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1 História Oral e Retroalimentação Poética: Experiências de Criação Dramatúrgica a Partir de Relatos Sobre o Teatro em Porto Alegre CLÓVIS DIAS MASSA 1 Que tipo de dramaturgia pode ser elaborada com narrativas orais sobre o teatro de Porto Alegre? Tendo essa como motivação principal, a pesquisa História e Perspectivas do Teatro em Porto Alegre deu início a uma série de propostas, a partir de 2013, com o intuito de investigar os caminhos da criação dramatúrgica com base em entrevistas realizadas com espectadores, atores e diretores do teatro de Porto Alegre. 2 Cabe esclarecer que o contexto dessa investigação é caracterizado por inúmeras referências, das quais a História Oral se destaca enquanto procedimento técnico, mas que almeja ter sua apreensão enquanto método ou, mesmo, forma de saber. A problemática da pesquisa reside na dificuldade em lidar com a temática sobre o teatro em Porto Alegre de forma expressiva. Neste sentido, numa dimensão teórica, está presente o desejo de que essas narrativas possam servir à criação artística, ao estabelecer uma espécie de retroalimentação poética 3 , de maneira que seja fomentada a escrita dramatúrgica e, posteriormente, nela se reconheçam traços da própria história do teatro. As fontes utilizadas são entrevistas semi-estruturadas e em profundidade realizadas desde 2008 pelos participantes da pesquisa. Tais documentos estão registrados em áudio e/ou vídeo e foram transcritos para servirem de fonte para a criação. Os sujeitos são espectadores que rememoram experiências pessoais atravessadas por lembranças sobre espetáculos que tiveram a oportunidade de assistir, ou de artistas locais que abordam suas trajetórias artísticas e, por meio da rememoração, costuram suas narrativas biográficas com lembranças teatrais e vivências pessoais que consideram importantes. 1 (UFRGS, Doutor em Letras, apoio através de Bolsa PIBIC e BIC/UFRGS) 2 A pesquisa é desenvolvida no Departamento de Arte Dramática do Instituto de Artes da UFRGS, sob minha coordenação, desde 2008. Durante suas diferentes fases, até o momento atual, contou com a contribuição dos bolsistas de iniciação científica Larissa Santos Tavares, Tássia Pfeifer de Almeida, Renata Teixeira Ferreira da Silva, Marcia Berselli, Carina Zatti Corá, Kevin Brezolin, Caroline Vetori de Souza e Thiago Silva. 3 No circuito de retroalimentação poética'' descrito por FISCHER-LICHTE em sua Estética do Performativo (2011:78), a partir do conceito autopoiesis de Humberto R. Maturana e Francisco J. Varela, o espectador contribui diretamente na criação artística por meio da interação entre os grupos de atores e espectadores.

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História Oral e Retroalimentação Poética: Experiências de Criação Dramatúrgica a Partir de

Relatos Sobre o Teatro em Porto Alegre

CLÓVIS DIAS MASSA1

Que tipo de dramaturgia pode ser elaborada com narrativas orais sobre o teatro de Porto Alegre?

Tendo essa como motivação principal, a pesquisa História e Perspectivas do Teatro em Porto

Alegre deu início a uma série de propostas, a partir de 2013, com o intuito de investigar os

caminhos da criação dramatúrgica com base em entrevistas realizadas com espectadores, atores

e diretores do teatro de Porto Alegre.2

Cabe esclarecer que o contexto dessa investigação é caracterizado por inúmeras referências, das

quais a História Oral se destaca enquanto procedimento técnico, mas que almeja ter sua

apreensão enquanto método ou, mesmo, forma de saber. A problemática da pesquisa reside na

dificuldade em lidar com a temática sobre o teatro em Porto Alegre de forma expressiva. Neste

sentido, numa dimensão teórica, está presente o desejo de que essas narrativas possam servir à

criação artística, ao estabelecer uma espécie de retroalimentação poética3, de maneira que seja

fomentada a escrita dramatúrgica e, posteriormente, nela se reconheçam traços da própria

história do teatro.

As fontes utilizadas são entrevistas semi-estruturadas e em profundidade realizadas desde 2008

pelos participantes da pesquisa. Tais documentos estão registrados em áudio e/ou vídeo e foram

transcritos para servirem de fonte para a criação. Os sujeitos são espectadores que rememoram

experiências pessoais atravessadas por lembranças sobre espetáculos que tiveram a

oportunidade de assistir, ou de artistas locais que abordam suas trajetórias artísticas e, por meio

da rememoração, costuram suas narrativas biográficas com lembranças teatrais e vivências

pessoais que consideram importantes.

1 (UFRGS, Doutor em Letras, apoio através de Bolsa PIBIC e BIC/UFRGS) 2 A pesquisa é desenvolvida no Departamento de Arte Dramática do Instituto de Artes da UFRGS, sob minha

coordenação, desde 2008. Durante suas diferentes fases, até o momento atual, contou com a contribuição dos bolsistas de

iniciação científica Larissa Santos Tavares, Tássia Pfeifer de Almeida, Renata Teixeira Ferreira da Silva, Marcia Berselli,

Carina Zatti Corá, Kevin Brezolin, Caroline Vetori de Souza e Thiago Silva. 3 No “circuito de retroalimentação poética'' descrito por FISCHER-LICHTE em sua Estética do Performativo (2011:78),

a partir do conceito autopoiesis de Humberto R. Maturana e Francisco J. Varela, o espectador contribui diretamente na

criação artística por meio da interação entre os grupos de atores e espectadores.

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De início, o principal desafio da investigação se mostrou em como lidar com o tempo da

narrativa, entendendo que o foco não era dramatizar, de forma direta, as situações contadas

nas entrevistas, mas se servir delas para a criação dramatúrgica. Para tanto, em termos de

procedimentos metodológicos, uma primeira fase foi destinada à elaboração de cenas curtas,

preferencialmente escritas pelos integrantes do grupo de pesquisa, em forma de diálogo,

tendo como estímulo a identificação de frases emblemáticas escolhidas pelos jovens

dramaturgos. A título de exemplificação, destaco a entrevista de Eliana Santos (2010),

espectadora que narrou o impacto que o teatro teve em uma época de sua vida. Num

momento do relato, Santos conta ter assistido a uma montagem de Plínio Marcos, há muitos

anos, quando foi abordada no saguão no Teatro pelo próprio autor, e noutro momento,

aponta o papel que o teatro teve em sua tomada de decisão com relação ao casamento, trecho

esse que serviu de fonte para várias criações textuais do núcleo:

Já casada, eu queria assistir um espetáculo… Dois Perdidos numa Noite Suja, do…do... do Plínio Marcos, e aí deu uma discussão em casa, porque meu marido não queria ir ao teatro… O nome era… Cine Teatro São Pedro, na Benjamim, final da Benjamin… quase Cristovão. (…) Aí eu resolvi ir sozinha, foi a primeira vez que eu fui em qualquer coisa sozinha, só que eu fui muito triste, aí eu cheguei no teatro, e tinha no saguão uma pessoa vendendo o livro e o Plínio estava autografando. Mas eu sempre fui um pouco tímida então eu comprei o livro mas não pedi autógrafo, fiquei do outro lado sozinha e ele veio até mim, o Plínio, e eu devia estar com o olhar realmente muito triste, porque ele chegou pra mim e perguntou: 'Porque este olhar triste?’ Perguntou assim: 'Seria uma ousadia eu te oferecer o meu autógrafo sem tu solicitar?’ Aí eu disse que não, que não tinha pedido por timidez e ele escreveu um dedicatória muito… Alguma coisa como: 'Para a bela Eliana…’, gentileza da parte dele, que o meu olhar fosse mais alegre, alguma coisa assim. (…) E essa sensibilidade que ele demonstrou eu acho que é a sensibilidade da maioria dos artistas, não estou dizendo de todos, mas aqueles autênticos, assim…então esse foi um momento marcante. O outro, falando ainda em discussão e relação, foi quando meu filho, meu filho é músico, não tem nenhuma experiência no teatro, atuando, mas uma vez, faz muitos anos, ele foi convidado pra tocar em uma peça com poesia e música… Era uma peça muito bonita e eu tinha assistido um dia, mas no outro dia ele me ligou dizendo que não tinha quase ninguém no espetáculo… Era a história de uma poetiza e um músico que se encontraram em uma estação de trem, e no palco tinha os atores e os músicos... E contava… Era um trem, e cada estação era uma fase da vida: ódio, amor… Tinha uma do suicídio. E aí eu lembro que no dia eu liguei pra varias amigas pra fazer um público legal, o espetáculo era muito bonito. Eu fui nesse teatro e eu saí mais uma vez brigada com o meu esposo porque ele achou que eu já tinha ido uma vez, não precisaria ir de novo... E quando eu chego no teatro eu observei que aquele teatro... (Começa a chorar) Que era o mesmo teatro... que a minha filha tinha dançado pela última vez... Ela saiu dali... foi direto para o hospital (...) Ela morreu com um tumor no... no... tórax... (...) E, no final do espetáculo, que também foi impactante, é que a atriz se dirigia ao público... Dizendo que... Cada um de nós pode escolher a nossa estação, a estação que quer descer e pode mudar a sua vida... E num momento ela apontou para mim, eu estava bem na frente, aquela hora eu resolvi que

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precisava mudar a minha vida, então a partir dali (...) eu não voltei pra casa, resolvi me divorciar... Eu pensei que nunca mais alguém me diria que eu não poderia assistir um espetáculo, porque a última frase do meu ex-marido foi que se eu fosse não precisaria voltar pra casa. Muitos sinais pra eu seguir. Eu fui pra casa da minha amiga direto(…) fui no outro dia pegar a mala com a roupa e não voltei mais pra casa. Não naquele contexto de casada assim, né, hã... Então foi isso. O que eu posso dizer é que a decisão da minha, que o primeiro passo, que ainda não foi divórcio, de definir, não quero mais isso pra mim, foi nesse espetáculo. (SANTOS, 2010)

O relato da entrevistada se destaca, principalmente, pela descrição de sua infelicidade, da

doença e da morte da filha, revelada de maneira inesperada e comovente, e do conflito com

o marido machista. Por outro lado, a consciência sobre o passado aborda basicamente a

insatisfação com o casamento e a forma como o teatro acabou sendo um dos fatores que

levaram a entrevistada ao divórcio. A complexidade e o alto grau de dramaticidade da

narrativa levaram os bolsistas a, pelo menos, três diferentes formas de abordar os trechos.

Na mais tradicional, o tratamento buscava traduzir, sob a forma dialógica, o conflito descrito

pela entrevistada, através de uma situação análoga vivida por personagens de um núcleo

familiar com base na verossimilhança, de modo que a imagem constituída deveria servir à

palavra, e não o contrário. Visto que os personagens tem objetivos e urgências, eles acabam

se mostrando mais no que ocultam do que no que revelam por meio do discurso. A

dissimulação e a ocultação do desejo do protagonista foram utilizadas como meio de produzir

surpresa no desenlace da fábula. Na Cena Eliana, de Carina Corá, a ação se situa no quarto de

Bob, o filho de Eliana. O ambiente é decorado com alguns pôsteres na parede, uma mala

jogada num canto e um case de violão em outro. O violão está exposto à esquerda. Ana, a filha

mais nova, passa as mãos pelas cordas do violão e pede ao irmão para que esse, apesar da

possível reprovação do pai, um dia a ensine a tocar o instrumento musical. Uma briga entre

os pais, que não aparecem em cena mas são ouvidos, tensiona ainda mais o estado emocional

de Bob, que planeja sair de casa. No entanto, isso não é explícito, sendo revelado ao

espectador apenas quando a mãe entra em cena.

Eliana: Se você for, não precisa mais voltar. Bob: Cada um de nós pode escolher a nossa estação, a estação que se quer descer pode mudar a sua vida. Eliana: Não precisa falar duas vezes.

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Ana: Eu não quero que você vá com ele, Bob! Eliana: Fica quieta Ana, e vem comigo. Deixa o seu irmão levar esse violão pra onde ele quiser. Fazendo Direito ele não chegou a lugar nenhum. Agora que ele escolheu fazer tudo errado, talvez ele encontre seu caminho. Bob: Obrigado mãe. Também amo você. Eliana: Como é mesmo que se diz nesse negocio estúpido que você tanto gosta? Bob: “Merda”, mãe. Eliana: Ah é... “Merda” pra você filho. Só não acorde seu pai que ele mata você. Literalmente. Vem Ana. Ana: Mas e se o violão não se adaptar ao faz de conta, você volta? Bob: Se ele não se adaptar à realidade, eu volto. Eliana: Não incentive a menina a pensar bobagens. (…) Eliana: Espero que você construa uma linda música. Realmente espero que você e seu violão descubram os segredos juntos. Ana: Eu também quero saber os segredos! Bob: Você talvez os descubra um dia, Ana. Eliana: Nem mesmo eu consegui fazer isso, querida. Dê um abraço no seu irmão. (A mãe sai.) Ana: Até agora eu não entendi porque ela e o papai dormem em quartos diferentes desde que você entrou na faculdade. Por que a mamãe disse essas coisas? O que é “merda"? Porque o violão ta cansado? Eu não vejo nada de errado na avenida lá fora. E logo ali tem um parque tão bonito. Bob: Ana, vai dormir que eu preciso deitar. (Ana abraça Bob com força.) Ana: Não mente pra mim. Eu apanho na escola, às vezes. Você sabe disso. Aquelas meninas não gostam de mim. Quem é que vai me defender enquanto você leva esse violão feio passear por ai? Bob: Eu não vou à escola há muito tempo. Achei que você já tinha aprendido a se defender sozinha, Ana. Agora vai dormir antes que o velho acorde. Ana: Mas... Bob: Sem mas. Eu amo você tá? Ana: Eu também te amo, Bob. Bob: Agora vai. Ana: Me promete que você vai voltar logo? Bob: Dorme bem, Ana. (CORÁ, 2013)

Fica claro, neste tipo de tratamento de transcriação, a opção pelo drama absoluto de que fala

Peter Szondi (2001:29) como forma em que a ação, formada por conflito e expresso por meio

da subjetividade, ocorre no presente, sem a mediação de narradores. A atmosfera dramática,

com a presença de uma criança como personagem inocente que não entende a complexidade

das relações humanas, emociona tanto quanto o relato de origem. Além disso, apesar de

dramatizar o conflito conjugal e fazer referência à estação de trem, utiliza a expressão de

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maneira deslocada, sendo dita pelo filho, em relação à sua própria situação, ainda que sirva

também para a mãe, como insinuação. O que no início foi considerado um recurso pontual de

paródia, mais tarde acabou se tornando uma das técnicas empregadas com mais frequência

no processo de construção dramatúrgica, afirmando-se como apropriação. A interação entre

os jovens escritores produziu, inclusive, a inserção de trechos de um autor na escrita de outro.

Nesse caso, a conclusão da cena proposta por Kevin Brezolin pressupôs a utilização de

tecnologias virtuais, aspecto da criação dramatúrgica que vislumbrou uma concepção poética

da cena:

Ana: Me promete que você vai voltar logo? Bob: Dorme bem, Ana. (Fade geral. Entra uma projeção de vídeo no youtube com um monólogo de despedida que Bob deixou para Ana.) Bob: Como tu pode ver Ana, eu não tô mais aqui. E eu não sei quando eu vou voltar. Mas quero que saiba que minha intenção nunca foi mentir pra ti. Eu só não queria te ver triste e você sabe que eu não gosto de despedidas. Nunca deixe que os velhos te digam o que tu deve sonhar. Sonhe o mais longe que puder, como se fosse capaz de voar e tocar o céu, assim tu nunca vai se importar com o que os outros vão fazer, dizer ou pensar e nunca mais vai deixar aquelas meninas from hell da sua escola te atormentarem (…) Ana, eu sinto saudade de um tempo que não me lembro. Esqueci porque fiz o que o presente mandava e o futuro não estava aqui pra me exigir, por isso eu parti. Esse tempo pra poder te ver crescendo eu, infelizmente, não vou ter em minha memória. Espero que, ao passar pelas estações que procuro, e quando elas passarem por mim, eu espero sentir aquela sensação mágica e mística que só o teatro me dá e que preenche o silêncio deixado pela nossa família. Dessa forma, eu deixei meu violão pra ti, esperando que ele preencha o silêncio deixado pela minha ausência. Espero que tu encontre neles essa mesma sensação que me faz sentir... Que me faz sentir como se o céu fosse abrir e engolir minha existência. Te amo, Ana.

(Fade out.) (BREZOLIN, 2013)

Entende-se a técnica de transcriação como sendo fundamental no processo de

retroalimentação poética. Por meio dela, noutro experimento de criação dramatúrgica, o

princípio poético mais relevante foi o de romper com a ideia tradicional de personagem. Deste

modo, o texto não deveria indicar o interlocutor de cada fala, ocasionando assim a

indeterminação da instância enunciadora. Técnica utilizada por vários dramaturgos da

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contemporaneidade (SARRAZAC, 2010:73), a voz decorrente deste estatuto transita entre o

dramático e o épico, combinando as formas, mais do que as opondo. Isso fez com que situação

estivesse diluída numa série de falas sobre o teatro gaúcho retiradas diretamente ou mesmo

adaptadas de outras entrevistas com espectadores ou artistas locais.

Em Experiência Dramatúrgica número II, de Carina Corá, foi feito um processo de brainstorm

para lembrar-se de diversas frases das entrevistas, as quais foram polidas para encaixarem-se

umas às outras, em um diálogo coral sem personagens, apenas travessões de ideias soltas.

Esse experimento parte da suposição que o material da memória é confuso e polifônico, e

procura apresentar-se nessa disposição caótica. A cena contém cerca de sete páginas, sua

estrutura é dramática e baseada na coralidade, com uma linguagem que contém lapsos

coloquiais e líricos:

- Aquele cheiro de éter era impregnante.

- E ela deitada na cama.

- Eu queria bater palmas, mas só conseguia chorar… todos só conseguiam

chorar.

- Quando eu ia no teatro tinha mais respeito do que quando entrava na igreja.

- É um mundo interior tão grande, coisa de outro planeta.

- Está além do nosso alcance.

- Todo mundo pode fazer e em qualquer lugar.

- Acho tudo muito brega.

- Quer que eu vá?!

- Eu trabalhava nesse lugar horrendo, um escritório velho, com móveis velhos,

estantes velhas, com arquivos velhos. Tive a sensação de que minha vida era

uma peça de teatro no meio desse cenário perturbador. Foi uma sensação que

durou 10 segundos. Incrível!

- Mas tudo é um grande teatro, as pessoas mentem.

- Mentem não, elas criam um personagem.

- Eu acreditei no que eu criei...

- As palavras tornam tudo brega.

- Quer que eu vá?! Faça alguma coisa decente!

- O cheiro do sangue cênico.

- Gosto de teatro que tu sente o cheiro do ator.

- É um evento... tu faz parte do ambiente.

- Eu me projetei naquela peça. A mulher não queria casar, eu também não

queria. E mesmo assim fui forçada por vinte anos... A projeção me ajudou a

mudar.

- Ela se separou do marido por causa de uma peça!

- Ela se colocou em nível de sentimento e pensamento.

- Sentimento e pensamento fazem o teatro funcionar... Eu me transporto.

- A peça só pode ser boa quando nos leva a criar um universo paralelo. Eu

criei o meu.

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- Eu ficava pensando na vida dos artistas de circo que viviam naquelas

‘barraquinhas’.

- Isso chamava mais atenção que o espetáculo.

- As cortinas remendadas e puídas...

- Artista verdadeiro tem aquela sensibilidade, viu meu olhar triste e me

consolou...

- Por um olhar mais alegre!

-Como? Meu filho estava no mesmo palco em que minha filha tinha dançado

pela última vez.

- Última.

- Mas eu não estava sozinha, mesmo tendo perdido minha filha e meu marido.

O teatro está dentro de mim.

- O teatro me acompanha.

- Ele tem o dom de modificar quando somos receptivos.

- Eu não gosto das peças do Júlio Conte, é um teatro que fala para o próprio

umbigo.

- Talvez ele quisesse falar para o público e não só para a classe.

- Ele falava para o próprio umbigo.

- Vocês falam para quem? Nós assistimos por quê?

- Melancolia está o teatro daqui, não se vê mais grupos...

- O teatro aqui é ... complicado.

- O que eles querem? O que vocês querem? Isso é teatro?

- Tudo é brega! (CORÁ, 2013)

Conforme a autora do texto, há dois relatos de história oral citados aqui como exemplos das

histórias que se fazem presentes na cena. O primeiro deles é de um sujeito que critica muito

o teatro em Porto Alegre, explicando como o público se sente. Esse sujeito inspira as falas

críticas que representam o público ou a crítica que xinga o teatro portoalegrense: Quer que

eu vá?! Faça alguma coisa decente, frase retirada quase que na íntegra de um dos sujeitos

entrevistados. Há, também, entre outras tantas frases aproveitadas de relatos de

espectadores, uma mulher que em sua entrevista conta como detestava o seu emprego e seu

local de trabalho, e como ela imaginava que sua vida “era" uma peça. Os sujeitos entrevistados

também trazem, em seus relatos, recordações teatrais que se aproximam a sensações que

compõem o universo da memória e sua evocação. A tessitura do texto é composta por essas

sensações, imagens e frases rearranjadas a partir da concepção da dramaturga, transcriando

essas memórias em ficção.

No entanto, a criação textual mais extensa e complexa dessa fase procurou retratar a

atmosfera dos anos 1990, intitulada Memórias de Um Talvez Porto, de Carina Corá. A proposta

teve, como intenção, aprofundar o uso da performatividade das figuras, transcriando também

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os traços individuais dos entrevistados em ações físicas, de modo que os traços da oralidade

dos sujeitos, pausas, ênfases, gestos, fizessem parte da criação.

Panetone de Natal é a primeira cena da peça, fragmento inspirado na memória de três sujeitos

entrevistados nas ruas da cidade. O primeiro relato é de uma mulher bastante humilde,

orgulhosa de seu trabalho como faxineira, que constantemente afirma ser feliz, apesar das

dificuldades que enfrentara em sua vida. Ela conta que tinha de caçar passarinhos para não

passar fome quando era criança. Por não ter família, não sabia o que era o Natal, até ser

convidada para uma ceia por uma amiga. Outro relato utilizado é o de um homem que queria

ser cabeleireiro, porém sua família tinha preconceito com a profissão. Outra entrevistada,

lavadeira de profissão, era feliz com o marido e seus nove filhos, mais um casal de passarinhos

(Garoto e Sandra Bréa), até que o marido decidiu que iriam se mudar para outro lugar. A cena

é composta por três atores num espaço vazio. Eles contam, através de ações ou de palavras,

histórias da vida em Porto Alegre. Configura-se quase uma reunião de família com histórias

desconexas, sem uma linha ou conflito que as perpasse de maneira linear. São fragmentos de

memórias relacionadas pelo tema natalino. Enquanto os "atores" enfiam pedaços de

panetone em suas bocas, as histórias são contadas alternadamente, com ações físicas e vocais

inspiradas nos sujeitos entrevistados:

(Três atores perdidos pelo palco. O ator e a atriz começam a dialogar de seus

pontos sem olharem-se, em completa inação. Uma terceira atriz vai realizando

o movimento abstratos descritos pelos atores.)

1: Quando eu me enrosco em mim mesma, fazendo assim com meus próprios

braços, assim esse jeito.

2: Me dizem que é desse jeito, que todo mundo pára pra te ver.

1: Com uns lenços assim... Era vermelho dessa cor. Como era?

2: Eu fazia esse movimento quando tirava o arroz e separava os grãos. Mas,

me arrependo dos passarinhos que eu comi...

1: Não era por mal... Tu não tinha nem pai nem mãe.

2: Meu filho, eu perdi em 2003.

(A atriz que executava o movimento, como que retira algo de sua barriga e o

leva até a boca para engolir seu próprio movimento. Ela vira bruscamente para

o público e vomita as palavras. Os outros atores começam a executar o mesmo

movimento de levar à boca e engolir.)

3: Meu filho se perdeu quando fui no dentista na Andradas... Ele tava vendo é

filme pornô. E eu digo: ou a gente vai junto ou pode morar em Porto Alegre

sozinho... até esses dias lembro que ele desmaiava... A Sandra Bréa e o Garoto,

um casal com nove filhos... E eu digo: não faz isso e ele faz... E os nove

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passarinhos na gaiola de um apartamento pequeno perto da Riachuelo... era

ali?... era perto do moinho... não... Riachuelo? Foi na noite de Natal ali

naquele bairro que eu não me lembro o nome...

(Todos estáticos.)

3: Ela era artista desde pequena, organizando as peças de Natal...

1: Eu aprendi o que era Natal pequena... disseram que Natal era uma árvore.

2: E eu fui com uma calça de couro pra Cidade Baixa na noite de Natal, meu

primeiro Natal na... agora lembrei o nome! (Ela vira-se para o público

bruscamente, os outros voltam a engolir suas palavras.) Carlos Gomes! Foi

quando me ensinaram, porque eu não sabia o que era... Nunca tive família.

(Jogo de virar para responder e voltar a realizar o movimento.)

1: Eu chorei naquele Natal porque meus filhos é que me deram a TV que eu

não consegui dá pra eles...

3: Eu chorei naquele Natal porque tinha perdido meu pai...

2: Minhas netas faziam peças de Natal na sacada... quem era o burrinho?

3: Meu pai não era um burro, era uma anta porque não queria se tratar, agora

ele tá um pouco melhor...

(Todos param, fazem o movimento de engolir e batem com as mãos nas coxas.

Primeira atriz vai à frente, contando como se estivesse de boca cheia.)

1: Daí eu queria dar a televisão mas não tinha dinheiro, logo depois o Lula ia

ajudar... Daí meu menino escreveu pro Diário Gaúcho e nós ganhamos a

televisão. Eu ia dar pra eles, mas eles me derum a televisão... E meu

menino…(Engole.) …morreu. (Todos começam os movimentos freneticamente

em intensidades diferentes, não conseguindo engolir tudo e ficando com as

bocas cheias. Mãos frenéticas por abrir o ar como uma embalagem.)

(…) (CORÁ, 2014)

Um dos princípios da investigação examinada é a questão da fabulação presente nos relatos, a

forma como a memória produz ficção e dá sentido à trajetória pessoal no tempo da narração,

por meio da interpretação e da imaginação, preenchendo as lacunas existentes na evocação. Na

análise das entrevistas semi-estruturadas e em profundidade realizadas com espectadores, atores

e diretores do Teatro de Porto Alegre, atentou-se para a forma como cada sujeito organiza a

linha narrativa do seu relato, ao mesclar a descrição de acontecimentos com constatações acerca

destas situações, manifestando a avaliação sobre o vivido. Esse aspecto traduz ainda mais a

ficcionalização das histórias passadas, pois não apenas os fatos narrados ficam à mercê da

reconstituição da memória, como, em função de serem compreendidos e explicitados, são

interpretados sinteticamente pelos entrevistados, no momento do presente, pelo viés da

subjetividade. E isso, acredita-se, deve estar presente mesmo após a transubstanciação realizada

no circuito de retroalimentação poética.

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Em comparação com casos célebres em que narrativas orais serviram de fonte para a criação

dramatúrgica e cênica4, os relatos sobre o teatro de Porto Alegre não apresentam temas

acentuadamente polêmicos, não sendo provenientes de sujeitos em contexto de defesa ou

condição de injustiça ou sobrevivência. Pelo fato de, à primeira vista, essas histórias não terem

grande impacto social, mas por conterem forte caráter pessoal, devido à sua relação com a

memória individual, acredita-se que sirvam à fabulação e à elaboração de proposições cênicas.

Porém, no âmbito prático dessas criações baseadas na história oral, o que poderia ser

considerado como critério de qualidade estética, a ponto de manter assegurada a atenção do

espectador após o processo de transcriação?

Compreende-se que, neste processo de retroalimentação poética, a produção de conhecimento

é distinta da que seria própria de uma abordagem essencialmente histórica. Como pesquisa em

arte, e não pesquisa sobre arte, antes de mais nada, o que está em questão é a produção

dramatúrgica, a qual produz um tipo de conhecimento de outra natureza, distinto do almejado

no processo historiográfico. Quanto a este aspecto, a arte teatral contém uma polifonia que, de

maneira análoga, resulta crítica, porém crítica de outra maneira, isto é, em forma artística. Com

efeito, o teatro (não apenas o gaúcho, crê-se), para uns, tem o dom de modificar quando somos

receptivos, conforme o discurso de um sujeito entrevistado. Outros, por sua vez, perguntam

sobre o que veem: Isso é teatro? Um terceiro considera que tudo é brega! Na abordagem

historiográfica, o que seria fundamental - a análise e/ou a contextualização - para produzir o

trabalho intelectual, no âmbito da poética acaba sendo desnecessário, pois a natureza teatral,

por ser dialógica, é essencialmente dialética, cria significados controversos devido à polifonia

nela presente.

As experiências de criação dramatúrgica realizam a apropriação de frases e formas de falar que

são retiradas tais como aparecem nos relatos, mas recontextualizadas e transcriadas num novo

acontecimento. Dessa forma, as expressões das fontes se fazem presentes na dramaturgia seja

4 Como em O Interrogatório, Oratório em 11 Cantos, Os Exonerados e Guantánamo ‘Limite da Honra Para Defender a

Liberdade’. Peter Weiss criou o Teatro Documentário em 1965, ao escrever Die Ermittlung, Oratorium in 11 Gesängen,

com base em suas anotações de depoimentos do processo ocorrido em Frankfurt, entre 1963 e 1965, de vinte e dois

responsáveis do campo de extermínio de Auschwitz; The Exonerated, de Jessica Blank e Erik Jensen, com direção de

Bob Balaban, foi apresentado inicialmente no Project Culture (Nova Iorque), em 2003, tendo como ponto de partida

histórias de seis pessoas inocentes que foram condenadas, colocadas no corredor da morte e libertadas depois de

cumprirem vários anos de prisão; Guantanamo ‘Honor Bound to Defend Freedom’, de Victoria Brittain e Gillian Slovo,

com direção de Nicholas Kent e Sacha Wares, foi elaborado a partir de entrevistas com britânicos detidos na base militar

norteamericana, numa produção da Tricycle Theatre, em 2004.

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através do ritmo, de onomatopéias, tons, pausas e expressões recorrentes, ou até mesmo por

meio de gestos das figuras representadas e personificadas em cena. Neste caso, trata-se de um

processo que sugere ao ator uma abordagem mimética do corpo, mas que se torna possível em

virtude da oralidade que se fez presente na origem, que alimenta a criação com falas, situações,

acontecimentos citados nas narrativas orais, e que vai além ao promover a concretização

dramatúrgica também através de ações físicas, atmosferas e climas, aspectos próprios da

natureza espaçotemporal da arte cênica. E que visa produzir sensações, afetos e significados a

quem assiste.

Referências

BREZOLIN, Kevin. Cena B.O.B. . Texto elaborado na pesquisa História e Perspectivas do

Teatro em Porto Alegre, coordenação de Clóvis Massa/PPGAC/IA/UFRGS. Porto Alegre,

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Teatro em Porto Alegre, coordenação de Clóvis Massa/UFRGS/IA/PPGAC. Porto Alegre,

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