode ser que elas não respondam e aí sim, os eucaliptos vão ficar caçoando de mim. Pode ser que as formigas não estejam sabendo de nada ainda mas... e se estiverem? Como vou ter certeza? É melhor não arriscar.”

II

O ônibus apareceu lá na estrada. As crianças pararam as brincadeiras e, trombando no portão, atravessaram-no. Junta-

ram-se no lado de fora à espera do desembarque das professoras, para aquela disputa de ver quem levaria suas bolsas mais os cadernos para as salas de aula. Menos Valentino, que não desviou o olhar do formigueiro.

15 de agosto. Hoje é quinta-feira. Ontem, depois da aula, fui procurar o ninho daquela galinha preta e, sem querer -

palavra de honra que foi sem querer - matei um passarinho. Matar passarinho é pecado mortal e a minha cota já estava

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vencida. Enterrei ele e fiquei arrependido. Mas não adiantou nada o arrependimento porque os deuses nem ligaram pra ele. O Deus de verdade não gostou e já veio me castigando. O castigo foi assim: primeiro, fez o céu escurecer de repente e depois ficou bravo comigo. A voz dele quando fica bravo, parece um trovão, igualzinha a um trovão de verdade, de tão forte que é. Mas não entendi o que ele disse, parece que falou noutra língua, acho que em alemão.

Depois, veio o Caipora e me empurrou pra Floresta dos Morretes e eu nem percebi. Nem vi a hora que atravessei o Brejão, que atola até o meio da canela. Ele me empurrou com toda força e me deixou perdido lá dentro.

Quando eu já não sabia mais sair, o Deus de verdade mandou ventania, trovão, relâmpago e bastante chuva. Ele deu ordens para que a mata acabasse comigo. As árvores me arranharam, me bateram, me derrubaram no chão. Parece que eu andava, andava e não saía do mesmo lugar.

Teve uma hora que foi a pior de todas: uma árvore me deu um empurrão e caí bem embaixo de uma aranha preta e pe-luda, que media mais de um metro, sem contas as pernas. Com perna e tudo, ela media uns três metros.

Olha, caderno: o que senti naquela hora, nem sei falar pra você. Parece que foi um estremecimento, uma pancada na cabeça, um chocalhão, um choque elétrico, nem sei explicar direito. Senti isso tudo aqui dentro da minha cabeça, você acredita? Foi um medo tão grande, um pavor, que acho que até desmaiei. Quando acordei, estava chovendo - mas a ara-nha ainda estava lá se balançando, tomando impulso pra me cair em cima com rede e tudo. Não sei como escapei daquele monstro. Até agora o coração dispara quando eu lembro dela. E a cabeça zune, sinto uma coisa ruim.

Quando Deus viu que a aranha não deu conta de mim, jogou um raio que caiu pertinho de onde eu havia acabado de levantar. O raio me empurrou e tornei a cair. Fiquei surdo por quase meia hora por causa do barulho e meio cego por causa do clarão. Mas entre a aranha e o raio, prefiro o raio. Prefiro dois raios, mas nunca mais nenhuma aranha!

Depois, Deus mudou de plano. Pediu ao Caipora que me deixasse sair da floresta porque queria que eu sofresse muito mais antes de morrer.

Umas árvores - aquelas que me viram matando o passarinho - passavam a notícia do meu crime adiante; e as outras árvores - aquelas dos Morretes – iam contando o que estava acontecendo comigo dentro da mata. Virou uma confusão de mexerico, até que elas entenderam que, por causa do passarinho que matei, Deus tinha me condenado ao inferno. Mas para que se possa ir ao inferno, é preciso morrer primeiro. Por causa disso, Deus queria me matar.

A notícia foi subindo, até chegar na Vila Verde. Agora, a aldeia já sabe que eu vou morrer e todos vão ajudar, com ar-madilha em cada canto. Tudo me olha com rancor, ou finge que não me vê.

O plano de Deus é assim: ele quer que eu pense que escapei da morte e me descuide. Quando eu estiver desprevenido vou ser atacado na hora que menos esperar.

Mas já resolvi que não vou morrer. Quero só ver como Deus vai me mandar pro inferno, enquanto estiver vivo.”

III

À hora do intervalo, Valentino voltou a observar aquele formigueiro. Sentado no chão comeu o lanche, oferecendo algumas migalhas aos insetozinhos que as carregavam para o interior da-

quele orifício cavado na terra. O garoto tinha a intenção de ganhar a amizade das formigas a fim de não se sentir tão só. Mas precisava ir com calma, aos poucos, sem assustá-las até que vissem nele uma pessoa inofensiva. Em outra época - ontem mesmo - ele teria ido direto à conversa sem ter de preparar terreno; agora, desconhecendo até que ponto as formigas sabiam seu segredo, achou melhor não precipitar. As migalhas do lanche eram um agradozinho para que o considerassem amigo.

Acabou de comer, encostou a cabeça no pau da cerca para que os bichinhos pudessem observar sua intenção de não lhes fazer mal. Imóvel, sorriso nos lábios, atitude pacífica vendo aquela fila que entrava e saía do formigueiro. A procissão dos minúsculos bichos começava em pequena abertura circular rodeada por um montículo de terra vermelha; alongava-se cheia de sinuosidade para dentro do terreno de eucaliptos desaparecendo logo adiante, entre folhas secas. As formigas movimen-tavam-se de modo normal, bem do conhecimento de Valentino: encontravam-se ao longo daquele enfileiradinho, paravam, tocavam-se de leve como que se beijando e recomeçavam a andar, sempre parando para aqueles incansáveis contatos frente a frente - beijos de formiga.

Aos poucos, o sorriso foi desaparecendo do rosto de Valentino. Estudando o gesto de cada bichinho, algo agitou-se den-tro dele. A fisionomia descontraída deu lugar à desconfiança:

“- Estão cochichando!” - procurou descobrir o que diziam; esticou o pescoço, aguçou o órgão da audição, ficou em si-lêncio profundo tentando captar alguma palavra, mas não conseguiu entender coisa alguma – “Falam baixo demais. Se fa-lassem coisas inocentes, conversariam em voz alta. Se cochicham é porque não querem que eu ouça... e se não querem que eu ouça...”

Ergueu o olhar aos eucaliptos à sua frente e percebeu risos camuflados, trejeitos de quem espera com ansiedade mal dis-farçada, o que está para acontecer.

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“- Estes ares de felicidade, estes olhares de banda... eles sabem o que as formigas tramam.” Olhou de novo para as formigas e sentiu um arrepio gelado: “- Elas querem me agredir!” Levantou-se rápido. Deu um passo atrás, mas não se afastou. O pensamento trabalhava depressa tentando explicação pa-

ra o comportamento das formigas e concluiu que elas decidiram atacá-lo em massa. O ataque seria naquele mesmo dia, quando Valentino passasse de volta da escola. Alongando o olhar para a direção onde desaparecia de vista aquela carreiri-nha sinuosa em movimento, viu que ela se dirigia à estrada. Para ter certeza saiu para a estrada e, realmente, a procissãozi-nha de formigas continuava lá fora.

“- Ali! O local é entre minha casa e a escola, em frente ao terreno de eucaliptos. Todas as formigas da aldeia já estão se encaminhando para lá. Milhares! Milhões delas! Por isso, estas aqui fingiram não me notar. É isso mesmo! As lideranças estão voltando, apressando as companheiras! É isso que elas cochicham quando se encontram.” - deu uma espiada nas árvo-res, com ar de troça: “- Pensavam que eu não fosse descobrir? Não vai ser tão fácil pegar o rato!”

Ainda é 15 de agosto. O recreio já acabou. No intervalo, percebi um sinal de ataque contra mim. Na estrada, entre a escola e minha casa, um bando de formigas tentarão me matar. A cilada está marcada para hoje, no

fim da aula. Portanto, será ao meio-dia. Não pensei ainda num jeito de escapar. Eu poderia deixar de passar pela estrada cortando caminho entre os eucaliptos, mas a Anita é curiosa e vai querer sa-

ber os motivos.” - Valentino, você está no mundo da lua? - Heim? O que disse, D. Maura? - Estou esperando resposta à pergunta, oras! - A senhora falou baixo e não ouvi direito, Pergunte outra vez. - Você anda distraído, mocinho! O que tanto escreve? Deixe-me ver! Enquanto a professora se voltou para deixar o giz no aparador, Valentino virou rapidamente o caderno para a posição

correta. Ela chegou, procurou e não viu coisa alguma de anormal. O último trabalho que figurava no caderno era justamente o tema da aula: interpretação de um texto de leitura, cujas respostas o garoto havia elaborado corretamente.

A mulher retornou à frente da sala e Valentino ficou à espera da pergunta: - Quero que leia a primeira resposta da interpretação. O garoto se ergueu da carteira e leu: - O texto é uma fábula. Título: A cigarra e a formiga. O autor é La Fontaine. - olhou para a professora e falou, por sua

conta: - Na minha opinião, este Senhor La Fontaine era muito mau, senão não teria inventado uma história como esta! Co-mo é que se pode recusar comida a quem está com fome?

- Esta fábula foi escrita para valorizar o ato de trabalhar. - É? E cantar não é trabalho? Alegrar a vida de quem labuta não é coisa boa? Já pensou se não existisse quem cantasse,

como seria triste a vida de todo mundo? Neste caso, este La Fontaine também tinha de passar fome. - E por quê? - admirou-se a professora. - Ele não era escritor? - Sim. - Escritor não é artista? - Sim. Cantor não é artista? - Também. Mas o que tem uma coisa com a outra? - E trabalhar é só carregar peso? La Fontaine carregava peso, por acaso? Não senhora! Ele ficava lá, sentadinho na som-

bra escrevendo fábulas, enquanto os outros carregavam peso. Portanto, ele não trabalhava coisa nenhuma! - Valentino, eu acho que você está... - Pois se escrever é um trabalho, cantar também é! E mesmo que não fosse, não se pode negar comida a quem pede. Sem poder desmentir o menino, a mulher disse à classe: - O Valentino tem razão. Esta fábula foi escrita numa época em que, para viver era preciso trabalhar no pesado. Não e-

xistia conforto algum e, cantar não era considerado trabalho decente, principalmente às mulheres. A fábula representa o pensamento daquela época. Hoje, infelizmente, a mesma fábula faz um elogio à maldade. - e voltando-se para Valentino: - Mais algum comentário?

- Mais um: A gente sabe que os tempos mudaram, mas formigas de hoje não ficaram sabendo. Elas continuam maldosas e vingativas. Só isso.

D. Maura não entendeu, mas não entrou em detalhes sobre a colocação tão fora de propósito. Permitiu que o menino se sentasse e continuou a série de perguntas aos demais alunos.

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Valentino abriu outra vez o caderno ao contrário e acrescentou: 15 de agosto, ainda. É a terceira vez que escrevo hoje. Escrevo só pra contar que a D. Maura quase me pegou escre-

vendo aqui. Se pegasse, eu ia ter de explicar. Sei que ela ia ficar preocupada, talvez até quisesse me ajudar, mas neste mundo ninguém pode me livrar da maldição. Também não quero misturar ela, nem ninguém, nos meus problemas. Tenho de sofrer sozinho o pecado que fiz.

Olha, caderno, não sei se você percebeu, mas eu enrolei sobre o La Fontaine e sobre as formigas de hoje, só pra profes-sora me deixar quieto no canto. Não sinto vontade de conversar.”

IV

No minuto seguinte, faltando ainda mais de uma hora para o meio-dia, ouviu-se o barulho do ônibus que voltava. Na

tempestade do dia anterior uma ponte havia sido danificada e o veículo não pôde passar daquele ponto da estrada. Assim, estava de regresso bem antes do horário normal.

Os cadernos foram recolhidos às pressas. D. Maura trancou o armário mas, antes de despedir as crianças, orientou-as no sentido de irem direto para casa, sem paradas no caminho. Estavam saindo antes do horário e que o fato não as levasse a fazer traquinagens. Depois saiu acompanhada por D. Zuleica, que dera instruções semelhantes aos seus alunos.

O coletivo já estava parado, à espera de ambas. A meninada ficou eufórica com a saída antecipada - menos Valentino, que receava passar naquele trecho da estrada. Fi-

cou demorando, tentando ganhar tempo para pensar, enquanto Anita esperava por ele, cheia de impaciência: - Vem, Valentino! Por que demora tanto, heim? - Pode ir na frente. - Não senhor! Se eu chegar sozinha, posso até levar uma surra. - Olha só! De tanto você falar, desamarrou o cordão do meu sapato! - Nunca vi desamarrar sapato, só por causa de falação. Amarre, eu espero. Valentino se abaixou e ficou mexendo no cadarço, pensando numa maneira de escapar às formigas. Ele temia também

pela irmã. Na hora da agressão ela poderia ser atacada junto se estivesse em sua companhia e, mesmo que não o fosse, fica-ria muito assustada quando o visse coberto por formigas, retorcendo-se e gritando até morrer. A solução por fim, bateu naquela cabecinha em descontrole:

“- Elas me esperam ao meio dia e ainda não são onze horas!” Satisfeito, pegou o material do chão e começou a andar: “- Eu poderia passar correndo por aquele trecho, deixando as formiguinhas com cara de tontas; porém se eu fizer isso, amanhã elas vão estar lá outra vez, com reforços e muito melhor organizadas. Ou então... credo em cruz! podem até invadir meu quarto, enquanto durmo! O mais certo é resolver tudo agora e mostrar minha superioridade. Se estou levando vantagem por causa do horário, preciso aproveitar.” - e, em voz alta: - Vê se anda rápido, Anita!

- Deu pressa agora? - Não amole e ande depressa. Parece tartaruga! - Então, vamos correr. - Não. Tenho um servicinho a fazer e não pode ser feito correndo. Saíram para a rua. Valentino procurou aquele enfileiradinho de formigas e foi, passo a passo, pisando-lhe em cima, es-

magando-as com movimentos rotativos dos pés. Ria, ao perceber como os minúsculos animais perdiam o ritmo da caminha-da. Sentia curiosidade de ver bem de perto aquelas carinhas apavoradas sendo mortas justamente por quem iam eliminar. Atônita, Anita fixou a cena, com horror:

- Pare com isso! Por que está fazendo assim? Não obtendo resposta além daquele riso satânico, a garota pôs-se a chorar: - Chega Valentino! Elas não estão picando a gente! Pare! Ele continuava a matar, a pisar com ódio, a esmagar cheio de fúria, rindo sempre, gargalhando por aquele plano que

conseguiu frustrar tão facilmente. Matou todas quantas viu. Depois, puxando a irmã, pôs-se a correr. Entraram pela loja. A garotinha chorava ainda e Valentino trazia largo sorriso. Sumiu casa adentro, à procura de Cacau. D. Edna estava na parte comercial da casa, enquanto que o marido almoçava. Percebendo que algo não estava bem com

sua menina, foi-lhe ao encontro. Anita quase não conseguia explicar. Entre soluços, foi contando: - Foi o Valentino, mãe... ele matou todas... todas elas... - Todas quem?

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- Coitadinhas... elas não estavam fazendo nada de mal.... - Elas quem, Anita? - As formigas, mãe! - O que é que tem as formigas? - O Valentino matou elas. - Quais formigas? - Aquelas... que o Valentino matou. - Assim não dá, eu consigo entender. - Ele matou formigas, mãe! - Isso você já falou. O Valentino matou formigas. E daí? - A senhora não entende! – quase gritou Anita. - Pois eu quero entender. Um momento! - fez a filha sentar-se numa cadeira, ajoelhou-se à sua frente, enxugou-lhe as lá-

grimas com o avental - Pronto! Agora fale devagar, sem choro. O que aconteceu? - Sabe, mãe, eu sei que formiga pica a gente. Sei também que se todas as formigas do mundo morressem seria até bom,

porque elas comem folha de roseira, acabam com as plantas. Sei isso tudo... - Então? Se sabe, por que chorar por causa da morte de formigas? - O jeito dele, mãe! A senhora precisava ter visto! Ele ia pisando assim: - a garotinha desceu da cadeira e foi reproduzin-

do com os pés, aquilo que vira o irmão fazer - Ele ia pisando assim, assim, pisando, pisando, matando... e rindo! Ele ria, mãe! Ria de verdade, com toda força, bem alto, precisava ver a cara que ele fazia! Parecia que estava com bastante ódio mesmo! Parecia um louco, eu acho até que estava meio louco - e recomeçou a chorar.

A mulher abraçou a filha: - Tudo bem, querida. Vou falar com seu irmão e ele vai ter de me explicar direitinho esta história. - ficou pensando num

modo de distrair a atenção da menina, até que se lembrou: - Ah, tenho uma surpresa pra você! Seu pai trouxe da cidade, sabe quem? Quem? Não sabe? A Eliana!

Anita ergueu a cabeça fixando a mãe: - Quem o pai trouxe? - A Eliana! - Quem é a Eliana? - Sua boneca, querida! - Minha boneca é a Lúcia. - Ontem, você mudou o nome dela. Lembra? O rostinho da pequena se iluminou: - Ah, A Eliana! Quando? Quando foi que ela veio? - Ontem à noite. Seu pai chegou com ela no colo. - Por que a senhora não me contou ontem? - Ela estava dormindo. Chegou cansada da viagem, coitadinha! - E hoje cedo? Por que não me contou hoje cedo? - Se eu tivesse contado, você teria ido à escola? - Hmmm... não sei. Acho que não. - Pois então! Assim, ela pôde descansar e você não perdeu aula. Vá! Ela já acordou e está querendo colo. - Onde ela está? - Em cima da sua cama, numa caixa nova, grande e muito bonita: caixa branca, com flores azuis. - Caixa nova? Que bom! A caixa velha estava toda rasgada. Agora, a Eliana tem berço novo! Com estas notícias, Anita esqueceu as formigas. Entrou na casa e, atrás de si, ficou a mulher preocupada com a atitude

do filho, tão diferente do normal. Quando o vendeiro acabou de almoçar e voltou à loja, a esposa relatou o ocorrido e perguntou: - O que você acha? - Acho bom. Quando a vizinhança souber, ele será contratado para acabar com as pragas da lavoura. - Não é brincadeira, Leonel! - a voz dela se alterou: - Estou falando sério! - Como sério? Matou formigas. O que há de errado em matar formigas? - Ele tem matado passarinhos, treinando pontaria. – e mudando de fisionomia, simulou a voz do marido, com certo traço

de chacota ofensiva: - Ah, tinha de aprender a usar estilingue, não é mesmo? Homem que é macho precisa saber usar uma arma, não é assim e todos estes machões aqui da vila falam? Era uma imposição, uma obrigação idiota pra não ser chamado de maricas. Você mesmo dizia isso, lembra?

- E agora matou formigas. O que são formigas, Edna? Uns insetozinhos de nada perdidos pelo chão que a gente mata a todo momento, o dia inteiro, pisando sem ver. Por que tanto drama?

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- Matar com ódio? Com tanta satisfação, com cara de louco a ponto de assustar a irmã? Este ódio é que não está certo e isso eu quero que você entenda! Não é pelas formigas, mas pelo que ele sentiu ao matar!

- É.... pode ser - ponderou o marido, pensativo: - Eu também... eu... - Você também o quê? Por que parou? Notou alguma anormalidade? - Não, não é isso. Achei estranho que eu tenha chegado da cidade e ele não estivesse me esperando acordado, saber se

havia comprado livros. Agora mesmo ele falou comigo na cozinha e não perguntou sobre livros. Fiquei esperando e nada! - Você comprou? - Claro que comprei! Ainda estão no caminhão. Ele não perguntou pelos livros! Imagine, Edna! O Valentino sabendo

que pode haver leitura nova e não procurar por elas! Isso eu estranhei, sim!

V

Na cozinha, as crianças almoçavam. Anita, com a boneca no colo conversava com ela, ensinando-lhe boas maneiras e a

ser boazinha quando crescesse: - ... A Dona Maura falou que não pode comer com a boca aberta, nem ir pra cama sem banho. E o Padre Nicolau falou

que não pode nem matar passarinho, nem formiga, nem nada! Quem mata bicho é criança má. O anjinho de guarda não protege gente ruim.

Deu uma olhada de viés para o irmão, como se fosse a ele que estivesse se dirigindo e já esperava por briga que, para sua surpresa, não aconteceu! Neste momento ouviu-se o canto daquela galinha preta nalguma parte do terreno de eucaliptos. A reação de Valentino foi um leve estremecimento como se aquele cantar lhe representasse sofrimento moral e físico; mas não se mexeu nem fez qualquer comentário, aumentando a surpresa da irmã.

Aquela atitude do rapaz quebrava a rotina de todos os dias, desde que ele estava sempre na pista de algum ninho de gali-nha. A partir de então, não mais se viu Valentino à procura de ovos.

Quebrando a rotina também, naquele dia ele não saiu de casa. Ficou com o Cacau no quarto desenhando uma aranha cheia de pernas, numa teia cujos fios lembravam cordas. Vez ou outra ia espiar pela janela. Percebia que qualquer coisa grave estava acontecendo lá fora.

- Anita, já almoçou? - Já. - E o Valentino? - Também. - Decerto, ele foi procurar ninho de galinha. - Não... hoje ele não foi. Por que será, heim? D. Edna ponderou aquele comentário, como se ele só viesse confirmar suas dúvidas. Respondeu: - Valentino está com o corpo dolorido pelos arranhões de ontem. É natural que não vá. - Corpo doendo? Na hora de ficar pulando em cima daquelas formigas, não tinha dor nenhuma. - Esquece as formigas, Anita. - E será que dói tanto o corpo, que tenha de ficar trancado no quarto? - É, meu anjo. Em se tratando do Valentino, é um disparate passar o dia em casa. Um dia tão bonito! - Sabe, D. Edna, a conversa está boa, mas preciso ir embora. - Tão cedo, D. Anita? Espere o lanche, o jantar e durma aqui também. - Não! Preciso trocar a fraldinha da minha filha. Mais tarde eu volto. - Não precisa se incomodar! Pode ir e ficar por lá, D. Anita. - Mas eu volto assim mesmo. - Então, a senhora aproveita pra me ajudar a lavar a louça do almoço e a passar roupas. - Neste caso, não volto. A Eliana, acho que está com sono e vou ficar em casa com ela.

VI

Trancado no quarto, Valentino descobriu outro projeto mortal contra si. Pela janela, via alguns pássaros que voavam en-

tre as árvores do quintal. Voavam e cantavam num alarido familiar mas que, naquele dia assumia significado diferente. O rapazinho sussurrou ao cachorro:

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- Descobri! Os pássaros souberam que o plano das formigas falhou. É lógico! Com a Anita fazendo aquele escândalo! Eles ouviram os gritos dela e foram espiar o que se passava. Assistiram à matança das formigas quietinhos, empoleirados nos galhos dos eucaliptos. Depois fizeram uma reunião no ninho de um deles e decidiram. Agora, estão preparando projeto próprio de ataque.

Ergueu-se e foi dar outra espiada na movimentação das aves. - Já estão convidando passarinhos de fora, pra ajudar. Não vi nenhum diferente até agora, mas não vão demorar a apare-

cer. Vai ser um ataque maciço. A voz do pai interrompeu a confabulação: - Valentino, onde está você? - Aqui, pai! No quarto, fazendo tarefas de escola! - Venha me ajudar com esta mercadoria. - Estou indo! - fechou a janela para que as aves não entrassem enquanto estivesse fora e saiu. A ajuda que o pai queria era no descarregamento das compras feitas no dia anterior. O veículo estava estacionado na ga-

ragem, à esquerda da loja. Tomando certo cuidado, podia-se ir e vir sem ser visto pelos passarinhos reunidos nas árvores da direita. Valentino ajudou no descarregar, no transportar, no guardar cada coisa em seu lugar; ajudou a servir um freguês falando o menos possível, para que não fosse ouvido pelas aves.

- Pronto, pai. Posso ir? - Quanta pressa! Aonde você vai? - Ao meu quarto, acabar a tarefa de escola. Falta bastante ainda. - E o que vou fazer com os livros que trouxe da cidade? Valentino encarou o pai espantando-se, ele mesmo, por não haver perguntado pelos livros. Sentiu porém, que precisava

fingir interesse, caso contrário o pai ficaria de sobreaviso. Fingiu bem. Conseguiu abrir a fisionomia num sorriso, que che-gou a se parecer com ansiedade mal contida:

- O senhor comprou? - E eu ia esquecer? Estão atrás do banco, numa caixa de papelão. Traga a caixa, com tudo o que está dentro... e cuidado

pra não derrubar, que tem coisa que quebra. Procurando agir com naturalidade, Valentino trouxe a caixa. Retirou os livros fingindo deliciar-se com os títulos - quan-

to poderia deliciar-se de verdade, noutra ocasião! - e voltou correndo para o quarto: - Obrigado, pai! - e para o cachorro: - Aqui, Cacau, vamos! Fechou a porta do quarto e abriu a janela: - Venha ver, Cacau! Recuou para um canto, deixando espaço para que o animal pudesse enxergar lá fora. Como o outro não se aproximasse,

olhou-o de modo interrogativo. E concordou: - Ah, desculpe! Esqueci que você não alcança. Sempre esqueço que você não é gente. Vem no meu colo. E, juntos, ficaram observando o que acontecia lá fora: - Está vendo só? Não falei que é um ataque? Olhe lá, naquele galho! Você conhece aquele passarinho meio marronzi-

nho? - ... - Nem eu. Foi convidado a ajudar no massacre. Veja se descobre mais algum desconhecido. Você procura do lado de lá,

e eu do lado de cá. - ficaram mais alguns minutos e depois: - Pronto! Pode ir brincar lá fora, que eu fico tomando conta. Colocou o cachorro porta afora e a trancou. Para ter o que fazer enquanto esperava, escolheu um livro e começou a ler,

desinteressado. Tinha de ler mesmo sem vontade, para que não estranhassem seu comportamento. “- Aliás, meu pai já des-confiou. Que burro que eu fui! Nem me lembrei dos livros! Coitado do meu pai! Que choque vai ter quando souber que fui sentenciado à morte e que perdi a alma para o diabo!”

De tardezinha, a costumeira revoada dos pássaros foi um sofrimento para Valentino. Banhou-se rapidamente, jantou so-

bras do almoço para não ser importunado na hora que julgava ser o ataque. Depois, coração disparado, tremendo de medo, colocou o cachorro dentro do quarto a fim de não enfrentar sozinho o perigo. Trancou porta e janela, sentou-se no chão na leve penumbra, em silêncio total. Abraçou o cão e, vez ou outra, sussurrava:

- Eles vão ter de ir embora, não precisa ficar com medo! Nós não vamos sair daqui e eles não podem entrar... Você acha que eles conseguem derrubar a janela?

- ... - Eu também. Mesmo assim, a gente não pode descuidar. O resto da tarde se arrastou e começou a escurecer sem que Valentino ousasse se mover, até que não se ouvisse mais ba-

rulho algum vindo lá de fora. - Pronto, amigo! Não falei que não precisava ficar com medo? Cansaram de esperar e deram o fora. Amanhã cedo vão

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estar aí de novo, tentando. Por hoje, o perigo passou.

16 DE AGOSTO - 6ª FEIRA

I

Valentino pouco dormiu naquela noite e, quando dormia, tinha pesadelos. Revolvia-se no leito, acordou várias vezes as-sustado, coração disparado, sentindo medo de voltar a dormir. Escuro ainda e, apesar da noite mal dormida, já se encontrava desperto, amedrontado pela possibilidade de um ataque de pássaros. Era preciso pensar num plano de defesa pois, à hora da escola estaria sem a proteção das paredes da casa - mas nenhum pensamento viável lhe ocorria como saída.

Pouco a pouco, os pássaros iniciaram as cantorias de todas as manhãs e, como sempre, cada um parecia querer disputar a honra de ser o mais barulhento. Imóvel, Valentino acompanhou cada som desde que a primeira ave cantara. E, à sua manei-ra, interpretava o alarido:

“- Estão falando só coisas bobas; ficam se cumprimentando, perguntando da família. Nem tocam no meu nome, só pra me enganar.” - Sem vontade, vestiu-se para a escola mas não encorajava a sair do quarto. Imaginava-se persegui-do por um bando de pássaros que o matavam a bicadas, arrancando-lhe pedacinhos até que só ossos sobrassem.

- Filho, está na hora! Sua irmã está esperando, faz tempo! - disse a mãe, batendo de leve à porta. - Estou acabando de fazer as tarefas! - Ontem o dia inteiro fazendo tarefas e ainda não acabou? Ou você estará lendo algum livro? - Ontem, fiquei foi o dia inteiro ajudando o pai a descarregar o caminhão. E não estou lendo coisa nenhuma. Pode man-

dar a Anita ir andando, que eu vou depois. - Não senhor! Vão os dois juntos. - Então, ela que espere! Anita estava impaciente ouvindo a gritaria das crianças no quintal da escola. Quanto a Valentino, só criou coragem ao

ouvir o ronco do ônibus passando em frente à sua casa, depois do desembarque das professoras. Então saiu correndo, pu-xando a garotinha pela mão:

- Depressa, sua molenga! 16 de agosto. Hoje é sexta-feira. Ontem, saí vivo do meio das formigas. Eram milhares, milhões de formigas, mas pe-

guei elas de surpresa. O programa ia ser executado ao meio dia mas, por pura sorte, uma ponte caiu; o ônibus voltou antes da hora e a gente saiu mais cedo.

Aproveitei a chance e ataquei primeiro. Não matei todas, é claro! Só matei aquelas do formigueiro perto da cerca, que eu sabia onde estavam. Deixei algumas vivas, de propósito. Amedrontadas, estas correram contar às outras da minha força e valentia. Agora, elas não vão mais armar cilada nenhuma.

Anita estava junto na hora da briga e aprontou um berreiro, pedindo que eu parasse. Fez tanto barulho, que atraiu os passarinhos. No começo, eles pensavam que eu estava sendo atacado e vieram assistir à minha morte. Quando viram que eu é quem estava massacrando, ficaram enfezados e combinaram de, eles mesmos, vingar o passarinho que eu matei.

Vão me atacar em massa. Já estão rondando minha casa, desde ontem. São milhares! Milhões de pássaros da redonde-za inteira. Convidaram até passarinho de fora para dar reforço.

Ontem, depois que percebi a manobra, não saí do quarto, não dei chance. Hoje cedo, já estavam rodeando a casa de novo, esperando que eu saísse pra escola. Não saí na hora de sempre. Eles

pensaram que eu estivesse doente e não viesse à aula. Devem ter ficado verdes de tanta raiva, quando me viram sair cor-rendo. Hoje à tarde vão tentar de novo - mas quem vai morrer não serei eu. Isso eu prometo!”

II

Depois da aula, sabendo que só à tardinha os pássaros voltariam a se reunir, Valentino aproveitou para executar seus

planos de proteção. Preparou arapucas, envenenou grãos e os espalhou pelo quintal. Reforçou as alças do estilingue, armou-se de pedras, grãos de mamona e goiabinhas verdes.

Voltou ao quarto em companhia do cachorro e trancou a porta. Fechou a vidraça e sentou-se junto dela, em posição que poderia ter diante dos olhos o desenrolar dos acontecimentos lá fora. Enquanto esperava pegou um livro e ficou a ler. Sentia

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calor mas não se arriscava a erguer a vidraça desde que, através dela poderia assistir a tudo o que se passava no quintal, sem correr perigo. O desenrolar dos acontecimentos se deram conforme o previsto: as aves eram atraídas para os alçapões e grãos envenenados.

Exultante, segurando o cachorro no colo, Valentino ia mostrando e fazendo comentários: - Olha lá, Cacau! Aquele já está zonzo! Aquele outro, comendo! Destes estou salvo... epa! Lá estão dois conversando! E

lá, naquele outro galho, mais dois! Não consigo ouvir o que dizem, mas acho que estão contando que os grãos dão dor de barriga! Se continuar assim, daqui a pouco, nenhum mais vai querer comer. É hora de agir!

Empurrou o animal para o chão, abriu a vidraça e, com o estilingue derrubou os que pôde alcançar. - Desta vez, não tenho dó! - sorria, com um só canto da boca - Se têm filhos a criar, que fiquem em casa cuidando deles! Derrubou alguns em pleno vôo. Havia porém, passarinhos entre galhos e folhas e, para estes, o estilingue era impotente.

Diante desta dificuldade Valentino correu ao quarto do pai, pegou a cartucheira e voltou ao ataque. Apoiou o cano no peito-ril e disparou. O barulho soou forte e os chumbos cortaram o ar em todas as direções. Se os chumbinhos não acertaram ave alguma, o barulho fez com que se dispersassem.

Anita brincava com sua Eliana na calçada da loja. Ouvindo o disparo saiu correndo para o lugar de onde viera o som. Pai, mãe e irmã chegaram ao mesmo tempo, pelo lado de fora da casa e, petrificados, viram a cena infernal: fumaça que se elevava, cheiro de pólvora queimada, pássaros espalhados pelo quintal - e o pior: a fisionomia de Valentino! O olhar de Valentino! As gargalhadas de Valentino!

Seu Leonel foi o primeiro a se recobrar. Rodeou a casa, entrou no quarto do filho e o puxou brutalmente pelo braço: - Você endoideceu, rapaz? O que significa isso tudo? A expressão do menino passou de alegre demoníaco, a hesitante medroso; indeciso, demorou a responder. Procurava

uma resposta que convencesse o pai, mas o tom de voz do homem exigia pronta explicação: - Valentino, não estou brincando! Responda! Por que esta matança? - É que... foi o Belmiro, pai. Sabe o Belmiro? Então. Ele... ele falou lá na escola, que... que consegue matar mais passa-

rinhos que eu, com a cartucheira... Eu, hã... eu só queria saber quantos podia matar... Foi isso. Seu Leonel ergueu o braço para espancar o filho, mas se conteve. Com voz firme, dentes cerrados e olhar duro, sacudiu

o menino pelos ombros: - Valentino, você não tem de provar coisa alguma, a ninguém! O que não pode é matar assim, a torto e a direito, só pra

mostrar que é o melhor! Com voz sumida, o rapazinho inventou: - Mas... o pai do Belmiro deixa ele usar a cartucheira... Sublinhando cada palavra, o pai mostrou sua posição a respeito: - Pois eu não deixo! - bateu a mão no peito, repetindo: - Eu não deixo, está ouvindo? E não vou esconder esta arma - a-

pontou para a cartucheira - e nem a munição! Entendeu? Não vou esconder a arma e você não vai tocar nela! Nunca mais! O comerciante saiu do quarto batendo com força a porta. Valentino ficou a sós com o cão que, assustado, tremia embai-

xo da cama. - Vem cá, Cacau! Foi um tiro de leve, um tirinho de nada, só de brincadeira pra espantar eles, você não percebeu? Vem,

eu não vou atirar mais! - esticou o braço, agarrou uma das patas do animal e o puxou para fora. Pôs-se a acariciá-lo, até que ambos se acalmassem.

Pela janela, chegavam as palavras chorosas de Anita. Desolada, via alguns pássaros agonizando, outros mortos e aqueles que não podiam levantar vôo:

- Ele é mau! Ontem, foram as formigas. Hoje foram vocês, que só estavam cantando. Ele jurou que não matava mais passarinho nenhum. Jurou e matou! Vocês, que foram bonzinhos, vão pro céu - mas o Valentino vai pro inferno e nunca mais sai de lá! Coitadinhos de vocês! Estavam cantando tão bonito!

Valentino sentiu-se desconfortável e desabafou: - Está ouvindo só, Cacau? Ela diz isso sem saber de nada, sem imaginar que vou pro inferno, de verdade. Se eles soubessem... mas não posso contar. Você sabe que hoje, não matei por causa de ruindade. Só matei pra me defender. Eu tinha de fazer isso porque eram eles ou eu! - silenciou por um instante ou dois e depois perguntou: - Se fosse você no meu lugar, contaria pra eles o que aconteceu comigo? Contaria porque estou fazendo isso tudo?

- ... - Pois é o que estou fazendo! Sofrendo eu, pra que não sofram eles. Você é o único que sabe e mais ninguém! - encarou

o animal e completou - Não vá latir o meu segredo por aí, ouviu?

IV

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No outro quarto, a mulher sentada na cama, olhar parado sem expressão. Na memória, as gargalhadas, o semblante feliz, o olhar ensandecido, o comportamento quase satânico do filho. Entendia agora os motivos do susto de Anita no dia anterior pois, hoje ela também ficara assustada com o que viu. De volta à loja, o marido parou à porta do quarto e entrou. Sentado ao lado da esposa passou o braço pelos seus ombros:

- Não fique assim, Edna! Isso é fase, é a idade. Não se preocupe! Vai passar, você vai ver. Como ela não dissesse coisa alguma, o vendeiro continuou: - Foi só uma aposta com o filho do Araújo, você não ouviu ele explicando? Por mais breve tempo a mulher manteve o silêncio e depois retrucou: - Como não me preocupar? Já faz dias que estou pensando em levá-lo a um médico. - Médico? Por quê? O Valentino está doente? - Não. E médico que falo seria um especialista em... cabeça, entende? – encarando o marido, pôs o dedo indicador na

testa, fez um gesto característico, indicando assim o que queria dizer. - Você está falando em psiquiatra só por causa de umas formigas e alguns passarinhos? - Não. No dia em que pensei num médico, nem havia acontecido ainda estes dois episódios. Foi anteontem, quando você

estava na cidade. - O que houve enquanto estive fora? Ela baixou a cabeça e respondeu à meia voz: - Nada em particular. Pensei de maneira difusa devido à falta de amigos, às

conversas com bicho, pedra e pau. Nada urgente. E agora parece que ele está... estranho! Mais estranho ainda. Você mesmo notou diferença, quando Valentino não perguntou pelos livros. Até a Anita, uma criança, perguntou porque ele ficou ontem no quarto sem sair à procura de ninho de galinha. Sim, há alguma coisa. - fixou o marido de frente - E agora você viu? A-quele olhar de... de... Meu Deus, que ar de assassino! Você não teve esta impressão?

O marido desviou a conversa para não ter de concordar. Mudou o tom de voz, sem abandonar o assunto: - O Valentino é inteligente e, por isso, parece esquisito, pois destoa das crianças da vila. A mente privilegiada faz dele

um garoto diferente. Seus pensamentos não combinam com a maneira de ser dos outros; as brincadeiras infantis dos outros não combinam com ele. Por isso, fica sempre sozinho.

- Foi o que também pensei, pra não ter de admitir outra hipótese. - E o que mais poderia ser? - Como posso saber? Por isso pensei em consultar um médico. - Que bobagem é esta, mulher? Médico de louco pro Valentino? - Eu não disse médico de louco! - reagiu a esposa - Eu disse psiquiatra! - O que vem dar no mesmo. O Valentino não precisa disso. É fase, já disse! Eu também, na idade dele aprontei minhas

diabruras; com certeza, deixei meus pais tão preocupados como você está agora. Ele está crescido, quase do meu tamanho! Só tem onze anos, mas nunca pensou nem agiu como criança. Não admite ser ferido nos seus brios e, se o filho do Araújo provocou, o que queria que ele fizesse? Ele reage como adulto e não aceita a possibilidade de ser inferior aos da mesma idade. Com o tempo, isso tudo vai acabar.

- E se não acabar? E se piorar? - Aí, a gente vê o que faz. Por ora, não vejo necessidade de providências tão drásticas. Bem... tenho de voltar à loja. En-

xugue estes olhos e deixe de pensar tolices. Levantou-se e saiu, levando uma ruga de preocupação no rosto. Procurara tranqüilizar a esposa, mas também ele sentia

que alguma coisa não se encaixava naquele comportamento.

17 DE AGOSTO - SÁBADO

I À época que tentamos descrever, as aulas eram ministradas normalmente, aos sábados. Só anos mais tarde, a Pasta da

Educação adotou o sistema da semana de cinco dias, oferecendo aos professores e aos estudantes, o benefício do fim de semana mais prolongado.

Devido a uma reunião de professores da rede escolar em Ipoty, ficou a Vila Verde sem aula naquele dia. D. Edna aproveitou a folga dos filhos e deu a eles a incumbência de cuidar da horta; afofar a terra, esparramar esterco,

retirar lagartas da couve e regar. Sem muita vontade, Valentino dirigiu-se à pequena horta caseira acompanhado de perto, por Cacau. Ao abrir o portãozinho de bambu, seu gesto parou no ar, sem continuidade. Depois, a mão foi voltando à posição inicial até ficar estendida ao longo do corpo. Um bando de borboletas amarelas sobrevoava as folhas da verdura. Borboletas

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sempre eram vistas na horta mas, naquela manhã chamaram a atenção de Valentino, que julgou saber os motivos que as levaram ali. Flexionou as pernas até ficar de cócoras junto ao cão e murmurou:

- Milhares! Milhões de borboletas preparando uma armadilha. Não sei como ficaram sabendo que eu vinha para cá, mas aí estão elas prontinhas para me agredir.

Por mais um momento ficou espiando pelos vãos das ripas e perguntou: - Você sabe de qual maneira borboleta mata gente? - ... - Nem eu. Mas elas devem ter um jeito, senão não estariam à minha espera. Estas aí são poucas para me matar, mas você

vai ver só: assim que eu entrar, uma delas sai voando e vai chamar as outras que estão escondidas. - depois de curto silêncio, cochichou: - Será que estas da horta já me viram?

- ... - Não? Então, vamos! Lá em casa eu explico. - e se afastaram pisando leve. De volta a casa, Valentino revirou suas tranqueiras até encontrar uma rede que ele mesmo fizera quando estava interes-

sado em colecionar borboletas. Assim armado, retomou a direção da horta. Entrou resoluto deixando o portão aberto para o caso de precisar apelar para a fuga. E pôs-se a perseguir os bichinhos voadores. A cada borboleta aprisionada, dizia:

- Você queria me torturar? Pois veja quem vai morrer sob tortura! - e, àquelas que voavam: - Vocês outras, fiquem o-lhando! Vejam o que vai acontecer a quem quiser me apanhar! E depois perguntem a esta que está na minha mão, se dói! Podem buscar o resto da turma, assim todas vão ficar sabendo!

A seguir, arrancava as asas do inseto e o soltava no chão com aquele sorriso de vencedor nos lábios, nos olhos, no rosto inteiro. E partia atrás de outra.

Anita demorou a chegar mas, quando o fez, não entrou de pronto. Ficou parada no portão olhando a cena. As lágrimas

quiseram cair mas ela as dominou. Depois, com voz insegura, perguntou: - Por que faz isso, Valentino? Sem olhar para a menina e sem parar com o que fazia, ele deu a resposta: - Elas estão enchendo a couve de ovos. Os ovos viram lagartas e comem tudo. - Mas precisa judiar deste jeito? - Preciso! Serve de exemplo às que ficarem vivas. - As outras não entendem... - Não seja boba! É claro que entendem! Depois, enquanto Anita, soluçando, socorria os pequenos animais caídos, Valentino saiu em direção ao Brejão onde sa-

bia existir muito mais borboletas. Correndo, dizia ao cão: - É lá, a assembléia delas! Devem estar esperando que estas da horta deem o sinal para se juntar em cima de mim. Não

faça barulho senão vai assustar o bando e eu quero apanhar um bom punhado! De fato, sobrevoando o Brejão, uma porção de borboletas de todas as cores - como sempre houvera àquela época do ano.

Depois de torturar as que conseguiu aprisionar, Valentino deu-se por satisfeito: - Já chega. Aquelas que estão sem asas vão morrer sentindo as maiores dores. As outras, assistindo à cena, nunca mais se

meterão comigo. Vamos, Cacau! - e saiu correndo e sorrindo com um só canto da boca.

II

- Não entendo! Por que matar de modo tão cruel? Não poderia ter matado só, e pronto? Precisava de tortura? Desta vez, Valentino soube se defender melhor que na anterior e despejou uma torrente de palavras cheias de significa-

do, que chegaram a convencê-la: - Matar? Nada disso! Eu nem matei elas! Só arranquei as asas e elas morreram porque quiseram. E para matar, tanto faz

de um jeito como de outro. Só fiz o sacrifício numas, para que as outras fossem embora. - Eu só preciso... - Não, não, eu quero acabar! Depois a senhora fala. Veja se eu não tenho razão. - engoliu seco, respirou fundo: - Hoje

não houve aula e eu poderia ter aproveitado o tempo livre para ler, descansar, andar por aí, dar uns mergulhos no Rio das Pedras, andar nos cavalos do doutor. Mas não! Tive de passar a manhã inteira matando lagartas, filhinhas queridas das bor-boletas que a senhora está defendendo! Acabando com as borboletas, acaba-se com a fonte das lagartas. E a senhora man-dou matar lagartas, não foi? - e repetiu as palavras, sublinhando-as: - A senhora mandou matar lagartas! E eu matei as bor-boletas também! Qual é a diferença, se borboleta é só uma lagarta grande? Matar lagarta e matar borboleta é a mesma coisa! Se for para ficar livre delas é melhor acabar com a família inteira! O que resolve acabar com o filhote, se pai e mãe ficam vivos, continuando a fabricar lagartinhas novas?

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A explicação fazia sentido e D. Edna não teve o que retrucar; apenas respirou, resignada. Anita no entanto, entrou no as-sunto dirigindo-se ao irmão:

- Você é ruim demais e vou contar tudo ao Padre Nicolau! Ele passa um pito e eu acho bem feito! - Vá, vá contar, sua enredeira! - Pois eu vou mesmo e você não vai poder fazer a primeira comunhão. Pensa que o padre vai deixar? Com tanto pecado

mortal, nem que ele deixar, Deus não vai perdoar. - e continuou a despejar uma torrente de indignações que não mereceram do irmão uma resposta oral ou sequer um olhar de desprezo.

Com a cabeça cheia de pontos de interrogação, D. Edna deixou as crianças se entendendo e foi substituir o marido no balcão para que ele pudesse almoçar. O vendeiro chegou à cozinha a tempo de ouvir as coisas que a filha, tão empolgada, dizia.

- Muito bem, Dona Anita! Mas por que o Valentino perdeu o direito de ir para o céu? - Eu já falei pro senhor lá na loja, pai! Lembra que eu contei das borboletas que o Valentino arrancou as asas? Coitadi-

nhas, ficaram lá chorando de dor! - Sim, eu lembro. - e encarou o filho: - Você está sendo frio demais para acabar com as pragas e treinar pontaria. Todos

os animais, mesmo os menores, têm direito à vida - ou então, a morrer com dignidade, sem humilhação, sem sofrimento. Valentino ia saindo irritado, mas o pai o impediu: - Volte aqui, mocinho! Vamos, explique os motivos destas matanças todas, tão carregadas de crueldade. Deve haver um

porquê nisso tudo e eu quero saber. Pode começar a falar. O garoto parou em frente ao pai, mas não explicou coisa alguma. Tudo o que tinha a dizer já dissera à mãe e, se o pai

quisesse saber, que perguntasse a ela. O vendeiro, percebendo a dureza das próprias palavras, prosseguiu usando voz mais suave:

- Fale, Valentino! O que está levando você a agir desta forma? Em pensamento, o rapazinho dizia: “- Mesmo que eu conte, ele não vai acreditar. Vai pensar que é tudo mentira, tudo invenção, tudo desculpa pra não levar

uma surra. Pode até achar que eu esteja louco. Ele nem sabe quem é o caipora! A Anita sabe, mas vai fingir que não sabe só por pirraça. Ela sabe também do juramento na capela, mas vai negar tudo.”

- Valentino, por que não responde? Sem poder dar as explicações que gostaria e sem coragem de repetir as mentiras que dissera à mãe, preferiu chorar. Era

bom meio de se livrar de qualquer enrosco. Vendo as lágrimas, Seu Leonel supôs que estava sendo árduo demais em cima de coisinhas tão sem importância:

- Tudo bem, não precisa chorar. Vamos esquecer o assunto e que nada parecido volte a acontecer. Vá alimentar o ca-chorro, que está com cara de fome.

Valentino passou a tarde lendo, quase esquecido que a morte poderia vir de qualquer lado, de qualquer ser, a qualquer

momento. Sentia-se seguro por aquele resto de dia desde que já houvera o episódio das borboletas e seria quase impossível que outros bichos se organizassem a tempo para nova emboscada. Uma armadilha por dia era o máximo que lhe poderia acontecer. Amanhã haveria outra com certeza. Sentia-se mais seguro em casa do que enfrentando inimigos em campo aber-to. De mais a mais, o livro que iniciara com tanta má vontade estava prendendo-lhe a atenção. Era bem aquele gênero de literatura que apreciava: um crime sem testemunhas, sem pistas, detetive embaraçado sem saber por onde começar a inves-tigar e o criminoso bem ali, fingindo ajudar nas investigações.

III

Seu Leonel, onde está o Valentino? - Deve estar lendo. Ainda agorinha estava na varanda, com livro na mão. - Quê? Lendo numa tarde de sábado? O Valentino? Que bicho mordeu ele? - Não sei. Isso e outras coisinhas estão deixando à Edna e a mim, intrigados. Não sabemos o que se passa. - encarou-o: -

O senhor precisa dele? Espere, que eu vou chamar. - Não, não! É que... a Anita foi me procurar. Veio com umas histórias, contou que o Valentino deu de matar bichos. - a-

proximou-se do dono da loja e, com voz de cumplicidade, foi adiante: - Cá entre nós, são artes de criança, coisas inocentes, bobagens! - e, em tom normal: - Mas a garota está assustada com a maneira como ele mata. Não entendi direito mas, segun-do ela há até mudança de fisionomia, como se matasse com prazer. É claro que ela enxerga do seu ponto de vista e não se pode acreditar no que diz uma menina sobre o irmão mais velho. Rivalidade, vontade de se mostrar boazinha na compara-ção.

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Interrompeu a fala e fixou o vendeiro, que se mantinha calado. - O que foi? Falei demais? Ofendi sem querer? - Não, não, padre! Estive ouvindo e pensando. - coçou a cabeça procurando as palavras: - O senhor tem razão. Pode até

ser que haja rivalidade, querer aumentar as ruindades do outro perante os mais velhos. Isso é comum. Mas há um fundo de verdade nisso que ela lhe contou. O Valentino tem mesmo agido de forma estranha nestes últimos dias. É este comporta-mento que, como já disse, nos tem preocupado bastante.

O padre apoiou os cotovelos no balcão e ficou a ouvir com interesse: - Ele sempre foi meio levado, arteiro, o senhor sabe. Mas não fazia por mal, nunca percebi nele o menor desejo de preju-

dicar. E agora está fazendo com maldade! Parece que antes, matava passarinho quase que por hábito, de um jeito mecânico, não sei explicar...

- Estou entendendo. Continue. - Pois é.... agora deu de matar tudo o que vê, como que levado por uma coisa ruim que vem de dentro dele: ódio, rancor,

raiva, vingança, prazer, tudo misturado. É isso. - Ah, não se preocupe! Coisas da idade! Experiências novas, sensações diferentes, aprendizagem do mundo. Nós fize-

mos igual ou pior, quando crianças. Nossos pais devem ter tido as mesmas preocupações. - Foi o que eu disse à Edna. - Eu acho muito normal. Nesta minha vestimenta de falso sacerdote, muitos casos vêm parar aqui, nestas mãos! - a as

espalmou - Cada problema! Nesta vila, esparramado por estas vizinhanças, cada caso que parecia tão sem solução! No fim, tudo se resolvia por si. Quanto a Valentino, não me parece que seja motivo para perder o sono. Na verdade, só vim pergun-tar porque a Anita me procurou; ela é uma criança que espera de mim, o grande arrebanhador de almas para o céu - e riu, zombando de si mesmo - alguma providência. Se eu ficar indiferente ela poderá perder a confiança não só em mim, mas também na religião porque, aos seus olhos, sou um padre de verdade, um porta-voz da vontade de Deus. O senhor entende...

- Sim, sem dúvida! E pode ser que, vindo do senhor, um simples bate-papo seja o bastante para que o Valentino repense seu comportamento.

- Deixe-o ler, por hoje. Amanhã, eu falo com ele.

18 DE AGOSTO - DOMINGO

I O homem tocou delicadamente, o ombro de Valentino: - Vamos, filho! Acorde! Valentino se movimentou, murmurou alguma coisa, puxou o cobertor sobre os ombros, virou-se para o lado contrário e

continuou dormindo. Boa parte da noite havia sido passada em pesadelos onde via-se perseguido por vultos apenas vislum-brados. Só de madrugada conseguiu um sono tranqüilo mas o pai continuava a sacudi-lo, falando manso:

- Vamos, filhote! É domingo, vou precisar de você na loja. O rapazinho entreabriu os olhos e, em voz pastosa retrucou: - Estou com sono, pai! Me deixe dormir mais um pouco. - Sono ainda? Mas são quase oito horas, já é dia faz tempo! Indignado, Valentino empurrou o cobertor: - Por que sempre eu? Por que a Anita não? - Nós, homens, na loja; as mulheres, na cozinha. Todos precisamos trabalhar, cada qual com sua tarefa. Vamos, que já

estou abrindo as portas. - Hoje é domingo, pai! - Por isso mesmo! Daqui a pouco a loja vai estar cheia de gente e você sabe como são os domingos aqui em casa. Va-

mos, levante e não se demore. Seu Leonel saiu deixando a porta do quarto aberta para que os sons da casa pudessem estimular o menino a sair da cama.

Com má vontade Valentino se sentou; esticou os braços, bocejou, esfregou os olhos, colocou as pernas para fora da cama e procurou o calçado no chão, com os pés. Uma barata cruzou o piso do quarto. Saiu para a sala e virou à direita. Percebendo o inseto, o restinho de sono desapareceu. Valentino gritou para o cachorro, que chegou fazendo festas. O menino aceitou e retribuiu os agrados e depois, em voz baixa contou a novidade mais recente:

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- Vi uma barata com jeito de espiã! Esperou até que eu acordasse, querendo saber o que vou fazer e onde vou estar hoje. Agora, já sabe.

- ... - Sabe porque meu pai veio me acordar, pedindo que eu fosse a-

judar na loja. Falou que hoje é domingo e tudo. A barata sabe, por-tanto, que não vou à escola, que vou ficar na loja, entendeu?

- ... - Claro! Já foi juntar a turma dela. Daqui a pouco todas as baratas

da vila vão estar reunidas, planejando o ataque. - pensou por um momento: - Como será que vão me agredir? Que lugar vão escolher?

O cachorro não respondeu. Decerto não sabia, ou não queria ar-riscar. Não obtendo ajuda do amigo, Valentino precisou raciocinar sozinho. Colocou-se em pensamento, no lugar das baratas e murmu-rou:

- Na loja, não pode ser. Meu pai fica lá o tempo todo e os fregue-ses também. A barata ouviu ele dizer que, por ser domingo, tem muita gente fazendo compras. Elas só vão tentar me pegar quando eu estiver sozinho. A loja portanto, está de fora. Mas eu descubro! Deixe comigo!

Vestiu-se, foi ao banheiro e depois à cozinha. Tomou leite com café e comeu uma fatia de pão. Dirigia-se à loja, quando pensou:

“- Será no depósito!” O depósito estava sempre mergulhado na semi-escuridão, devido aos vidros empoeirados da pequena vidraça lá no alto.

Cheiro característico, paredes cobertas por prateleiras entulhadas de mercadorias. Sua porta ficava de viés e abria-se para a sala, assim como a porta interna da loja e as portas de todos os compartimentos da casa. Estando-se numa dependência era obrigatório que se atravessasse a sala para atingir outra qualquer. A sala ficava pois, em posição central funcionando mais como área de circulação; muito grande, sem janelas, os poucos rasgos de claridade que recebia vinham das dependências adjacentes.

- Cacau, aqui, Cacau! Retornou com o cão ao quarto onde, certo de não estar sendo observado por inseto algum, segredou: - Descobri! Não falei que podia deixar comigo? Vai ser no depósito! - ... - Foi fácil, seu bobo e eu vou explicar direitinho. Vem cá. Sentou-se na cama, puxou o animal para cima dos lençóis desarrumados e continuou num sussurro: - Pense comigo: O depósito é um lugar onde não fica ninguém. A gente só entra lá quando precisa apanhar alguma mer-

cadoria do estoque. As baratas sabem que, aos domingos, com tantos fregueses pedindo tudo quanto é coisa, é preciso entrar naquele quartinho uma porção de vezes. Daqui a pouco, aquilo vai estar pesado de tanta barata. Milhares! Milhões vão estar me esperando. O plano é cair em cima de mim, todas de uma vez só, assim que eu entrar. - deu uma risadinha marota e continuou: - Só que elas vão ter de esperar sentadas ou deitadas, para não cansar as perninhas. Hoje eu não entro naquele depósito fedorento, por nada deste mundo! - deu uma gargalhada, que abafou com a mão na boca.

- ... - Ah, elas conhecem bem meu pai, não vão se confundir. Elas sabem que se cometerem um erro deste tamanho, elas é

que vão se queimar no inferno, por toda eternidade. - ... - Inferno de baratas, sim senhor! Por que não? Se existe inferno de gente, por que barata não tem um inferninho só de-

las? São protegidas por acaso? O gozado devem ser as baratas-diabas! – riu com gosto. E elas também têm anjo de guarda. -... - Anjo de guarda de barata é igual a uma barata, só que fica voando em volta da barata protegida. – gargalhou. ... - Também, Cacau! Cachorro também tem anjo da guarda. É igual a um cachorro, mas tem asas. Até pulga tem anjo da

guarda. – gargalhou ao dizer: - Você está bem protegido pelo seu anjo da guarda e anjo de todas as pulgas que moram em você. Também os seus carrapatos têm anjo da guarda. É que Deus não dá conta de tomar conta de todo mundo e coloca um anjo para cada bicho e cada gente.

Depois cessou o riso, coçou a cabeça, apertou os olhos como se estivesse raciocinando profundamente: - Eu acho que borboletas, formigas e baratas matam do mesmo jeito: de susto. – perdeu o ar sério e riu - Pense só no ta-

manho do susto que a gente leva no meio de tanto bicho! O coração para, o sangue vira gelo, a gente vira estátua. Nunca ouvi falar de alguém que morresse deste jeito, mas deve ter tido pelo menos um caso: morrer de susto.

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- ... - Sufocação também, você tem razão. Entram na boca e no nariz, a gente não pode respirar... É isso mesmo, Cacau! Eu

sabia que as borboletas tinham um jeito de matar gente! Você é esperto, heim? De vez em quando me sai com cada uma! - balançou a cabeça para os lados: - Só que noutras vezes é burro demais, demora a entender as coisas. Mas não tem impor-tância, porque uma burrice é compensada por uma sugestão destas... sufocação! Bem pensado!

II

A loja era o ponto de encontro dos homens do lugar. Reuniam-se ali nos dias de semana depois do trabalho e, com maior

descontração, aos domingos. Sentados ao redor de mesinhas inventavam assuntos, bebericavam uma cerveja, descansavam a mente das preocupações da semana.

Naquela manhã, Valentino atendeu àqueles cujos pedidos estavam nas suas posses atender - mas ao freguês que pedisse alguma mercadoria em estoque, ele optava por dizer que o produto estava em falta. Esta explicação era dada à meia voz para que não fosse ouvida pelo pai. Nenhuma vez, portanto, entrou no depósito, nem dele se aproximou.

Aí pelas dez horas, o entra-e-sai começou a arrefecer, até que acabou de vez. Sem ter o que fazer, o garoto pegou uma das revistas à venda e começou a folhear - o pensamento porém, estava naquele quartinho e ele ideava um jeito de, sem correr risco, acabar com o projeto das baratas de modo que nunca mais voltassem a importuná-lo.

Os homens das mesinhas foram se levantando e saindo, esticando o assunto por mais uns passos. Ficaram ainda três ou quatro retardatários e, de propósito, o Padre Nicolau que achou ser aquele o melhor momento para uma conversa com o filho do vendeiro.

- Valentino, queira vir aqui, por favor! Prontamente, o menino abandonou a revista e atendeu ao chamado. - Puxe uma cadeira, e vamos conversas nós dois. Valentino instalou-se e ficou à espera, olhar ansioso. O padre pigarreou: - Ontem à tarde, eu estava passando por ali - indicou com o dedo a calçada do outro lado da rua - para ligar o motor da

energia. Não, não foi ontem, não! Espere aí... ontem foi sábado... então, acho que foi anteontem. Isso mesmo! Foi na sexta-feira! Eu ia ligar o gerador quando ouvi um barulho muito forte, um estampido... um tiro de cartucheira. Levei um susto! Depois, soube que era você, treinando pontaria. É verdade?

Meio sem jeito, Valentino baixou o olhar; titubeou mas não mentiu: - É. - Treinando pontaria em passarinhos. É isso mesmo? - É. - Ontem, você matou borboletas, arrancando-lhes as asas. É verdade? - É. - E na quinta-feira, liquidou com um formigueiro. - É. O padre suspirou ruidosamente, sem saber o que dizer. Esperava que Valentino negasse, que dissesse ser tudo invenção

de quem lhe contara. Seria mais fácil dizer: “Eu acredito que seja tudo mentira”, levantar-se e sair. Mas o garoto confirmou e o homem não estava preparado para isso. Tinha agora, de tomar uma atitude. Pesou o que diria sem ser rude. Em tom calmo, retomou a fala:

- Eu duvidei, porque você não é de matar animais com crueldade. Sei que gosta de bichos, que até conversa com eles. E pensei assim: “Ora, quem conversa com bichos é porque gosta deles; e quem gosta deles não lhes faz mal.” Foi assim que pensei e isto seria o cento, não é?

Valentino concordou com a cabeça sem encarar o par de olhos que estava à sua frente. - Mas... se você mesmo confirma... Fiquei aborrecido porque não é este o tipo de coisas que venho ensinando no cate-

cismo. E, se está lembrado, o tema da última aula foi justamente o amor e o respeito que devemos ter para com todos os seres de Deus. E você fez um juramento.

O rapazinho teve uma sensação desagradável ao ouvir aquele assunto que preferia não recordar. - Foi um juramento solene com testemunhas e tudo, dentro da casa de Deus. E você quebrou um juramento sério. Se

continuar a agir desta maneira, vou precisar excluir seu nome da primeira comunhão e, quando o Padre Dimas vier, você será o único da turma a não receber o sacramento. Não é isso que você quer, nem o que eu quero. Tudo vai depender do seu modo de agir de hoje, até o dia da vinda do sacerdote. Estamos entendidos?

A voz de Valentino soou baixa e rouca: - Estamos.

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- Era o que eu tinha a dizer e já estou de saída... Ah, sim! Veja só que cabeça, já ia me esquecendo! O garoto ergueu vivamente o olhar, parecendo aliviado pela mudança no tom de voz. O padre percebeu esta reação e

prosseguiu: - Depois de amanhã, terça-feira, não haverá aula de catecismo. Tenho audiência na cidade com o Padre Dimas. Nossa

aula fica adiada para o dia seguinte, quarta-feira, à hora de sempre. Quero que avise a todos. Com isso o homem se levantou, pagou a conta e saiu. Atrás dele a última porta da loja foi fechada. Já na rua, o Padre Nicolau caminhava devagar naqueles poucos metros que tinha diante de si. Sentia leve incômodo a lhe

amargar o peito: “- Que desagradável ter de exigir conduta reta a uma criança! Erros tão inocentes! Atitudes puras, sem maldade, sem in-

tenção de vingança. Nem se pode dizer que sejam pecados. Coitadinho, ficou tão sem graça! Quando souber o tamanho dos erros dos adultos!” - olhou para o céu como a pedir forças a Deus para prosseguir na sua missão e continuou caminhando sem pressa: “- Falei com delicadeza, sem machucar, só o necessário. Mesmo assim.... não sei... sinto que não deveria ter dito coisa alguma! Algo me diz que errei.” - novamente, olhou para o alto: “Deus, se não tenho acertado, se tenho ultrapas-sado certos limites, é por vontade de servi-Lo. Mas é tão difícil, Senhor!” - entrou em casa com o coração opresso, com o pensamento a martelar: “Parece que Seu Leonel tem razão em estar intranqüilo. Se pelo menos a gente soubesse o motivo deste comportamento brutal e tão preocupante! O pai está certo; o garoto está se comportando de jeito estranho. Valentino é bom, sincero e puro; nem procurou mentir quando lhe perguntei. No lugar dele, eu próprio teria negado, teria procurado desculpas. Ele não! Admitiu apenas e mais nada!”

III

Valentino chegou à cozinha e constatou que o almoço estava bastante atrasado. Sem reclamar, procurou a solidão da va-

randa onde podia pensar sem ser interrompido. Na confusão de ideias em que se encontrava, a advertência do padre assumiu proporções muito maiores. Numa aldeia

tão pequena, transpirando religiosidade onde, em se tratando de preceitos morais todos falavam a mesma língua, o filho do vendeiro não encontrava com quem dividir seus pensamentos, suas dúvidas, seus dramas íntimos. Se contasse seus desacer-tos às outras crianças, estas o ouviriam com interesse por ser algo incomum - mas afastar-se-iam com certeza, receando o contato com um condenado ao inferno. Quanto aos adultos, qual deles estaria disposto a ouvir falar num deus dos bichos, numa aranha gigante, na voz de Deus num trovão, em insetos assassinos? Mesmo que ouvissem e percebessem o absurdo, responderiam usando termos infantis, por ser Valentino ainda criança. Era criança sim, mas absorveria quaisquer ensina-mentos corretos e estava sedento à espera deles. O que tinham a lhe oferecer portanto, eram conceitos vazios de conteúdo, carentes de solidez; palavras prontas e decoradas sem que fossem acompanhadas por explicações em detalhes sobre seu significado.

Aliás, a bem da verdade, os próprios adultos estavam tão saturados e acostumados aos dogmas, aos conceitos mil vezes repetidos que, mesmo que soubessem o drama que envolvia o menino não saberiam lidar com o fato. Valentino sentia ne-cessidade de raciocinar sobre coisas da vida e da morte, causas e consequências, porquês disto e daquilo. Apesar porém, de estar preparado para altos voos mentais, somente possuía no seu mundinho restrito as mesmas ideias destinadas a amedron-tar crianças objetivando tornar mais fácil a vida de pais e educadores através do temor a Deus e do horror ao diabo. Racioci-nando sobre conceitos fragmentados e errôneos não chegaria, por si só, às verdades inteiras.

Naquela conversa com o padre, Valentino sentiu-se tentado a contar tudo. Não o fez porque o outro parecia conhecer a-penas coisas da bíblia, rezas, pecados, sacramentos - tudo pré fabricado, tudo encaixado a qualquer situação, em linguagem hermética que pouco ou nada poderia esclarecer a quem, como ele, estava vivendo drama intenso, bombardeado por ideias filosóficas falsas e fatos materiais pavorosos que, fictícios que eram, lhe pareciam verdadeiros. Em resposta às suas indaga-ções, o Padre Nicolau não saberia dizer outra coisa senão aquilo que repetia semanalmente, a cada aula de catecismo: “Pe-cado original é lavado e retirado nas águas do batismo. Pecado venial pode ser apagado através da confissão, arrependimen-to, penitência e comunhão. Mas, pecado mortal não há arrependimento ou penitência capaz de atenuar; é dívida que acom-panha o pecador após o túmulo, nos subterrâneos infernais onde, nem mesmo o fogo eterno pode resgatar. E matar passari-nho é pecado mortal.

Valentino não quis arriscar-se a ouvir isso tudo outra vez. Com a advertência do padre, seu íntimo não se reequilibrou. Ao contrário, fez pesar ainda mais o prato da balança para o lado contrário. Sentado na velha cadeira de balanço na varanda após o fechamento da loja, o menino remoía aquelas palavras, concluindo:

“- Foi o último recado de Deus. Foi a confirmação que fui expulso do céu! A hóstia que vou comer na primeira comu-nhão - se até lá eu não for expulso da turma - será o mesmo que nada, ainda mais que, na hora de confessar meus pecados,

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não vou ter coragem de contar ao padre que foi decretada minha prisão perpétua ao inferno. Vai ser uma confissão pela metade e a hóstia só vale se a gente contar tudo e se for só pecado venial. Pecado mortal não tem jeito, não tem perdão.”

Revirou-se na cadeira àquele pensamento, com o qual não se acostumara: “- Banido do céu, sem poder explicar que foi sem querer que matei o passarinho! Eu não acho certo, mas como falar isso

pra Deus? Ela manda recado e nem espera resposta. Se Deus soubesse do jeitinho como aconteceu, acho que me perdoaria... ou me daria outra chance. Mas como falar com Deus?”

Lembrou-se de uma das aulas de catecismo onde o Padre Nicolau explicou que, quando se reza, a gente está conversan-do com o Criador; que a oração é um meio de se comunicar com Ele. Mentalmente, Valentino rezou todas as orações que sabia e foi maior ainda a confusão:

“- Ave Maria, Pai Nosso, Salve Rainha, Creio em Deus Pai... são só estas as rezas que sei fazer e nenhuma delas fala em fazer pecado mortal sem querer. As orações já estão prontas, palavra por palavra uma atrás da outra. É só a gente ir falando, sempre a mesma coisa. O que adianta falar uma porção de vezes o que não tem nada daquilo que eu quero falar? As pala-vras são umas, mas eu quero falar outras! Eu quero explicar porque, sem saber de tudo, Deus vai continuar pensando que fiz por ruindade, vai continuar a perseguição. Eu sozinho, contra Deus! Não é justo, porque Deus é muito maior, mais forte, tem muitos ajudantes e além disso, é invisível! Não é justo mesmo!”

Deu um sorriso, com um só canto da boca: “- Mas enquanto eu puder, ninguém me pega! Afinal, minha alma está perdida mesmo; tanto faz matar mais ou parar por

aqui. Ficando vivo por mais tempo, fico mais tempo longe daquele fogaréu. Morrendo agora, a eternidade vai ser mais com-prida. Portanto...”

O cachorro chegou, interrompendo os pensamentos de Valentino. Ergueu-se nas patas traseiras, apoiou-se nas pernas do rapazinho abanando a cauda, como que puxando assunto.

- Depois, eu conto das baratas. Primeiro, vou contar que o padre teve uma prosa comigo e que fiquei sabendo que o cer-co vai ser fechado. Preciso ser esperto em dobro mas eu escapo, não precisa se preocupar! - deu uma risadinha marota - Estou deixando Deus meio chateado, você não acha?

- ... - Por estar me aguentando vivo, ué! - ... - O capeta? Mais chateado ainda, coitado! - deu uma gargalhada – A minha fogueirinha já está acesa! Capeta tonto! Não

me conhece, pensa que vai ser fácil pegar o Valentino! Ele vai ter de apagar o fogo pra economizar lenha, porque não vai ser agora que eu vou assar naquele braseiro, não!

- ... - Tá bom, eu falo das baratas. – abaixou o tom de voz - Elas estão lá no depósito, me esperando também! - gargalhou -

todo mundo à minha espera e eu aqui, dando risada! Coitadinhas, Cacau! Não sabem que aos domingos, a loja fica fechada pro almoço. Devem estar perdendo a paciência, mas o que posso fazer? Nada, né? Vão ter de esperar! - interrompeu o as-sunto, pensativo - Mas vou dar um jeito nisso, quer ver só?

Empurrou as patas do animal para o chão. Levantou-se e foi até a porta que mediava a varanda da sala e daí, gritou para o pai. Seu Leonel estava ainda na loja fazendo o balancete daquela manhã.

- Paiê! A que horas a gente reabre hoje? - Depois das três. - respondeu o vendeiro, de onde estava. - Depois das três da tarde? - frisou Valentino. - Da madrugada é que não pode ser. Por que? Há algum freguês aí? - Não, só queria saber! Vou a se sentar, rindo às gargalhadas: - Viu só, Cacau? Gostou da encenação? - ... - Cachorro burro! Vou explicar e vê se entende: Que a gente reabre às três, estou careca de saber. Só perguntei para que

as baratas também soubessem. Quero que elas fiquem danadas da vida, morrendo de raiva. Imagine só a cena: Elas lá, a manhã inteira à minha espera, doidinhas pra eu entrar, aflitinhas querendo me cair em cima. As paredes cobertas de barata, as prateleiras lotadas, uma barata em cima da outra. Pulo preparado, tomando impulso, todas de uma vez só; coraçãozinho batendo forte, prestando atenção em tudo quanto é barulho, pensando que sou eu. Nisso, eu pergunto a que horas a gente reabre e elas ficam sabendo que só à tarde a loja volta a funcionar. Quer dizer: só depois das três da tarde é que terão outra oportunidade de me agredir porque antes, é impossível alguém entrar lá. Aí, uma delas olha no reloginho de pulso, faz as contas e fala para as companheiras que...

- ... - Elas não têm relógio, eu sei - mas a gente finge que têm, só pra ficar mais engraçado! Então, vamos lá: Esta barata con-

ta às outras que faltam quatro horas ainda! Quatro horas pra que haja uma chance de eu entrar no depósito! Entendeu?

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- ... - Eu já falei, seu bobo! Nestas quatro horas não há nenhuma possibilidade de eu entrar, nenhuma possibilidade de con-

fronto. Até vejo a cara delas olhando uma pra outra e me xingando de tudo quanto é nome! Que engraçado! Pois vão ter de ficar lá fechadas, morrendo de calor e fome! Não vão poder ir almoçar, porque a maioria mora longe e não dá tempo de ir e voltar. Não aguentei a vontade de deixar elas decepcionadas. Acho que deixei.

Pensando na fome das baratas, sua fisionomia se iluminou: - Vá brincar, Cacau! Descobri como me livrar daquelas baratas! Vá, vá, que tenho mais o que fazer! - ... - Não senhor! É segredo! Não vou contar, porque é um plano ultra secreto; as paredes têm ouvidos e boca, podem contar

pra elas. Só depois da minha vitória você vai ficar sabendo e aí, a gente vai rir muito, você vai ver só!

IV

Sorrateiro, Valentino dirigiu-se à loja e, enquanto o pai, de costas no ângulo da parede fazia cálculos iluminado por es-

cassa claridade, apossou-se de um pacotinho de veneno. Pisando leve, passou pelos doces e apanhou alguns deles; enfiou tudo embaixo da camisa e saiu qual sombra fugidia. Na cozinha, pegou um pedaço de pão e uma canequinha com leite. A mãe recriminou:

- Agora é hora de comer pão com leite, Valentino? Depois não almoça. - É pro Cacau, mãe! O coitado falou que está em jejum porque hoje, ninguém se lembrou de dar comida pra ele. - Ele é mentiroso! - gritou Anita - Eu mesma lhe dei o arroz de ontem. - Então, é por isso que deu fome. O Cacau não come restos! - e saiu, em direção à garagem, explicando para si mesmo: “- Elas estão em jejum desde cedo; um lanchinho será bem recebido.” Escondido atrás do caminhão, preparou veneno com leite e, nesta mistura mergulhou pedacinhos de pão, pedacinhos de

doce. Colocou tudo sobre uma tábua e saiu carregando a bandeja improvisada, cuidando para não derrubar tudo. Entrou em casa pela porta da varanda, atravessou a sala com cautela sem ser visto. Parou em frente do depósito e ficou

um instante, à escuta. “- Não ouço nada, mas elas estão aí. Fiz bem em contar que só à tarde, a gente volta ao trabalho. Enquanto esperam, já

desarmaram o impulso, estão descansando. Eu entro de surpresa e até que se recuperem, estarei longe.” Sem hesitação, com a maior coragem do mundo, empurrou a porta com o pé e colocou rapidamente o tabuleiro no piso,

à distância que seu braço conseguiu alcançar. Fez meia volta e saiu correndo, coração disparado pelo perigo que enfrentara. - Cacau! Cacau, cadê você? - Nada de brincar com o cachorro! Vá lavar as mãos, o almoço está pronto. - Depois, mãe! Agora, preciso contar uma coisa pra ele. É urgente, não posso esperar! O vendeiro, que se dirigia à cozinha, cortou: - Obedeça à sua mãe! Há muito tempo depois para conversar com cachorro. - Mas pai, é importante! O Cacau vai gostar muito, tenho certeza! - Nada disso! Importante é o almoço. Lave estas mãos e venha pra mesa. O domingo era o único dia da semana que a família podia se reunir à mesa e, por este motivo, esticavam os assuntos pa-

ra além do necessário. Era neste dia que podiam falar das novidades da aldeia, dos fatos ocorridos na loja, da vida escolar dos filhos, dos planos para a semana seguinte. Eram reuniões bastante descontraídas, depois de uma semana inteira de labu-tas e de almoços a sós, cada qual num horário diferente. O casal aproveitou para observar Valentino, mas este se mostrou despreocupado, alegre, esquecido dos fatos desagradáveis que o acabrunhavam. Finda a refeição, a família ficou mais um bom tempo conversando e depois, a mulher deu as ordens:

- Leonel, recolher as garrafas vazias e colocar na caixa. Valentino, me ajudar a tirar a mesa, dar comida ao cachorro e varrer o chão. Anita, limpar o fogão e me ajudar com a louça! Vamos! Todo mundo trabalhando!

V

O domingo modorrento custou a passar. Pouco depois das três horas a loja foi reaberta e, de um a um, os fregueses fixos das tardes de domingo foram chegando;

eram os mesmos fregueses fixos das manhãs de domingo, com exceção do Padre Nicolau, que tinha o terço a rezar. Senta-dos ao redor das mesinhas na calçada jogavam conversa fora vendo crescer aos poucos a aglomeração de pessoas.

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Homens, mulheres, moças, rapazes, crianças de todo tamanho e idade foram chegando. Cavaleiros em grupos ou isola-dos, carroças e charretes vinham das propriedades vizinhas trazendo famílias inteiras. Era uma festa de cores vistosas, rou-pas novas, sombrinhas abertas, lenços de seda, esporas e chapéus, tudo em meio aos cumprimentos alegres, ao burburinho. Grupinhos de moças, casais de namorados, rapazes parados, rapazes andando, crianças correndo, mães procurando os meno-res que seguiam sem rumo - tudo se estendendo na parte central da vila, desde a casa do Dr. Luciano até pouco adiante da loja, diminuindo de intensidade em ambos os extremos.

Assim eram todas as tardes domingueiras na Vila Verde. Anita e Valentino, dentro de suas roupas de passeio esperavam a mãe para acompanhá-la à capela. À hora de costume, o Padre Nicolau saiu de casa. Passeou o olhar por aquela pequena multidão e sorriu, satisfeito. Nes-

tas ocasiões ele usava terno preto, camisa branca, colarinho abotoado, gravata e botinas pretas. Fazia questão de se asseme-lhar a um padre de verdade, esperando inspirar maior confiança nos fiéis. O traje de gala deixava-o mais alto e mais magro, ao mesmo tempo que acentuava o branco dos cabelos, a pele clara, o azul dos olhos. Era uma bela e respeitável figura.

Passou entre as pessoas sorrindo, cumprimentando, parando rapidamente aqui e ali, apertando mãos que lhe eram esten-didas, beijando crianças de colo que as mães faziam questão de lhe mostrar. Entrou na igreja e fez soar o sino, anunciando sua presença e o começo das orações.

A grande maioria daquela gente sumiu de vista para se comprimir no interior do pequeno templo, que já não comportava a todos - aliás, eram planos do Dr. Luciano e do Padre Nicolau fazer-lhe uma ampliação, visto que o número de habitantes aumentava de ano para ano. Lá fora, ficaram ainda alguns casais de namorados, os fregueses da loja e uma dúzia de crianças brincando.

Minutos depois, chegou à loja uma garotinha correndo, esbaforida: - Seu Leonel, eu quero um maço de velas das boas. O vendeiro entrou na casa comercial seguido de perto pela menina. - Vão fósforos também? - Não. Só velas. - Então, pronto! Um maço de velas das boas. - Não é destas, não! É daquelas grandes, pra capela. O Padre Nicolau esqueceu de comprar e o terço não pode começar

sem velas. - Das grandes? Então espere um instantezinho, vou lá dentro buscar. A garota ficou à espera cheia de impaciência, sabendo da sua importância para o início do culto. Seu Leonel sumiu pela porta que separava a loja do restante da casa e, ao entrar no depósito, sentiu como que um choque

elétrico a lhe percorrer o corpo ao ver, naquele cômodo, algumas baratas mortas - e entre elas, deitado imóvel, o Cacau! Entregou as velas à garotinha e não sentiu ânimo para retornar à calçada. Apoiou os cotovelos no balcão, cenho carrega-

do, pensamentos angustiados: “- A Edna tem razão. Algo estranha está acontecendo... Mas o quê? Meu Deus, o que se passa com o Valentino?” Ao notar a demora do dono da casa, o Dr. Luciano esticou o olhar para o interior da loja e o viu naquela posição. Deixou

os companheiros e entrou, interrogando-o de forma muda. Indisposto a falar, o outro fez um sinal para que o médico o acompanhasse. Chegando àquele quartinho, o vendeiro deixou que o Dr. Luciano entrasse. Este observou o conjunto tentando entender

o que se passava. Depois abaixou-se, examinou o cão e apenas confirmou as suspeitas do dono da casa: - Está morto. Envenenado, parece. O senhor colocou veneno para as baratas e matou o cachorro, não foi? - Acho que sim... mas não fui eu. Com certeza, foi o Valentino. - Pobre rapaz! Vai sofrer bastante, quando souber que matou o amigo. - Vai mesmo. Doutor, eu gostaria de falar-lhe sobre coisas que estão acontecendo com ele. Coisas sem importância, ba-

nais até, mas que estão intrigando à Edna e a mim. Saíram do depósito. Sentaram-se frente a frente numa mesinha na parte interna da loja e puseram-se a conversar. O dou-

tor conhecia muito da vida e da personalidade de Valentino de modo que, a este respeito, pouca coisa Seu Leonel teve de acrescentar. Concentrou as palavras no comportamento do filho na última semana, sem omitir coisa alguma. Depois silen-ciou e ficou à espera da opinião do médico.

Ligeiramente calvo, cabelos totalmente brancos, rugas acentuadas, fisionomia fina, mãos magras e dedos longos, mesmo em roupas comuns o Dr. Luciano mais se assemelhava a um médico, que a um fazendeiro. Depois de ouvir o relato, esco-lheu as palavras:

- Não sou pesquisador da mente humana, mas lido com gente há mais de meio século e acredito que Valentino, na pré adolescência, deve ter muitas dúvidas, muitas perguntas sem respostas, muita curiosidade sobre o desconhecido - e, conve-nhamos, este povoado não oferece opção alguma para se crescer internamente. A Vila Verde é um recanto excelente para velhos que, como eu, só estão à espera da morte - e para homens como o senhor, já casado, sem grandes fantasias a concre-

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tizar... mas a uma criança como o seu filho? - fez um gesto de dúvida e continuou: - Ele não tem comunicação fácil com a rapaziada da mesma idade; tem raciocínio precoce e falta-lhe com quem permutar experiências. É um excesso de energia e de imaginação que não pode passar da área do pensamento.

Depois de curta pausa continuou, sempre escolhendo as palavras: - As ideias à solta na mente de Valentino estão sem direção, não têm para onde se canalizar. Quando há, como no caso

dele, um potencial grande mas que, por algum motivo não é aproveitado, acontece como que um engarrafamento, um ajun-tamento de energias que não podem ficar retidas e fogem ao controle do próprio dono. Aí, há dois caminhos: sublimação - isto é, o sujeito procura dar vazão a estas energias pendendo para coisas que o mundo acha louváveis, atividades benfeito-ras, obras positivas - ou então, faz o contrário: parte para a agressividade, para a prática de atos que o mundo classifica de condenáveis. Este acúmulo de energias inaproveitadas já conseguiu transformar garotos anônimos em artistas famosos. Muitos músicos, pintores, atores, escritores, benfeitores da humanidade foram forjados desta forma: sublimando os senti-mentos, canalizando-os sem saber, para o lado positivo. Mas esta mesma energia acumulada já fez criminosos também. À falta de atividade mais estimulante, à falta de desafios à inteligência, à falta de meios para liberar o ego, Valentino pode ter partido para a violência. Mas se for isso, ele não faz por maldade, não é nada consciente. Faz apenas! Pode ter sido este o jeito que encontrou para liberar as energias aprisionadas; faz sem se aperceber da violência... Está acompanhando?

O dono da casa agitou-se, desconfortavelmente: - Sim, continue. - Mas pode ser outra hipótese: Valentino pode estar somente querendo analisar a reação dos insetos e das aves que sacri-

fica e, neste caso, seria uma espécie de estudo, um tipo de experiência científica onde queira provar teorias próprias. De qualquer forma ele tem uma família estruturada, não tem contato com maus elementos aqui na vila; não tem portanto, con-dições para dar continuidade a este comportamento negativo. Acredito que, dentro de muito pouco tempo ele se habitue a esta mudança física e mental que está sendo processada e aprenda a lidar com as emoções, aprenda a controlá-las e se equi-libre por si mesmo. Esta passagem da infância para a adolescência costuma trazer alguns problemas, mas pode regredir sem consequências maiores.

- O senhor acredita mesmo que seja proveniente da idade? Este acúmulo de energia e tudo o mais? O médico refletiu antes de responder: - Creio que sim, mas não se pode ter certeza. É possível também que seu menino possua algo mais definido, como por

exemplo um problema íntimo sobre a qual não queira conversar, um conflito qualquer que não queira expor aos outros. Se for um problema íntimo... – fez um gesto de desalento - aí fica difícil, porque ele não confia em ninguém, não tem com quem se abrir

- O Padre Nicolau já falou com ele. - Sim? E qual foi a conclusão do padre? - Não sei. Foi hoje de manhã, pouco antes de eu fechar pro almoço. Depois disso, não me avistei mais com o padre. Mi-

nha mulher quer que o levemos a um especialista da cidade. O que me diz? - Levar quem? O Valentino ou o padre? Riram da brincadeira e, depois, o médico opinou: - Considerando as coisas que temos em mãos, eu diria que devemos observá-lo mais de perto - digamos, por mais uma

semana, uns dez ou quinze dias. Tudo pode ser alarme falso. Se for um estudo sobre a reação dos bichos ao morrer, logo se cansará. Se for alteração psicológica por causa da idade, este comportamento poderá não passar disso até que aprenda a lidar com as emoções; se for assim, duas semanas é tempo curto demais, mas dá pra fazermos um balanço. Se for uma reação contrária à sublimação, Valentino partirá para a violência em maior escala. Aí sim devemos agir, antes que se torne um mal maior. Der qualquer modo, o que temos é pouco demais. Devemos observá-lo por mais tempo, deixando que se forme um quadro preciso, mais definido. É esta a minha opinião.

- E como devo agir quanto à morte do cachorro? Com indiferença? Com energia? - Sem rudeza, mas sem deixar passar como se nada houvesse acontecido. Pergunte, mostre o perigo em lidar com vene-

no, intimide - sem exagero. Não se esqueça que desta vez, ele provocou a morte do melhor amigo. Veja bem: Valentino matou o amigo e isto deve ser levado em consideração porque envolve culpabilidade.

Seu Leonel assentiu com a cabeça enquanto o Dr. Luciano ia adiante: - A morte provocada, mesmo sem querer, é diferente da morte espontânea. Ou seja: se Cacau tivesse morrido atropelado

por uma charrete, não haveria sentimento de culpa em Valentino - mas da maneira como aconteceu envolverá arrependi-mento, remorso, sofrimento pessoal profundo e isto é pior que o castigo que ele poderia receber de alguém. Estou sendo claro?

- Sim. - É possível até que este fato o faça repensar e retroceder nas atitudes. Em todo caso, vá me colocando a par daquilo que

for observando. Depois, veremos o que fazer.

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VI

Terminado o terço, o pessoal saiu da capela e rumou para o campo de futebol. O campo se estendia na área traseira da igreja, ocupando também a área dos fundos da máquina de beneficiar arroz.

Anita e Valentino seguiram a maioria. D. Edna voltou para casa onde foi informada do acontecido pelo próprio médico, que externou também a ela a sua opini-

ão procurando dar pouca importância à possibilidade de implicações mais graves. Depois disso, o velho Dr. Luciano se ergueu:

- Gente, não posso me demorar mais; minha obrigação me chama. Compromisso sério! Se não estiver presente, meu ti-me perde. Uma boa tarde! Ah, sim! Prestem atenção nas reações de Valentino, quanto à morte do cachorro. Se houver indi-ferença... mau sinal. Se ficar triste, se chorar, estará dentro dos padrões e quase poderemos ter certeza de que tudo não passa de rebate falso. Mantenham-me informado.

Ao final do jogo Valentino pulava, gritava de alegria dando vivas à vitória do seu time. Pai e mãe observavam-no à dis-

tância, da porta da loja: - Ele é uma pessoa normal, Edna! Veja como reage da mesma maneira que os outros. - Quando se trata da vitória do time dele.... vejamos como se comporta diante daquilo que fez. Ele ainda está lá? - Quem? Onde? - O cachorro. No depósito. Ainda está lá? - Não. Já tirei, varri, limpei tudo. Não quero que Valentino sinta o mesmo que senti ao ver aquilo. Vamos torcer para que

sinta tristeza, como gente equilibrada. - Ou remorsos. Afinal, foi ele quem matou o cachorro. A multidão que, horas antes enchia o centro da Vila Verde foi se dispersando, e dentro de pouco a única rua estava prati-

camente vazia. Sobraram uns poucos jogadores e torcedores mais exaltados, eufóricos com a vitória, que entraram na loja a fim de comemorar. Assim eram todos os domingos, em todos os finais de partida. Ora os torcedores de um time, ora os torcedores do outro time, a loja era o lugar das comemorações semanais.

Naquele dia porém, os ânimos se arrefeceram quando sinais de chuva se evidenciaram. Com a noite se aproximando e tendo alguns deles vários quilômetros a percorrer, deixaram o recinto bem antes da hora costumeira - grande alívio para o dono da casa, o qual tinha problemas particulares a resolver.

- Não entendi direito. Comece outra vez; explique devagar, sem enrolar. - Pai, eu não queria matar o Cacau! Palavra! Só as baratas! - Disso eu sei, mas por que resolveu matar baratas? - Havia muitas, muitas baratas, pai! - Havia muitas baratas. Onde? - No depósito, oras! Onde mais poderia ser? - E como sabia que havia tantas baratas, se você não entrou naquele quartinho nenhuma vez nesta manhã? - Eu sabia. Elas estavam lá, eu sei que estavam. - Viu quando elas entraram? - Uma só. Só vi uma, mas havia mais. Milhares! Milhões delas! - Tudo isso? De onde tirou tanta barata? Só vi umas seis ou sete mortas. Valentino demonstrou espanto: - Só? E as outras? Será que foram avisadas do veneno que coloquei? - E quem poderia tê-las avisado? A quem você contou que ia colocar veneno lá? - A ninguém! Era segredo! - Se ninguém sabia... - mudando o tom de voz: - Valentino, você já é um rapaz crescido, é hora de parar de acreditar que

uma barata, mesmo que soubesse, poderia ter contado à outra. - Não é que eu acredite, não é questão de crer ou não. Elas conversam, pai! É linguagem de barata, mas falam umas com

as outras e o senhor sabe disso! E não é porque eu seja um rapaz crescido, que elas vão deixar de conversar. As baratas marcaram um encontro lá dentro.

- Encontro de baratas! Muito romântico! E onde o cachorro entra nisso? Valentino não havia ainda pensado sobre os motivos que levaram Cacau a entrar naquele depósito e respondeu dando de

ombros, a primeira coisa que lhe veio à boca: - Não sei... Decerto foi convidado. Ao dizer as últimas palavras, alguma coisa se lhe mexeu dentro do peito. Foi um sentimento incômodo, levemente dolo-

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roso ao pensar na hipótese de serem elas verdadeiras. Se o cão havia sido convidado, então era cúmplice das baratas! O coração bateu forte ao dar com esta possibilidade: Cacau, cúmplice das baratas! Cacau, um traidor! Cacau, seu inimigo! E repetiu:

- É.... ele foi convidado... acho que foi isso mesmo. - Filho, você me põe confuso com estas tolices. Não invente coisas. Vivamente, Valentino explicou: - É verdade, pai! Era uma armadilha! As baratas queriam... sabe, uma emboscada! A intenção delas era matar... matar... A fala foi interrompida quando percebeu que estava perigosamente próximo de entregar seu segredo. O pai porém esti-

mulava-o a continuar, ignorando que oferecia novas razões, novos conflitos àquela mente já bastante confusa: - Matar quem? Elas queriam matar o Cacau, por acaso? Valentino mudou de posição no sofá, para encarar melhor o homem: - Matar o Cacau? Não! Não... isto é.... - Não? Então por que o convidariam para uma reunião que, na verdade era uma armadilha? Os olhos do rapazinho brilharam quando o pai encontrou esta explicação, dispensando-o de contar para quem era, de fa-

to, a arapuca. E foi respondendo, inventando palavras que davam continuidade às palavras do pai: - Armadilha pro cachorro! Foi isso mesmo! - e emendou: - Eu ouvi quando elas combinavam. Até avisei o Cacau! Falei

assim: “Não entre lá hoje, porque elas vão cair em cima de você.” Foi assim que eu falei. Antes do almoço eu fiquei conver-sando com ele aí na varanda, e foi naquela hora que eu o preveni. Pensei que tivesse acreditado em mim mas, pelo jeito...

- Então, vejamos a sequência dos fatos: Você ouviu as baratas combinando de matar o cachorro. - Ouvi. Ouvi a voz delas no depósito e fiquei de fora, escutando. - Aí, você avisou o Cacau da armadilha e pediu pra ele não ir à reunião. - Avisei e pedi. - E contou pra ele que ia colocar veneno para as baratas? A esta pergunta, Valentino lembrou de algo importante. Não respondeu, porque novas dúvidas vieram se juntar às ante-

riores, como que aumentando as possibilidades daquele quebra-cabeças. E o homem insistiu na mesma tecla: - Você falou pro Cacau que ia colocar veneno para as baratas. Ele esqueceu disso, foi à reunião, bebeu o leite e morreu.

Foi assim mesmo? O garoto foi baixando o olhar, baixando o tom de voz, até que ela saísse num sussurro. Falava mais para si mesmo do

que para o pai: - Foi quase assim.... sim, a diferença foi que não contei pra ele que ia colocar o veneno. Eu ia falar isso depois. Era um

plano secreto, o Cacau não sabia... Ele não tinha como saber... - Fale mais alto, não estou ouvindo. - Estou pensando. Lembrei que o Cacau não sabia do veneno! - ergueu o olhar para o pai: - Agora, eu me lembro! Contei

que tinha um plano ultra secreto, mandei ele brincar pois tinha de colocar o plano em ação. Falei também que, só depois da vitória, eu contaria tudo. Só quis fazer suspense, deixar o Cacau morrendo de curiosidade.

Fingindo estar acreditando, Seu Leonel oferecia ao filho oportunidade para um desabafo, ao mesmo tempo que analisava suas emoções - tristeza ou indiferença, conforme recomendara o médico. E aproveitava para demonstrar solidariedade pela perda do amigo. O tom de voz não era duro, apenas fingia interesse para captar o que havia por baixo daquilo tudo.

A esposa veio da cozinha trazendo a filha chorosa pela mão. Sentaram-se no sofá grande ao lado do dono da casa e, em silêncio, ouviram o resto do diálogo que era mais uma conversa entre amigos que uma censura. O vendeiro continuou, no mesmo tom:

- E quando pretendia contar ao cachorro sobre o veneno? - Logo depois que coloquei as iscas, chamei o Cacau para contar tudo... mas o senhor não deixou, pai! - Quê? – defendeu-se o pai - Eu não deixei? Como não deixei se nem sabia? - Era isso que eu ia contar pra ele na hora que a mãe me chamou para almoçar. - olhou para a mulher: - Lembra, mãe? -

voltou o olhar para o vendeiro: - Lembra, pai? Lembra que me mandou lavar as mãos? Lembra que eu falei que o assunto era urgente? Lembra que o senhor respondeu que importante era o almoço e que havia tempo para conversar mais tarde?

Pai e mãe nada disseram e Valentino continuou: - Era naquela hora que eu ia falar do veneno... mas vocês não deixaram... Seu Leonel concordou com a cabeça. Chegou a sentir uma agulhada de remorso, mas depois teve vontade de rir. Valen-

tino quase o convenceu que falava de verdade, com o cachorro. O filho continuava: - Depois do almoço, eu chamei o Cacau para dar comida e contar do veneno, mas não achei ele. Pensei que estivesse

dando uma volta pela aldeia. Decerto, já estava morrendo lá no depósito. Entendeu agora? - Agora entendi. O Cacau não acreditou que a reunião fosse uma cilada e compareceu. Você quis salvar o cachorro e co-

locou veneno para as baratas. Sem saber do veneno no leite, ele bebeu e morreu. É... Faz sentido. - Claro que faz! Eu pensei assim: “- Todas as baratas da Vila Verde, mas todas mesmo estão juntas no depósito. Então,

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eu aproveito e salvo o Cacau da emboscada, ao mesmo tempo que mato a barataiada da vila inteira, numa vez só.” Foi isso. Não seria bom se todas as baratas da aldeia tivessem morrido?

- Seria ótimo. - Viu? E teria dado certo, se o Cacau soubesse do veneno e não tivesse ido lá. Mas ele pensou que fosse tudo mentira

minha; foi e morreu. Bem feito! Procurando demonstrar certa censura na voz, a mulher entrou na conversa: - Tudo está explicado, mas o Valentino não deveria mexer com veneno. Ainda mais daquela marca, que mata até gente!

Anteontem, o Dr. Luciano veio comprar um pacotinho e comentou que este é um veneno muito perigoso, que mata rápido. - e virando-se para a filha ao seu lado, no sofá: - Chega de chorar, Anita! Mamãe arranja outro cachorrinho pra você. Mais bonito ainda que o Cacau.

Entre soluços, a menina respondeu: - Eu quero o Cacau! O Valentino é tão mau, que ainda falou que foi bem feito! Ele só sabe fazer ruindade! Matou tudo

quanto é bicho da vila e.... matou o Cacau! – recomeçou a chorar – E eu não quero cachorro nenhum, só quero ele de volta! - Venha, querida. Vamos para a cama, já é tarde. - Levantou-se, ergueu a filha nos braços. - Eu não quero dormir! Quero o Cacau, já falei! - Vamos, eu vou contar uma história bem bonita. E deixe o Valentino pra lá. Se repetir estas coisas, vai ser mandado pra

um colégio interno. - Colégio interno? O que é colégio interno? - perguntou a menina, interessada. - É uma escola para onde vão as crianças más. Entram e não saem mais. - Igual cadeia? - Quase igual. - Bem feito pra ele!

VII

Valentino saiu para a rua, sentou na calçada defronte a loja. As nuvens de pouco antes haviam se dispersado; as lâmpa-

das dos postes acesas, forneciam uma claridade fraca em redor de si. Não se via pessoa alguma, a não ser o Padre Nicolau que parecia dormir sentado na sua varandinha arredondada.

O rapazinho afundou nos pensamentos recordando a conversa com o pai: “- Precisei mentir, não teve outro jeito. Ele acreditou na armadilha pro Cacau. Quase que eu disse a verdade, quase con-

tei tudo, mas parei bem na hora! Por sorte, ele mesmo sugeriu aquela história da emboscada pro cachorro e deu certo, nin-guém desconfiou de nada.”

Valentino estava abatido. Não pela morte do animal em si, mas pela traição que esta morte indicava: “- Se Cacau foi encontrado junto às baratas, é porque estava no meio delas! E como teria ido parar lá, se não fosse por

vontade própria? E foi bem na hora em que eu estava almoçando, quando ele sabia que tinha bastante tempo para trocar ideias com elas. Ficou claro que eram cúmplices! Ele me enganou.”

Escondeu a cabeça entre as mãos e pôs-se a chorar, a falar em pensamento como se o animal pudesse ouvi-lo: “- Por que você fez isso? Ninguém mais sabia do meu segredo e eu pedi tanto que não contasse a ninguém. E você pro-

meteu, Cacau! Prometeu, mas foi latir pra baratas que eu havia descoberto o plano.” - limpou as lágrimas na manga da ca-misa, derrotado - “Agora sim, estou sozinho! Sozinho contra Deus e contra o diabo! Mas foi melhor assim, porque fiquei livre de mais um adversário. Por sorte, ele não estava sabendo do veneno; se soubesse não teria tomado o leite, não teria morrido e eu nunca ia descobrir que fazia jogo duplo.”

As lágrimas não secavam e os soluços lhe sacudiam por inteiro: - “Justo você, Cacau, meu único amigo, meu quase irmão...” Um pensamento assustador se insinuou, gelando-lhe o sangue. Ergueu a cabeça sem deter o rumo daquelas cogitações: - “Era meu quase irmão e me enganava! Fazia parte da família mas também participava dos planos contra mim! Era da

família... da minha família... Minha família? Neste caso...” Não sentia coragem de dar imagem à fantasia, mas a evidência apontava para um só lado como se, ao invés de estar cri-

ando, estivesse apenas descobrindo a sequência dos fatos: “- Cacau contou à Anita! Sim... Agora tenho a certeza, pois os dois se davam muito bem. Anita negava que entendia a

linguagem dele, só pra que eu não desconfiasse que meus segredos lhe eram passados. E do jeito como é linguaruda, contou tudo aos meus pais! Eles sabem de tudo! Eu aqui, tentando esconder pra que não sofressem; e eles... não me parece que estejam sofrendo nem um pouquinho!”

Lembrou a cena da mãe levando a menina para a cama, confirmando o que acabara de pensar:

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“- Falou que vai me mandar a um colégio interno... portanto, não estão sofrendo coisa nenhuma!” Com relutância, deu corpo àquela imagem que lhe ocorrera antes: “- Se o Cacau, meu quase irmão, teve a coragem de se

juntar ao inimigo para me eliminar... Se meu quase irmão me mataria... então Anita e meus pais fariam o mesmo!” A mulher contava histórias para que a filha dormisse. Sozinho, o vendeiro repassava, mentalmente, o que Valentino lhe

dissera, procurando algum sentido oculto naquilo. Por fim acreditou que eram boas desculpas para não levar uma boa bron-ca e encerrou as reflexões. Saiu à calçada, onde sabia que poderia encontrar o menino. Chegou como que por acaso, como se não soubesse que ele estava ali. Percebeu seus soluços e sentiu grande alívio:

“- Se está chorando, seja por tristeza ou sentimento de culpa, é bom sinal.” Pigarreou para avisar da sua presença e sua voz era um carinho: - Filho, já é tarde. Amanhã você tem aula, precisa acordar cedo. Vamos, venha dormir. Valentino enxugou os olhos com as costas da mão: - Depois eu vou. - Parece que esteve chorando. - Não... - Tome um lenço e chore à vontade. O homem sentou-se à calçada e ali ficaram em silêncio. O Padre Nicolau saiu do seu alpendre, atravessou a rua transversalmente e foi juntar-se aos dois. Vendo-o aproximar-se,

o vendeiro ficou apreensivo; se percebesse o menino chorando, perguntaria pelos motivos e a conversa convergir-se-ia para o lado sentimental. Tais receios foram infundados, visto que o padre não demonstrou haver percebido coisa alguma do que se passava. Com o comentário que fez, Seu Leonel respirou aliviado:

- Ainda falando sobre a vitória do Limoeiro? Que beleza de jogo, heim? Mas na semana que vem, o Coroado vai jogar completo e a briga vai ser dura.

- É mesmo! - deu continuidade o homem sentado à calçada - Hoje, sem o Siderlei e sem o Tico, o time estava inseguro, errando os passes. Na semana que vem, vai ser fogo! - Seu Leonel fez o comentário baseado naquilo que ouvira, conside-rando que seu estado de ânimo, devido aos acontecimentos domésticos, não lhe permitiram assistir ao jogo.

- Ainda mais que o goleiro titular do Limoeiro, o Zé Mauro, parece ter se machucado, não foi? Valentino reagiu imediatamente àquele comentário: - Machucou nada! É farol! Ele só fingiu para que na semana que vem todos pensem que vão enfrentar o molenga do

Salmoura! É mancada! Estratégia de jogo e ninguém percebeu! - É? E como você sabe? - perguntou o padre enquanto se sentava também à beirada da calçada. - Eu estava bem perto dele na hora que caiu. Vi quando olhou pro Macuco e deu uma risadinha; não vi direito, mas acho

até que piscou um olho. Claro! O jogo estava no fim, a gente já levava dianteira, não tinha mais perigo de perder. Ele ence-nou direitinho e a turma do Coroado foi na onda! No domingo que vem, vocês vão ver só: o Zé Mauro vai estar de volta. Coitado do Coroado!

A prosa se estendeu por quase meia hora, levando Valentino a se esquecer das mágoas e desconfianças de pouco antes.

Finalmente, o padre se levantou: - Preciso ir andando. Tenho o motor a desligar, já passou da hora. - olhou para o menino, convidando: - Quer vir junto, Valentino?

- Ah, o senhor quer escapar do papo do futebol? - Não. É hora de desligar o gerador, você sabe disso. - Por que não deixa ligado? O ruim é o barulho que faz, mas a gente já acostumou. É tão bom ficar com a lâmpada acesa,

lendo até mais tarde! - Algum dia, teremos energia de verdade por aqui. Aí, vamos esbanjar claridade. Por enquanto, é contentar-nos com o

que temos. Você vem? - Vá, filho! Faça companhia ao padre, eu espero aqui. - O senhor tem medo de voltar sozinho, na escuridão? - fez Valentino dirigindo-se ao Padre Nicolau. - Mais ou menos. Quando o céu está limpo, lua clara, sou mais corajoso - e riu. Hoje, com este céu nublado, estou le-

vando farolete; não quero voltar tropeçando, trombando, caindo; nem quero dar de cara com algum fantasma por aí. Valentino gargalhou. Ergueu-se e acompanhou o padre, comentando: - Sempre quis aprender a lidar com aquele motor porque, se algum dia o senhor precisar de mim... - Isso mesmo! É bom saber que há substituto e que posso ficar doente sossegado. Atravessaram a rua dirigindo-se ao fundo da máquina de arroz, num quartinho sem janelas onde estava montado o gera-

dor de energia. O homem empurrou a porta, procurou o interruptor e acionou-o. Uma luz fraca trouxe-lhes a claridade ne-cessária. Mostrando o controle, o padre foi ensinando:

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- Veja: com este movimento, você leva claridade à aldeia; com este outro, deixa tudo no escuro. Esta aula foi dada de maneira teórica, apenas com gestos pois, se fosse prática, eles próprios ficariam na escuridão antes

de acabar o ensinamento. - Que fácil! Só isso? - Facílimo! Quer tentar? Valentino desligou a energia. O padre acendeu o farolete, iluminou o aposento e o rapazinho pediu: - Posso ligar outra vez? É tão gostoso! - Eu não costumo fazer isso, senão o povo fica desnorteado; mas o povo já está roncando... Pode! Valentino ligou e desligou o motor, satisfeito por sentir-se dono do segredo de levar luz e sombras à vida de cada mora-

dor. Saindo do pequeno recinto, voltaram guiando-se pela luminosidade do farolete. - O senhor é um pouco Deus né, padre? Faz dia e faz noite quando quer. O homem não pôde deixar de rir: - Que heresia, mocinho! Comparar-me a Deus só porque lido com aquela coisa? Além

disso é tão fácil, qualquer um pode aprender. Aliás, não conto pra ninguém que é fácil, senão ninguém mais vai valorizar o meu trabalho. Pensando que o serviço é complicado, todos me respeitam.

19 de AGOSTO - 2ª FEIRA

I

Hoje é dia 19, já é segunda-feira. Caderno, agora só tenho você em quem confiar. Sei que você é só meu. Não repartindo com ninguém - como o Cacau, que era repartido com todo mundo, lá em casa - não corro o perigo de

ser enganado. Ninguém mais conversa comigo; as pessoas falam, mas é assim: eu converso com elas, mas elas não conversam comigo,

mesmo quando estão conversando comigo, entendeu? É que ninguém sabe o que eu penso quando converso. Falo uma coisa, mas penso em outra coisa.

Caderno, eu não ia saber o que fazer, se você já não fosse meu amigo. Ainda bem que fizemos amizade antes, senão eu não teria coragem de falar com você agora, quando nem as árvores,

nem os bichos querem mais saber de mim. Daqui por diante, só vou contar minhas coisas pra você. Nem precisa responder, senão os outros da classe vão ouvir.

Pode deixar que eu falo e você só escuta - aliás, eu escrevo e você só lê. Então está combinado e eu vou começar: Na sexta-feira houve aquela batalha contra os passarinhos. Envenenei comida e esparramei pelo chão; armei arapucas e fiquei à espera deles. Morreram alguns com o veneno. É

veneno forte, mata até gente. Foi um pacote inteiro só pros passarinhos, mas valeu! Outros, eu matei com estilingue. De-pois, disparei uma rajada de chumbinho com a cartucheira. Nisso, apareceu a família inteira e quase apanhei do meu pai. Mas nem liguei, porque demonstrei mais uma vez que sou mais inteligente do que os que querem acabar comigo. A Anita só ficou chorando e me chamando de mau. Minha mãe não falou nada, só ficou emburrada.

No sábado não houve aula e minha mãe, que já estava desemburrada, mandou a Anita e eu cuidarmos da horta. Che-guei lá com o Cacau, aquele que era meu cachorro, não sei se já falei dele pra você - e percebi outro plano, que ia ser executado por borboletas.

Eu não matei nenhuma delas; só torturei assim: fui arrancando as asas e deixando elas no chão. Elas ficavam rolando, gemendo, gritando, mexendo as perninhas, querendo voar. Foi só a Anita chegar para começar aquela choradeira. Depois, contou tudo lá em casa e meus pais bronquearam comigo.

Domingo não houve aula, porque era domingo. Aí, foi a vez das baratas. Elas, as baratas, ficaram sabendo que eu ia ajudar na loja e combinaram de me atacar quando eu entrasse no depósito

de mercadorias. Mas eu não entrei. Coloquei veneno com leite, pão e doce envenenado lá dentro. Morreram poucas, mas serviu para fazer medo nas outras, que voltaram correndo pras suas casas.

Agora, o que me deixou mesmo magoado foi o Cacau, o meu cachorro, único amigo que eu tinha - fora você. Ele tinha passado pro lado do inimigo e ficou fingindo que era meu amigo. Quando eu descobri o plano das baratas, ele foi correndo fofocar pra elas. A traição ficou provada porque eu não contei pra ele sobre o veneno que ia colocar. Sem saber deste detalhe, ele aproveitou a hora que eu estava almoçando e foi ao depósito falar pra elas me atacar em outro lugar, pois no depósito, eu não entraria. Chegando lá, ele viu o leite, o pão, os pedaços de doce e não resistiu; como não tinha almoçado,

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lanchou com as baratas. E morreu. Morreu entre o inimigo e isso prova que esteve com ele. Fiquei chateado mesmo, porque aquele cachorro era como se fosse meu irmão. Eu gostava mais dele do que da Anita,

que é minha irmã de verdade. Mas o Cacau contava pra Anita tudo o que eu contava pra ele. Ela, do jeito que é linguaruda, foi e contou tudo pros

meus pais. O Cacau era o leva-e-traz entre eu e os outros bichos e as outras gentes. Era o degrau de cima dos bichos e abaixo das gentes, entendeu? Como ele era bicho, mas quase gente, servia de intermediário depois que eu parei de falar com os outros bichos.

Meu pai, fingindo que não sabia de nada, ficou me fazendo perguntas. A Anita, adivinhe! Abriu a boca a chorar, dizen-do que não quer outro cachorro; ela quer o Cacau de volta, porque leva tempo até ensinar outro cachorro a me enga-nar.Minha mãe falou que vai me mandar pra um colégio interno.

Colégio interno é um lugar igual cadeia, só para criança má e cheia de pecado mortal, como eu. A Anita falou que se eu for para colégio interno é bem feito.

II

- Bom dia, Seu Leonel! - Bom dia! Foi dar seu passeiozinho de hoje? - Saí antes de clarear o dia. Com este calor, não dá para ficar na cama até tarde. Onde está o Valentino? - Na escola. Precisa dele? - Não, só vim saber como se portou ontem, quando soube da morte do cão. O dono da casa pensou por um instante antes de responder: - De início, se mostrou mais surpreso do que triste. Se ficou

abalado, fingiu bem. Não demonstrou sofrimento. Pensei que fosse ficar desolado... mas falou até que era bem feito. - Falou isso? Neste caso... - Foi só para aparentar dureza, doutor. Inventou uma história de armadilha. Veja só as tolices que tive de ouvir: Que as

baratas queriam matar o cachorro e que ele, Valentino, ouviu quando elas combinavam. Que avisou o animal para que não fosse à reunião, pois era uma cilada. Que colocou veneno aos insetos e esqueceu de contar o detalhe ao cão. Que o Cacau duvidou que a reunião fosse uma emboscada e compareceu... Ah, doutor! Quanta bobagem! Esqueça!

- Não, não! Acabe de contar. E depois? - Depois... bem... o cachorro compareceu à reunião das baratas, apesar do aviso do Valentino. E, como não foi comuni-

cado que o leite continha veneno, bebeu e morreu. Daí, dizer que foi bem feito: por não haver dado crédito ao aviso dele. Dá para acreditar?

O médico deixou escapar uma risada sonora: - Muito criativo! Quanta imaginação para explicar a falta de cuidado! Eu diria que é uma auto absolvição; inventou uma

história digamos... convincente, pra inocentar-se aos próprios olhos. Esta auto absolvição é comum até nos adultos, com a diferença que os adultos não conseguem inventar desculpas tão boas quanto às de Valentino. Este menino é um gênio! E daí? O que aconteceu depois?

- Aconteceu que conseguiu me deixar com remorsos. Veja só! - Quem? O senhor? Com remorsos? - gargalhou - Por quê? - É que ele contava com tanta certeza, que me levou na conversa! E ainda por cima, me culpou por haver impedido de

contar ao cachorro sobre o leite envenenado! Juro que cheguei a acreditar! - Tentou jogar-lhe a culpa? - Não, não tentou me culpar! Só dividiu responsabilidade e fui levado, feito bobo! - deu uma risada e depois retomou o

tom sério: - Mais tarde, noite fechada, ficou sentado lá fora, chorando. - Ah, a rocha verteu lágrimas! Ainda bem! Vamos continuar observando de perto, este rapazinho. Vamos dar corda, mas

sempre segurando a outra ponta. - O senhor acha que devo arranjar outro cachorro pra ele? - Se demonstrar desejos, sim. Aliás, sempre achei que toda criança deve ter um gato ou um cão. E há a Anita, que tam-

bém gostava do animal. De qualquer maneira, deixe um outro cachorrinho em vista, pra adotar. Mas voltemos ao caso do seu filho. Seria bom se tivesse a companhia de alguém da idade dele. Alguém com quem brincar, com quem se abrir. Seria um calmante contra a violência e o fim da fantasia de conversar com paus, paredes e pedras.

- Mas o senhor conhece o Valentino. Ele não se sente à vontade com outras crianças. Talvez, com gente mais velha. - Este é o problema das crianças precoces. Entendem os mais velhos, querem estar no meio deles, querem ser levadas a

sério mas... os adultos, por sua vez, não lhes dão oportunidades, não querem saber de criança por perto. Adulto algum conta-ria seus problemas a Valentino e também não ligaria importância, caso Valentino quisesse contar os seus. Crianças precoces

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não encontram o seu meio termo e, por este motivo, são solitárias. Daí, fantasiarem um mundo só seu, quase sempre cheio de conclusões erradas; mas sempre um mundo impenetrável.

- Assim é o Valentino. Não se mistura aos seus iguais quanto à idade e não pode se misturar aos seus iguais quanto às ideias. Tem interesses naquilo que os mais velhos dizem e fazem. Ainda ontem, o Padre Nicolau entrou em discussão séria com ele, sobre futebol. Pois Valentino manteve o nível da conversa em pé de igualdade, como se fossem dois grandes técni-cos decidindo estratégias para uma final de copa do mundo. Chegaram a divergir e quase brigaram. E olhe, que ambos tor-cem para o mesmo time! Imagine se fossem adversários de torcida!

O médico ria, satisfeito: - E como acabou a discussão? - Acabou porque o padre tinha de desligar o gerador e pediu que Valentino o acompanhasse. Ele foi todo contente, pe-

dindo ao padre que o ensinasse a lidar com o aparelho. - Pois é! Qual outro menino da aldeia está interessado em lidar com um motor barulhento daqueles, desengonçado, feio,

empoeirado, fedendo a óleo? - Se nem nós, os mais velhos, estamos! - Nem nós. Se fosse possível, eu recomendaria uma terapia social para o Valentino. Falta-lhe gente que ele aceite, gente

com quem discordar, com quem possa exercitar suas fantasias. Outra criança com quem se relacionasse bem poderia entrar no seu mundinho privado e deixar que Valentino invadisse o seu. Veriam ambos suas diferenças e semelhanças; descobriri-am pontos de vista diferentes, indagariam, procurariam respostas, amadureceriam juntos.

- Se aqui na aldeia lhe falta companhia, que tal mandá-lo estudar na cidade? Poderia ser num colégio interno, ou mesmo ficando na casa das tias. Qual a sua opinião?

- Tirá-lo do seu ambiente? Deixá-lo entre crianças da cidade, que têm outras experiências? Soltá-lo num mundo desco-nhecido dando motivos à zombaria? Não sei! Ali, ele se fecharia ainda mais. Mas não se preocupe! Em qualquer momento a gente tropeça numa solução.

III

Valentino mal tocou no almoço. Trancou-se no quarto com aquela sensação de solidão, de vazio que começara no dia

anterior. A frustração pela atitude do cachorro trouxe-lhe incertezas quanto à sinceridade das pessoas. Não se detinha mais em palestras com árvores e objetos, desde o dia da tempestade. Não falava com animais - exceção feita ao Cacau - desde o confronto com as formigas. Agora, não se sentia disposto a conversar mesmo com as pessoas da família, desde a noite ante-rior. Não entendia que seus pais, cientes do seu drama, cientes que ele agia em legítima defesa, se colocassem na ofensiva como se ele, Valentino, devesse aceitar passivamente cada plano de agressão sem procurar se defender. Os pais deveriam estar protegendo-o, em lugar de censurá-lo por reagir à morte.

Saiu do quarto ansioso por ver ali, o amigo quadrúpede de sempre; mas mesmo que o encontrasse, já não seria a mesma coisa. Sentia-se solitário; queria falar, contar, desabafar; sentia necessidade de alguém que o ouvisse. Chegou à varanda e estendeu o olhar para o céu, para os eucaliptos, para o chão. Nenhum som amigo vindo dos mosquitos, nem dos passarinhos, nem das árvores, nem das formigas do chão. Nenhum olhar de simpatia, nenhuma fisionomia sorridente. Pousou o olhar em cada coisa à sua frente e nenhuma expressão de solidariedade notou. Nada! Tudo mudo, como se fossem simples coisas. Nada também na cerca, nada nos fios de arame, nada nas paredes. Cada objeto continuava a existir, mas como se fossem objetos sem vida, como se jamais houvessem se relacionado com ele. Tudo e todos o excluíram.

Andou até a rua sem saber aonde ir. Ficou parado, olhar tristonho. Por fim, tomou a direção da escola: “- Se Dona Maura estivesse aqui, eu contaria tudo pra ela. Tenho certeza que, se não me entendesse, pelo menos não ia

ficar rindo de mim. Mora noutra cidade, não deve ter tido ainda conhecimento do que me aconteceu. Se fosse eu mesmo a lhe contar, ela ficaria do meu lado... acho.”

Entrou no pátio da escola deserta. Sentou-se ali, cabeça baixa, com medo de erguer o olhar e encontrar expressões hos-tis. Não sentiu ânimo para observar a fisionomia daquela casa ao lado mas, não resistindo à curiosidade, com o canto dos olhos e de maneira disfarçada, deu uma espiada. A reforma havia terminado; a casa estava caiada, branquinha, parecendo nova. Valentino criou coragem e a olhou de frente, sorrindo. A casa permaneceu indiferente; fingiu não vê-lo, fugiu ao seu olhar. O rapaz voltou à posição anterior. Sentia um nó no peito, uma vontade de chorar...

Ao longe, o gemido choroso de um caminhão na subida, entrando na Vila Verde. Valentino apurou o ouvido, prestou a-

tenção naquele ruído e não o reconheceu; não era nenhum veículo do lugar. Saiu à rua para assistir à sua passagem, visto que era raro um caminhão da cidade aparecer na aldeia. Os motoristas preferiam a rodovia cascalhada que cortava caminho entre Ipoty e Serra Baixa, a passar por aquela estradinha mal feita, poeirenta, esburacada, cheia de curvas e pontes estreitas.

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O caminhão foi entrando na povoação e parou em frente à casa do Dr. Luciano. Valentino viu o médico sair e cumpri-mentar os recém chegados. Ouviu parte da conversa e não teve dúvidas: eram os novos moradores daquela casa reformada ali, ao lado da escola.

E viu os novos vizinhos: um homem, uma mulher e dois garotos - um deles, aparentando uns treze ou quatorze anos; o outro, um pirralho por volta dos oito anos de idade.

“- Pai, mãe e dois filhos.” O caminhão fez manobra e entrou de ré. O que parecia ser o pai abriu a porta da casa e entraram todos, a fim de conhe-

cer a nova morada. No outro quintal, Valentino avaliava a situação e as vantagens que poderia tirar dela: “- Gente nova na vila. Gente que não me conhece, não é inimiga. Levo dianteira por estar aqui, justo na chegada da mu-

dança e posso fazer amizade antes que descubram tudo a meu respeito.” Uma outra vantagem foi logo descoberta: - “E esta casa não gosta mais de mim... se ela perceber que não sou tão mau quanto lhe disseram, poderá fazer as pazes comigo.”

O caminhão começava a ser descarregado. Valentino atravessou a cerca de arame e, sem timidez alguma, dirigiu-se ao que tinha jeito de ser o chefe da família: - Precisam de ajuda? Eu moro aqui na vila e estou sem ter o que fazer. Posso dar uma mão. - Fala sério? Se quiser ajudar, serviço tem bastante! - e chamou o filho mais velho: - Gino! Gino, olha só! Mal acabamos

de chegar e já temos visita! É bom sinal! Venha conhecê-lo! O rapaz chegou sorridente: - Oi, garoto! Como é o seu nome? - Valentino. E o seu nome é Gino, não é? Ouvi quando seu pai chamou. - Gino é o diminutivo. Meu nome é Virgínio - nome da minha avó, que morreu bem no dia em que nasci. Veja que des-

graça dupla! Nascer sem avó e ganhar, de presente, o nome dela! Ah, veja aqui: este é o Elvinho, meu irmão. E você, Valen-tino, tem irmãos?

- Uma irmã. Tem nove anos, é briguenta, chorona, linguaruda, fofoqueira e o nome dela é Anita. - Puxa, como você gosta da sua irmã! - deu uma risada - Tem escola por aqui? - Lógico que tem! Olha ela ali! - e apontou para o prédio ao lado - A vila é pequena, mas tem de tudo: escola, igreja,

médico, padre, máquina de arroz, campo de futebol, cemitério, energia de motor e até água encanada. Aqui não tem telefone e nem correio; mas nem precisa, porque o motorista do ônibus leva as cartas e os recados da gente para as duas cidades e das cidades pra gente. Aqui na vila ele é conhecido por “Seu Recadeiro”.

- Viu só, Elvinho? - fez o Gino, com ar maroto - a escola fica tão perto, que não tem mais desculpa para chegar atrasado. - O Elvinho já está na escola? - No primeiro ano. Eu não estudo mais. Acabei o quarto ano, tirei o diploma de grupo e saí. Tenho de ajudar meu pai. E

você? - No fim do quarto ano. A Anita está no terceiro. Estudamos os dois com a mesma professora, Dona Maura. - e dirigin-

do-se ao garotinho, explicou: - E você, Elvinho, a sua professora será a Dona Zuleica. - Você não é diretor da escola, nem é Deus pra saber! - fez o pequeno, com ar insolente - Pode ser que eu vá para outra

sala, com outra professora. Valentino riu: - Eu sei disso, porque só a Dona Zuleica dá aula pro primeiro ano e pro segundo também. Se você está no primeiro... Fá-

cil saber, né? Mas ela é bonita, boazinha, não precisa ficar com medo. - Que jeito ela faz pra dar aula em duas salas? Ela é mágica ou é duas? - Nem mágica, nem duas. É que o primeiro e o segundo anos têm aula na mesma sala, com a mesma professora. - Tudo junto? - Tudo junto. - Nunca vi! A voz grossa do pai cortou a conversa: - Ei, Gino! Como é? Preciso de você aqui! - Já vou! - ia entrando, quando se lembrou de Valentino: - Você não queria ajudar? - Quero ainda. - Então! Soldado Elvinho e Soldado Valentino! Em forma! Ao trabalho! Marchem, seus ordinários! Esquerda, direita,

esquerda... - Descansar! - gritou Elvinho. - Descansar uma ova! Se desobedecer, vai rastejar. - Rastejar, não! Prefiro ficar de guarda a semana inteira. - Rastejar, pegar guarda e ir pra solitária, tudo de uma vez só, se não obedecer! Valentino riu bastante. Fez menção de entrar, mas lembrou que a casa poderia desabar em cima dele. Num segundo, ra-

ciocinou:

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“- Se vier abaixo, poderá matar os moradores e ela sabe disso. Com certeza, não vai arriscar vidas inocentes. Estou em segurança, posso entrar.”

Horas depois, pouco ou nada havia a ser feito. O caminhão já voltara à cidade; os móveis, humildes e escassos, se en-

contravam nos lugares. O dono da casa estava no quintal amontoando folhas secas e a mulher guardava peças de roupa em baús de madeira. Sem mais o que fazer, os garotos ficaram a conversar.

Gino falava de maneira espontânea, achando graça em tudo e fazendo piada sobre tudo. Em nenhum momento deixava de dar boas gargalhadas, contagiando os demais, que se punham a gargalhar também. Verificando que a tarde estava no fim, Valentino anunciou que precisava ir embora e convidou os outros dois a acompanhá-lo.

- Não dá, Valentino. Estou só de calção, não fica bem sair assim pelas ruas da cidade. Admirado, Valentino olhou em volta, estendeu os braços num gesto largo: - Que ruas? Que cidade? Isto aqui é mato! É

como se fosse uma sede de fazenda e ninguém repara na roupa da gente, porque não há ninguém pra ver a gente. Vamos? - Em que belo lugar nós viemos parar, Elvinho! - fez Gino para o irmão e, depois para Valentino: - Tudo bem, nós va-

mos. Vamos conhecer a região, pra gente não se perder quando sair por aí. - Se perder aqui na vila? - replicou Valentino - Que gozado! Você é bobo ou quer brincar comigo? - Não é brincadeira, não! Se não é cidade; se não há ruas e se não há gente, então o perigo é se perder na floresta. - deu a

risada costumeira, antes de gritas as ordens: - Pelotão! Sentido! Não vale correr. Em frente, marchando! Esquerda, direita... Seguiram pela estrada como velhos conhecidos. Valentino foi mostrando o centro da aldeia e respondendo às perguntas. - E agora, vão conhecer a maior e mais famosa casa comercial do lugar... e que também é a única! A loja do meu pai! - Do seu pai? Então, você é rico? - fez Elvinho. - Rico? Só porque meu pai tem uma venda? - Ele vende doce? - Vende. - Então, é rico! Entraram pela porta da loja e Valentino fez as apresentações, à sua maneira. Anita logo fez amizade com Elvinho e o le-

vou para conhecer sua filhinha, a Eliana, enquanto o irmão levou Gino a conhecer seu quarto, seus livros, seus desenhos. Só depois da saída dos meninos foi que Valentino lembrou que corria perigo e que em sua casa não estava em

segurança, como em nenhum lugar do mundo. Tomou banho, jantou antes dos demais, apanhou um livro e se trancou no quarto. Fez barricada atrás da porta a fim de não ser surpreendido.

Após o jantar, o casal trocava impressões enquanto D. Edna lavava a louça: - Acho que com isso, o problema se resolve. Se era de companhia que o Valentino precisava, aí está ela! Caída do céu,

na hora certa! - Amanhã, quando o doutor aparecer na loja, eu conto que o Valentino fez outra amizade. - Outra amizade? Que outra, Leonel? Valentino fez uma amizade. Só uma, porque não se pode dizer que tenha feito al-

guma, até hoje. - Que estranho, é verdade! Esta foi a primeira vez que ele trouxe alguém para casa; e também foi a primeira vez que pas-

sou a tarde na casa de algum menino.

20 DE AGOSTO - 3ª FEIRA

I

Na escola, Anita encontrou Elvinho assustado, querendo chorar. A menina consolou-o como pôde: mostrou-lhe a porta fechada do depósito de tranqueiras, mostrou o buraco da privada, mostrou as lagartas das flores.

Quanto a Valentino, este entrou no quintal da escola e nem parou. Passou direto por entre as crianças e foi dar uma olha-da naquela casa reformada. Queria saber se ela ainda conservava a expressão odiosa de antes, mas nem chegou a reparar, porque viu Gino de costas, junto ao portão. À primeira olhada, nem chegou a reconhecê-lo; somente quando prestou maior atenção, viu que se tratava do mesmo Gino do dia anterior e admirou-se:

“- Ontem, usando calção, parece que ele era uma criança. Hoje, de calças compridas, parece homem feito. Ou me enga-nei ontem, ou estou me enganando agora.”

Virando-se, Gino viu Valentino próximo à cerca de arame; abriu um sorriso e veio em sua direção: - Que bom que você está aqui! Queria pedir um favor. - Pois peça.

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- É o Elvinho. Meu pai vai falar hoje sobre matrícula, transferência, boletim... estas coisas. Enquanto espera a chegada da professora, minha mãe achou melhor que ele atravessasse a cerca e já fosse se acostumando com a turma.

- E onde eu entro nisso? - Ele já está aí, no meio dos outros. Só quero que dê uma olhadinha nele, que o ajude a se adaptar. Sabe como é.... pri-

meiro dia de aula no meio de gente estranha... Antes ainda de atravessar esta cerca, já abriu a boca a chorar. Agora, não estou vendo ele. Deve estar emburrado ou chorando nalgum canto.

- Igual à minha irmã. Nunca vi chorar daquele jeito. Sabe, é que eles são caçulinhas da casa, dodoizinhos das mamães. Mas a Anita já está com ele. - olhou o amigo com atenção e mudou de assunto: - Com esta roupa, botina e chapéu, você está diferente. Aonde vai?

- Ah, é que eu vou com meu pai à fazenda do Dr. Luciano. É uma derrubada que o médico vai fazer para ver se dá tempo de plantar ainda neste ano. Meu pai vai ser empregado dele.

- Quase todo mundo aqui na vila é empregado do doutor. Você vai ficar lá o dia inteiro? - Não. Meu pai vai ficar até mais tarde. O doutor vai voltar antes, porque precisa mandar uma encomenda pelo ônibus

que passa ao meio-dia. Eu volto com ele. - Então, depois da aula, a gente se vê. - Feito! Enquanto falavam, Valentino percebeu uma outra diferença em Gino - algo que não combinava com ele e que ontem,

não notara. Não pôde definir de pronto do que se tratava e só depois que se separaram foi que ficou procurando, mentalmen-te, qual era o detalhe destoante, até que descobriu:

“- A voz! Às vezes, ele fala grosso e às vezes, fala fino. Por que será?” 20 de agosto. Hoje é terça-feira. Faz justo uma semana que a Dona Maura contou do caipora e o padre me fez fazer

aquele juramento. Numa semana aconteceram tantas coisas! Ontem, mudou para cá uma família da cidade com dois filhos. Gino é o mais velho. Eles não sabem ainda que fui exco-

mungado, sentenciado à morte e ao inferno. Estou aproveitando esta vantagem e vou ficar tentando que, pelo menos esta gente fique do meu lado. Se aparecer oportunidade, vou contar tudo pro Gino. Ele é mais velho que eu, mas não muito mais velho - quer dizer: ele não é criança nem adulto. Talvez ele acredite em mim, na minha inocência.

Se não acreditar, vou contar pra Dona Maura. Nela também posso confiar porque mora na cidade, chega e sai com o ônibus, não tem tempo de ficar conversando com ninguém daqui. Decerto ainda não ficou sabendo nada contra mim.”

II

Enquanto o vendeiro enchia-lhe o copo de cerveja, o Dr. Luciano perguntou por Valentino. - Parece que vai bem... não sei. Aquela família que se mudou para cá... - Eu sei. Acompanhei tudo, da minha janela. Vi o seu filho no pátio da escola; tristonho, cabeça baixa... coitadinho! A

saudade do cachorro, a culpa por tê-lo matado e a solidão... Tudo isso pesa muito. Quase atravessei a rua para bater um papo. Nisso, chegou o caminhão da mudança, e ele parece que esqueceu do resto. Ofereceu-se para ajudar; trabalhou, con-versou, riu. Nem parecia o mesmo de pouco antes.

- Será que, com isso, ele vai melhorar? Afinal, fez um amigo - e foi de maneira espontânea, sem ser apresentado, sem ser obrigado a conversar com o outro. O que o senhor acha?

O médico parecia não participar daquela certeza: - Não sei. Temos poucos elementos ainda. Ontem, ele cometeu algum ato que poderíamos considerar anormal? Isto é,

que possa levar a preocupações? O dono da loja procurou lembrar-se e respondeu pela negativa, com restrições: - Com o Valentino, nunca se sabe. O que

é normal nos outros, não é nele. Passou a tarde inteira na casa deste rapazinho e depois, trouxe-o para casa; mostrou coisas, conversaram. Nele, isto é anormal, entende? Não sei se é bom ou ruim para quem jamais fez coisa parecida.

- Vamos continuar a observar por mais alguns dias. Pode ser que se acomode e, daqui pra diante, deixe de ser um meni-no diferente.

- E o que me diz do outro garoto? O senhor o conhece? - Quem? O Gino? Não... não o conheço. A família vem de Ipoty; o pai era empregado de um sobrinho meu. Depois, este

sobrinho substituiu a lavoura de café por gado e o homem ficou sem emprego, pois só sabe lidar com roça. Tive boas infor-mações, mas sei pouca coisa, a não ser que é gente trabalhadora e honesta. Para mim, basta. Hoje de manhã, fui com pai e filho ver um serviço na fazenda e aproveitei para analisar o rapaz, que me pareceu um bom menino; alegre, bem disposto,

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inteligente, conversador, esperto. Não percebi, algo que pudesse ser influência negativa pro nosso garoto. Aliás, até pelo contrário acredito que, se se entenderem, o Valentino vai ter um excelente companheiro que vai conseguir arrancá-lo daque-le mundo estreito e trazê-lo para este nosso vasto mundo desgraçado!

III

- Maura, faz tempo que você não entra naquele quartinho de tranqueiras? - perguntou a professorinha loura, à colega. - Entrei quando as aulas recomeçaram, agora no comecinho de agosto; depois, não voltei mais lá. - Então, entre agora! Amiga, quanta sujeira! Agorinha mesmo fui lá buscar uma caixa de giz e quase que voltei da porta.

Aquilo está precisando de uma boa faxina. Com a tempestade da semana passada então! Entrou água por tudo quanto é buraco. Juntando água empoçada mais poeira com teia de aranha, bolor, mau cheiro... parece que a gente está entrando num porão mal assombrado, dentro da tumba de um faraó. Deus me livre! Quando é que vamos poder dar uma boa limpada lá?

- Nosso problema, você sabe qual é: falta de tempo. A gente chega e sai de ônibus, sempre em cima do horário. - Estive pensando... dispensamos os alunos e fazemos o serviço em duas horas, como no ano passado. - Não se pode dispensar as crianças. No fim do ano passado fizemos isso, mas estávamos nos últimos dias letivos, lem-

bra? A bem da verdade, a gente só vinha para cumprir horário, desde que os alunos, praticamente, não tinham mais o que fazer aqui. Mas agora, no meio do ano não é a mesma coisa. É nossa responsabilidade a segurança desta meninada no horá-rio escolar. Naquele dia da semana passada, quando o ônibus voltou mais cedo por causa da ponte, tivemos de dispensar, não havia outro jeito; mesmo assim, fiquei com a pulga atrás da orelha.

- Se eles fossem direto pra casa... - Quem garante que vão? Alguns iriam direitinho pro Rio das Pedras. Um afogamento neste horário, já pensou? - Deus me livre e guarde! - benzeu-se Dona Zuleica - É melhor não arriscar. Mas então... só se eles ajudassem na limpe-

za. - Piorou! Imagine estas mais de quarenta crianças querendo ajudar! Criança de toda idade embolada naquele quartinho

de nada! E todas fazendo um esforço enorme querendo aparecer, querendo mostrar serviço. - É... só se a gente mentisse que é dia santo, feriado, que morreu o prefeito, sei lá! E mandasse todo mundo ficar em ca-

sa. Caíram ambas na risada. - E nos anos anteriores, como é que a gente fazia você lembra? - O ônibus passava de volta bem mais tarde. Dava tempo de fazer faxina, um pouco por dia. - E se a gente mandasse os alunos fazerem a limpeza? Há alguns que não fazem nada a tarde inteira e bem poderiam vir

trabalhar. - Boa ideia! Pode deixar que eu arranjo voluntários entre os meus alunos, que são maiores. - Combinado! O intervalo acabou, vamos trabalhar. Alguns alunos mais crescidos que moravam no perímetro urbano da Vila Verde não tinham obrigação a cumprir no

campo. Em dado momento, entre uma tarefa e outra, Dona Maura explicou a situação à classe e perguntou quem estaria livre naquela tarde para colaborar na limpeza. Dentre os que ergueram o braço, ela escolheu:

- Valentino, você tem certeza que pode vir? - Tenho, pois não vou fazer nada hoje à tarde. Nem amanhã, nem depois, nem nunca. - Então, você será o encarregado. Ficará com a chave e os outros ficarão sob suas ordens. - Que outros? – replicou em passo acelerado - Não quero ninguém! Eu e a Anita damos conta! - virou-se para a irmã: -

Você me ajuda? - Não ajudo porque nós dois só é muito pouco. - dirigiu-se à professora: - E à tarde, o Valentino tem o que fazer sim,

Dona Maura! Hoje é terça-feira, dia de catecismo. - O catecismo ficou para amanhã! - exclamou exaltado, o Valentino - O padre foi à cidade. E, se não quiser me ajudar,

não precisa! Faço tudo sozinho! - Mentira dele, Dona Maura! Na semana passada, inventou dor de cabeça só pra não ir à igreja. Agora, acabou de inven-

tar que o padre foi passear. Tudo mentira! - Verdade, professora! Domingo cedo ele estava lá na loja e me avisou da mudança da aula. Pediu que eu desse o recado

e me esqueci. Bem, o recado está dado aos que estão aqui; favor espalhar que a aula de catecismo será amanhã, quarta-feira, à hora de sempre.

- Tem certeza, Valentino? - perguntou a professora. - Que a aula ficou pra amanhã? A senhora acha que eu ia inventar uma coisa destas? Se não acredita, pode mandar a lin-

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guaruda da minha irmã ir perguntar. Mande ela ir lá, professora – falou com ar de desafio. Mande ela ir, que ela vai dar com a cara na porta porque o padre viajou.

- Tudo bem. Em todo caso, aqui está a chave. Se a aula ficou para amanhã, você vem hoje fazer a limpeza. E, se houver aula hoje, a limpeza fica pra amanhã. Combinado?

- Combinado! - respondeu o garoto, olhando feio para a irmã.

IV

Assim que se aproximaram do depósito, ouviram a voz de Gino: - Ei, Valentino! Você gosta de escola, heim? Passa o tempo todo aí! - Não é tanto assim, não! É que a professora pediu pra gente limpar este depósito. - Eu ajudo! - Não precisa! É um quartinho pequeno, a gente dá conta em menos de uma hora. - Eu ajudo, já falei! Sempre quis saber o que havia nos depósitos de escola; acha que vou deixar passar uma oportunida-

de destas de descobrir? E depois, em quatro, o serviço rende mais. - Em quatro? Que quatro? Se você vier, seremos três. - Espere aí. - virou-se e deu um grito: - Elvinhôôôô! O garotinho chegou correndo. - Pronto! Somos quatro. Vamos? Valentino girou a chave e puxou a porta. Junto, veio o cheiro forte de bolor. Gino comentou: - Pelo cheiro, não vai ser muito fácil, não. Quantos anos faz que ninguém limpa isto aqui? - Dona Maura falou que limparam no fim do ano. - De qual ano? – riu em cascata - Daqui a alguns dias, nem urubu quer passar em cima deste depósito! - de sorridente

passou a sério: - Vamos logo enfrentar estes bandidos! Pelotão! Sentido! Fazer o reconhecimento do terreno! Soldados Elvinho e Anita, montem guarda aqui fora, na porta do túnel e deem um tiro para o alto, se virem algo suspeito! Soldado Valentino, me acompanhe! Em frente, marche!

Sorrindo, Valentino deu um passo para dentro do depósito e Gino ficou parado à porta, olhando aquele amontoado de objetos e resolvendo por onde começariam. Foi Valentino quem decidiu:

- Primeiro de tudo, é preciso abrir a janela, aliviar o mau cheiro. Depois, a gente coloca pra fora tudo o que estiver nas prateleiras e em cima da mesa. Por fim, começa a limpeza.

Juntando palavra à ação, deu outro passo em direção à janela. - Cuidado, soldado! Eles podem estar armados! Valentino riu. Não sabia de onde Gino tirava tanta tolice. Até trabalhando inventava um jeito de brincar, como se fosse

diversão. Ia dar outro passo, mas estacou ao ver, entre um amontoado de papéis, dois olhinhos assustados de um pequeno rato. O rapazinho ficou petrificado olhando o ratinho que escondeu-se dentro do canudo formado por um mapa enrolado. Um outro ratinho cruzou rapidamente o espaço livre no chão e desapareceu entre caixas de giz. Divertido, Gino exclamou:

- Opa! Há ocupantes de verdade por aqui! Não se assustem, senhores! Não vamos disputar moradia. Valentino, que se encontrava praticamente no centro do compartimento, recuou com tal rapidez; que esbarrou no com-

panheiro que estava logo atrás, fazendo com que ele perdesse o equilíbrio. Passou por ele sem se deter e, sempre correndo, procurou refúgio no pátio coberto da escola. Com os olhos muito abertos, Valentino estava trêmulo, pálido, pronto para colocar-se em fuga estrada afora. Gino estranhou esta reação tanto fora de propósito e seguiu o amigo. Temendo assustá-lo ainda mais, não se aproximou demais e, em tom de brincadeira:

- Quê? Tem medo de rato, soldado? Até parece um garotinho de cidade grande! - Passo a passo, lentamente, foi chegan-do perto, falando sempre em tom como que descontraído: - Mas você? Um homem deste tamanho, criado no meio do mato? Não acredito! - e chegou perto o suficiente para falar em tom de voz normal, mas não tão próximo que pudesse provocar no outro alguma reação de fuga: - Vamos voltar, Valentino. Não há perigo, venha!

Expressão de terror, sem conseguir desviar o olhar do depósito, Valentino parecia não ouvir o que Gino dizia. Perdido na sua confusão mental, balbuciou apenas: - Agora são ratos!

- Não entendi o que você disse. Repita, eu quero ouvir. - Agora são ratos, foi isso que eu disse! – a voz estava carregada de agressividade. - E o que é que tem? São ratos sim, e qual é o problema? - Lá dentro há uma infinidade deles! Todos os ratos da Vila Verde! E Dona Maura sabia... ela sabia...

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Com mais um passo à frente Gino alcançou com a mão, o ombro de Valentino, onde pousou delicadamente: - Vamos, companheiro! São só ratos! Dois ratinhos de nada! Miudinhos, até! - Só dois? Só dois, os que vimos. Há outros! Todos os ratos da Vila Verde, já disse! Milhares! Milhões de ratos estão lá

dentro! - Só dois, não exagere. - Os outros estão escondidos... esperam por mim. - Por você? – perguntou Gino, em tom de dúvida. - É, por mim, sim. Mas se pensam que vão me intimidar, estão enganados. Já enfrentei e venci muitos inimigos antes de-

les e não serão estes aí que vão acabar comigo. Se eu não atacar, eles atacarão primeiro. Portanto, eu vou! - Não entendi. - Nem precisa! - respirou fundo e voltou, cheio de determinação àquele quartinho, seguido de perto por Gino que quase

corria para acompanhar-lhe a pressa. Durante este espaço de tempo, os dois menores ficaram olhando de longe, sem saber o que poderia haver no depósito de

tão apavorante, a ponto de amedrontar Valentino. Impacientes, queriam saber o que se passava mas não sentiam coragem de ir descobrir por si mesmos e só se dispuseram a se aproximar novamente quando viram que ele voltava, com muita vontade.

Os três rodearam a porta do depósito e viram quando Valentino desalojou o ratinho do meio das caixas de giz. Viram-no atirar o animal ao chão e esmagá-lo com os pés. Viram seu rosto mudar de expressão, demonstrando alegria demoníaca. Viam que ele, rindo, continuava a esmagar o rato que já estava morto.

- Pare! Pare com isso, Valentino! – era a voz de Anita em desespero. Valentino não se deteve e os de fora viram-no dançando como dança macabra sobre os restos ensanguentados. Viram

depois, quando ele tampou um lado do cartucho formado pelo mapa enrolado, enfiou a mão pela extremidade oposta e pu-xou o outro animalzinho. Viram o rapaz divertir-se com as tentativas que o rato fazia para se libertar; viram-no segurando o bichinho pelo rabo e bater com ele, na parede. Os guinchos do roedor se confundiam aos gritos lacrimosos de Anita:

- Não, Valentino! Não! Já chega! Assustado, Elvinho imitou a companheira no choro e nos gritos. Gino afastou as duas crianças dali; levou-as ao pátio da

escola e as deixou sentadas onde tentou tranquilizá-las: - Não saiam daqui. A gente só está brincando com os ratos. - Brincando nada! O Valentino está matando eles! – gritou Anita em resposta. - Não! O Valentino é nosso aliado e está desentrincheirando os soldados inimigos. É uma operação de guerra, estratégia

militar. É tudo brincadeira, não perceberam? - Não é brincadeira, não – gritava a menina. Já matou dois, você não viu? E vai matar muito mais, se encontrar. Ele é

mau, acaba com tudo quanto é bicho. Coitadinhos dos ratinhos... eles moravam ali, estavam sossegados e o Valentino não tinha nada de invadir a casinha e matar os pobrezinhos. Eu vi os olhinhos deles assustados! Eu vi!

- Quieta, menina! Fique cuidando do Elvinho, que eu vou voltar e resolver isso rebateu Gino, com autoridade na voz. Voltou a tempo de ver Valentino gargalhando de modo detestável, acabando de esmagar, com as mãos, um terceiro rato

tirado não soube de onde. Sem o tom habitual de brincadeira, com energia na fala, Gino deu ordem sem margem para répli-ca:

- Agora chega! Vamos, saia já daí! Enquanto falava, segurou com firmeza o braço do amigo e puxou-o para fora. Encostou-o à parede externa daquele

compartimento, ficou de frente olhando-o nos olhos, com as mãos nos seus ombros: - Por que fez isso? – depois de uma pausa à espera da resposta que não veio, repetiu: - Vamos, responda! Por que isso? Valentino apresentava agora, fisionomia bem diferente. Não demonstrava mais medo nem ódio, nem a determinação de

pouco antes. Tendo esvaziado os desejos de revide, trazia expressão serena, olhar de criança desprotegida. Comportava-se como se esperasse do outro, novas ordens.

- Eu perguntei o motivo de tanta brutalidade. Dá para explicar? - Eles... estão lá dentro... - gaguejou Valentino num fio de voz, apontando a porta do depósito. - Eu sei que estão lá! E pode deixar, que eu entro e limpo esta imundície toda, sozinho. Mas não agora. Antes, quero sa-

ber o que deixou você tão amedrontado e valente ao mesmo tempo. Valentino não respondeu. Abaixou a cabeça sem forças para mais nada. Gino percebeu que, naquele momento, pouco ou

nada conseguiria arrancar do outro. Retirou as mãos dos seus ombros, ficou por alguns momentos em silêncio e depois, com expressão amena, sugeriu:

- Venha comigo. Vamos sair daqui. - e foi conduzindo Valentino pelo braço: - Primeiro, vamos à minha casa lavar estas mãos sujas de rato. Depois, a gente vai conversar e você vai me contar tudo. - virando-se para as duas crianças, chamou: - Elvinho, Anita, vamos descansar!

- Mas não estamos cansados ainda! - Não faz mal, a gente descansa assim mesmo!

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Sem vontade própria, desprotegido e confiante, Valentino deixou-se conduzir. Já na casa de Gino lavou as mãos demo-radamente, até sentir que não havia mais vestígios do acontecido. O rapaz mais velho preocupava-se também pelos dois menores, que assistiram à violência da cena e, para desviar pensamentos, perguntou-lhes enquanto Valentino ainda esfrega-va as mãos:

- Soldados, escolham: preferem comer lanche agora e fazer bolinho de terra depois, ou fazer bolinho de terra agora e o lanche depois?

Foi Elvinho quem respondeu: - Lanche primeiro, bolinho de terra no meio e lanche depois, outra vez. - Muito inteligente, soldado! Permissão concedida! Batalhão! Em forma! Meia volta! Descansar! Posição de sentido!

Sem se mexer enquanto o major faz a comida. Sentados os quatro num monte de madeiras, comeram o pão com manteiga preparado por Gino, que tentava desviar a a-

tenção dos pequenos para outros assuntos e brincadeiras. Terminada a pequena refeição, já não se sentia o nervosismo de pouco antes e as ordens foram dadas, às duas crianças, pelo major:

- Batalhão! Levantar! Batalhão... em forma! Marchando: um, dois, esquerda, direita... Alto! Meia volta! Descansar! Fora de forma, brincar de bolinho de terra e não vir atrapalhar a conversa dos mais velhos!

Entre risos, Anita e Elvinho saíram em busca do material necessário aos bolinhos, enquanto os outros dois se distancia-vam buscando uma sombra onde pudessem conversar mais à vontade.

V

- Pronto! Agora, dá pra contar o que houve? - Dá... Inseguro no início, mas encorajado pelo olhar e interesse do outro, Valentino passou a relatar, a partir do que aprendera

no catecismo sobre amar e respeitar o próximo, incluindo neste próximo, até mesmo os animais, de inseto a baleia: - ... e, se você já fez a primeira comunhão, deve saber que é pecado matar bicho sem necessidade de comer ou de se defender.

- Sei. Mas, se aprendeu isso, por que mata? - Pra me defender, oras! Legítima defesa. - Como legítima defesa, se não foi atacado? - E eu ia ficar esperando? Se esperasse, não sairia vivo dali. - Sair vivo, Valentino? Que exagero! - Se for duvidar, não falo mais nada! - Não! Continue, eu não estou duvidando, só quero os pormenores! - daí em diante, procurou tomar maior cuidado com

as palavras para que o outro pudesse continuar o relato. - Já vou chegar onde você quer e vai ver como tudo se encaixa, como tenho razão. Você sabe quem é o caipora? - Quem é o quê? - Caipora. Sabe? - Não. Quem é este cara? Valentino recomeçou a explicação do ponto onde havia parado. Contou dia a dia: o caipora, o catecismo, o juramento, o

ninho de galinha, a morte do passarinho, a vingança do caipora, a condenação à morte e ao inferno decretadas pelo próprio Deus. Falou da tempestade, do raio, da aranha.

- O tamanhão dela, Gino! Nunca ouvi falar em aranha que fosse maior que esta minha mão fechada; mas aquela era mai-or que eu! Levei um susto, não sei como não morri de medo. O susto foi como que uma pancada na cabeça, igual choque elétrico entende? Mas não teve pancada nenhuma porque o choque foi dentro da cabeça e não fora. Eu não sei contar, mas foi isso que aconteceu: uma pancada elétrica dentro da minha cabeça. Desmaiei; acho que desmaiei, porque quando vi, esta-va chovendo forte e não estava chovendo na hora que caí.

Desde o começo daquela narrativa, Gino percebeu a confusão entre ideias mal explicadas e pior compreendidas. Notou a inconsistência dos fatos mas não o demonstrou, deixando o companheiro à vontade para continuar suas confidências. Sentia curiosidade de saber até onde ia dar aquilo tudo.

Valentino contou da perseguição que passou a sofrer: o plano das formigas, dos passarinhos, das borboletas e das bara-tas. Com voz triste, sentindo um embargo na voz que o impedia de ser mais claro, contou da traição do Cacau, que fazia jogo duplo com as baratas. Falou da família que estava ciente de tudo através das informações que Cacau passava a Anita.

Em outra situação, Gino teria gargalhado por tanta criancice. Houve momentos que, por pouco, não o fez. E Valentino estava chegando enfim, ao episódio daquele dia:

- E ontem, inocente demais, pensei em contar tudo à Dona Maura. Nem imaginava que ela já sabia e que também estava

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contra mim, também querendo me mandar pro quinto dos infernos. Gino olhou espantado para o amigo: - Como? A professora também? - Você não percebeu? Ela juntou tudo quanto é rato da vila naquele quartinho e me pediu para entrar lá! - Será que foi mesmo combinação? Você acha que ela entende linguagem de rato? - Que pergunta, Gino! As gentes grandes conversam com os bichos, igual a nós. - Igual a quem? - Igual a nós, oras! Se nós, crianças, podemos falar com eles, por que os adultos fingem que não podem? - e fixou o o-

lhar no amigo, expressando indignação; fez pausa de um ou dois segundos e continuou: - Quando vi os ratos fiquei assusta-do! Eu não estava esperando, entendeu? As outras armadilhas eu percebi antes e me preparei. Hoje, não. Quando dei de cara com os bichos, já estava lá no meio deles! Era tarde demais pra imaginar um plano de defesa e por isso, saí correndo... que mais poderia fazer?

- Mas por que aquela violência toda? As crianças ficaram amedrontadas... e até eu! - Até você? Que bom! - Valentino caiu na risada - Se você, que é gente quase grande sentiu medo, pense só nos ratos,

que são ratos e pequenos! Imagine só aqueles que estavam esperando a vez de morrer! A violência foi pra isso mesmo: fazer medo nos que estavam escondidos, espiando. E deu certo, porque desistiram de querer me matar.

- Desistiram? Como sabe que desistiram? - Eles me atacaram? Atacaram? Não! Se não me agrediram foi porque desistiram. O amigo fez um gesto afirmativo com a cabeça, disfarçou a vontade de rir e nada disse. Gino era um menino bastante amadurecido para a idade que tinha. Vindo de cidade grande, tivera contato com os mais

diferentes indivíduos e situações. Sua escolaridade numa grande instituição urbana em contato com uma multidão de pesso-as diferentes, participando de assuntos e problemas de toda ordem deu-lhe oportunidade para aprender muito mais do que se poderia supor.

Também ele tivera suas fantasias, seus medos, suas fantasias tolas quando pequeno; mas, com o tempo, analisando por si mesmo, observando acontecimentos, perguntando coisas aos mais velhos, foi se instruindo e montando seu próprio sistema de ideias, que não diferia muito daquelas normalmente aceitas pela maioria. Por outro lado, sua família não era apegada a cegos preceitos religiosos, a ponto da justiça de Deus infundir tanto terror como vira em Valentino. Conhecia portanto, à sua maneira, as coisas relativas a Deus, adquiridas mais por intuição do que propriamente nos livros e templos de fé. O que conhecia era pouco, mas o bastante para perceber que aquela mente havia sido afetada por causa de conteúdos mal adminis-trados por adultos que, na ânsia de ganhar uma alma para o céu e, sobretudo objetivando facilitar seu trabalho na educação dos pequenos, usaram meios pouco apropriados. De boa índole, com conhecimentos muito além do esperado para a idade e condição social, com sentimentos paternalistas desenvolvidos na atividade de proteger o irmão, Gino sentiu enorme piedade pelo amigo e desejos de protegê-lo também. Não sabia o que se passava com o outro e, por isso mesmo, não se sentiu enco-rajado a desfazer seus delírios assim, abruptamente.

O tom de voz de Valentino, como que pedindo socorro desarmou-o: - Você não acreditou, né, Gino? Fale a verdade! Pode falar! Demorou a dar resposta, ponderando mentalmente: “- Ele é sincero e crê em tudo o que me contou. Se eu falar a verda-

de, ele vai pensar que também desejo sua morte e se voltará contra mim. Preciso ter cuidado com o que vou dizer.” - E res-pondeu, finalmente:

- Eu acredito. No seu lugar, eu também ficaria com medo e agiria igual. Mas você não está mais sozinho. Eu ajudo a se defender. Em dois, é mais fácil descobrir e desmoronar planos assassinos.

- Verdade? Você me ajuda? - o olhar de Valentino era ansioso e confiante. - É claro que sim! Só quero ver quem vai ter a coragem de enfrentar nós dois juntos. O filho do vendeiro sorriu aliviado, sentindo que fizera bem em contar seus problemas. E Gino, para demonstrar que en-

tendia seus temores, perguntou, num sussurro, com ar de cumplicidade: - Você não tem medo desta árvore que estamos embaixo? Ela ouviu a conversa e agora sabe tudo. Valentino respondeu também num sussurro, com a mão em concha ao ouvido do amigo: - Ela já sabia de tudo, seu bobo! Todas as árvores estão sabendo! Eu contei mesmo assim, para que ela soubesse que eu

matei o passarinho sem querer. Desta maneira, ela vai me defender quando ouvir falando mal de mim. Você prestou atenção que ela não disse nenhuma palavra, o tempo todo?

- Sim, percebi. - Então! Acho que deu certo! Ela acreditou na minha inocência. Depois de longa pausa, foi Valentino a dar as ordens: - Batalhão! Levantar! Com novo ânimo, ergueram-se do chão.

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- Vamos lá, Gino! Se me ajudar, damos conta daqueles ratos e fazemos a limpeza... apesar da Dona Maura não merecer. Quero mostrar a ela que não é fácil acabar com o Valentino aqui! Vamos?

Gino refletiu e retrucou: - Acho que não. É preciso mudar de estratégia. Vamos enganar aqueles ratos: A gente faz eles pensarem que hoje, você

não vai mais entrar lá. Aí, todos voltam para casa e nós fazemos a limpeza em segurança, sem ter de brigar com bicho ne-nhum. Gostou da ideia?

- Boa! Mas como a gente faz pra enganar eles? - Primeiro, eu vou lá e fecho a porta... - Sozinho? Você não tem medo de voltar lá, sozinho? - Eu não! Eles querem pegar você, não eu! O excomungado não é você? Pois então, eu não corro perigo. - E depois? - A gente dá um tempo pra que eles sumam e, enquanto isso nós vamos dar uma volta por aí. Eu gostaria de saber o que

há lá perto daqueles montes. - e apontou a Floresta dos Morretes - Vamos descer até lá, distrair a cabeça, divertir um pouco, esquecer os dramas. Na volta, a gente pega firme na limpeza.

- E se não der tempo? A sujeira é muita, vai demorar bastante. - Se não der pra fazer tudo hoje, fica um pouco pra amanhã. - Amanhã tem aula de catecismo. - O dia inteiro? - Até as três. - Pois amanhã, das três em diante, a gente acaba o serviço. Fechado? - Fechado. Mas, do Brejão pra lá, se você quiser ir, vá sozinho. Nunca mais piso naquela floresta. - Eu também não quero arriscar, depois de tudo o que você me contou. E agora, fique aqui me esperando, que vou fechar

aquela porta e volto logo. - E precisa fechar a porta? O que que tem se ela ficar aberta? - É por causa das crianças. Sem nós por perto, vão querer entrar e xeretar em tudo... você sabe como criança é curiosa!

Vá que quebram alguma coisa? A responsabilidade é sua! E depois, vão se assustar com tanto rato. Na verdade, Gino não fazia tanta questão de conhecer a redondeza - pelo menos, não naquele dia. Sua intenção era que

Valentino continuasse afastado daquele local onde teria, à frente dos olhos, os restos do incidente vivido há pouco; restos que fariam ressurgir em seu espírito o medo, a desconfiança. Um segundo motivo era captar a confiança do novo amigo mostrando-lhe que não fugiria ao seu convívio, não obstante sua alma estar perdida para o diabo. Caso ganhasse sua confi-ança conseguiria, pouco a pouco, afugentar seus pavores.

Gino voltou sozinho ao depósito da escola. Ao passar pelas crianças menores, Elvinho reclamou: - Ei! A gente já fez bastante bolinho de terra e já brincou de estradinha e de caminhãozinho. É hora de comer outra vez,

esqueceu? - Vá à cozinha, faça um lanche bem grande. Um, não! Dois! E comam tudo! - Só pra nós? Vocês não? - Nós não. - Que bom, sobra bastante pra gente né, Anita? Levantou do chão, sacudiu a terra da roupa e já se dirigia à cozinha quando viu os dois mais velhos que se distanciavam: - Ei! Aonde vocês estão indo? Foi Valentino quem se voltou para a resposta: - A gente vai lá perto do Brejão e volta logo. - Eu vou junto! - gritou Elvinho. - Eu também! - era Anita. E já se dispunham a acompanhá-los, quando Gino os impediu, aos gritos: - Nada disso! Nós vamos só até naquela árvore. Tem sapo lá! Nós aguentamos correr; vocês não! Foram acompanhados de longe, pelo olhar invejoso dos pequenos.

VI

Haviam apenas passado a metade do caminho, quando Valentino sentiu como que uma picada no rosto, acompanhada

por dor aguda. Deixou escapar um grito; Gino assustou-se, sem saber do que se tratava e nem parou pra perguntar. Pegou o outro pelo braço e puxou-o de volta para casa. Enquanto corriam, quis saber:

- O que aconteceu, Valentino?

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- Fui picado por alguma coisa. Está doendo muito, muito. - Cobra? - Não... Foi no rosto. Aqui, veja... Sem parar de correr, Gino deu rápida olhada e opinou: - Correndo, não dá pra ver direito. Parece picada de abelha. Está meio vermelho em volta... Ah, é abelha sim! O ferrão

ainda está grudado. Tire a mão que, em casa, eu arranco ele daí! Continue correndo, que o enxame pode estar vindo atrás! Morro acima e na carreira, ainda conseguiam falar apesar da voz entrecortada pelo cansaço: - Gino, já fui picado por abelha, por marimbondo, mas... nunca doeu tanto... será abelha mesmo? - Não vi. Parece abelha, por causa do ferrão... Não sei se é. Já em casa, Valentino nem entrou. Sentou no chão mais caído do que sentado, encostado na parede. Na cozinha, Gino

perguntou à mãe: - O álcool! Onde está o álcool? - Na prateleira da despensa. Tem só um restinho no fundo. Pra que quer o álcool? - O Valentino levou uma picada! - Foi cobra? - Não. Parece abelha, marimbondo, sei lá! É quase igual. - Então, não tem perigo. Daqui a pouco a dor passa e ele sara. Portando a garrafa com álcool, Gino voltou para junto do amigo. Retirou o ferrão e desinfetou a região avermelhada. - Minha mãe falou que se for abelha, não há perigo. - Eu sei... conheço abelha, mas é diferente. É uma dor fininha..., uma dor arrepiante... E o arrepio desce pelo corpo. Pa-

rece frio... até o arrepio dói... e não posso falar... direito. E sinto mais um... mais um troço esquisito. - Que troço? Valentino não respondeu. Respirava com dificuldade, como se estivesse muito cansado. Anita e Elvinho, olhar de despeito, chegaram perto como quem está pouco ligando. Em coro, começaram a bater o pu-

nho fechado na palma da outra mão, gritando: - Bem feito! Bem feito! - Pelotão! Bico calado! - os dois se calaram e Gino perguntou: - Por que foi bem feito? O que ele fez de mal? - Vocês não quiseram levar a gente junto. Bem feito mesmo! - retrucou Elvinho, emburrado. - Batalhão! Meia volta! Marchando! Um, dois, um dois... bem longe daqui, vão! - e virando-se para Valentino: - Como

é? Melhorou? Com dificuldade, o outro respondeu: - Estou sentindo uma... uma tontura. Dói muito... Não é dor de abelha, não... É pi-

or... uma dor... dor arrepiante, fina e comprida no... corpo inteiro... - É que viemos correndo, depois de tanto tempo sentados. Vai passar. - Meu corpo está... formigando. Eu estou ficando tonto... tonto. Tudo está... virando em volta de mim... Tentando falar, Valentino começou a tossir, dificultando ainda mais a emissão da voz: - Eu... meu estômago... acho que... que vou vomitar. - Aqui, não! Vá lá longe, perto da cerca. Eu ajudo, venha! – deu-lhe a mão, ajudando-o a se erguer. Devido às tonturas, Valentino não se sustinha em pé. Cambaleando e apoiado em Gino, deu alguns passos. - Pronto! Aqui, pode. Segure neste pau da cerca... isso! Vou buscar água com açúcar. É calmante, ajuda a passar o susto. No minuto seguinte, uma caneca contendo água com açúcar era estendida a Valentino: - Beba. Vai melhorar, você vai

ver. Valentino tentou, mas não conseguiu: - A garganta... não posso engolir... nem falar direito... Falta... falta de ar... Me falta o.... ar... - e tossia, como se estivesse

engasgado; com as mãos no pescoço, parecia estar sufocado. Gino, que estava assustado entrou em pânico. Não sabia o que fazer e, na falta de coisa melhor, chamou a mãe. Ao ver o

estado em que se encontrava Valentino, ela achou por bem que seus pais fossem avisados. - Vá, filho! Chame o pai dele. A mãe, não! Não conte nada a ela! Valentino pode estar só engasgado, não há necessidade da mãe se preocupar. Vá correndo!

Gino saiu na carreira em direção à loja. Encontrou lá o Padre Nicolau, que contava sobre a entrevista que tivera com o Padre Dimas. O recém-chegado interrompeu o assunto: - Seu Leonel, o Valentino está mal! Venha, eu conto no caminho!

- Passando mal? O que houve com ele? - Levou uma ferroada; acho que de abelha, mas... - Abelha? Então ele está fazendo fita, não precisa de mim. - Por favor, Seu Leonel! Foi minha mãe quem mandou chamar. - Neste caso... Padre, chame a Edna, por favor. Peça que fique tomando conta do balcão. Eu volto já. - Vá tranquilo, eu cuido disto aqui. Deixe a D. Edna em paz, é melhor que ela nem fique sabendo.

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VII

O vendeiro ergueu o filho nos braços e saiu rumo à casa do médico. Anita foi seguindo o pai: - O que tem o Valentino? - Não sei ainda. - Ele está morto? - Que pergunta idiota! Fique aí, que eu volto logo e a levo para casa. Atravessou a rua, entrou na casa sem bater, cha-

mando em altos brados pelo Dr. Luciano. D. Etelvina, a empregada, acudiu ao chamado: - Meu Deus! O que aconteceu com ele? - e sem esperar resposta: - Coloque-o aqui, neste sofá. Não, não coloque a almo-

fada; deixe-o estendido, que eu vou chamar o doutor. - e saiu tão depressa quanto as pernas o permitiam e voltou em segui-da, acompanhada pelo dono da casa.

Valentino se mostrava ofegante, batidas cardíacas muito acima do normal, rosto congestionado, coloração da pele ver-melho-arroxeado, olhos saltados para fora das órbitas, respiração difícil.

- O que houve? - perguntou o médico ajoelhando-se ao lado do garoto. - Não sei direito. Aquele rapaz, o Gino, foi correndo me chamar. Falou que era picada de abelha, mas não pode ser. Qual

é a sua opinião? - Hmmm! Parece mesmo uma picada aqui, no rosto. - Sim, mas uma abelha o deixaria neste estado? - O Gino falou quais foram os sintomas? - Ele veio me contando pela estrada. Falava depressa, enrolando tudo. Pelo que entendi, os sintomas foram muita dor, ar-

repios fortes, corpo formigando, tonturas... - Vômito? - Também. Ah, ele parecia engasgado, não conseguia falar direito e nem pôde engolir um calmante que o Gino arranjou.

Doía a garganta, tinha falta de ar. Não sei se falei tudo, ou se repeti coisas. - Sem dúvida, o Valentino foi atacado por abelha. Africana. São exatamente estes, os sintomas. - virando-se para D. E-

telvina: - Vamos tentar com cortisona injetável, que age mais depressa. Prepare a seringa! - e, para o vendeiro, perguntou: - Já ouviu falar em abelha africana?

- Não sei. Acho que não. Puxando o amigo para longe dos ouvidos do garoto, o médico explicou: - Também conhecidas por abelhas assassinas, costumam atacar em bando. Há pessoas que são praticamente insensíveis à

toxina injetada por elas. Estas pessoas são quase imunes e podem até ser atacadas por um enxame inteiro que, se forem socorridas a tempo e medicadas convenientemente, não sofrem consequências mais sérias; quando muito, dias depois o corpo reage expelindo o veneno sob a forma de tumores. Mas há outras pessoas que...

O médico não pôde terminar a explanação, porque a ansiedade do pai não o permitiu: - No caso de Valentino, o que pode acontecer? - Ele está me parecendo muito, mas muito sensível mesmo. Tudo vai depender de como o organismo vai se comportar na

fabricação de anticorpos. - Doutor, parece que o senhor se referiu a estas abelhas como assassinas. Ou ouvi mal? - Ouviu bem. É isto que estou tentando lhe dizer. São abelhas, cujas ferroadas chegam a matar. De acordo com as rea-

ções do organismo, uma só abelha pode levar à morte. Quanto ao Valentino, não quero criar ilusões. As possibilidades dele sair desta com vida me parecem... mínimas.

- Mas foi uma abelha só! Como é possível? - Seu filho é altamente alérgico à toxina desta abelha. Neste caso, a reação será de forma grave. Ele está sentindo falta de

ar; olhe pra ele! Veja como sente dificuldade em respirar. Significa que está havendo fechamento da glote, ou seja: a laringe está sendo fechada por intumescimento isto é, por inchaço. Devido à alergia, esta região da garganta fica inchada por dentro, fechando o canal por onde passa o ar. Se fechar por inteiro, haverá morte por asfixia.

Com mãos trêmulas, D. Etelvina acabou de preparar a injeção. O médico ajeitou os óculos, apertou o garrote no braço do

pequeno paciente; desinfetou o local, tomou a seringa das mãos da enfermeira e picou a pele. Afrouxou o garrote e lenta-mente, começou a injetar o líquido.

Seu Leonel assistiu àquele ritual e depois perguntou: - Doutor, responda sem rodeios: quais chances o Valentino tem? O médico ergueu o olhar numa censura muda por aquela pergunta ali, ao alcance dos ouvidos semiconscientes do garoto

e, sem parar de injetar o medicamento, respondeu aparentando calma: - Ah, os pais! Preocupam-se por qualquer coisa! Uma picadinha de abelha poderia colocar em perigo a vida de alguém?

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Ainda mais de Valentino? É claro que ele vai sarar! Não obstante, pouco depois, outra vez a sós com o comerciante, foi franco: - Eu não diria que vai morrer. Diria que pode

morrer. A partir de agora, estamos começando uma guerra contra a morte. Só Deus sabe quem vencerá. - e colocou a mão no ombro do amigo demonstrando com este gesto, a extensão da tragédia.

- Pelo amor de Deus! Faça o que for preciso! Gaste o que for imperativo! Cobre o quanto quiser, mas salve o meu filho! - Não se trata de dinheiro, Seu Leonel! Nem de boa vontade. - Então... o quê? Fale! O que eu posso fazer para ajudar? O médico, mais para manter aquele pai ocupado, mais para que ele pudesse se sentir útil, mais por caridade do que por

necessidade, respondeu: - Vou precisar de alguns remédios que estão em falta. Eu preparo a receita e o senhor poderá ir buscá-los na cidade. Fora isso, é só esperar, rezar e confiar que o organismo reaja.

- Faça a receita! Eu vou avisar lá em casa e pegar o caminhão! - as últimas palavras foram ditas já na rua, tal era a pressa daquele homem.

Voltou para casa quase a correr, pensamentos confusos, sem saber como daria tão más notícias à mulher. Antes de trans-por a porta procurou se acalmar, aparentando despreocupação. Conseguiu frear o tamanho das passadas, respirou fundo e foi adiante. Encontrou o Padre Nicolau servindo no balcão, conforme prometera. Passou direto casa adentro, à procura da espo-sa. Tentou falar com naturalidade de modo a não alarmá-la: - Pois você sabe o que o Valentino aprontou desta vez? Foi passear perto do Brejão e foi ferroado por uma abelha. Agora, deu de fazer manha, como se estivesse passando mal.

- Picada de abelha, só isso? – olhou o marido com desconfiança: Ou não foi só isso? O que mais aconteceu? - Nada, mais nada. Coitado do Gino! Sabe como é rapaz de cidade... nem conhece abelha, imagine! Pensou que o caso

fosse grave e veio correndo me chamar... A mulher olhou-o de viés, como não aceitando que tão pouca coisa derrubaria o filho: - E onde está o Valentino agora? - É claro que eu não ia dizer pro Gino que picada de abelha é coisa comum por aqui, quase tão comum quanto picada de

pernilongo. Precisei fingir que o caso era sério e até levei o Valentino para a casa do doutor para desinfetar. - e concluiu de forma negligente, procurando dar às palavras, um tom natural: - Agora, vou dar um pulo à cidade. São uns medicamentos, só uns comprimidos pra tirar a dor e não dar febre. Ah, sim! A Anita está na casa daqueles meninos, o Elvinho e o Gino. Ela estava brincando tão distraída, que fiquei com pena de trazê-la. Se quiser, feche a loja por hoje.

Já ia saindo, mas a esposa correu-lhe atrás: - Leonel, você está mentindo! Não é nada tão simples como diz! O que aconteceu com ele? - Ah, as mães! Preocupam-se por qualquer coisa! Uma picada de abelha poderia colocar em perigo a vida de alguém?

Ainda mais de Valentino? - disse em resposta o marido, repetindo exatamente as palavras que ele ouvira do médico - Não é nada grave, só alergia. Bem, já vou indo. Não posso me demorar senão atrasa a medicação.

O padre, ouvindo este final de diálogo percebeu que, realmente, o vendeiro estava procurando encobrir alguma verdade desagradável e procurou ajudar: - Se vai à cidade, use o meu carro. No caminhão vai demorar muito. - diante da indecisão do outro, insistiu: - Por favor, aceite! Assim que cheguei da entrevista com o Padre Dimas já reabasteci, verifiquei pneus, faróis e ele está pronto para ser usado. Vou tirá-lo da garagem, aguarde aqui! - e saiu.

O vendeiro teria preferido sair em companhia do padre, para poder fugir às interrogações e dúvidas da mulher. E estava certo porque ela, pequena e frágil, nesta hora se assemelhou a uma fera defendendo a cria. Encarando-o de frente batia os punhos fechados no peito do marido, exclamando: - Ele vai morrer! Leve-o com você à cidade! Lá há maiores recursos, melhores médicos e hospitais. Não deixe o Valentino morrendo aqui, Leonel!

- Que tolice, Edna! Já lhe disse que foi só uma ferroada de abelha. Além disso, o doutor está precisando de outros remé-dios para uso dele próprio e para a farmacinha particular. Para o Valentino mesmo, é quase nada; uns comprimidos contra alergia, só. Eu vou à cidade mais para fazer um favor ao médico.

- Estocar a farmacinha do doutor com tanta urgência? Não seja teimoso! O Valentino pode estar mal, leve-o com você! O homem segurou a esposa pelos pulsos, olhou-a de frente e retrucou, em tom enérgico: - Edna, preste atenção: o pro-

blema pode não ser tão simples, mas não se trata do médico. O problema, se houver, é com o menino. O mesmo tratamento que receberia na cidade vai receber aqui. Se tiver de piorar, será por vontade de Deus. Se Ele achar que nosso filho deve sarar, ele vai sarar até sem tratamento. E, se Deus não o quiser, não hverá remédio, médico ou hospital do mundo que o cure.

A mulher entendeu a extensão do mal; pendeu a cabeça no peito do vendeiro e chorou. Depois, mais calma, falou: - Vai, Leonel. Vai com Deus, eu vou ficar rezando. Vai e não demore.

O Padre Nicolau parou o carro à frente da loja. O vendeiro tomou a direção e partiu, sentindo certo alívio por poder se afastar da mulher, cujo sexto sentido detectara a alcance do problema. Freou defronte a casa do médico, apanhou a receita e partiu deixando para trás uma nuvem de poeira.

A sós, o homem pôde chorar.

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VIII Anoitecia e Valentino não apresentava sinais de melhoras. O Dr. Luciano pediu à D. Etelvina que ficasse em sua casa

naquela noite, ajudando-o na vigília e no revezamento ao lado do pequeno doente. - E o senhor chegou a pensar que eu pudesse ir embora? Mesmo que não pedisse, mesmo que não quisesse, eu ficaria as-

sim mesmo. O garoto dormia um sono agitado, que não se poderia considerar sono, propriamente. O peito arfava, o ar sibilava a cada

esforço para inspirá-lo e o mesmo esforço para expeli-lo. A pele se cobriu de uma vermelhidão muito semelhante à irritação provocada por coceira, porém bem mais acentuada. Ciente de que nada podia fazer senão esperar, o Dr. Luciano saiu até a varanda a tempo de ver Gino que, saindo, levava Anita para casa. Ficou ali aguardando seu regresso, admirando-se por não haver pensado ainda em lhe falar. Precisava saber exatamente o que e como acontecera; perguntaria também sobre o com-portamento de Valentino apesar de que, naquela hora, havia maior preocupação pela saúde física que com a mental - mas, enquanto esperava o resultado da medicação, nada impedia de investigar o outro problema.

Gino demorou-se bastante a conversar com D. Edna. Esta lhe fez perguntas e, ignorando que ela não estava a par dos de-talhes, o rapaz não vacilou em relatar cada minúcia, no que era ajudado por Anita, que acrescentava miudezas por sua conta.

De volta, Gino atendeu ao chamado do médico que solicitou um relato do episódio, com suas palavras. Os fatos foram narrados em minudências, desde o momento em que saíram rumo ao Brejão, até a chegada do pai de Va-

lentino - coisas que o Dr. Luciano já conhecia mas, que era diferente saber pela ordem cronológica, de quem estivera pre-sente o tempo todo. Quando o rapaz terminou, fez-se silêncio; o médico tamborilava os dedos na cadeira, pensativo. Parecia que o assunto terminara e Gino sentia-se desconfortável na cadeira. Já pensava em se despedir, quando o outro perguntou:

- E antes? - Antes? Antes do quê? - Como é que o Valentino estava antes disso? O que fazia em sua casa? O que conversaram? O que os levou a dar um

passeio? Indeciso, Gino não sabia o que responder. Todas estas perguntas tinham uma única resposta. Sentiu grande tentação em

contar o que ouvira do amigo, mas não sabia até onde podia confiar. Inadvertidamente, o doutor poderia fazer algum co-mentário na frente do enfermo, o que o levaria a descobrir que seu segredo fora traído. Não. Os problemas íntimos de Va-lentino não seriam revelados, por enquanto. Aliás, sentir-se-ia constrangido falando de uma condenação ao inferno e arma-dilhas de bichos. Procurou na resposta ser o mais fiel possível sem mentir, mas ocultando verdades:

- Ele e Anita iam limpar o depósito da escola e nós - o Elvinho e eu - fomos ajudar. Primeiro, a gente deu uma olhada, só para ver o tanto de sujeira que tinha e saber quanto tempo ia ser gasto. Depois, achamos melhor trabalhar com a barriga cheia, porque já era quase hora da merenda. E fomos para minha casa comer pão com manteiga. Foi por isso que ele estava lá.

O médico achou plausível a explicação mas foi adiante, tomando cuidado com o que diria: - Parece que ouvi as crianças - as duas menores - chorando. - Chorando? - Gino não queria mentir, mas foi obrigado a fazê-lo: - Chorando, não! As crianças estavam brincando. Ali-

ás, nem conseguimos fazer o tal balanço da sujeira porque entramos, Valentino e eu, na brincadeira também. Havia tempo de sobra, a tarde inteira pela frente e a gente se distraiu. O que parecia choro eram risadas, gritos, brincadeiras.

- E depois, vocês conversaram. Sim, devem ter conversado porque, de tardezinha, não haviam feito limpeza nenhuma. O rapaz olhou para os pés, à procura de inspiração: - É... a gente conversou. - Hmmm! Ele contou alguma coisa de si mesmo? Alguma coisa do cachorro que morreu anteontem? - Do Cacau, não é? Falou sim. - Pois perdeu o melhor amigo, de maneira estúpida. Ele está ainda muito amargurado? - Parece que... sim... é... sim, está. Percebendo as reticências, o médico insistiu: - Ele está triste porque sente falta do cachorro ou por algum outro motivo? - Não sei. Está chateado, não por causa da falta... É que... não sei explicar direito. Gino sentiu que fora longe demais; que deveria ter sido menos indeciso e ter falado menos pois, o que dissera e da ma-

neira como fora dito, faria com que o homem desconfiasse e acabasse por arrancar-lhe a verdade inteira. E ficou à espera de novas perguntas embaraçantes, entretanto o próprio doutor ofereceu-lhe sem querer, uma saída:

- Não sei se ele falou, mas foi o próprio Valentino quem matou o cão. Sem querer, mas matou. Este fato pode ter gerado algum remorso. Procure se lembrar, é importante: Valentino está sentindo o quê? Solidão? Sentimento de culpa? Saudade?

- Acho que é... arrependimento. Não, não é bem arrependimento. Não pode ser arrependimento, porque matou sem que-rer, não foi? Ele está sentindo que foi culpado. Matou sem querer, mas matou, entendeu? Sentindo culpa, é isso!

- Então, ele se sente culpado. É normal.

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- Sabe, ele falou pouco sobre isso e quase chorou. Mas do cachorro não contou mais nada. - Do cachorro não contou mais nada. - repetiu pensativamente, o doutor - Se falaram pouco sobre o animal, o que mais

conversaram? Nesta resposta, Gino se saiu melhor: - Eu contei a coisas da cidade. Do lugar onde morava, da escola onde estudei. Só

isso. Ah, falamos também de... namorada! - sentindo-se aliviado por esta inspiração, continuou: - Perguntei se tem namora-da e ele respondeu que aqui na vila só tem menina feia, que são todas burras e infantis... umas bobocas, foi o que ele disse.

Dr. Luciano riu. Percebeu o papel ridículo que fazia, perguntando sobre assuntos de dois adolescentes. Se falavam de namorada, era natural que o rapaz se mostrasse inseguro em repetir a conversa.

Procurando desviar o rumo do assunto, Gino fez uma pergunta: - Doutor, como ele está? Melhorou? Desta vez, foi o médico quem se mostrou reticente: - Não sei... ou melhor, eu sei... Não está bem, mas pode se safar des-

ta. - Se eu não tivesse sugerido aquele passeio! Que ideia doida eu tive! - Gino, aprenda isso: Nunca se recrimine pelo que tenha feito de errado, se não houve intenção. Tudo o que acontece

tem sua causa e só Deus sabe qual é. O que Valentino está sofrendo tinha de acontecer; nada acontece ao acaso. Tudo está escrito no livro do destino e não se pode fugir às determinações do Alto. Somos, muitas vezes, escolhidos por Deus para fazer as coisas acontecerem, mesmo que sejam coisas que nos pareçam ruins. No caso do Valentino, ele tinha de sofrer o ataque de uma abelha assassina. Por quê? Não sabemos. E você foi o instrumento do qual Deus lançou mão para que o fato se desse. O que conta é a intenção, a vontade de fazer o bem ou o mal. Se você não teve a intenção de prejudicá-lo, não se culpe.

- E o que o senhor acha que posso fazer por ele? - Rezar. Reze bastante, a partir de agora. Se o pior não acontecer durante esta noite, amanhã ele vai precisar de um bom

amigo. Seja este amigo para Valentino.

IX

A noite foi longa e penosa na Vila Verde. O Padre Nicolau ajudou no que pôde: não desligou o motor gerador de energia, para que não faltasse claridade na casa

do médico; e deixou a capela aberta a pedido de D. Edna que, em sacrifício pela saúde do filho, decidiu passar a noite em orações. Na residência do doutor, tanto ele quanto D. Etelvina lutaram o quanto puderam contra a morte. Juntaram forças, sem poder apressar o restabelecimento de um quadro clínico favorável. Só o tempo e o organismo do pequeno enfermo poderiam fazê-lo. Valentino respirava com dificuldade; a vermelhidão da pele se acentuou; o inchaço tomava conta das extremidades: rosto, pés e mãos. Os remédios eram administrados por via injetável, desde que a garganta não permitia engo-lir coisa alguma.

Anita dormiu abraçada à sua filhinha, preocupada sinceramente, pelo que estava acontecendo. Não se lembrava da ma-tança dos ratos, nem chegou a comentar este fato com a mãe. Não se lembrava do Cacau, esqueceu as maldades que Valen-tino praticou nos últimos dias, para só lembrar que gostava dele. D. Edna, assim que recebeu do Padre Nicolau a autorização para fazer seu sacrifício na capela, para lá se dirigiu e passou a noite entre súplicas, lágrimas e orações.

O dono da loja voltou tarde da cidade. Entregou os remédios ao doutor, que lhe deu as notícias: - O mal segue seu curso. O físico de Valentino está lutando bravamente, procurando reagir. As próximas horas serão decisivas. Eu poderia deixar que o senhor e D. Edna permanecessem aqui na casa, mas para o bem de ambos, é melhor que fiquem afastados. A Etelvina e eu estaremos fazendo o possível e o impossível, pode crer. Se acontecer alguma coisa... desagradável durante a noite, o senhor será o primeiro a ser avisado. Seu Leonel voltou para casa, onde encontrou o Padre Nicolau velando por Anita, que dormia. À chegada do dono da casa, o padre se retirou e guardou o carro antes de se dirigir à igreja também.

Angustiado, o comerciante não sabia o que fazer, nem onde ficar. Queria orar na capela, mas não tinha coragem de dei-xar em casa, sozinha, a filha adormecida. E ficou vagando de um lugar a outro. Saía para a rua - com as lâmpadas acesas, excepcionalmente, naquela noite - e percorria o trecho que levava à casa do médico; parava ali, tentando adivinhar o que se passava lá dentro. A seguir, entrava na igrejinha por uns minutos; voltava para casa, observava a filha adormecida antes de retomar o caminho da casa do doutor. Muitas vezes cruzou com Gino, que também estava de vigília. Na residência deste, a preocupação não era menor. Seu Vicente, o pai, tomou conhecimento do ocorrido ao chegar do trabalho e, como tudo havia acontecido na sua casa, sentiu-se um pouco responsável. Pouco depois, ele e sua mulher entravam no pequeno templo, onde permaneceram em preces noite adentro. Elvinho preocupou-se pouco com aquilo. Esquecido de tudo, dormiu sem maiores problemas.

Gino repetia os mesmos gestos de Seu Leonel. Não podia ausentar-se de casa, pois o irmão não poderia ficar sozinho - mas não conseguia ficar ali. Chegava à rua, observava a casa do médico. Via luminosidade pelas frestas das janelas e sentia ímpetos de se aproximar mais, de saber o que acontecia lá dentro, mas reprimia o desejo. Entrava na igrejinha, onde juntava

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suas orações às dos demais e, a seguir, retornava à casa para velar pelo irmão. Muitas vezes cruzou com o pai de Valentino mas, cada um imerso nos próprios pensamentos e orações, não trocavam palavra - talvez nem notassem a presença do outro.

Alguns moradores do lugar irmanaram-se à dor da família e passaram a noite, uns rezando na capela, outros reunidos em grupinhos silenciosos.

21 DE AGOSTO - 4ª FEIRA

I

Os galos já cantavam em todos os quintais e a febre resistia, num crescendo, atingindo o clímax durante a madrugada. D. Etelvina, além dos medicamentos fazia compressas com toalhas umedecidas em água fresca, sempre rezando. O doutor estava visivelmente cansado; a temperatura não cedia, o quadro clínico era desanimador, embora o organismo de Valentino se mostrasse em luta contra a morte. Em certo momento, afinal, o termômetro registrou pequena queda. A enfermeira inten-sificou a troca das compressas, agora animada pela esperança.

Quando a claridade das lâmpadas se tornou opaca diante da luminosidade natural, a febre começou a ceder. A fase críti-ca não havia passado, mas eram respostas positivas que podiam ser tomadas como pequena vitória. D. Etelvina continuou com as toalhas úmidas alternadas com o termômetro e, pouco depois, as compressas se tornaram desnecessárias.

Ao abrir a porta da frente, a enfermeira espantou-se com a pequena multidão concentrada naquele pedaço de rua - multi-dão aumentada agora, por outros vizinhos que estavam à espera de notícias antes de partirem para o trabalho. Com o cansa-ço presente em cada gesto, ela sorriu para tranquilizar aquela gente que, ela sabia, tivera uma noite igual ou pior que a sua própria. Saiu para o jardim e disse: - Ele está dormindo agora, bem mais calmo. A febre baixou. Não sei se está fora de perigo, mas o doutor foi se deitar; e quando ele se deita, é porque sabe que pode dormir.

Abriu o pequeno portão, completando: - Se quiserem, podem ver o Valentino. Um de cada vez, um minutinho só por vi-sitante. Não se assustem, ele está muito vermelho e inchado.

O quarto ocupado por Valentino ficava à frente da casa, formando ângulo reto com a parede do lado leste. Duas janelas

forneciam claridade e ventilação: uma delas voltada para a rua, quase escondida por trepadeiras de primavera; a outra, vol-tada para o nascente.

Quando acordou de todo, já passavam das oito horas. Os raios de sol, entrando por esta última janela incidiam sobre a parede oposta, a qual fazia refletir a claridade no rosto de Valentino. Instintivamente fechou os olhos, no exato momento em que Dona Maura, a professora, entrava para visitá-lo. Vendo-o de olhos fechados, acreditou que estivesse dormindo; apro-ximou-se, ajeitou o lençol sobre seu peito e saiu pisando leve. O enfermo ouviu-a dizendo à enfermeira:

- Está dormindo. Eu volto mais tarde. “- Puxa, em que posição favorável eu estou! Posso saber quem chega, posso ouvir o que dizem; e esta claridade na pare-

de me deu uma ideia: finjo dormir para saber o que tramam contra mim.” Seu estado de saúde era animador. Não podia falar devido à garganta ainda obstruída, mas também não fazia muita ques-

tão. E, se não podia falar, nada o impedia de pensar: “- Dona Maura... quem diria? Sabia de tudo e me enganou. A limpeza do depósito era mais um complô contra mim.” - o

pensamento passeou pela escola, pelo dia-a-dia das aulas: - “Desde que entrei no primeiro ano, ela nunca pediu a aluno nenhum para limpar aquele quartinho; por que agora foi pedir? Uma porção de meninos ergueu o braço oferecendo-se para o trabalho... e ela foi escolher quem? Justo eu! Coincidência? Não... Por sorte, não escolhi ajudante nenhum; se tivesse escolhido, ela daria instruções para me empurrar, me trancar dentro daquela ratoeira.”

O pensamento recaiu em seguida sobre Gino, e sentiu afeto por ele: “- Bom amigo! Por sorte, mudou pra cá quando eu estava mais necessitando de companhia, bem na hora que eu perdi o Cacau. Ouviu o que eu tinha a dizer, entendeu tudo, não duvidou de nada, não se afastou quando soube que eu estava com a alma perdida, foi me ajudar na limpeza do depósi-to...” - parou o pensamento neste ponto e teve um sobressalto: - “Peraí! Ele não ajudou coisa nenhuma! O depósito nem foi limpo! Ele só falou que ia ajudar, mas nem entrou naquele quartinho fedorento! E virou uma fera, gritou comigo quando fugi e me fez voltar! É verdade! Ele me fez voltar, me obrigou a entrar de novo no depósito! Não... O Gino também?”

A pobre mente apavorada repassou, minuto a minuto o que houvera, convencendo-se mais, a cada nova lembrança: “- Fingiu de bonzinho só pra me enganar. Também ele sabia da emboscada dos ratos! Deixou que eu entrasse, ficou na

porta olhando e barrando minha passagem! Isso mesmo, ele não queria que eu saísse! E depois, com palavras doces, me convenceu a retornar... quando me viu matando os ratos... Nossa! Ficou tão enfezado, que me arrancou de lá com toda for-ça!”

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Os pensamentos se amontoavam e tudo parecia se encaixar: “- E foi o Gino quem me levou pro Brejão! Fingido! Mentiu que queria conhecer o lugar, mas já tinha combinado com aquela abelha! Me levou exatamente ao lugar onde ela estava escondida; esperou que ela me ferroasse para, só então me puxar de volta como se estivesse querendo me salvar.”

A cada lembrança, Valentino obtinha dar um significado bem de acordo com seu ponto de vista: - “Não deixou as crianças acompanhar a gente quando descemos pro Brejão. É claro! Medo que a abelha fizesse confu-

são e ferroasse o irmão dele.” Fez breve pausa na sequência dos pensamentos por ter percebido uma falha nas próprias suposições: “- Só não sei em

qual hora ele encontrou a abelha para planejar o ataque.” Mas a resposta veio em seguida: - “Foi naquela hora em que voltou para fechar o quartinho! Não deixou que eu fosse

junto mas ele voltou, com desculpa de impedir que as crianças xeretassem lá dentro. Ele voltou, encontrou a abelha no ca-minho e combinou com ela esta última armadilha. Que estúpido que eu fui! Tudo aconteceu na minha frente e não percebi! E depois, queria que eu bebesse calmante. Que calmante era aquele? Decerto era veneno com água! Ainda bem que não consegui engolir senão, a estas horas...”

D. Etelvina entrou no quarto. Valentino estava de olhos fechados e ela sentiu certo orgulho, como se aquela vida hou-vesse sido salva por sua única e exclusiva ação. Sentia-se agora, um pouco mãe daquele garoto a quem ajudara a devolver a vida. Aproximou-se para tomar a temperatura; o enfermo abriu os olhos e sorriu leve, esperando que ela fizesse seu traba-lho.

- A febre, acabamos com ela, graças a Deus! Faltam ainda algumas coisinhas, mas vamos liquidar com tudo. Continue a se esforçar desta maneira, mocinho! Estou preparando um caldo delicioso pra você; não está sentindo o cheirinho? - ajeitou os travesseiros e saiu, como que dançando de alegria.

Valentino esperou que ela sumisse de seu campo de visão e mergulhou outra vez nos pensamentos: “- Quem é o Gino? Não sei. Mas ele sabia quem eu era, antes ainda de chegar na aldeia. Ah, ele foi contratado por al-

guém... por meu pai!” - sentiu-se paralisado ao levantar esta hipótese: “Por meu pai! Meu pai!” Funda amargura sentiu atribuindo a culpa ao pai: - “Ele também? Sim, ele também. Foi ele a contratar Gino para me e-

liminar. E quem é o Gino? Acho que nem pertence à família do Seu Vicente; finge que é filho, pra eu não desconfiar.” Um detalhe que antes, parecera sem importância, agora adquiria sentido descomunal: “- Ele só tem cara de criança, mas

é um homem disfarçado. Tem até uns fiozinhos brancos e fininhos no bigode... já é homem, com barba e tudo! E a voz en-tão? A voz... Sim, que burro que eu fui! Já tinha percebido que a voz não combinava com ele, mas nem me passou pela cabeça! Às vezes é fina, às vezes é grossa e depois afina outra vez... canalha, mentiroso! E eu, inocente, ainda fui contar tudo, logo pra ele! Também! Como é que eu podia adivinhar que um menino desconhecido é um assassino profissional?”

Suspendeu os pensamentos ao reconhecer a voz do pai: - Bom dia, doutor! Já de pé? Depois de uma noite destas, o senhor deveria estar descansando. - Gente velha dorme pouco. - O meu garoto como está? - Ele é uma rocha! Organismo forte, nunca vi igual! Precisava ter visto como lutou contra a morte! De modo inconscien-

te, eu sei - mas lutou. Cada célula, cada músculo, cada órgão, tudo junto! Já está fora de perigo e, se continuar com esta vontade de viver, não terá recaída.

“- Eu não disse que não ia morrer?” - pensou o doentinho - “O capeta me espera com o fogo aceso e ninguém me manda pra lá, nem daqui a quinhentos anos. Vou ser o único no mundo a não morrer.”

E lá de fora, vinham as vozes: - Graças a Deus! E graças ao senhor, que não mediu esforços. Ah, o que eu sofri nesta noite! E não só eu! Nesta vila, em

poucas casas se dormiu; foi vigília para todos. Valentino não perdia uma palavra: “- Quem ouve meu pai pode pensar que está cheio de cuidados...” - Já fiquei sabendo, o padre me contou. - era o médico falando - Que coisa incrível, esta solidariedade! E só mesmo a o-

ração, da maneira como se orou nesta noite, poderia ter feito o milagre. Sim... foi um milagre, quando eu já dava como caso perdido. A Etelvina, coitada! Com tercinho na mão, não parou de rezar. Foi Deus quem agiu aqui, não tenha dúvida

“- Quê? Oração? Milagre? Deus? Foi isso que me salvou? Que nada! Quem me salvou fui eu mesmo porque por Deus, eu já estaria sendo frito no inferno, faz tempo...”

Dr. Luciano baixou o tom de voz: - Tenho algo a lhe contar. Venha à cozinha tomar um café. “- Epa! Estão falando baixinho... e estão indo pra cozinha. O que vão falar que eu não posso ouvir? Se eu pudesse me

levantar... mas não consigo, as pernas bambeiam.” Sentados à mesa do café, o doutor começou: - Os problemas com o Valentino - aqueles anteriores à abelha - não exis-

tem. Seu Leonel fez uma pergunta muda, apenas com gestos de mãos e olhos. - Conversei com o Gino ontem, de tardezinha. Ele me contou tudo o que fizeram e tudo o que conversaram. Não pude

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captar o menor sinal de anormalidade no comportamento do seu menino. Se havia algo que o estivesse perturbando, este algo se desfez. Até brincou com os novos amigos!

- Brincou? Não acredito! O Valentino nunca brincou com outra criança. Nunca brincou na vida, nunca! Mesmo quando menorzinho, não aceitava companhia de outros da mesma idade.

- Pois foi o próprio Gino quem me contou. Ele não conhece o Valentino, não sabe das suas... hã... esquisitices, nem que não é menino de brincar. Ignora por completo nossos temores; portanto, é elemento de confiança, não tinha motivos para mentir. Aqui, da minha janela, observei o que se passava no quintal da escola e no quintal do Gino. Porém, se é possível observar da minha janela os movimentos no quintal do outro lado da rua, é impossível saber o que estão falando, entende? Ouvi as crianças menores gritando e rindo. Até pensei que estivessem chorando, mas não! Eram os quatro brincando!

- Valentino também? Incrível! - o comerciante sorria, satisfeito. - Depois, vi todos eles sentados naqueles paus amontoados; comiam, falavam, riam. E o Valentino participava da con-

versa, dava gargalhadas como nunca vi... E sabe o que mais? Falaram de namorada! Seu Leonel ia de uma surpresa à outra, perplexo, sem palavras para expressar o contentamento. O Dr. Luciano ia em

frente, ciente da alegria que estava proporcionando ao pai do enfermo: - E a última: Valentino não arranjou namorada ainda, porque aqui no povoado só tem menina feia e burra. Umas bobocas, no entender dele.

Riram ambos com gosto. Por fim, o vendeiro perguntou: - Nada de psiquiatra por enquanto? - Nada de psiquiatra por enquanto. Está tudo sob controle, a não ser que as manias recomecem. Agora, tendo o Gino

como companheiro, fica mais fácil estabelecermos um elo com o Valentino porque o amigo, sem perceber, poderá ir nos colocando a par dos acontecimentos.

- Posso dar uma olhadinha nele? - Sim, claro! A Etelvina saiu de lá, há pouco. O rapazinho estava acordado e até sorriu. O pequeno ouviu quando se aproximavam e permaneceu com os olhos abertos, para encarar o pai. O médico entrou pri-

meiro, trazendo a fisionomia descontraída: - Rapaz de sorte, heim? Muita sorte mesmo, por haver sido atacado por uma abelha só. Do jeito como seu organismo reage ao veneno, caso duas abelhas o ferroassem, acho que nem milagre o salvaria.

O pai ficou observando, enquanto o médico brincava: - E eu o aconselho a não ser ferroado outra vez, heim? Não me a-pareça aqui com o mesmo problema porque aí... Adeus Valentino! Morre mesmo! - e olhando para o comerciante, concluiu: - Estou falando a verdade. Poderemos não ter tanta sorte com uma segunda carga de toxinas. Mas por esta vez ele está quase livre, ainda hoje estará bom.

- É? Quer dizer que, ainda hoje, ele volta para casa? - O estar bom que eu disse é força de expressão. Não vai sair daqui enquanto a garganta estiver obstruída. Deve continu-

ar tomando os medicamentos e, como não consegue engolir, vamos ter de continuar com as injeções. Só para facilitar o tratamento ele vai continuar aqui.

Nem bem saíram e o médico já estava de volta: - Quase dez horas! Injeção! - enquanto preparava a seringa, comentou: -

Sua professora esteve aqui, hoje de manhã. Você estava dormindo. Em qual braço eu aplico? Não, acho que os braços estão cansados de tanto furo; você já pode virar-se de bruços... isso!

Pouco depois da saída do médico, a voz de Dona Maura chegou até Valentino, que fechou os olhos, fingindo dormir. Não queria encarar aquela megera, pelo menos por enquanto. Ela entrou pisando leve, sentou-se num banquinho encostado na parede e ficou a observá-lo com carinho. No mesmo instante, os pensamentos do menino se agitavam:

“- Ela mora na cidade de onde veio o Gino. Com certeza, já se conheciam. Aposto como foi o meu pai quem pediu a ela que trouxesse um assassino de lá.” - e depois, em tom tristinho: - “Em cada pessoa, um adversário. Todos unidos contra mim.”

Os passos macios da professora significavam que ela estava se retirando e Valentino abriu os olhos sorrindo amargo.

II

Pouco antes do meio-dia, D. Etelvina entrou trazendo uma tigelinha de louça azul, fumegante. O enfermo olhou para ela,

cheio de gratidão: “- Nesta, eu confio.” A enfermeira puxou uma cadeira para mais perto da cama: - Eu não disse que ia lhe preparar um caldo? Matei uma galinha gorda, especialmente pro seu almoço. Está delicioso,

sinta só o cheiro! Você vai gostar e pedir mais. Levou a colher à boca de Valentino. Olhando aquela colher que se aproximava, um pensamento terrível invadiu lhe o cé-

rebro: “- Esta sopa está envenenada! Minha mãe falou que o doutor comprou daquele veneno que mata até gente. Este caldo está entupido de veneno.” - e recusou abrir a boca.

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- Eu sei que dói, mas você precisa se alimentar, filho. Tente, pelo menos. Com gestos negativos com a cabeça e apontando o pescoço, Valentino recusou-se a comer, como se a dor na garganta o

impedisse. - Se está tão difícil, não vou insistir. Cada um sabe onde aperta o sapatão. Mais tarde, quem sabe? Agora era na enfermeira que o garoto fixava a atenção. Mais uma inimiga! Depois das três da tarde, após a aula de catecismo - adiada que fora devido à viagem do Padre Nicolau no dia anterior -

este fez sua visitinha ao doente, acompanhado pelo comerciante. Ao entrar foi falando coisas que, tinha certeza, reanimari-am o enfermo:

- Valentino, hoje você perdeu uma aula sem tamanho! Fizemos ensaio da primeira comunhão, com hóstia de verdade e tudo! Eu trouxe as hóstias da cidade, na viagem de ontem. A meninada fingiu que se confessava e dei penitência a todos. Penitência de arrepiar cabelo! - vendo a expressão divertida do menino, o padre continuou: - Todos fizeram a penitência sem reclamar e, se reclamasse, eu dobrava o sacrifício. Depois dei hóstia; não eram hóstias benzidas, é claro! Era só ensaio, não podia usar hóstia benta. Mas valeu! As crianças gostaram tanto, que tive de repetir o ensaio de comer hóstia umas qua-tro vezes! Só faltou você! Mas não tem importância porque, na próxima aula, quando você estiver curado, a gente faz a simulação outra vez, em sua homenagem. Você quer?

Valentino assentiu com a cabeça e com o pensamento: “- Ora, se quero! Se não fosse gostosa, a meninada não ia comer quatro vezes. E já que vai ser em minha homenagem, quero comer com a colher, um prato cheio só pra mim.”

O padre prosseguia: - Ontem, conforme você sabe, falei com o Padre Dimas. Combinamos tudo para o finzinho de no-vembro. Estamos em agosto, temos três meses e meio de prazo; é bom que demore porque precisamos antes disso, arrecadar fundos; estive pensando numa quermesse... depois eu falo da quermesse. Quanto ao Padre Dimas, vai ser uma bonita festa quando ele vier! Onze crianças para a primeira comunhão, cinco batizados já marcados e mais duas crianças que vão nascer até lá; são sete. Haverá também três casamentos: dois de véu e grinalda, mais um que já estão morando juntos. Imagine só o tamanho da festa! Será a mais bonita que a Vila Verde já viu.

Cada palavra era saboreada por Valentino, cujo interesse era visível pela expressão dos olhos; interesse que ia aumenta-va considerando que o padre prolongava, de propósito, os pormenores para além do necessário: - Como já disse, estou pen-sando em fazer uma quermesse antes da festa principal e, na segunda-feira logo cedo, estarei de novo na cidade para umas comprinhas. Já calculei tudo, será bem diferente das quermesses anteriores... E falando nisso, vou precisar da sua ajuda nos preparativos. Será que vai sarar a tempo?

Valentino gesticulou afirmativamente com a cabeça. - Eu sabia. Não confio em nenhum outro para fazer os cartazes. Só você sabe fazer os letreiros do jeito que eu gosto.

Mas trate de sarar, senão vou ter de chamar outra pessoa... Mudou de expressão, tentando provocar o amor próprio de Valentino: Encarando um ponto inexistente, falou como que

de modo natural: - Sabe, há um coroinha da cidade - rapazinho vivo, inteligente, sabido, que você precisa ver! Ele ajuda o Padre Dimas a rezar missa. Pois o tal coroinha sabe desenhar e pintar, que dá gosto! Se até lá você não estiver curado, será ele o meu colaborador. Eu não queria que alguém o substituísse mas, como pedir ajuda a um doente? Vou esperar até se-gunda-feira e, se você não melhorar até lá... vou ter de falar com aquele outro menino.

O vendeiro acompanhava as reações do filho com grande satisfação. Divertia-se com as expressões fisionômicas, como que dando respostas à viva voz às provocações premeditadas do padre.

À saída dos visitantes, mais uma vez a enfermeira entrou trazendo a tigelinha de louça azul. E mais uma vez seus esfor-

ços foram vãos, tendo em vista que Valentino se recusava a tentar engolir. A sós novamente, repassou a conversa com o padre e prometeu: “- Eu vou sarar! Nenhum grã-fininho da cidade vai to-

mar o meu lugar de fazedor de cartazes. Ainda hoje vou estar curado e volto pra casa.” – a este pensamento, sua decisão foi obscurecida pelo receio de deixar a casa do médico: - “Aqui estou seguro, apesar desta velha tentando me envenenar.”

Passou a fazer um balanço, contando nos dedos quem era amigo e quem não era: “- Quando falharam os planos inventados pelos bichos pequenos, o Cacau entrou na briga. Ele tinha contado meu segre-

do pra Anita, que contou pros meus pais. Aí, meu pai mandou trazer um criminoso da cidade, através da Dona Maura. Antes do Gino entrar com tudo, ela própria quis fazer a tentativa e inventou a cilada com a rataiada. Depois, foi o Gino com a abelha. “

Outras cenas lhe vieram à memória e ele as alimentava, juntando hipóteses que faziam sentido: “- Depois de atacado pela abelha, a Anita e o Elvinho chegaram perto gritando que havia sido bem feito! Eu ali morren-

do, e eles achando bom, comemorando antes da hora. Ah, lembro também a voz da Anita perguntando ao meu pai se eu já tinha morrido! Parece impossível, mas... portanto, entram na lista também a Anita e o Elvinho. E agora por último, me aparece a D. Etelvina, com um caldo envenenado!”

Um longo suspiro foi exalado, mais semelhante a um soluço:

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“- Só sobraram... quem? O doutor e o Padre Nicolau. E quem são eles? Um médico, que fez juramento de salvar vidas e não de acabar com elas - e um padre que não pode matar, senão faz pecado mortal... só eles dois!”

Tais conjeturas foram interrompidas pelo Dr. Luciano, que trazia a tigelinha de louça azul! - A Etelvina me contou que você não está fazendo esforço para se alimentar e eu vim ver se era verdade. Desalentado, Valentino fixou o olhar no médico, enquanto pensava, letra por letra: “- O senhor também, doutor?” Recusou qualquer tentativa de engolir. Sentiu vontade de chorar, mas não o faria diante do inimigo. Só deu vazão às lá-

grimas represadas assim que se viu sozinho; virou-se para a parede e chorou. Os soluços faziam doer a garganta; esta dor porém, ele nem sentia. Doía muito mais a outra dor: aquela que lhe apertava o peito e que não tinha cura.

“- O doutor também! Era isso que meu pai foi cochichar com ele hoje cedo, na cozinha. Não é justo que eu, só eu sozi-nho, tenha de me defender de tanta gente de uma vez. Ninguém para me ajudar, ninguém em quem eu possa confiar, nin-guém para conversar. Estou sozinho e doente, sem forças para andar, nem para falar... Tudo por causa daquele maldito pas-sarinho.”

Pensou em Deus e passou a conversar, a nível mental, como se Ele estivesse aí ao seu lado: “- Deus, foi sem querer, acredite! Se o Senhor vê mesmo tudo o que a gente faz, então viu a hora que matei o passarinho.

Se viu, sabe também que foi por acaso. E se sabe que foi por acaso, por que fica mudo e surdo quando falo que foi sem querer? Por que esta perseguição? Em cada canto, uma armadilha... Não sobrou ninguém, Seu Deus! A não ser o Padre Nicolau que, coitado! Até tentou me animar falando coisas de primeira comunhão, da quermesse, da festa em novembro. Mas o doutor? Covarde! Aproveitando a minha fraqueza para me mandar ao inferno. Não é justo, Seu Deus! E depois, falam que há justiça naquilo que o Senhor faz. Cadê a justiça? Pra ser justo, esta briga tinha de ser em pé de igualdade. Tinha de ser só entre eu e o Senhor. Mas não! O Senhor fica arranjando tudo quanto é bicho e gente para entrar na Sua quadrilha.”

Deixou de se dirigir a Deus, para voltar o pensamento às duas pessoas daquela casa: “- O doutor e a enfermeira não estavam sabendo nada sobre mim, até hoje de manhã. Se soubessem, teriam acabado co-

migo durante a noite. Foi depois daquela hora que meu pai esteve aqui. Naquela conversa na cozinha ele fez o relato aos dois, que entraram em ação imediatamente.”

- Outra visita pra você, Valentino! - Sou eu! Não deu para vir mais cedo, estava até o pescoço de serviço. E quanto à limpeza do depósito, o Elvinho e a

Anita me ajudaram a acabamos agorinha mesmo. Não me agradece? O enfermo enxugou as lágrimas na fronha antes de se virar. Encarou Gino, que repetiu: - Não vai me agradecer por ter limpado aquele quartinho? Com leve gesto de cabeça, Valentino demonstrou aprovação. - Doutor, este aí não é o Valentino! Está muito gordo, vermelho, empipocado... e por que ele não fala? O médico riu: - Está inchado e não fala porque não consegue. A garganta está quase fechada, a voz não sai e dói bastante

se ele tentar. - Ah, bom! Pensei que a abelha tivesse deixado ele mudo de susto. - e riu; depois, fixando o amigo, exclamou: - Parece

que andou chorando! Ele chorou, doutor? - Não. É vermelhidão por causa da alergia. Em pouco tempo, isso desaparece. - Bem, preciso ir embora. E vê se sara logo, porque há muita coisa nesta redondeza que eu quero conhecer e será você a

me mostrar... Ah, Valentino! Se você visse a sujeira que a gente tirou daquele quartinho! Depois desta, acabou minha curio-sidade por depósitos de escola; só tem poeira, teia de aranha, bolor, cocô de rato, papel velho, água suja e um fedor desgra-çado! Você se livrou de uma! Agora, tchau!

Antes ainda de Gino sumir de vista, o médico olhou o relógio: - Injeção outra vez! Virou-se para a mesinha e começou mais um daqueles rituais medicamentosos tantas vezes repetidos desde a tarde ante-

rior. O garoto ficou observando, acompanhando cada gesto do homem, tomando conta para que ele não misturasse ao líqui-do, algum pó envenenado. Depois, constatando que nada suspeito fora acrescentado, ia virar-se para a injeção.

- Não, esta é na veia. Qual braço você prefere? Aquele? Então vamos para o lado de lá... E olhe só: você está estreando um garrote novo, trazido da cidade ontem à noite. Coitado do seu pai... Tão desnorteado! Foi e voltou pela estrada, feito doido. Quando pensei que estivesse chegando na cidade, já estava ele entrando por esta porta me entregando a encomenda!

Enquanto o líquido era injetado, o médico ouviu um som baixo e rouco - voz de Valentino - que se esforçava por falar: - Eu... estou bom... quero... ir pra... casa. - Mas olha só que desaforo! Meu hóspede de honra querendo ir embora! E eu, pensando que ele estivesse apreciando o

meu hotel! - riu satisfeito - Muito bem, neste ritmo vai ainda hoje para casa! Ruídos chamaram a atenção de ambos e, a seguir, entraram os pais de Valentino. A mulher, com olheiras, ainda pálida,

abatida, olhos não refeitos das lágrimas aproximou-se do filho e tomou-lhe as mãos: - Querido, você está melhor? O que está sentindo? –sem obter resposta, virou-se para o médico: - Como está ele, doutor? - Muito bem. Não respondeu às suas perguntas, porque é doloroso conversar. Mas já falou comigo; só meia dúzia de pa-

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lavras, pedindo para ir embora. - Graças a Deus! O pai falou emocionado, coisa que não combinava com seu jeito rude de homem do campo: - Ô, filhote! Que bom! Você é muito importante pra nós e está fazendo falta lá em casa. Nós o amamos muito, muito! -

dirigindo-se ao dono da casa: - Obrigado por devolver o meu menino, doutor! - O que é isso? Vocês acham que estou menos feliz por devolvê-lo com vida? Nem fazem ideia do número de vezes que,

nesta noite, pensei em chamar o Padre Nicolau para a extrema-unção. Houve momentos que cheguei estar lidando com um cadáver. Valentino reagiu de maneira nunca vista; mas, acima de tudo, aconteceu um milagre. Estou tão satisfeito quanto vocês, não precisam agradecer.

- E posso mesmo vir buscá-lo ainda hoje? - Se ele se esforçar para, pelo menos engolir os remédios que vai levar para casa... pode! Eu gostaria que se alimentasse

antes de ir, mas não quer tentar. Acredito que já consiga, no entanto... Ele é quem sabe o tamanho da dor. O senhor poderá vir buscá-lo ao anoitecer, daqui a - consultou o relógio de bolso - umas duas ou três horas. Até lá estará em observação; eu quero ter certeza, entende?

- Ao anoitecer, estarei aqui. O Valentino parece sonolento, talvez queira dormir. É melhor irmos. - E, em casa, seria bom se ele comesse mais frutas e verduras do que doces, massas e frituras. Uma alimentação mais sa-

dia vai ajudar na recuperação.

III

O rapaz estava mesmo sentindo sono mas, à saída dos pais, falava consigo mesmo: “- Por que esta encenação? Um não precisa fingir diante do outro. Mas... e agora? Saio da panela e caio na brasa. Em ca-

sa também corro perigo; minha mãe pode querer me envenenar com comida e meu pai pode me atacar enquanto durmo. E se ficar aqui, o perigo é o mesmo. Só se... Já sei! Volto pra casa mas não como nada do que minha mãe cozinhar; e me tranco no quarto pra que ninguém me surpreenda dormindo.” - sorriu, quase sem mexer os lábios:

- “Que coisa! Um batalhão inteiro! Batalhão formado por velho, velha, pai, mãe, criança, assassino profissional, bicho pequeno, bicho grande, caipora e até Deus no meio. E juntos, não conseguem vencer a mim, um menino sozinho.”

E um outro pensamento invadiu sua mente, com a rapidez de um raio: “- Eu vou matar todos eles!” - sorriu com um só canto da boca e repetiu saboreando cada palavra: “- Vou matar todos e-

les! De um a um, vão todos.” Dormiu. Foi um sono relaxante e, ao acordar, o primeiro pensamento foi o último que tivera: “- Vou matar um a um!” Olhos fechados, leve sorriso num canto da boca, alívio grande no peito. A ideia começou a tomar corpo: “- Começo pela D. Etelvina. Ela é magra, acho que não é difícil apertar o pescoço dela.” Abriu os olhos, ergueu as mãos e as analisou; juntou as pontas dos polegares e fechou o círculo na outra extremidade,

unindo os indicadores. Avaliou a abrangência daquele gesto e o comparou, mentalmente, ao pescoço da enfermeira: “- Não dá! Minhas mãos são pequenas, mesmo para aquele pescoço fino. Preciso de alguma coisa para apertar; não pos-

so confiar só nas mãos.” Olhou em redor para ter alguma inspiração e viu o garrote usado pouco antes, pelo médico: - “Aquela borrachinha! O doutor falou que ela foi comprada ontem! Sendo nova, é mais resistente. É pequena, cabe no

meu bolso, não atrai a atenção de ninguém.” Ergueu o tronco da cama, esticou o braço, apanhou o garrote. Escondeu-o sob o travesseiro e esperou para testá-lo quan-

do o coração se acalmasse um pouco. Depois, segurando uma extremidade em cada mão, esticou-o para analisar o grau de resistência. Achou que era excelente para os fins que lhe daria.

De tardezinha, o comerciante saiu do quarto amparando o filho pelo braço, quase sem necessidade de o fazer, pois Va-

lentino preferia caminhar sem apoio algum. Deixaram a casa entre agradecimentos do pai e recomendações do médico quanto ao repouso, alimentação e horário dos remédios.

D. Etelvina os acompanhou até o portão, olhos brilhando pelas lágrimas que queriam cair. À despedida abraçou Valenti-no com força deixando, agora, que as lágrimas corressem. O rapazinho aceitou o abraço e o correspondeu podendo, neste gesto, avaliar quanto era frágil aquele corpo e o quanto era magro aquele pescoço.

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22 DE AGOSTO - 5ª FEIRA

I

Valentino sentia tonturas, mas tentava vencer o torpor para não ter de ficar deitado. Conseguia falar com dificuldade, em voz baixa e rouca. As mãos e o rosto, principalmente, estavam bastante inchados, tendo a pele coberta por pequeninas bo-lhas. Mesmo assim resolveu ir à escola, evitando os riscos de cair no sono e se tornar indefeso. A mãe reagiu negativamente àquela ideia: - Não senhor! Veja em que estado você está! Basta olhar-se no espelho para saber que ainda corre perigo de vida. O calor está forte e o doutor mandou que repousasse.

Tropeçando nas palavras, muito reticente para poupar a garganta, respondeu: - Só a garganta dói ... E sinto coceira... Isto não me impede de... andar... Em casa também... faz calor. Sem poder convencê-lo, D. Edna pediu ao marido que o fizesse. Valentino porém, parecia não ouvir coisa alguma. De-

morou a se vestir, não aceitou ajuda neste sentido; vez ou outra precisava disfarçar a tontura e a sonolência, resquícios de medicamentos, mas não se deu por vencido. Ignorou a resistência dos pais e saiu, mal seguro nas pernas.

Na escola, foi rodeado por um bando de crianças. Umas abafavam o riso pelo seu aspecto estranho e engraçado; outras riam abertamente e outras ainda, mais solidárias, queriam saber sobre o acontecido e o interrogavam. Como Valentino se mantivesse calado às perguntas e indiferente às demonstrações desencontradas - seja pela dificuldade no falar, seja pelo desprezo aos trejeitos de zombaria, seja por estar magoado demais com o mundo -, a verdade é que Anita e Elvinho, os dois privilegiados que participaram do fato, tiveram seu dia de glória. Contaram e recontaram a quantos o perguntassem, com minúcias aterradoras criadas por eles mesmos. Falavam do incidente, do risco de morte, das palavras do médico, do perigo que ele ainda corria, do motivo de permanecer mudo.

22 de agosto. Hoje já é quinta-feira. Eles quase conseguiram. Dois ataques no mesmo dia, um atrás do outro, na mesma

hora. Mas ainda estou aqui, vivo, e vou contar como foi: Primeiro, foram os ratos numa tentativa feita pela Dona Maura. Depois de juntar os ratos todos da vila naquele quarti-

nho no fundo da escola, ela pediu que eu fizesse a limpeza. O Gino, aquele rapaz que mudou para cá, lembra? Eu já falei dele na última anotação que fiz, na terça-feira. Lembra

que eu falei que ele veio da cidade e não estava sabendo nada a meu respeito? Pois eu estava enganado. O Gino e o Elvinho - que é o irmão mais novo dele - e mais a Anita estavam combinados com a Dona Maura e com a

rataiada para ajudar no massacre. Eles foram lá fingindo de me ajudar na limpeza. Eu não desconfiei de nada, até ver aquele monte de rato.

O Gino mandou os menores esperarem lá fora e ficou parado na porta impedindo a minha saída, mas escapei. Depois, ele me fez voltar lá dentro. Voltei e matei três ratos, para que os outros, sentissem medo de mim. Um, esmaguei

com os pés. Outro, arrebentei na parede. O último, esmigalhei com as mãos. Anita e Elvinho, que estavam lá fora à espera da minha morte, vendo que o plano estava dando errado começaram a

chorar, de tanta raiva. Gino me empurrou pra fora, para impedir que eu continuasse a matar os comparsinhas. Aí, o Gino levou a gente pra casa dele, deu lanche pra todo mundo, só para ter tempo de pensar em outro projeto de

acabar comigo. Com jeito, ele me fez contar o meu segredo e tudo o que tinha acontecido. Eu contei. Ele fingiu que acreditou, falou que

ia me ajudar, falou que com ele eu não correria risco de vida, falou uma porção de coisas e eu não desconfiei de nda, por-que já tem quase quatorze anos e parecia saber das coisas.

Aí, ele falou que queria conhecer a baixada e foi então que colocou o segundo plano em ação. Foi assim: Gino voltou para fechar a porta do quartinho e foi aí que encontrou uma abelha africana e combinou com ela para es-

perar a gente lá perto de Brejão. Ela foi. Nós fomos também e ele me levou justo ao lugar onde a abelha estava esperando e ela me picou com toda força, no rosto. Por que picou eu e não ele? Porque estava tudo combinado, é claro!

Pra que eu não desconfiasse de nada - caso não morresse - ele foi chamar meu pai e meu pai fingiu que ficou aflito. Me levou pra casa do médico e fiquei lá até ontem à tarde.

O doutor e a enfermeira, que não sabiam de nada sobre a minha condenação, me trataram bem durante a noite. Mas foi só ficar de dia, meu pai foi lá saber se eu já tinha morrido. Como eu continuava vivo, ele contou tudo pro doutor e pra D. Etelvina e pediu que me matassem.

Eles dois concordaram e puseram veneno na sopa que eu ia comer. Percebi o plano e não comi. De tarde, voltei para casa. Minha mãe quer me matar com veneno na comida e meu pai planeja me pegar enquanto durmo. Estou cercado, mas vou matar todos eles, de um em um.

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Para escrever isso tudo, Valentino demorou bastante. Sentia formigamento nas mãos, tonturas, sonolência, ideias emba-raçadas. Não esteve atento à aula e a professora, sabendo da sua fragilidade, não solicitou sua participação.

No início Dona Maura, condoída e preocupada, sugeriu que voltasse para casa. Valentino no entanto, encarando-a e em voz quase inaudível, respondeu: - Quero ficar... Eu fico!

Depois disso, ela não mais o incomodou; esteve atenta o tempo inteiro, mas deixou-o fazer como quisesse. Algumas ve-zes percebeu que ele escrevia mas, mesmo sabendo que não se relacionava aos temas escolares, não procurou saber do que se tratava. Deixou-o à vontade, mesmo nos momentos em que ele cochilava debruçado na carteira.

II

Já em casa preparou, ele próprio, sua comida: frutas e verduras que colheu pessoalmente. Passou a tarde quase sem en-

trar em casa, não obstante sentir muito sono e necessidade de repouso. Reagia ao torpor e, só a vontade férrea o mantinha acordado. Esteve sentado na varanda ou à sombra das árvores sempre alerta, pronto a fugir caso percebesse sinais de perigo. Os conselhos da mãe eram constantes e sempre no mesmo sentido, se bem que Valentino não se dignasse a responder:

- Filho, você esteve à morte, sobreviveu por milagre e ainda não está curado. Saia deste sol, deste mormaço, deite-se um pouco, precisa repousar senão pode ter uma recaída.

“- Para ser morto enquanto durmo? Não, obrigado!” Naquela tarde, Gino chegou da fazenda do doutor e foi visitar Valentino. Encontrou-o sentado na varanda - já não preso

a tanta letargia como estivera até então - e pôs-se a rememorar o apuro que passaram: - Corremos feito loucos, lembra? Eu pensava que fosse cobra e, só de pensar, as pernas corriam sozinhas! Você notou

aquele tronco caído, aquele tronco grosso, estendido no caminho? - Lembro. - Que gozado! Na hora de ir, nós desviamos dele por ser muito grosso, um gigante lá deitado. Na hora de voltar, a pressa

era tanta que nem vimos o tal tronco. Pulamos por cima dele com tanta facilidade, como se fosse um cabo de vassoura. A gente tinha asas nos pés! - e ria.

Valentino concordava com a cabeça, ria também, porém falava muito pouco - mais devido à falta de vontade, do que pe-la impossibilidade de o fazer. Nem por um momento demonstrou desconfiança, ao mesmo tempo que refletia:

“- Cuidado, Valentino! Cuidado com o que diz. Fingir inocência, falar o menos possível, senão ele vai ficar alerta. Se notar que desconfia da participação dele, pode atacá-lo e você está ainda muito fraco para se defender. É melhor ir ganhan-do tempo, até ficar bem curado. Continue fingindo!”

Passava um pouco das seis da tarde quando Gino saiu. Valentino seguiu com ele até a calçada e já ia entrar, quando viu D. Etelvina que vinha pela rua, em sua direção. Ainda a uma distância considerável, a mulher abriu um sorriso:

- Valentino, você está ótimo, graças a Deus! Pensei que nunca mais ia vê-lo nesta calçada! Naquela voz cavernosa, o ainda convalescente, escondendo os verdadeiros sentimentos, disse: - Foi bom encontrar a senhora! Eu queria agradecer pelo que fez por mim. Já que está aqui, agradeço sem ir à sua casa. - Que tolice, meu filho! Fiz tudo com a maior boa vontade e me sinto bem paga só em vê-lo aqui de pé, vivo e falando!

Mas se quiser me fazer uma visitinha, vai me deixar muito contente! Eu quase não recebo visitas, sabe? Por passar o dia inteiro fora de casa, quem quer falar comigo vai à casa do doutor, onde sabe que vai me encontrar. Fico feliz quando alguém aparece lá na minha chacrinha para conversar um pouco. Se você quiser ir, vou ficar muitíssimo agradecida.

- É que... nem sei em qual hora a senhora está em casa; parece que fica o tempo todo na casa do doutor e, deve ser por isso que ninguém a visita.

- Todos falam a mesma coisa. Mas, das seis da tarde às oito da manhã, fico na minha chacrinha. Aos domingos, o dia in-teiro. O resto do tempo e até nos feriados, quem quiser me encontrar é só na casa do Dr. Luciano. Eu tenho pena dele, sozi-nho o dia inteiro naquele casarão. Igual a mim, que também não tenho ninguém no mundo, que também não tenho compa-nhia. Então, prefiro ir trabalhar a ficar sozinha, chocando dentro de casa.

- Então, já sei! Quando estiver bem sarado, vou lá bater um papo com a senhora. - Palavra de honra? - Palavra de honra. - Então me avise antes, pra eu fazer bolinho de mandioca. Só faço destes bolinhos pra visita muito importante; e você é

visita das mais importantes.

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23 DE AGOSTO - 6ª FEIRA

I

Valentino amanheceu com outro aspecto. Pouco se assemelhava àquele rapazinho frágil do dia anterior. A vontade de viver, o pavor da morte, o medo do inferno conseguira muito mais do que teria conseguido um tratamento

intensivo em hospital da cidade com remédios, repouso e cuidados outros. Não sentia dor alguma, podia falar com voz qua-se normal. Não mais tonturas nem sonolência. Apesar disso, compareceu à escola com o mesmo desinteresse, fingindo fra-queza.

A professora sentiu-se satisfeita ao vê-lo bem mais disposto, mesmo com aquela máscara de sofrimento que Valentino conseguia trazer tão bem. Procurou entrar em conversação a fim de saber detalhes sobre o incidente e o atual estado de saúde; todavia, o rapazinho enviou-lhe um olhar tão gelado, que fê-la suspender quaisquer novas perguntas que desejava formular.

Durante a aula, comportou-se de forma semelhante ao dia anterior, como se estivesse afastado dali, vagando por lugares distantes, em atividades diversas nada relacionadas aos conteúdos didáticos. Sempre atenta e paciente, Dona Maura espera-va que o aluno retomasse a vivacidade e a disposição costumeira.

23 de agosto - Sexta-feira. Caderno, você lembra da última coisa que escrevi ontem? Escrevi que vou matar cada um dos meus inimigos, antes que matem a mim. A Dona Etelvina será a primeira. Decidi que vai ser ela, porque foi a primeira que tentou me eliminar com as próprias mãos, sem pedir ajuda a bicho ne-

nhum. Colocou ela mesma o veneno no caldo e, com a colher, tentava que eu comesse aquilo. Por isso estou com mais raiva dela do que dos outros. Ontem à tarde, nós conversamos na hora que deixou a casa do doutor. Só pra ver a cara dela e também pra começar a

armar o meu plano, falei que vou passear na chacrinha, que vou fazer uma visita de agradecimento. A velha riu até nas orelhas, só em imaginar que estarei naquela casa a sós com ela, lá no fim da rua onde, mesmo que

eu grite, ninguém pode ouvir. Até me falou os dias e as horas em que fica em casa. E quer que avise antes; disse que vai fazer bolinho de mandioca pra me esperar! Ela quer é me esperar com uma cartucheira na mão, isso sim!

O Gino também foi lá em casa, ontem à tarde. Falou, riu, desejou que eu sare logo. Quanto fingimento! Se ele soubesse que já descobri tudo!

Hoje, a Dona Maura veio puxar prosa, querendo me agradar. Desde ontem, ela está querendo se aproximar de mim, mas eu não dou lado. Quer continuar fingindo que é boazinha, pra eu não ficar desconfiado da sujeira que aprontou. É bem capaz que ela invente um outro plano de ataque e preciso estar de sobreaviso o tempo inteiro.

Hoje, já quase sarei mas estou fazendo de conta que não sarei. Finjo que sinto fraqueza e todos estão acreditando. Se alguém quiser aproveitar desta minha cara de doente, vai ter

uma surpresa. A reação não vai ser de nenhum pé na cova.

II

Depois, enquanto a aula prosseguia para os demais alunos, Valentino ficou tentando imaginar um crime perfeito, sem

deixar vestígio. Não podia dar-se ao luxo de ser descoberto logo na primeira morte, para que os demais não tivessem possi-bilidade de escapar: “- Todos devem morrer, senão vai continuar esta perseguição onde eu estiver.” - Lembrou-se das histó-rias policiais que conhecia e procurou fazer um resumo das pistas que levam a um criminoso. Foi relacionando, mentalmen-te, os tópicos principais e anotando:

Ainda é hoje, sexta-feira, dia 23. Sabe, caderno, isso que vou escrever não é para contar acontecimentos; é um levantamento das coisas que não posso

esquecer na hora de eliminar meus perseguidores. São as pistas que não posso deixar. Por sorte, já li uns mil livros e aprendi muito. Vou tentar relacionar, para mim mesmo: Não posso deixar impressões digitais. Não posso deixar rastros.

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Não posso deixar toco de cigarro - ainda bem que não fumo, mas seria engraçado se, só para despistar, eu passasse batom e deixasse um toco de cigarro com batom; o difícil seria encontrar aqui na vila, uma mulher que fume e use batom. Isso despistaria qualquer detetive xereta, mas não preciso exagerar.

O horário da morte é importante, para que eu tenha um álibi. O local deve ser escolhido com cuidado de modo que, ficando o cadáver por dois ou três dias, não seja descoberto. Isso

desnorteia a polícia. Não deixar cair objeto dos bolsos. Não deixar no local nada que se tenha de ir buscar depois. Não deixar que a vítima veja o agressor porque, se não morrer, não terá como acusá-lo. Se outra pessoa, mesmo inocente, assistir ao crime, ela morrerá também, antes de mudar o passo. Não ter pressa. Não entrar em pânico seja antes, durante ou depois do crime. Não deixar a vítima agarrar algum botão da roupa da gente, nem fio de cabelo, nem correntinha, nem pedaço de roupa,

nada! A vítima não pode arranhar a gente, senão descobrem que aquele pedaço de pele que ficou na unha do morto é da gen-

te, por causa de exame de laboratório. O bom mesmo é agarrar a vítima por trás, de maneira que ela não possa nem ver a gente, nem tentar brigar, nem tentar

se defender. É preciso ter cuidado com o que a gente fala, porque uma palavra a mais pode levar a desconfiança. Acho que é só, mas acho também que tem mais coisa. Eu vou tentar me lembrar de tudo e, se lembrar, volto a escrever.

III

Depois da aula, os irmãos voltavam para casa quando ouviram atrás de si a voz de Gino: - Ei, Valentino! Ei, Anita, me esperem! Retardando o passo, logo foram alcançados e passaram a caminhar juntos. - Ô, amigo! Você está com outra cara! Nem parece aquele de ontem: mole, fraco, vermelho, olhos inchados, caindo de

sono, sem vontade de se mexer. Que diferença! Sarou rápido, né? - Falta pouco. Tomo os remédios só quando lembro e, mesmo assim, estou melhorando. O rosto, já quase normal, olhos

meio empapuçados. Sinto ainda um pouco de tontura. De resto, estou sarado. As mãos, veja! Ainda estão vermelhas, pele grossa.

- Nem dá para perceber. - Eu percebo porque coça. Aonde você está indo? - A nenhum lugar. Meu pai foi pra fazenda e, enquanto não começam a derrubada fico vagabundando, andando à toa.

Para matar o tempo pensei em dar uma andada pela cidade mas, sozinho não tem graça nenhuma. Se você não estivesse de dieta sem poder andar muito, poderia ir comigo, mas... não pode, né?

- Se estou indo à escola que é pior... - Então você acha que dá pra dar uma saída? - Mas você já conhece tudo, nem precisa sair daqui. É só olhar em volta. - Já olhei uma porção de vezes, mas quero ver de perto, saber nomes de pessoas, quem mora onde, onde mora quem,

quem é pai de quem... coisas assim. Dá pra ir comigo? - Acho que sim, vou fazer uma forcinha. Espere só até eu deixar o material em casa e comer alguma coisa. Minutos depois, enquanto Valentino almoçava suas verduras com frutas, o outro rapaz ficou na loja. “- O Gino ficou feliz demais quando falei que ia com ele. Neste mato tem coelho! Acho que meu pai está orientando ele

sobre os lugares mais perigosos. Faço de conta que não sei de nada, mas não vou a lugar nenhum onde ele queira ir. Eu que vou comandar este passeio.”

Já na rua, à sombra dos eucaliptos, decidiam qual direção tomar e não entravam em entendimento: - O Brejão e a Floresta dos Morretes estão de fora, nem adianta pedir. - Nem pensava nestes lugares... e o cemitério? Quando a gente chegou com a mudança deu pra ver uns tumulinhos, uns

montinhos de terra com cruz fincada. Eu gosto de visitar cemitério, não sei porquê. Fico imaginando cada carneira com seu morador... ou seu defunto, como queira. Fico tentando, pelo nome, idade e fotografia, descobrir o motivo da morte, se so-freu na vida, se fez alguém sofrer, se todo mundo ficou triste ou contente quando ele morreu. Pelo jeito do túmulo, a gente sabe se a morte foi chorada. Quando passo perto de algum que percebo que o morto foi esquecido, eu paro e rezo.

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- E como sabe se o morto foi esquecido? - Pelo jeito do túmulo, já falei. Flores de papel desbotado, pintura descascada, rachadura, bolor, sujeira, mato em volta,

velas empoeiradas derretidas pelo sol, tudo isso significa que ninguém visita aquele túmulo, que ninguém se lembra do morto. Aí, eu rezo por ele.

- Que engraçado, nunca pensei nisso. - confessou Valentino, demonstrando na voz e no olhar, certo interesse por aquela atitude - Por que você faz assim? Isto é, porque você reza por ele?

- Pode ser bobeira minha, mas deve ter muita alma penada por aí, que não era muito gostada pela família; ou então nem tinha família e, neste caso, ninguém aqui na terra reza por ela. Coitada!

Valentino concordou com a cabeça, enquanto Gino continuava sua tese: - E sabe de uma coisa? Tem bastante gente que reza pros santos. Eu penso assim: - ‘Pra que rezar pro santo, se santo já é

santo? Santo não precisa de reza, nem tem mais onde enfiar tanta oração que o povo fica fazendo. Então, por que não orar pra quem nunca é lembrado?’ É assim que eu penso e por isso, dou uma rezadinha em tudo quanto é túmulo abandonado que vejo.

- Você acredita que oração sirva pra alguma coisa? Que a reza de alguém daqui de baixo pode ajudar quem morreu? - Como saber, se não morri ainda? - deu uma risada cristalina, no que foi acompanhado por Valentino. - Então, se não sabe se serve, por que reza? - Não custa, né? Vamos que sirva e eu não rezei? - Mas se não servir pra nada, você vai estar perdendo tempo. - Não, acho que não. É um tempo passado querendo ajudar. Se não servir para aquele a quem eu rezo, serve pelo menos

para mim, que passei aquele tempo não fazendo coisa errada, nem pensando o que não deveria pensar. - Peraí: Vamos fazer de conta que a reza sirva pra ajudar as almas. Mas... e se esta alma estiver no inferno? Caçoando das próprias filosofias, Gino respondeu: - Vai servir para esfriar o inferno! - Sem brincadeira, Gino! Se a alma foi pro inferno, do que adianta rezar pra ela? - Será que existe inferno? Deus faria um castigo tão tenebroso para quê? Só pra ficar dando risada de quem cair em des-

graça? Não acredito muito nesse troço de inferno. Você acredita? - Todo mundo fala que existe... Até o Padre Nicolau, que tem contato direto com Deus fala no inferno. E se ele fala é

porque existe! - Contato com Deus? O Padre Nicolau? E por que ele teria contato com Deus? - Porque é padre, oras! Gino sentiu vontade de rir, porém achou por bem conter-se e não aprofundar naquele assunto para não contrariar o ami-

go, que já estava confuso demais, não precisando de maiores motivos para aumentar conflitos. Calou-se portanto, quando poderia ter dito as coisas nas quais tinha por verdadeiras.

Foi Valentino quem, depois de uma meia pausa, continuou a prosa: - E se a alma for pro céu? - O que é que tem se a alma for pro céu? - Nós não estamos falando de reza para as almas? Então! E se a alma estiver no céu, eu quero saber como é que ficam as

orações que a gente faz por ela. Gino não acreditava também num lugar chamado céu, para onde iam as pessoas boazinhas depois da morte. Ele acredi-

tava que houvesse longa evolução com etapas a serem vencidas como na escola onde, num ano apenas, um estudante não se torna médico. Mas como dizer isso a Valentino? Tentaria dizer sim, mas aos poucos, sem ocasionar-lhe maiores desordens íntimas. Para o momento, optou por dar uma resposta ao nível de entendimento do outro:

- Se a alma foi pro céu é santa não é assim? Neste caso não precisa de orações! Decerto, como ela é boazinha, dá de pre-sente as rezas para quem precisa mais. – e mudou de assunto: - Como é? Você vai comigo ao cemitério?

Desde o início da conversa, Valentino se pôs em guarda. Cemitério? Um lugar tão solitário e sombrio como pode atrair

um rapazola feito o Gino? Este poderia ser um dos lugares sugeridos por seu pai e, assim sendo, haveria alguma cilada pron-ta por lá, esperando por ele.

- Você esqueceu que não posso andar muito? Estou bem, mas nem tanto. Além disso, não sou muito chegado a cemité-rio.

- E o Rio das Pedras? Estive por aquelas bandas com o doutor, mas não pude chegar pertinho; sabe, fiquei sem graça de pedir pra ver. Eu ouvia o barulho da água e, naquele calorão desgraçado, fiquei morrendo de vontade de dar um mergulho... dá pra ir até lá?

O rosto de Valentino se iluminou ao falar: - O Rio das Pedras é bonito mesmo! Largão, corredeira, água tão limpinha, que dá pra ver as pedras do fundo! Tem lugar raso, que dá pé; e tem lugar fundão, daqueles que dá pra mergulhar tranquilo. Mais pra baixo, num braço do rio é o esconderijo dos pescadores da vila; é um tanque assim, ó, de peixe de tudo quanto é

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tamanho. Eu descobri onde é e, de vez em quando, vou lá buscar mistura pra janta. Só que a gente não pode ir, assim, a qualquer hora. Só quando tem certeza que os donos não estão por perto.

- Tudo bem, a gente não vai no tanque de peixe. Só no rio ver a água. - É mais perto que o cemitério. Mas na ida, tudo fácil; é aquele descidão, dá até pra ir correndo. O duro é a volta! Eu a-

inda não estou bem firme em cima das pernas. Se quiser, ensino o caminho mais curto e você vai. Mas se esperar alguns dias a gente vai junto.

- E até o fim da rua, você pode? Desta maneira, Valentino descartou os pontos que acreditou perigosos e sugeriu lugares dentro da aldeia, sem interesse

algum para visitação. Não queria se arriscar enquanto não tivesse certeza de brigar e vencer. Uma hora depois estavam de volta ao centro da vila e sentaram-se no chão junto à parede da igreja, entre esta e a casa do

médico. O Dr. Luciano, que os observava de longe, fingiu algum serviço no quintal em lugar onde, simulando coincidência, aproximou-se da cerca:

- Boa tarde, jovens! Falando de namorada? Gino sentiu-se gelar. Lembrou que havia mentido que estiveram falando sobre namorada no dia do incidente com a abe-

lha. Valentino não soubera do fato e, se o doutor aprofundasse querendo saber mais, como explicar-se? O tema da conversa no entanto, foi desviado:

- Não. O Gino que queria conhecer o povoado, estamos chegando agora; não tem nada de bonito pra ser mostrado. - Não? E o Rio das Pedras? Foram lá? - Não fomos. É que ainda não me sinto muito animado para enfrentar a subida de volta. - Então, fez bem. Aliás, quero saber de sua saúde. Como é que está sua recuperação? Se aconteceu alguma coisa, quero

saber ainda hoje. Valentino optou pela negativa: - Tudo certo! A não ser fraqueza e um pouco de tontura de vez em quando, não sinto mais nada. - depois de uma pausa,

perguntou: - Por que tem de saber hoje? É grave? Ainda corro risco? - Nada disso. É que vou estar fora neste fim de semana e quero sair sem preocupações. - Aonde o senhor vai? - À cidade. Faz tempo que não vejo os filhos, os netos. A gente se acomoda no canto e até esquece que tem família es-

parramada por aí. Mas não tenho vontade nenhuma de enfrentar o calor da estrada. Saio hoje de tardezinha e chego lá à noite.

- Por mim, o senhor pode ir despreocupado. Quando volta? - Depois de amanhã, no domingo, saio cedo de lá. Tenho de estar aqui pra partida de futebol. O Coroado levou a pior na

semana passada e neste fim de semana vou estar presente pra dar uma forcinha. Valentino gargalhou: - E vai perder outra vez! O Limoeiro está em fase boa e, sabendo que, se ganhar vai disputar com o Marajó, ele vai ser

bobo de perder? - Quê? Salvei da morte um torcedor do time contrário? Não me lembrei deste detalhe, senão o Senhor Valentino não es-

taria aí, contando prosa! - e riu - O Coroado vai ganhar e vou trazer da cidade uma caixa de foguetes para comemorar! - Comemorar o quê? Os foguetes vão criar bolor de tanto esperar vitória. - É o que nós vamos ver, mocinho! Vai ser uns três a zero! Quero estar por perto e olhar bem na sua cara, na hora que o

Amadeu apitar o final do jogo. - Amadeu? - Valentino riu gostoso - Amadeu? Então não sabe? O Amadeu estava carregando um latão de leite e levou

um tombo. Não se machucou, mas na hora que foi levantar, torceu o pescoço. - Torcicolo? - Acho que chama isso mesmo. Foi hoje cedo, escuro ainda. Agora ele anda olhando pra um lado só. Se um caminhão

vier do outro lado, mata o coitado! - deu uma boa risada – Ouvi esta boa notícia hoje, lá na escola. - E por que ele não veio me procurar? Eu teria feito uma massagem com uma pomada, que é tiro e queda. - Que nada! Fez uma compressa com erva-de-santa-maria com fumo e xixi quentinho colhido na hora. - Xixi quente com fumo? - olhou para o céu - Meu Deus, não vai sarar nunca! - Tomara que não sare mesmo! Com pescoço torto, não pode apitar jogo nenhum. O Careca vai ser o juiz - ou o Sabugo. - O Coroado está perdido! A sorte do meu time nas mãos de dois torcedores do Limoeiro! - Não falei que o foguetório vai embolorar? O jeito é guardar tudo pra festa do Padre Dimas. - Que nada! Time que presta ganha até com juiz ladrão! Meus foguetes serão usados domingo, na vitória do Coroado,

nem que eu mesmo tenha de entrar em campo e dar uns chutes. Riram os três. Depois de curto silêncio, o doutor fez menção de se despedir:

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- Bem, quem está com tanto fôlego para defender um timeco igual ao Limoeiro é porque está curado mesmo. Domingo a gente se vê, na hora soltar rojão... e você vai me ajudar a atiçar fogo no rabo deles.

- Eu? Essa é boa! Pois vou estar muito ocupado gritando vivas pro Limoeiro. Seis a zero, sem dó! - Bem, a conversa está boa, mas já estou de saída. O carro está preparado, limpo, combustível no tanque. Hoje mesmo,

vou jantar em Ipoty. Uma boa tarde pra vocês. Valentino sentiu certa expectativa agitar-se dentro dele. Com a ausência do médico teria tempo para acabar com a en-

fermeira. Só precisava planejar com calma cada detalhe. Gino manteve-se em silêncio durante a conversa dos dois, por não conhecer os pormenores do futebol da Vila Verde. À

saída do Dr. Luciano, Valentino colocou-o a par de tudo, arrematando: - Você vai assistir ao jogo de domingo e, com certeza, vai ser mais um torcedor do Limoeiro. Esgotado o assunto, Gino puxou um outro fio: - Valentino, você não falou mais nada daquelas emboscadas de morte. Aconteceu mais alguma coisa importante? O outro pensou bem antes de responder: - Eu estava amedrontado naquele dia dos ratos e nos dias antes dos ratos. Depois, acabei percebendo que era tudo coisa

da minha cabeça. Ninguém está me perseguindo. - Verdade? Que bom! Melhor assim, né? Eu também pensei naquilo tudo e achei muito estranho. Ainda mais naquela

noite em que esteve doente, pude ver o tanto que gostam de você. Todo mundo preocupado, todos me perguntando, queren-do saber como aconteceu... Até o doutor, que é o doutor, me chamou para saber certinho cada detalhe. Olha, eu gostaria que você pudesse ter visto! Ninguém dormiu; as lâmpadas ficaram acesas, todo mundo reunido em volta da casa do doutor. Que coisa bonita ver tanta gente rezando, a igreja lotada sem ser missa! Nunca aconteceu nada igual lá na cidade.

- Pois é.... Foi justamente por causa daquilo que tive tempo para pensar. Lá deitado e sem poder falar, pensei muito. Ou-vi dizer que a aldeia inteira esteve atenta; que a capela ficou aberta, que o padre não desligou a energia. Daí, achei que nin-guém quer me matar. Tudo o que aconteceu foi coincidência: Cacau, barata, rato, tudo! E eu, morrendo de medo!

- Quer dizer que não precisa mais da minha ajuda? - Que ideia, Gino! Esqueça! O que falei naquele dia está morto, enterrado, acabou! - Mas a oferta continua de pé: se precisar, aqui estou eu: forte, grande, bonito, corajoso, lutando até a morte na defesa de

um amigo! Heim? Gostou? - Gostei. É bom ter amigos iguais a você. - e, em pensamento, continuou: “- Acho que ele acreditou. Coincidência? To-

dos gostam de mim? Rezaram por mim? Eles estavam preocupados porque eu estava sarando, isso sim! Rezavam pra que eu morresse!”.

Depois de uma pausa Valentino cortou o silêncio: - Estou cansado, acho que vou pra casa. Amanhã, a gente se vê. Pro-meto que quando estiver bem forte, levo você conhecer o Rio das Pedras, a cachoeira, a corredeira, o cemitério, a Ponte do Padre, a prainha, o tanque dos pescadores, e mais uma porção de lugar que no mundo não tem igual, de tanta boniteza.

- Então vê se sara logo! - Deixe comigo. Ninguém tem mais vontade de me ver sarado do que eu mesmo.

IV

Já em casa, Valentino repassou na cabeça, os detalhes da morte da enfermeira. Sendo fim de semana e com o doutor fora

do povoado, ninguém notaria a falta da mulher. Só na segunda-feira, por não comparecer ao trabalho, a ausência seria senti-da. Hora, local, meio usado, álibi. Tudo estava perfeito e ele sentia-se bem de saúde para executar o plano. Aquilo que dis-sera ao Dr. Luciano e ao Gino sobre sentir fraqueza era boa desculpa e ia continuar mantendo o ar doentio enquanto pudes-se, a fim de não levantar suspeitas. Quem pensaria num menino doente que, na véspera, estivera praticamente morto, sendo o assassino de D. Etelvina?

Os ponteiros avançavam sem pressa como se os relógios estivessem cansados. Passava das cinco da tarde quando, para forjar um álibi, Valentino sentou-se à calçada da loja com um livro nas mãos e ficou a ler. Uns quinze minutos depois, o Dr. Luciano entrou na casa comercial.

Valentino, que não esperava sua presença ali quando deveria estar viajando, sentiu-se estremecer; este fato poderia botar tudo a perder, a não ser que reestudasse e reavaliasse cada minúcia.

- Pronto! Cerveja e copo. - e, em voz baixa: - O senhor viu o Valentino aí fora? - Ah, obrigado! Sim, acabei de passar por ele.

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Médico e vendeiro viraram-se simultaneamente para a direção do rapazinho e os olhares se cruzaram, em razão do me-nino erguer os olhos ao mesmo tempo, para o interior da loja. Impossível ouvir o diálogo que travavam, visto que ambos os homens saíram de seu campo de visão em direção a uma mesinha afastada, onde o médico ficaria mais à vontade.

“- Duplo par de olhos em cima de mim. Por quê? E agora foram se esconder no canto, decerto pra alguma trama suja. Deixe estar, que a vez deles também está por vir.” - e voltou a pousar o olhar no livro, como que muito interessado na leitu-ra. No entanto, se via as letras, o cérebro não participava do que estava ali contido, ocupado que se encontrava procurando um modo de neutralizar o obstáculo criado na última hora pela presença do médico.

Depois de passar um pano úmido na mesinha, o comerciante depositou nela o copo onde despejou o líquido espumante.

O Dr. Luciano sorveu a espuma, limpou os lábios e ergueu o olhar para o comerciante: - Ainda sobre o seu filho, juntando as peças todas - as que vi e as que ouvi - quase posso jurar que o desequilíbrio que

temíamos era apenas suposição. Bastou ter encontrado um companheiro, tudo se acomodou. Bem que eu disse ser este o melhor tratamento.

- Sim, eu lembro. - E observei também que ele não anda mais conversando com coisas e animais... ou estarei enganado? S. Leonel silenciou fazendo breve retrospectiva mental dos últimos acontecimentos e respondeu: - Acho que não. Eu já vinha notando isso mas, agora que o senhor falou... deixe-me ver.... Já faz uns... quanto? Cinco ou

seis dias que não o surpreendo mais naqueles monólogos. O último animal com quem falou foi o cachorro, no domingo. Hoje é sexta-feira... É verdade! Ele não tem mais cumprimentado cada toco, perguntado pela saúde dos mosquitos e postes da rua. Será que isso é bom sinal?

- Acho que sim. Valentino está amadurecendo mental e fisicamente. Viu o tamanhão dele? Difícil dizer que só tenha on-ze anos; tem a mesma altura do Gino, que está com quatorze. A idade mental está acompanhando e amadurecendo. Deve ter percebido o ridículo de conversar sozinho... ainda mais que já pensa em namorada!

- Doutor, há outra diferença que tenho percebido... é que ele não passa tanto tempo - ou seja, não passa tempo nenhum correndo, nadando, fazendo traquinagens pela aldeia. Está certo que esteve doente, mas mesmo nos dias anteriores estava mais acomodado, fazendo tarefas de escola, lendo durante o dia, às vezes sem sair do quarto. Nem se interessa mais em procurar ninho de galinha, que era quase que um dever sagrado. Neste horário normalmente, estaria caçando com estilingue, vadiando por aí. Faz dias que está assim mais tranquilo, parece que mais... adulto.

- Com efeito. No meio da tarde estavam Gino e Valentino, sentados à sombra da igreja e me aproximei. Conversamos por uns bons dez ou quinze minutos. Risonho, conversador, não leva desvantagem. Um homenzinho! Adulto, sim senhor!

O médico sorveu o segundo gole de cerveja: - Então, ele está acomodado, com atitudes mais responsáveis. E era sobre isso que queria lhe falar; estou indo pra Ipoty e, se ainda houver suspeita de anormalidade, eu levo o caso a um amigo meu, psicólogo dos melhores. Se este médico achar necessário, conduziremos o rapazinho a uma consulta completa. O que acha?

O dono da casa coçou a cabeça, indeciso: - Seria bom para tirar dúvidas, mas não sei... Eu conheço o Valentino, mas quem conhece de medicina é o senhor. E, se

acredita que o caso pode estar se solucionando por si... Vamos dar mais um tempo. Se houver recaída, a gente volta a falar. O médico assentiu com a cabeça, demonstrando ser essa a sua opinião. A chegada de um freguês interrompeu a conversa. O recém chegado dirigiu-se ao médico: - Doutor, a D. Etelvina me falou que o senhor está de saída pra cidade. Vai mesmo? Lá fora, Valentino apurou o órgão da audição: - Vou sim. Hoje não, que me atrasei. Mas amanhã, logo cedo me ponho a caminho. Por que a pergunta? O homem começou a falar a que viera mas, quanto a Valentino, não precisava ouvir mais nada. Sorriu com um só canto

da boca. O Dr. Luciano estaria fora, liberando-o para acionar o plano. Respirou aliviado, tudo seria feito conforme o previs-to, sem necessidade de alterar coisa alguma.

Quase seis horas. O Padre Nicolau fechou a máquina de arroz, atravessou a rua em direção à loja; de passagem cumpri-

mentou o rapaz. Mais dois ou três moradores voltando do trabalho, fizeram a costumeira parada na casa comercial e, pas-sando por Valentino, perguntaram pela sua saúde.

“- Já é quase hora! Está calhando tudo do jeito como imaginei: A loja se enche de gente, todos me veem aqui, perguntam se sarei e respondo que sinto fraqueza com tontura. Entram, ficam arranjando conversa e esquecem de mim. Se for preciso, vão jurar que não saí desta calçada... Nada de pânico, tudo vai dar certo. Está no horário, ela virá a qualquer momento.”

Respondendo à sua ansiedade, D. Etelvina saiu da residência do médico. O percurso a ser feito passava, obrigatoriamen-te, pela loja. Morava numa chácara seguindo a estrada rumo oeste, na última casa daquele lado da rua, praticamente fora do povoado. Valentino avistou-a de longe. Ergueu-se da calçada como que por acaso e, lentamente, entrou no próprio quintal.

Andou sem pressa junto à parede externa da casa, conseguindo frear a agitação interna. De passagem, deixou o livro no peitoril de uma das janelas. Depois, foi acompanhando a cerca do lado oeste rumo ao fundo do quintal. Se fosse visto, diria

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que estava à procura de mamão maduro para seu jantar. Quando ciente que se encontrava a salvo de quaisquer olhares acele-rou os passos, atravessou a cerca do quintal e continuou a descer como se estivesse se dirigindo ao Brejão. Quando se sentiu em segurança dobrou à esquerda e pôs-se a correr. Corria, tendo o cuidado de pisar sobre pedras e tufos de vegetação para não deixar pegadas. Atravessou os terrenos incultos ao fundo das propriedades daquele lado da rua, procurando confundir-se com a paisagem.

Era horário do preparo do jantar pelas donas de casa, do banho das crianças e, por força destas circunstâncias, na rua somente se notava a presença dos poucos homens que retornavam do trabalho. Valentino foi seguindo pelos fundos das propriedades, em sentido paralelo à estrada. Ia apressado, esgueirando-se atrás das árvores, troncos e arbustos, abaixando-se em locais abertos, espreitando ao redor:

“- Eu não lhe prometi uma visita? Pois estou cumprindo a promessa. Venho agradecer o caldinho de galinha.” Entrou pelo fundo da chácara da enfermeira e caminhou terreno acima; chegou o mais próximo que pôde da casa, procu-

rando um lugar onde se esconder.

V

A casa era pequena, antiga e bastante modesta. Paredes baixas, telhado comum e destituída de qualquer varanda, alpen-

dre ou puxado. A pintura, por poucos indícios deixava adivinhar a cor original. Envolta em área sombria, as paredes recebi-am pouco sol e arejamento. Bolor e poeira se misturavam, dando em tudo um ar de desolação e abandono. As portas - da sala e da cozinha - voltadas para o lado leste, estavam imersas em sombras eternas produzidas por uma mangueira com aspecto centenário e por uma moita de bambus. Folhas secas caíam ao vento sobre a grama e ali ficavam, sem que a mulher tivesse tempo de as retirar, formando verdadeiro tapete vegetal.

O quintal ficava um pouco abaixo do nível da rua. Uma cerca de ripões coberta por trepadeiras de melão-de-são-caetano, cujos frutos alaranjados, abertos em pétalas, deixavam à mostra as sementes de um vermelho vivo e brilhante, protegia a entrada e as laterais da casa. Estas cores fortes perdidas no emaranhado de trepadeiras eram os únicos elementos que que-bravam a monotonia das cores tristes dentro das quais, aquela casa pequenina estava mergulhada.

Na rua, a mulher caminhava devagar. Não era esperada em casa portanto, não havia pressa. Em passo cadenciado, demo-rou a atingir o portãozinho de ripões que, igualmente, era coberto por trepadeiras.

Para Valentino, escondido entre a moita de bambus, a demora não contava; tinha tempo e poderia esperar muito mais, desde que fosse para eliminar um inimigo. Estava preparado segurando o garrote, uma ponta em cada mão.

D. Etelvina chegou, entrou pelo pequeno portão e voltou-se para fechá-lo, mergulhando outra vez aquele quintal na qua-

se invisibilidade de quem passasse por ali. Vasculhou nos bolsos, pegou a chave, abriu a porta e adiantou-se para entrar. Ágil e silencioso, Valentino saiu do esconderijo e alcançou a porta quase que ao mesmo tempo que a mulher. Chegando

por trás, enlaçou o garrote no pescoço magro e apertou com força. A enfermeira não teve a mínima chance de reagir; conse-guiu apenas levar as mãos ao pescoço, num gesto inútil de se livrar do objeto incômodo. Este foi seu último movimento.

Quando teve certeza que ela estava sem vida, o rapazinho retirou o garrote e empurrou, com o pé, o corpo para o interior da casa. Retirou a chave que ainda estava do lado de fora e, usando o tecido da própria camisa em torno da mão como se fosse uma luva, limpou as possíveis impressões digitais. Depois, ainda com o tecido da camisa protegendo a mão, colocou a chave na fechadura, pelo lado de dentro.

“- Desvio de pistas.” Sempre com a mão envolta no tecido, limpou o metal da fechadura e a madeira da porta. Passou o garrote pelo trinco e

puxou, segurando pelas extremidades; a porta veio junto ajustando-se perfeitamente na sua moldura. Com a mesma rapidez retornou ao esconderijo entre os bambus e, daí teve melhor visão do conjunto. Verificou que não

deixara marca alguma atrás de si; o solo, naquele espaço entre a casa e o bambuzal era forrado por pouca grama quase to-talmente coberta de folhas secas. Impossível deixar ali marcas de pés registradas.

Ajeitou as folhas dos bambus de modo a esconder sinais da sua presença. E saiu. Voltou pisando sobre os próprios ras-tros, levando na mão um galho folhudo, com o qual apagava os vestígios deixados por seus pés, nos lugares onde andara sobre a terra nua.

“- Crime perfeito! Nenhuma marca, nenhuma pista, nenhuma impressão digital, nenhuma testemunha! Se é verdade que o assassino volta ao local do crime, desta vez a verdade vai ser mentira porque aqui não volto. Não esqueci nada que possa me apontar como autor desta morte. Agora, é ter o maior cuidado do mundo para não ser visto, nem deixar sinal dos pés.”

Fez o mesmo trajeto de volta, sempre com as mesmas precauções. Chegou ao próprio quintal e ainda se lembrou de apanhar um mamão maduro para despistar qualquer possível confronto

com a família. Subiu beirando a cerca como que despreocupado, evitando pensar no que acabara de fazer. Entrou pela porta da cozinha onde a mãe cuidava das panelas.

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- Onde você esteve, Valentino? - Por aí. - foi a resposta, em tom neutro. - E o Gino? Ele não saiu daqui com você? - Foi embora faz tempo. Amanhã, a gente se vê outra vez. - Bom menino aquele. Ajuizado, nem parece criança. - Gino não é criança! - retrucou o garoto, em tom ríspido. - Como não? Aos treze anos, o que é? Homem feito? Bem a tempo, Valentino percebeu o deslize e consertou como pôde: - Sim! Ele é homem feito... como eu! - Ah, tudo bem! Desculpe! Esqueci que não temos mais criança nesta casa. - Só a Anita. - É. Só a Anita. Vai jantar mamão outra vez? - Vou. O médico mandou comer bastante fruta. - Filho, hoje você não repousou nem um pouco. Foi à escola, passou a tarde inteira debaixo do sol. Está levando sua sa-

úde na brincadeira e eu não gosto disso. - Já sarei! Sinto fraqueza de vez em quando e tontura; mas se deito, é pior, porque a tontura aumenta. Preciso fazer bas-

tante exercício por ter passado tanto tempo de cama. - De cama? - a mulher colocou um pouco de caldo na mão, experimentou, avaliou o sabor e misturou um pouco mais de

sal no caldo que fervia - Tanto tempo de cama? Se estou bem lembrada, você ficou só um dia na cama. Hoje por exemplo, ao invés de descansar ficou a tarde inteira andando por aí.

- Andando a tarde inteira, não. Só um pouco. Outro pouco fiquei com o Gino na sombra da igreja e o resto fiquei lendo lá na calçada, sentado bem quietinho, descansando sim senhora.

- Não acredito. Valentino teve um sobressalto, mas logo percebeu que o comentário não tinha nada de sério. A mãe não poderia estar

sabendo ainda, o que ele fizera e, em tom evasivo, completou: - Pergunte ao meu pai, ao doutor, ao padre, aos vizinhos... a quem quiser. - Certo. Agora, vá tomar um banho caprichado; lave bem os joelhos e estes cotovelos, que o jantar está saindo.

VI

Levando o mamão consigo, o garoto fechou a porta do quarto atrás de si: “- Minha mãe pode injetar algum veneno nele, se eu o deixar na cozinha.” Deitou-se e, só então deu vazão à euforia. Apertou o travesseiro contra a boca e pôs-se a rir: “- Foi fácil demais! Não resistiu nada, aquela pamonha!” - tirou o garrote do bolso fitou-o com carinho, esticou-o e deu-

lhe um beijo: - “Obrigado, borrachinha! É uma pena, mas preciso me desfazer de você. Tenho de dar-lhe um fim, mas não sei qual. Tem de ser um fim inteligente, senão...”

Rememorou cada pormenor, elogiando-se a si mesmo: “- O álibi é perfeito! Todos puderam me ver, conversaram comi-go, ninguém marcou no relógio a hora exata em que saí da frente da loja. Se for preciso, jurarão que estive lá o tempo intei-ro. Daí, fui buscar mamão. Só isso! Minha mãe é testemunha que fui apanhar mamão. O médico mandou que só comesse fruta e sou obediente.” - gargalhou com o travesseiro abafando o som - “Ninguém vai desconfiar que, entre a leitura e o mamão, matei a enfermeira! Valentino, você é um gênio! Que pena o Cacau não estar aqui pra eu lhe contar tudo!”

24 DE AGOSTO – SÁBADO

I

Anita chegou correndo ao pátio da escola, procurando participar das brincadeiras. Deixou a bolsa sobre o banco e desa-pareceu entre outras crianças. Valentino não entrou de pronto; queria antes, sondar o terreno onde pisava. Ficou parado em frente ao portão, como quem sente fastio até por si mesmo. Depois andou devagar, de modo disfarçado até a frente da casa de Gino. Ao fazer meia volta, deu rápida olhada para a garagem do outro lado da rua, e o que viu deixou-o paralisado:

“- Como? O carro do doutor está aí! Então não foi à cidade! E agora? Já terá notado a falta dela?” Não deixou transpare-cer o temor que gelava até a última célula do corpo. Devagar, retornou e entrou no quintal da escola. Sentado à sombra do

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prédio, repassou cada minúcia procurando algum ponto falho onde pudesse ser apanhado. Rememorou a conversa com a enfermeira dois dias antes e sentiu certa serenidade:

“- D. Etelvina contou que entrava no trabalho por volta das oito. Ainda não são oito horas... portanto, até agora o doutor não reparou sua falta. Além do mais, ele ia viajar e deve ter dado folga à empregada. Se deu folga, ela não ia mesmo compa-recer. Até aí, tudo perfeito. E, mesmo que não tenha dado folga, sabendo que o patrão vai viajar é normal que ela se atrase. Meu pai sempre fala que quando o gato sai, o rato deita e rola. Mas preciso pensar, não posso ficar esperando que ele encon-tre o cadáver... ou melhor: tenho de estar presente a este encontro.” - deu um sorriso de banda e seus olhos brilharam de modo diferente: - “É isso mesmo! Preciso estar presente! Só o doutor e eu! Vamos, Valentino, pense! Como é que você vai levar o doutor à casa dela? Rápido, pense depressa, que nada está perdido ainda!”

Durante a aula, Valentino estava mais dócil. Esforçava-se porém, por não ser dócil demais, nem para se portar com a

mesma rudeza dos dois dias anteriores. A doença havia sido boa desculpa para demonstrar à D. Maura todo o seu ressenti-mento; mas agora, mesmo que quisesse se mostrar debilitado, qualquer um perceberia que poucas marcas do acontecido ainda se faziam presentes. Tinha portanto, de retomar aos poucos os hábitos antigos; tinha de dispensar o ar rancoroso mes-mo porque, a qualquer instante dariam pela falta da enfermeira.

“- Não posso atrair atenções sobre mim, senão o cerco se fecha antes da hora.” Copiou as perguntas da lousa mas, em lugar de respondê-las, virou o caderno ao contrário: Hoje é sábado, dia 24. A D. Etelvina já se foi. Estrangulada com aquela borrachinha de aplicar injeção na veia. Ela não reagiu nem um pouco. Aconteceu ontem na casa dela, às seis da tarde, logo depois que saiu do serviço. Eu estava na calçada da loja fingindo ler e vi quando ela saiu da casa do doutor. Larguei o livro e fui correndo pra ca-

sa dela. Dei uma volta comprida lá por perto do Brejão para não ser visto e, à toda pressa, cheguei na frente. Eu me escondi no meio dos bambus, com o garrote esticado. Ela não me viu e, na horinha que entrou em casa eu entrei junto, por trás dela, para que não me visse e não soubesse

que fui eu. Enlacei o pescoço da velha com a borrachinha e apertei forte, por bastante tempo. Ela foi caindo sem reagir nem um pouco, sem fazer nenhuma força. Apaguei as marcas todas, não deixei nenhum vestígio. Havia mais a escrever, porém ouviu a pergunta de D. Maura e suspendeu a atividade: - Valentino, acabou de responder às questões? - Ainda não. - Todos acabaram, só falta você. - É que a minha mão ainda está um pouco dura, não consigo segurar direito o lápis. Pode ir corrigindo dos outros en-

quanto eu acabo. - Se falta pouco, eu espero. Valentino ainda escreveu embaixo da anotação que acabara de fazer: Depois continuo escrevendo. Agora, a D. Maura chamou a minha atenção. Desvirou rapidamente o caderno para a posição correta, abriu a página onde copiara as questões: - Pronto, professora. Já acabei. - Então, vamos começar a correção. A criança sorteada lê a pergunta em voz alta, e ela mesma lê a resposta. Se estiver

errada ou incompleta, eu sorteio outra criança que deverá corrigir o erro do colega. E todos vão acompanhar, nos próprios cadernos as respostas que deram, para ver se acertaram. Quem errou, apaga e corrige. No final, vou sortear cinco cadernos e ver se a correção foi feita. Vamos começar.

Tendo nas mãos uma sacolinha de pano contendo papeizinhos com os nomes dos alunos, D. Maura mexeu bem, retirou um papelzinho e leu:

- A primeira criança sorteada é... Judite! Pode ler, Judite. Fale bem alto para que todos possamos ouvir. Perguntas e respostas se sucediam com lerdeza revoltante, entremeadas por apartes e explicações da professora. Fingin-

do corrigir suas respostas, Valentino pôde responder ao questionário para a eventualidade de seu caderno ser sorteado para verificação da correção.

- Valentino, a resposta do Moacir está correta? Apanhado sem esperar, o rapazinho não sabia o que responder - e mentiu: - Eu não entendi bem o que ele falou. Minhas orelhas também ficaram inchadas e ainda não dá para ouvir direito. - Moacir, o Valentino não ouviu sua resposta. Leia outra vez a pergunta e a resposta.

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O aluno interrogado voltou a ler: - Em que ano foi fundada a cidade de São Paulo e quem foi seu fundador? Resposta: Quem fundou São Paulo foi Estácio

de Sá, em 1.549. - Está certo, Valentino? Sem titubear e sem ler sua resposta no caderno, Valentino se levantou e respondeu: - Errado! A cidade de São Paulo foi fundada por José de Anchieta e Manoel da Nóbrega. Muita gente fala que foi funda-

da só por Anchieta; mas se Nóbrega estava junto com ele, será que ia ficar só olhando o outro construir o colégio? Nada disso! Os dois são fundadores. A inauguração do colégio São Paulo foi em 25 de janeiro de 1.554, no governo de Duarte da Costa. Portanto, a fundação de São Paulo foi em 1.554, em não em 1.549. O ano de 1.549, que o Moacir falou, foi a funda-ção de Salvador, na Bahia, por Tomé de Sousa. E o Estácio de Sá, que ele também falou, fundou foi a cidade do Rio de Janeiro, no governo do tio dele, o Mem de Sá. Portanto, a resposta está tudo errada.

- D. Maura, não vale! O Valentino respondeu seis perguntas na frente, tudo de uma vez só. Agora não tem graça. - Tem graça, sim senhora. O Valentino respondeu certo só que enrolou tudo, ficando impossível saber quem acertou e

impossível também a correção de quem errou. Eu vou dar a resposta, vocês corrigem somente esta pergunta e depois a gente continua sorteando.

Enquanto acontecia a atividade orientada Valentino, que já havia escrito as respostas e feito sua parte na chamada oral, virou outra vez o caderno:

Sábado ainda. Agora, já dá pra continuar a contar. Eu havia parado de escrever aqui, porque a D. Maura estava corrigindo o questionário de História. Quando meu nome

foi sorteado, eu respondi tudo de uma vez só, um monte de pergunta na frente, e agora ela vai me dar sossego. Volto a escrever porque não me sai da cabeça isso que eu vou falar agora: O doutor garantiu que ia viajar. Ia ontem mesmo, mas deixou pra ir hoje, de madrugada. Eu pensei que ele fosse e pude

fazer o serviço com mais tranquilidade. Mas o carro dele está na garagem. Se o carro está aí, o dono também está. Minha cisma é que ele repare a falta dela e vá saber o que aconteceu. Se fizer isso, vai dar de cara com o corpo. Não tenho medo por mim, porque vai ser muito difícil saber que fui eu. Só fi-

co preocupado porque, se a D. Etelvina for descoberta agora, não posso continuar eliminando meus perseguidores. Tenho de inventar um jeito de estar com o doutor na hora em que ele descobrir o crime.

À hora do intervalo, Valentino ficou apoiado num mourão da cerca em frente à escola, olhando vez ou outra para a casa

do médico. Para ele não era difícil camuflar as emoções considerando que, mesmo quando nada tinha a esconder, andava sempre arredio. Sua atitude solitária naquele sábado não era de surpreender. Calmo por fora, o interior se encontrava em ebulição, raciocinando com clareza: “- Está tudo calmo, movimento nenhum. Nada foi descoberto ainda; mas daqui a pouco, o doutor vai começar a desconfiar porque ela sempre cumpriu certinho seu horário.”

II À saída da escola, aparentava ainda a mesma tranquilidade de todos os dias. Repetiu os mesmos gestos com a mesma precisão: ao lado da irmã chegou em casa, almoçou verduras com frutas colhi-

das e lavadas pelas próprias mãos. Ato contínuo apanhou o estilingue, verificou as correias e saiu para a rua. Fingiu indeci-são quanto ao rumo a tomar; era um comportamento calculado, pois sabia exatamente aonde ir.

O filho do vendeiro havia arquitetado seu plano ainda em sala de aula e só não sabia como colocá-lo em prática, por ig-norar os motivos que fizeram o Dr. Luciano adiar a viagem ou a desistir dela. Tinha certeza que, ao se inteirar destes moti-vos, saberia também como agir. Como que por acaso, tomou a direção leste, que levava à residência do médico. Ansiava por correr, porque cada minuto era precioso, importante demais, aumentando as chances de ser descoberto aquele cadáver. Do-minou porém, sua pressa. Andava olhando para o chão fingindo procurar pedras para o estilingue. Abaixou-se algumas vezes escolhendo munição e disparou dois projéteis contra alvos nulos.

Passou direto pelo portão da casa do médico, andou uns dez metros e depois, como que indeciso, resolveu voltar. Entrou no quintal do doutor pelo portão pequeno. Subiu os dois degraus, chegou à varanda sustentada por pilares retorcidos. As janelas estavam abertas, tal como havia imaginado. Retirou o garrote do bolso, esfregou-o contra a própria roupa, pois igno-rava se naquela borrachinha era possível descobrir impressões digitais. Na dúvida, limpou-a e simulou certa indecisão entre chamar ou entrar sem aviso. Por fim, pareceu optar: enfiou a cabeça pela janela do quarto onde estivera em tratamento e chamou em voz alta pelo o dono da casa. Enquanto encenava esta farsa, deixou o garrote cair dento do aposento, sobre uma caixa de madeira sem tampa que continha frascos de medicamentos. Tendo se desvencilhado da arma do crime sentiu maior

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segurança. Agora, sem hesitar, contornou a casa, chamando pelo doutor. A resposta veio em voz alta também: - Quem está aí? - Sou eu, o Valentino! Onde está o senhor? - Na garagem, pode entrar! O homem estava de cócoras ao lado do carro, tentando trocar um pneu. Parou o serviço, encarou o recém chegado: - O que aconteceu, mocinho? Alguma complicação? - Não, problema nenhum. Só vim fazer uma pergunta. - coçou a cabeça, encostou-se ao veículo, cruzou os braços naque-

la atitude negligente que às vezes sustentava. - Pergunte, estou ouvindo. - É minha mãe. Ela vive dizendo: - ‘Valentino, vá repousar e não tome sol. Valentino não faça isso, não faça aquilo que

ainda não está curado.’ - Mas eu me acho bem! Sinto fraqueza de vez em quando, um pouco de coceira, ainda tenho estas bolhazinhas nas mãos e a pele descascando; não fosse isso, eu estaria curado. Se eu deitar, fico tonto quando levanto e é por isso que não me deito. O que o senhor acha?

- Se está se sentindo bem não há por que ficar de molho. A fraqueza, você acaba com ela comendo; as tonturas são ainda os remédios agindo, mas não há perigo de reaparecimento dos sintomas. As bolhas, a coceira, a pele escamosa e o resto... o que você queria? Depois do que passou, isso é quase nada.

- É isso que eu digo a ela. Mas sabe como é a mãe da gente. Eu fico na dúvida e por isso, vim perguntar. - Fez bem. Me ajude aqui com este macaco, que não quer parar no lugar. - Deixe comigo. Pode sair, que eu resolvo isso aí. O médico ergueu-se com um gemido e saiu mancando, reclamando da idade que não lhe permitia mais dobrar as pernas;

reclamou da dor que lhe castigava os joelhos impedindo-o de andar com maior rapidez. Apoiado numa barra de ferro saiu de lado, deixando espaço livre.

Valentino tomou o lugar do outro. Abaixou-se cheio de cuidados, a fim de não ser atacado pelas costas: “- Que oportunidade tenho de perder! Um golpe na cabeça dele com uma destas ferramentas seria o suficiente. Mas não

pode ser aqui; ele seria encontrado muito depressa. Além disso, posso ter sido visto quando entrei, podem ter me ouvido quando chamei, ainda mais que disse meu nome aos berros.”

- O senhor não ia à cidade? - perguntou enquanto fingia tentar fixar o macaco ao solo. - Ia. Talvez ainda vá. Mas este pneu amanheceu assim, no chão. Na hora, não senti ânimo de fazer a troca. Depois,

quando resolvi cuidar do pneu, lembrei dos porcos e galinhas que estavam sem comer e lá fui eu, levar água e comida pra eles. Por causa deste maldito reumatismo que amanheceu pior, perdi mais de uma hora naquele serviço.

Valentino ouvia enquanto dava tratos à imaginação: “- Eu poderia consertar errado este pneu, pra que aconteça um desastre e ele morra; mas se não morrer vai dizer que a

culpa foi minha, pelo serviço mal feito. Não! É mais seguro do outro jeito que pensei antes.” - Se o senhor tivesse viajado, quem daria comida pros animais? - A Etelvina. Ela sabia que eu ia viajar e ficou de vir cuidar deles. Falou que ia se atrasar, porque ia fazer uma faxina na

casa; mas até agora, nada dela aparecer. Com certeza esqueceu. O jovem parou o serviço e o encarou: - A D. Etelvina esqueceria das obrigações? - Até hoje, nunca aconteceu. - Este macaco está mesmo difícil de ficar em pé. Decerto está doente. - O macaco? O garoto gargalhou: - Macaco doente? Que gozado! Não! Eu falei da D. Etelvina. - ergueu-se e encenou ar preocupado: - Ela pode estar doente, de verdade. - Pode ser, mas viria me avisar. - E se ela foi picada por abelha africana? E se quebrou a perna? E se estiver desmaiada, como é que vem avisar? Ela mo-

ra fora da vila, sozinha naquela casa, sem nenhum vizinho por perto, coitada! Se estiver caída, quem ela vai chamar pra ajudar a se levantar? Se estiver doente, de cama, não tem como trazer nem mandar recado nenhum.

- É verdade. Por ser tão pontual, por nunca faltar ao trabalho, por estar sempre bem disposta, parece impossível que a Etelvina possa ficar doente; e, se ficar, não tem mesmo como avisar.

- Tem mais outra coisa: ela sabia que o senhor ia à cidade. Portanto, mesmo que arranjasse alguém pra trazer um recado, a quem este recado seria entregue se o senhor não estivesse em casa?

- Hmmm, verdade. Você é vivo, mocinho! - Coitada da D. Etelvina! Se acontecer alguma coisa ruim nem adianta gritar, que ninguém escuta. - Tem razão. Acho que devo ir até lá ver o que houve. - Por que não vai enquanto troco o pneu? Vá devagar, bem devagar, sem forçar o joelho, senão dói. Eu poderia ir lá em

seu lugar mas, de que adiantaria? Eu não sou médico! Além disso, se ela estiver mesmo doente, o senhor vai ter de ir, de

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qualquer jeito e aí a perda de tempo será maior. Andar a pé é bom pra quem tem reumatismo. Veja eu: não ando de carro, vivo correndo pra todo lado e não tenho reumatismo.

O Dr. Luciano riu àquela comparação: - Você tem muito tempo pra ter reumatismo. E será que sabe trocar pneu? - Se sei? Quem é que o senhor acha que troca pneu do caminhão do meu pai? - Você? - Eu, sim! E olhe que caminhão é mais pesado de erguer. Ainda por cima, o macaco nosso é daquele antigo, difícil de

trabalhar. Este aqui, não! Enquanto o senhor vai e volta, seu carro vai estar prontinho. O doutor ficou indeciso sem saber se poderia confiar no serviço de Valentino, mas este prosseguiu como se tivesse lido

seu pensamento: - Se não confia em mim, pode ir lá em casa perguntar ao meu pai. O problema do macaco escorregar e não querer ficar

em pé, eu resolvo com uma tábua. É que o chão desta garagem é liso e ele precisa de apoio. Lá em casa é mais difícil ainda, porque o chão é de terra, o macaco afunda. Aqui, com uma tábua, eu resolvo o problema!

Em pensamento, o dono da casa concluía: “- Raciocínio brilhante pra um rapazote com menos de doze anos! Seu com-portamento tem mesmo de ser problema a quem nunca conviveu com um gênio.” - e se decidiu:

- Vou confiar na sua habilidade; vou deixar que troque o pneu enquanto dou uma chegadinha na casa da Etelvina. Você acabou me deixando preocupado. Quando acabar, se eu não estiver de volta, me faça um favor: pegue minha maleta de medicamentos e a leve para mim, que talvez seja preciso usá-la. É aquela maleta marrom que está...

- Eu sei qual é e sei onde está. Vá sossegado e deixe o resto comigo.

III

Dr. Luciano saiu à rua coxeando, passos lerdos. Assim que desapareceu pelo portão, Valentino largou as ferramentas e

saiu também. Depois de haver se certificado que não havia pessoa alguma à vista, atravessou a estrada em diagonal, com passadas normais. Entrou no terreno da escola e, só então apressou um pouco o ritmo do andar. Aprofundou-se, varou a cerca de arame, atravessou o terreno de eucaliptos e fez o mesmo percurso da tarde anterior, agora em desabalada carreira lembrando o tempo todo de tomar cuidados extremos para não ser avistado:

“- Ele tem conversa mansa, mas ficou o tempo inteiro com aquela barra de ferro na mão, fingindo se apoiar, esperando que eu lhe desse as costas. Fingido! Estava trocando o pneu muito bem, até que eu chegasse. Aí, pronto! Já não sabia fazer mais nada! Velho mentiroso e assassino, chegou a sua vez!”

Claudicando, o Dr. Luciano seguia conversando consigo mesmo: “- Que ligeireza de percepção, quanta clareza de racio-cínio! Eu mesmo não havia pensado na possibilidade da Etelvina estar precisando de ajuda. E como deduziu fácil que ela não tem como me mandar chamar. E a tábua para firmar o macaco? Inteligência brilhante, um gênio deslocado! Preciso contar este lance ao pai dele. Não vou parar agora, antes de saber o que está acontecendo com a Etelvina mas, na volta eu conto! Ele vai gostar de saber!”

Valentino chegou antes à casa de D. Etelvina. Usou o mesmo esconderijo escolhido no dia anterior: a moita de bambus,

que distava uns quatro metros da porta principal e ficou à espera. Estava cansado, suando, respiração ofegante, dor de lado; mas conhecia bem o passo cadenciado do Dr. Luciano, que hoje estava ainda mais lerdo por causa das dores no joelho. Teria pois, margem de tempo para voltar ao normal, serenar o coração e a respiração.

Tinha à mão tudo o que precisava: o estilingue e um caco de vidro afiado recolhido na rua, naquela hora em que fingia apanhar pedras. Limpou bem o pedaço de vidro para não deixar marcas dos dedos; envolveu-o no couro do estilingue, dei-xando a arma preparada. Com a mão esquerda segurava o caco envolto no couro da atiradeira e, com a direita, segurava com firmeza a forquilha de pau. “- Legítima defesa. Se eu não acabar com ele, quem morre sou eu.”

Todo o organismo de Valentino havia retornado à calma, quando percebeu a chegada do médico. Viu-o parar à frente daquela cerca com trepadeiras de melão-de-são-caetano. Viu-o dar um passo atrás, esticar o pescoço tentando enxergar através das folhas verdes. Percebeu a indecisão entre entrar pelo portão e chamar de onde estava.

“- Não chame! Não grite, senão vai atrair a atenção de quem não tem nada com isso. Entre! Abra o portão, vamos! Isso... sem chamar... vá entrando... mais perto... mais perto...”

Hesitante, o médico entrou no quintal e viu a porta fechada. Dirigiu-se à porta dos fundos encontrando-a cerrada tam-bém, assim como as janelas. Olhou em torno, deu uns passos para o fundo do quintal procurando a mulher pelo terreiro; depois retornou e parou defronte a porta da sala.

O estilingue já estava na posição, borrachas esticadas, pronto para soltar o caco de vidro. Mas tinha de esperar a hora certa, a posição mais adequada para que não necessitasse de uma segunda tentativa.

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Com os nós dos dedos o homem bateu na madeira, chamando em tom pouco acima do normal: - D. Etelvina! D. Etelvina, a senhora está aí? - aguardou breve instante e repetiu a operação, sem obter resposta. Cheio de escrúpulos tocou o trinco, fazendo leve movimento para abri-lo. À pressão dos dedos, o trinco funcionou e a

porta se movimentou com leve e curto rangido. O Dr. Luciano chamou ainda mais uma vez antes de espalmar a mão na madeira e a pressionar para dentro.

Não esperava encontrá-la ali caída, logo à entrada da casa. O choque o deixou sem ação, só olhando. Em seguida, reco-brando parte do domínio sobre si, deu um passo casa adentro e, apesar do cheiro peculiar da morte, inclinou-se ao lado da mulher, chamando-a pelo nome:

- D. Etelvina! D. Etelvina, o que aconteceu? - unindo palavra à ação, colocou-lhe a mão no ombro e tentou virá-la. O corpo inteiro virou junto, na rigidez da morte.

O médico deixou escapar uma exclamação. Sentiu as vistas turvas, as pernas amolecidas, o corpo inteiro trêmulo. Ape-sar de tantos anos de experiência no confronto direto com a morte, experimentou reações humanas normais e não as de um profissional vivido. Impotente até para analisar o cadáver, deixou-se ficar ali, apenas contemplando e esperando refazer-se do choque.

Aquela posição ajoelhada, imóvel, de perfil e bem na mira do estilingue foi aproveitada por Valentino que, sem tremer as mãos, soltou o couro que envolvia o caco de vidro. Impulsionado pelas borrachas esticadas o caco cortou o ar, atravessou aqueles poucos metros e, sem se desviar um milímetro, entrou fundo no pescoço do médico rasgando-lhe a pele e perfuran-do a veia jugular.

O sangue jorrou forte, em lufadas. Ainda sem se haver recuperado do assombro pela morte da enfermeira, o Dr. Luciano não chegou a perceber o que se passava. Sentiu o golpe no pescoço mas, na confusão psicológica em que se encontrava, não pôde ordenar os pensamentos, nem mesmo ao ver o próprio sangue empapando-lhe as vestes. As pernas ainda trêmulas pela surpresa, acrescentadas às dores que vinha sentindo contribuíram para que permanecesse de joelhos. Quando procurou fazer um gesto de defesa erguendo a mão para o lugar do ferimento, já estava o braço sem a força necessária para fazê-lo. Dentro de breve intervalo sentiu a consciência fugindo e o cérebro insuficiente para comandar os movimentos.

Entre os bambus, Valentino estava alerta observando a sequência dos fatos e pronto para entrar em ação outra vez, caso o homem conseguisse se levantar. Viu-lhe a mão tentando se erguer. Viu-lhe o gesto parado no ar, sem completar o movi-mento e ir retornando à posição primitiva. Viu-lhe depois o corpo afrouxando devagar até tombar para o lado e, naquela posição, permanecer.

Só bem depois, quando o líquido vermelho deteve seu fluxo, foi que Valentino aliviou a pressão dos dedos no estilingue. “- Mais um. Faltam muitos, mas ninguém me escapa! Não vão conseguir me mandar pro inferno, mesmo que a vila toda se empenhe nisso! Eu mando todos eles para lá muito antes de mim!”

Como no dia anterior, arrumou as coisas de modo que não pudesse ser apontado no envolvimento daquelas mortes. Nada de pegadas, nada de impressões digitais, vestígio nenhum da sua presença.

“- Aquele ditado fala a verdade. O assassino volta ao local do crime; mas só voltei pro outro crime.” – e riu sem som, com um só canto da boca.

Pela memória passou aquele diálogo na capela, entre si e o Padre Nicolau: - Muito bem, Senhor Valentino! Guarde esta arma. - Arma? Que arma? Isto é um estilingue! Atiradeira! Funda, não vê? - Estilingue, atiradeira ou funda, não importa o nome. Isto é arma usada contra os passarinhos. E, mentalizando a fisionomia do padre falou em voz inaudível, como se estivesse dando continuidade àquela conversa: - “É arma sim, Padre Nicolau! E não só para passarinhos! Mata gente também! Viu só como morreu o doutor?” Retornou à toda pressa e, antes de voltar para casa, foi acabar de fazer a troca de pneu. Era um álibi perfeito: “- Estive o tempo todo aqui, tentando fazer este macaco funcionar.” Guardou as ferramentas, colocou o pneu furado no porta-malas e teve o cuidado de fechar janelas e portas da residência

do médico, deixando-a com aquela aparência de abandono que assumem todas as casas quando seus donos viajam. Fechou ambos os portões e, só então abandonou o recinto.

Trancou-se no quarto sem aquela agitação que sentira no dia anterior: “- Hoje foi mais fácil! Não que usar estilingue seja melhor. Na verdade, foi bem mais arriscado, porque errar a pontaria

naquela canseira que eu estava seria normal. E ele poderia ter estancado o sangue; sendo médico, sabia como fazer. Ou poderia ter saído para a estrada pedindo socorro. Hoje foi mais arriscado, mas eu me sentia bem mais calmo. Para o próxi-mo, prometo me sentir melhor ainda.”

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25 DE AGOSTO - DOMINGO

I Ninguém da Vila Verde parecia ter notado a ausência do médico e da enfermeira. Ela, por não ter família e trabalhar o

dia todo, quase não era vista na aldeia; suas presenças eram mais notadas que suas ausências. Quanto ao Dr. Luciano, sabi-am todos que ele estaria viajando e não se levantou suspeita que conduzisse aos fatos.

Valentino, imperturbável, ajudou na loja com a mesma vivacidade e simpatia de sempre, o que fez o pai comentar, à meia voz com o Padre Nicolau:

- Veja lá! Ninguém diria que, há cinco dias, era quase um cadáver! - Graças a Deus, o organismo reagiu... e Graças a Deus temos, neste pedaço de chão esquecido do mundo, o doutor e a

enfermeira. Dois anjos que, além de experiência, têm toda aquela boa vontade que conhecemos bem. Com que carinho cui-daram dele, como se fosse um filho!

- Tem razão. E sabe o que mais? Ele não me cobrou um único centavo! Insisti pra que aceitasse pagamento, mas me res-pondeu que se sentia bem pago vendo o meu filho curado. O mesmo fez a D. Etelvina, que não aceitou uma gorjeta ao me-nos. Nada! Devo a vida do Valentino àqueles dois.

- Todos devemos alguma coisa àqueles dois. No caso do seu filho, o doutor pediu que buscasse os remédios mas, se ele tivesse os medicamentos, não teria pedido ao menos sua reposição. É assim que ele age com todos. É incrível!

Ficaram ambos observando Valentino por breve instante; depois o padre cortou o silêncio: - Preciso conversar com ele. Tem de ser agora de manhã, porque depois do terço vem o jogo e aí, é impossível conversar

com qualquer pessoa. Quase hora de fechar para o almoço. O movimento, como em todos os domingos, após a confusão das primeiras horas

foi rareando até que sobrassem os mesmos retardatários. Um deles era o padre, que convidou Valentino a sentar-se à sua mesinha enquanto acabava de beber uma cerveja. O garoto obedeceu e ficou à espera de um sermão a domicílio, como a-contecera no domingo último. O assunto no entanto, deixou-o mais aliviado:

- É sobre a quermesse. Está tudo esquematizado aqui, na minha cabeça. Já falei com os que vão ajudar na preparação, com os que vão trabalhar nas barraquinhas, já andei pedindo umas prendas pro leilão... A verdade é que não há verbas mas hoje, na hora do terço, vou pedir a colaboração do povo. Com o que render a coleta, mais um restinho que há em caixa, dá para ir à cidade fazer as primeiras comprinhas. Depois, vou completando o que ficar faltando; ou então, compro fiado e pago no final da quermesse, com a renda da própria quermesse.

- Bem pensado! Gostei mais da história de comprar fiado porque senão compra de pouquinho, gasta mais gasolina neste vai e volta pela estrada, mas... por que está me contando isso?

- Os cartazes, Valentino! Esqueceu deles? - Os cartazes! É mesmo! Sabe que eu nem lembrava? - os olhos brilharam de satisfação mas, a seguir, a expressão ficou

sombria: - O senhor não ia trazer o coroinha do Padre Dimas, aquele que sabe desenhar melhor que eu? O Padre Nicolau deixou escapar uma boa gargalhada, considerando que não esperava por aquilo e emendou: - Se você não sarasse, eu ia ter mesmo de contratar os serviços de outro; mas cadê a sua doença? Você continua ocupan-

do o cargo de cartazeiro oficial da paróquia. Valentino sentiu-se importante e sorriu contente: - Quantos cartazes serão feitos? - Um pra cada barraca. - e foi contando nos dedos: - Barraca das argolas, dos doces, dos salgados, do coelho, da rifa,

são... Quantas eu já falei? - Cinco. - Cinco? Faltam duas... Ah, do correio elegante e do leilão, é claro! - Barraca do correio elegante? Nunca houve antes. - Eu não disse que neste ano seria diferente? Vamos mudar até o lugar da quermesse. - É mesmo? E onde vai ser? - Bem... Não se pode dizer que seja mudado o lugar, mas haverá modificações, quer ver? – O padre conversava como se

estivesse falando de igual para igual e o motivo é que Valentino pouco aparentava de infantil, podendo até mesmo racioci-nar, responder e perguntar com maior agudeza do que muitos adultos. O segundo motivo era a saúde do menino, que estive-ra mais frágil que um fio de seda e agora estava aí, inteiro, todo esperteza e isso estimulava o Padre Luciano a continuar contando seus planos: - Nos anos anteriores, as barraquinhas ficavam naquele espaço entre a capela e a máquina de arroz e se estendiam até o campo de futebol. É um espaço bom, mas já está insuficiente; a Vila Verde está crescendo e é preciso também ampliar o lugar para abrigar melhor o povo. Aquela gente se amontoa tudo ali, não sobra espaço nem para se atra-vessar de um extremo ao outro...

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- E fica uma barulheira! - Verdade! O leiloeiro pedindo lances aos gritos, os encarregados das outras barracas oferecendo sua mercadoria, tudo

aos berros. O povo fica perdido sem saber aonde olhar. Pois já houve, há uns... cinco ou seis anos, você era pequeno não deve se lembrar, quem arrematasse uma prenda no leilão sem estar participando do leilão! - deu uma risada reprimida - Você precisava ter visto a cara dele! Estava de olho na moça das argolas e piscou o olho pra ela; o leiloeiro viu, aumentou o lance e bateu o martelo! O coitado do rapaz arrematou uma leitoa... viva! - caíram ambos na gargalhada - Pois teve de pedir dinheiro emprestado para pagar o bicho e, o pior, teve de ir embora antes da hora, carregando a porquinha no colo! Não me lembro de ter visto nada mais engraçado!

Valentino fazia coro na risada e depois perguntou: - Como vai ser desta vez? - Pensei em usar o campo de futebol, mas voltei atrás porque aos domingos é preciso que aquele espaço esteja livre para

as disputas. - Ah, é claro! Imagine só nossa vila sem futebol. - Impossível imaginar. Daí, pensei noutra coisa: As barracas ficarão ao longo da rua. - No lugar onde passam as conduções? - Sim. É tão difícil passar uma condução por aqui, inda mais à noite, hora da festa. Mas digamos que um veículo queira

atravessar a vila. Tudo bem, a rua é tão larga, que há ambiente para as barracas e para a condução; além disso, o povo pode arredar pé, dar lugar para o carro passar e depois, tudo volta ao normal. Portanto, por que ficar economizando espaço? No local antigo, entre a capela e a máquina vai ficar apenas tenda do leilão com barraca-bar e um palco pra banda de música.

- Oba! Vai ter banda de música? - Não todas as noites, é claro! Mas vai estar aqui na abertura e no encerramento, no mínimo. De acordo com a marcha

dos acontecimentos, a gente pode até contratar mais algumas apresentações. Duas noites é certeza! - E o passeio das moças? Antes era na rua; agora, se as barracas ficarem na rua... - Eis aí outra coisa que me fez pensar em mudança. Antes, elas passeavam na rua, é verdade. Os rapazes, como é natural,

eram atraídos para a rua e gastavam pouco nas barraquinhas. Agora, as barracas e o passeio das moças, tudo na rua, os rapa-zes podem paquerar e gastar ao mesmo tempo.

- Cada barraca terá um cartaz? - Sim. Haverá um cartaz grande em cada uma, e mais cartazes pequenos com preço de salgado, de doce, de bebida. Na

cidade, quando há uma festa destas, há uma porção de gente que trabalha só na confecção de faixas e cartazes. Aqui na vila não se pode contar com mais ninguém. Será que você dá conta sozinho?

- Decerto que sim! Mas é preciso começar logo, que o trabalho é muito e o tempo é curto. - Eu tinha certeza que você não me deixaria na mão. E disse bem: como o trabalho é demorado, é bom ir começando

desde logo. Já fiz os modelos; só uns rascunhos, uns... uns rabiscos pra você ter uma ideia. Eles estão aqui comigo. - reme-xeu nos bolsos, analisou cada um dos muitos papeizinhos, mas não encontrou o que procurava: - Devo ter deixado na cape-la. Esta minha cabeça de velho não funciona mais, ando esquecendo tudo! Tudo! Não, não estão aqui.

- E quando o senhor pode me entregar? - Se estiverem na capela, você pode apanhá-los ainda hoje, depois do terço. Mas de pouco vai adiantar, porque não te-

mos ainda pincel, tinta, cartolina, cola. Como eu disse, faço hoje a coleta e amanhã cedinho vou à cidade para as primeiras compras. E trago também o material pros cartazes. Está bem assim?

- Sobrou bastante coisa da última quermesse e ficou tudo guardado aqui em casa, lembra? Se eu tivesse os modelos po-deria começar hoje mesmo.

- Quanto entusiasmo! Tanta vontade assim não se pode desprezar. Está bem! Depois do terço, dê uma chegada na sacris-tia. Se os esboços estiverem lá, você já fica com eles e vai começando o seu trabalho.

II

Na Vila Verde, o mesmo aspecto domingueiro: a calma que sucede à movimentação das primeiras horas, a reativação

das atividades no segundo período num crescendo, atingindo o clímax na explosão de sentimentos com a partida de futebol. Este domingo era, em tudo, idêntico aos anteriores.

Depois do terço, o Padre Nicolau subiu ao púlpito, onde expôs, aos presentes, sua entrevista com o Padre Dimas. Falou da vinda dele no final de novembro para os casamentos, batizados e primeira comunhão. Falou da necessidade de angariar dinheiro para a maior festividade anual do lugar. Falou da quermesse que seria realizada com esta finalidade e da urgência dos preparativos; e pediu a colaboração dos presentes para as primeiras compras, que dar-se-iam no dia seguinte.

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Depois das contribuições, enquanto a igreja se esvaziava, Valentino foi ao encontro do padre na sacristia, conforme o combinado. Encontrou-o contando o que fora arrecadado na coleta, com ar desanimador:

- Muito pouco! Mesmo com o que há em caixa, quase nada dá para comprar. - O senhor não falou de comprar fiado e pagar com a renda da quermesse? - Sim, mas estas miudezas pelo menos, eu gostaria de comprar a dinheiro. Deixaria só as compras maiores por conta do

fiado... mas o que se há de fazer? É preciso aproveitar ao máximo quando se põe o carro na estrada. Não posso fazer uma viagem por tão pouco.

- E se esperar a coleta da semana que vem? - Fica muito em cima da hora. E quem garante que, na semana que vem, a coleta vai ser melhor? - fez uma pausa, coçou

a cabeça: - A não ser que eu complete com dinheiro do meu bolso e depois... É, acho que vou ter de fazer isso mesmo! - encarou o garoto: - O que foi que você veio fazer aqui, que não me lembro?

- Os rascunhos, padre! Os modelos dos cartazes! - Ah, sim! Você disse que tem alguns restos do ano passado, em condições de uso. Quais coisas são? - Não tenho certeza. Sei que há cartolina, não sei quantas. Uns potinhos de tinta, mas também não sei quais são as cores,

nem se estão secas. Pincel, acho que sobrou um sem usar. Preciso olhar direito. O padre abriu as gavetas à procura dos esboços prometidos: - Em casa, você faz um levantamento do que tem; faz uma lista do que falta e me entrega hoje mesmo. Quero sair de

madrugada. Ah, aqui estão eles! Um, dois, quatro... sete! Estão todos aqui. Valentino olhou um por vez, enquanto o padre explicava os detalhes. - Entendi! Eles ficam comigo e já posso começar o serviço com o que tenho lá em casa. Pelo menos os rascunhos, posso

começar a fazer. E devo fazer a lista do que falta e entregar ainda hoje. É isso mesmo? - Sim. Agora vamos, que a partida deve estar para começar. - Opa! É mesmo! Não posso perder a vitória do Limoeiro! Vamos, padre! - enfiou os modelos no bolso e saiu às pressas. Os dois times estavam entrando, sob aplausos de uns e vaias de outros, alternadamente. O garoto chegou correndo, gri-

tando o nome do seu time e foi colocar-se entre a torcida a favor. De passagem viu Gino que, sozinho, sentia-se deslocado, sem saber a quem vaiar e a quem aplaudir. Valentino puxou-o pelo braço:

- Sai daí, Gino! Esta é a torcida do Coroado, seu bobo! Se for torcer pro Limoeiro, é do lado de lá! - Nem conheço os times, como vou saber pra qual deles vou torcer? - Se for só assistir sem torcer e sem gritar, é melhor ficar lá naquele espaço mais vazio. É lá que ficam as mulheres que

não entendem nada de jogo. Ficando aqui onde está, mesmo sem falar nada, já vai ser considerado a favor deles. Escolha logo! Eu vou pro meu canto, que não quero ser massacrado. Tchau!

- Ei! Espere! Eu vou com você! Não dá pra assistir futebol sozinho. - Só se torcer pro Limoeiro! - Tudo bem! Viro Limoeiro, Laranjeira, qualquer coisa! Vamos lá! Durante a peleja, Valentino ia explicando os detalhes ao companheiro, falando nome de jogador, como se não existissem

desconfianças contra ele. No final do primeiro tempo, Gino já era mais um feroz defensor do Limoeiro.

III

Fim do jogo. Jogadores cansados, suados, machucados. Metade vibrando com a vitória, a outra metade procurando justi-

ficativas e apontando culpados pela derrota. Metade da assistência gritando vivas, a outra metade xingando juiz, jogadores, bola, gramado e todo o resto. Em nada diferia este fim de jogo domingueiro, dos outros finais de jogos anteriores.

Valentino estava entre os perdedores. A derrota o deixou nervoso, revoltado, mas lembrou que poderia ser pior se o Dr. Luciano estivesse ali para comemorar. Não suportaria a queima de fogos em homenagem ao time contrário; desta humilha-ção estava livre, o que não deixava de ser um consolo. Nem percebeu pra qual lado Gino saiu. Entrou em casa amuado dire-to para seu quarto, procurando distância daquela explosão de alegria da torcida adversária. Ao desabotoar a camisa percebeu no bolso, os modelos dos cartazes. Procurando aliviar a frustração pela derrota, mergulhou na atividade de fazer o balanço do material que possuía. Conferiu, anotou o que faltava. Não querendo abusar do pouco dinheiro do padre resolveu que, cartolina e cola, daria um jeito de retirar da loja sem que o pai percebesse. A lista de compras portanto, continha apenas algumas cores de tinta e pincéis de duas espessuras. Guardou a lista no bolso para entregá-la mais tarde, quando sossegasse um pouco aquela gritaria dos coroadenses.

Tentou esquecer os três a um esboçando em cartolina, os desenhos de acordo com os modelos. “- Droga! Não vou fazer nada hoje! Aquele pênalti foi cavado à força e o Amadeu fingiu que não viu. Ladrão! Até ontem, estava com o pescoço torto

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pra um lado só. Hoje, já estava lá curado, roubando pro time dele. Acho que o pescoço duro era puro fingimento. Três a um não dá para engolir!”

Guardou o material e dirigiu-se à loja onde já estavam reunidos para a comemoração costumeira, jogadores e torcedores do time ganhador. Tentando ignorá-los, Valentino fez um sanduíche de pão com mortadela, apanhou um refrigerante e saiu para a calçada. Aquele seria seu jantar, pois confiava que a comida da loja não continha veneno.

Lá sentado ficou mordendo o sanduíche e mastigando a derrota. Distraiu-se observando a retirada das pessoas que, ainda há pouco, enchiam o centro da Vila Verde e, com isso, esque-

ceu-se de quem, segundo ele, estava à espera de uma oportunidade para mandá-lo ao mundo trevoso dos infernos. Nem se lembrava dos dois cadáveres ainda fechados naquela última casa da rua, no lado oeste. Também não se lembrava de planejar outras mortes. Ouvia as gargalhadas e as falas que partiam do interior da loja, sem que pudesse fazer alguma coisa para calar a boca daqueles fanáticos.

“- Se eu fosse meu pai, colocaria todo mundo pra fora e fechava a loja. O pior é que vai ser a semana inteira ouvindo zombaria. Suportar na escola, os meninos do Coroado vai ser um castigo sem tamanho...” E repassou na mente, os aconte-cimentos do último domingo quando seu time saiu vitorioso - vitória que não pôde ser devidamente comemorada por causa de uma falsa ameaça de chuva e que não pôde ser festejada por ele devido à morte do Cacau e descoberta de sua traição.

III

A noite desceu por completo. As pessoas que até pouco antes circulavam pela rua haviam desaparecido; a calma; quase

restabelecida. O que ainda enchia a noite lá fora era o ruído feito pelo motor gerador de energia e, dentro da loja, o barulho dos que bebiam à vitória do Coroado. S. Leonel fechou a maioria das portas mantendo apenas uma delas aberta, à espera da saída dos fregueses que, apesar de beberrões, escandalosos e irritantes, traziam bons lucros à casa.

Ninguém na rua, ninguém à vista, onde quer que se olhasse. Os postes, com as lâmpadas acesas abasteciam o local com luminosidade difusa tão deficiente que, se inexistisse, pouca diferença faria - mas sua presença era grande avanço. Pela porta que o pai deixara aberta vazava uma claridade descorada vinda do interior, formando um retângulo de luz sobre a calçada, interrompido por uma faixa de sombra e se estendendo depois, na terra da rua. Outra pessoa com menor sensibili-dade artística não poderia descobrir beleza alguma naquele cenário de solidão quase fúnebre, enquanto que Valentino mara-vilhava-se diante do panorama escuro entremeado por auras rendilhadas de luz, de um colorido opaco esmaecido, formando um sol em declínio em redor de cada lâmpada. Pintor algum poderia reproduzir quadro de beleza tão pura, que chegava a deslumbrar pela despretensão. Esquecido de tudo, o rapazinho olhava através dos olhos de artista e admirava embevecido, o singular conjunto de luzes e sombras que se estendia até morrer em ambas as extremidades daquela única rua do vilarejo.

Uma sombra moveu-se na calçada oposta, quebrando a magia daquele momento. Valentino acordou do encanto e retor-

nou à realidade reconhecendo naquela figura, o Padre Nicolau: “- Será que ele já vai desligar o motor? Seria bem bom se desligasse mesmo, para acabar com a alegria destes coroadenses convencidos. Mas ainda é cedo demais!”

Valentino ficou acompanhando o padre com o olhar e viu quando ele parou, do outro lado da rua, quase à sua frente, junto a uma das portas da máquina de arroz. Viu que retirou a chave do bolso e ficou à procura da fenda onde ela deveria ser introduzida. Neste momento, Valentino se lembrou da listinha de compras que ainda estava em seu poder; atravessou a rua, enquanto o homem ainda tentava encontrar o buraco da fechadura.

- Padre, aqui está! - e estendeu o pedaço de papel. - O que é isso? - A minha lista de material. Quase que só tintas. - Puxa, eu nem me lembrava mais. Um monte de problemas a resolver... não consigo enfiar esta chave. Você viu que o

que arrecadamos não dá pra quase nada; vou ter de usar das minhas economias, se quiser aproveitar bem a viagem. Esqueci de vir apanhar o dinheiro durante o dia. Tantas coisas no que pensar, tanta gente querendo falar comigo que, só agorinha mesmo, lembrei deste bendito dinheiro! E esta chave que não quer entrar!

- E, para piorar, a derrota do Limoeiro! O padre retirou a chave, revirou-a nas mãos e tentou outra vez: - Ainda bem que o doutor não está aqui, senão ninguém ia aturar a zombaria. Tome esta chave e tente você, que enxerga

melhor que eu. Valentino tomou a chave e saiu um pouco de lado a fim de ver melhor e colocou-a na fechadura. Conseguiu encaixar e

abrir, logo na primeira tentativa. - Pronto, padre!

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- Já? - Já. - Venha comigo. No escritório, eu verifico sua lista. Está escuro, mas a gente chega lá; é só eu achar o interruptor. Deram alguns passos no interior do prédio: O onde está ele? - tateando na parede, foi se movendo devagar - Pronto, a-

chei! Acionado o interruptor uma lâmpada se acendeu, mas a escuridão ficou quase do mesmo tamanho. Um morcego voou próximo ao telhado, à procura de um canto mais escuro. Valentino ouviu o roçar das asas, divisou o

animal e o acompanhou com o olhar enquanto o padre falava: - A lâmpada do escritório é mais forte. Venha. Seguiram por entre pilhas de sacas de arroz e pararam em frente àquela salinha entupida de bagulhos que o padre cha-

mava de escritório. O homem enfiou a mão no bolso à procura da chave daquela porta; vasculhou nos outros bolsos. - Não é possível! Esta minha cabeça está pior a cada dia! Esqueço tudo! Vou ter de voltar e apanhar o outro molho de

chaves... e aproveito para pegar a lanterna. Se quiser, pode me esperar aqui, que volto já. - foi se afastando e falando ainda: - Eu deveria ter providenciado isso durante o dia, mas... Esta minha cabeça... Não me demoro.

Valentino ficou no barracão imenso, cheio de cantos escuros. Seus olhos já haviam se acostumado à penumbra e, sem ter

o que fazer, distraía-se procurando com o olhar aquele morcego que vira pouco antes. Outro morcego cruzou o ar, vindo de outra direção. Valentino acompanhou seu voo e viu quando ele se empoleirou, de cabeça para baixo, numa trave do teto.

“- Um voou pra cá, outro voou pra lá... dois morcegos... muitos morcegos! Milhares! Milhões de morcegos prontos para me atacar!” - o garoto não queria aceitar, mas os animais estavam ali: - “O Padre Nicolau também? Ele me trouxe, me dei-xou aqui sozinho! É uma arapuca! A história da lista, a mentira do dinheiro, da chave, da coleta é tudo mentira! Ele me atraiu pra uma armadilha!”

Enquanto pensava, buscou, com o olhar, algo com que pudesse defender-se dos morcegos no momento em que o agre-dissem. Viu uma caixa feita de madeira contendo ferramentas. Andando de lado, foi se aproximando daquela caixa sem tampa.

“- Um facão! Serve! É pesado, bem afiado... vou vender caro a minha vida!” Segurando o facão com ambas as mãos, Valentino olhava para os lugares onde vira os morcegos desaparecendo e dizia, entredentes:

- Seus vampiros, querem meu sangue? Pois saibam que nesta aldeia, todos o querem! Até o padre! Sempre agarrado firme ao cabo da arma e andando de costas, atento de modo a proteger também a retaguarda, caminha-

va para a saída. Estava a poucos metros da porta, quando ouviu os passos do padre que voltava. Olhos muito abertos, a fisi-onomia do garoto era puro terror: “- Por que voltou? Veio assistir à minha morte? Ou veio ajudar a me matar? Pois não vai ser agora que eu vou assar no inferno! Nem agora, nem nunca!”

Escondeu-se numa reentrância entre as pilhas, subiu numa saca de arroz com o facão em posição de ataque e ficou à es-pera, sem desviar o olhar do corredor onde o homem deveria passar. Os pensamentos se atropelavam:

“- Padre, quando morre, vai pro céu! Este mais cedo pra lá, a fim de levar o recado ao Senhor Deus, que a tarefa de me matar não é tão fácil! E que pode parar de tentar, porque eu não vou morrer nunca!”

O padre entrou e foi se aproximando do lugar onde estava Valentino. Este esperou que o homem passasse; aguardou até que lhe houvesse dado as costas, para desferir o golpe. O facão cortou o ar com toda a força possível a um garoto superlati-vamente apavorado. Acertou-lhe a nuca, quase decepando-o.

Ofegante, Valentino olhou para o que havia sido o Padre Nicolau e sorriu, com um canto da boca: “- Você, um padre, querendo tirar a vida de alguém? E aquele tal de ‘amor para com todos os seres de Deus’? Ah, sim! Eu

não sou mais um ser de Deus! Sou do demônio, então posso morrer! Mas veja só quem ficou sem vida nesta arapuca que você me preparou!”

Olhou para o teto onde supunha haver milhares de morcegos e, com ódio, disse em tom baixo e duro: - Podem vir, se também quiserem levar recadinhos. Só que os recados de vocês são pro diabo!

IV

Antes de sair olhou em volta, à procura de algum vestígio da sua presença que pudesse servir de pista. Limpou o cabo do facão e o deixou caído junto ao corpo. Ao passar pelo interruptor, acionou-o com a mão fechada a fim

de não deixar marcas digitais. E tudo mergulhou na mesma escuridão de pouco antes. Enfiou a cabeça fora da porta, certifi-cou-se de que não seria visto. Saiu, trancou a porta, retirou a chave da fechadura, limpou-a com o tecido da camisa e, sem tocar diretamente no metal, jogou-a no chão. Com o pé, empurrou-a por baixo da porta e se afastou.

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Atravessou a rua, ouvindo os mesmos ruídos dos frequentadores da loja. Espiou pela fresta: “- Estão todos aí! Nenhum me viu saindo, nem voltando. Até aqui, nada saiu errado.” Voltou a sentar-se na calçada, no mesmo lugar onde estivera antes. Mexeu nos bolsos: “- Um, dois, quatro... sete. Os

modelos estão aqui e a listinha de compras também. Nada ficou lá dentro que possa me denunciar. Na rua estão as marcas dos meus pés mas hoje, com tanta gente que passou por aqui, os rastros estão despistados.”

Seguro quanto aos vestígios, ficou a refletir: “- O padre não estava na minha relação; era o único que eu não considerava perigoso e veja só! Foi tão caprichado o plano, que só percebi quando era quase impossível escapar.”

E aquele cérebro doentio moldou os fatos de tal maneira, que seria difícil acreditar que não fossem intencionais: - “Ele quis me pegar usando meu ponto fraco: desenhos! Me contou cada detalhe de como ia funcionar a quermesse. Por

que logo a mim? O que eu tinha a ver com isso? Pediu pra eu fazer a lista de compras, mas não veio buscá-la. Da varanda me viu aqui sentado; mandou os morcegos todos da vila me esperarem lá dentro e só depois saiu de casa. Levei a relação que ele pediu, mas nem olhou pra ela! Nem ligou, nem tocou no papel!”

Interrompeu por um instante os pensamentos observando dois fregueses que deixavam a loja cambaleantes, tropeçando nos próprios pés, apoiados um no outro.

- Bêbados! - falou entredentes, em tom pejorativo; e completou no mesmo tom: - É bom que estejam neste estado por-que, se me viram entrando ou saindo da máquina de arroz, amanhã não vão se lembrar.

Em seguida, retomou o fio do pensamento: “-Fingiu que não conseguia encontrar o buraco da fechadura e me pediu aju-da... igualzinho ao doutor com a história do macaco, para me atacar enquanto eu estava de costas. Para enxergar melhor, eu me virei para a claridade, fiquei de frente e ele não pôde me agredir; enfiei a chave e abri, logo de cara... O padre até ficou contrariado por eu ter achado o buraco tão depressa! Chegou a falar: - ‘Já?’. Aí, restava o plano com os morcegos que, ele tinha certeza, não ia falhar. Me abandonou lá dentro junto aos milhares, milhões de vampiros. Se cada um chupasse uma só gota do meu sangue, em menos de dois minutos eu estaria morto. Mas quem ficou morto, com a cara virada pra trás, foi ele!”

Soltou longo suspiro: “- A única coisa que não deu certo é que não cheguei a comer hóstia... e eu queria tanto saber que gosto tem!” - bocejou longamente. O sono estava chegando e Valentino pensou em entrar e acabar a leitura daquele livro:

- “Faltam poucas páginas mas não vai dar tempo, que daqui a pouco a energia é cortada.” Valentino sentiu um arrepio na espinha quando pensou nisso: “- Quem é que vai desligar o motor se o padre está morto? Se a luz não for cortada, a vila inteira vai estranhar. E agora?

Eu mesmo vou ter de parar aquele motor!” Quase a correr atravessou a rua rumo àquele quartinho ao fundo do prédio da máquina. A porta, pelo que se lembrava,

não ficava trancada à chave. Ele a empurrou com o cotovelo, evitando marcá-la com impressões digitais. O interruptor foi acionado com os mesmos cuidados, por idênticos motivos.

“- Que sorte ter aprendido a lidar com esta coisa senão hoje, não teria como me sair do enrosco!” No minuto seguinte estava de volta. No escuro, tateou na calçada à procura do vasilhame de refrigerante e entrou em ca-

sa pela porta da loja. De passagem ouviu os últimos fregueses que reclamavam da energia cortada antes da hora. O vendeiro explicava, acendendo os lampiões:

- É que o padre vai viajar amanhã cedinho. Decerto quer se deitar mais cedo para não perder hora. - Que nada! - retrucou um deles - Se fosse o Limoeiro a ganhar, o padre estaria aqui, bebendo com a gente; mas como

foi o Coroado, ele quis estragar a nossa alegria.

26 DE AGOSTO - 2ª FEIRA

I Hoje é segunda-feira, dia 26. De sábado para cá, quando escrevi a última anotação, aconteceram muitas coisas. Vou contar estas coisas todas: De três, estou livre. Depois da D. Etelvina, foram mais dois: o doutor e o padre. No sábado logo depois da escola, foi o doutor. Na casa dele não dava certo, porque fica bem no centro da vila e, ainda

acho que fui visto entrando lá. Mas deixe eu voltar ao começo: Caderno, você lembra que, no sábado eu estava preocupado porque o doutor tinha falado que ia viajar, mas que o car-

ro dele estava na garagem? Lembra que eu estava com medo que ele sentisse falta da empregada e descobrisse o que tinha acontecido com ela?

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Lembra que eu tinha de inventar um jeito de estar junto com o doutor na hora que o cadáver dela fosse encontrado? Pois foi por tudo isso que eu fui na casa dele depois da escola. Já era quase uma hora da tarde. Antes de eu entrar, me livrei daquele garrote que usei pra enforcar a velha. O doutor estava na garagem trocando um pneu e foi por causa do pneu que ele atrasou a viagem. Aí, ele me pediu aju-

da na troca, só pra que eu abaixasse e ele pudesse me matar pelas costas. Mas fiquei de frente, vigiando o que ele fazia. Aí, eu tive a ideia de mandar ele ver a D. Etelvina pois, se ela não tinha ido trabalhar, era porque alguma coisa de mui-

to ruim tinha acontecido. Demorei a consertar o pneu porque se eu consertasse logo, ele ia querer visitar a empregada com o carro e eu não tinha como chegar lá antes dele.

Acabei deixando ele preocupado por causa da enfermeira e ele foi visitar ela. Por causa da idade e da dor nos joelhos, ele demorou bastante a chegar lá. Eu fui na frente, passando por perto do Brejão pra não ser visto. Sou muito mais rápido e, mesmo por caminho mais comprido, cheguei antes dele. Fiquei escondido naquela moita de bambus.

O médico ficou tão assustado quando viu a velha morta, que nem se mexeu. Eu aproveitei e atirei com o estilingue um caco de vidro bem afiado e acertei a veia jugular dele. Todo o sangue do corpo saiu por aquele buraco, parecendo chafa-riz.

Agora o doutor está lá na casa da enfermeira e, até agora, ninguém desconfiou de nada. Aí, eu voltei pra casa dele e troquei o pneu. Depois fechei a casa dele inteira, sem deixar as marcas das minhas mãos. A

porta da frente ficou só com a maçaneta, porque a chave estava com ele. Ontem, foi a vez do padre. Foi de noite. De dia, ele tinha me pedido uma lista do material que eu ia usar para fazer os cartazes da quermesse. Eu fui entregar a

lista na hora que ele fingia buscar dinheiro na máquina de arroz, para as despesas de hoje. O padre me atraiu pra lá, onde estavam milhares, milhões de morcegos, daqueles que chupam o sangue da gente. Eu não sabia de nada e entrei junto com ele. A máquina por dentro estava tão dura de vampiro, que eles nem conseguiam ficar escondidos; uns empurravam os ou-

tros por falta de espaço e aqueles que eram empurrados saíam voando, procurando outro lugar menos entupido de morce-go.

O padre me deixou sozinho lá dentro. Mentiu que tinha esquecido a chave do escritório e foi buscar. Foi aí que descobri que aquilo era uma emboscada e peguei um facão pra me defender dos bichos.

Não sei porque o padre voltou lá. Acho que ele pensou que eu já estava morto e veio conferir. Eu entrei entre duas pilhas de sacos e subi num saco de arroz que estava no chão, de modo a ficar do mesmo tamanho

do padre. Com uma facãozada, arranquei a cabeça dele. O corpo está lá, mas a alma deve estar levando uma bronca de Deus, por falhar na tarefa de me mandar pro inferno. Não deixei pista nenhuma, como das outras vezes.

A maior sorte do mundo foi que, naquele dia que eu estava chateado por causa do Cacau, lembra que eu falei? Então! Naquela noite, o padre me ensinou a desligar o motor de energia. Aí, só ele e eu na vila sabíamos ligar e desligar a energi-a.

Ontem, pra que ninguém desconfiasse que ele estava morto, eu mesmo fui desligar, uns dez minutos depois que matei e-le, mas não era hora ainda. Faltava quase uma hora pra hora de desligar. Os fregueses da loja ficaram resmungando, mas meu pai arranjou uma explicação: é que o padre ia viajar hoje de madrugada e desligou o gerador antes da hora para ir dormir mais cedo e não perder a hora.

Hoje, o motor não foi ligado e todos pensam que o padre está na cidade. Hoje à noite, todo mundo vai ficar na escuridão outra vez, porque ele não vai estar aí para ligar a energia. Eu não pos-

so ligar, senão vão desconfiar que fui eu quem desligou ontem à noite. Até agora, ninguém notou a falta de nenhum dos três. A D. Etelvina, quase não saía de casa. O doutor ia à cidade e todos sabiam disso. O padre estava de viagem marcada e até falou isso na igreja, na hora do terço, pra todo mundo saber. Então, tenho tempo de liquidar os que faltam: meu pai, minha mãe, Anita, Gino, Elvinho e D. Maura. Vai ser difícil descobrir que sou eu, porque precisa ter um motivo para matar. Eu tenho o motivo, mas não contei a nin-

guém. Ninguém sabe de nada. Ao escrever as últimas palavras, Valentino empalideceu porque se lembrou que Gino sabia! E continuou escrevendo: A não ser o Gino! O Gino sabe! Eu contei tudo, naquele dia da abelha, lembra? Que burro que eu fui! Se descobrirem antes da hora, ele vai ligar uma coisa na outra e chegar até mim. O Gino é peri-

goso duas vezes.

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II Estas anotações foram feitas aos poucos, entre uma e outra atividade escolar, entre e durante explicações da professora

sobre novos e velhos assuntos. Pela janela, Valentino vagou o olhar para a casa do médico, rememorando os fatos que ante-cederam sua morte e uma das coisas que rememorou o deixou em pânico: os porcos e as galinhas estavam sem comer desde a manhã de sábado, quando o Dr. Luciano, ao se dar conta do atraso da empregada foi, ele mesmo, alimentar os animais.

E já era segunda-feira! Dois dias sem comida e água deixariam os bichos impacientes e barulhentos, o que despertaria a atenção de algum curioso. Isso faria com que se descobrisse tudo antes que os demais fossem eliminados. Ele próprio teria de ir imediatamente alimentar aqueles porcos e galinhas.

“- Mas como é que eu vou lá agora? Faltam mais de duas horas pro fim da aula e eu não posso sair antes. Mas os ani-mais não podem ficar todo este tempo sem comer e beber. A D. Maura precisa me deixar ir sair. Que desculpa eu vou tirar? Pense, Valentino! Pense depressa!”

Aquela mente privilegiada conseguiu enfim, idealizar um jeito de sair da sala, com o consentimento da professora. Le-vantou-se da cadeira:

- D. Maura, ouça! Ergueu o dedo indicador e ficou em posição de quem está ouvindo algo que merecesse atenção. A classe inteira silenciou a fim de ouvir também, assim como a professora, que ficou tentando captar algum ruído diferente.

- Não ouço nenhum barulho estranho. - Barulho estranho? Eu não disse que era estranho. É choro de porco com fome! Faz tempo que estou ouvindo e queria

saber primeiro, de onde vinha o som. Só agora descobri que são os porcos do doutor. Ele foi à cidade e a D. Etelvina deve ter esquecido deles! Ouça... está ouvindo agora?

- Não. - A senhora deixa eu ir lá ver se são eles? Se for, coloco água e comida e volto correndo. A senhora deixa? A mulher encarou-o com desconfiança: - O doutor foi à cidade? Como, se o carro dele está na garagem? Valentino não havia pensado nisso. Colhido de surpresa, estremeceu de leve e a voz soou com certa insegurança: - Está? O carro está aí? Então... É que... então ele deve ter ido de ônibus! Ah, acho que é isso mesmo! Furou um pneu do

carro e quem fez a troca fui eu. O estepe era meio muito careca e decerto, o doutor ficou com medo de viajar com pneu daquele jeito... ou então, não confiou muito na minha troca. - sorriu e ergueu os ombros, como a se desculpar pela inabili-dade em trocar pneu - A senhora deixa?

- Tudo bem. Vá ver os animais à hora do intervalo. Faltam poucos minutos. A voz de Anita veio antes que Valentino pudesse dizer alguma coisa: - Eu vou também! - Aonde você vai? - perguntou o irmão, com desprezo irônico. - Ajudar você. - Não preciso de ninguém! Dou conta de tudo sozinho e vê se não amola! Naquele espaço de tempo enquanto esperava o intervalo, Valentino percebeu o quanto era difícil manter a situação por

mais dias. A cada um que tirava do caminho, correspondiam novos imprevistos; apareciam maiores falhas e ele talvez não pudesse controlar a todas. E foi fazendo, mentalmente, um levantamento destas falhas:

O Gino sabia do seu segredo e poderia acusá-lo. Como atenuante, no dia em que lhe fizera a confissão, nenhum dos três mortos figuravam na sua lista de perseguidores. Mesmo assim, recriminou-se por haver feito dele seu confidente uma vez que, a seguir, todos os que deveriam morrer eram do conhecimento de Gino; todos acusados pelo próprio Valentino.

Outro ponto falho foi aquele que D. Maura levantou: o carro na garagem, quando deveria estar viajando com o dono. A saída encontrada foi a que o doutor teria ido de ônibus. A verdade no entanto, seria facilmente levantada, porque a própria professora viajara no mesmo dia, no mesmo ônibus para o mesmo destino e poderia recordar que o médico não estivera naquele veículo.

Mais uma falha - que só agora Valentino considerou - era que o padre, segundo todos sabiam, também saíra de viagem ao amanhecer portanto, sem qualquer possibilidade de haver ido de ônibus, devido à incompatibilidade de horário – e, i-gualmente, seu carro se encontrava na garagem.

Falha houvera quanto aos porcos e galinhas do Dr. Luciano dos quais, somente agora, com dois dias de atraso, Valentino se lembrava.

Outro erro havia sido o motor de energia, que era desligado pelo padre. Sorte sua, que havia aprendido a desligá-lo uma semana antes. Não fosse isso, já estaria completamente sem saída.

A última falha tratava-se da D. Etelvina. Supondo que o médico estivesse ausente, onde estaria ela, a encarregada da manutenção dos bichos domésticos do patrão?

“- Como não pensei antes nestes detalhes? Como pude esquecer coisas tão importantes quando tinha necessidade de pra-

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ticar crimes perfeitos? São minúcias sem valor mas, justamente as minúcias que levam a descobrir assassinatos e que apon-tam o criminoso.”

Valentino tinha razão em se sentir inquieto desde que, num povoado tão pequeno, onde todos sabiam tanto da vida dos

demais quanto da própria, estes pormenores saltavam à vista, podendo ser notados por qualquer pessoa, a qualquer momen-to. Ele ainda se sentia livre de quaisquer suspeitas, mas tinha de agir rápido, se quisesse acabar com todos os que queriam mandá-lo ao inferno. O fato de não deixar pistas era insuficiente. Precisava descobrir e remediar as omissões que já havia deixado para trás, ao mesmo tempo que tramava as demais execuções e prevendo, simultaneamente, cada circunstância secundária que poderia advir de cada uma das próximas mortes. Tinha necessidade de manter tudo sob controle rigoroso para que, quando as mortes fossem descobertas, não houvesse mais nenhum dos seus inimigos com vida.

“- Mas eu vou conseguir! Nada, nem ninguém vai me mandar pro inferno! Nunca!”

III

- Dez horas! Peguem seus lanches e entrem em fila. Sem correr, sem empurrar, respeitem o colega que estiver na frente. Pelo seu tamanho, Valentino era o último da fila. Estava cheio de ansiedade, mas obedeceu às ordens. A fila se movi-

mentou devagar mas, uma vez transposta a soleira, as crianças se dispersaram a correr e a gritar, como a se desforrar das horas passadas quase imóveis em sala de aula. Valentino tomou direção oposta daquela seguida pela meninada; atravessou o portão da escola na carreira, atravessou a rua em diagonal sem outro pensamento que não fosse fechar a boca daqueles ani-mais antes que eles a abrissem.

- Aonde vai correndo deste jeito, Valentino? O garoto se assustou e olhou para a direção de onde vinha a voz. Ao ver Gino, disfarçou; desacelerou o passo para os es-

clarecimentos, mas sem se deter de todo: - Oi, Gino! Estou com uma pressa danada, não dá pra conversar. É hora do recreio e tenho de voltar pra escola. Estou

indo alimentar bichos do doutor. Gino saiu de seu portão, atravessou a rua e, aproximando-se de Valentino, seguiu junto. - É? E onde está ele? - Quem? O doutor? Na cidade. - Cidade? Ah, por isso a casa está toda fechada. O que terá ido fazer? - Visitar a família. Você estava comigo no dia que ele falou, lembra? Chegando ao portão do médico, Gino tentou abrir a porteira mas encontrou dificuldade com a trava. Valentino deixou

que o outro fizesse o serviço, evitando ser atacado pelas costas caso tentasse abrir ele próprio. - Eu lembro. Ele disse que ia; mas não voltou? Queria assistir ao jogo, ficou até de trazer fogos pra comemorar a vitória

do Coroado. - Decerto gostou do passeio e vai ficar por mais dias. É por isso que vou dar comida pros animais. - Eu ajudo você. Portão difícil de ser aberto, heim? - Puxe o portão e puxe o trinco, tudo ao mesmo tempo. Valentino aceitou a companhia do outro, com certo temor. Poderia ser agredido por aquele assassino profissional disfar-

çado de criança, quando estivessem a sós no fundo do quintal. Mas um outro pensamento atenuou a força do primeiro, fa-zendo-o sorrir com um só canto da boca: “- Se Gino não me matar, o morto será ele! Um de nós não sai vivo deste quintal.”

Entraram ambos, tendo Valentino o cuidado de caminhar um passo atrás, alerta a qualquer movimento do companheiro. - O que você vai fazer hoje à tarde, Gino? - sua voz conseguia ser bastante despreocupada. - Trabalhar, ora! Já fui cedo com o meu pai, fizemos boa parte do serviço e viemos almoçar. Chiii! lembrei que o doutor

queria falar com o meu pai depois do almoço, mas se ele não está aí... Na semana passada, ele falou que hoje era pro meu pai pegar as ferramentas e trazer pra cima, que tinha um outro servicinho pra nós.

Da janela da escola, D. Maura viu os rapazes entrando por aquele portão: “- Como sempre, Valentino ajudando um e outro. As esquisitices dele ficam ainda mais esquisitas, por isso mesmo; nada

impede de se preocupar com problemas alheios. E em plena hora de intervalo. Deveria estar ansioso por comer o lanche e descansar como os outros, mas abandonou tudo, indo em socorro dos animais. Que interessante! É a primeira vez que o vejo acompanhado por alguém da mesma idade.”

- Ei, o carro dele está aí! O doutor voltou e você nem percebeu, Valentino!

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- A D. Maura falou a mesma coisa, mas a casa está fechada. Em todo caso, já que estamos aqui, não custa dar uma olha-da.

Contornaram a garagem, atingiram o chiqueiro que ficava mais abaixo. Com efeito, os porcos estavam impacientes e, assim que viram os garotos puseram-se a grunhir com força. As galinhas, por sua vez, acercaram-se de ambos, pescoço esticado, à espera de alimento.

- Se ele voltou, esqueceu de trazer comida. Veja só, que fome! Eu ouvi o choro deles lá da escola. - Puxa, dá pra ouvir de lá? - Se não desse, como eu ia saber que estavam chorando? - Você tem ouvido bom. E a empregada, que fim levou? - A D. Etelvina? Acho que o doutor deu folga pra ela. - Folga de dar comida pra bicho? Existe isso? Animal é que nem gente, todo dia precisa comer. - Claro! Sem domingo, sem feriado, sem dia santo. Igual horta que precisa regar toda manhã. - Quando o patrão senta, o empregado deita. - e riu. Vamos logo com isso! Um de nós dá água, o outro dá comida. O que

você prefere? Valentino avaliou a proposta: - Prefiro assim: nós dois damos milho e depois nós dois damos água. Cansamos igual! - Certo! A gente entra no paiol e fecha a porta, senão esta galinhada entra junto. Acho que até os porcos pulariam lá den-

tro, de tanta fome. Gino subiu os degraus, abriu a porta do celeiro e entrou.

IV

Os outros alunos já se encontravam preparando para uma redação, quando Valentino entrou na sala e encaminhou-se pa-

ra a mesa da professora: - D. Maura, eu me atrasei porque era muita galinha e muito porco. Um mundéu de bicho com fome; e como a senhora

sabe, nesta hora o motor de energia não funciona. Tudo é feito à força de feijão. - deu uma risadinha - Bombear água, debu-lhar milho, carregar tudo no braço... veja! cheguei a suar!

Encarando-o com maior atenção, a mulher exclamou: - Valentino, há sangue em sua roupa! Você se machucou? O rapazinho baixou o olhar, analisou suas vestes e não respondeu. - O que houve? Ou isto aí não é sangue? - Não sei... acho que... Ah, é sangue, sim! Dois galos estavam brigando e tive de separar. - Machucaram você? - Não. Eles é que estavam machucados, saía bastante sangue. Se eu não separasse, eles teriam se machucado muito mais,

poderiam até ter se matado Eu nem tinha reparado na sujeira da roupa. - e encaminhou-se para sua cadeira. - Valentino, veja na lousa o título da redação. Pense bem antes de começar a escrever. Com efeito, no quadro-negro estava escrito um título comum, mas que para o garoto, era por demais interessante: “Co-

mo foi meu recreio hoje”. Sorrindo com um canto da boca, falou consigo: “- Eu vou contar, D. Maura! Vou escrever tudinho mesmo! Isso, eu faço questão de escrever!” Virou o caderno pelo lado contrário e escreveu embaixo da anotação do dia: Ainda é segunda-feira. O recreio acabou de acabar. Faz quase meia hora que matei o Gino. Foi na hora do recreio. Um golpe de machado na cabeça. Ele me acompanhou quando fui dar comida aos animais do Dr. Luciano, com a intenção de me apanhar. Mas agi pri-

meiro. Fui mais rápido, não fiquei esperando ser atacado. Legítima defesa, como sempre. Ele está lá, trancado no paiol. Andando entre as carteiras, em silêncio para não perturbar a meditação dos alunos, a mulher aproximou-se de Valentino. Quando este percebeu sua presença era tarde demais para desvirar o caderno para a posição normal. Apanhado de sur-

presa, não conseguiu disfarçar o sobressalto. Olhou para ela como quem está cometendo uma falta e conseguiu sorrir. Um sorriso meio sem expressão, ao mesmo tempo que levou os braços sobre a página, escondendo seu conteúdo. Este gesto, apesar de rápido, chamou a atenção de D. Maura que, embora não podendo adivinhar o que estava escrito, percebeu a dispo-sição irregular do caderno.

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- Parece que seu caderno está virado ao contrário. - Está mesmo. É rascunho, professora. - Eu posso ver? - Ainda não! É só rascunho, está mal feito. Depois que eu passar a limpo, a senhora lê. Quero escrever tudo o que fiz no

intervalo e é bastante coisa, não quero esquecer nada. Por isso, estou fazendo um rascunho primeiro. Vai ser uma redação muito bonita e quero fazer uma surpresa pra senhora.

- Então, vá em frente. Depois verei se é tão bonita como você diz. Puxa, caderno! Você viu? Quase que a D. Maura me pega! Precisei inventar que era rascunho. O pior foi que ela viu

você ao contrário. Se ela for corrigir ainda hoje, eu vou enrolar bastante, ganhar tempo até a hora da saída e levo você pra casa. Amanhã trago um caderno novo pra ficar na escola.

O que diria ela se soubesse que acabei com o homicida que ela mesma contratou pra me matar? Para falar verdade, até gostaria de ver a cara dela na hora que descobrisse tudo. Mas não vai descobrir nunca, porque

vai morrer antes. Voltando ao assunto: Eu menti pra D. Maura que estava ouvindo o choro dos porcos. Daqui não dá para ouvir nada e até o Gino ficou admi-

rado quando contei a mesma mentira a ele. Eu fui lá antes que os porcos começassem a chorar, de verdade, porque alguém ia acabar ouvindo. Coloquei bastante comida e enchi os bebedouros até derramar. Vão ter o que comer e beber por dois dias e acho que até por três. Se eu não puder voltar lá amanhã, eles não vão reclamar.

Ainda falta bastante gente pra morrer e eu tenho de ser rápido, se quiser eliminar todo mundo antes que me descubram: meu pai, minha mãe, Anita, Elvinho e D. Maura.

Até agora eu estou seguro, porque não deixei pista nenhuma. Colocou o caderno na posição correta e escreveu sobre o seu recreio, conforme sugeria o título da redação. Escreveu so-

bre os animais famintos do doutor. Escreveu sobre o paiol, o milho que descascou, a água que bombeou, inventou uma briga de galos... nada que pudesse ser considerado original, a não ser pelo inusitado da ação acontecer durante o intervalo da aula.

V

Sentado na soleira, entre a cozinha e a área de serviço, Valentino afiou muito bem uma faca longa e pontiaguda. Para

desviar suspeitas, afiou também o facão e as demais facas da cozinha. - Por que alisa tanto estas ferramentas? - indagou a mãe. - Estão tão cegas, que não cortam nem mamão maduro. D. Edna tinha uma costura começada; queria acabá-la naquela tarde, mas resolveu fazer limpeza num armário antes de

se sentar para costurar. Ela ia e voltava pela cozinha, seguida sempre pelo olhar do filho que, enquanto caprichava no corte das facas, programava os próximos passos:

“- Tem de ser hoje! Um de cada vez, os três vão hoje. Mas não pode ser dentro de casa. Tem de ser no quintal, onde é mais fácil esconder os corpos. Antes de ser notada a falta de um, o outro já lhe faz companhia. O serviço agora é mais arris-cado, preciso ir com calma. Quando ela for lá fora, eu vou atrás e nunca mais ela entra aqui.”

A voz grave do pai ressoou forte, lá da loja: - Edna, você sabe o preço desta boneca de louça? - Não sei de qual você está falando! - Uma pequena. A menor de todas. É a última, não há outra igual pra eu verificar. - Veja no vestidinho dela, por dentro do cinto. Uma breve pausa e o marido voltou a gritar: - Venha aqui, mulher! Achei o preço, mas foi você quem marcou e não estou entendendo estes números. D. Edna já tinha terminado a limpeza do armário. Tirou o avental, saiu em direção à loja e Valentino pensou: “- É mais difícil mesmo. Se eu já tivesse acabado com ela, seria agora que a falta seria notada. Tenho de planejar me-

lhor, ou vai dar tudo errado.” Escondeu a faca pontuda na cintura, a tempo de ouvir os passos da mãe que regressava. Ao invés porém, de se encami-

nhar para a cozinha, ela entrou no quartinho de costura. Referido quarto era, a princípio, uma despensa que foi adaptada para servir também como ambiente de costura por rece-

ber, à tarde, bastante claridade sem sol direto.

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“- Pronto! Agora vai ficar costurando o resto do dia, como sempre. Droga! Eu preciso arranjar um jeito de fazer com que ela saia pro quintal. Se pudesse ser dentro de casa, eu iria por trás, como fiz com os outros. Mas tem de ser lá fora! Só se eu chamar.”

Avaliou porém, que a situação era realmente, bastante melindrosa. Precisava ter paciência e aguardar até que a oportuni-dade se apresentasse por si, sem ter de provocá-la. Ficaria por perto à espera do melhor momento; mas o som seco e forte da velha máquina de costura sinalizava que a ocasião propícia que o rapaz esperava poderia demorar bastante a se apresentar.

VI

Saiu da área de serviço e foi andando rumo à loja, sem objetivo algum em mente. Passou junto à janela do próprio quarto

e deu mais um ou dois passos. Antes de chegar à janela do quarto de Anita, ouviu leve ruído vindo daquele aposento. Pisando leve, silencioso como um

gato, espiou lá dentro. A menina estava de costas, retirando de sob a cama, uma caixa grande, de papelão. Valentino viu quando ela ergueu a caixa e a colocou com cuidado, sobre a cama. Viu quando ela retirou a tampa e ficou

a monologar, em voz doce: - Como você está hoje? Ah, está escuro e abafado aí dentro, né? Pobrezinha, está cansada de ficar trancada nesta caixa.

Pois bem, hoje você vai dar um passeio bem gostoso. Valentino ouviu o que disse a irmã, mas não sabia a quem ela se dirigia, desde que o corpo da menina se interpunha en-

tre a caixa e seu olhar curioso: “- Que caixa é esta? Não é da boneca, porque a caixa da boneca é menor, amarela, velha e rasgada. Esta aí é nova, branca com florzinha azul. O que estará guardado aí dentro?”

O garoto empalideceu quando pensou haver descoberto: “- Uma cobra! Ela arranjou uma cobra e vai colocá-la na minha cama para me morder! Traidora, mentirosa! Não sabia

conversar com bicho, né? Mas está aí, cochichando com uma cobra, instruindo ela para me matar!” De costas para a janela, Anita não notou a presença do irmão. Aproveitando-se desta vantagem, Valentino retirou a faca

da cintura, limpou as marcas digitais do cabo e, segurando-a pela ponta, atirou-a nas costas da garotinha. Com um gemido, Anita caiu de bruços sobre a caixa da boneca e não mais se levantou. Valentino olhou para os lados. Ninguém à vista mas, num relance percebeu que muito facilmente, este crime seria des-

coberto. Compreendeu que errara agindo ali dentro de casa, sem planejamento. Lembrou-se do pai chamando a esposa por causa do preço de uma mercadoria e lembrou-se também do alívio que sentira por estar ela ainda viva, podendo responder ao chamado. Refletiu que, se o pai procurasse por Anita, esta não poderia responder; o crime poderia ser descoberto daí a algumas horas, como dentro de poucos minutos. E o pior: fora visto pela mãe pouco antes, afiando aquela mesma faca!

O que fazer? Retirar o cadáver da casa e escondê-lo no quintal? Mas como o faria isso? E, mesmo que o levasse para fo-ra, a colcha estava manchada de sangue, denunciando que Anita fora morta ali dentro...

Dar sumiço na faca para que a mãe não desconfiasse ter sido ele o matador? Mas, se entrasse naquele quarto - seja pra apanhar a faca, seja pra retirar o corpo - a cobra poderia atacá-lo! Onde estaria a cobra? Estaria ainda na caixa, sob o corpo de Anita, ou já teria saído e se esgueirado para algum canto?

Não! Não entraria no quarto, mesmo que fosse para apagar vestígios do que fizera. Amedrontado, sentiu que precisava sair dali porque a posição do corpo de Anita atestava que a morte viera de alguém

postado à janela, do lado de fora. Não podia, portanto, ser visto naquela hora, naquele local. A mente, mesmo doentia, conseguia trabalhar com a clareza costumeira. Valentino estava ciente do erro cometido, mas

não sabia como corrigi-lo. Pensou em se afastar, em forjar um álibi como se não estivera em casa naquele espaço de tempo. Todavia, mesmo que fugisse, aquela faca era prova contra ele; a própria mãe o acusaria. Ao mesmo tempo, precisava estar por perto, porque as próximas vítimas se encontravam dentro da casa. Havia porém, uma cobra venenosa à solta nalgum canto escuro, pronta para dar o bote.

Pela primeira vez desde que começara aquela série de crimes, o garoto não sabia como responder à situação. E pela pri-meira vez, sentiu medo. Um medo tão descomunal que acabou por lhe anular o raciocínio - aquele raciocínio que atuava com brilhantismo, mesmo quando se enganava nos julgamentos. Apavorado, entrou em casa sem saber o que fazer ali. En-trou pela cozinha e trancou-se no próprio quarto. Os pensamentos se cruzavam, se atropelavam, se anulavam uns aos outros. Não sabia se deveria fugir, se deveria atacar, se deveria ficar inerte. Como fera acuada queria escapar à situação incômoda, porém não tinha saída e o medo o dominava. Perdeu a coragem de matar mais alguém e estava horrorizado pensando na cobra que não sabia onde se escondia, mas que poderia estar muito próxima.

O barulho da máquina de costura demonstrava que nada ainda estava perdido; seu ruído porém, deixava-o mais irritado por dificultar-lhe o pensamento.

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Não poderia ficar escondido no quarto,para sempre. A faca estava lá, nas costas de Anita só à espera de alguém desco-brir o cadáver para acusá-lo. E, com uma cobra à solta, era melhor não ficar num único lugar tornando-se presa fácil.

Saiu para a sala, vasculhou os cantos à procura da co-bra e depois, ensandecido em pensamentos confusos, pas-sou a andar de um lado para outro naquele compartimento mergulhado na penumbra. Tinha relativa liberdade para caminhar naquela sala, porque o quartinho de costura onde se encontrava a mãe ficava num ângulo, espremido entre o banheiro e a varanda; mesmo estando com a porta aberta, a visão que a mãe poderia ter caso olhasse para trás era a parede da cozinha – e não o interior da sala.

Valentino andava em círculos, olhos muito abertos, sem a mínima noção de qual seria o próximo passo.

“- A faca que destinei à minha mãe está fincada nas costas de Anita e não posso entrar lá para retirá-la. Há outras facas na cozinha, mas não pontudas quanto aquela. Se tiver de matar minha mãe ou meu pai, que arma vou usar? Pense rápido, Valentino! Você não pode ficar an-dando igual está fazendo, pois isso denuncia medo, impa-ciência, nervosismo. Finja calma... Calma! Calma, tudo está sob controle. Sente-se e fique quieto, Valentino!”

Aproximou-se da poltrona colocada entre a porta que dava para a loja e aquela porta enviesada que se abria para o depó-sito de mercadorias. Inspecionou-a pelos quatro lados, ergueu-a para estar seguro de não estar escondida aí, nenhuma cobra. Depois sentou-se nela, querendo fingir tranquilidade - mas ficou rígido, como se estivesse sentado em brasas, em estado de alerta, pronto para qualquer coisa que não sabia o que era. Fugir? Nem pensar. Com a irmã morta ali ao lado; teria de ficar, procurando saída para a situação desesperadora em que se encontrava. Tinha de ficar aí. Tinha de ficar pensando, pensando, até achar explicação plausível para a morte de Anita e álibi para si mesmo. A palidez intensa e os olhos arregalados de-monstravam todo o medo que jamais sentira; mãos geladas, corpo inteiro tremendo, coração palpitando com violência.

Olhou para o teto, como se olhasse para o céu: “- E agora, Seu Deus? Será que o Senhor venceu mesmo? É bom não ficar tão certo disso, porque a briga não acabou;

não foi descoberto nenhum cadáver, não existe nada contra mim! Fique olhando aí de cima, que vou me sair bem desta! Não é fácil acabar comigo, ainda mais com tanto capeta me esperando.” - deu uma risadinha e este pensamento trouxe-lhe um quê de coragem: “- Preciso aproveitar bem o tempo! Ao invés de ficar feito bobo esperando ver o que acontece, eu acabo com minha mãe! Ela está costurando de costas para a porta. É isso mesmo e vai ser agora!”

No momento em que se levantou, a voz do pai chegou-lhe aos ouvidos como um estalo de chicote: - Anita, me traz uma réstia de cebolas do depósito! Acontecera! Valentino sentiu que todo o sangue se congelou nas veias, que os olhos não cabiam nas órbitas. Aquele alí-

vio que sentira quando a mãe atendeu ao chamado não pôde sentir agora. Anita não atenderia. O pai viria saber o motivo da demora e.... acabara a estrada! Tremia como se estivesse sendo sacudido brutalmente por mãos invisíveis. Esqueceu da agressão contra a mãe para perder-se no labirinto das ideias:

“- Meu pai vai entrar aqui, vai abrir a porta do quarto dela... Como não previ isso naquela hora? Por que não mantive a calma? Depois de escapar de tantas armadilhas, vou ser apanhado e morto dentro de minha própria casa! O inferno está lá! O inferno, eternidade afora! Não vou ficar esperando acontecer! Preciso sair! Tenho de pensar com cuidado. Fujo ou fico? Não posso entrar em pânico... mas já estou em pânico!”

- Anita, esta cebola vem ou não vem? - soou impaciente, a voz do vendeiro. “- Primeiro, preciso impedir que ele entre aqui! Eu não conseguiria matá-lo, mesmo que tivesse alguma arma na mão!

Estou tremendo demais, preciso ganhar tempo!” Como única saída, com as pernas trêmulas a ponto de quase não mantê-lo em pé, ele mesmo foi ao depósito; apanhou as

cebolas e as levou ao pai. Entregou-as pela porta de comunicação entre a sala e a loja. O dono da casa notou a expressão apavorada do filho, o olhar aterrorizado, a palidez intensa, o tremor das mãos; porém não lhe ocorreu que algo pudesse estar acontecendo e continuou seu trabalho.

A máquina de costura martelava com pequenas interrupções com som seco e estridente, alheia aos dramas da casa.

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VII

“- Ganhei alguns segundos, mas o que vou fazer com eles? Não importa quanto ganhei. Importa é que não perdi ainda! Se eu não estivesse tremendo tanto, poderia dar cabo de minha mãe. Mas agora é impossível! Tenho de ir pra longe daqui, longe da Anita morta, longe de tudo, mesmo que tenha de esperar mais tempo para eliminar os que estão faltando.”

Valentino saiu; atravessou correndo o quintal, entrou no terreno de eucaliptos e, no meio do caos íntimo, raciocinava a-inda: “- Eu deveria estar longe daqui, poderia ter fugido antes. Estou sem álibi para a morte da Anita, pois entreguei as ce-bolas e meu pai me viu... Meu pai me viu! Não tenho meios de defesa porque fui visto próximo ao local do crime.”

Passou a repetir para si mesmo: “- Fuja! Fuja, Valentino! Fuja pra longe! Rápido! Esteja longe quando Anita for encon-trada! Se não estiver por perto não poderão acusá-lo, mesmo tendo sido visto! Não sabem a que horas foi o crime! Não saberão se a entrega das cebolas aconteceu antes ou depois da morte. Vá embora e depois você volta pra fazer o que ficou faltando. Evite a estrada, você não pode ser visto fugindo!”

Em atividade, Valentino já não sentia tanto tremor nas pernas e conseguiu ser rápido, na medida que lhe era possível.

Correu em sentido enviesado, na velocidade que a vegetação lhe permitia. Cada vez mais rápido, sem destino, sem ter aonde ir, só pensava em colocar distância entre si e o cadáver de Anita.

Sem prestar atenção aos lugares onde pisava, afundou o pé numa depressão do terreno e caiu. Ao se levantar viu à sua frente, entre dois raminhos de um arbusto, uma teia de aranha a poucos centímetros dos olhos. A visão fê-lo lembrar-se daquela outra aranha, quando Deus se tornou enfurecido pela morte do passarinho. Todo o hor-

ror que sentira dias atrás em situação semelhante voltou-lhe neste momento, multiplicado. Esta aranha de agora, do mesmo tamanho da outra, também negra, peluda e monstruosa segundo seu ponto de vista... se moveu!

Valentino deixou escapar um grito pavoroso, que não se assemelhava à voz humana; e um resto de contato que ainda conservava com a realidade, foi rompido de todo.

A gritar colocou-se de pé, enlouquecido; e correu sem direção, sem saber mais porque o fazia. Era como se todo aquele medo que vinha sendo reprimindo desde o juramento da capela, como se todo aquele comportamento falso que assumira, todo o terror que sentira pelo fogo do inferno, toda indiferença que teve de assumir, todo o sangue que viu espalhado por suas mãos aflorasse agora, de uma só vez.

Gritando sem rumo foi tropeçando, pulando troncos, afundando os pés em buracos, caindo, trombando sempre em gritos horripilantes, sem noção alguma do que se passava.

Perturbado pelo barulho, o enxame inteiro de abelhas africanas saiu de uma árvore apodrecida... Milhares! Milhões de abelhas assassinas o alcançaram! Valentino rolou na terra e elas o cobriram por inteiro. O medicamento que ainda lhe atuava no organismo contra as toxinas de uma só daquelas abelhas não foi suficiente para

protegê-lo contra o veneno injetado simultaneamente, por um enxame inteiro delas. Os gritos ecoaram por toda a aldeia atraindo os moradores que se aproximaram e se detiveram, horrorizados ante aquela

cena. A pequena multidão assistiu a tudo sem poder juntar esforços aos esforços vãos de Valentino, sem conseguir fazer coisa alguma em seu favor.

O vendeiro e sua mulher chegaram ao mesmo tempo que os demais e foram seguros por mãos fortes, muitas mãos que tiveram de usar violência para contê-los a uma distância segura.

Os presentes assistiram a cada um dos movimentos de Valentino que, de violentos foram se tornando mais débeis, até que a inércia o dominasse por completo.

Foi um longo espetáculo de sofrimento para todos da Vila Verde. Ali acabou a mania de perseguição. Ali acabaram todos os medos. Ali acabou Valentino.

27 DE AGOSTO - 3ª FEIRA

I A aldeia amanheceu numa agitação diferente de quaisquer outros dias já vividos ali. Os alunos que vieram à escola não se detiveram nas brincadeiras de costume - aliás, nem mesmo entraram por aquele

portão. Crianças uniformizadas eram vistas semeadas por todo o núcleo central do lugarejo. Andando, falando em voz alta, olhinhos curiosos, ouvidos atentos a qualquer opinião, indagação, exclamação, afirmação e sugestão dos adultos. Fisiono-

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mias ansiosas querendo saber, querendo passar adiante o que ouviam, transformando perguntas em certezas, garantindo fatos que elas mesmas inventavam. Ziguezagueavam sem parar entre a casa do Dr. Luciano e a loja do S. Leonel.

Donas de casa que mal apareciam e que, quando muito, eram vistas nos terços domingueiros, esqueceram as obrigações domésticas; puseram-se na rua aos pares e em pequenos grupos falando e gesticulando, sempre em tom de quem duvida dos fatos que os próprios olhos assistiram.

Os homens - tanto da aldeia quanto dos arredores - estavam presentes naquela manhã, esquecidos das obrigações de todo dia. Policiais fardados e à paisana se misturavam ao povo perguntando, anotando, levantando hipóteses, ordenando buscas.

Era, com efeito, uma estranha agitação num povoado onde, até o dia anterior, viam-se galinhas ciscando e porcos deita-dos em plena rua.

Na casa comercial, que se encontrava interditada por policiais, um médico vindo da cidade ainda se encontrava debruça-

do sobre o cadáver de Anita, na delicada tarefa de análises onde, normalmente ficam estabelecidos aspectos tais como: arma do crime ou a causa da morte, órgãos atingidos, direção de onde partiu o objeto causador do ferimento, possível horário em que ocorreu o episódio, entre outras coisas. Cada conclusão, o médico ia anotando num bloco amarfanhado que depois ser-viria de estrutura na montagem do laudo oficial a serviço da justiça.

Há pouco, o mesmo médico terminara trabalho idêntico nos dois corpos encontrados na última casa daquele lado da es-trada rumo oeste, casa que também se achava sob proteção policial, ainda à procura de vestígios do matador. Na casa do médico, os corpos de D. Etelvina e do próprio Dr. Luciano - em urnas lacradas devido à decomposição exercida pela ação do tempo - achavam-se expostos à visitação pública e já à espera dos funerais.

Parentes, conhecidos, amigos e curiosos iam chegando, sempre mais e mais, tanto da cidade de Ipoty quanto de Serra Baixa, assim como de outras cidades da região, aumentando a população ocasional. Carros policiais e mais carros de passeio com placas de diferentes localidades eram estacionados à sombra de árvores ao longo da estrada, a uma distância considera-da segura de acordo com as autoridades, para não prejudicarem os trabalhos.

O Dr. Luciano e a enfermeira, segundo as instruções do médico que procedeu às autópsias, deveriam ser sepultados sem

tardança; no entanto, o Padre Nicolau não havia sido localizado para a cerimônia fúnebre. Era do conhecimento de todos que ele saíra às compras na madrugada anterior e não voltara. Nada justificava que passasse o dia todo, a noite inteira e aquele começo de manhã fora de casa. As opiniões eram contraditórias, as hipóteses eram divergentes.

- Ele foi de ônibus, porque o carro está na garagem. - Se saiu de madrugada não foi de ônibus, pois este só passa ao meio-dia, rumo a Ipoty. - Ao invés de Ipoty, ele pode ter ido fazer compras em Serra Baixa, no ônibus das oito. - Que compras ele faria em Serra Baixa, se é cidade pequena com comércio fraco? E mesmo que tivesse ido a Serra Bai-

xa no ônibus das oito horas, teria retornado de ônibus, ao meio dia. - Na hora do terço ele não falou nada de ir a Serra Baixa. Disse que ia fazer compras em Ipoty, eu lembro bem. Com cer-

teza foi de carro e voltou sem que o víssemos. - Ou então foi de carona e não achou carona de volta. - Carona com quem, se ninguém da aldeia viajou ontem para a cidade? - Se foi de ônibus, voltará de ônibus. Daqui a pouco estará aqui. - Ou pode estar ainda dormindo. - E se estiver dormindo, vai acordar com tanto barulho. - Ele não costuma se levantar cedo. - Levanta cedo, sim! A estas horas já deveria ter acionado o gerador de energia. - Vamos esperar a chegada do ônibus e aí, a gente fica sabendo. - Está quase na hora. E havia um foragido: Gino. Saíra de casa na manhã anterior, sem dizer aonde ia. Não voltara nem havia sido visto em parte alguma. Em vista disso,

estava sendo acusado pelos três assassinatos e, indiretamente, pela morte de Valentino. Para aquele povo, estava tudo muito claro: Gino, um adolescente desconhecido, recém chegado da cidade grande, não teria se adaptado à vida calma da aldeia e te-

ria partido para a violência - seja pela revolta por ver-se distante da agitação de centro mais civilizado, seja pela procura de atividade excitante, seja por menosprezo pelo povo humilde da Vila Verde, seja por sentir desejo inato de matar e encontra-do aí, ambiente propício às suas tendências.

A julgar pelo estado de putrefação em que as vítimas foram encontradas, formou-se a seguinte hipótese: D. Etelvina fora escolhida ao acaso, tendo pesado o fato de morar sozinha em lugar ermo, onde seriam mínimas as probabilidades do crimi-noso ser visto em ação.

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Para encobrir este primeiro crime foi preciso cometer um segundo na pessoa do Dr. Luciano que, sentindo a ausência da empregada teria ido à residência dela, onde também encontrara a morte.

Quanto a Anita e Valentino, as hipóteses foram levantadas a partir do relato do próprio pai:

II

De acordo com a posição do corpo de Anita: de costas para a janela aberta, debruçada sobre a caixa da boneca que, por

sua vez encontrava-se em cima da cama, deduziram que Gino teria entrado no quintal à procura do filho do vendeiro; teria visto pela janela, a garota brincando em completo alheamento; teria entrado sorrateiramente na cozinha quando D. Edna já se encontrava costurando, na despensa. Na cozinha, teria se apossado da faca recém afiada, retornado à janela de Anita e a eliminado.

Valentino, que teria saído em busca de mamões maduros para o jantar, teria regressado à casa, a tempo de assistir ao as-sassinato da irmã. Sentindo-se descoberto, Gino teria tentado silenciar Valentino, o qual teria se refugiado em casa, com o criminoso em seu encalço.

As palavras são do próprio S. Leonel, às autoridades que o interrogavam: - Eu poderia ter pedido à Edna que me trouxesse as cebolas, mas ouvi o som da máquina de costura e, para não atrapa-

lhar, preferi chamar por minha filha. Gritei à Anita, que me trouxesse a réstia de cebolas. Ouvindo minha voz e sabendo que Anita não me atenderia, Gino deve ter ficado apavorado. Depois de meio minuto, tornei a gritar para que a menina se apres-sasse com a mercadoria. Imagino que, tentando impedir que eu entrasse em casa e descobrisse o crime, Gino tenha forçado Valentino a me trazer as cebolas. Tenho quase certeza que ele estava ali na sala, ao lado do meu filho, ameaçando-o com alguma arma para que Valentino se mantivesse calado ao me entregar a réstia.

Ficou por um instante em silêncio, revivendo a cena: - Valentino me entregou as cebolas sem entrar na loja. Ficou na porta de comunicação, com a maior parte do corpo den-

tro da sala, talvez sendo seguro por trás, para não fugir... Ah, eu percebi a diferença no jeito de me olhar. Eu percebi, meu Deus! E não dei importância. Fisionomia alterada, ele estava pálido e só agora percebo o quanto se sentia apavorado, coita-dinho! Os olhos estavam abertos além do normal, arregalados, como nunca eu tinha visto antes. As mãos tremiam. Devia estar muito, muito assustado o meu pobre filho!

Enxugou as lágrimas, recriminando-se em voz que ia num crescendo: - Eu deveria ter desconfiado que ele me mandava uma mensagem, que me pedia socorro com o olhar! Por que não per-

guntei o que estava acontecendo? Por que não entrei naquela hora? Mas não! Fregueses na loja, mercadoria saindo, dinheiro entrando... eu não podia perder tempo, tinha de ganhar dinheiro! Não tinha tempo de verificar as precisões dos meus filhos e assim, por causa de uns tostões, perdi também o Valentino! A Anita, certamente já estava morta, não tinha mais como so-corrê-la; mas o Valentino estava ali, à minha frente, pedindo socorro! Por que ignorei aquele olhar assustado? Por quê?

Baixou a cabeça e se calou. Os ouvintes respeitaram seu silêncio, que durou pouco: - O que terá havido que levasse o meu menino a correr, a gritar daquela maneira? Como terá se livrado de Gino? Não

sei, eu não vi... - e quase gritou de revolta pelo próprio comportamento: - Eu, um pai, com os filhos morrendo aí, dentro de casa, embaixo do meu nariz, e não vi nada! Não vi nada! Nada! Que grande droga de pai fui eu!

Fez uma pausa de um ou dois minutos e, entre soluços, prosseguiu, com voz mais calma: - Penso que, ao me entregar as cebolas Valentino tenha conseguido iludir a atenção do criminoso e tenha saído correndo

para o quintal, perseguido por Gino. Devem ter entrado ambos, no meio dos eucaliptos. - neste ponto, o homem deu um sorriso de orgulho: - Ninguém era mais rápido na carreira que o meu garoto! Ninguém... Aliás, ninguém era melhor que ele, em coisa alguma! - retirou o ar orgulhoso do rosto e foi adiante: - Valentino conhecia cada buraquinho de chão desta aldeia, mais que a palma da mão. O outro, pelo que sei, era a primeira vez que entrava no terreno dos eucaliptos e, desconhecendo o solo em que pisava, não pôde correr na mesma velocidade. Para piorar a situação de Gino, Valentino começou a gritar. Eram gritos tão desesperados, impossíveis de não serem ouvidos – dirigiu o olhar para os que o cercavam: - Todos corremos logo ao primeiro grito. Ele já não estava mais nas proximidades da casa, o que leva a crer que só passou a gritar quando se sentiu numa distância segura do perseguidor. Com os gritos de Valentino, o Gino entendeu que a vila inteira, dentro de pouco seria atraída para aquela direção e fugiu, não se sabe pra onde. Mas os mesmos gritos que livraram meu filho do assassino, atraíram as abelhas... é assim que acredito que tudo tenha acontecido.

Tudo se encaixava conspirando contra Gino que, certamente, estaria escondido nas matas da redondeza. Os homens da aldeia e mais os policiais, todos armados, divididos em grupos saíram para as buscas. Fizeram batida

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completa na casa e no quintal da família do acusado. Em vão, D. Clementina explicou que Gino era um garoto normal, cal-mo e bem humorado, incapaz de atos daquelas proporções.

- Ele foi cedo ao trabalho, com o pai. Vieram almoçar e depois, acho que ficou por aí, no povoado. O doutor havia dito que tinha outro serviço para ontem à tarde...

O dono da casa terminou a narrativa: - Nós trouxemos as ferramentas conforme o patrão mandou; almoçamos e depois não vi mais o Gino. Fiquei esperando dar a hora de ir saber do doutor qual era o trabalho. Pelo jeito, era algum terreno a destocar. Mas a casa estava fechada, pensei que estivesse cochilando ou dando uma volta pela fazenda e, enquanto esperava, aproveitei para limpar e afiar as ferramentas. De vez em quando eu ia lá fora saber se o doutor podia me atender, mas a casa continuava do mesmo jeito de antes. Era uma tarde de serviço perdida, mas o que podia eu fazer? Tinha de esperar ordens. Fez curto silêncio como se estivesse a se lembrar de algo doloroso: - Foi por estar em casa, que ouvi os gritos do Valentino. Corri, a aldeia toda correu tentar ajudar. Depois disso, a gente descobriu esta desgraceira toda aqui no povoado. Era tanta novidade ruim, que a falta do meu rapaz nem foi notada; a gente achou que ele estivesse por aí, no meio dos outros. E de-pois, a noite inteira naquele corre-corre! Eu me juntei aos homens para as providências e só durante a madrugada percebi que não via o Gino em lugar nenhum. Procurei, perguntei, ninguém deu notícia. E das minhas próprias palavras, dizendo que não conseguia encontrar meu filho, foi que distorceram tudo e passaram adiante as notícias: “Se não foi encontrado, está escondido; se está escondido, então é o assassino!”

A explicação fazia sentido; assim como a quase certeza de S. Leonel em explicar a morte dos filhos e, como Gino não reaparecia, ia crescendo a convicção de sua culpa pois, se fosse inocente, não teria motivo para se esconder.

III

Com alguns minutos de atraso, o ônibus parou em frente à escola para o desembarque das professoras, as quais já havi-

am tido notícias sobre algo desagradável que acontecera na Vila Verde; mas ignoravam ainda que coisas eram estas. Foram rodeadas pelos alunos, todos ansiosamente impacientes para contar as novidades, todos curiosos por ver a reação delas ao se inteirarem dos fatos. As crianças falavam todas de uma só vez. Com detalhes de arrepiar, todas queriam ter o privilégio de contar algum pormenor. Entre frases incompletas e exclamações desencontradas, as professoras conseguiram entender o essencial: o médico, a enfermeira, Anita e Valentino estavam mortos - e Gino, o criminoso, fugira. Nenhum maior detalhe as professoras puderam arrancar dos alunos, que só repetiam as mesmas coisas de modo confuso, confundindo-as também.

Após satisfeita a curiosidade de ver a cara das professoras, a criançada debandou com receio de perder algum lance im-portante e decretou feriado por conta própria.

Depois, através do velho Romildo, as mulheres puderam entender melhor os acontecimentos por ordem cronológica, que assim foram resumidos:

- A D. Edna passou mal quando viu o Valentino morrendo envolto por um enxame de abelhas assassinas. Pensaram em

chamar o Dr. Luciano para um calmante, uma injeção, sei lá o quê, para que ela reagisse. Lembraram porém, que ele não havia voltado da cidade e que, como era uma emergência, talvez a D. Etelvina, que entendia de remédios, pudesse substituir o médico. Foi quando bateram à porta da casa dela que se descobriu o duplo assassinato. Não fosse isso, com certeza ia demorar bastante pra gente tomar conhecimento da morte de ambos. Assim, ainda persistia o problema do socorro à D. Edna, que estava muito mal. Foi preciso levá-la à cidade e lá ficou hospitalizada, sob efeito de calmantes. E ela nem chegou a saber da morte de Anita! Trouxeram de Ipoty um médico legista que, depois das autópsias, deu ordens para sepultar o doutor e a D. Etelvina, porque os corpos já estavam bastante decompostos. - e arrematou com um longo suspiro:

- Que noite, meu Deus! Que noite! A gente só viveu pesadelos sem estar dormindo. D. Zuleica, a professorinha loura, expôs uma dúvida: - Se o médico e a enfermeira já deviam estar sepultados, o que es-

tão esperando? - Como enterrar dois cristãos sem a presença de um padre para encomendar as almas? Eles poderiam ser removidos para

a cidade, ser benzidos numa igreja de verdade, ser enterrados lá mesmo; mas o povo daqui, a senhora sabe como todo mun-do gostava deles! de comum acordo resolveu que ninguém sai da aldeia. É por isso que estamos esperando pelo Padre Nico-lau. E agora, mais esta! Cadê ele? Esperávamos que ele chegasse com o ônibus...

- Ele tem autorização para este tipo de cerimônia. - ponderou D. Maura. - Sim, mas saiu na madrugada de ontem para umas comprinhas e não voltou. A professorinha loura fez as contas rapidamente: - Como? Uma viagem de carro, ida e volta, mais o tempo gasto nas compras, leva o quê? Quase nada! Mas digamos que

ele tivesse gasto um tempinho para almoçar, ainda assim estaria de volta ontem mesmo, à tarde. Se a estrada estivesse ruim

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ou se estivesse chovendo, vá lá! O homem se apressou em declarar: - Ele deve ter viajado de ônibus ou de carona, porque o carro está na garagem. Dona Maura olhou para o vácuo, pensativa. Alguma coisa não se encaixava e foi enumerando, em pensamento: “- Não foi de carro, porque o carro está na garagem. De ônibus não foi, pois teria sido no mesmo horário em que a Zule-

ica e eu voltamos pra cidade e não o vimos. De carona? Com quem, se ninguém sabe, ninguém viu? Será que...?” Terminou o monólogo consigo mesma e fez uma pergunta que pareceu estranha ao velho Romildo: - Ontem de manhã houve energia elétrica na vila? - Nada! A gente está no escuro desde domingo à noite, só a poder de lanterna, lampião, lamparina e vela. D. Maura sabia da falta de energia elétrica antes ainda de perguntar, pois lembrou-se de Valentino contando ter bombea-

do água e debulhado milho “à força de feijão”. Fizera a pergunta só para confirmar. O velho continuou: - Todo mundo reclamou, mas fazer o quê se o padre, encarregado pelo gerador, estava viajando? D. Maura, em voz quase inaudível, disse como se falasse a si mesma: - O Padre Nicolau pode estar morto também. - O que a senhora resmungou? Fale mais alto! A professora grandalhona sorriu, encarou o homem e procurou disfarçar: - Nada... Bobagem. Pensei que... bem, como

ele não foi encontrado, não ligou o gerador de energia e é impossível que tivesse ido à cidade, quem sabe se... não, eu não disse nada, só estava procurando entender.

- Disse sim! Eu ouvi! A senhora falou que ele está morto, não foi? - Não! Nada disso! Eu quis dizer que está difícil de entender... Não pôde terminar, porque o velho Romildo saiu tão rapidamente quanto suas pernas o permitiam, gritando em direção a

um grupinho de batedores que elaboravam novos planos na perseguição ao criminoso, novos rumos a tomar: - Ei, gente! A D. Maura acha que o Padre Nicolau está morto! - Seu Romildo, espere! Pelo amor de Deus, eu não disse isso! - Não adianta, Maura! Ele não ouve, nem quer ouvir! - exclamou a professorinha loura. - Zuleica, eu falei por falar! Acho que nem falei, só pensei, sei lá! - Veja! Ficaram agitados, estão gesticulando, talvez considerando a hipótese. Agora, o padre vai ter de estar morto de

qualquer jeito! E, se não estiver vão ter de matá-lo só porque você disse. - e riu. - Não brinque com coisa séria. Os homens da aldeia que conversavam aqui e ali foram recrutados e se juntaram defronte a casa do padre. Os líderes orientavam na tarefa de arrombamento; mas não foi preciso tanto, porque a porta se encontrava encostada, a-

penas encaixada no batente. Revistaram a casa e não encontraram sinais de violência, nenhuma anormalidade. - O padre deve estar passeando em Ipoty e a gente aqui, feito bobo, pensando que está morto. - Ele não sairia da vila deixando a porta só encostada. - Por que não? Aqui tem ladrão por acaso? - A professora falou que ele está morto e eu acredito, porque ela é muito inteligente. - Não faz muito sentido, mas vamos procurar na máquina de arroz. De longe, as duas amigas observavam aquela massa humana que se movimentava em perfeita sincronia, como se fosse

um só homem. - Veja lá, Zuleica! Não encontraram nada na casa, graças a Deus! - E agora estão voltando. Parece que vão... Algumas crianças da escola passaram correndo; queriam saber o motivo de estarem os homens reunidos naquele pedaço

de rua. De passagem, puxaram as professoras para que as acompanhasse. D. Zuleica não se fez de rogada e foi levada junto, enquanto a companheira preferiu ficar ali, rezando para que suas deduções estivessem erradas.

Até elas chegavam as vozes exaltadas e depois, as arremetidas contra as portas do prédio. A seguir, os gestos perderam força, os movimentos arrefeceram, sem continuidade. E o vozerio emudeceu, fez-se silêncio de cemitério. Intuindo o motivo daquela mudança, D. Maura sentiu-se gelar.

E mais estarrecida ficou quando a companheira retornou pálida, trêmula, quase sem voz: - Maura, eu vi! Que horror! Que horror, meu Deus! - Calma, amiga! Vamos entrar, sentar no pátio da escola e você me conta. A professorinha loura torcia as mãos sendo conduzida docemente pelo braço, falando sempre: - Eu vi, Maura! Ele está lá! Que arrependimento por ter ido ver! - Pronto! Fique aqui sentadinha, bonitinha, que eu vou abrir minha sala, apanhar um copo limpo. Depois de uma água

fresca, você se sentirá melhor. - Não! Não saia de perto de mim! Não quero água! A cabeça dele está quase separada do corpo, que coisa absurda, Mau-

ra! Coitado do padre, não merecia isso! - Tudo bem. Agora, eu vou buscar um copo de água.

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Fingindo-se forte, D. Maura sentia-se precisando, ela própria, de um bom calmante. Abriu a sala de aula, encheu um co-po com água da talha e bebeu primeiro, quase num só gole. Depois, levou água à companheira que bebericou aos poucos, tremendo e parando para tomar fôlego.

- E então? Melhorou? - Como foi que você teve aquela ideia, Maura? - Ora, Zuleica! O padre poderia não estar morto, mas a história era esquisita. Alguma coisa estava no ar e não sei como

ninguém havia pensado nisso! Talvez nem sobrasse mais espaço na mente de ninguém; os pensamentos estavam tão volta-dos para as outras mortes... foram quatro mortes violentas numa pancada só! Era tanta tragédia, tanta surpresa ruim, que a ausência do padre não levantou suspeita, não foi considerada de maneira mais séria. Você não percebeu que eles estavam ainda à espera dele, mesmo com tantos indícios de anormalidade?

- Mas por que nem os policiais pensaram igual a você? Tanta gente e ninguém parou para refletir? - É diferente. Os policiais não conhecem os costumes daqui e acreditaram no que lhes disseram: o padre estava na cidade

e pronto! As pessoas da vila, vivendo este clima pavoroso desde ontem, de um fato de horror a outro pior, não tiveram cabe-ça para perceber as contradições. Quem chega de fora, como nós, conhecendo cada habitante como se fosse da família e com a cabeça fresca, consegue enxergar de outra maneira.

- Cristo! Cinco mortes num vilarejo que nem consta em mapa! Quantos habitantes tem a Vila Verde? Umas trezentas pessoas, contando as fazendas vizinhas. Aqui no núcleo não chega a oitenta! Que barbaridade!

- E pode haver mais tragédias. Acuado, o criminoso pode matar mais gente antes de ser morto. - Nossa, é verdade! Como estará a mãe dele? - Ah, como sofrem as mães! Acho que ninguém lembrou que ela pode estar aflita mais que os outros... Mais tarde, acho

que vou fazer uma visitinha pra família. Nem sei o que dizer porque a situação é delicada. - virando-se para a amiga: - E você, melhorou? Ainda está tão pálida!

- Se tivesse visto o que eu vi, duvido que estivesse mais corada. O padre lá, numa poça de sangue, molho de chaves nu-ma mão, farolete na outra, a cabeça... Ah! Chega de falar nisso! Mas melhorei sim! E não vamos ficar aqui falando, enquan-to coisas estão acontecendo por todo lado. A gente deveria dar uma andada por aí, ver gente, falar com mais alguém, saber como estão as coisas... Vamos?

- Agora, não. Vou continuar aqui mais um tempo, botar as ideias em ordem antes de ver de perto tanta desgraça. Vá você e tome cuidado para não se impressionar ainda mais.

- Eu me recupero depressa. Bem, então vou indo e acho que vou demorar a voltar.

IV

Eram oito e meia quando D. Maura entrou na sala vazia. Fitou as carteiras onde eles se sentavam. Apoiou-se na mesa e

lembrou de ambos escrevendo, falando, brigando entre si. Lembrou do dia anterior quando ele foi, solícito, levar alimento aos animais do doutor. Lembrou a voz da Anita pedindo para ir junto e ele recusando.

“- Ela era alegre e ele, o oposto; sozinho, afastado de todos, sempre calado.” Caminhou até o armário, apanhou a pilha de cadernos e separou o de Anita e o de Valentino. Abriu-os e ficou a folheá-

los com carinho, página por página, dia a dia. Leu a última redação de Anita, feita no dia anterior... nada de diferente, ape-nas um relato de tudo o que fizera durante o intervalo da aula. Um recreio normal, uma redação normal de uma aluna nor-mal de terceiro ano de escola.

Depois, por alguma associação de ideias, lembrou-se da voz de Valentino: “- É rascunho, professora... não quero esquecer nada... redação muito bonita, quero fazer surpresa.” Procurou a última redação do caderno do rapazinho e a leu. Era diferente, porque o recreio dele havia sido diferente: bri-

ga de galos, coceira por causa da palha de milho, galinhas e porcos, canseira, suor, atraso na hora de voltar à aula...:Mas tudo em frases curtas, orações soltas, pulando de um assunto a outro sem ligação alguma entre si.

“- Está bonitinha! Mas nenhuma surpresa que eu já não soubesse, nada de original. Além disso, nem parece trabalho do Valentino; ele era criativo e, mesmo que seu recreio houvesse sido um tédio, ele conseguia transformá-lo num recreio mara-vilhoso, em se tratando de redação. E ontem, tendo uma riqueza de material como teve, não escreveu uma única oração digna de ser considerada surpresa, como ele próprio disse.”

Releu o trabalho analisando a maneira como foi escrita: parece que às pressas, rabiscada, sem cuidado algum quanto à letra ou aos sinais de redação.

“- Não parece trabalho passado a limpo. Mas ele fez rascunho, sei que fez, porque eu vi! Entretanto...” Pensando neste pormenor, sentiu curiosidade de verificar o rascunho:

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“- Neste mesmo caderno, de trás pra diante. Vamos lá!” Colocou o caderno na outra posição e viu aquela espécie de diário, que começava: Hoje é dia 14 de agosto, quarta-feira. Estou sendo vigiado pelos deuses. Eram coisinhas que lhe pareceram tão sem importância! Deus de gente, deus de bicho, juramento, capeta... “- Tolices de criança.” - pensou e continuou a leitura. A letra era de Valentino, sem dúvida - mas feita de modo diferente do habitual: traçado firme, com determinação, sem

rabiscos, sem devaneios, sem floreio; só o necessário, estilo telegráfico. A atenção da mulher foi sendo presa àquelas anota-ções que começaram a adquirir certo significado:

“- Pecado mortal, morte de passarinho...condenação ao inferno... O que significa isso? Mania de perseguição? Está pare-cendo coisa de psicopata. Será que ele estava criando uma história de suspense? É possível. Ele era o personagem central movendo-se no cenário da vila e usando pessoas conhecidas como participantes... ou estaria escrevendo um diário?”

Continuou a leitura até que, em certo ponto, teve certeza que aquilo não se tratava de ficção, mas de suas próprias expe-riências. Reparou que, com o passar dos dias, seus temores iam aumentando, formando uma teia complexa, cujos rumos a professora não gostou que fossem tomados.

Leu sobre a cumplicidade entre o cachorro e as baratas: “O Cacau era o degrau de cima dos bichos e abaixo das gentes, entendeu? Como ele era bicho, mas quase gente, servia

de intermediário, depois que eu parei de falar com os outros bichos.” E percebeu que, até aí, as desconfianças recaíam sobre insetos e aves; deste ponto em diante, parece ter transferido seus

temores contra as pessoas: “- Se o cão era o degrau intermediário, foi só subir este degrau para chegar às pessoas e transferir a elas suas desconfianças.”

Chegou ao incidente da doença causada pela abelha africana e empalideceu ao ver o próprio nome ligado a uma armadi-lha com ratos!

“Primeiro, foram os ratos, numa tentativa feita pela D. Maura. Depois de juntar os ratos todos da vila naquele quarti-

nho lá no fundo da escola, ela pediu que eu fizesse a limpeza. “- Não acredito!” Parou de ler porque o choque foi grande demais. Precisava primeiro digerir aquela informação para depois continuar. E

pensava: “Pai Poderoso! Acho que não vou gostar do final deste diário! Meu Deus, eu quero parar, mas me dê forças para ler até o fim.”

Incrédula, leu sobre o plano da enfermeira e do médico para envenená-lo e sentiu as vistas se turvarem ao ler: “Vou matar todos eles, de um em um.”. “- Impossível! O Valentino não pode ter feito o que estou pensando!” Mais uma vez interrompeu a leitura. Levantou-se e foi à janela, resistindo à necessidade de voltar a ler. Era como se, in-

terrompendo naquele ponto, interromper-se-ia a sequência de fatos assombrosos que, estava quase certa, encontraria mais adiante. Era como a leitura de um romance que, quando não se está gostando, fecha-se o livro e acaba a história naquele parágrafo. Mas ali não se tratava de ficção. Lá fora, à sua frente, estava a casa do médico que, excepcionalmente neste dia, encontrava-se rodeada por uma multidão entre filhos, netos, amigos e parentes mais distantes. Rua apinhada de gente e o incessante vai-e-vem, mistura de pessoas de todas as idades falando a mesma linguagem, pensando os mesmos pensamen-tos, tendo em mente os mesmos acontecimentos, procurando por uma só pessoa: o Gino.

“- Nada vale querer modificar os fatos. Eles estão aí, acontecendo agora, à minha frente e eu querendo interromper sua sequência.” - ergueu o olhar para o céu: - “Deus, preciso tanto de forças. Ajude-me!”

Voltou à leitura, agora com quase certeza do que encontraria; e não se enganou porque, logo abaixo, anotado em dia di-ferente, aquela revelação:

“A D. Etelvina já se foi. Estrangulada com aquela borrachinha de aplicar injeção na veia.” Mais uma vez a professora teve de interromper a leitura. Olhou para o vácuo que se formou à sua volta e deu corpo à-

quele pensamento que lhe bailava na mente: “- Valentino é o criminoso!”

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Ao perceber as proporções daquela descoberta D. Maura que, até o momento conseguira conter as lágrimas, pendeu a cabeça sobre a mesa e chorou. “- O Valentino! Senhor, por que deixou que isso acontecesse?”

Por minutos não registráveis pelo relógio, a mulher deixou que as lágrimas lhe lavassem a alma daqueles episódios me-donhos. Depois, mais refeita, voltou à talha de água fresca enquanto outro pensamento lhe cruzava o cérebro:

“- Não foi o Gino! Coitado, sendo perseguido a paus e pedras e acabará morrendo antes ainda de dizer que é inocente!” Encheu o copo e bebeu gole a gole, dando tempo para sorver as informações antes de voltar à leitura. Procurou controlar

as emoções, percebendo que estava em suas mãos os rumos dos próximos acontecimentos da Vila Verde. Era preciso man-ter a calma e pensar muito bem sobre o que faria quando estivesse de posse de todos os elementos.

Passou ao registro da morte do Dr. Luciano no sábado à tarde, quando conseguira mandá-lo à casa de D. Etelvina. Mais uma vez suspendeu a leitura para render homenagens àquele cérebro privilegiado, conquanto doentio: “- Incrível como este menino era inteligente! Disfarçou tão bem o tempo todo, que era impossível perceber alguma anomalia! Tudo premeditado e com o maior sangue cru! Quem mais teria a ideia de matar com um caco de vidro no estilingue, mirando exatamente, a veia jugular?”

Abaixo, D. Maura leu como foi o garoto surpreendido por aquilo que acreditou ser uma armadilha do Padre Nicolau, no

domingo à noite. E admirou-se da ligeireza de raciocínio quanto ao gerador de energia: “... e pra que ninguém desconfiasse que ele estava morto, eu mesmo fui desligar, uns dez minutos depois que matei ele,

mas não era hora ainda. Faltava quase uma hora pra hora de desligar.”

A professora chegou enfim, aos últimos parágrafos daquele diário. Pensou que nada mais de importante ele poderia con-ter, mas surpresa maior esperava por ela:

“Faz quase meia hora que matei o Gino. Foi na hora do recreio.” “- Deus de Misericórdia, ele está morto!” - exclamou a mulher escondendo o rosto entre as mãos - “Gino não está fugido

como todos pensam! E isso aconteceu ontem, durante o intervalo! Eu os vi quando entravam por aquele portão! Além do Valentino, fui a última pessoa a vê-lo com vida! O Gino sorria! Despreocupado, ajudando o companheiro e caminhava para a morte! Que horror, que horror, meu Deus! E depois o Valentino voltou tão calmo! Jesus Cristo, que calma após matar um ser humano! Tudo aconteceu na minha frente e eu não percebi!”

Teve um ligeiro tremor ao se lembrar: “- O sangue na roupa! Era sangue era do amigo! Com sangue ainda úmido na ca-misa, ele conseguiu mentir... com que facilidade inventou uma mentira! E com que serenidade se portou até o fim da aula!”

Deixou o olhar cair novamente sobre aquelas linhas, levando choques gelados a cada palavra: “- Aqui! Ele mesmo confessa que mentiu a respeito do rascunho. Que mentiu quando disse estar ouvindo os porcos cho-

rando... e aqui, a lista dos que ainda iam morrer... Como? O meu nome! Meu nome está no meio!?” Rememorou a fisionomia de Valentino: “- É rascunho, professora... É bastante coisa, não quero esquecer nada... redação

bonita, quero fazer uma surpresa pra senhora.” Olhou a carteira vazia e, em voz suave, falou como se ele estivesse ali, como se a pudesse ouvir: - Foi uma surpresa mesmo, Valentino! E é mesmo uma redação muito bonita, meu querido! Tão linda que... veja, estou

chorando! Que surpresa você preparou, meu anjinho! Meu anjo querido, meu anjo ferido, que surpresa triste!

V

Pela janela aberta e sem ver coisa alguma, recriminou-se por ter, muitas vezes, observado que ele escrevia além do que

era pedido e não tivera a curiosidade de ler, de saber do que se tratava. “- Ele registrou todas as vezes que eu o surpreendi. Estava em minhas mãos evitar tanto sangue, por que fui deixar que

chegasse a este ponto? Ah, meu Deus!!! Há mais um cadáver lá no paiol do doutor! O Gino está lá morto e eles o procuram para matá-lo.... Quando souberem que morreu, vão chorar sua morte. Quanta ironia! Quanta falsidade!”

Sem saber o que fazer, a mulher permaneceu imóvel, olhar fixo em algum ponto abstrato como se a mente estivesse va-

zia. As revelações eram por demais surpreendentes, por demais pavorosas sem que seu psiquismo estivesse nem um pouco preparado para suportar golpes de tais proporções e, assim sendo, seu estado de alma acabou por afetar o corpo físico. Sen-tiu leves tonturas, certo entorpecimento no corpo inteiro, como se dentro dela todos os órgãos, músculos, nervos e células

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estivessem inativos. Era como se estivesse sem sentidos, sem estar desmaiada. Por sua vontade permaneceria ali, naquele estado de não ação, não pensamento, não vida até que tudo lá fora tivesse voltado à normalidade. Como se a normalidade pudesse um dia retornar àquele pedaço de chão!

Aos poucos porém, a inação que a dominou foi cedendo lugar ao retorno gradativo à realidade. Sabia que tinha em seu poder um segredo gigantesco, mas não sabia o que fazer com ele; não sabia a quem entregar aquele caderno, apesar de estar ciente que era sua obrigação mostrá-lo às autoridades.

O relógio de pulso marcava nove horas e dez minutos. Gastara quarenta minutos para ler poucas páginas de um caderno. Mais fortalecida, D. Maura saiu da sala levando na bolsa ambos os cadernos: o de Anita, guardaria como recordação;

lembrança de uma menina muito sentimental que chorava quando via bichinhos sendo mortos e que, devido a esta sensibili-dade, foi morta. O caderno de Valentino, levava para mostrar àqueles homens lá fora, o quanto estavam enganados. Podiam parar de procurar o Gino assassino e fossem buscar o Gino cadáver, no celeiro do doutor.

Já na rua, foi ao encontro de um grupo que se preparava para tomar nova direção: revistar cada metro de ambas as mar-gens do Rio das Pedras. Ela se aproximou mas, no último instante, resolveu esconder parte da verdade. Numa fração de segundo, raciocinou: “- De que vale saber que o Valentino era o criminoso, se ele está morto também? Se souberem toda a verdade, o garoto será lembrado com ódio. Não! O Valentino não será odiado.”

Controlou o tom de voz, de modo que soasse naturalmente: - Vim dizer que lembrei uma coisa que talvez possa ajudar. A atenção daqueles homens se voltou para a professora e ficaram à espera. D. Maura nem sabia o que dizer nem por on-

de começar, mas deixou-se guiar pela determinação de auxiliar, sem incriminar Valentino: - Ontem, à hora do intervalo das aulas, Valentino me pediu permissão para alimentar os animais do doutor que, ao que

tudo indicava, havia ido à cidade e não voltara ainda. Deixei que ele fosse e vi, pela janela, quando entrou no quintal do doutor, acompanhado por Gino.

- Gino? Gino entrou naquele quintal ontem? - perguntou o que parecia liderar o grupo. - Sim. Entraram os dois, eu vi. Não sei porque acompanhou o Valentino, mas... já procuraram lá? - No quintal do doutor? Não! Ele não ficaria a tão poucos metros depois de tudo o que aprontou. Gino está escondido

com certeza, a uma distância segura, ou se encontra ainda em fuga, distanciando-se cada vez mais. Já foi revirado cada metro do Brejão. Vamos sair agora para o Rio das Pedras e depois vamos para a Floresta dos Morretes. - o homem a enca-rou com seriedade: - Mas por que a senhora sugere que o procuremos no quintal do doutor? Será possível que estaria aí, quase que à vista de todos, sabendo que está sendo caçado como fera? Acho que não...

- Eu não sei. Só estou contando o que vi. Um outro homem da aldeia se adiantou: - Na minha opinião, mesmo que não faça sentido, merece que a gente vasculhe

aquele quintal. É um lugar grande, cheio de entulhos, cheio de montes e montes de trastes velhos, cheio de cantos que pode-riam muito bem servir de esconderijo. Ele deve ter entrado no quintal junto com o Valentino, exatamente à procura de um bom lugar onde se ocultar no momento em que fosse necessário. Além disso, esta professora já adivinhou a morte do Padre Nicolau, lembra? Se não fosse por ela, estaríamos ainda sem saber de mais aquele crime - virou-se para a mulher: - Não é verdade que a senhora adivinhou?

D. Maura nem chegou a responder, porque outro falou em seu lugar: - É verdade, sim! Foi ela mesmo! E, se adivinhou antes, pode estar adivinhando outra vez! O líder coçou a cabeça, pensou e opinou: - Apesar de parecer absurdo não custa tentar, mas... um momento, não vamos

ainda! Calou-se como que analisando o conjunto dos fatos; depois expôs uma situação bastante embaraçosa: - Há dois pon-tos que é preciso considerar. Primeiro: Quando soubemos da morte do Padre Nicolau, mandamos um carro da polícia em busca do Padre Dimas, para as cerimônias. Não demora muito, ele vai chegar e isso aqui vai virar um rebuliço dos diabos por causa dos sepultamentos, ao mesmo tempo que a gente precisa de calma para as buscas. Segundo: A casa do médico está cheia de parentes e amigos que também correm perigo de vida pois, vendo-se acuado, o criminoso pode ter atitudes inesperadas. Vai ser preciso afastar esta gente toda daí e, mesmo com a presença do Padre Dimas, as cerimônias vão ter de esperar. Será conveniente que fique alguém na estrada, além do cemitério, à espera do padre e impedir sua aproximação.

Todos concordaram e os homens foram divididos em dois grupos. O líder deu as ordens: - Vocês aqui, vão à casa do doutor e evacuem a área! Não deixem ninguém nas proximidades, mesmo que seja preciso

usar a força. Depois, fechem portas e janelas, evitando que qualquer pessoa entre antes de serem passadas novas ordens... Já imaginaram se o criminoso se entrincheirar lá dentro? Depois, venham se juntar ao outro grupo. A outra equipe vai sair à procura de todos os policiais e mais os moradores da vila dispostos a correr riscos. Vamos intensificar o cerco com o maior número possível de homens. Digam que, dentro de dez minutos a gente começa a operação! - e, virando-se para a professo-ra: - Ele vai receber o que merece, deixe por nossa conta!

- Espero, de coração, que ele receba mesmo o que merece.

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VI Cumprido seu dever, D. Maura se afastou e, desta vez, foi esperar junto aos pais de Gino. Encontrou a mulher desfiando o rosário e o marido, rosto escondido entre as mãos, também parecia rezar. O filho mais

novo não se encontrava na vila; o mesmo policial que saiu em busca do Padre Dimas levou o garotinho para a casa de pa-rentes na cidade, a fim de poupá-lo à cena que sobreviria à prisão do irmão. A professora foi bem recebida considerando que, até aquele momento, nenhum morador da Vila Verde viera manifestar sua solidariedade. Exceto os policiais que, volta e meia vinham para novas perguntas, nenhuma outra pessoa estivera aí.

Com a permissão da dona da casa, D. Maura fez um chá de erva-cidreira, porque os três estavam precisando de um bom calmante. Ficaram depois em silêncio, sem saber o que dizer um ao outro. A professora não lhes contou o que sabia, prefe-rindo que a notícia viesse através de outrem.

Os minutos demoraram a passar e, depois do que lhes parecera um tempo enorme – pouco mais de vinte minutos após - a notícia correu o povoado:

- Gino não é o assassino! Gino está morto também! Seu Vicente e D. Clementina receberam o comunicado por um agente policial, que aconselhou: - É melhor que não o ve-

jam agora. Foi mais um crime bárbaro e, só por causa da descrição da roupa, ele foi reconhecido. O médico vai ter de fazer a autópsia para determinar o horário aproximado da morte e arrumar um pouco os ferimentos. Vai demorar bastante, porque acabou agorinha mesmo o trabalho com as crianças da loja. Depois ainda há o Padre Nicolau a ser autopsiado e, só depois será a vez do seu filho.

Os pais suportaram o golpe com calma muito maior do que se poderia esperar; tanto, que D. Clementina, erguendo os braços para o alto, exclamou:

- Graças a Deus! - e, virando-se para o policial, explicou: - De qualquer maneira, ele morreria. Nós sabíamos que, se fos-se apanhado vivo, seria destroçado a pauladas, embora fosse inocente. Tínhamos certeza que não o veríamos mais com vida. Foi melhor assim. Ele não merecia sofrer como sofreria hoje, nas mãos deste bando de selvagens. Gino morreu com a cons-ciência limpa, sem ter praticado os crimes que lhe atribuíram! - e olhando novamente para o alto: - Obrigada, meu Deus!

O dono da casa concordou com a esposa: - É preferível ter um filho assassinado, que um filho assassino. Melhor chorar de saudade e visitá-lo no cemitério, a cho-

rar de desgosto e visitá-lo na cadeia... Surpresos, D. Maura e o policial ouviram aquelas palavras. Jamais imaginaram existir tanta resignação diante de tama-

nha dor. Onde estavam aqueles pais cheios de revolta, clamando por justiça e com desejos de vingança? Onde aqueles que aproveitariam para exigir reparação pelas calúnias levantadas contra o filho?

Temendo ser mal interpretado pelos dois estranhos, Seu Vicente esclareceu, à sua maneira: - Aqui em casa, a gente não tem religião, destas que têm nome. Nossa fé é em Deus. Nós rezamos muito, mas não para

que Deus faça as coisas que queremos. Em nossas orações, sempre pedimos paciência e força para os dias piores... como hoje, por exemplo, que é o pior dia de nossas vidas. A gente sabe que Deus nunca faria injustiça para nós, nem para outros. – enxugou uma lágrima antes de continuar: - Aqui na Terra, muitos crimes ficam sem castigo ou então, punem a pessoa errada porque a lei é falha, suja e corrupta! - dirigindo-se ao agente da polícia:- O senhor me desculpe, sei que não tem nada com isso, mas a lei é mesmo muito falha.

O ouvinte concordou com um gesto de cabeça e Seu Vicente continuou: - A lei da Terra é falha, mas na legislação de Deus, o dinheiro não vale nada; ninguém paga dívida dos outros, ninguém

fica impune, ninguém sofre mais do que merece. Deus é justo! Se nossa casa hoje está de luto, nós não sabemos os motivos e poderíamos ficar revoltados porque chegamos aqui há tão poucos dias, cheios de esperanças. Mas Deus sabe quais moti-vos são estes. Ele não erra a pontaria, não conserta o que não precisa de reparos, não bate prego em parede errada.

O representante da lei, cumprida a tarefa de levar a notícia, tinha outras providências urgentes a tomar; mas sentiu sim-patia por aquela gente simples que falava de modo tão sensato e que se comportava de maneira tão diferente do que estava acostumado a assistir em situações semelhantes. E permaneceu por mais alguns minutos ouvindo Seu Vicente: - Se não estamos em débito para com a justiça do céu, então este sofrimento que atingiu nossa casa se trata de um teste.

- Teste? Como assim? - fez D. Maura, perplexa. - Professora, cada um dos seus alunos faz provas, testes e exames para demonstrar o que aprendeu durante a semana, o

mês e o ano. Pois nós também os fazemos. Cada amargura é como se fosse uma prova na Escola de Deus. É nesta hora que a gente demonstra o aprendizado da calma, da confiança, da fé. A senhora pensa que está sendo fácil aceitar isso? Estamos sofrendo sim, mas se fosse fácil não seria um teste. Estamos sofrendo, mas sofreríamos muito mais se nos revoltássemos. O que a gente sente não é só dor da alma; é dor muito grande, dor de verdade aqui no peito; é dor forte, como quando a gente recebe um soco violento, porque não há dor maior que a perda de um filho. Mas aceitamos, foi Deus quem decidiu.

D. Maura não tinha o que dizer. E ela, que viera ali para dar apoio! Já sabendo de antemão o que ouviria em resposta, a-

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inda assim fez uma pergunta: - O que o senhor faria ao assassino do seu filho, se ele caísse nas suas mãos? O homem retomou a palavra como se estivesse se desviando do que lhe foi perguntado: - Aquele menino sempre nos fez felizes. Que filho maravilhoso tivemos! Que santo o céu nos mandou! O que mais po-

deríamos querer? Já não basta ter tido um santo dentro de casa nestes anos todos? - duas lágrimas deram brilho às suas pala-vras: - O que temos a fazer é rezar pela alma do Gino... mas rezar muito mais por aquele que matou. Pobre coitado, este sim, é sofredor! Com sinceridade, gostaria que não o apanhassem. Para quê? Para que seja castigado? Não é com violência que se cura um doente e este criminoso é um doente; precisa de médico e de oração; e não de um cárcere.

VII

Nada mais havia a fazer naquela casa. Neste lugar, felizmente, não eram necessárias palavras de conforto. Quem ali en-

trasse é que saía confortado. Despediu-se a professora, que foi acompanhada pelo policial. Já no portão, D. Maura perguntou sobre Gino, como se de nada soubesse e foi inteirada de determinadas minúcias, que

preferia ignorar. Soube também que casa e quintal de D. Etelvina estavam ainda sendo revirados, palmo a palmo à procura de pistas, de

rastros, de impressões digitais. A capela seria usada para a visitação pública das duas crianças, pois que a casa de S. Leonel, se encontrava interditada também, sendo vasculhada. A máquina de arroz, que estava vigiada por policiais que impediam a entrada de curiosos, ainda continha o cadáver do padre na mesma posição em que fora encontrado, à espera da sua vez de receber as atenções. E o celeiro do doutor também já se encontrava vigiado, ninguém poderia tocar em nada por enquanto.

- Está sendo um trabalho dos diabos! - dizia o policial - As autoridades fazem um trabalho tão minucioso, que até o final do dia não terão terminado. Saindo da loja, começarão na máquina de arroz. São fotografias em todos os ângulos, análise de distância entre uma coisa e outra, vestígios aos milhares, mas que parecem nada ter em comum com o crime - gargalhou - E nem desconfiam que foi descoberto outro cadáver! Quando souberem, vão ter um ataque.

- Qual médico está fazendo as necropsias? - perguntou a professora. - O Dr. Benito. Se soubesse antes que havia tanta gente morta, teria trazido algum ajudante. - E onde está ele agora? - Quem? O Dr. Benito? Acabou o trabalho com as crianças e vai ter de esperar um bom tempo até acabarem as investi-

gações na máquina de arroz, antes de examinar o padre; depois, recomeça tudo com aquele rapaz do paiol!

VIII

Dr. Benito, médico que viera para as autópsias, encontrava-se em frente à loja conversando com um policial que o punha

a par das investigações. D. Maura aguardou pacientemente que ele tivesse um tempo para ela e depois se apresentou: - Doutor, sou uma das professoras da vila e preciso falar-lhe em particular. - Particular? - fez um gesto de dúvida - Só se for rápido, porque tenho muito o que fazer. D. Maura, com voz firme e olhando-o diretamente nos olhos, sublinhou cada palavra: - É demorado. É sério demais e

tem de ser agora! - fez breve pausa para que ele pudesse entender a profundidade daquelas palavras e depois arrematou: - E sei que tem tempo antes de iniciar novo serviço.

Sem esconder contrariedade, Dr. Benito abriu os braços num gesto bem definido, perguntando: - E onde se pode falar em particular nesta babel? - A escola é o melhor lugar. O senhor pode vir comigo? Esgueirando-se entre as pessoas, ziguezagueando à procura de espaços para passagem, chegaram à escola que se encon-

trava ainda com portas e janelas abertas. D. Maura indicou sua própria cadeira para que ele estivesse mais à vontade e ela sentou-se numa cadeira de aluno. O

médico sentou e encarou a mulher com certa má vontade: - Pronto, professora. - olhou no relógio: - São dez horas e vinte minutos; temos algum tempo. - Preciso pedir algo que, com certeza, o senhor vai relutar em atender. Mesmo assim, vou fazer o pedido. Um outro cor-

po foi encontrado no celeiro do Dr. Luciano. Um menino ainda, também assassinado e também precisando de autópsia.

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- Estou sabendo. - Pois é a respeito dele que quero falar. Venho pedir que, quando fizer o laudo, coloque o horário provável de sua morte,

ligeiramente modificado para mais tarde. - Devo falsificar um documento, afirmando que o rapaz morreu mais tarde; é isso mesmo? - É isso mesmo. - Mas, se nem fiz o exame, se não estou sabendo qual foi o instrumento usado, nem a que horas foi o crime, como vou

mentir dizendo que morreu mais tarde? Mais tarde de qual hora? E, mesmo que soubesse, devo ser honesto para o bem da justiça. Estabelecendo a hora do crime com a maior exatidão possível, será mais fácil descobrir quem foi o autor.

- Pois eu lhe digo qual foi a hora exata do crime, digo qual foi o instrumento usado e quais foram os motivos... não ape-nas deste último encontrado, como de todos os outros! - e arrematou: - E sei também quem foi o autor!

- Não me diga! - fez o médico, com ar de mofa - Ah, já sei! A senhora é a tal adivinhadeira oficial da vila! A professora retrucou às maneiras pouco amáveis: - Doutor, estou falando sério e quero ser levada a sério. - Desculpe. Continue. - Disse e repito que sei tudo a respeito destes crimes; sei que o criminoso já pagou pelo que fez porque está morto tam-

bém; a justiça dos homens não precisa mais dele. - Quer dizer que mais um corpo foi encontrado além daquele que está no celeiro? - Não. O assassino está morto, mas mesmo que não estivesse, não poderia ser responsabilizado por coisa alguma. Sofreu

uma perturbação mental e enlouqueceu... acho que posso usar este termo: louco. - Só a senhora conhecia este tal perturbado? Ninguém mais? Conversei com uma porção de pessoas e nenhuma delas me

falou sobre alguém da aldeia que sofresse perturbação mental. - Nem poderia. Como o senhor mesmo afirmou, sou a única pessoa a saber que ele sofreu uma paranoia! E foi por este

motivo que pedi para lhe falar agora e a sós. - Tudo bem, não se exalte! E como concluiu que este... louco tenha sido o autor de tantos crimes? Aliás, era um louqui-

nho bem inteligente, concorda? Enfadada com a ironia daquelas palavras, a professora não se deu ao trabalho de responder; tirou da bolsa o caderno de

Valentino, estendeu-o ao médico: - Leia! - O que é isso? - Um caderno, não vê? Caderno de escola de um dos meus alunos. - Desculpe, mas não entendi - e riu - Como pode um caderno de criança, um caderno de escola, conter alguma coisa im-

portante, ainda mais para ajudar a desvendar assassinatos? - Este pode! Se duvidar, leia! O homem apanhou o caderno e abriu-o; ia começar a folheá-lo, mas a professora interrompeu seu gesto: - Não! Assim, não! Ao contrário, de trás pra diante. O caderno foi colocado na posição invertida. Vendo que havia muito o que ler, o médico acomodou-se melhor e foi pas-

sando os olhos rapidamente, com evidente falta de interesse. Vez ou outra, sem interromper a leitura, sorria balançando a cabeça como se aquilo fosse uma tolice, sem relação alguma com algum assunto tão sério como dissera a professora. Mas, à medida que continuava, sua expressão foi sendo alterada, seu interesse foi sendo evidenciado.

D. Maura acompanhava aquela alteração fisionômica sem saber se era sua vez de tripudiar sobre o orgulho do médico, ou de deveria lamentar aquilo tudo.

IX

Acabada a leitura, o caderno ficou aberto na última anotação e o médico, em silêncio. Devolveu o objeto sem pronunciar

palavra e, quando falou, o tom era bem outro: - Entendi o seu pedido, professora. Desculpe haver duvidado. Manteve longa pausa, em que parecia refletir e depois, pa-

ra afastar os próprios pensamentos, brincou: - Por que não me entregou este caderno antes? Teria me poupado muito traba-lho em cima destes cadáveres. Aí estão todas as coisas que eu precisava descobrir, nem teria precisado de autópsia! - e riu um riso amargo.

D. Maura sorriu também e o Dr. Benito continuou: - Entendo que queira preservar a memória do seu aluno. Só não compreendo como é que, mudando o horário da morte

deste último rapaz encontrado, possa encobrir o nome do criminoso.

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- Só hoje encontrei estas anotações. O Gino estava sendo caçado como criminoso e, ao ler este diário, senti-me na obri-gação de dar uma pista aos grupos de busca sobre o lugar onde poderiam encontrá-lo. É evidente que não mencionei que iriam encontrá-lo morto a machadadas. Eles que o descobrissem! Mas demoraria muito, porque os homens estavam vascu-lhando muitos quilômetros em volta e não lhes ocorreria procurar ali, a tão poucos metros, entre porcos e galinhas.

O profissional da medicina acompanhava a narrativa, procurando acompanhar o raciocínio: - E o que fez a senhora? - Para fornecer a pista, precisei contar a verdade... ou melhor, só parte da verdade. Contei que, à hora do recreio, Valen-

tino saiu para alimentar os animais e que vi, por esta janela, quando Gino se juntou a ele e o acompanhou. - Isto é verdade ou... digo, os dois meninos se reuniram ainda na rua, antes de entrar, ou foi apenas uma maneira usada

pela senhora para orientar as buscas? - É verdade. Foi o Gino quem abriu o portão e até me pareceu estar encontrando dificuldade com a trava, porque demo-

rou bastante. E Valentino, que poderia abrir o portão com maior rapidez, não o fez; ficou mais atrás, do jeito como conta no diário: temendo ser atacado pelas costas. Eu percebia que conversavam, como se não existissem desconfianças por parte de Valentino. Depois entraram, Gino sempre à frente. Mas nada disso importa agora.

- Importa sim! Se aconteceu desta maneira, mais alguém pode tê-los visto juntos... as próprias crianças da escola, por exemplo. Não era hora de intervalo?

- Sim, mas pouco importa que os tenham visto juntos, porque eu mesma contei este fato ao grupo de buscas. Disse que, à hora do recreio - veja bem: à hora do recreio - Gino e Valentino entraram naquele quintal. E todos da vila sabem que o re-creio é às dez horas.

- Ah, agora percebi! Se eu colocar que Gino foi morto por volta das dez horas, alguém poderá lembrar que, às dez horas - ou seja, à hora do recreio - os dois estavam juntos; e, como Gino morreu neste mesmo horário e neste mesmo local, so-mente Valentino poderia tê-lo matado. É isso mesmo?

- Exatamente! Não quero que liguem nenhuma destas mortes ao nome de Valentino. Não vai trazer benefício algum sa-ber a verdade, pois ele também se foi.

O homem concordou. Depois, passou a caminhar num constante vai e vem à frente da sala, de uma parede a outra como

o fazem os professores diante de seus alunos. Caminhando, parecia raciocinar com maior clareza e, como que pensando, foi falando em voz alta:

- Interessante! Parece que ele tinha certa propensão ao desequilíbrio mental, mas agia de modo tão normal, a ponto de jamais perceberem anormalidade alguma. Enquanto eu retirava centenas de ferrões do corpo dele - e mesmo depois - con-versei com algumas pessoas e, por unanimidade, sua morte foi lamentada. Só ouvi elogios. Valentino era bom, era inteligen-te, auxiliava a quem precisava, sabia desenhar como ninguém, parecia um homenzinho, sempre educado, era respeitador, conversador, cumpridor das obrigações. Valentino era o melhor aluno da classe, Valentino isso, Valentino aquilo... Tudo de bom! Ninguém, nenhuma pessoa apontou um único defeito neste menino; não se comentou nada de negativo. Nada! No entanto... veja só! A maior tragédia que tive oportunidade de ver de perto em toda a minha vida, foi justamente esta; e cau-sada por uma criança amável que, por algum motivo, tirou o pé da realidade. O motivo aparente de haver perdido o equilí-brio foi o aparecimento de uma aranha que ele diz ser gigantesca... e ele mesmo narra que sentiu algo na cabeça quando a viu; que preferia o raio: “Prefiro dois raios, mas nenhuma aranha, nunca mais!” Acho que foi assim que ele se expressou...

A professora acompanhava o fio daquela conversa quase monologada, que não se detinha: - O fato aparente de haver tirado o pé da realidade foi a aranha. Esta aranha foi aumentada pela imaginação, pelo medo

de estar sozinho, perdido num lugar desconhecido, numa tempestade. Antes disso houve a morte de um passarinho. Mas parece haver algo anterior a estes fatos. Ele não começou a escrever a partir da aranha. Começou antes. Alguma coisa ocor-rida anteriormente à morte do pássaro conduziu a toda esta bomba. Que pavio foi este? O que teria levado à mania de perse-guição pela morte de uma ave? - olhou para D. Maura, que se apoiava com os cotovelos na carteira e confessou:

- Professora, a primeira parte da leitura, eu fiz de um modo... por que não dizer? Sem vontade alguma. Não prestei a mí-nima atenção, porque acreditei ser absurdo um caderno escolar ter algo a ver com os crimes. E só agora percebo que, naque-la primeira anotação está a chave. Desculpe, mas a senhora poderia ler a primeira página, em voz alta, por favor?

A mulher sorriu como que se desculpando pelo mesmo motivo: - Agora que o senhor falou... bem, eu também não dei grande importância às primeiras anotações. Achei tudo tão infan-

til, tão ingênuo! Eu li, por falta de atividade melhor. Mas que importância pode ter isso agora? Que benefício vamos tirar disso, se o que tinha de acontecer não pôde ser evitado? Se soubéssemos antes, quem sabe... mas agora? Não seria perda de tempo e sofrimento em dobro ficarmos refletindo sobre algo que não tem conserto? Para que mergulhar num oceano de sofrimento, doutor? Sem certeza do que vamos encontrar lá embaixo e sabendo, de antemão, que o quer que encontremos não poderá ser trazido à tona, à luz do dia para o conhecimento de outras pessoas?

O médico interrompeu o passeio pela sala e voltou a se sentar: - Não podemos fazer mais nada, é verdade. O que tinha de acontecer já aconteceu, mas insisto que temos a obrigação de

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ir a fundo, desde que daí vamos tirar lições úteis para nós ambos: para a senhora que, sendo professora, lida com crianças. Lidou com o Valentino. Se soubesse antes o que se passava na cabeça dele, será que não teria tomado alguma providência? E, na sua profissão quem pode garantir que, no futuro, não venha a ter em mãos caso semelhante? Se souber hoje quais coisas levaram Valentino à criminalidade, com certeza saberá detectar novos problemas antes que aconteçam. E para mim, como médico, o mesmo conhecimento poderá ser aproveitado nas minhas relações com os doentes.

- Tudo bem! Vamos mergulhar de cabeça neste caso e, seja lá o que for que aprendamos com ele, será um benefício pelo menos para nós dois. E leu a primeira página:

“Hoje é dia 14 de agosto, quarta-feira. Estou sendo vigiado pelos deuses. Eles estão esperando que eu cometa mais um pecado mortal contra as aves, pra me castigar. Sei disso, porque ontem

recebi dois recados. O primeiro foi na escola, pela D. Maura; depois foi na capela, pelo Padre Nicolau. Ouvi dos dois, o mesmo assunto sobre matar passarinhos. A minha quantia já está vencida e, se eu matar mais um, o

castigo vem dos dois deuses: do deus de gente, chamado Deus mesmo - e do deus dos bichos, chamado caipora. Caipora com letra maiúscula, porque é um deus.

O caipora vai me fazer ficar perdido na Floresta dos Morretes; o Deus de verdade vai me mandar pro inferno quando eu morrer. Sabendo disso, o capeta, que é o deus da maldade, já está todo contente, pensando que sou bobo e que vou aca-bar no meio do fogaréu, lá no inferno dele.

O Padre Nicolau falou de um jeito, contou umas coisas, que fiquei até gelado de medo. Percebi o tamanho do meu pe-cado.

Depois, ele me fez jurar, de joelhos, com as mãos postas, que nunca mais vou matar passarinho. Foi um juramento sé-rio. Parece que Deus ia inspirando ele; ele ia falando em voz alta e eu ia repetindo em voz alta também.

Jurei e vou cumprir. Sei que o diabo vai ficar me tentando, mas tenho de resistir senão minha alma não terá salvação.” - Doutor, o senhor tem razão. Este foi o ponto de partida, como o senhor disse! - A senhora poderia falar suas impressões para compará-las às minhas? - Um conjunto de coincidências que culminou num juramento na capela. - Exato! O ponto chave foi o juramento. As coincidências que Valentino enumera: duas vezes, no mesmo dia, por pesso-

as e lugares diferentes, isso tudo teria passado sem maiores consequências se não houvesse um aprofundamento por parte do padre, levando o assunto para o terreno do pecado mortal envolvendo Deus, diabo, castigo no inferno pela eternidade afora. O medo, no seu mais elevado grau conduziu o garoto ao desequilíbrio, à mania de perseguição e a estes crimes todos. Me-do! Medo! Só isso: medo!

- Sim. Veja as palavras: “O Padre Nicolau falou de um jeito, contou umas coisas, que fiquei até gelado de tanto medo.” Sabe-se lá o quê o padre contou, e de que maneira falou naquele dia! Sabe-se lá de quais artifícios lançou mão a ponto de... a ponto de...

- ... a ponto de Valentino fazer papel tão ridículo como o de se ajoelhar, colocar as mãos em posição de prece e repetir, em voz alta um juramento, frente a um bando de crianças zombeteiras! Papel ridículo, só aceitável por quem estivesse con-victo de sofrer penas eternas no fogo. Veja, professora, a que ponto pode levar o medo em quem não tem ainda capacidade de raciocínio!

- Eu me lembro daquele dia. Falei sobre o caipora porque, em agosto, faz parte do programa escolar os conteúdos sobre folclore. Eu disse, inclusive, que era lenda e não me lembro de haver empregado tom coercitivo, a ponto de assustar criança nenhuma.

- Mas o padre o fez! De propósito, amedrontou o menino. Apavorado, o coitado sentiu drama de consciência tão grande, na razão direta do artifício usado para que se sentisse a pior das criaturas.

D. Maura devaneou por curto lapso de tempo e depois explicou: - Na verdade, Valentino era um menino diferente. Não tinha amigos, não brincava, não conversava com crianças da

mesma idade. Gostava de estar entre adultos e falava com objetos e com animais; falava em voz alta, como se fosse a coisa mais normal do mundo! Todos da vila sabíamos disso e ninguém mais se admirava; todos estávamos familiarizados com tal comportamento; ninguém o julgava com algum parafuso solto, porque a inteligência e as outras virtudes equilibravam e anulavam estas atitudes estranhas.

- Mesmo assim, mesmo conhecendo este comportamento estranho, o padre teve a suprema coragem de fazer-lhe medo! Noutra criança, os mesmos ensinamentos teriam feito muitos estragos; imagine num menino que, como a senhora mesmo diz, era diferente.

Indignado, o médico passou a caminhar outra vez; a falar, a gesticular sem deixar pausa para apartes: - Não hesitou em bani-lo do reino dos céus, por conta própria! Não hesitou em condená-lo ao inferno, como se fosse um

juiz, como se fosse o próprio Deus! Falar em pecado sem perdão a quem ainda acredita em cegonha e papai-noel! Que tipo

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de conversa foi esta que, ao invés de despertar o amor, o carinho pelos animais e o amor ao próximo, acabou por despertar o medo, o remorso, a consciência pesada e o horror a Deus? E qual coisa pode ser mais nociva do que acreditar que Deus seja pior que o diabo? Que tipo de aula de catecismo foi esta que, em lugar de desenvolver o uso do raciocínio, incutiu mentiras prontas e acabadas como verdade indiscutível? Que tipo de ensinamento foi este que levou a matar seres humanos por von-tade própria, para escapar ao castigo de matar um passarinho sem querer? Por que levar uma criança a acreditar que a morte de um bicho era erro sem perdão? O que o padre conseguiu com esta psicologia? Conseguiu fabricar um louco, conseguiu cinco assassinatos - inclusive o dele - e conseguiu matar um menino, de tanto medo!

Por um momento, Dr. Benito ficou mastigando sua revolta e, depois, voltou-se para D. Maura: - Desculpe, professora! Desculpe esta explosão, mas não me contive! Eu vou ajudar a preservar a memória do seu aluno,

sim... Mas, na minha opinião, isso é um erro.

X

- Como um erro? O Valentino, a maior vítima, será lembrado com ódio por coisas que, absolutamente, não foi responsá-

vel? É isso que o senhor prefere? - Não. Minha intenção é outra. Na minha opinião, este caderno deveria ser conhecido por todos. Deveria ser analisado,

estudado a fundo, comentado, divulgado em todos os idiomas, em todos os países, por todos os meios de comunicação, por todos os meios possíveis para que não venha a se repetir, nunca mais, um banho de sangue semelhante, motivado pela igno-rância! Todos os psicólogos, educadores, médicos, chefes religiosos, professores, babás, empregadas domésticas, estudan-tes, mães, pais, tios, avós, vizinhos... todos! Todos os que têm contato com criança têm obrigação de conhecer este caderno para que saibam, antes de se meterem a ensinar, as consequências do ensino mal orientado. Estes educadores de mentira, para terem menos trabalho com os pequenos, infundem-lhes terror tão grande, que os levam a agredir e matar! Pobres crian-ças loucas assassinas, fabricadas dentro de casa, dentro da escola, dentro da igreja por quem se mete a ensinar sem ter, eles mesmos, noção alguma de nada!

Silenciou. Voltou a se sentar; encarou a mulher, respirou fundo e recomeçou em tom mais brando: - Professora, é muito sério isto que a senhora tem em mãos. O caso Valentino poderia ser um símbolo, um espelho a to-

dos os que têm contato direto com crianças... Por favor! Reflita bem no que vai fazer com este segredo que veio cair justa-mente à sua frente! Torne-o algo útil a alguém! Mostre-o ao mundo! Divulgue-o! Propague esta mensagem, não a deixe morrer em suas mãos!

Ansioso, o Dr. Benito esperava pela resposta. D. Maura, após longo silêncio, respondeu: - Não, doutor! A maldade e a ignorância ainda andam de mãos dadas e a passos largos sobre a Terra. Poderiam não en-

tender nosso objetivo e levar o caso a outro extremo. Poderiam ver nisso um endeusamento à loucura, um elogio aos assas-sinatos, uma desculpa aos crimes hediondos, uma maneira cômoda de cometer desgraças, escondendo-se sob o manto ina-tingível da insanidade mental, jogando a culpa na má orientação recebida. Poderia ser uma faca com dois cortes. Prefiro apenas livrar o nome do Valentino e, se tragédias semelhantes ocorrerem pelo mesmo motivo, não vou me sentir culpada. Culpados continuarão a ser aqueles que, como o senhor se referiu: por comodidade ou para que consigam um lugar à direita do Senhor, continuam a usar práticas medievais como meio de educar.

O médico ia cotar-lhe a palavra, mas D. Maura não o permitiu: - E não é só isso, Dr. Benito. Muitos antirreligiosos poderiam vir a explorar o fato para influenciar pessoas mostrando,

não as consequências negativas do uso do medo na orientação das crianças e, sim, as religiões todas, como bode expiatório desde que o caso Valentino teve, como mola propulsora, um juramento feito num templo religioso, partindo de um padre. Ninguém procuraria saber se ele era um padre de verdade ou um quebra-galho por falta de um sacerdote. Veio de dentro da igreja, partiu de um padre e pronto! Muito anticristo se formaria à sombra do caso que temos em mãos. As religiões todas ficariam sob suspeita; e o direito a uma religião, o direito de acreditar em Deus são dos poucos direitos que restam aos po-bres. Religião ainda é um elemento indispensável.

- Mas falseando a verdade, iludindo crianças, promovendo o medo é um erro a compensar outro. - Concordo. Mas vejo a religião - qualquer que seja ela - como uma janelinha por onde se enxerga o céu, não como o te-

to azul do mundo, mas como um mistério que leva a pensar, a raciocinar. Há pessoas, como os pais de Gino, que vivem Deus, sentem Deus, conhecem Deus, mesmo sem ter religião. Outras pessoas têm necessidade deste apoio. Há tempo para tudo, doutor! No futuro, a própria consciência de cada um vai frear os maus pendores, vai ditar normas de comportamento sem necessidade de templos feitos de tijolos. Por ora, é muito perigoso mostrar uma igreja como fabricante de um louco pois daí, a ideia se tornaria generalizada e todos os demais templos seriam considerados fábricas de loucos. É isso que mui-tos repórteres fariam com este caderno.

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Dr. Benito manteve-se avaliando os prós e os contras e depois, opinou: - Nisso, a senhora tem razão. Os próprios repórteres torceriam os fatos e inventariam outros, de acordo com seus interes-

ses... Promoção de assassinatos, endeusamento da loucura, promoção de crimes hediondos praticados à sombra das mentiras propiciadas pela religião. Seria o caos!

Caminhou até a janela, olhou sem ver o que acontecia lá fora e retornou, argumentando: - Mas veja bem, professora: Há um outro aspecto da mesma questão. Apenas a senhora e eu sabemos as causas da tragé-

dia de Vila Verde. E como foi que ficamos sabendo? Heim? Como foi? D. Maura indicou o caderno que estava ainda sobre a carteira. - Isso mesmo! Só ficamos sabendo porque o Valentino anotou tudo, a partir da causa que desencadeou o resto. O impor-

tante neste diário não é que tenha revelado ter sido ele o assassino; nem quando, nem como, nem onde. O importante é que registrou a causa! Tendo esta causa, não precisaríamos do resto. Está me acompanhando?

A mulher acenou afirmativamente e ele continuou dando corpo ao raciocínio: - Muito bem! Agora, eu pergunto e preste bastante atenção: Quantos Valentinos, em contato com educadores de mentira

também mataram por medo idêntico e não deixaram por escrito as suas razões? Quantos crimes terão acontecido no passado e quantos virão a acontecer no futuro, pelos mesmos motivos? Veja bem: o medo do inferno é muito poderoso! Nós lemos nos jornais todos os dias, fatos arrepiantes, crimes em série cometidos por uma só pessoa, sem que se descubram as causas. É cômodo demais concluir que alguém enlouqueceu e exterminou a família inteira. Se ficar provado que ficou louco, o caso acaba num manicômio e fim! Quem levaria um demente a julgamento? Ninguém! O coitado do louco acaba encerrado num hospício, sem ajuizamento e fica lá, apodrecendo em vida. Um psicopata, mesmo que explique seus motivos, não é levado a sério... nem poderia, porque os motivos de um louco só têm sentido pra ele mesmo.

A professora ouvia, sem saber onde o outro queria chegar. Ele prosseguia: - Não é levado a sério, porque as causas que apontaria para seus crimes, mesmo sendo verdadeiras, se afiguram sem sen-

tido, incoerentes. Imagine o Valentino num tribunal, explicando seus porquês: “Matei em legítima defesa para ficar mais tempo longe do inferno, por causa de um passarinho.” Faz sentido?

- Não. - Para juiz, promotor, advogados, assistência e jurados não faria sentido e até explodiriam em gargalhadas; mas para o

Valentino fazia sentido, sim! Para o Valentino era tão significativo, que matou metade da Vila Verde! E não matou mais, porque foi morto antes... por abelhas! E será que crimes em massa, praticados por uma só pessoa não poderiam ser funda-mentados na mesmíssima causa? Ou seja: consciência pesada por algum “pecado” e vontade de ficar por mais tempo distan-te daquele braseiro? O Valentino explicava suas razões por escrito, ao mesmo tempo que eliminava pessoas e, só por causa deste caderno, ficamos sabendo que é possível matar por medo do inferno!

Os argumentos do médico eram embaraçosos, assim como a profundidade do seu raciocínio: - Um louco escreveu o motivo de sua loucura! Isso é maravilhoso! Quem dera todos eles fizessem o mesmo! E novamente fez uma pergunta que só admitia uma resposta: - Alguma vez na sua vida, a senhora supôs que alguém pudesse enlouquecer e matar por medo inferno? - Não. Se não fosse pelo que acabamos de ler, impossível imaginar tal coisa. Voltando ao passeio naqueles poucos metros, o médico permanecia em silêncio, meditando. Em seguida, parou em fren-

te à mulher, frisando: - Assim como nós, ninguém mais no mundo procuraria o medo de Deus como motivo, num criminoso. Revelando o con-

teúdo deste caderno, os psiquiatras teriam um campo a mais de pesquisa porque, em se tratando de dementes, os psiquiatras trabalham no escuro, com suposições, hipóteses, ensaio e erro... Mais erros do que acertos. Conhecendo o caso Valentino, os médicos de um manicômio poderiam rever a história de cada interno por este novo prisma e, daí, facilitar a cura. É ver-dade que muitos dos medos que levam à demência não se referem ao inferno; há outras causas. Mas quantos outros estarão em camisa de força, cujos medos são fundamentados na mesma causa que enlouqueceu Valentino? Se os crimes deste me-nino fossem descobertos quando ele ainda estivesse vivo, seria envolto numa camisa de força, sem possibilidade de cura porque ninguém conheceria suas causas.

Dr. Benito juntou as pontas dos dedos num gesto característico: - Cura! Cura, professora! Este caderno possui elementos de cura a pobres insanos com mania de perseguição. E quais e-

lementos são estes? Bastaria que desfizessem seus medos; que se mostrasse a verdade sobre Deus e o diabo! - E que verdade seria esta, doutor? Qual é a verdade sobre Deus e o diabo? - Eu não sei! Não sei eu, não sabe a senhora e ninguém sabe também! Se ninguém conhece a verdade sobre Deus e o di-

abo, como é que se contam mentiras para suprir a ignorância? Eu não sei qual é a verdade; mas sei que não é verdade que se vai para o inferno por causa de um passarinho. E, posso não saber o que acontece às almas dos mortos, mas consigo distin-guir muito bem quando se trata de uma inverdade sobre as mesmas almas. E isso que o Padre Nicolau incutiu na cabeça de Valentino é uma mentira das mais primárias e não se precisa ser religioso para saber.

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Deu um profundo suspiro, pigarreou: - Professora, é tão fácil ajudar a curar certos desequilibrados mentais e a senhora tem nas mãos, esta ajuda. Por que se

recusa? Este diário pode, não apenas curar alguns poucos já acometidos pelo mal como pode, principalmente, prevenir o desajuste de muitas outras crianças. É muita responsabilidade esconder este segredo. É verdade que, no Valentino, as conse-quências do medo foram ao mais distante dos extremos. Em outras crianças, o estrago pode ser menor; no entanto, aconte-cem estragos provenientes do temor a Deus. As crianças podem ser acometidas de maior ou menor medo; medo do castigo de Deus. Medo de Deus! - e não Amor a Deus!

- Entendo seu ponto de vista; sei que fala em benefício de outras pessoas, mas não seremos nós a salvar o mundo. Quan-to a mim, já aprendi bastante por hoje. Jamais terei, para com meus filhos e os meus alunos, a mesma atitude de negligência em relação aos seus problemas. Faça o senhor, o mesmo com seus clientes, seus familiares, seus conhecidos, e teremos feito nossa parte. De resto, não compete a nós. Continuo a lhe pedir que ajude a manter o nome de Valentino longe disso tudo.

O Dr. Benito relutava. O que tinha em mente era um benefício muito maior que aquele que a professora propunha. Um quadro deste, com provas irrecusáveis poderia abrir novos caminhos para a psicopatia, mudar os rumos da própria religião, mudar conceitos sobre a educação através do medo. Seria egoísmo, para manter no anonimato um criminoso já morto, dei-xar de abrir novas perspectivas. Ele entendia perfeitamente os pontos de vista da mulher, mas estes pontos de vista eram frágeis demais em face do bem que daí poderia advir. Depois de uma pausa, recomeçou a andar e cortou o silêncio e seu tom era cadenciado, como se falasse consigo mesmo, numa mistura de indignação e aceitação: - Garoto bom, inteligente, solidário, educado, respeitador, conversador, raciocínio rápido, um artista; menino que todo pai gostaria de ter como filho. Um homenzinho que nasceu feito, a quem não faltava qualidade alguma para se tornar um cidadão de bem, um homem honrado. Não precisava de ajuda religiosa nenhuma! Mas um “sábio” de boa vontade - sabemos que não foi por maldade - quis ensinar-lhe coisas para que ele se tornasse exatamente aquilo que já era por natureza: bom, solidário, educado, respei-tador... E o que fizeram com ele? Um nada! Um pior que nada! Um ser nocivo, um louco, um assassino! É verdade que Valentino trazia certa propensão ao desequilíbrio mas, com tato, com compreensão, ensinamentos à altura de sua capacida-de, esta disfunção eliminar-se-ia por si mesmo.

XI

D. Maura, que acompanhava aqueles argumentos em silêncio, aparteou: - Doutor, quem lhe disse que Valentino tinha propensão ao desequilíbrio mental? Ele parou de andar e, admirado, fixou nos olhos da professora: - A senhora me contou! - Não! Eu disse que ele era diferente por não ter amigos, não brincar, falar com paus e pedras. Falei que sofreu paranoia

por causas externas; mas não disse em nenhum momento que ele tinha propensão a qualquer desequilíbrio. - E falar com objetos e bichos não denota desvio de comportamento? Não demonstra um início de psicose, propensão ao

desequilíbrio mental? - Não. - Como? - Na sua opinião, João do Apocalipse tinha algum desequilíbrio mental? E São Francisco? - Desculpe, mas - deu uma risadinha - não vejo pontos de contato. - Pois saiba que ambos conversavam com animais. - É mesmo? - o tom era de surpresa sincera. - É sim! João Evangelista, na Ilha de Patmos, falava com as pedras e com os peixes, que vinham em cardumes ouvi-lo

discursar. São Francisco entendia os pássaros e era entendido por eles. Este santo via vida inteligente nas plantas; percebia que as próprias moléculas vegetais se entendiam entre si e agiam movidas por raciocínio e não apenas por forças naturais. Além disso, algumas filosofias orientais afirmam que os homens, quando crescerem interiormente, poderão compreender a linguagem dos demais reinos. Afirmam que as próprias pedras respondem ao carinho quando as pessoas as alcançam com sentimentos de amor; garantem que conversar com os demais reinos da natureza sempre foi fenômeno comum aos santos, aos iluminados e aos místicos iniciados. Sinceramente, jamais enxerguei o Valentino como um menino com tendências ao desajuste mental; ao contrário, eu o considerava desigual por ser tão puro, que conseguia fazer-se entender pelas árvores, pelos animais e até pelos seres inanimados. E quem é que pode afirmar com certeza, que ele não entendia, de verdade, a linguagem destes seres inferiores?

Admirado, médico refletiu naquilo que ouvia e encontrou naquelas mesmas palavras, um outro argumento para tentar convencer D. Maura:

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- Pois esta é mais uma razão para abrir o caso Valentino para o mundo! Talvez ele fosse um predestinado, um benfeitor da humanidade, assim como João do Apocalipse e Francisco de Assis, mas cuja missão foi simplesmente sufocada e morta no berço, devido à má orientação.

Dr. Benito parou defronte à janela aberta; depois virou-se e retomou a palavra: - Um santo, um ser anormal, um desequi-librado... que importa? Era um ser humano e, como tal, tinha de ser respeitado! Ninguém tinha o direito de amedrontá-lo com mentiras - a ele e a ninguém! Se tudo o que se sabe sobre a vida após a morte são suposições, qual a necessidade de poluir a mente de uma criança com cenas futuras tão cruéis a ponto de fazê-la enlouquecer de medo? Por que não criar ima-gens mais doces para falar às crianças? Se são só hipóteses, o que custava inventar mentiras mais suaves, um mundo mais bonito, um Jesus sorridente e anjos esvoaçantes? Por que criar a imagem horripilante de um fogo eterno?

O médico levou os cotovelos para trás e os apoiou no peitoril da janela: - A senhora sabe que, para os povos dos países gelados, o inferno não é feito de fogo? Diante da perplexidade da interlocutora, continuou: - Para os que padecem os rigores do frio, o fogo do inferno seria um

calmante, uma visão de delícias, um sonho inatingível. Pois nos países gelados, as crianças são enganadas com um inferno feito de gelo eterno, mais frio que aquele que conhecem. Em qualquer quadrante do mundo, sempre visões pavorosas em cima das pobres crianças. A imagem de um inferno medonho acompanha a criança, vida afora! Se as esperanças de encon-trar um mundo mais agradável depois da morte fossem estimuladas, não se veria a quase totalidade das pessoas - mesmo depois de adultas, já idosas, quase centenárias - com tanto medo de morrer. O nosso mundo já é tão triste, tão horrendo, tão cheio de misérias mesmo sem um inferno à nossa espera... Ah, quanta ignorância! Quanto o mundo ainda tem a aprender!

XII

Depois de breve pausa, o médico tomou uma resolução: - Professora, a senhora está certa! O mundo não está preparado

para se defrontar com as desgraças que ele próprio tem propiciado em nome da “salvação de almas”. O povo não tem estru-tura para aceitar a responsabilidade de estar fabricando loucos através de mentiras e usaria o caso de Valentino de maneira deturpada, com interesses inconfessáveis. Os chefes religiosos voltar-se-iam contra a senhora! Veja bem: encontrariam um meio de culpá-la! Promoveriam mil maneiras de esmagá-la frente à opinião pública pelo acontecido nesta aldeia. Diriam que a professora foi relapsa por não procurar saber o que aquele aluninho tanto escrevia; que a professora é quem deveria detectar o problema, pois conhece psicologia infantil e lida diretamente com a meninada! Poderiam, para se inocentar peran-te o público, chegar ao cúmulo de dizer que a senhora teria forjado este diário! Jamais admitiriam os próprios erros. Não podemos salvar o mundo, ainda porque o mundo não toleraria ver o próprio reflexo repulsivo diante do espelho.

Aliviada, D. Maura suspirou e Dr. Benito completou: - Vamos fazer o que nos compete. Livremos o nome de Valentino e nosso dever fica cumprido. Percebo que só o tempo

poderá livrar o mundo destas trevas todas; e não nós! Lamento apenas que as matanças em nome de Deus, se bem que mais atenuadas, não estejam terminadas ainda, por mais que se dobrem os séculos, por mais que o aspecto exterior da Terra se tenha modificado. As Cruzadas, as Guerras Santas, a Inquisição... As matanças em nome de Deus continuam ainda hoje: se não matam o corpo, fazem pior: destroem a alma. E o Valentino é testemunha... Testemunha muda, testemunha morta!

Dr. Benito voltou a se sentar e olhou diretamente nos olhos da mulher: - Professora, este será um segredo somente entre a senhora e eu. - Sim, era assim mesmo que eu pretendia. - Acontece que há mais um detalhe nesta simulação. D. Maura demonstrou surpresa sincera: - Qual detalhe? Alguma pista foi descoberta? - Pista? Nada disso! Valentino era tão inteligente, tão senhor dos seus atos que, mesmo no meio da loucura poderia van-

gloriar-se de haver cometido crimes perfeitos, muito mais perfeitos que os cometidos por profissionais sem insanidade ne-nhuma! Neste caderno ele relata não haver deixado indícios que o poderiam incriminar. Pois não deixou mesmo! Agiu como o melhor dos bandidos, a ponto de fazer inveja a qualquer um deles! Nem impressões digitais, nem pegadas, fiapo de roupa, fio de cabelo, nada mesmo! Estou em contato com investigadores da polícia, com detetives e com repórteres curiosos desde ontem à noite e, a cada momento, fico mais perplexo com a falta de sinais do criminoso. A única pista é este diário e, mes-mo assim, de maneira tão elaborada que, só depois de tudo consumado, ele foi descoberto. Era um geniozinho, o Valentino! E ele escrevia para si mesmo, por falta de alguém com quem se abrir; nem imaginava que pudesse vir a morrer também e que seu segredo pudesse ser revelado. E, se não estivesse morto poderia continuar matando, continuaria anotando cada novo crime e duvido que o pegassem.

- Bem, se as pistas não existem e a única delas não será do conhecimento de mais ninguém, então qual é o detalhe ao

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qual o senhor se referiu? - Preste atenção: sem um assassino, o povo vai ficar procurando. Um desconfiará do outro, ninguém mais vai se sentir

em segurança. Qualquer pessoa que tenha tido o menor bate-boca com qualquer uma das vítimas poderá ser tida como cul-pada. À falta de um criminoso, criarão um bode expiatório. A senhora já imaginou a possibilidade de acusarem a pessoa errada?

De modo reticente, a professora confessou: - Não... Não pensei nisso... - Então, pense! Eu forneço o laudo com a morte de Gino modificada para bem mais tarde. A senhora no entanto, que

possui grande influência entre o pessoal daqui... - Que influência? Sou somente uma das professoras! Nem moro aqui! Chego e saio com o ônibus, não tenho tempo ao

menos pra um bate papo com ninguém. Conheço a todos, porque muitos destes homens e mulheres já foram alunos meus; outros eu conheço por serem pais dos alunos atuais e vêm à escola saber dos filhos. Não tenho influência alguma, acredite!

- Tem, sim! Num aglomerado de casas como este, as pessoas que têm certa cultura são muito respeitadas - olhou para D. Maura, sorrindo: - E depois, há boatos de que a senhora é adivinhadeira.

- Eu sou o quê? - Adivinhadeira! É assim que se referiram à sua pessoa, por haver adivinhado a morte do Padre Nicolau e por saber onde

procurar o Gino. Tudo isso, a senhora fez sem sair do portão da escola! - Adivinhei nada! Com o padre, estava na cara! Não sei como ninguém havia pensado que ele poderia estar morto. Com

o Gino, eu li neste caderno! Onde está o mistério? - Eu sei disso; mas só eu sei. E os outros? A senhora vai querer andar por aí mostrando este diário para provar que não

adivinhou nada? - Não. - Então, se antes era influente por causa da cultura um pouco superior, agora sua opinião vai ser muito respeitada. Po-

dem acreditar que a senhora descubra o autor das mortes com poderes, digamos... paranormais. E poderão até mesmo vir consultá-la sobre o caso. - e riu.

- Ah, meu Deus! E agora? - Na minha opinião, não podendo contar quem é o assassino poderá, pelo menos, adivinhar quem não é. Vai poder livrar

algum inocente de ser acusado. - E o senhor acredita que, se apanharem alguém sob acusação, viriam me consultar a respeito? Nada disso! Linchariam

antes e perguntariam depois. - Pode ser. Revoltados e amedrontados como estão, os moradores daqui poderiam mesmo fazer alguma injustiça. No en-

tanto, vai ser muito difícil provar algo contra alguém pois, desde que vamos deixar limpo o nome de Valentino, vamos ter de fazer de modo que deixe desnorteado quaisquer caçadores do criminoso. Tudo pode depender do horário de cada morte.

XIII

O médico rascunhou os horários das mortes no seu bloco, mais baseado nas afirmações do diário, do que propriamente

pelos resultados das autópsias. E ia explicando em voz alta suas sugestões: - O que me diz do assassino ter matado Anita, ter perseguido Valentino e somente depois ter matado Gino? Nesta ordem,

Gino seria o último a morrer, e não Valentino. - Mas o que teria levado Gino para dentro do paiol do doutor naquela tarde? - E o que o teria levado lá, de manhã? - Contei ao grupo de buscas que eu o vi entrando naquele quintal com o Valentino. Disse ainda que, com certeza, foi a-

judá-lo alimentar os animais. - Pois à tarde, estaria lá pelo mesmo motivo: alimentando os animais, desde que o patrão estava em viagem. - Hmmm... Parece coerente. - Então está resolvido: Gino foi assassinado por último, depois de morto oValentino. - Certo. - Com a enfermeira não é preciso mentir; afinal a dificuldade de se estabelecer o horário de uma morte cresce em pro-

porção ao tempo decorrido entre o desenlace e a autópsia. Pelo estado em que foi encontrado o corpo da mulher, todos sa-bem que fazia dias que o crime havia acontecido. Além disso, o álibi de Valentino é perfeito, ninguém os viu juntos em nenhum momento naquele dia e ninguém viu Valentino quando se dirigia à casa dela. Mesmo assim, é bom deixar margem para dúvidas.

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Escreveu e leu para apreciação da professora: - Etelvina Cardoso - morte em 23 de agosto, 6ª feira, entre as 16 e 23 horas. D. Maura aprovou com a cabeça e ele continuou: - Com o Dr. Luciano não será preciso mentir demais. O Valentino pode ter sido visto depois da aula, ao entrar na resi-

dência para conversar com ele. Além disso, alguém poderia ter visto o médico ao se dirigir à casa da empregada. Portanto, o horário de morte também poderá ser mais tarde, mas não muito.

- Bem pensado. - Vejamos... Dr. Luciano Marcondes – morto no dia seguinte, em 24 de agosto, sábado - entre 14 e 19 horas. Ao escrever o horário da morte do Padre Nicolau, o Dr. Benito susteve a mão e refletiu: - Pelo que conta Valentino, o Padre Nicolau foi morto antes do horário normal de desligar o gerador de energia. - Sim. O próprio Valentino o desligou. - A que horas o motor era desligado, todos os dias? - Às dez da noite. Naquele domingo, foi desligado... Um momento, deixe-me verificar. Folheou o caderno até chegar no ponto procurado: - Aqui está: “Ontem... eu mesmo fui desligar, uns dez minutos depois que matei ele, mas não era hora ainda. Faltava quase uma

hora pra hora de desligar. Os fregueses da loja ficaram resmungando, mas meu pai arranjou uma explicação: é que o padre ia viajar hoje de madrugada e desligou o gerador antes da hora, pra ir dormir mais cedo e não acordar tarde.”

- Se faltava quase uma hora, então ele foi morto pouco antes das nove da noite. Então, vamos modificar bastante o horá-

rio desta morte, pois é possível que alguém se lembre o horário exato em que o motor foi desligado. Os próprios fregueses da loja, ou o pai de Valentino poderão se recordar. Se o laudo acusar um horário muito aproximado, levantarão a hipótese de o padre haver sido morto antes de desligar o gerador. Oras, como poderia morrer primeiro e desligar o motor depois? Procurarão saber quem mais, além do padre, sabia lidar com o gerador e chegarão ao nome de Valentino.

- O que o senhor sugere? - Deixe-me pensar... É bom colocar a morte do padre bem mais tarde; algumas horas de margem, dando tempo do Va-

lentino estar dormindo. Ou, seja, de madrugada! Sim, se ele ia viajar de madrugada como afirmou o dono da venda, poderia ter sido surpreendido numa emboscada, neste momento.

- Entendi. O difícil será estabelecer o que estaria fazendo o padre dentro da máquina, na escuridão antes do sol nascer, sem ter podido acender a lâmpada, pois que o gerador de energia estava desligado... Ah, a Zuleica disse que havia um mo-lho de chaves numa mão e um farolete na outra. Decerto, o farolete estava ligado...

- Não. O farolete estava desligado, isso já foi estabelecido pela polícia. O padre estaria pois, na máquina, de madrugada, em completa escuridão, com o farolete desligado... Não faz sentido.

- Teria sido possível a lanterna haver sido desligada no tombo? Ela poderia estar ligada e, ao bater no chão, ter acionado o botão de desligar. Haveria esta possibilidade?

- Sim, pode-se pensar nessa saída, por que não? O farolete estaria aceso mas, com a queda, acionou o mecanismo e des-ligou por si. Mas o problema não é nosso. É deles. Se me perguntarem, levantarei esta hipótese, mas... Então, vejamos: Sr. Nicolau Dias de Abreu foi morto em 26 de agosto, 2ª- feira - entre 2 e 5 horas da manhã.

- Perfeito. Passou o médico legista a raciocinar sobre a morte de Anita: - O horário de morte da menina não será muito significativo, mesmo porque a faca foi atirada por alguém que estava no

lado de fora da casa. Se a faca estivesse nas costas, mas a menina estivesse de frente para a janela aí sim, o nome de Valen-tino poderia ser lembrado, porque a faca teria vindo de alguém que estivesse no interior da casa, na sala. Mas a morte veio de fora e, como Valentino morava ali dentro, não teria necessidade nenhuma de estar no lado externo. Se quisesse matar a irmã poderia fazê-lo com toda liberdade, de dentro da casa. Anita morreu depois da aula, antes da morte do irmão, mas a mãe costurava e o pai não viu nem ouviu nada.

E escreveu: Anita do Amaral - morta em 26 de agosto, 2ª- feira - entre 13 e 15 horas. - O Valentino, muitos assistiram à sua morte e garantem que foi aí pelas seis da tarde. A agonia foi longa, bem mais de

uma hora até que se tornasse imobilizado por inteiro. Coberto por abelhas assassinas, pode ter morrido pouco antes ou muito depois do que afirmam as testemunhas mas... É um bom horário.

E anotou: Valentino do Amaral - morto em 26 de agosto - 2ª- feira - às 18 horas, aproximadamente. Como que falando consigo mesmo, ia raciocinando em voz alta, para apreciação da professora: - O Gino, agora. Ele terá sido surpreendido quando alimentava os animais, depois que o criminoso perseguiu o Valenti-

no. É preciso fazer as contas. Vejamos: O assassino desapareceu quando Valentino começou a gritar. Mas neste momento, Gino ainda não estava naquele celeiro... Ou estava? Sim, estava! Os gritos de Valentino não poderiam ter chegado até ele, porque a distância é grande e ele se encontrava entre animais barulhentos, que o impediram de ouvir o que se passava fora

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daí. Os homens que acudiram aos gritos eram os que moravam por perto, e um ou dois que passavam pela estrada. Portanto, Gino estava no quintal do Dr. Luciano e foi por este motivo que ninguém o viu entre os que socorreram Valentino.

- Puxa, que ginástica mental, doutor! - Obrigado. - e anotou: Virgínio Mendes - morto em 26 de agosto, 2ª feira - entre 16 e 18 horas. - Mas se Gino morreu às 16 e Valentino morreu às 18, então Gino teria morrido primeiro. - Não. A morte de Valentino foi às 18. Mas começou a gritar e foi atacado pelas abelhas muito antes. A morte é que a-

conteceu às 18 e, neste meio tempo, entre os gritos, as abelhas e a morte propriamente dita, o criminoso teve tempo de fugir, esconder-se no quintal do Dr. Luciano, encontrar Gino e acabar com ele.

- Correto! Enquanto Valentino morria aqui, lentamente entre as abelhas, deu tempo de sobra ao criminoso de atacar o Gino. Neste caso, o Gino foi atacado depois, mas teria morrido antes.

Por enquanto, as conclusões do Dr. Benito estavam sendo somente rascunhadas. O laudo oficial somente sairia no dia

seguinte; seria feito na cidade, em papel timbrado, carimbado, assinado. As causas das mortes estavam estabelecidas sem necessidade alguma de necropsia, pois até qualquer criança do povoado já sabia de quais foram as armas usadas. Os horá-rios aproximados é que seriam os fatores decisivos que as autoridades estavam esperando para o início das investigações propriamente ditas.

E eles constariam no laudo oficial desta maneira: Etelvina Cardoso - 23 de agosto, 6ª feira - entre 16 e 23 horas. Dr. Luciano Marcondes - 24 de agosto, sábado - entre 14 e 19 horas. Sr. Nicolau Dias de Abreu - 26 de agosto, 2ª feira - entre 1 e 5 horas. Anita do Amaral - 26 de agosto, 2ª feira - entre 13 e 15 horas. Valentino do Amaral - 26 de agosto - 2ª feira - às 18 horas, aproximadamente. Virgínio Mendes - 26 de agosto - 2ª feira - entre 16 e 18 horas.

XIV Faltavam dez minutos para o meio-dia quando o Dr. Benito saiu do prédio da escola e se encaminhou à máquina de arroz

para o trabalho em cima do corpo do Padre Nicolau. À despedida, já sabia que ambos os trabalhos à sua espera seriam bem mais rápidos, desde que teria apenas de fazer uns remendos, limpar e maquiar um pouco os cadáveres, tendo em vista que os pormenores já eram do seu conhecimento.

Lá fora, a multidão voltava do cemitério e se dirigia para as cerimônias fúnebres dos dois irmãos. Dentre as pessoas es-tava D. Zuleica, que havia assistido à missa presidida pelo Padre Dimas e aos dois primeiros sepultamentos, mas que ainda se encontrava inconsolável.

- Calma, Zuleica! De que vale lamentar o acontecido? - tranqüilizou-a a companheira. - Não consigo, Maura! Quer saber o motivo? Pois pare aqui e olhe em volta! Pararam ambas à sombra dos eucaliptos. D. Zuleica fez um gesto largo com as mãos: - Veja só esta tal de Vila Verde! Veja só o que restou dela. Nós estamos no centro, na parte onde há maior número de

habitantes, na parte mais movimentada! Movimentada hoje, com este monte de curioso porque, daqui em diante, como estará isto aqui?

E, tomando fôlego foi descrevendo, de modo irretocável, o que seria a aldeia daí em diante: - Vai estar assim: A casa do Dr. Luciano fechada; nem mesmo a empregada abrirá portas e janelas de vez em quando,

porque a empregada morreu junto. E foi continuando na defesa de sua tese: - A casa do Gino ficará vazia pois, sem o filho mais velho que era o braço direito do Seu Vicente, e com o doutor morto,

a família fica sem trabalho. Se os herdeiros não mantiverem no emprego o dono da casa, ele terá de voltar com a família para a cidade.

Respirou profundamente e foi adiante: - A escola é escola, não mora gente nela. A igreja é igreja, também não tem moradores. Na máquina de arroz não mora

gente. A casa do Padre Nicolau fica vazia porque acabou o padre, acabou a família. As pessoas que sobraram da loja, se não morrerem de desgosto, vão virar dois mortos que andam mas, com certeza, não mais vão querer viver aqui.

Fez uma pausa, tomou fôlego antes de encerrar seu discurso: - Este será o centro da Vila Verde, Maura! Habitado só por fantasmas! Só casa mal assombrada, onde ninguém vai que-

rer morar. Isso, sem contar a casa da D. Etelvina, que também vai cair de velha sem ter quem queira habitá-la.

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D. Maura concordou com a cabeça, percebendo que o centro do lugarejo já estava, realmente, desabitado. A professori-nha loura prosseguia:

- Eu não fico mais aqui! Vou me remover pra qualquer canto porque, nesta vila, não consigo mais trabalhar! Por sorte, a remoção vem aí. Entro em licença a partir de amanhã e só volto a encarar sala de aula noutro lugar, não importa onde. Que-ro distância da lembrança desta desgraceira... Ainda mais sabendo que há um criminoso à solta!

- Pare com isso Zuleica! Vamos buscar nossas coisas na escola e trancar a porta que deixei só encostada. - E não vamos ficar pro sepultamento dos outros? - É quase hora do ônibus e vai o resto do dia até sepultar todo mundo. - Não vamos ficar nem para o enterro do Valentino e da Anita? - E como a gente vai embora depois? - Se alguém desse carona seria bem bom... - Tudo bem, vamos ficar. A gente manda um recado pelo ônibus e um dos nossos maridos vem nos buscar.

28 DE AGOSTO - 4ª FEIRA

I O aspecto visual da Vila Verde em nada se modificara. O que a diferenciava dos dias anteriores era a presença de polici-

ais que, agrupados dois a dois batiam de casa em casa, faziam muitas perguntas, anotavam e prosseguiam. Muitos repórte-res, alguns metidos a detetive, reviravam cada folha caída, cada marca de pés nos lugares mais próximos de onde o assassi-no atuara. Fotógrafos e cinegrafistas deliciavam-se na exploração visual de cada ângulo de luz e sombra, em focalizar cada casa, cada canto.

D. Zuleica cumpriu o prometido: não voltou à escola, conseguiu licença médica e sua intenção era renová-la quantas ve-zes fossem necessárias até remover-se daquela aldeia que ela mesma denominou: Vila Fantasma Verde.

D. Maura, em piores condições psicológicas que a companheira, tinha também intenção de tirar alguns dias de licença, mas não agora. Ela queria acompanhar mais de perto as investigações e, se fosse preciso, interviria para desfazer alguma pista que pudesse levar algum inocente ao banco dos réus.

Mas não foi necessária sua intervenção, porque as autoridades não obtiveram êxito algum nas investigações. Não conse-guiram levantar um motivo que, simultaneamente, pudesse levar ao assassinato à tentativa de matar um menino de onze anos; uma menina de nove, um adolescente de treze, um médico aposentado, uma empregada doméstica e um padre - estes três últimos, já idosos, não possuíam inimizades.

- Em nenhum dos crimes, o móvel foi o roubo – respondeu o investigador, em conversa com Dona Maura, quando esta o

interpelou sobre o andamento das verificações. Poderia ter sido vingança, continuou ele, mas não se descobriu contra o quê. Por mais que se levantem hipóteses, não se consegue estabelecer um fio de ligação entre o criminoso e as vítimas todas, ao mesmo tempo. Quando se descobre uma causa possível contra uma das vítimas, este motivo se desvanece ao confrontá-lo com as demais.

A mulher ouviu atenta, procurando saber até que ponto Valentino estava fora de cogitação. O policial continuou: - A única coisa que salta à vista é que todos os mortos residiam no centro do povoado; com exceção de D. Etelvina, que

morava em lugar mais retirado, mas que trabalhava na parte central. É este o único elo que liga uma vítima à outra: viviam todas neste miolo da Vila Verde. De resto, não se consegue apurar coisa alguma. Todas as pistas levam a... Nada! O motivo! Se tivéssemos um motivo, professora! Por menor que fosse, seria possível seguir a pista. Mas não há corrente entre um morto e outro. É sempre assim, veja:

O investigador, depois de longa interrupção da fala para melhor ordenar o pensamento, foi adiante: - Se levarmos em consideração que eram pessoas queridas e que o assassino nutria inveja por este motivo, esbarramos na

exceção feita ao Gino, que morava há poucos dias aqui e não se pode dizer que já era pessoa admirada pelos moradores. Se avaliarmos que todos os mortos eram pessoas de realce, bem sucedidas na vida como o dono da máquina de arroz, o médico e os filhos do vendeiro, também esbarramos nas pessoas da enfermeira e do Gino, pessoas sabidamente sem posses. Se o criminoso tivesse matado apenas as três crianças, poder-se ia pensar que ele não suporta gente miúda; mas matou também três idosos e neste ponto, a pista não tem mais sentido. Se tivesse matado apenas os adultos, poder-se-ia pensar numa desa-vença com os três ao mesmo tempo, no entanto, o que levaria a matar as crianças? Se matasse somente os dois filhos do vendeiro, seríamos levados a investigar algum aborrecimento com os pais, todavia, também por este caminho não se chega a

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parte alguma, porque eliminou também o rapazinho recém chegado ao lugar... Está vendo como é impossível? O investigador, tendo encontrado um par de ouvidos pacientes a toda a sua eloquência, continuou por outro ângulo: - Quanto ao perfil do criminoso, foi traçado o seguinte modelo: Pessoa musculosa, para ter empunhado com tanta força

um machado e um facão. Dotado de pontaria e equilíbrio para acertar, a certa distância, o punhal nas costas da menina. Sangue frio para ter matado, com as mãos, apertando com algum pedaço de borracha, o pescoço da enfermeira - borracha esta não encontrada. Conhecedor de anatomia, para saber onde ferir o médico: a veia jugular; só não se conseguiu saber como o criminoso conseguiu enfiar o caco de vidro no pescoço do homem. Experiente em crimes, para apagar cada vestígio, em todos os lugares onde atuou. Nada mais foi apurado, nada mais se pode ter como certo.

A professora concordou, agradeceu e se retirou, aliviada sabendo que, por mais que investigassem, não descobririam o homicida: Valentino – assim como o motivo: medo de ir para o inferno.

EPÍLOGO

A Vila Verde cresceu. A casa paroquial foi construída no terreno de eucaliptos, antes ainda que o vigário destinado ao lugar ali chegasse. A ca-

pela foi reformada, crescendo em capacidade e em altura, com relógios em cada face da torre. Novos moradores chegaram. A escolinha virou escola agrupada e depois, escola de verdade. Os terrenos baldios deram lugar a casas comerciais e resi-denciais. Loteamentos em todas as direções. E havia muita coisa a ser feita, que o seriam, com maior vagar. A chegada de energia elétrica foi a grande responsável pelo surto de progresso, porquanto a qualidade das terras era o atrativo sempre crescente à lavoura e ao comércio que se instalou à sua sombra.

De distrito, passou a município. De uns para outros, aquele estranho caso era relatado nos mínimos detalhes e Valentino foi sempre lembrado com cari-

nho e mencionado como espécie de herói, por ter sido o único a saber quem era o assassino. Ele o vira, na hora em que matava sua irmã e até fora perseguido por ele. Foi o único que conseguiu salvar-se de suas mãos, mas encontrou a morte entre abelhas africanas. - Se não fosse o ataque das abelhas, Valentino teria podido contar quem foi o assassino, que seria apanhado naquele mesmo dia. Esta era parte obrigatória em qualquer narrativa sobre o fato.

Os únicos que tiveram participação direta naquelas ocorrências e que poderiam fornecer maiores detalhes eram S. Vi-cente e D. Clementina, mas preferiam calar-se a relembrá-los. Foram mantidos no emprego pelos herdeiros do Dr. Luciano e moravam ainda na mesma casa, agora reformada e ampliada. O filho do casal, Elvinho, foi estudar fora por conta dos novos patrões, e por lá ficou.

E hoje, quem passar por aquela estrada, rumo leste-oeste verá, como primeiros sinais de povoação próxima, um grande e bem cuidado cemitério, com túmulos de mármore e granito. Logo depois as primeiras casas, bem próximas umas às outras.

No centro, veículos em trânsito e estacionados; casas recém construídas, uma praça graciosa em redor da igreja, ruas transversais que cortam a rua principal.

Quem passar pela rua principal verá as ruínas de uma casa que, com varanda ampla de pilares retorcidos, demonstra ter sido muito bonita.

Verá mais adiante, na calçada oposta, um prédio desbotado, coberto por poeira e bolor, grandes rachaduras nas paredes envelhecidas pela ação do tempo. Muitas portas de madeira escurecida e apodrecida fazem lembrar uma loja. Esta casa permanece intocada quase como local sagrado porque nela nasceu e viveu até morrer o pequeno herói da comunidade. Ali-ás, aquela rua tem seu nome: Valentino do Amaral.

À sua frente, no outro lado da rua, um outro prédio comprido e nas mesmas condições, que pouca coisa faz reconhecer nele uma máquina de beneficiar arroz.

Referidos prédios destoam daquele centro que começa a borbulhar de vida nova; mas continuam de pé, como museus vivos, quase pontos turísticos que incitam a curiosidade e levam à reflexão, desde que cada pessoa possui em si, certa sim-biose com a morbidez.

O viajante terá, ao chegar naquele centro, um indefinível sentimento de angústia que não saberia descrever. Sentir-se-á inquieto sem poder detectar os motivos.

À saída, bem antes de chegar ao final da cidade poderá ver, ao lado direito, o que restou de uma casa pequenina; quase totalmente coberta por mato, quase invisível atrás de gigantesca moita de bambus, um pé de mangas centenário que nin-guém ousa tocar e, cuja cerca apodrecida se mantém suspensa por viçosas trepadeiras de melão-de-são-caetano.

O viajante que passar por ali sentirá certo alívio por ver-se fora daqueles limites.

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Sobre a autora:

CLEUNICE ORLANDI DE LIMA Nascimento 17, janeiro, 1943 em Junqueira, município:Monte Aprazível - SP. Professora I, II e III, aposentada em 31 de janeiro de 199. Casada com Otávio Batista de Lima em 28 de janeiro de 1965.

SEU MAIOR TESOURO:

3 filhos: Fernandinho, que Deus chamou para prestar serviços no céu

Cleunice Maria de Lima Guimarães Corrêa, Otávio Batista de Lima Filho;

um genro inigualável: Adolfo José Guimarães Corrêa

4 netos encantadores: Otavinho III, Maria Luíza, Emmanuel,

Lúcius. Uma bisneta incomparável:

Maria Cecília.

Não gosto de falar sobre currículo. É uma vaidade pessoal sem a qual a gente passaria muito bem. No meu entender, as criações artísti-cas e intelectuais deveriam ter valor por si mesmas; deveriam ter força intrínseca pelos próprios méritos e realizações. Por mim, não ofereceria currículo. Mas há quem precise deles para referências. E há quem só acredite numa criação se ela vier acompanhada por currículo extenso. Meu currículo é extenso mas, em nada ele poderá modificar para melhor – ou pior - as minhas criações. Em todo caso, aqui está:

FORMAÇÃO: • Graduação:

• Pedagogia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de S. José do Rio Preto; • Estudos Sociais I na Faculdade de Educação de Monte Aprazível; • Estudos Sociais II na Faculdade Riopretense de Filosofia em S. José do Rio Preto; • Geografia -Licenciatura Plena - na Faculdade de Filosofia de Catanduva; • Orientação Educacional, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de S. José do Rio Preto; • Supervisão Escolar para Escolas e 1º e 2º Graus, na Faculdade de Filosofia de Votuporanga; • Administração Escolar de 1º e 2º Graus, na Faculdade de Educação de Monte Aprazível.

• Especialização: o Ensino das Disciplinas e Atividades Práticas dos Cursos Normais: Faculdade de Filosofia, Ciências e Le-

tras de São José do Rio Preto;

• Aperfeiçoamento no Colégio Estadual e Escola Normal Anísio José Moreira, em Mirassol, obtendo medalha de ouro “Honra ao Mérito” através da Fundação Cândido Brasil Estrela: a melhor nota do Brasil: 9,9 fazendo jus ao prêmio estadual “Cadeira Prêmio”, que naquele ano (1965), deixou de existir.

HABILITAÇÔES:

• Geografia, • Psicologia da Aprendizagem, • Didática do Ensino, • Filosofia do Ensino, • OSPB (Organização Social e Política Brasileira),

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• EPB (Estudos dos Problemas Brasileiros), • Educação Moral e Cívica.

ATIVIDADES PROFISSIONAIS NO EXERCÍCIO DO MAGISTÉRIO

• Diretora de Escola e ViceDiretora de Escola e ViceDiretora de Escola e ViceDiretora de Escola e Vice Diretora de EscolaDiretora de EscolaDiretora de EscolaDiretora de Escola

• Professora Efetiva I, II e III. Aposentada desde 31 de janeiro de 1991. • Professora PolivalenteProfessora PolivalenteProfessora PolivalenteProfessora Polivalente

• SubstitutaSubstitutaSubstitutaSubstituta na Rede Estadual, nana Rede Estadual, nana Rede Estadual, nana Rede Estadual, na Escola Edmur Neves, em M Escola Edmur Neves, em M Escola Edmur Neves, em M Escola Edmur Neves, em Miiiirassol;rassol;rassol;rassol;

• ProfessoraProfessoraProfessoraProfessora de Artes no Colégio São Paulo, em Mirassolno Colégio São Paulo, em Mirassolno Colégio São Paulo, em Mirassolno Colégio São Paulo, em Mirassol;

• ProfessoraProfessoraProfessoraProfessora de Redação na Escola Lucy Sicard Neves, em Mirassol.na Escola Lucy Sicard Neves, em Mirassol.na Escola Lucy Sicard Neves, em Mirassol.na Escola Lucy Sicard Neves, em Mirassol.

• Professora de Geografia, OSPB e Estudos Sociais Professora de Geografia, OSPB e Estudos Sociais Professora de Geografia, OSPB e Estudos Sociais Professora de Geografia, OSPB e Estudos Sociais na Escola Anísio José Moreira, em Mirassol.;;;;

OUTRAS ATIVIDADES PROFISSIONAIS

• Bibliotecária na Escola Estadual Prof. José Felício Miziara, em São José do Rio Preto. • BalconistaBalconistaBalconistaBalconista

“Loja Roupadada” em SJRPreto, “Loja Roupadada” em Votuporanga, “Bomboniere Cida”, “Empório Petrocelli”, “Cacareco Bar”, “Loja São José” e Floricultura “Tutti Fiori”;

• Catadeira de café Catadeira de café Catadeira de café Catadeira de café em várias Máquinas de Café, em Mirassol;

• Operária: Operária: Operária: Operária: “Fábrica de Balas Joanida”, em Mirassol;

• RecepcionistaRecepcionistaRecepcionistaRecepcionista e depois enfermeiraenfermeiraenfermeiraenfermeira na “Casa de Saúde São José”;

• Agricultora:Agricultora:Agricultora:Agricultora: Viveiro de Plantas Ornamentais, Horticultura eCultura de Pimentas

• Empresária: Empresária: Empresária: Empresária: Sócia Fundadora da Escola de Computação “Siga Informática”, Mirassol;

• Pintora de Pintora de Pintora de Pintora de óóóóleo sobre tela,leo sobre tela,leo sobre tela,leo sobre tela, com exposições locais e regionais.

PUBLICAÇÕES Autora dos seguintes Livros

• Título: “Depois do suicídio..”, DPL Editora e Distribuidora de Livros Ltda - São Paulo • Título: “Depois do aborto..”, DPL Editor e Distribuidora de Livros Ltda - São Paulo • Título do livro paradidático “O guarda – noturno”, Editora do Brasil – São Paulo

Autora dos Livros Didáticos: • Título: “Professora de Papel – Histórias para Alfabetizar” -

Trata-se de método independente criado dentro de sala de aula, atendendo profundamente nos-sas crianças, pois conhece suas necessidades e deficiências. Alcança alfabetizar dentro de um só ano letivo, sem deixar resíduos de aprendizagem para os anos posteriores. É o único ide-alizado para crianças com deficiência de aprendizagem Em uso em Clínicas de Fonoaudio-logia, em Escolas de Educação Especial para Deficientes Auditivos, em classes para Deficien-tes Mentais, em escolas de todos os estados do Brasil. Encontra-se em uso também fora do pa-ís: Japão, Itália, Portugal, Inglaterra e Estados Unidos.

(Descrição no site: www.professoradepapel.com.br) • Título: “Festa na Escola” - obra para comemorações de eventos cívicos escolares

Outras publicações

• Título: Depois do suicídio..., folheto de 20 páginas com distribuição gratuita a nível nacional e internacional. Republicado por CVVs, Polícia Militar de S.Paulo, Centros Espíritas e particulares, sempre com o propósito de salvar pessoas da morte voluntária. Há 18 anos, vem fazendo campanha contra o suicídio editando e distribuin-do gratuitamente folheto de esclarecimento sobre as conseqüências deste ato.

• Título: Nos caminhos da Mata Uma – Mirassol – 100 anos de Histórias – No prelo – livro com 998 páginas e-laborado a pedido da Prefeitura Municipal de Mirassol

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Co-autora • Participação, com o conto “A última viagem”, no livro “19 Contos”, antologia da Editora Verso, organizada pelo

SENAC e lançado durante a Bienal do Livro em S. J. do Rio Preto, em 87. • Com o subtítulo “A quem já abortou”, no livro “As mães de Chico Xavier”, de Saulo Gomes, pela Intervidas, em

2012

Artigos em Jornais:

• Título: “Quem matou Tuca?”, que motivou um programa de televisão: Globo Repórter: “Ditadura da Balança”, em julho de 77.

• Título: “Carta Aberta ao Governador” ao então Governador Paulista Paulo Salin Maluf, no jornal Folha de S.Paulo em 79; republicada em jornais de todo o Brasil, lida e comentada em programas de rádio e TV, entre es-tes: Hebe Camargo e Flávio Cavalcanti.

• Título: “Faltas abonadas”, publicada pela Folha de S.Paulo, que levou a uma série de artigos dirigidos ao então Governador Paulo Salin Maluf e que motivou o fim dos atestados médicos nas faltas abonáveis dos professores de escolas estaduais, na década de 80.

• Título: “Causas da Decadência da Educação”, série de 11 artigos no “Jornal dos Professores” após pesquisa de 3 anos realizada entre alunos, pais, professores, diretores e pessoas ligadas à Educação.

Artigo em Revista Internacional • Título: “Oração do Ciclista” – na Revista Seleções do Reader’s Digest, em dezembro de 77, sendo a primeira

mulher brasileira a publicar nesta revista americana, para 84 países, em 13 idiomas.

PALESTRAS:

• Título: “Aborto não!” em escolas de Segundo Grau, clubes de jovens e Centros Espíritas. • Título: “O que é o suicídio!” em Centros Espíritas e clubes de jovens. • Título: Alfabetização e Fonética

Para Professores e Especialistas de Educação: de Escolas comuns Públicas e Particulares

Para professores de classes especiais: Deficientes Auditivos e Deficientes Mentais

Para estudantes: Faculdades de Pedagogia e Cursos de Magistério.

Secretaria Estadual de Educação nos Estados de Sergipe e Mato Grosso. • Já atendeu a mais de 450 convites para ministrar cursos e palestras em 410 cidades de 9 estados:

São Paulo, Paraná, Minas Gerais, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Bahia, Paraná, Rio de Janeiro e Sergipe.

INSERÇÃO EM PROGRAMAS DE TV: • Entrevistas jornalísticas nos programas:

• “Momento do voto”, TV Globo em 88, devido ao Movimento Moralizador da Política por ela criado, ob-jetivando esclarecer a população sobre a importância do voto.

• “Ditadura da Balança” TV Globo em 77, sobre os regimes de emagrecimento que levam à morte.

OUTROS • Promotora, em 83, na FLE (Fundação para o Livro Escolar), de encontros com escritores, proprietá-

rios e representantes de editoras do livro didático, onde expôs suas insatisfações quanto à qualidade do livro didático.

MEMBRO DE ENTIDADES E ORGANIZAÇÕES • Membro da UBE: União Brasileira de Escritores.

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HOMENAGENS:

• Título Honra ao Mestre, pelas Escolas Porfírio Pimentel e Cons. Rodrigues Alves, em Macaubal. • Homenageada “Professora do Ano” pelo CPP mirassolense, em 96. • Laureada com o 1º troféu “Mérito Cultural” em 96, pelo Rotary Club e Fundação Cândido Brasil Estrela. • Homenageada pelo Rotary Club 8 de Setembro, em julho de 98, pelo Dia do Escritor.

• Homenageada “Escritora Mirassolense” pela Ass. Comercial, Industrial e Agrícola de Mirassol. • Homenageada “Escritora de Destaque”, na Noite de Homenagens em 98. • Homenagem na Câmara Municipal de Mirassol, pelo Dia da Mulher, em 8 de março de 2006. • Homenagem pelo Rotary Club, pelo Dia da Alfabetizadora em 8 de Setembro de 2006. • Homenagem no Clube da Terceira Idade Encontro com a Felicidade em 2007, pelo trabalho de alfabetização de

idosos que vem realizando voluntariamente em Mirassol, desde 2003. • Homenageada pela Câmara Municipal de Mirassol com o título “Cidadã Mirassolense” no dia 13 de dezembro

de 2008, por indicação do vereador Bill Guarnieri.

PLANTANDO ESCOLAS

Em 2003, aos 60 anos, Cleunice começou a plantar escolas para Alfabetização de Idosos, em projeto criado por ela: Projeto PLIM – Primeiras Letras na Idade Madura.

São salas de aula nos diferentes bairros para ensinar Leitura e Escrita à Terceira Idade, cujas professoras dão aula voluntariamente sob orientação da Professora Cleunice.

Foram criados 11 Núcleos de alfabetização de idosos em bairros diferentes, levando a escola até o aluno e não fi-cando imóvel e indiferente à espera dos alunos. Destas onze, dez classes deixaram de funcionar por falta de apoio go-vernamental, tendo restado apenas a sala de aula da Profª Cleunice.

O Projeto PLIM trabalha em benefício da velhice e velhinhos anônimos que nunca se sentaram numa cadeira es-colar e cujo maior sonho é aprender a ler.

ATUALMENTE

1- Vem compondo, escrevendo e aplicando o Método de Alfabetização para Adultos e Idosos, sob o título: “Al-

fabetizando Gente Grande”. Referido material é composto a partir das necessidades dos próprios alunos da professora Cleunice, que escreve

e aplica a seguir, num processo dinâmico de elaboração, experimentação, observação, correção, reaplicação e ob-servação dos resultados até que haja perfeito encontro de circunstâncias entre criar e aprender, de forma a se tornar trabalho científico, uma vez que são observados todos os passos da Ciência.

2- Outra composição está sendo levada a efeito: “Escola em casa” direcionada a pais que preferem alfabetizar seus filhos em ambiente doméstico.