Clinica Atuacao Com Criancas e Adolescentes

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    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PROGRAMA DE ESTUDOS PS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA CLNICA

    Renata Marmelsztejn

    PSICOTERAPIA PARA CRIANAS E ADOLESCENTES ABRIGADOS:

    CONSTRUINDO UMA FORMA DE ATUAO

    So Paulo

    2006

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    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PROGRAMA DE ESTUDOS PS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA CLNICA

    Renata Marmelsztejn

    PSICOTERAPIA PARA CRIANAS E ADOLESCENTES ABRIGADOS:

    CONSTRUINDO UMA FORMA DE ATUAO

    So Paulo

    2006

    Dissertao apresentada Banca Examinadora da

    Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo,

    como exigncia parcial para obteno do ttulo de

    Mestre em Psicologia Clnica, sob orientao da

    Prof. Dra. Rosane Mantilla de Souza.

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    BANCA EXAMINADORA:

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    Ao meu filho Ariel,

    que me ensina,

    sem saber que sabe,

    a beleza da transformao humana...

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    AGRADECIMENTOS

    Agradeo a Rosane Mantilla de Souza, pela orientao cuidadosa e

    competente, respeitando sempre o meu momento, ritmo e estilo prprios.

    A Isabel Kahn Marin e Elizabeth Becker, pelas contribuies valiosas

    oferecidas no exame de qualificao.

    s psicoterapeutas que participaram deste estudo, pelo carinho e

    disponibilidade com que acolheram meu convite e compartilharam suas

    experincias.

    s crianas e aos adolescentes atendidos pelo Projeto Semear, pela coragem

    de embarcar nessa jornada, confiando, mais uma vez, na possibilidade de

    relaes mais saudveis.

    Aos terapeutas e supervisores do Projeto Semear, por terem contribudo, cada

    um com sua marca, para a construo desse caminho. A algumas pessoas em

    especial, com quem compartilhei mais de perto os sabores e os dissabores de

    todo o processo: Lola, Cac, Lurdinha, Marcia, Bel, Renate, Mnica.

    Ao Instituto Fazendo Histria, pela pacincia e compreenso relativas a meu

    afastamento temporrio.

    Aos meus pais, pelo privilgio de t-los como minha base segura. Ontem, hoje,sempre...

    Ao Ricardo, meu companheiro de vida, por testemunhar com amor meus

    tropeos e conquistas. Sua pacincia e apoio foram fundamentais.

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    SUMRIO

    INTRODUO....................................................................................................... 10

    I. CUIDADOS COM A CRIANA E O ADOLESCENTE......................................

    1.1 A construo dos vnculos afetivos na infncia..........................................

    1.2 Desenvolvimento de uma personalidade segura........................................

    1.3 Prticas educativas e estilos parentais......................................................

    1.4 Psicoterapia e cuidados..............................................................................

    II. CRIANAS E ADOLESCENTES EM SITUAES DE VIOLNCIA...............

    2.1 Definio de maus-tratos........................................................................

    2.2 Tipos de maus-tratos e sua ocorrncia no Brasil.......................................

    2.3 Fatores de vulnerabilidade aos maus-tratos...............................................

    2.4 Conseqncias dos maus-tratos para o desenvolvimento da criana e do

    adolescente............................................................................................

    III. CRIANAS E ADOLESCENTES ABRIGADOS .............................................

    3.1 O abrigo......................................................................................................

    3.2 Mapeamento dos abrigos da cidade de So Paulo....................................

    3.3 Perfil dos abrigados....................................................................................

    3.4 Abrigo e separao: uma marca dolorosa..................................................

    3.5 Crianas e adolescentes abrigados e o Projeto Semear............................

    3.6 Psicoterapia com crianas e adolescentes abrigados................................

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    IV. O PROBLEMA DE PESQUISA........................................................................

    V. MTODO...........................................................................................................

    5.1 Participantes...............................................................................................

    5.2 Procedimento.............................................................................................

    5.3 Anlise dos resultados...............................................................................

    5.4 Cuidados ticos..........................................................................................

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    VI. ANLISE DOS RESULTADOS........................................................................

    6.1 Os clientes em seus contextos de desenvolvimento..................................

    6.2 Desafios dos atendimentos psicoteraputicos com crianas e

    adolescentes abrigados..............................................................................

    6.3 Suporte terico-tcnico...............................................................................

    6.4 Impacto dos atendimentos realizados........................................................

    6.5 Diretrizes para a psicoterapia com crianas e adolescentes abrigados.....

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    CONSIDERAES FINAIS...................................................................................

    REFERNCIAS.....................................................................................................

    ANEXO..................................................................................................................

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    RESUMO

    O objetivo desse estudo foi compreender os desafios enfrentados pelo

    psicoterapeuta no atendimento psicolgico de crianas e adolescentes

    institucionalizados.

    Os participantes foram oito psicoterapeutas, que atenderam mais de um

    cliente, durante o perodo mnimo de um ano. Tratou-se de um estudo

    descritivo qualitativo, por meio de entrevistas individuais, no qual se pesquisou

    a construo de significados pelos sujeitos.

    Os resultados revelaram um terapeuta que acredita ter algo a contribuir,

    implicado em projetos sociais e com interesse genuno pela populao

    atendida. Como caractersticas pessoais destacaram-se: tolerncia,

    persistncia, estabilidade, disponibilidade, flexibilidade e criatividade. Esses

    profissionais viram-se inseridos numa rede, na qual o abrigo ocupa lugar

    central. Evidenciou-se a importncia de ter conhecimentos sobre o contexto e a

    vivncia de crianas abrigadas, abarcando temas como: violncia, abandono,

    luto, funcionamento das instituies, legislao. O abrigo foi percebido como

    tendo papel de suma importncia na vida desses jovens, podendo ser um

    espao de acolhimento e pertinncia ou constituir-se em mais um perpetuador

    da violncia e do abandono.

    Os principais desafios enfrentados pelos terapeutas foram: identificar as

    demandas dos clientes; construir vnculo com os jovens; integrar as diferentes

    realidades do terapeuta e do cliente; lidar com os prprios sentimentos

    despertados pelos atendimentos; construir uma relao de parceria com a

    instituio; compreender o lugar do terapeuta e as funes da psicoterapia para

    jovens abrigados.Conclui-se que a psicoterapia para crianas e adolescentes

    institucionalizados uma interveno possvel de ser utilizada, como meio de

    elaborao da vivncia de violncia e rompimento de vnculos afetivos

    importantes. A partir dos desafios e das solues encontradas, apontaram-se

    algumas diretrizes para seleo e treinamento de profissionais, a fim de

    contribuir para a construo de atendimentos cada vez mais efetivos para

    crianas e adolescentes abrigados.

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    ABSTRACT

    This study is about some challenges psychotherapists have to face when

    attending institutionalized children and adolescents. It is a qualitative analysis of

    interviews with eight psychotherapists that attended more then one client for a

    period of at least one year.

    The meanings brought by those subjects made possible to precise some

    common characteristics: they were all strongly committed to social projects and

    intended to make personal contributions and they also presented tolerance,persistence, stability, availability, flexibility and creativity.

    One important challenge was how to deal with the sociometric network

    surrounding those clients like the shelters conflicts and their dysfunctional family

    of origin. Issues like violence, abandonment, lost of related ones, the complexity

    of the legislation related to institutions were discussed. One paradox was that

    the shelter could represent a safe-continent place, or again perpetrate violence

    and abandonment.

    The psychotherapist had to deal with a pool of different questions like: to

    identify the demands of the clients, to construct bonds with the young, to

    integrate the different realities of the client and the therapist, to deal with their

    own feelings during the treatment, to construct a partnership relation with the

    institution and finally to understand the function of psychotherapy with sheltered

    clients.

    The author concludes that psychotherapy in those conditions could be

    actually a helpful way to elaborate the experience of violence and

    abandonment. She also pointed out some important directions for the selection

    and training of professionals in this area.

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    INTRODUO

    O interesse por essa pesquisa surgiu de meu trabalho, durante um

    perodo de nove anos, como co-fundadora e coordenadora do Projeto Semear.

    Abordar esse tema implica, portanto, refletir sobre a minha trajetria de vida

    profissional e pessoal.

    Era outubro de 1994. Estava formada h menos de um ano, havia

    montado o primeiro consultrio e comeava a trilhar meu caminho profissional.

    Caminhando entre paixes e incertezas de uma jovem psicloga clnica, fui

    convidada a participar da montagem de um projeto de atendimento

    psicoteraputico a crianas e adolescentes abrigados em instituies: o Projeto

    Semear.

    A proposta veio ao encontro de minhas buscas: pretendia seguir uma

    carreira clnica e, ao mesmo tempo, tinha grande interesse em realizar algum

    trabalho de cunho social. Entretanto, nunca havia sonhado com atuar em

    abrigos. interessante rever hoje como fui lanada, meio por acaso, nessemundo, que me era completamente desconhecido.

    Iniciamos o trabalho a partir da demanda de profissionais dessas

    instituies que observaram a necessidade de atendimento clnico para muitos

    dos adolescentes abrigados. No entanto, era muito grande a dificuldade de

    encontrar um atendimento adequado gratuito e, ao mesmo tempo, contnuo e

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    sem rupturas, j que falhas nessas dimenses eram a principal marca na vida

    desses jovens.

    Em um primeiro momento, dedicamo-nos definio da forma de

    funcionamento do Projeto Semear e procura de converter em ao os

    objetivos almejados. Em pouco tempo, essa estrutura estava traada: trabalhar

    com terapeutas recm-formados, que receberiam superviso semanal de

    profissionais experientes na rea clnica, selecionados pelo Projeto Semear.

    Todos seriam voluntrios.

    A partir do contato com os terapeutas e os clientes, fomos colhendo

    informaes, trocando experincias, aprendendo sobre a especificidade da

    tarefa a que nos propnhamos e construindo uma forma de trabalhar. Nessa

    poca, tambm nos demos conta da carncia de projetos que oferecessem

    psicoterapia a essa populao e da falta de bibliografia sobre o tema.

    A experincia direta como psicoterapeuta desses jovens, despertou em

    mim interesse na reflexo sobre as especificidades da clnica voltada a

    crianas e adolescentes abrigados e no desenvolvimento de um conhecimento

    sistemtico sobre esse assunto, tema desta dissertao.

    Optamos por no nos restringir a uma abordagem terica nica que

    norteasse os atendimentos oferecidos. Organizamos, isso sim, grupos de

    superviso em diferentes linhas tericas: psicanlise, psicodrama, psicologia

    analtica, psicologia existencial e sistmica. Entendemos que uma psicoterapia

    eficiente para crianas e adolescentes abrigados no seria garantida pela

    escolha da abordagem terica, mas por um conhecimento da populao

    atendida e pela disponibilidade do acolhimento, com abstinncia dejulgamentos.

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    A populao atendida era formada por crianas e adolescentes

    abrigados em instituies, ou com histrico de abrigamento. Esse foi um

    importante diferencial do Projeto Semear: embora sempre fizssemos um

    contrato e um vnculo com o abrigo, nosso contrato primordial era com a

    criana ou o adolescente, que poderia continuar a psicoterapia, ainda que

    mudasse de abrigo, fugisse, fosse adotada ou retornasse famlia de origem.

    Esses momentos so cruciais na vida de jovens marcados por intensas e

    recorrentes rupturas, e fundamental que, nessa incerteza, possam contar

    com o apoio da psicoterapia.

    Iniciamos o trabalho com dois grupos de superviso, um com

    abordagem psicodramtica (do qual eu fazia parte, como psicoterapeuta) e

    outro com abordagem psicanaltica. Cada grupo era formado por quatro ou

    cinco psicoterapeutas que recebiam, em mdia, dois clientes em seus

    consultrios. Inicialmente oferecemos atendimento a dois abrigos, um decrianas e outro de adolescentes.

    Fomos assim entrando em contato com as histrias dessas crianas e

    adolescentes. Cada cliente encaminhado ao Projeto Semear me surpreendia:

    de um lado eram jovens abandonados desde muito pequenos, provenientes de

    famlias disfuncionais, com histrias de violncia de toda ordem. De outro,

    carregavam uma imensa fora dentro de si e enfrentavam a vida com muita

    coragem. Via neles um preparo difcil de definir e explicar. Aos poucos, fui me

    apaixonando pelo trabalho com essas crianas e me dando conta da

    dificuldade e da magnitude da tarefa, que s vezes chegou a me parecer

    invivel.

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    As supervises eram ricas, com grande troca de experincias. Mas,

    como psicoterapeuta (e tambm como coordenadora), percebia uma grande

    indefinio a respeito do nosso trabalho. Os terapeutas estavam disponveis,

    as supervises eram feitas, mas, a despeito de a demanda por atendimentos

    ser enorme nos abrigos, os clientes custavam a chegar. Logo comeamos a

    receber telefonemas de terapeutas que esperavam, em vo, atender jovens,

    todos encaminhados com urgncia: os clientes no compareciam ou vinham

    em dias e horrios errados. Ou, ainda, muitos chegavam contrariados e no

    voltavam. Acontecia tambm de clientes de um terapeuta serem levados, pelos

    responsveis do abrigo, para o consultrio de outro terapeuta. Tentava-se

    entrar em contato com os responsveis pelas crianas nas instituies, o que

    se constitua numa tarefa quase impossvel: cada semana um educador

    diferente trazia a criana ao consultrio, os tcnicos mudavam de casa a todo

    instante, eram demitidos, rodiziados. As informaes se perdiam dentro dos

    abrigos, e ns assistamos perplexos a esse movimento, sem saber o que

    fazer.

    Parecia-nos totalmente paradoxal! De um lado, uma lista de espera com

    60 clientes e constantes telefonemas insistindo para que fossem atendidos com

    urgncia. De outro, terapeutas disponveis, com supervises semanais, sem

    clientes para atender.

    Houve um momento em que me questionei se o trabalho que

    propnhamos realizar realmente viria ao encontro de uma demanda e se seria

    vivel. Mas alguns casos seguiram em frente, entre eles o de uma cliente

    minha, que vinha toda semana e parecia muito se beneficiar da psicoterapia.

    Esses acertos nos estimularam a continuar, a aprender com as dificuldades e a

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    construir, pouco a pouco, uma forma efetiva de atendimento para essas

    crianas.

    Em termos da organizao do Projeto Semear, elaboramos fichas de

    instituio, supervisor, psicoterapeuta, cliente. Construmos um banco de

    dados, imprescindvel para reunir as informaes vindas de todos os lados.

    Definimos alguns critrios objetivos para obter uma seleo mais apurada dos

    profissionais que trabalhariam conosco, a fim de se constituir um grupo cada

    vez mais harmnico e coeso.

    Passamos a ter encontros semestrais com todo o grupo de

    psicoterapeutas e supervisores, a proporcionar palestras sobre temas

    pertinentes aos abrigos, a propor grupos de formao para os educadores das

    instituies, em suma, a ampliar o objeto de trabalho para alm de um

    atendimento clnico embora esse tenha sido sempre o foco principal.

    Aprendemos a nos aproximar das instituies, aliando-nos a elas,

    pensando junto, o que favoreceu um enriquecimento recproco, a partir de

    experincias to diversas e to semelhantes! Compreendemos que a vida

    desses jovens no abrigo instvel e que, portanto, era parte de nosso trabalho

    conseguir conviver com a instabilidade e adaptar nossa proposta a essa

    realidade. Colocando-nos a favor da mar, as ondas pareciam menos violentas

    e ameaadoras.

    O Projeto Semear funcionou nesses moldes at novembro de 2003,

    quando me afastei da sua coordenao e do Projeto como um todo 1. Naquele

    momento sua estrutura contava com 108 psicoterapeutas, 34 supervisores, 10

    1 Em razo do meu afastamento, no tenho acesso estrutura de funcionamento atual doProjeto Semear.

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    psicopedagogos, 2 psiquiatras e j havia atendido mais de 200 jovens

    provenientes de 41 instituies.

    Ao longo desses nove anos de intenso trabalho, as dificuldades

    enfrentadas suscitaram questionamentos sobre a prtica de atendimento

    psicoteraputico destinada a crianas e adolescentes institucionalizados,

    centro de interesse dessa dissertao.

    A colocao da criana ou do adolescente em abrigo uma medida de

    proteo, disposta no artigo 98 do Estatuto da Criana e do Adolescente

    (ECA), que deve ser aplicada quando os direitos estabelecidos pela lei forem

    ameaados ou violados. O abrigo um servio que oferece acolhimento

    provisrio, em moradia coletiva, a crianas e adolescentes que no podem

    contar com familiares capazes de responsabilizar-se por elas.

    A chegada dos jovens aos abrigos pode se dar de diferentes maneiras:

    alguns so retirados das famlias de origem, a partir de denncias de maus-

    tratos; outros so entregues pela prpria famlia, que alega no ter condies

    de cuidar dos filhos. Aps o acolhimento, o abrigo torna-se responsvel pela

    ateno psicossocial, educativa e jurdica da criana e de sua famlia.

    importante ressaltar que o abrigamento estabelece uma situao na

    qual a criana sai de um contexto de negligncia para entrar em outro que

    tambm pode ser qualificado como fruto da negligncia, no caso, social. Esses

    jovens e suas famlias, em geral, esto submetidos a condies de total misria

    e excluso social. Segundo documento elaborado pela Secretaria Municipal da

    Assistncia Social, em agosto de 2004, na cidade de So Paulo (SAS, 2004),

    26% das crianas abrigadas tm as dificuldades econmicas dos seusfamiliares como o principal motivo para sua institucionalizao. Esses jovens

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    abandonados so, muitas vezes, fruto de famlias abandonadas, que vem na

    institucionalizao o nico recurso possvel para dar uma condio de

    sobrevivncia aos filhos.

    O mesmo documento (SAS, 2004) menciona que, na maioria dos casos

    de famlias disfuncionais, construdas sobre padres de violncia, estamos

    diante de pais que foram submetidos violncia na prpria infncia e que

    tendem a repetir esse modelo de relacionamento com os filhos. So pais que

    tambm no tiveram seus direitos atendidos e no conseguem encontrar um

    lugar na sociedade.

    O ECA (1990/2004) prev a necessidade dessas instituies de

    acolhimento, mas estabelece o seu carter provisrio: o abrigamento deve se

    dar at que a famlia tenha condies de reassumir seus filhos, no devendo

    nunca ser utilizado como uma soluo definitiva para a problemtica em

    questo. O carter de provisoriedade dos abrigos deve ser destacado, pois

    pretende evitar que os mesmos sejam adotados como estratgia de excluso

    desses jovens de sua realidade. Ao contrrio, o abrigo pretende ser um servio

    de reintegrao da criana na famlia e na sociedade.

    Existem vrias possibilidades de a criana ser desabrigada: o retorno

    famlia de origem, a guarda (colocao em famlia substituta) ou a adoo (no

    caso de crianas em abandono ou cujas famlias foram destitudas do ptrio

    poder).

    Embora o objetivo do abrigo seja, em ltima instncia, promover o

    desabrigamento, a prtica nos mostra que, na maioria dos casos, existem

    poucas alternativas viveis. Apenas 11% dos abrigados tm situao legal que

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    permita sua adoo e, entre esses, 84% esto na faixa etria de 8 a 19 anos,

    ou seja, tm poucas chances efetivas de ser adotados (SAS, 2004).

    Busca-se, na maior parte dos casos, a reinsero na famlia de origem.

    Entretanto essa soluo muitas vezes tambm no vivel, principalmente a

    curto prazo, uma vez que os motivos que geraram o abrigamento so

    geralmente de difcil resoluo. Poucas estratgias de reorganizao das

    famlias so realizadas. Espera-se assim uma reintegrao quase que

    mgica, como se os problemas existentes pudessem ser resolvidos apenas

    pela ao do tempo.

    Para que o abrigo mantenha seu carter de provisoriedade, o trabalho

    com as crianas precisaria caminhar em paralelo com uma estrutura de

    atendimento complexo (social, econmico e psicolgico) destinado s famlias.

    S assim as crianas poderiam ser, de fato, reinseridas na prpria famlia, sem

    se repetir o habitual ciclo de abrigamento-desabrigamento-abrigamento.

    Em vista de todo esse contexto social, o abrigo torna-se muitas vezes o

    local onde as crianas crescem e passam boa parte de suas vidas. Assim, o

    princpio de provisoriedade da medida abrigo proposto pelo ECA, ainda

    irrealizvel no quadro de pobreza e da insuficincia de programas sociais que

    atendam as necessidades bsicas de famlias e crianas (SAS, 2004, p. 139).

    Isso nos coloca diante de uma questo paradoxal, que est no cerne da

    proposta de abrigamento: ele deve ser provisrio, mas, ao mesmo tempo, dar

    conta de atender s necessidades da criana pelo perodo em que ela l se

    encontrar. E dar conta dessas necessidades vai muito alm de cuidados

    bsicos com alimentao, higiene, educao e sade. Essas crianas tm asmesmas necessidades que quaisquer outras crianas, provenientes dos mais

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    variados meios socioculturais. Precisam se desenvolver como seres humanos,

    seres de direito, com seus sonhos, sua individualidade, sua subjetividade,

    necessitam ter vnculos afetivos importantes, poder contar com uma insero

    social no futuro.

    fato que a criana institucionalizada passou por vivncias de violncia

    e/ou abandono antes de chegar ao abrigo. Some-se a isso o fato de, aps ser

    acolhida, muitas vezes defrontar-se com o olhar institucional e social que a

    qualifica por aquilo que ela no tem: uma criana semfamlia, semlar, sem

    possibilidades, sem passado (uma vez que deve esquec-lo por ser

    demasiadamente sofrido) e semfuturo.

    E s vezes tambm at sem um presente, j que o abrigo em geral no

    se v como uma boa alternativa para a criana crescer e se desenvolver. O

    tratamento l dispensado costuma ser massificado, sem a possibilidade de

    acolher o que h de mais singular e prprio da criana.

    No abrigo das instituies, as crianas se tornaminstitucionalizadas. Isto quer dizer algo muito definido: l ascrianas so ditas sem famlia, rfs, ou abandonadas e esperada nica sorte grande: serem adotadas O que a consideradoimportante dizer de cada criana sempre o mesmo de todos. Ascrianas so cuidadas, em geral, do mesmo jeito. A histria decada uma aquela supostamente j conhecida: abandono. Osprocessos vividos j esto definidos: jurdicos. O nico futuro

    constantemente aguardado, como j disse: adoo. O passado demarcado e institudo numa histria indesejvel, destituda defamlia. As experincias presentes so constantementedesconsideradas. (CYTRYNOWICZ, 2001, p.118)

    O abrigo pode ser considerado, nessa perspectiva, um no-lugar, um

    hiato entre uma histria preexistente, da qual no se quer lembrar, e um futuro

    incerto, marcado pela desesperana relativa a no se poder ter um lugar no

    mundo.

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    VICENTE (1999) ressalta que condies de vida adversas podem levar

    as pessoas a uma atitude existencial provisria, a um modo de ocupar-se

    apenas com o presente, adotando uma atitude fatalista de que no tem jeito.

    importante construir um sentido para o vivido, pois s assim possvel

    acreditar na construo de um futuro. Elaborar o passado uma das maneiras

    de livrar-se da mera repetio (VICENTE, 1994, p.73).

    Foi a partir dessa perspectiva que se inseriu, no Projeto Semear, a

    proposta de psicoterapia para crianas e adolescentes abrigados. Entendamos

    ser fundamental que um outro olhar fosse dirigido a essas crianas: elas

    precisam ter garantido o direito de ser algum, de ter um passado, uma

    histria, para, a partir dela, poderem construir um projeto de vida e um futuro.

    Precisam sair desse no-lugar e habitar suas prprias vidas, acolhendo as

    dores vividas e recuperando a perspectiva de serem autoras de sua prpria

    histria e no marionetes de um sistema em tantos ngulos perverso.

    Vrias so as possveis definies de psicoterapia, quase todas

    marcadas pelas particularidades de uma teoria de personalidade que as

    sustenta. Adotando uma definio ampla, podemos conceitu-la como um

    processo de comunicao entre um psicoterapeuta e um cliente, realizado por

    meio de um conjunto de tcnicas, destinadas a melhorar a qualidade de vida do

    cliente, a partir de mudanas de conduta, atitudes, pensamentos e afetos

    (WIKIPEDIA, 2005).

    Dentro da grande diversidade de correntes e enfoques aplicados no

    campo psicoteraputico, algumas caractersticas esto presentes em todas as

    formas de psicoterapia:

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    - o contato direto e pessoal entre o psicoterapeuta e o cliente,

    principalmente pelo dilogo, que visa a discutir os problemas

    apresentados, num esforo de compreend-los e buscar uma forma de

    solucion-los;

    - a qualidade da relao teraputica estabelecida no contexto

    psicoteraputico, isto , uma relao que visa a contribuir para a

    gerao de transformaes no cliente.

    Em razo de a psicoterapia abordar tpicos delicados, exige-se dos

    psicoterapeutas uma postura tica, de respeito privacidade do cliente e

    resguardo da confidencialidade das informaes fornecidas. Alm disso, a

    habilitao de quem pode exercer a psicoterapia requer um processo de

    treinamento, dirigido por terapeutas que contam com maior tempo de

    experincia, e/ou estudos dentro do respectivo assunto (WIKIPEDIA, 2005).

    Neste trabalho adotamos essa definio de psicoterapia, por apresentar

    o que h de comum entre as vrias abordagens tericas utilizadas nos

    atendimentos realizados pelo Projeto Semear.

    At o presente momento, falamos sobre a importncia de realizar um

    trabalho psicoteraputico com crianas e adolescentes institucionalizados. A

    questo que se coloca, a partir da, sobre como faz-lo.

    A partir dessa questo, duas vertentes de pesquisa poderiam se abrir. A

    primeira delas seria colocar o foco nas crianas e nos adolescentes atendidos,

    investigando a efetividade da psicoterapia para eles. A segunda vertente seria

    focar os psicoterapeutas, pesquisando os desafios enfrentados por eles ao

    longo dos atendimentos dessa populao especfica.

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    Escolhi a segunda alternativa por consider-la mais enriquecedora, no

    sentido de poder reverter-se em aes prticas, comprometidas com a

    realidade de crianas e adolescentes abrigados. Entendo que, caso possamos

    compreender as dificuldades vividas e as solues encontradas pela

    perspectiva dos terapeutas, teremos condies de, no futuro, contribuir para a

    construo e o treinamento de um psicoterapeuta mais eficiente no

    atendimento de crianas e adolescentes abrigados.

    Um ponto que sempre nos chamou a ateno no Projeto Semear foi a

    enorme lista de desistncias de clientes, em todas as faixas etrias. Esses

    clientes comeavam a ser atendidos e interrompiam o tratamento pelas mais

    variadas questes, entre as quais destacam-se a falta de vontade de fazer

    psicoterapia e as dificuldades da instituio em manter o atendimento, em

    razo de desorganizao, falta de transporte, iseno de comprometimento.

    Observamos, por outro lado, a dificuldade de muitos terapeutas, de

    todas as abordagens tericas, de suportar o trabalho com essa populao:

    muitos no conseguiam realizar um processo contnuo, com comeo, meio e

    fim. Atendimentos de curta durao (de apenas uma sesso a trs ou quatro

    meses) eram constantes e recorrentes, culminando em interrupes abruptas,

    sem um encerramento, o que criava, portanto, mais uma ruptura na vida

    desses jovens. Observamos, alm disso, que muitos psicoterapeutas se

    desligavam constantemente do Projeto Semear, o que nos levou a pensar se o

    tipo de suporte dado a eles era adequado e se o conhecimento prvio que

    tinham dessa populao era suficiente para justificar sua insero neste

    projeto.

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    Por outro lado, muitos atendimentos caminharam bem, sendo notveis

    as mudanas percebidas nos jovens atendidos, que pareciam ter se

    beneficiado da psicoterapia, tornando-se mais fortes e capazes de lidar com a

    prpria vida.

    Entendemos ser fundamental compreender, a partir da prtica realizada

    por alguns poucos profissionais do Projeto Semear, quais so as

    particularidades de atendimento dessa populao especfica.

    Consideramos esse trabalho relevante por ser muito grande o

    contingente de crianas e adolescentes abrigados em instituies e pela

    existncia de vrios projetos destinados a eles. fundamental que se

    compreendam os acertos e erros dos trabalhos oferecidos, para que,

    aprimorados, tornem-se cada vez mais efetivos os objetivos a eles propostos.

    Optou-se por uma pesquisa focada nos psiclogos tambm por serem o

    elo entre criana, abrigo e famlia. Entendemos que o psiclogo pode ser um

    importante agente de mudana, tanto na vida da criana, quanto no olhar

    institucional dirigido a ela.

    Em vista desse complexo de questionamentos, o objetivo do presente

    trabalho definiu-se por compreender os desafios enfrentados pelo

    psicoterapeuta no atendimento psicolgico de crianas e adolescentes

    institucionalizados.

    A dissertao divide-se em sete captulos:

    No captulo I discute-se a questo dos cuidados, com enfoque nas

    necessidades de uma criana para crescer e se desenvolver de forma

    saudvel. Primeiramente, abordada a construo dos vnculos afetivos na

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    infncia, a partir da teoria do apego, formulada por Bowlby. Num segundo

    momento, discutem-se as condies para o desenvolvimento de uma

    personalidade segura, a partir do mesmo autor. Num terceiro momento, so

    discutidos os estilos parentais e as prticas educativas como facilitadores ou

    inibidores para o desenvolvimento emocional da criana. Por fim, discute-se a

    psicoterapia como uma forma de cuidado a ser utilizada quando as condies

    necessrias para a criana se desenvolver de forma saudvel no esto

    garantidas.

    O captulo II versa sobre a condio das crianas e dos adolescentes em

    situaes de violncia. Relata a definio de maus-tratos de menores,

    apresentada pela Organizao Mundial de Sade e adotada nessa pesquisa,

    citando os tipos de maus-tratos existentes e sua ocorrncia no Brasil. Em

    seguida, apresenta alguns fatores de vulnerabilidade aos maus-tratos infantis

    e, por fim, discute as conseqncias da violncia para o desenvolvimento dacriana.

    O captulo III trata de crianas e adolescentes abrigados, e descreve o

    objetivo, as caractersticas e o funcionamento dos abrigos. Apresenta tambm

    uma descrio dos abrigos existentes na cidade de So Paulo, ressaltando as

    vrias modalidades de instituies possveis e o perfil das crianas e

    adolescentes abrigados. Traz tambm algumas consideraes sobre a vivncia

    da separao e do abrigamento, e reflete sobre a possibilidade de o abrigo ser

    um local de cuidado para crianas e adolescentes. Por fim, aborda alguns

    aspectos da psicoterapia com crianas e adolescentes abrigados.

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    O captulo IV fundamenta e define o problema de pesquisa, aborda os

    critrios de escolha dos participantes e apresenta a justificativa para a

    realizao desse estudo.

    O captulo V apresenta o mtodo utilizado, com a descrio dos

    participantes, dos procedimentos e da forma como foi feita a anlise dos

    resultados.

    No captulo VI so discutidos os resultados obtidos por esse estudo.

    As consideraes finais trazem algumas concluses, reflexes e

    implicaes deste estudo no atendimento de crianas e adolescentes

    abrigados.

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    CAPTULO I

    CUIDADOS COM A CRIANA E O ADOLESCENTE

    Cuidado. S.m. 1. Ateno. 2. Precauo, cautela. 3.

    Diligncia, desvelo, zelo. 4. Encargo, responsabilidade, conta. 5.

    Inquietao de esprito. 6. Pessoa ou coisa que objeto de

    desvelos (Ferreira, A. B. de H. Novo Dicionrio da Lngua

    Portuguesa, 1986, p. 507).

    Para que uma criana possa crescer e se desenvolver integralmente nos

    aspectos fsico, emocional, cognitivo e social, precisa receber cuidados que

    garantam o atendimento de suas necessidades. Pela definio do dicionrio,

    cuidar implica estar atento, ter cautela, zelo, ser responsvel.

    importante ressaltar que aquilo que se entende por cuidados reflete

    sempre uma escolha ideolgica, isto , prioriza certos valores em detrimento de

    outros. O cuidado dispensado a uma criana uma prtica cultural, temporal e

    contextualizada dentro de uma perspectiva socioeconmica.

    O que se considera fundamental para transformar um recm-nascido

    num ser humano pleno, capaz de desenvolver suas potencialidades e construir

    um caminho pessoal dotado de sentido, resulta de uma leitura relacional. Essa

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    leitura leva em conta: como se constri o sujeito e que tipo de organizao

    ambiental necessria para que isso ocorra.

    Este captulo vai se estruturar de forma terica, e sero discutidas as

    condies mnimas para que uma criana possa crescer e se desenvolver

    plenamente, com confiana e progressiva autonomia.

    Segundo BOWLBY (1979/1997), a funo do cuidador consiste em,

    primeiro, estar disponvel e pronto a atender quando solicitado e, segundo,

    intervir insidiosamente quando aquele de quem se cuida parece estar prestes a

    se meter em apuros (p.175). Ou seja, cuidar significa responder a

    necessidades humanas bsicas, que vo muito alm de questes materiais.

    SOUZA (1994) realizou uma pesquisa com homens que

    desempenhavam o papel de provedores e, aps o divrcio, passaram a deter a

    guarda dos filhos, tornando-se os cuidadores primrios de crianas e

    adolescentes. A partir dessa experincia, salientam que cuidar de uma criana

    preocupar-se com seu presente e seu futuro, buscando proporcionar-lhe

    condies para que enfrente a vida com autonomia e respeito aos outros. Na

    prtica, esse cuidado com os filhos engloba vrios tipos de aes:

    instrumentais: trocar; alimentar; fazer a higiene; lev-los a atividades;

    ensin-los a sair sozinhos e terem cuidado;

    sade-educao: levar a pediatra, dentista, psiclogo, etc.; escolher a

    escola; incentivar o autocuidado e a responsabilidade;

    orientao: supervisionar tarefas escolares; conversar, aconselhar;

    estimular o convvio com os outros;

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    lazer: brincar; levar a festas; trazer amigos para casa; proporcionar

    atividades culturais, frias; estimular diversidade e ao conhecimento do

    mundo;

    morais: estimular a percepo das conseqncias dos prprios atos;

    ensinar a reconhecer os sentimentos dos outros; ensinar a assumir quando

    erram e a pedir desculpas; ensin-los a compreender e respeitar as

    diferenas; ajud-los a aprender a arcar com as conseqncias das suas

    escolhas; estimular busca pela prpria felicidade; ensin-los a buscar o

    bem comum;

    afetivos: proteger, acolher; estimular a autonomia; ajudar a que no tenham

    medo de si, dos outros, da vida; estimular o autoconhecimento; incentiv-los

    a tentar fazer as coisas e a aprender a errar, a corrigir... e tentar

    novamente; estimular a realizao pessoal; aprender que no se pode

    evitar eternamente o sofrimento.

    O que se pode depreender que cuidar uma situao complexa,

    evolutiva e com implicaes culturais; alm disso, esses cuidados devem visar,

    inicialmente, s condies mnimas para a preservao da vida e,

    posteriormente, s circunstncias que possibilitem o indivduo de se tornar um

    membro pleno de seu grupo social. Nesse sentido, podemos considerar que o

    estabelecimento de uma relao estvel entre o cuidador e aquele que

    cuidado no apenas a base do desenvolvimento pessoal, mas, tambm, o

    alicerce do desenvolvimento da sociedade.

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    1.1 A construo dos vnculos afetivos na Infncia

    de grande interesse para o presente trabalho o que se entende por

    cuidados afetivos e emocionais, e a influncia que tm na formao de uma

    personalidade saudvel.

    Falar sobre cuidados emocionais percorrer o mundo dos

    relacionamentos ntimos que se iniciam, na maior parte das vezes, na relao

    entre os pais (num primeiro momento a me) e o beb.

    Segundo BRONFENBRENNER (1996), a famlia considerada o

    primeiro ambiente do qual a criana participa ativamente. Num primeiro

    momento, as interaes so realizadas de forma didica (relao me-beb).

    Aos poucos, as relaes se expandem dentro do grupo familiar mais amplo,

    formando vrios subsistemas (relaes com o pai, os irmos, os tios, etc.).

    Idealmente, o microssistema familiar a maior fonte de proteo, afeto e

    apoio para a criana. dentro da famlia que se desenvolvem os sensos de

    permanncia (percepo de que os elementos centrais da vida so estveis e

    organizados) e de estabilidade (sentimento de segurana de que no haver

    rupturas desses relacionamentos) (CECCONELLO, ANTONI e KOLLER, 2003).

    A garantia de permanncia e estabilidade faz a famliafuncionar como um sistema integrado, cujo objetivo principal ode promover o bem-estar de seus membros. (CECCONELLO,ANTONI E KOLLER, 2003, p. 46)

    Entretanto, devemos ressaltar que a famlia no a nica referncia

    estruturante para uma criana. O modelo familiar um dos muitos sistemas de

    cuidado possveis, no garantindo per seque a criana se beneficiar desse

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    cuidado e se transformar num indivduo seguro e autnomo. Por outro lado, o

    fato de a criana ser criada longe de sua famlia de origem, tambm no

    significa, por si s, que haver prejuzos em seu desenvolvimento. Muito mais

    importante que qual o sistema de cuidados aplicado a essa criana (famlia

    biolgica, famlia substituta, instituio, etc.) comoesse sistema opera para

    dar conta dos cuidados necessrios e o quanto ele se mantm estvel ao longo

    do tempo.

    A permanncia e a estabilidade, pontos destacados na teoria dos

    sistemas ecolgicos para o desenvolvimento da personalidade

    (BRONFENBRENNER, 1996), vo na mesma direo do conceito de base

    segura defendido pelo psiquiatra ingls JOHN BOWLBY.

    A partir de diversos estudos que realizou sobre os efeitos da ausncia

    materna para crianas, BOWLBY apresenta a teoria do apego, fornecendo uma

    compreenso natureza e origem dos vnculos afetivos, aos processos de

    construo e rompimento dos mesmos, ressaltando sua importncia para os

    seres humanos.

    Nesta pesquisa adotaremos os conceitos da teoria do apego, que

    valorizam a construo dos vnculos afetivos na infncia e elegem como

    fundamentos de uma personalidade saudvel a confiana e a autonomia.

    BOWLBY (1979/1997) define teoria do apego como:

    ... um modo de conceituar a propenso dos sereshumanos a estabelecerem fortes vnculos afetivos com algunsoutros, e de explicar as mltiplas formas de consternaoemocional e perturbao da personalidade, incluindo ansiedade,raiva, depresso e desligamento emocional a que a separao eperda involuntrias do origem(p. 168).

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    Vnculo afetivo pode ser entendido como a atrao que um indivduo

    sente por outro indivduo (BOWLBY, 1979/1997, p. 96). Quando duas pessoas

    esto vinculadas, existe a tendncia de se manterem prximas e se, por

    alguma razo, ocorre uma separao, cada uma procurar a outra com o

    objetivo de reatar a proximidade.

    Essa conduta que visa a diminuir a distncia entre as pessoas

    denominada comportamento de apego. Ele dirigido a um indivduo

    diferenciado, que objeto de preferncia por ser considerado mais forte ou

    mais sbio, j que a funo principal do comportamento de apego fornecer

    proteo. Desenvolve-se a partir do nascimento do beb, atinge seu mximo

    vigor durante o segundo e o terceiro ano e persiste com menos intensidade ao

    longo da vida, sendo parte integrante do equipamento comportamental humano

    (BOWLBY, 1973/2004; BOWLBY, 1979/1997).

    Geralmente a principal figura de apego de um beb a me ou a

    pessoa que exerce a funo de cuidadora. Para que o beb se desenvolva de

    forma saudvel, de grande importncia a forma como a me (ou figura

    substituta) desempenha seus cuidados, para complementar o comportamento

    de apego. A funo daquele que desempenha esses cuidados consiste em,

    primeiramente, estar acessvel criana quando por ela solicitado e, ao

    mesmo tempo, responder solicitao de forma adequada. Ou seja: a criana

    precisa ter garantia de uma base segura, a partir da qual se lance

    explorao, sabendo que poder encontrar conforto e proteo nas situaes

    em que se sinta ameaada.

    O sistema de apego ativado por condies tanto internas quanto

    externas. Por exemplo, uma criana, quando sente fome, frio, dor (condies

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    internas), ou quando est diante de algum evento assustador, ou percebe-se

    longe da figura de apego (condies ambientais), aciona seu comportamento

    de apego e passa a procurar pela figura a ele relacionada.

    Se, na grande maioria das vezes em que isso ocorrer, a figura de apego

    se mostrar acessvel e disponvel, a criana provavelmente construir, com ela,

    uma relao de confiana, que estimular seu crescimento e progressiva

    autonomia. Mas se, ao contrrio, a criana vir-se continuamente desamparada

    por essa figura, pela ausncia fsica ou pela falta de cuidados adequados,

    passar a ter sua confiana no mundo e em si prpria abalada.

    Isso ocorre porque, a partir das experincias vividas, cada pessoa

    constri modelos funcionais do mundo e de si. Um fator central na construo

    desses modelos a idia de cada indivduo sobre quem ou quem so suas

    figuras de apego, onde podem ser encontradas e como respondem s

    solicitaes. O sentimento de confiana de que a(s) figura(s) de apego estaro

    disponveis depende da estrutura desses modelos funcionais (BOWLBY,

    1973/2004).

    Assim, o indivduo vai construindo um modelo de mundo, com figuras de

    apego que se mostram acessveis, confiveis, estveis, amveis; ou, ao

    contrrio, inacessveis, no confiveis, inconstantes, hostis. Ao mesmo tempo,

    vai adquirindo a noo do quanto ele prprio aceitvel (ou no) aos olhos de

    sua(s) figura(s) de apego. O modelo operacional do eu envolve conceitos

    normalmente conhecidos como a auto-estima e a auto-imagem.

    Esses modelos funcionais (da figura de apego e do eu) tendem a

    desenvolver-se de forma complementar. Ou seja: uma criana desprezada temtendncia no apenas de se sentir pouco querida pelos pais, como tambm de

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    acreditar que essencialmente indigna do amor de todos. Ao contrrio, uma

    criana muito amada tende a crescer acreditando que todos a consideraro

    digna de afeto. E a partir desses modelos complementares do mundo e de si

    prprio que cada um elabora prognsticos para o futuro.

    BOWLBY chama a ateno para o papel da experincia real nas

    expectativas que cada ser humano constri para si, expectativas essas que

    sero parte integrante da personalidade futura:

    As variadas expectativas de acessibilidade e receptividade

    de figuras de apego que as pessoas desenvolvem nos anos deimaturidade so reflexos toleravelmente precisos dasexperincias que essa pessoa tenha realmente tido. (BOWLBY,1973/2004, p.252)

    Os comportamentos de apego evoluem ao longo do ciclo vital. Durante a

    infncia, manifestam-se pelo choro, chamamento, tentativas de aproximao e

    protestos vigorosos, quando a criana est sozinha ou em companhia de

    estranhos. Nos primeiros quatro meses de vida, as respostas diferencialmente

    dirigidas so raras e podem ser percebidas apenas atravs de processos de

    observao muito sensveis. Entre quatro e seis meses de vida, essas

    respostas claramente dirigidas a algum se tornam mais evidentes e

    numerosas. Os comportamentos apresentados nesse incio de vida vo se

    tornando cada vez mais complexos, e encontram uma condio mais estvel

    entre nove e dezoito meses de idade. Nessa fase, o comportamento de apego

    j se manifesta, de forma freqente e intensa, em direo figura selecionada.

    Ao longo da vida, esse comportamento diminui em freqncia e intensidade,

    embora se mantenha tambm na vida adulta e costume ser acionado em

    situaes de crise, como em doenas, perdas, situaes eliciadoras de medos(BOWLBY, 1969/2002).

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    BOWLBY (1979/1997) faz uma diferenciao entre comportamento de

    apego e dependncia, ressaltando algumas caractersticas importantes do

    comportamento de apego:

    a) especificidade: os comportamentos de apego so dirigidos para uma

    ou algumas pessoas especficas, numa posio clara de preferncia;

    b) durao: uma ligao persiste por grande parte do ciclo vital,

    dificilmente sendo abandonada, embora possa ser atenuada,

    modificada, ou suplementada por novas relaes na adolescncia;

    c) envolvimento emocional: as emoes mais intensas surgem durante

    a formao, a manuteno, o rompimento e a renovao de relaes

    de apego;

    d) ontogenia: o comportamento de apego em direo a uma figura eleita

    desenvolve-se nos primeiros nove meses de vida, geralmente

    voltado pessoa que lhe dispensar a maior parte dos cuidados, e

    mantm-se ativado at o terceiro ano de vida;

    e) aprendizagem: a partir de experincias repetidas com uma pessoa,

    ocorre uma discriminao entre o familiar e o estranho,

    independentemente das recompensas ou punies experimentadas.

    Assim, uma ligao pode desenvolver-se mesmo que ocorram

    repetidas punies por parte da figura de apego;

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    f) organizao: o comportamento de apego, inicialmente mediado por

    respostas bastante simples, vai se tornando complexo, implicando a

    mediao por sistemas comportamentais cada vez mais refinados,

    que incorporam modelos representacionais do meio ambiente e do

    eu;

    g) funo biolgica: os comportamentos de apego ocorrem em todo o

    ciclo vital exercendo uma funo de sobrevivncia.

    A formao dos vnculos afetivos na infncia tem importncia central

    para o desenvolvimento da personalidade, constituindo-se nos alicerces dos

    pensamentos, das emoes, dos comportamentos e dos valores construdos a

    partir das experincias vividas.

    Os vnculos afetivos e os estados subjetivos de forteemoo tendem a ocorrer juntos. Assim, muitas das maisintensas emoes humanas surgem durante a formao,manuteno, rompimento e renovao de vnculos emocionais.Em termos de experincia subjetiva, a formao de um vnculo descrita como apaixonar-se, a manuteno de um vnculo comoamar algum, e a perda de um parceiro como sofrer poralgum. Analogamente, a ameaa de perda gera ansiedade e aperda real causa tristeza; ao passo que ambas as situaespodem despertar raiva. Finalmente a manuteno incontestadade um vnculo experimentada como uma fonte de segurana, e

    a renovao de um vnculo como uma fonte de jbilo. (BOWLBY,1979/1997, p. 98)

    importante ressaltar que no existe um sistema de cuidados que seja

    bom ou mau em si. Lembrando a definio existente no dicionrio (FERREIRA,

    1986), cuidar ter ateno, cautela, zelo. encarregar-se, responsabilizar-se.

    Seria leviano pensar que h apenas uma forma de responsabilizar-se por algo

    ou por algum. So muitas as formas possveis de cuidar de uma criana, e a

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    crena de serem boas ou ms para o desenvolvimento da mesma est

    fortemente ligada concepo ideolgica que sustenta essas prticas.

    Se quisermos formar seres humanos simplesmente adaptados ao

    sistema, adotaremos uma forma de educao. Se valorizarmos indivduos

    seguros e autnomos, utilizaremos outras prticas educativas.

    A teoria do apego por ns adotada prioriza a formao de indivduos

    capazes de fazer suas prprias escolhas e de construir sua vida com confiana

    e autonomia.

    1.2 Desenvolvimento de uma personalidade segura

    BOWLBY (1973/2004) faz uma extensa reviso de estudos realizados

    por diferentes pesquisadores, com crianas, adolescentes e adultos jovens, no

    intuito de verificar quais seriam os alicerces de uma personalidade considerada

    saudvel. Destaca, como critrio comum de uma personalidade saudvel, nas

    mais variadas pesquisas, uma medida de adaptabilidade, definida como:

    capacidade de se adaptar com sucesso e, portanto, sobreviver longamente em todo um amplo espectro de ambientes fsicos e sociais, especialmente

    quando a sobrevivncia se transforma em cooperao com os outros (p. 395).

    Nesse sentido, adaptabilidade completamente diferente de ajustamento ao

    status quo.

    Com base nesses estudos, verificou que existem fortes razes para

    acreditarmos que a base sobre a qual se constri uma personalidade estvel e

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    autoconfiante a certeza de poder contar com a presena e o apoio de figuras

    de apego. Considera a necessidade de uma base pessoal segura como uma

    caracterstica humana presente em todos os momentos do ciclo de vida,

    embora sua necessidade seja mais urgente no perodo da infncia.

    tambm e no por acaso durante essa fase que o ser humano vive

    o perodo mais suscetvel, no que se refere ao desenvolvimento da confiana

    (ou desconfiana).

    A confiana na disponibilidade de figuras de apego (ou a

    falta de confiana) erige-se lentamente nos anos de imaturidade -lactncia, infncia, adolescncia -, e as expectativasdesenvolvidas nesses anos tendem a permanecer relativamenteinalteradas durante o resto da vida. (BOWLBY, 1973/2004,p.252)

    Os primeiros anos de vida de um beb constituem, ainda que disso ele

    no tenha conhecimento, um perodo crtico de seu desenvolvimento, no qual

    os alicerces de sua personalidade esto sendo assentados.

    A principal varivel para o desenvolvimento de uma personalidade

    segura relaciona-se ao grau em que os pais da criana lhe fornecem uma base

    segura e a estimulam a explorar a partir dessa base. fundamental para a

    criana poder contar com figuras de apoio acessveis e disponveis, com

    sensibilidade para detectar as suas necessidades e se adaptar intuitivamente aelas (BOWLBY, 1973/2004).

    Ressaltamos aqui que, no nosso entendimento, um bom cuidador no

    precisa necessariamente ser a me ou o pai da criana. Para crescer e se

    desenvolver plenamente, transformando-se num membro da sociedade, a

    criana precisa contar com um sistema de cuidados estvel e seguro, capaz de

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    suprir suas necessidades, sendo sensvel inclusive ao fato de que ela cresce e,

    com isso, suas necessidades se alteram.

    BOWLBY (1979/1997) destaca que os seres humanos, principalmente

    as crianas, so mais sensveis s atitudes emocionais daqueles que os

    cercam do que a qualquer outra coisa. Nesse sentido, so de igual importncia

    o que feito e o comoisso feito.

    No papel de cuidadores, fundamental que os pais reconheam e

    respeitem o desejo e a necessidade que a criana tem de uma base segura e

    ajustem seu comportamento a essa necessidade. Isso implica compreender

    intuitivamente o comportamento de apego da criana e, ao mesmo tempo,

    estar disposto a atend-lo, quando for necessrio. Nesse processo

    importante o reconhecimento de que uma das fontes mais comuns de raiva na

    criana a frustrao do seu desejo de ser amada e cuidada, o que provocar

    manifestaes de ansiedade e medo.

    Da mesma forma que os pais (ou cuidadores) precisam respeitar os

    desejos de ligao da criana, fundamental que respeitem e estimulem seu

    desejo de explorar e ampliar suas relaes com outras crianas e adultos, o

    que contribuir para o desenvolvimento de sua autonomia e autoconfiana.

    Uma autoconfiana bem alicerada desenvolve-se em paralelo confiana nos

    pais, que lhe proporcionam uma base segura a partir da qual poder realizar

    suas exploraes (BOWLBY, 1979/1997).

    Uma autoconfiana bem fundamentada, podemosconcluir, , geralmente, o produto de um crescimento lento e noreprimido, da infncia at a maturidade, durante o qual, atravsda interao com os outros, incentivadores e confiveis, a pessoa

    aprende a combinar a confiana nos outros com a confiana emsi mesma(BOWLBY, 1979/1997, p. 165).

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    A essncia de uma base segura a continuidade do apoio oferecido, o

    que implica que as relaes entre os indivduos envolvidos persistam, de modo

    estvel, durante um longo perodo de tempo. Se a manuteno inalterada

    dessas relaes experimentada pela criana como uma fonte de segurana,

    a ameaa de sua perda provoca ansiedade e raiva, e a perda real provoca um

    turbilho de sentimentos, que se manifestam como um processo de luto. Sobre

    esse assunto, falaremos mais detalhadamente no captulo III.

    BOWLBY (1979/1997) descreve dois principais conjuntos de influncias

    para o bom funcionamento da personalidade. O primeiro refere-se presena

    ou ausncia, parcial ou total, de uma figura de apego disponvel como base

    segura necessria a cada fase do ciclo vital. A presena entendida aqui como

    rpida acessibilidade e disponibilidade, e no, necessariamente, a presena

    real e direta. Essas constituem as influncias externas ou ambientais. O

    segundo diz respeito capacidade ou incapacidade de o indivduo reconhecerquando algum merece confiana e se mostra disposto a fornecer uma base

    segura. E, caso haja esse reconhecimento, qual a possibilidade de colaborar

    com essa pessoa, para que se inicie e se mantenha uma relao gratificante

    para ambos.Essas so as influncias internas ou organsmicas.

    Ao longo da vida, esses dois tipos de influncias coexistem e atuam de

    maneira complexa e circular, havendo uma complementao mtua. De um

    lado, o tipo de experincia que uma pessoa tem, especialmente nos anos da

    infncia, influencia fortemente tanto suas expectativas de, no futuro, encontrar

    ou no uma base pessoal segura, quanto sua competncia para iniciar e

    manter relaes mutuamente gratificantes. Do outro lado, as prprias

    expectativas e o grau de competncia do indivduo influem na determinao

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    dos tipos de pessoas com quem se associar e no modo como por elas ser

    tratado. Em razo dessas contnuas interaes, o primeiro padro que se

    estabelece tende a favorecer a seleo de situaes que o levem a persistir.

    por essa razo que o padro das relaes familiares, vivido durante a infncia,

    reveste-se de uma importncia to decisiva para o desenvolvimento da

    personalidade (BOWLBY, 1979/1997).

    BOWLBY (1979/1997) defende que existe uma forte relao causal

    entre as experincias de um indivduo com seus pais e sua capacidade para

    estabelecer vnculos afetivos na vida adulta. Isso ocorre porque os modelos

    representacionais de figuras de apego e do eu, que uma pessoa constri na

    infncia e na adolescncia, tendem a se manter de certa forma inalterados

    durante toda a vida adulta.

    Uma pessoa que nasce e cresce em um lar estvel e afetivo, dentro de

    um sistema de cuidados que supre as suas necessidades, aprender que o

    mundo dotado de pessoas de quem pode esperar apoio, conforto e proteo

    e, mais ainda, saber onde encontr-las. Essa vivncia cria expectativas em

    relao ao futuro de que, ao enfrentar dificuldades, existiro sempre pessoas

    confiveis e dispostas a ajud-la, j que se v, tambm, como algum

    merecedor de carinho e apoio. Essa pessoa olhar para o mundo de forma

    confiante, dispondo-se a enfrentar situaes potencialmente alarmantes de

    forma efetiva, ou, caso julgue necessrio, saber procurar ajuda.

    Paradoxalmente, uma pessoa realmente autoconfiante mostra que no

    , de forma alguma, to independente quanto os esteretipos culturais a

    descrevem. O que define uma pessoa autoconfiante justamente a

    capacidade de mudar de papel quando a situao assim o exige. Ou seja, em

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    alguns momentos ser a base segura a partir da qual uma outra pessoa poder

    agir e, em outros momentos, no hesitar em recorrer a algum que lhe

    proporcione essa base, podendo apoiar-se confiantemente nessa pessoa

    (BOWLBY, 1973/2004).

    Uma pessoa costuma assimilar qualquer novo vnculo afetivo (com

    marido, esposa, patro, terapeuta, filhos) a um modelo preexistente, mesmo

    que esse modelo se mostre inadequado. E espera ser tratado por essas

    pessoas de forma complementar ao seu modelo de eu, independentemente de

    provas em contrrio (BOWLBY, 1979/1997).

    por esse motivo que o comportamento de uma pessoa, visto num

    determinado momento, pode parecer obscuro no apenas para os outros, mas

    para ela prpria: a explicao pode ser encontrada no no contexto da situao

    atual, mas em experincias vividas em outras fases da vida.

    1.3 Prticas educativas e estilos parentais

    Considerando que, como j foi dito, a personalidade adulta , em grande

    parte, o produto das interaes vividas com certas figuras-chave nos anos da

    infncia e da adolescncia, merecem nossa ateno tanto a dinmica dessas

    interaes como seus reflexos no desenvolvimento da personalidade.

    importante lembrar que diferentes culturas priorizam valores diversos.

    Se observarmos a forma como a educao foi sendo pensada e executada ao

    longo da histria, perceberemos que as prticas educativas so coerentes

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    quilo que se entende por criana, por desenvolvimento, e aos objetivos a que

    se quer chegar em cada cultura e em cada perodo histrico.

    Esta pesquisa adota claramente uma concepo ideolgica que

    pressupe e valoriza um sujeito autnomo, responsvel pela prpria vida.

    As autoras CECCONELLO, ANTONI e KOLLER (2003) dedicam-se ao

    estudo da interao pais e filhos. Fazem ampla reviso da literatura sobre

    estilos parentais presentes no contexto familiar e suas prticas educativas,

    como fatores potenciais de proteo ou de risco para o abuso fsico. Utilizam-

    se, para tal, da teoria dos sistemas ecolgicos, desenvolvida por

    BRONFENBRENNER.

    CECCONELLO, ANTONI e KOLLER (2003), citando o autor

    BRONFENBRENNER, destacam trs caractersticas fundamentais nas

    relaes que se estabelecem dentro da famlia: a reciprocidade, o equilbrio de

    poder e o afeto.

    A reciprocidade manifesta-se em qualquer relao didica,

    especialmente no curso de uma atividade conjunta: o que uma pessoa faz

    influencia a outra e vice-versa (BRONFENBRENNER, 1996).

    O equilbrio de poder est presente mesmo em processos didicos

    recprocos, ou seja, numa relao, um dos participantes pode ser mais influente

    do que outro. No caso de uma criana pequena, a participao numa interao

    didica oferece a oportunidade de aprender a lidar com relaes de poder. Ao

    mesmo tempo, essa aprendizagem contribui para o desenvolvimento cognitivo

    e social, pois as relaes de poder esto presentes em variados ambientes

    encontrados ao longo da vida. BRONFENBRENNER (1996) acredita que a

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    situao tima para a aprendizagem e o desenvolvimento aquela em que o

    equilbrio do poder gradualmente se altera em favor da pessoa em

    desenvolvimento (p. 47), uma vez que isso promover o desenvolvimento da

    autonomia.

    A terceira caracterstica apontada nas relaes familiares o afeto.

    Quanto a esse aspecto, entende-se que, quanto mais positivas forem as

    relaes estabelecidas numa dade, maior ser a probabilidade de que os

    processos evolutivos transcorram de forma adaptada (BRONFENBRENNER,

    1996).

    A partir dessas caractersticas desenvolvem-se diferentes estilos

    parentais e prticas educativas decorrentes dos mesmos. Segundo

    CECCONELLO, ANTONI E KOLLER (2003), o estilo parental refere-se ao

    padro global de caractersticas da interao dos pais com os filhos em

    diversas situaes, gerando um clima emocional. As prticas educativas, por

    sua vez, dizem respeito s estratgias utilizadas pelos pais para atingir

    objetivos especficos em diferentes domnios, sob determinadas circunstncias

    e contextos.

    Nas relaes entre pais e filhos, existe uma concentrao de poder na

    figura dos pais, que podem utiliz-lo, a fim de alterar o comportamento dos

    filhos, por meio de duas formas de disciplina diametralmente opostas: a

    indutivae a coercitiva.

    A disciplina indutiva tem como objetivo uma modificao voluntria no

    comportamento da criana, a partir da comunicao direta sobre esse desejo

    dos pais, induzindo-a a obedecer-lhes. Como caractersticas dessa forma dedisciplina, so apontados (CECCONELLO, ANTONI E KOLLER, 1996):

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    a prtica de explicaes sobre as conseqncias do comportamento,

    envolvendo regras, princpios, valores, advertncias morais, apelos

    ao orgulho da criana e ao amor que sente pelos pais;

    o direcionamento da ateno da criana para as conseqncias que

    o seu comportamento pode causar para ela prpria, para as outras

    pessoas e para a situao em si;

    o uso de castigos s no caso de eles se referirem reparao, no

    se fazendo uso de prticas simplesmente punitivas;

    o favorecimento da internalizao moral.

    A disciplina coercitiva, ao contrrio, utiliza tcnicas que reafirmam o

    poder parental, pela aplicao direta da fora e do poder. Como caractersticas

    desse tipo de disciplina, CECCONELLO, ANTONI E KOLLER(1996) apontam:

    a utilizao de punio fsica, privao de privilgios ou ameaas,compelindo a criana a adequar seu comportamento s reaes dos

    pais;

    o controle do comportamento baseado em ameaas de punies

    externas, o que intensifica a percepo de valores como externos.

    A disciplina coercitiva tende a provocar na criana intensas emoes,como medo, hostilidade, ansiedade, interferindo em sua capacidade de ajustar

    o comportamento situao. A punio pode aparecer de duas formas: atravs

    de coero ou pela ameaa de rompimento de vnculos afetivos.

    J vimos, anteriormente, a importncia de a criana poder contar com

    relaes estveis e seguras; j foi citado tambm o quanto a falta de

    estabilidade nas relaes parentais causadora de insegurana e perda da

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    so afetivos e responsivos s suas necessidades, encorajando a

    tomada de decises e o desenvolvimento de habilidades e da

    autonomia.

    Estilo autoritrio: resultante da combinao entre alta exigncia e

    baixa responsividade. Pais autoritrios so rgidos, estabelecem

    regras estritas, sem a participao da criana. Enfatizam a

    obedincia, o respeito autoridade, utilizando-se da punio como

    forma de controle do comportamento. No valorizam o dilogo e a

    autonomia, sendo pouco responsivos aos questionamentos e s

    opinies da criana.

    Estilo indulgente: resultante da combinao entre baixo controle e

    alta responsividade. Pais indulgentes no estabelecem regras e

    limites para a criana, o que no incentiva a responsabilidade e a

    maturidade. So tolerantes em demasia, permitindo que a prpria

    criana monitore seu comportamento. Mostram-se comunicativos e

    afetivos, bastante receptivos criana, com tendncia a satisfazer

    qualquer demanda que lhes for apresentada.

    Estilo negligente: resultante da combinao entre baixo controle e

    baixa responsividade. Pais negligentes so pouco afetivos e pouco

    exigentes. Praticamente no se envolvem com a socializao da

    criana, nem com o monitoramento de seu comportamento. Mantm

    seus filhos distncia, respondendo somente s suas necessidades

    bsicas. Freqentemente esto centrados em seus prprios

    interesses.

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    A partir de uma reviso de vrias pesquisas (Baumrind, 1966; Baumrind,

    1991; Lamborn, Mounts, Steinberg e Dornbusch, 1991; Steinberg, Lamborn,

    Darling, Mounts e Dornbusch, 1994), CECCONELLO, ANTONI e KOLLER

    (2003) destacam a influncia positiva do estilo competente sobre o

    desenvolvimento psicolgico de crianas e adolescentes. Submetidas a esse

    estilo parental, as crianas tendem a mostrar maior competncia social,

    assertividade e comportamento independente. Os adolescentes educados

    dessa forma, por sua vez, apresentam melhores nveis de adaptao

    psicolgica, competncia social e auto-estima, melhor desempenho acadmico,

    maior autoconfiana e menos problemas de comportamento, ansiedade e

    depresso.

    Se, por outro lado, a relao que se estabelece entre pais e filhos carece

    de afeto, reciprocidade e equilbrio de poder, costuma ocorrer prejuzo ao

    desenvolvimento da criana, comprometendo futuras relaes que elaestabelecer (BRONFENBRENNER, 1996).

    Embora se tenha enfatizado, a partir do estudo de CECCONELLO,

    ANTONI E KOLLER (2003), a relao entre pais e filhos, entendemos que os

    diferentes estilos de relao entre cuidador e criana, originrios de prticas

    educativas diversas, manifestam-se tambm quando o cuidador no tem

    relao parental.

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    1.4 Psicoterapia e cuidados

    At o presente momento, verificamos como se processa o

    desenvolvimento normal de um indivduo, enfatizando as condies ideais para

    que uma criana cresa e se desenvolva, expressando todo o seu potencial em

    direo progressiva autonomia e autoconfiana.

    Entretanto, na vida prtica, muitas vezes encontramos situaes bem

    distantes dessas condies ideais. Vemos inmeras crianas submetidas a

    relaes de cuidado ineficientes, que acarretam prejuzos srios para o seu

    desenvolvimento e comprometem suas relaes futuras com o mundo e com

    os outros.

    A psicoterapia, questo central dessa dissertao, pode ser considerada

    um sistema de cuidados que traz em si um posicionamento ideolgico. Ela est

    inserida num padro cultural e busca capacitar o indivduo a fazer escolhas e a

    responsabilizar-se pelo prprio destino.

    ACKERMAN (1958/1986) aponta a cura como objetivo amplo da

    psicoterapia. Mas o termo cura traz em si mltiplos significados. Segundo

    esse autor, cura significa, em primeiro lugar, a remoo teraputica dos

    sintomas, entendidos como sinais especficos de funcionamento perturbado

    que caracterizam uma doena particular (p. 286). Entretanto, continua

    ACKERMAN (1958/1986), muitos psicoterapeutas consideram esse significado

    limitante. Um segundo sentido da cura, como efeito do tratamento, o

    fortalecimento da personalidade do cliente, de modo que ele no tenha uma

    nova recada.

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    Uma terceira idia do termo cura envolve a expectativa de que a

    personalidade do paciente possa sofrer uma mudana, tornando-se capaz de

    perceber e utilizar seu potencial na direo de uma vida mais livre, eficiente e

    produtiva, com a satisfao das suas necessidades pessoais. E mais do que

    isso: que o indivduo possa tornar-se capaz de amar, compartilhar com os

    outros prazer e responsabilidade, contribuir positivamente para o bem-estar da

    famlia, dos amigos e da comunidade. A partir dessa definio mais ampla,

    pode-se dizer que:

    O teste final da cura , naturalmente, o desempenho dopaciente na vida em si, o alvio de seu sofrimento e medo, suaconfiana e coragem para enfrentar a vida, sua capacidade decrescimento, de viver totalmente, de amar e compartilhar com osoutros a grande aventura da nica vida que ele conhece.(ACKERMAN, 1958/1986, p. 289)

    Sob essa perspectiva, a psicoterapia est ligada idia da busca de

    significado. O significado da vida, segundo ACKERMAN (1958/1986), no deve

    ser procurado no indivduo isolado, pois os valores estabelecidos so

    derivados das relaes pessoais e sociais que ele estabelece. Esses valores

    estruturam a orientao do indivduo para o seu lugar e papel na famlia e na

    comunidade mais ampla, constituindo a auto-imagem, a imagem dos outros e a

    percepo da realidade social.

    A aquisio de uma imagem de eu saudvel envolve umapercepo correta das imagens dos outros e de suasnecessidades, um respeito pela dignidade, integridade e valor dosoutros, uma crescente capacidade de igualdade nas relaeshumanas, se comparada com uma orientao ao poder e srelaes exploratrias entre os seres humanos. (ACKERMAN,1958/1986, p. 291)

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    Essa viso mais ampla de psicoterapia vai ao encontro da definio

    apresentada anteriormente nesta pesquisa, pois considera como objetivo da

    psicoterapia melhorar a qualidade de vida do cliente, a partir de mudanas em

    suas atitudes, seus pensamentos, afetos e comportamentos (WIKIPEDIA,

    2005).

    Pelo fato de esta pesquisa estar focada no atendimento infncia e

    adolescncia, consideramos importante destacar algumas questes especficas

    relativas ao atendimento dessas faixas etrias.

    ACKERMAN (1958/1986) considera que a psicoterapia infantil tem

    algumas particularidades. A primeira delas refere-se ao fato de a criana ser

    comumente trazida ao psicoterapeuta sem ter muita idia sobre o que pode

    significar para ela a ajuda psicolgica. Atribui ao terapeuta infantil trs funes

    distintas: a de pai/me auxiliar; a de educador, que promove o crescimento e o

    domnio progressivo da nova experincia; a de agente teraputico, que facilita

    a expresso, o alvio e o entendimento mais completo do conflito da criana.

    No exerccio dessas funes, o psicoterapeuta um parceiro dos pais

    da criana, j que oferece cuidados, proteo e afeto para a mesma.

    responsabilidade do psicoterapeuta infantil promover o desenvolvimento de

    uma relao emocional ntima com a criana, de forma a facilitar a

    comunicao e o entendimento. Esse processo leva tempo, pois no se pode

    esperar que a criana confie no terapeuta desde o incio. A confiana nessa

    relao surge gradualmente, aps uma sucesso de testes realizados pela

    criana, com o intuito de verificar as intenes do terapeuta em relao a ela.

    Conforme essa relao se desenvolve, a criana sente-se mais segura e

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    confiante, permitindo ao terapeuta o acesso, cada vez maior, sua vida

    emocional.

    Assim, o vnculo construdo entre o psicoterapeuta e a criana fornece a

    ela experincias emocionais positivas com um adulto, experincias essas que

    talvez tenham sido deficientes na famlia dela (ACKERMAN, 1958/1986).

    Isso porque, segundo esse autor, crianas perturbadas so

    freqentemente vtimas de privao emocional. Quando isso ocorre, as

    crianas tm grande necessidade de amor e, ao mesmo tempo, mostram-se

    incapazes de receb-lo, por desconfiarem que a demonstrao de amor de um

    adulto pode no ser genuna.

    Sobre esse fato, ACKERMAN (1958/1986) chama a ateno para a

    atitude do psicoterapeuta, que deve relacionar-se genuinamente com a criana,

    expressando seu verdadeiro afeto.

    Um terapeuta infantil no pode compensar ou ressarciruma carncia de amor que uma criana possa ter experimentadona infncia. Isto passado e est feito. No pode sermagicamente desfeito. O que o terapeuta pode fazer modificargradualmente as percepes carregadas de ansiedade e asexpectativas emocionais da criana de modo que aqui e agora elapossa aprender a aceitar o amor como amor, tirar proveito dele e,finalmente, retribu-lo. Na psicoterapia, como na vida, umoferecimento de afeto, interesse e calor, deve ser umoferecimento verdadeiro, no uma tcnica manipulativa.(ACKERMAN, 1958/1986, p. 278-9)

    O psicoterapeuta de adolescentes tem as mesmas funes do

    psicoterapeuta infantil: pai/me auxiliar, educador, agente teraputico.

    ACKERMAN (1958/1986) ressalta algumas caractersticas da adolescncia que

    dificultam o incio da psicoterapia: a desconfiana, a dificuldade de substituio

    de fidelidade com seus iguais, o egocentrismo, a atitude evasiva e a

    beligerncia. Entretanto, afirma que, se o terapeuta consegue ultrapassar

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    essas dificuldades iniciais, a ligao teraputica tende a tornar-se

    intensamente forte e segura. Para tal, fundamental que o adolescente

    perceba que o terapeuta est do seu lado e sente sua dor emocional.

    A psicoterapia um recurso a ser utilizado quando as condies para

    possibilitar o crescimento de um indivduo autnomo e seguro no foram

    garantidas.

    Apresentamos, no incio deste captulo, as condies necessrias para

    que uma criana cresa e se desenvolva integralmente. Se examinarmos o

    extremo oposto dessas condies ideais para um desenvolvimento saudvel,

    encontraremos crianas que, alm de no contarem com pais acessveis e

    responsivos, so submetidas violncia, atravs de maus-tratos fsicos,

    emocionais, abuso sexual e/ou negligncia. A violncia cria um contexto em

    que grande parte das necessidades de cuidado da criana deixa de ser

    atendida. O aprofundamento dessa questo tema do prximo captulo.

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    CAPTULO II

    CRIANAS E ADOLESCENTES EM SITUAES DE VIOLNCIA

    Os maus-tratos de menores so um tema presente na histria da

    humanidade, registrado na literatura, na arte e na cincia de vrios perodos

    histricos e em diferentes locais do mundo. Os maus-tratos chegam a ser um

    grave problema mundial de sade, com contornos diversos, segundo as

    prticas culturais, econmicas e sociais vigentes em cada local.

    Cada cultura define os prprios princpios norteadores daquilo que

    aceito ou refutado nos cuidados infantis. A no aceitao de prticas abusivas

    em relao criana unnime, mas a definio do que abuso difere

    segundo os padres culturais. H grande diversidade no que se refere ao grau

    de tolerncia das manifestaes de violncia contra a criana, de modo que

    algumas prticas, consideradas inaceitveis em algumas culturas, so tidas

    como inevitveis em outras.

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    2.1 Definio de maus-tratos

    muito difcil conhecer em profundidade as caractersticas e as

    dimenses dos maus-tratos de menores, em razo das diversas definies

    jurdicas e culturais para a questo, o que complica, tambm, a organizao e

    a avaliao de intervenes. A situao torna-se ainda mais complexa pelo fato

    de grande parte dos casos de maus-tratos no ser informada s autoridades e

    tambm por no existir, em vrios pases, um sistema jurdico que tenha como

    atribuio especfica registrar informes sobre essas prticas.

    Na comparao das definies de maus-tratos apresentadas por 58

    pases, em relatrio da Organizao Mundial de Sade, observou-se que

    algumas consideram que maus-tratos ocorrem mesmo quando a criana

    lesada involuntariamente por atos de um ou ambos os pais, enquanto outras

    definies s registram maus-tratos quando se constata a intencionalidade do

    ato que provocou o dano. Segundo outro critrio, existem definies que se

    centram no comportamento dos adultos, enquanto outras consideram que

    maus-tratos existem quando ocorre dano ou ameaa de dano para a criana

    (KRIG, DAHLBERG, MERCY, ZWI e LOZANO, 2003).

    Para este trabalho, adotaremos a definio de maus-tratos de crianas e

    adolescentes apresentada pela Organizao Mundial de Sade. A escolha por

    essa definio se deu por diversos motivos:

    por se tratar de um relatrio mundial, elaborado pela anlise de uma

    extensa produo de 58 pases;

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    por definir critrios comuns, visando a integrao de diversas

    pesquisas, em contraposio a uma pulverizao de estudos soltos;

    por criar uma infra-estrutura para avaliao dos trabalhos sobre

    violncia a nvel mundial.

    A definio a seguir foi retirada desse relatrio (KRIG et al., 2003) e

    apresentada em 1999, na Reunio de Consulta da Organizao Mundial de

    Sade sobre a preveno dos maus-tratos de menores. A saber:

    Os maus-tratos ou a humilhao de menores abarcamtodas as formas de maus-tratos fsicos e emocionais, abusosexual, descuido ou negligncia ou explorao comercial oude outro tipo, que originem um dano real ou potencial para asade da criana, sua sobrevivncia, desenvolvimento oudignidade no contexto de uma relao de responsabilidade,confiana ou poder2(KRIG et al., 2003, p. 65).

    2.2 Tipos de maus-tratos e sua ocorrncia no Brasil

    No Brasil, as pesquisas e os programas de atendimento a crianas e

    adolescentes apontam que o agressor, na maioria dos casos de violncia

    domstica, o pai ou a me, havendo casos em que participam juntos do ato

    de violncia. Segundo dados da Associao Brasileira Multiprofissional de

    Proteo Infncia e Adolescncia (ABRAPIA), a me responsvel por

    48,6% dos casos de violncia domstica e o pai aparece como agressor em

    25,2% dos casos (SILVA e SILVA, 2005, p. 189; tabela 6).

    2 Traduo da autora.

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    Em relao idade da vtima, os casos de violncia domstica, segundo

    dados da ABRAPIA atingem, em sua maioria, crianas de at 11 anos de idade

    e corresponde a 74% do total (SILVA e SILVA, 2005, p. 190; tabela 8).

    A definio apresentada (p. 54) abarca diversas modalidades de maus-

    tratos (KRIG et al., 2003). Daremos ateno a quatro tipos em particular, que

    aparecem em larga escala nas crianas abrigadas em instituies: os maus-

    tratos fsicos; o abuso sexual; os maus-tratos emocionais e a negligncia.

    Essas formas de violncia praticadas contra crianas, segundo dados de

    diferentes fontes, aparecem distribudas da seguinte forma (SILVA e SILVA,

    2005, p. 189; tabela 5 e 7):

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    Os maus-tratos fsicos podem ser definidos como atos infringidos por

    um cuidador que causam um dano fsico real, ou que tm o potencial de

    provoc-lo 3 (KRIG et al., 2003, p. 66).

    A UNICEF realizou um estudo sobre as diversas situaes de abuso

    vividas na infncia e na adolescncia e constatou, a partir dos dados de uma

    pesquisa do Laboratrio de Estudo da Criana (LACRI) da Universidade de

    So Paulo (USP), que a violncia fsica responsvel por 34,2% dos casos de

    violncia domstica no Brasil (SILVA e SILVA, 2005, p. 189; tabela 5).

    3 Traduo da autora.

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    Segundo informaes da ABRAPIA, a me apontada como a principal

    agressora nesse tipo de violncia, respondendo por 38,14% dos casos de

    violncia fsica, sendo seguida pelo pai (33,72%). As principais vtimas nesses

    casos costumam ser os meninos (SILVA e SILVA, 2005, p. 55).

    O abuso sexual definido como atos em que uma pessoa utiliza uma

    criana, para sua gratificao sexual 4 (KRIG et al., 2003, p. 66).

    tambm muito difcil estimar a prevalncia de abuso sexual, uma vez

    que suas definies variam muito de uma cultura para outra. Alm disso, a

    informao coletada das formas mais diversas, o que cria distores nos

    dados obtidos, quando se confrontam diferentes pesquisas e culturas.

    Conforme relatrio apresentado pela UNICEF (2005), o Disque-

    Denncia do governo federal contabilizou 1.506 casos de explorao sexual

    entre maio de 2003 e fevereiro de 2005.

    De acordo com dados do LACRI, os casos de abuso sexual

    correspondem a 7,8% dos casos de violncia domstica contra crianas e

    adolescentes (SILVA e SILVA, 2005, p. 189; tabela 5).

    As principais vtimas desse tipo de violncia, segundo informaes da

    ABRAPIA (1999), so meninas (80%). Em relao faixa etria, 72% dos

    casos envolvem crianas de at 11 anos de idade, sendo que a grande maioria

    das vtimas de abuso sexual (49%) tem entre dois e cinco anos de idade

    (SILVA e SILVA, 2005, p. 55).

    Os principais agressores nos casos de abuso sexual so o pai (53,85%

    dos casos) e o padrasto (32,87%) (SILVA e SILVA, 2005, p. 190; tabela 7).

    4 Traduo da autora.

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    Segundo KRIG et al. (2003), os maus-tratos emocionaisso produzidos

    quando um cuidador no fornece as condies adequadas para o bom

    desenvolvimento afetivo de uma criana e pratica atos cujos efeitos so

    adversos sobre a sade emocional e o desenvolvimento da mesma. Esses

    atos incluem: a restrio dos movimentos da criana, a ridicularizao, as

    ameaas e as intimidaes, a discriminao, a rejeio e outras formas de

    tratamento hostil.

    Esse tipo de maus-tratos tem recebido ainda menos ateno mundial do

    que os anteriores. muito difcil definir maus-tratos emocionais, uma vez que

    muitas medidas disciplinares utilizadas e aceitas por uma cultura podem ser

    consideradas psicologicamente nocivas por outra. Alm disso, as

    conseqncias dos maus-tratos emocionais diferem muito, segundo o contexto

    em que ocorrem e a idade da criana a eles submetida.

    Segundo dados do LACRI, a violncia psicolgica corresponde a 13,5%

    dos casos de violncia domstica contra crianas e adolescentes (SILVA e

    SILVA, 2005, p. 189; tabela 5).

    Esse tipo de violncia, de acordo com informaes da ABRAPIA (1999),

    costuma ser praticado principalmente pelo pai (54,03%), seguido pela me

    (17,34%) e pelo padrasto (13,30%) (SILVA e SILVA, 2005, p. 190; tabela 7).

    A negligncia ocorre quando um dos pais no toma medidas que

    promovam o desenvolvimento da criana, tendo condies de faz-lo, nas reas

    de sade, educao, desenvolvimento emocional, nutrio, amparo e condies

    de segurana.

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    difcil diferenciar a negligncia da pobreza, pois em muitos casos uma

    aparece associada outra. Algumas