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CLIMA Estudo Com as alterações climáticas as temperaturas no interior de Portugal podem subir seis graus no verão, a nortada vai incomodar mais os veraneantes e as estações do ano vão diluir-se Ondas de calor podem durar mais de 40 dias Cenários de futuro traçados por equipa da Faculdade de Ciências de Lisboa Texto CARLA TOMÁS Ilustração PAULO BUCHINHO As projeções de fu- turo têm sempre incertezas, dado serem feitas com base em sistemas não lineares, mas cada vez menos dúvidas sobre o que nos espera no final deste século, tendo em conta as altera- ções climáticas. Pegando em dezenas de modelos físico-matemáticos dife- rentes e cruzando milhões de linhas de código, uma equipa de cientistas portugueses da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, integrados no consórcio europeu Euro-Cordex patrocinado pelo Programa Mundial de Pesquisa Climática traçou os cenários previsíveis para Portugal no período 2071-2100. A equipa coordenada pelo geofísico Pedro Matos Soares prevê que as ondas de calor dupliquem de três para seis dias e durem mês e meio cada uma; que as temperaturas no Nordeste do país subam seis graus Celsius (°C); que as quebras de precipitação no outono e na primavera afetem a agricultura; e que a nortada se agrave no litoral no verão, convidando-nos a mudar a época de praia. Tudo isto, no final do século XXI, que, explica o investigador, "como o sistema climático tem uma grande inércia e os oceanos têm uma escala de resposta mais longa do que a da atmosfera, mesmo que se fizesse agora shutdown a todas as emissões, o clima ia continuar a aquecer". Porém, esse shutdown está longe de acontecer. Depois de uma quase estabilização das emissões de dióxido de carbono a nível mundial que durou três anos, estas voltaram a crescer 2% em 2017. "Só se se conseguisse reduzir até 2050 cerca de 10% das emissões globais de gases de feito de estufa (GEE) perante o emitido em 1990 é que se conseguia ficar abaixo dos 2°C de subida média global das tempe- raturas a que se comprometeram os países no Acordo de Paris", em 2015, esclarece Filipe Duarte Santos, geofí- sico que coordenou o primeiro projeto de cenários das alterações climáticas para Portugal em 2006. A ideia de que o mundo pode ficar abaixo dos 2°C é vista como ilusória pela comunidade científica e até por alguns governantes. Na cimeira "One Planet" em Paris, o Presidente fran- cês, Emmanuel Macron, alertou para o facto de se estar "a perder a batalha" para inverter o aquecimento global. Desde a era pré-industrial a tempera- tura média global subiu cerca de C. E "tudo indica que será muito difícil limitar a escalada a I,5°C, tendo em conta a atual trajetória das concen- trações de CO2 na atmosfera, que ultrapassou a barreira de 400 partes por milhão de volume de ar" um valor que existiu no planeta antes de nele existirem seres humanos , explica Pedro Matos Soares. Por isso, os cenários projetados pela sua equipa para os últimos 30 anos do século XXI em Portugal têm por base uma subida média global da tem-

CLIMA calor podem durar mais 40files.quickcom.pt/Files/Imprensa/2018/01-27/0/5_2703134... · 2018-01-27 · Os modelos físico-matemáticos in-dicam que no futuro "vamos ... o que

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CLIMAEstudo Com as alterações climáticas as temperaturas no interior de Portugal podem subir seis graus no verão,a nortada vai incomodar mais os veraneantes e as estações do ano vão diluir-se

Ondas de calorpodem durarmais de 40 diasCenários de futuro traçados por equipa da Faculdade de Ciências de Lisboa

Texto CARLA TOMÁSIlustração PAULO BUCHINHO

Asprojeções de fu-

turo têm sempreincertezas, dadoserem feitas combase em sistemasnão lineares, mascada vez há menosdúvidas sobre o quenos espera no final

deste século, tendo em conta as altera-ções climáticas. Pegando em dezenasde modelos físico-matemáticos dife-rentes e cruzando milhões de linhasde código, uma equipa de cientistas

portugueses da Faculdade de Ciênciasda Universidade de Lisboa, integradosno consórcio europeu Euro-Cordex —

patrocinado pelo Programa Mundialde Pesquisa Climática — traçou oscenários previsíveis para Portugal noperíodo 2071-2100.

A equipa coordenada pelo geofísicoPedro Matos Soares prevê que as ondasde calor dupliquem de três para seis

dias e durem mês e meio cada uma; que

as temperaturas no Nordeste do paíssubam seis graus Celsius (°C); que as

quebras de precipitação no outono e naprimavera afetem a agricultura; e quea nortada se agrave no litoral no verão,convidando-nos a mudar a época de

praia. Tudo isto, no final do século XXI,já que, explica o investigador, "comoo sistema climático tem uma grandeinércia e os oceanos têm uma escalade resposta mais longa do que a daatmosfera, mesmo que se fizesse agorashutdown a todas as emissões, o climaia continuar a aquecer".

Porém, esse shutdown está longede acontecer. Depois de uma quaseestabilização das emissões de dióxidode carbono a nível mundial que duroutrês anos, estas voltaram a crescer 2%em 2017. "Só se se conseguisse reduziraté 2050 cerca de 10% das emissões

globais de gases de feito de estufa(GEE) perante o emitido em 1990 é

que se conseguia ficar abaixo dos 2°Cde subida média global das tempe-raturas a que se comprometeram os

países no Acordo de Paris", em 2015,

esclarece Filipe Duarte Santos, geofí-sico que coordenou o primeiro projetode cenários das alterações climáticas

para Portugal em 2006.A ideia de que o mundo pode ficar

abaixo dos 2°C é vista como ilusóriapela comunidade científica e até poralguns governantes. Na cimeira "OnePlanet" em Paris, o Presidente fran-cês, Emmanuel Macron, alertou parao facto de se estar "a perder a batalha"

para inverter o aquecimento global.Desde a era pré-industrial a tempera-tura média global já subiu cerca de 1°

C. E "tudo indica que será muito difícillimitar a escalada a I,5°C, tendo emconta a atual trajetória das concen-trações de CO2 na atmosfera, que jáultrapassou a barreira de 400 partespor milhão de volume de ar" — umvalor que só existiu no planeta antesde nele existirem seres humanos —

,

explica Pedro Matos Soares.Por isso, os cenários projetados pela

sua equipa para os últimos 30 anosdo século XXI em Portugal têm porbase uma subida média global da tem-

peratura de 4°C face ao registado noséculo XIX. Este é um dos valores maisextremos apontado pelo Painel In-tergovernamental para as AlteraçõesClimáticas (IPCC) da ONU e ao qualrespondem os esforços mundiais de

redução de emissões apresentadosaté agora.

Mais 6°C em Trás-os-Montes

O aquecimento médio global não é

igual em todos os pontos do globo, o

que significa que se pode 'tostar' umpouco mais em alguns sítios. No casode Portugal, pode significar que "emTrás-os-Montes ou em Barrancos, no

Alentejo, os termómetros venhama subir 6°C no verão", alerta PedroMatos Soares. O que implica que, "se

as temperaturas médias neste locaisrondam agora os 32°C, podem vir arondar os 4O°C daqui a pouco mais de

50 anos", acrescenta Rita Cardoso,investigadora da mesma equipa. Jána faixa litoral do país, "as frentes demar funcionam como amenizadorasdo clima", travando a subida da tem-peratura máxima nos 3°C.

Como os modelos indicam que atemperatura mínima também vai su-bir entre 2 e 3°C em média, podendono verão registar mais 4 a 6°C no inte-rior do país, "vamos ter temperaturasmínimas e máximas muito elevadase o conforto humano vai ser muitofraco porque não conseguimos ar-refecer durante a noite, o que podecriar problemas de saúde", esclareceo cientista.

O ano que passou foi o segundo mais

quente desde 1931 em Portugal, deacordo com o Instituto Português doMar e da Atmosfera (IPMA). Em 2017a temperatura máxima esteve 2,4° Cacima do normal, face à média dosúltimos 86 anos e registaram-se trêsondas de calor (uma na primaverae duas no outono), quando a médiaera ocorrer uma por ano. Recorde-se

que uma onda de calor "é um períodode pelo menos seis dias consecutivos

em que a temperatura está 5°C acimado valor médio diário no período dereferência".

Os modelos físico-matemáticos in-dicam que no futuro "vamos ter cincoe sete destas vagas por ano, ou seja, o

dobro do que tivemos no ano passado

com as consequências que se sabemao nível da seca, dos incêndios e dasaúde pública", reforça o geofísico.E acrescenta uma agravante: "Se emmédia as ondas de calor duram entreoito e 12 dias, o que projetamos é queno final do século podem durar maisde 44 dias e nalguns pontos até 55dias, com consequências graves paraa saúde pública".

Um relatório da Direção-Geral daSaúde revela que a onda de calor queatingiu a Europa em 2003 esteve as-sociada a perto de duas mil mortes aci-ma do esperado em Portugal. Sempreque se prevê um fenómeno extremodestes a DGS lembra que "a exposi-ção pode conduzir à desidratação, ao

agravamento de doenças crónicas, aum esgotamento ou a um golpe decalor, situação muito grave e que podeprovocar danos irreversíveis na saúde,ou inclusive levar à morte".

Falta de chuva e mais secas

A seca extrema e severa que afetouo país em 2017 — fruto da conjuga-ção de níveis de precipitação muitoinferiores ao normal, temperaturasacima da média e elevados valores de

evaporação — serve de antevisão do

que pode ainda vir aí. "Habitualmentetemos uma seca e meia em cada 10

anos, mas a expectativa é que daqui a50 anos passemos a ter três a quatrosecas numa década, seguidas ou não",indica Pedro Matos Soares.

Os modelos analisados pela suaequipa permitem projetar para o fi-nal do século uma diminuição da pre-cipitação no inverno, que varia entre5 e 10%, e que será muito maior na

primavera, com perdas de 20 a 40%,mais agravadas a sul. "As quebras são

mais significativas nas estações inter-médias e terão consequências na agri-cultura e na floresta", sublinha o geo-físico. Esta variável conjugada com asubida da temperatura irá aumentara evaporação, o que "fará diminuir adisponibilidade de água à superfície e

tornará a vegetação muito mais seca,aumentando a frequência e a intensi-dade das secas e dos fogos".

Também os dias de chuva vão di-minuir 15 a 20% no Norte do país e

25-35% no Sul. Contudo, há modelos

que apontam para a subida de preci-pitação extrema em 80% no sul do

Alentejo, "podendo quase duplicaros dias de chuva extrema a norte daserra do Caldeirão (ver mapa), devi-do à convecção habitual ali registadacom a possibilidade de se formaremcúmulo-nimbos que vêm do nada". E

projeta uma imagem: "Até podemoster a mesma precipitação no inverno,mas chover tudo num dia. Aí temoscheias, escoamento su-perficial e não ha-verá recarga dos

lençóis freáticosEm conjunto,

todas estasvariáveis, aque se junta o

vento, interfe-rem na quanti-dade de água que seinfiltra nos solos ou permiteencher albufeiras, afetan-do todas as atividadeseconómicas, da produ-ção energética, ao abas-tecimento público,passando pelaindústria, pelaagricultura e atépelos edifíciosonde vivemos e

trabalhamos e quetêm de reagir.

O estudo da equipa daFaculdade de Ciências tam-bém projeta que "a norta-da vai ser mais persistenteno verão, por haver maiscontraste térmico entre o

oceano e a terra, sobretu-do nas zonas costeiras docentro e do Noroeste" e

que haverá menos ventona primavera e no ou-

tono. Com base nestesindicadores, Pedro Ma-tos Soares sugere queno futuro, "se calharvamos ter de tirar fé-rias noutros meses, já que a

nossa época balnear se vai esten-der". Parece certo que as estações doano "vão ter alterações profundas e aprimavera e o outono vão deixar deexistir como hoje os conhecemos".

Com base nos resultados atéagora apurados pela sua equi-pa, Pedro Matos Soares

aconselha: "E importantemostrar às pessoas e aosdecisores políticos quetêm de começar a tomarmedidas conscientes dosdesafios que aí vêm". E su-blinha que "é preciso pegar nesta in-formação e trabalhá-la com equipasmultidisciplinares para quantificar os

seus impactos e o que fazer para a eles

nos adaptarmos". Há alguns projetosem curso nesse sentido, mas insufi-cientes face aos cenários que aí vêm.

A propósito de seca e de enchimento

de albufeiras, o ministro do Ambien-te, João Matos Fernandes, defendeuesta semana, durante uma visita aOurique, que "adaptar quer dizersabermos viver com menos água".Questionado pelo Expresso sobre as

palavras da diretora do FMI, ChristineLagarde, de que "se nada fizermospara travar as alterações climáticas,daqui a 50 anos vamos torrar, assare grelhar", Matos Fernandes admiteque é "um alerta realista".ctomasfiiexpresso.impresa.pt