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COGNIÇÃO E SEMIÓTICA: CONVERGÊNCIAS E TENSÕES José Augusto Mourão Resumo Nas ciências da hnguagem assiste-se desde há alguns anos já a uma importante diversificação de interesses e de perspectivas. As preocupa- ções de Chomsky na procura de mecanismos inatos de produção da lin- guagem desembocaram em campos muito próximos das ciências cogniti- vas (ligadas à inteligência artificial). Actualmente o próprio cognitivismo se confronta com correntes de tipo conexionista (que substituem os sím- bolos isolados por redes e estruturas dinâmicas). A dimensão cognitiva e comunicacional da linguagem é abordada por disciplinas tão diferentes como a Lógica, Lingüística, Semiótica, Pragmática, Filosofia Analítica, Estética, Ética, Retórica. Limitar-me-ei aqui a uma só, a semiótica (dinâ- mica) em pontos que tangem a questão da percepção e do continuísmo, sabida que é a ligação que J. Petitot em particular mantém com o cone- xionismo e o seu "fisicismo": o objecto não é uma entidade discreta e dotada de uma identidade própria, mas uma singularidade sobre um espa- ço contínuo, podendo variar indefinidamente os modos como o apreen- demos. Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, n.° 13, Lisboa, Edições Colibri, 2000, pp. 385-402

Cognição e Semiótica

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Cognição e Semiotica

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  • COGNIO E SEMITICA: CONVERGNCIAS E TENSES

    Jos Augusto Mouro

    Resumo

    Nas cincias da hnguagem assiste-se desde h alguns anos j a uma importante diversificao de interesses e de perspectivas. As preocupa-es de Chomsky na procura de mecanismos inatos de produo da lin-guagem desembocaram em campos muito prximos das cincias cogniti-vas (ligadas inteligncia artificial). Actualmente o prprio cognitivismo se confronta com correntes de tipo conexionista (que substituem os sm-bolos isolados por redes e estruturas dinmicas). A dimenso cognitiva e comunicacional da linguagem abordada por disciplinas to diferentes como a Lgica, Lingstica, Semitica, Pragmtica, Filosofia Analtica, Esttica, tica, Retrica. Limitar-me-ei aqui a uma s, a semitica (din-mica) em pontos que tangem a questo da percepo e do continusmo, sabida que a ligao que J. Petitot em particular mantm com o cone-xionismo e o seu "fisicismo": o objecto no uma entidade discreta e dotada de uma identidade prpria, mas uma singularidade sobre um espa-o contnuo, podendo variar indefinidamente os modos como o apreen-demos.

    Revista da Faculdade de Cincias Sociais e Humanas, n. 13, Lisboa, Edies Colibri, 2000, pp. 385-402

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    Puisqu'on a dit que Ia perception et 1'action taient incarnes dans des processus sensori-moteurs, il est naturel de postuler que les structures cognitives mergent de schmas rcurrents de Tactivit sensori-motrice.

    Francisco Varela Avant que d'tie une signification au sens smantique, le sens est une couche d'tre qui s'difie sur Ia couche d'tre qui s'difie sur Ia couche d'tre de Ia forme. L'idalit smiotique s'difie sur Tidalit morphologique.

    Jean Petitot

    A arborescncia de disciplinas cada vez mais diversas e especia-lizadas parece dificultar qualquer aliana ou qualquer abertura s dis-ciplinas vizinhas. A procura da interdisciplinaridade corresponde, antes de mais, a uma procura de inteligibilidade do local: para conhecer um objecto determinado necessrio recorrer s luzes de disciplinas diferentes. Quer dizer que o projecto interdisciplinar visa ultrapassar os limites de uma racionalidade normativa e segmentada. No como uma colagem mosaica de teorias justapostas, utilizadas ale-goricamente, por extrapolao do campo que est na origem das suas descobertas; no como contrabando de uma mercadoria que deu na babelizao dos discursos cientficos ou na importao de sabedorias de ndole ecltica. Confrontar cincias coexistentes mas no coorde-nadas, relacionar operaes cientficas atravs de um confronto com os seus pressupostos ou as suas regras, mantendo-se coerente com o quadro interaccionista de que no podemos abstrair, tal parece ser hoje a tarefa que cabe interdisciplinaridade. preciso lembrar que um campo interdisciplinar no uma cincia (Rastier, 1991: 20). Que no se trata de conjugar, nem to pouco de confrontar disciplinas autno-mas, mas de produzir conhecimentos novos a partir dos nveis de organizao da estrutura de cada uma e do jogo transaccional dos flu-xos que as atravessam. A verso actual do humanismo, a haver, a investigao inter e transdisciplinar. O demnio da reduo cochila, de olho meio aberto, nas fronteiras dos campos disciplinares. Nem admira, porque a que a vontade de transgresso e de criatividade assenta os seus arraiais, O futuro construdo em tomo da aceitao do risco, e portanto do risco radical marcado pelo interdito. Esta pala-vra que conceme a rvore do bem e do mal do Paraso Terrestre reper-cute-se ao longo da histria das disciplinas. Ameaas (diablicas) no

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    faltam: o monismo materialista claramente reducionistada; a reduo da semitica comunicao (via Sperber) ruinosa'; a semitica do mundo natural ou a semiofsica pode constituir uma reduo da auto-nomia do semitico. O simblico no emerge, mecanicamante, do fsico. As relaes entre o mundo semitico e o mundo fsico colocam problemas fundamentais: a) o do tratamento dos sinais e da articulao do fsico e do simblico que permite a percepo categorial; b) o da emergncia do simblico. Qual o estatuto de uma entidade que contm ao mesmo tempo o natural e o cultural? Qual o estatuto do discurso que parte da emergncia do semitico a partir do pr-semitico? Em que ponto esta questo se cruza com o subsimbolismo de Smolensky? M. Bakhtine escrevia em 1917 que a estrutura arquitectural das nossas culturas tinha necessidade de uma perspectiva "dialgica" para ser compreendida e construda. Ser possvel uma confrontao constru-tiva dos programas de investigao entre especialistas no campo da intercincia? Ser ainda possvel gerir diferenas no conflito, sem excluir a disparidade inicial dos cdigos? Ser possvel ultrapassar a guerra dos cdigos, ultrapassando uma concepo hegemnica do saber, e entrando numa concepo dialgica do dilogo? Como dialo-gar sem se confiscar e sem repetir o deserto - essa pulso de morte que as disciplinas tm tendncia a desenvolver. Essa a crux da inter-disciplinaridade.

    O paradigma cognitivo ocupa um campo pluridisciplinar em que convivem a informtica, a psicologia cognitiva, a lingstica (cogni-tiva) e as neurocincias. Este campo definia-se a partir de um objecti-vo comum desenhado em 1978 como: "descobrir as capacidades representacionais e computacionais do esprito e a sua representao

    1 Sperber e Wilson propem um modelo inferencial da comunicao: "De Aristteles aos semiticos modemos todas as teorias da comunicao se fundaram num nico e mesmo modelo, a que chamamos modelo do cdigo. Segundo este modelo, comuni-car codificar e decodificar mensagens. Recentemente, vrios filsofos, entre eles Paul Grice e David Lewis proposeram um modelo completamente diferente a que chamamos o modelo inferencial. Segundo o modelo inferencial, comunicar produ-zir e interpretar ndices" (1989: 13). Atribuir a Aristteles um modelo do cdigo parece muito arriscado, sobretudo quando ele assimilado ao de Shannon e Weaver. De facto, a informao uma propriedade estatstica do sinal que nada tem a ver com a significao nem com a comunicao lingstica (Rastier, 1991: 81). O modelo do cdigo tambm um modelo da referncia. Na sua oposio ao modelo da inferncia, reencontra-se a distino clssica entre a semntica (teoria da refern-cia) e a pragmtica (teoria da inferncia).

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    estrutural e funcional no crebro" (1978, p. 8), segundo Gardner, (1985, p. 37). Como representar hoje a interrelao entre disciplinas no interior da investigao sobre a cognio? Tm todas as disciplinas convocadas o mesmo estatuto de cincia? A noo de interdisciplina proposta por Newell para caracterizar a IA. convm a esta disciplina, mas no so todas as disciplinas de facto, interdisciplinas, sem perde-rem a autonomia e a complexidade que as funda?

    A cincia da cognio define-se como "campo disciplinar defi-nido (desde 1977) de modo autnomo pelo seu objecto - o estudo dos processos cognitivos em geral, naturais e artificiais - e pelo seu modo de constituio. A cognio, o acto de conhecer define-se pelo con-junto de processos cognitivos, naturais e artificiais, observveis. No se reduz ao conhecimento. Nunca ser demais lembrar que "as inter, trans ou meta-disciplinas so de facto filosofias que no ousam dizer o nome, inferiores ao menos nisso, s filosofias tradicionais"^. Ao lado das teorias que tentaram reduzir a significao referncia (represen-tacionalismo e realismo) ou produo de conceitos e expresso de uma intencionalidade (intencionalismo), h que fazer valer a consis-tncia prpria do lingstico e do semitico, por exemplo. O que no significa, na perspectiva que a nossa, negar a referncia ou a comu-nicao, mas apenas reconhecer que ao lado do mundo fsico e do mundo das representaes existe um terceiro mundo, o mundo semi-tico que desempenha um papel central na cognio humana.

    O programa de naturalizao da fenomenologia suspeito de naturalizao do mental, do esprito, do sentido, da conscincia e da intencionalidade. O debate contemporneo traz lia um conjunto de posies epistemolgicas que vo de um eliminativismo estrito (segundo o qual a naturalizao deve tomar a forma dum reducionis-mo neurobiolgico radical) a um realismo intencional (segundo o qual as representaes possuem propriedades intencionais objectivas, logo causais), passando por formas mais finas de quasi-realismo^. Um objecto interpretado pela sua ligao ao real e contigidade vivida, ligado portanto physis , para um semitico Peirceano um signo indexical, um ndice; se porm for interpretado a partir da polis j um signo simblico. Se o objecto precisa de ambos os tratamentos 2 Franois Rastier, Smantique et recherches cognitives. Paris, PUF, 1991, p. 36. 3 Jean Petitot, "La rorinetation naturaliste de Ia Phnomnologie", in Archives de

    Philosophie 58, 1995, p. 638.

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    interpretativos, porque visto como um cone - uma entidade icni-ca subentende um conflito dinmico entre motivao e arbitrariedade (causal-fsica e determinao 'poltica' final). A semitica visual, por exemplo, constitui-se a partir deste princpio de analogia: o signo visual parece-se com aquilo que ele representa. O significante visual guarda com o objecto pelo menos determinadas relaes estruturais e/ou topolgicas apesar dos processos de transformao, de extraco e de reduo da informao necessria para a constituio do signifi-cante"*. De h muito que Eco previra a relao do signo icnico com o modelo perceptivo do objecto, ao situar a relao analgica no com a representao (o signo icnico) e o objecto representado (o objecto real) mas entre o cone e um modelo perceptivo do objecto^. Foi nesta perspectiva que o Grupo \x. procurou encontrar os fundamentos per-ceptivos de uma semitica visual, i.., analisar o processo sensao vs percepo vs cognio. Resumindo: os concretos tm forma e subs-tncia; a substncia encarada como uma propriedade emergente, resistindo ao causai, ao fluido, da matria causai (physis), enquanto a forma aparece como uma propriedade ideal final, projectada ou pro-jectvel (inteligvel pela polis). Esboa-se aqui uma relao intima a partir desta onto-fenomenologia com a metafsica Aristotlica. A an-lise coremtica leva-nos a uma topologia interpretativa elementar; nos termos da teoria das catstrofes temos um conflito com um duplo atractor e um espao de controlo visualizado pela ctspide. O percurso interpretativo desta 'geografia' fenomenolgica descreve os modos de ocorrncia, aqui dos Objectos Naturais e dos Objectos Culturais. A linguagem no nem um fenmeno puramente natural nem um puro fenmeno cultural. A linguagem depende da interpretao dentro do processo da sua produo que ao mesmo tempo individual e colecti-va; mas esta interpretao constringida por leis cognitivas que a obriga a transformar (concretos) formas espaciais percebidas em seqncias temporais e a transformar (concretos) seqncias em cenas espaciais. Donde: a) os objectos so significados, b) o processo da lin-guagem conserva os significados ligados aos significantes, e c) os sig-nificantes so eles prprios (seqenciais) objectos.

    4 Daniel Peraya, Jean-Pierre Meunier, "Smiotique et cognition", in Voir n. 16, Maio 1998, p. 20.

    5 U. Eco, "Smiologie des messages visuels", Communications, 15, 1970, p. 46.

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    Durante muito tempo a psicologia cognitiva, em particular, e a semitica mantiveram relaes de excluso e de conflito. Questes de tenitrio. Mas tambm no interior das pesquisas cognitivas o cogniti-vismo dito ortodoxo (Fodor e Pylyshyn) e o conexionismo se comba-tem desde os anos quarenta. O fantasmo do dualismo atravessa todas as escolas de pensamento desde h sculos. O cognitivismo dualista, reconhecendo duas camadas do Ser: o simblico (representaes mentais) e o fsico. Como mediar ento a passagem entre o mundo das representaes e o mundo fsico? E como pensar as lnguas que, segundo Rastier, no pertencem nem a um domnio nem a outro? A semitica aparece como o terceiro mundo que tem um papel funda-mental na cognio humana. A especificidade da cognio humana assenta no papel constituinte das trocas semiticas e no mais na alma (religio) ou na razo, como determinadas filosofias pretendiam. A semitica de primeira gerao trata o plano cognitivo da linguagem numa perspectiva que sobretudo formal. A noo de "sentido", que ocupa um lugar central na semitica do sistema, formal, de primeira gerao, torna-se algo secundria, seno intil quando confrontada com a semitica entendida como um jogo infinito, no interior de um dispositivo aberto de conhecimento. Um sistema um conjunto finito. Permite operaes, equaes entre sistemas: homologias, transcodifi-caes, tradues. E o estruturalismo a hiptese de trabalho mais interessante quando se trata de sistemas. Porm, se partimos de cate-gorias peirceanas, podemos perfeitamente falar de signo e de semiosis sem ter de recorrer noo de sentido. No seu lugar podemos introdu-zir a noo de "interpretvel". A noo de signo bifacial deixa ento de ser pertinente. Do mesmo modo, a noo de interpretao apela para uma actividade cognitiva. A noo de sentido apela para um sis-tema autnomo, concebido conforme ao modelo da teoria dos con-juntos. O sistema est sujeito a todos os paradoxos dos conjuntos, submetido inevitavelmente teoria dos "tipos" (Bertrand Russel) e ao dilema de Gdel: um sistema no ser nunca ao mesmo tempo coe-rente e completo. Um sistema postula, pois, necessariamente, outros sistemas. verdade que a noo de "sistema" se adapta bem s neces-sidades das linguagens artificiais para que foi criada. Mas a linguagem ordinria no um sistema de signos, sim um dispositivo de conheci-mento. Por outras palavras, as significaes no pertencem ao sistema mas ao dispositivo aberto e nico de simbolizao. A semitica cogni-tiva privilegia, pois, a actividade de inferncia mais do que de desco-

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    dificao. O tipo de inferncia mais idneo para dar conta do indivi-dual qualitativo aquele que Peirce faz derivar da apagog de Aristteles, mas que descreve a seu modo: a abduo. Peirce definiu a abduo como o processo de inovao de sentido e de referncia ao nvel da hiptese constitutiva de uma teoria A abduo o processo de formao de uma hiptese explicativa. a nica operao lgica que introduz uma nova idia; porque a induo nada faz seno determinar um valor, e a deduo envolve meramente as conseqncias neces-srias de uma hiptese pura." (Peirce, 1934: V; ver tambm 106). Nesse sentido, a cincia deveria combinar diversos instrumentos: "(...) concebemos naturalmente a cincia como tendo trs tarefas: (I) a descoberta de Leis, que conseguida pela induo; (2) a descoberta de Causas, que conseguida pela inferncia hipottica; (3) a predio de Efeitos, que conseguida pela deduo" (Peirce, cit. in Apel, 1981: 103-104). Dado que a verdade da deduo condicionada pela ver-dade das premissas, e a induo meramente determina as grandezas, a abduo que introduz novas idias e determina as inferncias proba-bilsticas. A abduo descreve ainda um acto de iluminao, um flash: a "sbita idia" de Newton, a leitura de Malthus por Darwin ou ainda a sua analogia definindo a hiptese de descendncia comum, a "ilumi-nao" de Poincar, a "idia fecunda" de Claude Bemard (Stengers, Schlanger, 1991: 70). Este tema tem sido discutido na epistemologia, dando origem a conceitos descritivos mas sem contedo lgico aut-nomo, com algumas excepes como o conceito de "imputao onto-lgica" de Quine (Lawson, 1989: 68), a apresentao por Khun da formao de teorias como "proposies imaginativas" (Khun, 1989: 338), a definio por Popper do "conhecimento meta-cientfico" pre-liminar ao teste (Popper, 1982: 242 e, porventura, a concluso final de Friedman no seu ensaio sobre o positivismo econmico.^.

    Desde h muito que vrios investigadores se deram conta de que a semitica dos modos do sensvel no pode desenvolver-se nem na ignorncia das pesquisas cognitivas actuais, nem como uma simples reformulao das suas proposies'^. A semitica dinmica aproxima--se em alguns aspectos da problemtica das cincias cognitivas.

    6 F. Loua, 1996:91-92. 7 Jacques Fontanille, "Modes du sensible et syntaxe figurative", in Nouveaux Actes

    Smiotiques, 61-62-63, 1999, p. 14. Vd. J. Fontanille e C. Zilberberg, Tension et Significaiion, Mardaga, 1998.

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    nomeadamente atravs do conceito de complexidade^ (B. Lamizet), de contnuo (J. Petitot), de tensivo ou de correlatos neuro-cognitivos do processo semitico que observamos nos discursos concretos (Fonta-nille). A mediao semitica de uma grande complexidade como disso testemunham os problemas difceis do jogo, da fico sobre os quais as pesquisas cognitivas pouca luz fizeram. A semitica constitui assim uma instncia mediadora entre os estados mentais e os estados cerebrais. "A semitica, e em particular a semitica das culturas, deve ser considerada uma disciplina crucial das pesquisas cognitivas - e no como um salo do pronto-a-pensar destinado a estetas"^.

    O objecto da lingstica no so as palavras mas o textos. O objecto da semitica no so os "signos" nem as representaes men-tais (objecto da psicologia cognitiva) mas as representaes materiais, extemas, o sentido (a significao). A semitica, em particular sua teoria da aco e da paixo, do valor e da intencionalidade, interessam os desenvolvimentos sobre a sensorialidade que as pesquisas cogniti-vas desenvolvem, nomeadamente nos trabalhos de Varela, Thompson e Rosch a proposto do "n sensori-motor". No faltam resistncias da hermenutica contra a naturalizao do sentido. Tomou-se inevitvel pensar que, "o pensamento semiotiza-se em signos extemos que, por seu tumo, determinam as formas de pensamento"*^. Essa mediao, porm, assenta na partilha dos cdigos, interagindo com as mediaes sociais, institucionais, tecnolgicas. E certo que os temas da her-menutica material respondem, por um lado s necessidades de uma semntica que deve pensar a diversidade dos textos no interior de uma semitica das culturas, logo romper com o universalismo e o ontolo-gismo e que, por outro lado, se ajustam a uma concepo da vida como actividade de modificao e de interpretao do envolvimento humano, a tomada em conta do caracter semiotizado, culturalizado, do mundo vivido''. Mas essas no so razes suficientes para rejeitar aquilo que no uma simples moda actual: a naturalizao do sentido.

    8 A complexidade dos sistemas cognitivos torna o eliminativismo do reducionismo fisicalista impossvel de aplicar na prtica.

    9 Op. cit., p. 243. 10 Jean-Pierre Meunier, "Vers une smiotique cognitive", Congresso SOPCOM,

    Lisboa, 1999. 11 Pierre Dard, "La smiotique interprtative de F. Rastier", Smiotique et Bible 80,

    1995, p28.

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    Saussure remetia aquilo que na linguagem no pertencia insti-tuio social da lngua para o domnio da psicologia. A lngua e as linguagens - sem a fala e o sujeito da fala - eram domnios autrcicos, fechados, cortados da interaco social e da nossa mediao com o real (B. Lamizet). Pela negao da tese da autonomia da linguagem, a lingstica cognitiva ope-se aos dois paradigmas lingsticos anterio-res (o estruturalismo e o gerativismo). O estruturalismo lingstico, nas suas "diferentes formas, entende e estuda a linguagem como um sistema que se basta a si mesmo e, por conseguinte, o mundo que ela representa e o modo como atravs dela o percebemos e conceptuali-zamos considera-os como aspectos "extra-lingusticos". A gramtica gerativa defende por seu lado que a. faculdade da linguagem uma componente autnoma da mente, especfica e, em princpio, indepen-dente de outras faculdades mentaisi^. Ao postular uma "faculdade de linguagem" inatamente especificada e independente de outras capaci-dades mentais, o racionalismo de Chomsky construiu uma gramtica (melhor uma sintaxe) autnoma e independente, externamente em relao ao conhecimento "enciclopdico" e estrutura cognitiva, e intemamente em relao semntica e fonologia. A gramtica cog-nitiva procura demonstrar, pelo contrrio, a continuidade e a conexo que existem entre a linguagem e outras capacidades cognitivas gerais (como a conceptualizao, a categorizao, a memria, a ateno); a competncia gramatical assim um aspecto e uma manifestao da inteligncia humana.

    O estruturalismo dinmico e gentico permite dar conta da emer-gncia das estruturas modificando profundamente a epistemologia das disciplinas estruturais. Estas viveram durante muito tempo com a idia (neo-aristotlica) que as estruturas emanam de uma "forma" pura-mente relacionai que se implanta numa "matria" amorfa que lhe ontologicamente estranha. Reconhece-se aqui o dualismo forma/mat-ria que est na origem do postulado estruturalista do primado ontol-gico da forma sobre a matria. A idia fundamental de J. Petitot que a forma o fenmeno da (auto)organizao da matria, por outras palavras que a substncia no uma matria em que se vem implantar uma forma ontologicamente autnoma mas antes uma matria (um substracto) dinamicamente (auto)organizado. Brandt retomar esta

    12 Augusto Soares da Silva, "A Lingstica Cognitiva. Uma breve introduo a um novo paradigma em lingstica", in Revista Portuguesa de Humanidades, vol 1 -1/2, 1997, p. 61.

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    declarao de guerra ao dualismo formalista na redefinio que d da semitica dinmica. Desde h alguns anos que a semitica se inte-ressa, de facto, pela substncia, pelo contnuo, pelo sujeito e pela per-cepo, ultrapassando assim o quadro estruturalista de onde emerge: " evidente para toda a gente que a reivindicao de um 'sentir' semitico, que vem completar o 'conhecer' prprio de uma semitica cognitiva, pelo menos arriscado, porque pode encorajar o regresso a consideraes impressionistas mais ou menos controlveis; mas (...) v-se mal como voltar a dar ao sujeito do discurso um corpo, de que no deveramos nunca t-lo privado, se renunciamos quilo que faz a sua eficcia semitica: a sensao, o transporte ou o frmito. Haver um lugar para categorias 'impressivas' em semitica"?'^. a "natura-lizao do sentido" uma moda actual? H no interior da evoluo da semitica que se pode chamar post ou peri ou para Greimas uma revi-ravolta que corresponde assuno do natural. Um programa de investigao novo se apresenta: o explicativo est do lado da emer-gncia da forma a partir da matria. Vou tocar alguns pontos de con-vergncia de campos at h bem pouco tempo separados: a cognio e a semitica: o programa cognitivista de naturalizao do sentido e a teoria fisicalista de J. Petitot. Estaremos frente a um problema da reduo: da lingstica a uma gramtica e a uma ontologia? A semi-tica do discurso e a scio-semitica sofreram nestes ltimos anos uma deslocao metodolgica significativa de modo a aproximar-se "das prprias coisas". A semitica mediadora entre os "estados de coisas" e as suas representaes. No se passa directamente de uma objectivi-dade fsica a uma representao subjectiva. Essa a especificidade da cognio humana. Hugo de S. Victor traz-nos uma dificuldade: "A significao das coisas muito mais diversa que a das palavras: pou-cas palavras possuem mais de duas ou trs significaes, enquanto o que uma coisa qualquer para significar outras, pode ser to mltipla como as propriedades visveis ou invisveis que ela contm e que lhe so comuns com as outras coisas" (De scripturis et scriptoribus prae-notatiunculae, XV). A deslocao estaria na passagem da anlise do discurso enunciado anlise do discurso em acto (e da sua enunciao).

    Podemos, a partir de um inventrio de dados sensveis (gostos, odores, dta visuais, etc), reconstruir na base de operaes explcitas os elementos fundamentais de uma semitica. A tipologia dos signos, como a enunciou Peirce, pode conceber-se como um a priori da per-

    13 Jacques Fontanille, Smiotique du visible. Paris, PUF, 1995, p. 1.

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    cepo. A hiptese essencial para esta demonstrao pode resumir-se assim: existe um paralelismo estrito, talvez uma identidade, entre a elaborao semitica da percepo e a fenomenologia desta mesma percepo (entre Semitica e Faneroscopia na linguagem de Peirce). De facto, o mundo dispe-se como uma cena em que algo acontece: uma nota de msica, uma intensidade. Os fenmenos no so nem objectos nem sujeitos; os fenmenos apreendem-se na interface entre um meio e outro - lugar de diviso, so-nos dados modalmente. Do lado da "coisa", o fenmeno - essa coisa uma grandeza intensiva. a operao de esquematizao que transforma algo como imediato em imagem. F. Bourdron fala de fenomenologia na terceira pessoa. O momento fenomenolgico transforma-se em momento semitico atra-vs desta operao. As trs snteses de Kant permitem visualizar esta operao como 1) intuio (algo que v como o ndice de um signo) -o noumenon fenomenolgico indiciai. A primeira percepo indi-ciai, deve tomar forma, durar; 2) essa efectuao, essa passagem que obra da imaginao: o real dado icnico, os actantes no so apenas foras, a realidade narrativa icnica; 3) sntese da recognio no conceito (de natureza funcional) pe ordem em algo constitudo em leis gerais - o que introduz uma legalidade sobre os cones. Jean--Pierre Meunier confirma esta nossa hiptese segundo a qual as signi-ficaes se originam a partir dos dados imediatos dL percepo: 1) O pensamento de natureza essencialmente icnica. Comea pela dupli-cao mimtica, ou imitao, que gera, como mostrou Piaget, a ima-gem mental. Desenvolve-se depois, atravs de uma hierarquia de representaes icnicas que vo das coisas que esto ao alcance do corpo (o nvel base de Rosch, Lakoff) at modelos mentais cada vez mais abstractos mas sempre icnicos. 2) O conhecimento por cones um conhecimento por perfis, o que significa que qualquer imagem ou modelo pe em evidncia certos aspectos dos fenmenos e apaga outros. 3) A construo de modelos baseia-se numa actividade de assimilao (Piaget) ou de comparao (Langacker) e implica, por isso, como processos fundamentais: a metaforizao (descrita por Lakoff como projeco de um domnio-fonte sobre um domnio-alvo) e a esquematizao, ou evidenciao da parte comum a objectos ou situaes anlogas; tais esquemas (ou cenrios) tomam, depois, pos-sveis as inferncias. 4) Os modelos retidos em memria constituem uma vasta rede de esquemas encastrados uns nos outros e podendo especificar-se mutuamente.

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    O debate acerca da iconicidade da percepo, dos sistemas semi--simblicos da linguagem e das formas pr-semiticas da realidade est lanado desde j alguns anos (Cf. Colquio lector in Fbula, Lovaina, 1999). Jean Petitot evoca um escrito de Umberto Eco que diante da imensa fronteira entre o esprito e a matria, a cultura e a natura conclui: "permitam-me ficar por aqui porque isso aterroriza--me"''^ que trata das formas pr-semiticas da realidade. A tese de Eco a seguinte: h "algo no contnuo da experincia que impe limites s nossas interpretaes". Jean Petitot confronta-se com esta fronteira, conduzindo desde h vrios anos um programa de naturalizao do esprito e de naturalizao do sentido, um programa complementar de um outro, dominante nas cincias humanas, o da culturalizao da natureza. Este programa de investigao levanta imensos problemas epistemolgicos. Donde a parfrase de Pascal em Eco. Se pomos em causa a disjuno do sentido e de uma certa demiurgia da linguagem essa disjuno pe em causa a distino clssica entre cincias da natureza e cincias do esprito (Dilthey). Este programa comea pela crtica do idealismo semitico e pela possibilidade de desenvolver modelos materialistas que permitam ultrapassar o idealismo formalis-ta. Este idealismo est presente nas abordagens formalistas do sentido que domina a grande fase do estruturalismo lgico-combinatrio. Este idealismo retoma por sua contra uma verso da oposio aristotlica tradicional entre forma e matria - a matria um contnuo magm-tico, amorfo, passivo e a imposio da forma enquanto princpio activo que confere uma estrutura diferenciada e mesmo diferencial a esta passividade material indiferenciada e, ao faze-lo, a substncia gera o sentido. O sentido a forma do sentido e esta forma uma forma no sentido formal. Algbrica ou geomtrica, no formalismo a forma uma forma simblica e puramente relacionai.

    Apontemos as conseqncias deste formalismo formalista: (1) o sentido toma-se completamente desencamado (desemboded). Perde toda a relao com o mundo natural extemo e com o par percepo/ac-o que permite a nossa relao ecolgica (Gibson) e etolgica com este mundo. E a questo da sua implementao no processo cognitivo toma-se impossvel de fazer. (2) o sentido toma-se autonomizado a priori, i.., fora de qualquer processo de autonomizao. Esta autono-mia faz do sentido uma entidade de certo modo demirgica. Somos

    1"^ Cf a ltima obra de Eco, Kant et Vomithorynque, Grasset, 1999.

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    obrigados a conferir-lhe uma espcie de poder formante - preciso que tenha a possibilidade quase de agir causalmente, uma espcie de causa final para estruturar o continuo amorfo da matria. (3) chegamos assim a um dualismo entre de um lado as abordagens naturalistas e de outro as abordagens formalistas idealistas. (4) rompe-se com as abor-dagens naturalistas no-semitica da matria e a idealidade formalista da forma. A forma separada de qualquer princpio auto-organizador interno no pode ser seno uma forma simblica, uma forma lgico--combinatria. Perde todo o estatuto fenomenal observvel e separa-se da sua gnese. Donde o conflito clssico entre gnese e estrutura. Antiga querela que respeita relao entre o sensvel e o inteligvel e remete para uma digamos "antinomia da estrutura", formulada por Eco no seu Tratado de semitica: "a estrutura um objecto enquanto estruturado ou o conjunto das relaes que estruturam o objecto e que podem ser abstractas do objecto?" Ouellet retoma o problema nestes termos: " o sentido das nossas palavras que d ser quilo que da natureza ou a natureza das coisas que nos faz aparecer o sentido como ele ?"

    Uma estrutura simultaneamente um objecto estruturado e uma forma inteligvel. Se somos realistas - idealismos da forma forte (Frege, Bolzano) confere-se uma dignidade ontolgica estrutura, directamente; se se nominalista considerar-se- que a estrutura um epifenmeno, e faz-se dela um metaconceito metodolgico e operat-rio. Desde h muito que a obra de Jean Petitot tenta dar um pouco de came ao eidos estrutural, logo o naturalismo, abordagem que fusionou desde h algum tempo com um certo nmero de investigaes cogni-tivas que colocam em primeiro plano os problemas daquilo que se chama embodiment, a incamao das estruturas. Vejam-se os traba-lhos de lingistas cognitivistas (Lakoff, Langacker) e um conjunto de trabalhos que relevam da fenomenologia. ((Husseri, Merieau-Ponty) com relao com as neuro-cincias cognitivas. (Naturalizao da Fenomenologia). As ideais fora desta tese so as seguintes: (I) a camada semitica do sentido no autnoma; se falamos de autono-mizao preciso saber descrever este processo. Enraza-se por um lado na estruturao morfolgica do mundo natural e por outro no corpo prprio, na percepo, na aco, na sinestesia, o comportamento em sentido etiolgico, ecolgico. (2) a dependncia do sentido relati-vamente ao mundo natural no pode compreender-se se o mundo natu-ral no reduzido a uma semitica, necessrio que haja uma organi-

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    zao pr-semitica do mundo natural qual enquanto espcie animal nos temos que adaptar ecologicamente. Esta estruturao pr--semitica, o que no quer dizer que ela seja independente de qualquer subjectividade - a relao dos animais com esse meio ambiente pr--semitico nesse sentido.

    Resumamos: o nvel pr-semitico fundamentalmente percepti-vo e de natureza relativamente sinttica. As abordagens estruturais do sentido so dependentes de teorias que analisam a sua estruturao morfolgica muito semitica. No respeitante s morfologias naturais existem j modelos fsico-matemticos. Teorias das catstrofes e das bifurcaes de atractores de sistemas dinmicos no lineares, teorias dos fenmenos crticos e das rupturas de simetria, teoria da auto--organizao que explicam como na base de processos de interaco e de comportamentos colectivos coordenados unidades de pequena escala se podem organizar em estruturas emergentes de grande escala. So elas que permitem organizar aquilo a que Per Aage Brandt cha-mou uma "feno-fsica" e que mostraram que o nvel morfolgico "macro" emergente se organiza em torno das singularidades - des-continuidades qualitativas - dos processos "micro" subjacentes. Este autor analisa trs hipteses que explicam o 'sistema' cognitivo dos domnios, simultaneamente fechado e finito e aberto e infinito. Uma primeira hiptese (G. Lakoff, M. Johnson) que h um domnio bsi-co e primrio cujos contedos esto directamente ligados ao corpo humano e aos seus limites mesoscpicos, enquanto outros domnios -mentais, sociais, tcnicos, etc. - so criados por metforas. Uma outra hiptese (Merleau-Ponty) que os significados bsicos se referem a um mapa horizontal de domnios que agem como um filtro semntico genrico que selecciona sentidos simultneos de uma ocorrncia. Os corpos humanos ('Ia chair') tomam diferentes sentidos em domnios diferentes - fsico, social, ertico, expressivo, etc - e nenhum deles mais bsico do que os outros; no h hierarquia, mas antes uma dispo-sitivo paratctico, um paradigma finito de reas naturais predispostas de sensibilidade e que interagem sinfonicamente. Uma terceira hip-tese, transversal e morfo-gentica em que o domnio emerge ao longo da evoluo humana durante a sua 'ontognese" i^ . Essa morfologia ento reconhecida pela categorizao lingstica.

    15 Per Aage Brandt, "Domains and teh Grounding of Meaning", www.hum.aau.dk/ semiotics, p. 3ss.

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    O conceito estruturalista formal de forma deve ser substitudo por um conceito gentico de forma como imergindo de processos de auto organizao. Para Jean Petitot: a forma o fenmeno da organizao da matria. A forma o fenmeno da substncia. A forma o fen-meno de organizao da matria, sendo a substncia a matria organi-zada pela forma. Donde um duplo destino da forma. No caso das for-mas naturais o substracto material dado. O idealismo da forma (o vitalismo por exemplo) resultava das dificuldades inultrapassveis da teorizao. No era imposto pelos fenmenos enquanto tais. No caso das estruturas cognitivas, semiticas e simblicas a matria no dada no fenmeno e por isso que a objectivao da forma se faz em geral segundo o modo formalista: o idealismo formalista impe-se quando as formas so separadas da sua matria. A matria da cognio, do pensamento, da conscincia, do esprito e do sentido, a matria em que as suas estruturas se implementam a matria neuronal (Petitot, 1999: 114).

    Um olhar sobre a teoria do objecto dinmico de Pierce confirma esta tese. Aqui h por um lado objecto imediato que o modo de doa-o de outro objecto que Pierce chama de objecto imediato que dado pelo signo e estimulado pela produo do signo. Eco: "Naturalmente o mesmo problema que se encontra em Pierce encontra-se j em Hjelmslev a propsito do continuum^^: o objecto dinmico determina o modo de organizao do objecto imediato? Resposta: porque Pierce acreditava na constncia das leis naturais da natureza, evidente que o objecto imediato encontra um sentido j implcito no objecto din-mico'"'. Hjelsmlev precisou a teoria de Saussurei^ insistindo no facto 16 A fronteira entre a substncia e a forma, segundo Hjelmslev, como de resto a

    fronteira entre o objecto dinmico e o objecto imediato de Peirce, deslocou-se. A ft-onteira entre o plano da expresso e o do contedo deslocou-se. De cada vez que a fronteira entre a expresso e o contedo se desloca, novas correlaes entre formas aparecem, suspendendo as formas precedentes.

    17 o corpo prprio que faz dos dois universos (interoceptivo e exteroceptivo) os dois planos de uma lingugem. O corpo sensvel est no corao da funo semitica, o corpo prprio o operador da reunio dos dois planos das linguagens (Cf Fontanille, 1998: 41)

    18 Vd. M. Arriv, "Modeste contribution Ia tache de dnombrement des Saussure" in Smiotique^Phnomnologie, Discours, L'Harmattan, 1996, pp. 51-60. Afinal, no h apenas um Saussure, mas pelo menos quatro: o do Curso de lingstica geral (1916), o dos Anagramas (1960, 1971), o da lenda, essencialmente germnica (1986)! o do Mmoire, da tese De Vemploi du gnitif absolu en sanscriti.

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    que os dois planos reunidos numa funo semitica eram antes de mais substncias: afectivas ou conceptuais, biolgicas ou fsicas: estas substncias correspondem grosso modo s "imagens acsticas" e s "imagens conceptuais" de Saussure. Mas a sua reunio graas fun-o semitica converte-as em formas: forma da expresso e forma do contedo. O processo de formao de valores corresponde passagem da substncia forma: a substncia sensvel, a forma inteligvel. A substncia o lugar das tenses intencionais, dos afectos e das varia-es de extenso e de quantidade; a forma o lugar dos sistemas de valores e das posies interdefinidas (J. Fontanille, 1998: 39).

    Existe uma estruturao ante predicativa e pr judicativa do mundo entendida como uma condio de possibilidade do sentido. Por outras palavras o continuum no amrfico, estruturado, e sobre essa estruturao que se funda uma possibilidade de semiotizao'^. At Umberto Eco, de "estruturalista", passou a "realista" moderado. A esta estruturao ele chama o "n duro do ser"(1996) - estranha lin-guagem para um semitico. Uma metfora ocorre para dizer aqui o essencial: h linhas de resistncia e possibilidades de fluxo no magna do continuo, como h nervuras no mrmore e na lenha que permitem cortar numa direco mais do que noutra. Se h linhas a seguir por-que o contnuo estruturado. Jean Petitot convoca em seu auxlio um matemtico clebre, Andr Weil (1940) que escreve "A Matemtica no seno uma arte, uma espcie de escultura numa pedra extrema-mente dura e resistente como certos perfis empregues pelos escultores. O matemtico est de tal modo submetido aos fios e contrafios, a todas s curvaturas e aos acidentes da matria que trabalham que isso confere sua obra uma espcie de objectividade e o que a se faz obra de arte por isso mesmo inexplicvel". Jean Petitot retoma esta citao dizendo que: "este estatuto de objectividade desse tipo: o sistema de constrangimentos, a morfologia, o fio, os acidentes, tudo isso imposto pela matria que se trabalha. esta abstraco que permite uma produtividade de tipo artstico. O estatuto de objectivi-dade da estruturao pr semitica do mundo natural desse tipo. O sistema de constrangimentos objectivo por causa dos constrangi-mentos impostos pela matria. H, ento modelos de organizaes, de morfologias, h uma teoria das formas que no uma semitica. Pode

    19 Sobre a questo (antiga) do continusmo, ver Louis de Broglie, Continu et Discontinu en Physique moderne. Paris, Albin Michel, 1941.

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    falar-se de ecologias da percepo, de estruturas semioticamente per-ceptivas no meio ambiente para designar essa teoria das formas que no apenas semitica.

    O conceito de "limiar semitico" na concepo clssica da semi-tica, est colocado muito baixo. O naturalismo consiste em fazer subir o limiar. A culturalizao dos signos naturais como indexes que per-mitem diferenas, passa por interpretantes socio-psicolgicos no sen-tido ingnuo, mas em Pierce a oposio entre no semitico e semi-tico no reduplica a oposio que existe entre natural e cultural. H interpretantes naturais em Pierce sem sujeito psicolgico, sem con-veno social, porque numa certa medida toda a funo ligada a uma estrutura faz intervir um interpretante.^o. As reaces fsico-qumicas complexas constitutivas de um organismo biolgico so semiticas. O limiar imunolgico um sistema semitico inteiramente bioqumico. O vivo uma mquina semitica natural. Em Pierce, o limiar: "semi-tica" e "no semitica" nada tem a ver com a oposio entre social e cultural, uma oposio entre o nvel didico e tridico. O que o diadismo? um determinismo causai em sentido mecnico, do tipo estimulo resposta. H causas eficientes que produzem mecanicamente efeitos. E a triadicidade que implica o semitico. Num nvel tridico h sempre um interpretante. E que faz um interpretante? Selecciona estmulos que so funcionalmente pertinentes para o sistema em rela-o com o seu meio ambiente. Ao servio de uma funo. E nesta semitica da natureza que Pierce pensou a evoluo biolgica. A natu-reza , pois, auto - interpretante. O limiar semitico no-semitico deste ponto de vista sobe muito acima do iconismo trinrio.

    Falta saber se samos do diadismo antiqussimo de onde vimos.

    20 O objecto dinmico da ordem da percepo e o objecto imediato s existe a partir do "ponto de vista" que impe o "fundamento". O objecto um puro artefacto suscitado no esprito de um sujeito pelo representamen; o objecto dinmico apenas um conjunto de possveis, submetido a uma instruo semntica. O objecto imediato uma imagem mental do precedente e uma imagem empobrecida porque nele s se retm uma parte extrada do mundo categorizado. O referente est j submetido a concepes modais, perceptivas e categoriais. A teoria do signo no nos conta a emergncia de uma significao nova, apenas apreende um momento numa vasta semiose infinita. Os dois elementos sensveis, o representamen e o objecto dinmico esto submetidos a um princpio de seleco recproca: o repre-sentamen s pode estar associado ao objecto se controlado pelo interpretante e o objecto no pode associar-se ao representamen seno sob um certo ponto de vista, o fundamento.

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    Em Plato e Aristteles (tal como foi transmitido pelos neo-platnicos Porfrio, Amonius, Bocio), o signo encontra-se cindido: por um lado o significante, da ordem da matria; do outro o conceito que pertence ordem irredutvel do esprito. Os Doutores e Padres da Igreja, em particular Orgenes e Agostinho, vo reforar esta ciso atravs da oposio paulina entre a letra e o esprito, sendo a letra evidentemente da ordem da matria. A separao entre a forma e a substncia uma das teses recorrentes da tradio platnica (v.g. Marsilio Ficino define o Cu como "uma forma que existe em si mesma sem matria). uma separao que influenciou a tradio crist, para quem as formas puras so as Inteligncias celestes. "A alma racional a forma do homem" (Suma teolgica, I, 1, 9). Os cognitivistas ortodoxos retm da alma apenas um dos seus atributos, a razo, e afirmam que as "funes inte-ligentes" so, quanto sua racionalidade formal, comuns ao homem e aos computadores. A razo deixa, pois, de ser o prprio do homem. Mas a dualidade entre forma e substncia homologada com outras dualidades, esprito e corpo, simblico e fsico (Fodor e Pylyshyn). No plano filosfico a distino entre soft e hard continua a marcar a sepa-rao entre o esprito e a matria, sob as espcies da oposio entre a forma e a substncia (ou substracto material). E, de resto, para resol-ver a aporia que decorre deste dualismo, que alguns conexionistas (cf. Smolensky, 1988) propem a noo de nvel subsimblico a que atri-bui um papel de mediao entre, por um lado, o simblico e o fsico e por outro, o simblico e o biolgico.

    Falta saber se alguma vez abandonamos o fantasma do Um, que a utopia da razo filosfica. Se alguma vez estamos dispostos a aban-donar a violncia do unitarismo^i. H razes para suspeitar da sua pervivncia. O "sinequismo" peirceano - que no atribui matria fsica disposies de uma qualidade comparvel dos organismos vivos e, a fortiori dos seres inteligentes: a indeterminao, a adapta-bilidade, o controlo e autonomia das disposies fsicas - pode ser visto como um materialismo no dualista e portanto no fundaciona-lista. H razes de sobra para suspeitar do ecumenismo das cincias. S haver alteridade radical na dualidade? O trabalho da interdiscipli-naridade deve servir para aplanar os caminhos tortuosos por que cada disciplina tentada a seguir. Deve ser tambm por isso que se apela para uma tica da cincia.

    21 Jean Baudrillard, L'change impossible. Paris, Galile, 1999, p. 116.

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