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renato cohen PERFORMANCE COMO LINGUAGEM CRIAÇÃO DE UM TEMPO-ESPAÇO DE EXPERIMENTAÇÃO EDITORA PERSPECTIVA

Cohen Renato Performance Como Linguagem

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renato cohenPERFORMANCE

COMO LINGUAGEMCRIAÇÃO DE UM TEMPO-ESPAÇO

DE EXPERIMENTAÇÃO

EDITORA PERSPECTIVA

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1* edição - Ia reimpressão

Direitos reservados àEDITORA PERSPECTIVA S.A.Av. Brigadeiro Luís Antônio, 302501401-000 - São Paulo - SP - BrasilTelefax: (0—11) 3885-8388www.editoraperspectiva.com.br2002

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a Joseph Beuysartista radicale humanista.

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SUMARIO

UMA BOA PERFORMANCE-Renato Cohen 13PREFÁCIO-Artur Matuck 15DO PERCURSO 19INTRODUÇÃO 23

Dos Objetivos 25Dos Conceitos 28Do Processo de Pesquisa 30

1. DAS RAÍZES: LIVE ART- PONTE ENTRE VIDA EARTE 35Ontologia da Performance: Aproximação entre Vida eArte 37Das Raízes: Uma Arte de Ruptura 40Movimentos Congêneres: Da Contracultura à Não-Arte 45

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2. DA LINGUAGEM: PERFORMANCE-COLLAGECOMOESTRUTURA 47Da Legião Estrangeira das Artes: Criação de um Anti-Gesamtkunstwerk 49Da Criação: Livre-Associação e Collage comoEstrutura 60Da Utilização dos Elementos Cênicos: O Discurso daMiseenScène 65Estudos de Casos: Do Ritual do Conceituai comoExpressões de Performance 76Da Ideologia da Performance: Uma Reversão daMídia 87

3. DA ATUAÇÃO: O PERFORMER, RITUALIZADOR DODSfSTANTE-PRESENTE 91A Dialética da Ambivalência 93Ruptura com a Representação: Valorização do Sentidode Atuação 96Verticalização do Processo de Criação: O AtorEncenador. 98Do Momento de Concepção: Criação de uma CenaFormalista 102Do Momento de Atuação: Ritualização do Instante-Presente 109

4. DAS INTERFACES: PERFORMANCE -CRIAÇÃO DEUM TOPOS DE EXPERIMENTAÇÃO 113A Idéia de um Topos Cênico 115Da Relação Binaria: Emissão e Recepção 121O Modelo Estético: Da Representação à Fruição 123O Modelo Mítico: Da Vivência à Intelecção 128Free Teatre - Happening e Performance: Ruptura daConvenção Teatral 132Da Passagem do Happening para a Performance:Aumento de Esteticidade 134Das Relações de Gêneros: Proposta de um ModeloTopológico 139

5. DO ENVIRONMENT: ANOS 80 - PASSAGEM DE EROSPARATHANATOS 141Niilismo e Esquizofrenia: Um Retrato de Época 143

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Do New Wave ao Pós-Moderno: Estética da Releitura.... 147O Darkismo Punk: Culto a Thanatologia 152

6. DOS LIMITES: PERFORMANCE COMO TOPOSARTÍSTICO DIVERGENTE 155Eive Art e Performance como Topos ArtísticoDivergente 157Da Experiência Brasileira: Limites 161Do Futuro: Mídias Dinâmicas como Suporte de uma Artede Resgate 163

BIBLIOGRAFIA 165Livros 165Artigos 167

APÊNDICE 169Material Fonte 171Fontes Textuais 172Artigos/Textos/Poesias 173Roteiro de Peças/ Performances Assistidas 174

ILUSTRAÇÕESYggy Pop 2 e 3Collage- Renato Cohen 18DeafmanGlance(Robert Wilson) 24Performance (Yves Klein, Piero Manzoni) 36Performance,Disappearances 48BoífyArt-GilbertandGeorge 92Cenas - Antonin Artaud 114Punks-1976 142Performance - Projeto Magritte - Rento Cohen 156Ciclo Performances-FUNARTE-1984 170

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UMABOAPERFORMANCE

Performance como Linguagem volta às mãos do leitor, emreedição. Em relação ao seu aparecimento inicial, o momento éoutro, já de plena absorção dessas manifestações expressivas,disruptoras, nos mais diversos segmentos que vão da arte dramática- com pleno diálogo no teatro contemporâneo - às artes plásticase literárias, da moda ao cotidiano, da televisão à política.

A questão da performance torna-se central na sua manifestaçãocontemporânea e o próprio campo de estudos amplia-se desde asmanifestações da arte-performance, cuja genealogia e modo deprodução são abordados neste livro, desde as questões da ritualização,da oralidade, da tecnologia, até as de todo o contexto cultural envolvidona ação performática e performativa, estudos esses que têm sidodesenvolvidos pela Performance Studies - associação filiada aosestudos pioneiros de Richard Schechner da New York University.

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Por outro lado, os modos inventivos e as ações ideológicasda arte-performance perpetrados por Joseph Beuys, pelossituacionistas em maio de 1968 e pela ação antiartística do Fluxusou contracultural de inúmeros atuantes são, hoje, contra-absorvidos ou antropofagizados pelos curiosos mecanismos damídia e da indústria cultural, que diluem assim sua virulência anti-sistema - dos ridículos reality-shows aos contorcionismos dosapresentadores "performáticos" da MTV, enforma-se toda umaprodução associada, de certo modo, ^performance, mas destituídade sua virulência transformadora.

Como foco de resistência, a investigação da performancetem migrado, desde os anos de 1990, de seu ponto de partida nascontundentes ações antropológicas e investigativas daconsciência e da corporeidade humana. É o caso das realizaçõesdo La Fura dei Baús, daperformer Orlan, de Marina Abramovic,de Tunga e outros, que colocam sua psique e corpo na busca dasextensões - e, curiosamente, grande parte deles está nomeadacomo pesquisa do "Corpo Extenso" - e, em outra frente, das açõese performances com tecnologia, desde trabalhos com mediaçãode corpo até inúmeras produções na Arte WEB (Internet), quedemocratizam a veiculação de cenas e acontecimentos e criamambientes de produção, semelhantes às ações dos anos de 1960.Assim, são geradas quer pesquisas de mutação e identidade, comoas de Eduardo Kac, quer experimentação erótica e subjetiva eveiculação de "rádios livres", como a Zapatista, as resistênciasdo Kosovo, entre outros acontecimentos performativos e políticos.Em outra frente, incorporam-se inúmeros processos desubjetivação, como as recentes pesquisas cênicas e performáticasna confluência entre arte e loucura, a exemplo dos trabalhos daCia Ueinzz (São Paulo), sob minha direção e de Sérgio Penna.

Por último, importa lembrar que Performance comoLinguagem tornou-se uma espécie de cult pioneiro (no caminhovisionário da Editora Perspectiva), em língua portuguesa, juntocom o livro de Luiz Roberto Galizia, Os Processos Criativos deRobert Wilson, na apresentação de repertórios e procedimentosda cena moderna e contemporânea, da performance em suamanifestação radical, corroborando, segundo depoimentos, ocaminho de inúmeros jovens artistas confrontados e autorizadospor essas perspectivas vitais.

Renato Cohenagosto de 2002

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PREFÁCIO

A partir dos anos 50 a atuação do artista plástico co-meçou a se inscrever na obra pictórica fazendo com queos processos de criação fossem registrados na superfícieda tela. Esta tendência de se valorizar o momento da cria-ção era o prenuncio de uma mutação na arte contem-porânea.

Enquanto as pinturas performáticas de Pollock e Kou-nellis registrando gestos expressivos ainda resultavam emrepresentações estéticas objetuais, o nascente movimentoda body art deslocava o ponto focai do produto para oprocesso, da obra para o criador. A body art assumia ocorpo como suporte artístico. A ação do artista sustentava-se como mensagem estética por si mesma e o seu registroresidual ou documental representava um epifenômeno. Aautoflagelação controlada, programada de Gina Pane pro-

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punha ao espectador um contato direto com uma ação dra-mática não representada, concebida como um elementoestático.

A expansão das artes plásticas em direção ao territó-rio do invisível, do irrepresentável questionava a sedimen-tação do pensar artístico e reclamava novos conceitos. Anoção de performance respondeu às novas proposiçõesestéticas e ao mesmo tempo sugeriu uma nova perspec-tiva de leitura da história das artes.

Roselee Goldberg identifica uma "história oculta" daperformance em nosso século identificando muitas dasteatralizações, das manifestações para-artísticas dos futu-ristas, construtivistas, dadaístas e surrealistas como per-formáticas. Jorge Glusberg em seu livro A Arte da Per-formance (traduzido por Renato Cohen e publicado pelaPerspectiva) refere-se à chamada pré-história da perfor-mance, identificando movimentos, artistas e eventos quelevaram ao reconhecimento da especificidade desta formaartística. Glusberg no entanto reconhece que a origem daperformance remonta à Antigüidade.

Gregory Battcock, em The Art of Performance, com-plementa esta concecpção ao afirmar:

Antes do homem estar consciente da arte ele tornou-se cons-ciente de si mesmo. Autoconsciência é, portanto, a primeira arte.Em performance a figura do artista é o instrumento da arte. É aprópria arte.

Atualmente a performance é um gênero plenamenteestabelecido no cenário artístico internacional e no brasi-leiro. A partir da década de 70 surgiram inúmeros artis-tas plásticos dedicando-se exclusivamente a esta forma deatuação estética.

No Brasil, no entanto, a absorção da performance re-fletiu um típico processo de colonização cultural, no qualos mais recentes avanços da cultura americana ou euro-péia são excessivamente valorizados pela mídia e assu-midos de maneira rápida e superficial, gerando eventos,obras e publicações equivocadas, e um público despre-parado.

O trabalho de Renato Cohen representa um esforçode se reformar esta situação. Fundamentado numa exce-lente pesquisa teórica e histórica da linguagem performá-tica Renato Cohen incorpora o Brasil em seu estudo,incluindo uma visão crítica de performances de brasileiras,

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concentrando-se nos trabalhos de Guto Lacaz e de OtávioDonasci.

O livro reflete um dilema de Renato Cohen em suaatuação profissional — ampliar os limites do teatro, absor-vendo a contracultura e a performance e ao mesmo tem-po fazer teatro, estabelecendo-se como profissional nestecampo de atuação.

O autor reconhece um topos específico à performance,mas a observa da perspectiva do teatro e assim esta-belece um confronto dialético e enriquecedor para ambosos gêneros.

Uma conseqüência possível e desejável desta publi-cação seria o incentivo à inclusão de performances emeventos do circuito cultural.

Artur Matuck

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DO PERCURSO

Várias motivações podem levar à escolha de um temae à delimitação de um feixe de interesse: motivações ideo-lógicas, estéticas e até afetivas. Evidentemente existe umacombinação desses fatores, mas, talvez, o mais importanteseja mesmo a identificação afetiva através da empatia coma obra e o processo criativo de alguns artistas.

Dois pontos se mostraram claros nesse processo —por um lado uma identificação com a cultura under-ground1 e, ao mesmo tempo, a busca dentro do teatro,que foi a expressão pela qual eu me engajei, de um re-sultado que não levasse unicamente à representação e ti-vesse maior aproximação com a vida.

1. Hoje, o underground já não é mais subterrâneo — essaidentificação diz respeito à contracultura, ao movimento hippie,à sociedade alternativa, à arte experimental etc.

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Ao falar do meu percurso acredito estar falando dahistória de outras pessoas da minha geração, dos filhos de64, todos bombardeados pelos mesmos influxos: obscuran-tismo cultural, formação de idéias padronizadas pela mí-dia institucionalizada, patrulhamento estético-ideológicopromovido pela esquerda, "ilhagem" em relação ao exte-rior etc. etc.

Do Teatro ficou o relato de uma "época de ouro",dos anos 60, principalmente em termos de um teatro expe-rimental: o Oficina, os festivais, a vinda do Living Thea-tre e de Bob Wilson, a presença de Victor Garcia, JéromeSavary e outros. Acompanhamos também, com o devidoretardo e filtro, comum às informações que vêm de fora,a passagem de inúmeras "ondas" e estéticas; o movimentobeat, a hippie generation e a contracultura, e mais recen-temente o movimento punk-new wave com todos seus des-dobramentos.

Esse contato através de relatos, leituras e alguma obser-vação despertava uma série de perguntas: como era esseprocesso do Living Theatre de "viver" teatro e não "re-presentar" teatro — será que conseguiam realizar Artaud?Que tipo de experiências Andy Warhol fazia na sua fá-brica? Como a antipsiquiatria e as técnicas orientais entra-vam no processo dos happenings? E muitas outras per-guntas que, transportadas para o que se via no Brasil,abriam outras indagações: por que as outras artes alcan-çavam grandes progressos e o teatro continuava tãoestagnado? A prática do teatro teria que ficar isolada dasoutras artes? Será que a única alternativa para a careticeera Brecht?

O meu início no teatro foi igual ao de quase todomundo — trabalho de ator baseado no método de Stanis-lavski. A partir de 1981, tomei contato com a obra deArtaud e sua proposta de um teatro ritualístico, transcen-dente, e realizei, em âmbito escolar, alguns happeningscom base nos textos "O Teatro e A Peste" e "O Teatroe A Metafísica"2.

Talvez um pouco desgastado pelo percurso da "ViaNegativa" seguida por Artaud, acabei me direcionandopara a obra de um artista que me abriu toda uma novaperspectiva de criação e de atuação: Bob Wilson. Alémda busca deste se dar por um caminho "luminoso" — ele

2. ANTONIN ARTAUD, O Teatro e seu Duplo, Lisboa,Editorial Minotauro, s.d.

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já foi chamado de Messias das Artes, o grande mérito deBob Wilson, é o de ser um artista que conseguiu sintetizar,e colocar em obra, grande parte da criação artística doséculo XX. Pelo menos em termos de uma criação devanguarda.

Nessa época, final de 1982, tomava contato tambémcom o pesquisador e artista Luiz Roberto Galizia, que foio primeiro orientador da pesquisa. Galizia havia traba-lhado diretamente com Robert Wilson e seu interesse pe-los arstistas americanos contemporâneos e pela idéia depensar uma arte total deram um grande impulso para aminha pesquisa, ainda incipiente.

Seguindo essa trilha, comecei a estudar outros teóricoscomo Appia e Gordon Craig, e acompanhar o trabalhode artistas contemporâneos como John Cage, Richard Fo-reman, Meredith Monk e Brian Eno, para citar alguns.No Brasil, alguns artistas como Aguillar, Ivald Granattoe Denise Stocklos realizavam experiências cênicas dife-rentes do que se acompanhava no teatro.

Em 1982, ainda, passei a fazer parte da equipe pilotode "animadores culturais" que faziam a programação dorecém-criado Sesc Fábrica da Pompéia. Foi um tempo degrande efervescência artística e, em apenas um mês, foilançado o I Festival Punk de São Paulo, e o I Eventode Performances.

A perfcrmance começa a impor-se como linguagem epara ela convergem uma série de artistas das mais diver-sas mídias, atraídos por essa novidade que abarca as expe-riências d vanguarda. Nesta época inicio minha pesquisasobre o tema.

Em 1983, no curso "Processos Criativos de RobertWilson", de Luiz Galizia, apresento a performance Mou-ra Bruma, uma criação a partir de trechos e imagens deUlisses de James Joyce. O título vem de uma aliteraçãode Molly Bloom, principal personagem feminina do ro-mance. A seguir realizei como roteirista e performer oespetáculo Dr. Jericko em Performance, calcado no Teatroda Crueldade e que foi apresentado na FAU/USP e naECA, juntamente com um show punk na festa do dire-tório acadêmico.

Em 1984 realizo como diretor e ator o espetáculoTarô-Rota-Ator, apresentado no Madame Satã durantedois meses. Esse espetáculo, baseado na simbologia do taromedieval, pesquisa a linguagem do teatro ritual. Algumas

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características dessa apresentação, como o predomínio dosímbolo sobre a palavra, o uso de estrutura não narrativa,a forma de ocupação do espaço etc, aproximavam-na dalinguagem de performance.

Em meados de 1985, Jacó Guinsburg assume a orien-tação da Dissertação. Sua orientação inicia-se num mo-mento crucial da pesquisa — o de estruturação e redaçãofinal do trabalho — e a discussão de inúmeros pontosconceituais abrangendo questões de linguagem, de repre-sentação, de estetização etc, permitiram uma visão menosrígida de algumas posições e uma abordagem muito maisglobalizante da questão da performance.

Em reuniões que alcançaram um cunho epistemológico,indo das discussões de princípios filosóficos (a fundamen-tação do momento de vida e do momento de representa-ção) até uma organização semiológica do tema, a interlo-cução com meu orientador permitiu um amadurecimentotanto intelectual quanto prático a respeito dos temas en-volvidos.

Em 1986 realizo como roteirista e diretor o espetáculoO Espelho Vivo-Projeío Magritte. Essa montagem, apoia-da em multimídia, permitiu exercitar uma série de con-ceitos elaborados na pesquisa e colocar em cena toda aexperimentação inerente à performance, levando às últi-mas conseqüências os aspectos de formalização.

Essa experimentação veio se somar à pesquisa teóricae espero com essa publicação possibilitar ao público emgeral a tomada de contato com um universo que é aomesmo tempo mandálico, inesgotável e pouco conhecidoe, ao contrário do que se pensa, não somente regido pelacriação impulsiva e aleatória.

Destaco a seguir, alguns nomes que foram grandesimpulsionadores deste trabalho: Regina Schnaiderman,Luiz Roberto Galizia, Wolney de Assis, Cláudio, Marcose Malina Cohen, Marisa Joelsons, I. E. Vendramini, ArturMatuck, Beth Lopes, Sérgio Farias, Guto Lacaz, OtávioDonasci, Gil Finguerman, Nando Ramos, Paulo Dud eJacó Guinsburg.

Renato CohenMestre pela ECA/USP

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INTRODUÇÃO

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Dos Objetivos

O objetivo primeiro deste trabalho é o de analisar achamada "arte de performance"1, estabelecendo suas re-lações com o teatro e outras artes.

Se de um ponto de vista prático muito se realizou noBrasil, em termos de performance, de 1982 para cá, omesmo não aconteceu de um ponto de vista conceituai,sendo raras as formulações teóricas sobre esta expressão,

Da mesma forma, todo um universo relacionado comesta expressão que engloba desde o teatro formalista con-temporâneo de grupos como o de Bob Wilson ou o Mabou

1. Nos artigos e ensaios, os americanos utilizam perfor-mance art para definir a expressão. Nesse sentido, adotaremos atradução acima ou, simplesmente, o termo performance.

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Mines, até a música minimalista, por exemplo, não temsido acompanhado, da forma necessária, por nossas publi-cações, independentemente do interesse que desperta nopúblico em geral2.

Dentro da carência que caracteriza nossa produçãocultural, enveredou-se, nas publicações de artes cênicas,pelos textos dramatúrgicos e pelo teatro engajado, na linhabrechtiana, criando-se um vácuo para toda produção vol-tada para o imagético, para o não-verbal, produção estasuportada em temas existenciais e em processos de cons-trução mais irracionais.

Essa mesma carência verifica-se em escolas e centrosde formação de artistas, onde, em termos de teatro, prati-camente ainda somente se trabalha com o Método de Sta-nislavski e com montagens totalmente apoiadas na drama-turgia.

Recentemente, com a crescente preocupação de inte-gração das artes — usa-se muito o termo "dança-teatro",por exemplo — e com o sucesso de grupos como os dePina Baush, Arianne Mnouchkine e Jérome Savary, queprivilegiam a encenação (calcada na experimentação), temhavido uma abertura para outro tipo de abordagem e paraa pesquisa de linguagem nas artes cênicas3.

Por outro lado, se existia um risco pela carência, como advento da performance como expressão, que veio preen-cher com um nome mágico todo o vazio da vanguarda,passou a existir um risco do lado oposto, com um excessode espetáculos oportunistas que vieram trazer um desgastepara as tendências de experimentação dentro da arte.

O que aconteceu é que a partir do momento queperformance começou a ser associada com "acontecimento

2. Esse interesse é despertado por artigos em jornais, princi-palmente da Folha Ilustrada que acompanha os eventos de van-guarda pelo mundo. É importante lembrar, no que diz respeitoàs publicações, que uma obra fundamental como O Teatro e seuDuplo, de Antonin Artaud, só foi publicada no Brasil em 1982(com a atenuante que já havia uma versão portuguesa da obra),e que os escritos beats também só estão sendo publicados agora,virando moda vinte anos depois de seu lançamento.

3. É importante lembrar que São Paulo foi, nos anos 70,um dos centros mundiais de experimentação teatral, estando aquiArrabal, Bob Wilson, o Living Theatre e o próprio Jérome Savary,que trabalhou no Teatro Ruth Escobar. No entanto grande parteda informação que se refere a esses anos de experimentação(exceto a que diz respeito às montagens do Teatro Oficina) nãofoi transmitida aos novos artistas.

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de vanguarda", qualquer artista ou grupo que fizesseum trabalho menos acadêmico atribuía-lhe essa designa-ção, independentemente ou não da produção ter algumacontigüidade com o que se entende por performance. Anoção que ficou para o público brasileiro é que perfor-mance é um conjunto de sketches improvisados e que éapresentada eventualmente e em locais alternativos.

Na verdade, o que procuramos demonstrar com o pre-sente estudo é que essas características são mais própriasdo que se entendia por happening e que justamente o quecaracteriza a passagem do happening para a performance*é o aumento de preparação em detrimento do improvisoe da espontaneidade. Performances, como as de LaurieAnderson ou do grupo Ping Chong, são extensamente pre-paradas e pouco improvisadas. No Brasil, trabalhos comoos de Guto Lacaz ou de Otávio Donasci também têmessa característica. É lógico que, numa comparação como teatro, a performance de fato se realiza, em geral, emlocais alternativos, com poucas apresentações e com mui-to maior espaço para a improvisação.

É nosso objetivo, portanto, efetuar um balanço de todaessa "experimentação" ocorrida no Brasil, documentandoo que de principal se produziu, ao mesmo tempo que coma introdução de algumas discussões e exemplos teóricosesperamos trazer uma contribuição para encenadores, di-retores, atores e interessados em geral, proporcionando ocontato com um universo ainda parcialmente desconhecidono Brasil.

Por último, a característica de arte de fronteira daperformance, que rompe convenções, formas e estéticas,num movimento que é ao mesmo tempo de quebra e deaglutinação, permite analisar, sob outro enfoque, numaconfrontação com o teatro, questões complexas como ada representação, do uso da convenção, do processo decriação etc , questões que são extensíveis à arte em geral.

Se por um lado a arte de performance tem sido exaus-tivamente estudada no exterior, através de ensaios e arti-gos, não temos conhecimento de nenhum trabalho que seproponha a uma análise comparativa com o teatro daforma que estamos fazendo.

4. No Cap. 4 analisamos com detalhe a transição da expres-são artística happening para a performance.

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Dos Conceitos

Apesar de sua característica anárquica e de, na suaprópria razão de ser, procurar escapar de rótulos e defi-nições, a performance é antes de tudo uma expressãocênica: um quadro sendo exibido para uma platéia nãocaracteriza uma performance; alguém pintando esse qua-dro, ao vivo, já poderia caracterizá-la.

A partir dessa primeira definição, podemos entendera performance como uma função do espaço e do tempoP = f(s, t); para caracterizar uma performance, algoprecisa estar acontecendo naquele instante, naquele local.Nesse sentido, a exibição pura e simples de um vídeo,por exemplo, que foi pré-gravado, não caracteriza umaperformance, a menos que este vídeo esteja contextualizado dentro de uma seqüência maior, funcionando comouma instalação5, ou seja, sendo exibido concomitantemen-te com alguma atuação ao vivo.

Para se adentrar nessa discussão topológica e sígnica,é interessante introduzir-se a conceituação de Jacó Guins-burg6 a respeito de encenação: para este, a expressão cê-nica é caracterizada por uma tríade básica (atuante-texto-público) sem a qual ela não tem existência.

Tomaremos esses conceitos, usados originalmente parao teatro, e os ampliaremos, à guisa de formulação daexpressão performance, aos seus limites mais extensos:

O atuante não precisa ser necessariamente um serhumano (o ator), podendo ser um boneco7, ou mesmo umanimal8. Podemos radicalizar ainda mais o conceito de"atuante", que pode ser desempenhado por um simplesobjeto9, ou uma forma abstrata qualquer.

5. Uma instalação é algum elemento sígnico, que pode serum objeto, um ator, um vídeo, uma escultura etc, que fica "ins-talado" num local fixo e é observado por pessoas que geralmentechegam em tempos distintos.

6. JACÓ GUINSBURG, "O Teatro no Gesto", Polímica,São Paulo, 1980.

7. GORDON CRAIG, em Da Arte ao Teatro (Lisboa, Edi-tora Arcádia, 1911), defendia a utilização de sur-marionetes (bone-cos) que poderiam reproduzir de forma mais precisa as idéias doencenador, por não estarem afetadas pela emoção humana.

8. JACK SMITH, um encenador underground, montou umapeça de Ibsen, onde as personagens, devidamente trajadas, eraminterpretadas por macacos, e as falas apareciam gravadas, focando-se cada persongem no momento de sua fala (Queer Theatre.Stefan Brecht).

9. GUTO LACAZ em sua Eletroperformance cria um atuan-te que é um rádio que pisca enquanto fala.

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A palavra "texto" deve ser entendida no seu sentidosemiológico, isto é, como um conjunto de signos que po-dem ser simbólicos (verbais), icônicos (imagéticos) oumesmo indiciais10.

No que tange à presença do público, é intreessanteter-se em mente a proposta de Adolphe Appia11 de sechegar a uma cena, que ele chama de "Sala Catedral doFuturo", onde não haja espectadores, só atuantes. A ques-tão da necessidade do espectador para algo ser caracte-rizado como arte (a supressão deste implicaria algo comoum psicodrama, onde todos têm a possibilidade de serespectadores-atuantes) tem sido objeto de grande polêmica.A posição que adotamos (ver Cap. 4) foi de considerarduas formas cênicas básicas: a forma estética, que implicao espectador, e a forma ritual, em que o público tendea se tornar participante, em detrimento de sua posiçãode assistente.

Definidos os três axiomas da cena, é importante fa-larmos da relação espaço-tempo, já que definimos a per-formance como uma função desta relação; podemos en-tender a determinação espacial na sua forma mais amplapossível, ou seja, qualquer lugar que acomode atuantes eespectadores e não necessariamente edifícios-teatro (a tí-tulo de exemplo, já foram realizadas performances empraças, igrejas, piscinas, museus, praias, elevadores, edifí-cios etc) .

A determinação temporal também é a mais amplapossível: Bob Wilson12, que justamente faz experiênciascom a relação espaço-tempo, realiza espetáculos de 12 a24 horas de duração (no Festival de Xiraz, em 1972, rea-lizou o trabalho Ka Mountain Guardenia Terrace, que du-rou sete dias e consistiu basicamente numa experiência detempo).

Por último, dentro dessa conceituação inicial da per-formance, é importante discutir-se a questão da hibridezdesta linguagem: para muitos, a performance pertenceriamuito mais à família das artes plásticas, caracterizando-sepor ser a evolução dinâmico-espacial dessa arte estática.

10. Sombras, ruídos, fumaças, figuras delineadas por luzesele.

11. ADOLPHE APPIA, A Obra de Arte Viva, Lisboa, Edito-ra Arcádia, 1919.

12. Não podemos classificar o teatro de Bob Wilson comoperformance, no entanto, existe uma aproximação entre seu pro-cesso de criação e trabalho e o processo dos artistas da perfor-mance.

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Essa colocação é bastante plausível; na sua origem(ver Cap. 1) a performance passa pela chamada body art,em que o artista é sujeito e objeto de sua arte (ao invésde pintar, de esculpir algo, ele mesmo se coloca enquantoescultura viva). O artista transforma-se em atuante, agin-do como um performer (artista cênico).

Soma-se a isto o fato de que, tanto a nível de conceitoquanto a nível de prática, a performance advém de artis-tas plásticos e não de artistas oriundos do teatro. Paracitar alguns exemplos, Andy Warhol, Grupo Fluxus, AllanKaprow, Claes Oldenburg. No Brasil, Ivald Granatto,Aguillar, Guto Lacaz etc.

Poderíamos dizer, numa classificação topológica, quea performance se colocaria no limite das artes plásticase das artes cênicas, sendo uma linguagem híbrida que guar-da características da primeira enquanto origem e da se-gunda enquanto finalidade.

Do Processo de Pesquisa

Para uma conceituação mais aprimorada da perfor-mance lidamos com duas dificuldades básicas:

Primeiro, que o que melhor se fez em termos da per-formance art foi realizado no exterior, principalmente nosEstados Unidos. Destas performances, temos alguma do-cumentação — fotos, relatos, descrições — o que nãocontribui, contudo, para uma real tomada de contato comesses espetáculos. É claro que a dificuldade de falar-sesobre algo que não se presenciou é extensível a qualqueranálise de arte, mas, no caso da performance, esta dificul-dade é maior pelo fato de estarmos lidando com o queSchechner13 chama de multiplex code. O multiplex codeé o resultado de uma emissão multimídica (drama, vídeo,imagens, sons etc), que provoca no espectador uma re-cepção que é muito mais cognitivo-sensória do que racio-nal. Nesse sentido, qualquer descrição de performancefica muito mais distante da sensação de assisti-las, repor-tando-se, geralmente, essa descrição ao relato dos "fatos"acontecidos14.

13. RICHARD SCHECHNER, "Post Modern Performance:Two Views", Performings Arts Journal, p. 13.

14. Descrição do tipo, "aconteceu isto. . . o cenário eraassim... o tempo foi tal e t c . . . " e que aumenta a dificuldade,porque nas performances, como nos rituais, muitas vezes interessamais o como do que o quê.

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Por outro lado, o que vem preencher um pouco estevazio é o fato de que a performance, como expressãoartística, está correlacionada em termos de ideologia, esté-tica e formalização, com todo um universo que inclui des-de a sound poetry até os videoclips new waves. Desta for-ma, temos contato através de vídeos, discos, storyboardsde peças, manifestos, exposições de artes plásticas, com aobra de uma série de artistas ligados à performance quenão se apresentaram no Brasil.

Um exemplo é Laurie Anderson, cuja performanceUnited States I-IV (1983) pode ser acompanhada, em par-te, através de vídeo apresentado em São Paulo, e pelodisco do espetáculo15.

O conjunto do material levantado nessa pesquisa, bemcomo uma relação de performances que julgamos signifi-cativas estão apresentados, como material fonte, em anexoa este trabalho.

A outra dificuldade básica para a análise diz respeitoà confusão que se criou em torno do termo no Brasil: éclaro que, na sua própria essência, a performance se ca-racteriza por ser uma expressão anárquica, que visa esca-par de limites disciplinantes e que comporta tanto asapresentações do falecido faquir Bismarck (que engoliabolas de bilhar na Praça da Sé), quanto um espetáculode intensa elaboração síquica como Shaggy Dog (1978)de Mabou Mines.

Mas, nem por isso, podem se designar por performancecertas experiências (na verdade "intervenções") feitas porradicais ou livre-atiradores16.

Para se ter uma melhor compreensão da trilha daarte de performance no Brasil e mesmo com um objetivo

15. O que também é limitado, porque, obviamente, nuncao vídeo vai substituir a característica do aqui-agora, da perfor-mance.

16. Coisas como fritar ovo na fila do Centro Cultural ouqueimar dinheiro em cena durante longos minutos. É importanteressaltar que não criticamos esse tipo de evento, que tem umacerta importância no sentido de dessacralizar a arte ou mexercom o público, tirando-o de sua cômoda posição de observadoretc. No entanto, levando-se em conta a época que esses eventosacontecem (anos 80) e a distinção que fizemos em relação aohappening, não podemos considerar tais intervenções como per-formances.

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de documentação17, é interessante, nesse momento, darmosum breve histórico do movimento.

Pode-se associar o início da difusão da performan-ce18, em 1982, com a criação quase que simultânea dedois centros culturais: o Sesc Pompéia e o Centro Cul-tural São Paulo. Nesses dois centros, buscou-se priorita-riamente abrir espaço para as manifestações alternativasque não estavam encontrando local em outros circuitos.

No Sesc Pompéia se realizam então dois eventos: as"14 Noites de Performance" e o I Festival Punk de SãoPaulo. O festival de performances do Sesc Pompéia foio primeiro grande evento deste tipo realizado em São Pau-lo e contou com a participação de artistas oriundos dasvárias artes: do teatro — Ornitorrinco, Manhas & Manias,Denise Stocklos; das artes plásticas — Ivald Granatto,Arnaldo & Go.; da dança — Ivaldo Bertazzo. Participamtambém Patrício Bisso e uma série de artistas da música,vídeo e grafismo. O evento foi uma "fusão" de mídiase linguagens, que trouxe a oportunidade de justapor artis-tas e pesquisas de diferentes rumos, chegando-se a resulta-dos que caminham para a totalização das artes.

Na trilha dos Centros Culturais, e em conseqüênciade um certo sucesso da produção alternativa (principal-mente em termos da música, com os grupos punk-newwave), abrem-se novos espaços. Os mais importantes são,por ordem cronológica de aparecimento, o Carbono 14,o Napalm e o Madame Satã. Nesses espaços assiste-se aperformance, videoclips e aos grupos de rock-new wavetupiniquins.

Em 1983, o Sesc Pompéia realiza o II Ciclo de Per-formances. No Centro Cultural cria-se um espaço desti-nado a essa linguagem: "o Espaço Performance". NoMIS, no mesmo ano, realiza-se o I Festival de Vídeo e do

17. De 1982 para cá, procurei acompanhar tudo o que serealizou em termos de performance em São Paulo (que foi oprincipal centro de expressão no Brasil). Esse trabalho não foiexaustivo, mas eu o considero significativo para a pesquisa. Apossibilidade que tive de trabalhar dentro do Sesc Pompéia, comoanimador cultural, bem como o fato de ter realizado performancesjunto com meu grupo, me permitiram um contato mais diretocom a produção desta arte. Em anexo, relaciono o conjunto detrabalhos e festivais acompanhados.

18. Ê claro que antes disso, artistas plásticos como Aguillar,Granatto e outros já realizavam experiências com performances,mas estas ficavam restritas a um circuito muito pequeno, prati-camente só de artistas plásticos.

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evento participam performers que utilizam tecnologia evídeo na sua criação — caso de Otávio Donasci com assuas videocriaturas.

Nesse momento a performance já está devidamente in-corporada ao cenário artístico (eixo Rio-São Paulo) viran-do uma espécie de moda. Realizam-se uma série de even-tos em que se experimenta de tudo: body art, teatro dacrueldade, tecnologia, arte terapia, intervenção, criaçãoaleatória etc. Nessa profusão de trabalhos se incluem ex-periências que vão da alta criatividade à mediocridade.

Fechando de certa forma um ciclo, a Funarte realizaem agosto de 1984, o seu I Festival de Performances. Par-ticipam desse evento — Guto Lacaz, Ivald Granatto,TVDO, Paulo Yutaka e artistas de vários Estados do Bra-sil. Se nessa mostra não se atingiu o nível de festivais doSesc, tendo se realizado algumas performances bastanteprimárias, o evento teve seu valor pela polêmica instau-rada. Eis o trecho da crítica de Sheila Leirner19 que co-briu o festival:

Lamentável. A Sala Guiomar Novaes, transformada subita-mente numa "casa de ninguém", como palco para um desfile deincompreensões. A começar pelo próprio conceito de performance.Pois performance não é "qualquer coisa". A idéia de que "qual-quer um pode fazer arte" ou de que "qualquer coisa pode serarte" já constituiu há algum tempo um paroxismo eficaz. Hoje,quando já se experimentou tudo ou quase tudo, ela é uma idéiaultrapassada, reacionária e até ideologicamente suspeita. O públicofoi uma vítima. . . perdeu-se uma excelente oportunidade de reve-lar novos conceitos e provocar a reflexão de uma audiência excep-cionalmente receptiva.

Essa crítica de certa forma enfatiza nossa colocaçãoanterior e traz de volta a polêmica sobre a institucionali-zação da arte20.

19. "A Perda de uma Excelente Oportunidade de Revela-ção", O Estado de S. Paulo. 7.8.84.

20. A argumentação de Sheila Leirner é que faltou cura-doria para o evento. Já Roberto Bicelli, organizador do evento,argumentou que a performance é um movimento anárquico, nãoortodoxo como pretende a crítica, é que não cabia a ele censurarpreviamente certos trabalhos inscritos para o evento. A críticade Sheila Leirner, levantada em 1984, tornou-se emblemática nodecorrer dos anos seguintes, pois em consqüência da série de even-tos mal produzidos, improvisados e, principalmente, de baixaqualidade que receberam a denominação de performance, o termocaiu em total desgaste e passou a ser conotado como "qualquercoisa". Isso impediu, por parte do público e dos artistas, o con-tato com espetáculos de outro nível que também pertencem àchamada performance art.

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De 1984 para cá a performance se diluiu enquantovanguarda21, sendo em contrapartida bastante absorvidapelas formas artísticas mais tradicionais. A nosso ver,houve um esgotamento dos espetáculos intensamente es-pontâneos, havendo, porém, espaço para performancesmais elaboradas (praticamente desconhecidas no Brasil).

Fica claro que sempre haverá espaço para espetáculosque permeiem essa linguagem (do experimental, do ritual,do sígnico) e que, com o esgotamento da performance,algo novo se sucederá dentro da vanguarda, da mesmaforma que a performance sucedeu ao happening.

Por último, dentro do processo de pesquisa, é impor-tante ressaltar a contribuição que minha observação prá-tica32 trouxe para a minha pesquisa, visto que muitosconceitos se completaram e se modificaram a partir dessaobservação "de dentro".

21. Em meados de 1988, o Madame Satã e o Espaço Offainda mantinham espaços para realização de performances.

22. Em Do Percurso, relaciono meus trabalhos práticos.

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1. DAS RAÍZES:

LIVE ART — PONTE ENTRE VIDA E ARTE

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O artista é um homem que não pode seconformar com a renúncia à satisfação das pul-sões que a realidade exige. Toda arte é o dese-nho do desejo. O artista dá livre vazão a seusdesejos eróticos e fantasias. A realidade inter-dita o tempo todo. Desde coação social até agramática. A obra de arte se caracteriza pelatransgressão, por não obedecer a gramática^-.

SIGMUND FREUD

Ontologia da Performance: Aproximação entreVida e Arte

Qual o desígnio da arte: representar o real? Recriaro real? Ou, criar outras realidades?

1. Os grifos são meus.

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Isso, sem esquecermos da questão primeira, que jáextrapola o campo da especulação estética, ou seja, dedefinir o que é o real?

Tomando como ponto de estudo a expressão artísticaperformance, como uma arte de fronteira, no seu contínuomovimento de ruptura com o que pode ser denominado"arte-estabelecida"2, a performance acaba penetrando porcaminhos e situações antes não valorizadas como arte. Damesma forma, acaba tocando nos tênues limites que sepa-ram vida e arte.

A performance está ontologicamente ligada a um mo-vimento maior, uma maneira de se encarar a arte; A liveart. A live art é a arte ao vivo e também a arte viva. Éuma forma de se ver arte em que se procura uma aproxi-mação direta com a vida, em que se estimula o espontâ-neo, o natural, em detrimento do elaborado, do ensaiado.

A live art é um movimento de ruptura que visa dessa-cralizar a arte, tirando-a de sua função meramente estética,elitista. A idéia é de resgatar a característica ritual da arte,tirando-a de "espaços mortos", como museus, galerias, tea-tros, e colocando-a numa posição "viva", modificadora.

Esse movimento é dialético, pois na medida em que,de um lado, se tira a arte de uma posição sacra, inatingí-vel, vai se buscar, de outro, a ritualização dos atos comunsda vida: dormir, comer, movimentar-se, beber um copode água (como numa performance de George Brecht doFluxus) passam a ser encarados como atos rituais e artísti-cos. John Cage diz: "Gostaria que se pudesse considerara vida cotidiana como teatro"3.

Dentro desse modo de encarar a arte, Isadora Duncan,Mercê Cunninghan e outros "libertaram" de certa forma a

2. ALLAN KAPROW, o idealizador de happening, que seautodenomina um fazedor de conceitos, estabelece o contrapontoARTE-arte e NÃO-ARTE. A primeira, que chamamos de "arte-estabelecida", é herdeira da arte instituída, é intencional, tem fée aspira a um plano superior. Exprime-se numa série de formase "ambientes sagrados" (exposições, livros, filmes, monumentosetc). A não-arte engloba tudo o que não tenha sido aceito comoarte, mas que haja atraído a atenção de um artista com essa possi-bilidade em mente (em A Educação do A-Artista). Um exemploclaro disto são os ready-mades de Mareei Duchamp, que vão darum valor de objetos de arte a produtos industriais, feitos em sériee absolutamente cotidianos, como uma bicicleta ou um vasosanitário.

3. Material do Grupo Fluxus — Bienal 1983 (ver fontestextuais).

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dança, incorporando ao seu repertório movimentos e situa-ções comuns do dia-a-dia, como andar, parar e trocar deroupa, por exemplo. Personagens diárias (e não míticas),como guardas, operários, mulheres gordas etc , passam afazer parte das coreografias. Tudo isso hoje é lugar-co-mum na chamada "dança moderna", mas antes dessa rup-tura, era considerado abjeto por alguns estetas.

Na música, essa ruptura se deu com Satie, Stockhausen,John Cage e outros: silêncio, ruídos etc , passam a seraceitos como formas musicais. Cage introduz a aleatorie-dade nos seus "concertos", reforçando a idéia (que seapoia num conceito zen de vida) de uma arte não-inten-cional.

Na literatura, podem se mencionar tanto experiênciasempíricas, como a proposta surrealista da escrita automá-tica, em que vale o jorro, o fluxo e não a construção for-mal, quanto experiências altamente elaboradas, como asde James Joyce que em Ulisses, por exemplo, procurareproduzir o fluxo vital da emoção e do pensamento enarra a epopéia de um cidadão absolutamente comum.

Nas artes plásticas esse processo de entropização4 équase automático. Podemos citar todos os movimentos daarte moderna (cubismo, dadaísmo, abstracionismo etc.)que guardam uma relação modificadora com o objeto re-presentado5.

É também nas artes plásticas que surge o conceito deaction painting passando pelos assemblages e environ-ments6 que vão desaguar na body art e na performance,em que o artista passa a ser sujeito e objeto de sua obra.

No teatro, e de uma forma mais global nas artes cê-nicas, essa quebra com o formalismo, com as convenções

4. Entropia é a medida de desorganização. O aumento deentropia corresponde ao aumento de desordem e também a maio-res graus de liberdade na criação.

5. É importante discutir um paradoxo dentro de nossa con-ceituação de íive art. Apesar de a mesma essencialmente buscar ovivo, a aproximação entre vida e arte, ela se afasta de todatentativa de representação do real. Todo movimento dito "realista"é divergente das idéias da live art. Um quadro realista visa repre-sentar o objeto, da forma mais fiel possível. Essa representação,em si, é a morte do objeto. Nesse sentido, responderíamos àsformulações iniciais, podendo colocar a função da arte dentrodessa concepção como sendo a de uma reelaboração do real (aobra de arte tem vida própria, não se limita a representar oobjeto) e não uma representação do real.

6. A action painting é a pintura instantânea, que é reali-zada como espetáculo na frente de uma audiência. O seu ideali-

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que "amarram" a linguagem7 só vem a ser concretizadanos anos 60 com o happening e o teatro experimental degrupos como o Living Theatre e o La Mamma porexemplo.

Das Raízes: Uma Arte de Ruptura

De uma forma cronológica, podemos associar o inícioda performance6 com o século XX e o advento da moder-nidade9.

A rigor, antropologicamente falando, pode-se conjugaro nascimento da performance ao próprio ato do homem

zador é Jackson Pollock e no Brasil, Aguillar, que se dedicou aessa forma de trabalho. A assemblage é uma espécie de esculturaambiental onde pode ser usado qualquer elemento plástico-senso-rial. O environment é uma evolução desta e ambas caminham parao que hoje se designa por inslalação, que vem a ser uma escultura-signo-interferente, que muitas vezes vai funcionar como o cenáriopara o desenrolar da performance. (Para um acompanhamentodetalhado dessas transições sugerimos a leitura de A Arte da Per-formance de JORGE GLUSBERG, São Paulo, Perspectiva, 1987,Debates 206.)

7. Através da história do teatro, existem inúmeras "que-bras" com a linha convencional, como o teatro expressionista,e teatro do absurdo etc. Da mesma forma, existem gêneros queexploram a espontaneidade e escapam das convenções mais pesa-das do teatro, como a comedia deWarte ou o teatro de rua, porexemplo. Mas é no happening que essa quebra com a convençãoteatral é mais radical: não existe a clara distinção palco-platéia,ela é rompida a qualquer instante, confundindo-se atuante eespectador, não existe nenhuma estruturação de cena que siga asclássicas definições aristotélicas (linha dramática, continuidade detempo e espaço etc), não existe a distinção personagem atuanteetc.

É importante ressaltar que, em termos de radicalidade, ohappening é o momento maior, e que na passagem do happening,dos anos 60. para a performance, dos anos 70, há um retrocessoem relação à quebra com as convenções, havendo um ganho, emcontrapartida, de esteticidade.

8. Estamos vinculando a performance à tive art e utilizan-do a conceituação de Rose Lee Goldberg (Performance Live Art1909 to the Present), que recorre ao artifício de aplicar o termoperformance (que só vai ser veiculado nos anos 70) a todas asmanifestações predecessoras.

9. A rigor, o início da modernidade nas artes cênicas éassociado à apresentação de Vbu Rei, de Alfred Jarry, em 1896,no Théâtre de L'Oeuvre em Paris, peça que rompe completa-mente os padrões estéticos da época, trazendo a semente do queiria acontecer no próximo século.

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se fazer representar (a performance é uma arte cênica) eisso se dá pela institucionalização do código cultural10.

Dessa forma, há uma corrente ancestral da performanceque passa pelos primeiros ritos tribais, pelas celebraçõesdionisíacas dos gregos e romanos, pelo histrionismo dosmenestréis e por inúmeros outros gêneros, calcados na in-terpretação extrovertida, que vão desaguar no cabaret doséculo XIX e na modernidade.

No século XX a arte de performance se desenvolvena sua plenitude. Através das décadas, o movimento cami-nha sob várias formas e por diversos países. Procuraremos,nesse breve resumo, focar os fluxos de maior criatividadee significação artística por onde o movimento se desloca,de uma forma que se possa entender o elo entre os pri-meiros trabalhos da década de 1910 e a performancecontemporânea.

O movimento futurista italiano, na década de 1910,marca o início de atividades e idéias organizadas. Mari-netti lança o Manifesto Futurista, e no movimento agru-pam-se pintores, poetas, músicos e artistas das maisdiversas artes. A prática resulta em seratas onde se exe-cutam recitais poéticos, música e leitura de manifestos.A proposta futurista radicalizava os conceitos vigentes dearte, não apenas na idéia (proposta de peças-sínteses detrinta segundos, por exemplo) mas também na prática (aprática das seratas não era nada convencional, muitas ve-zes terminando em escândalos e pancadarias). O movi-mento futurista italiano repercute em toda a Europa,principalmente na França e na Rússia, onde Maiakóvskivai liderar um movimento altamente revolucionador.

O ano de 1916 marca a abertura do Cabaret Voltaireem Zurique. Hugo Bali e Emmy Hennings trazem a idéiade Munique onde acompanharam as inovadoras experiên-cias dramatúrgicas de Wedekind, calcadas nos teatro-cabarets da cidade. No Cabaret Voltaire, que atrai artistasda Europa inteira fugidos da guerra para a neutra Suíça,vai se dar a germinação do movimento Dada. Nos cinco

10. Nesse processo de instalação da cultura, usando a ter-minologia de Nietzsche, existiria uma síntese dialética de duasenergias dicotômicas: o apolíneo e o dionisíaco. Ambas são ma-trizes das artes cênicas e do teatro. O apolíneo dirigindo a orga-nização, a mensagem, a razão, e o dionisíaco a pulsão. a emo-ção e o irracional. Nesse ponto há a separação: o teatro clássico.calcado na organização aristotélica, se apoia numa forma maisapolínea e a performance (assim como uma parte do teatro)resgata a corrente que se reporta ao ritual, ao dionisíaco.

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meses de existência do cabaret se experimenta de tudo, deexpressionismo ao rito, do guinol ao macabro. Artistas depeso, das mais diversas artes, que vão germinar as idéiasdas próximas décadas se confrontam no cabaret: Kan-dinsky, Tristan Tzara, Richard Huelsenbeck, Rudolf vonLaban, Jean Arp, Blaise Cendras, para citar alguns.

Ao fim dessa experiência, o Dada já se espalha pelaEuropa e, com Paris, tornando-se o principal eixo de ati-vidades. Em 1917, acontecem dois lançamentos importan-tes: as estréias de Parade de Jean Cocteau e Les Mamellesde Tirésias de Apollinaire, que revolucionam o conceitode dança e de encenação. As duas peças causam espantono público parisiense e principalmente a segunda é rece-bida com amplos protestos (o público a toma como umaafronta).

Com esses espetáculos e com o lançamento da revistaLittérature por André Breton, Paul Elouard, PhilippeSoupault e Louis Aragon, começam a se criar as basespara o advento do movimento surrealista.

Em termos cênicos, o surrealismo vai seguir comotática e ideologia a estética do escândalo. O ingredienteé o de lançar provocação contra as platéias. O surrealismoataca de forma veemente o realismo no teatro. Inovaçõescênicas são testadas, como a de se representar multidõesnuma só pessoa, apresentar-se peças sem texto, ou perso-nagens-cenário fantásticos.

A maioria das peças apresentadas na Salle Gaveau, em1920, tomam emprestada a estrutura do vaudeville, emque um mestre de cerimônias explica cada seqüência (lo-gicamente sem um nexo) e os outros atores "demonstram"a idéia.

As peças surrealistas acontecem tanto em edifícios-teatro, quanto em caminhadas de demonstração dos líde-res do movimento, e visam, através do escândalo, chamara atenção para as propostas do movimento, tanto a nívelideológico quanto artístico. É clara a identificação entreas atitudes dos surrealistas, nos anos 20 e os futuros hap-penings, dos anos 60.

Paralelamente ao surrealismo, a Bauhaus alemã desen-volve importantes experiências cênicas, que se propõemintegrar, num ponto de vista humanista, arte e tecnologia.A Bauhaus é a primeira instituição de arte a organizarworkshops de performance. Oskar Schlemmer, que dirigea seção de artes da Bauhaus, cria espetáculos como o

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Ballet Triádico (1922) e Treppenwits (1926-1927), atéhoje não superados dentro de sua linha de pesquisa. Em1933, com o advento do nazismo, a escola é fechada,praticamente encerrando com isto o capítulo europeu dasperformances.

A partir daí, o eixo principal do movimento se des-loca para a América, com a fundação, em 1936, na Caro-lina do Norte, da Black Mountain College. O objetivo dainstituição é o de desenvolver a experimentação nas artese de incorporar a experiência dos europeus (grande partedos professores da Bauhaus se transfere para lá).

Dois artistas exponenciais, na arte de performance, vãoemergir da Black Mountain College: John Cage e MercêCunninghan. Cage tenta fundir os conceitos orientais paraa música ocidental, incorporando aos seus concertos silên-cios, ruídos e os princípios zen da não previsibilidade.Cunninghan propõe uma dança fora de compasso (nãosegue a música que a orquestra) e não coreografante,abrindo, nessa quebra, passos importantes para o movi-mento da dança moderna.

A partir da escola, o eixo se desloca para New York,com os artistas realizando uma série de espetáculos, queem 1959 vão ganhar um novo nome-conceito: happening.Allan Kaprow realiza na Reuben Gallery, em New York,seu 18 Happening in 6 Parts, encetando um novo con-ceito de encenação que vai ser propagado através da dé-cada seguinte.

A tradução literal de happening é acontecimento, ocor-rência, evento. Aplica-se essa designação a um espectrode manifestações que incluem várias mídias, como artesplásticas, teatro, art-collage, música, dança etc.11.

Com o florescimento da contracultura e do movimentohippie, os anos 60 vão ser marcados por uma produçãomaciça, que usa a experimentação cênica como forma dese atingir as propostas humanistas da época. Vários artis-tas buscam conceituar essas novas tendências de multilin-guagem: Joseh Beuys as chama de Aktion (para ele oponto central seria a ação). Wolf Vostell de de-collage(prevalecendo a fusão). Claes Oldemburg usa pela pri-meira vez o termo performance (valorizando a atuação).

11. Mesmo com essa fusão, o happening mantém comoprincípio aglutinador sua característica de arte cênica, conservan-do, da forma mais livre possível, a tríade que definimos na Intro-dução (atuante-texto-público).

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O happening, que funciona como uma vanguarda cata-lisadora, vai se nutrir do que de novo se produz nas diver-sas artes: do teatro se incorpora o laboratório de Gro-towski, o teatro ritual de Artaud, o teatro dialético deBrecht; da dança, as novas expressões de Martha Grahane Yvonne Rainier, para citar alguns artistas. É das artesplásticas que irá surgir o elo principal que produzirá aperformance dos anos 70/80: a action painting. Conformejá comentado, Jackson Pollock lança a idéia de que o artis-ta deve ser o sujeito e objeto de sua obra. Há uma transfe-rência da pintura para o ato de pintar enquanto objetoartístico. A partir desse novo conceito, vai ganhar impor-tância a movimentação física do artista durante sua "ence-nação". O caminho das artes cênicas será percorrido entãopelo approach das artes plásticas: o artista irá prestaratenção à forma de utilização de seu corpo-instrumento, asua interação com a relação espaço-tempo e a sua ligaçãocom o público. O passo seguinte é a body art (arte docorpo) em que se sistematizam essa significação corporale a inter-relação com o espaço e a platéia. O fato de selidar com os velhos axiomas da arte cênica, sob um novoponto de vista (o ponto de vista plástico), traz uma sériede inovações à cena: o não-uso de temas dramatúrgicos,o não-uso da palavra impostada, para citar alguns exem-plos12.

A partir da década de 70, vai-se partir para experiên-cias mais sofisticadas e conceituais (a nível de signo, porexemplo) que irão, para isso, incorporar tecnologia e in-crementar o resultado estético. É o início do que os ame-ricanos chamam de performance art13.

12. Simples movimentações espaciais, por exemplo, criampeças de alia densidade dramática. Muitos artistas, como LaurieAnderson. usam microfones e nunca passou pela cabeça deles apreocupação de impostar a voz e de usar todos esses recursos queo teatro considera axiomáticos.

13. Conforme já comentamos, no Brasil, sob o termo per-formance, agrupam-se tanto experiências desse tipo, quanto even-tos mais rudimentares que guardam maior pertinência com as fasesanteriores do movimento. É importante ressaltar também, no casobrasileiro, o trabalho singular e pioneiro de artistas como Fláviode Carvalho, e posteriormente de Hélio Oiticica e Ligia Clarkque influenciaram as gerações seguintes.

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Movimentos Congêneres: Da Contracultura à Não-Arte

É importante enfatizar o papel de radicalidade que aperformance, como expressão, herda de seus movimentospredecessores: a performance é basicamente uma linguagemde experimentação, sem compromissos com a mídia, nemcom uma expectativa de público e nem com uma ideologiaengajada. Ideologicamente falando, existe uma identifi-cação com o anarquismo que resgata a liberdade na cria-ção, esta a força motriz da arte.

A arte, como formula Freud, caminha com base noprincípio do prazer e não no princípio de realidade. Oartista lida com a transgressão, desobstruindo os impedi-mentos e as interdições que a realidade coloca (a obra dearte vai se caracterizar por ser uma outra criação: se euvejo uma paisagem que objetivamente é verde, sob umaótica vermelha, nada me impede de pintá-la assim).

O trabalho do artista de performance é basicamenteum trabalho humanista, visando libertar o homem de suasamarras condicionantes, e a arte, dos lugares comuns im-postos pelo sistema. Os praticantes da performance, numalinha direta com os artistas da contracultura, fazem partede um último reduto que Susan Sontag14 chama de "he-róis da vontade radical", pessoas que não se submetemao cinismo do sistema e praticam, à custa de suas vidaspessoais, uma arte de transcendência.

Ao trilhar o caminho do princípio do prazer15, a per-formance resgata as idéias de uma prática da arte pelaarte. Ou seja, a arte não se submetendo a ditames exter-nos: não se faz uma comédia de costumes ao gosto comer-cial, nem um texto ideológico que fomente a conscienti-zação política, nem uma montagem dramatúrgica regiona-lista. A performance trabalha ritualmente as questõesexistenciais básicas utilizando, para isso, recursos que vãodesde o Teatro da Crueldade até elaborados truquessígnicos.

A apresentação de uma performance muitas vezescausa choque na platéia (acostumada aos clichês e à pre-visibilidade do teatro). A performance é basicamente uma

14. Styles ofRadical Will.15. Na verdade, a performance atua dialeticamente tanto

a nível do princípio do prazer — com um fluxo criativo e umprocesso de atuação dionisíaco, quanto a nível do princípio derealidade — com uma clara preocupação de organização da men-sagem elaborada.

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arte de intervenção, modificadora, que visa causar umatransformação no receptor. A performance não é, na suaessência, uma arte de fruição, nem uma arte que se pro-ponha a ser estética (muito embora, como já levantamos,se utilize de recursos cada vez mais elaborados para con-seguir aumentar a "significação" da mensagem).

A performance está ideologicamente ligada à não-arte,proposta por Kaprow, na medida que, como nesta, vaicontra o profissionalismo e a intencionalidade na arte: oque diferencia o praticante da não-arte, que ele vai cha-mar de a-artista, do artista praticante da arte-arte, é aintencionalidade. O a-artista não se coloca como um pro-fissional. Tanto que a mensagem final de Kaprow é "Artis-tas do mundo. Caiam fora. Vocês nada têm a perder senãosuas profissões".

No seu manifesto, falando da não intencionalidade daarte, Kaprow dá os seguintes exemplos:

. . . É difícil deixar de admitir que o diálogo transmitido entre oCentro Espacial de Houston e os astronautas da Apoio 11 é me-lhor que a poesia contemporânea.

. . . que os movimentos aleatórios entrelaçados dos fregueses deum supermercado são mais ricos que qualquer dança contempo-rânea.

Nesse sentido os conceitos da não-arte se aproximamdos conceitos da Vive art, ou seja, pelos exemplos citados,escolhidos entre dezenas de outros exemplos do Manifesto,a própria vida, em certos instantes, é arte, e supera aomesmo tempo tentativas arbitrárias (no sentido de nãopartirem de um impulso verdadeiro) de imitá-las.

O praticante da não-arte, e da mesma forma o per-former, trabalha nesse tênue limite da espontaneidadecomo no exemplo do movimento dos fregueses de super-mercado que incidentalmente se tornou coreográfico, oude um artista improvisando sketches para um público, semperder ao mesmo tempo sua dimensão de verdade.

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2. DA LINGUAGEM:

PERFORMANCE—COLLAGE COMO ESTRUTURA

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A performance é uma pintura sem tela, umaescultura sem matéria, um livro sem escrita, umteatro .sem enredo. . . ou a união de tudo isso. . . 1

Da Legião Esirangeira das Aries:Criação de um /Inrí-Gesamtkunstwerk

Arte de fronteira. Teatro de imagens. Arte não-inten-cional. Minimalismo. Intervenção. Blefe. Afinal, o que éperformance? Talvez um pouco de tudo isso.

Antes de mais nada é preciso fazer-se um adendo: maisdo que definir e delimitar a extensão da expressão artís-tica performance — o que por si só já constituiria umatarefa paradoxal, na tentativa de se decupar o que buscaescapar do analítico, de sermos normativos com uma arteque na sua essencialidade procura escapar de definições

1. SHEILA LEIRNER. "A Perda de uma Excelente Opor-tunidade de Revelação". O Estado de S. Paulo. 07.08.1984.

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e rotulações extintoras — é nossa intenção apontar, atra-vés da observação de diversos espetáculos, a estrutura e,mais do que isso, a ideologia que está por trás da expres-são artística performance, e ao mesmo tempo, com essaanálise, enfocar todo um riquíssimo universo de criaçãoainda parcialmente desconhecido do grande público noBrasil.

Por sua forma livre e anárquica, a performance abrigaum sem número de artistas oriundos das mais diversas lin-guagens, tornando-se uma espécie de "legião estrangeiradas artes"2, do mesmo modo que incorpora no seu reper-tório manifestações artísticas das mais díspares possíveis.

Essa "babel" das artes não se origina de uma migraçãode artistas que não encontram espaço nas suas linguagens,mas, pelo contrário, se origina da busca intensa, de umaarte integrativa, uma arte total, que escape das delimi-tações disciplinares.

Como diz Aguillar3:

A performance utiliza uma linguagem de soma: música, dan-ça, poesia, vídeo, teatro de vanguarda, ritual. . . Na performanceo que interessa é apresentar, formalizar o ritual. A cristalizaçãodo gesto primordial.

A idéia de uma interdisciplina é fundamental:

. . . teatro, vídeo e filmes são empregados, mas nenhumdeles como forma única de expressão pode ser considerado per-formance. Isso é típico do ideal pós-moderno, que erradica dis-ciplinas categoricamente distintas4.

A idéia da interdisciplina como caminho para umaarte total aparece na performance como uma espécie dereversão à proposta da Gesamtkunstwerk de Wagner. Naconcepção da ópera wagneriana esse processo de uso devárias linguagens é harmônico: a música se integra coma dança, ambas são suportadas por um cenário, uma ilu-minação, uma plástica que se compõe num espetáculototal. Na performance — e a "ópera de Bob Wilson" éo melhor contra-exemplo disto — utiliza-se uma fusão delinguagens (dança, teatro, vídeo etc.) só que não se com-pondo de uma forma harmônica, linear. O processo decomposição das linguagens se dá por justaposição, cola-

2. AGUILLAR, em roteiro de A Noite do Apocalipse Final,performance apresentada por Aguillar e a Banda Perfomática.

3. Op. cit.4. SHEILA LEIRNER, uri. cit.

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gem: na ópera Einstein on The Beach (1976)5, por exem-plo, a música que é composta por Philip Glass não é utili-zada como marcação para dança; apesar de elas ocorreremsimultaneamente, a dança não coreógrafa a música. Cadaelemento cênico do espetáculo tem um valor isolado eum valor na obra total (por exemplo: os móveis, que sãoespecialmente desenhados para a peça, são apresentadosisoladamente em galerias de arte), produzindo na sua in-tegração uma leitura de maior complexidade sígnica, aomesmo tempo que se evita a redundância da ópera wag-neriana.

Na arte de performance vão conviver desde "espe-táculos" de grande espontaneidade e liberdade de exe-cução (no sentido de não haver um final predeterminadopara o espetáculo) até "espetáculos" altamente formali-zados e deliberados (a execução segue todo um roteiropreviamente estabelecido e devidamente ensaiado).

A seguir, analisaremos, aprioristicamente, três exem-plos de espetáculos que apresentam diferenças radicaisentre si. Isto permitirá apontar alguns traços comuns quedão contigüidade entre trabalhos tão diferentes enquantoexpressão.

1. New York (René Block Gallery) — Maio de 1974

A "performance"6 se inicia no Aeroporto JohnKennedy. Joseph Beuys7 chega da Alemanha e desce

5. Muitos dos conceitos e notas sobre o processo de cria-ção de Bob Wilson vêm do curso de pós-graduação "Robert Wil-son — Processos Criativos em Multimídia" elaborado pelo Pro-fessor Luiz Roberto Galizia que trabalhou diretamente com BobWilson e que constam de seu livro Os Processos Criativos deRobert Wilson lançado pela Perspectiva. A descrição da peçacitada aparece em ROBERT STEARNS, Robert Wilson - From a Theatreof Imagens, pp. 47-52.

6. Estou usando o termo entre aspas porque mais adiantediscutirei se este tipo de espetáculo pode ser classificado comoperformance.

7. Completamente avesso às instituições e à exploração dasartes, considerado louco por muitos, Joseph Beuys, artista ale-mão, recentemente falecido, constitui-se, como lançador e exe-cutor de idéias, numa das mais importantes referências da con-tracultura. Antiacadêmico por natureza Beuys vai até o paro-xismo para demonstrar suas idéias. Sua obra, de um realismo cho-cante, tem como objetivo um profundo humanismo. Para ele, afunção da arte é revolucionar o pensamento humano, libertandoo homem de suas amarrações. A descrição dessa performancee da obra de Beuys aparece em CAROLINE TISDALL, JosephBeuys.

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do avião enrolado dos pés à cabeça em feltro (elecomenta mais tarde que esse material representavapara ele um isolante tanto físico quanto metafórico).Do aeroporto, Beuys é carregado numa ambulância(ele já chega em más condições físicas por causa dofeltro) para o espaço onde irá conviver com um coio-te selvagem por um período de sete dias.

Durante esse tempo, os dois estiveram isoladosde outras pessoas, sendo separados do público visi-tante da galeria por uma pequena cerca de arame.Os rituais diários de Beuys incluíam uma série deinterações com o coiote (ver foto), onde eram "apre-sentados" objetos para o animal — feltro, uma ben-gala, luvas, uma lanterna elétrica e o Wall StreetJournal (entregue diariamente). O jornal era rasga-do e urinado pelo animal, numa espécie de reconhe-cimento, à sua maneira, pela presença humana.

Essa "performance" se denominou Coyote: I LikeAmerica and America Likes Me.

Coyote. . . — Performance de Joseph Beuys.

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2. Paris (Centre Pompidou) — Abril de 1979

O grupo de Richard de Marcy apresenta a performaceDisparitions (Disappearances). O roteiro dessa performan-ce é baseado no poema The Hunting of the Snark (A Ca-çada do Turpente) de Lewis Caroll e o relato que apre-sentamos a seguir é transcrito da descrição de PatriceDavis8:

Sentado frontalmente em bancadas o públicoobserva, do andar de cima, o espaço da performance:uma larga extensão (230m2) parcialmente inundada.

Essa superfície aquática não alude à representa-ção mimética de um rio ou um lago, mas, pelo con-trário, define claramente, através da região artifi-cialmente inundada, os limites utilizáveis como es-paços da performance.

Os objetos (barracas, carro, mesa, cadeiras, es-crivaninhas) não são decididamente objetos náuti-cos: a disposição geométrica dos objetos, disfarça-damente aleatória, dá uma sensação de poder, dehierarquia9.

A superfície aquática dá uma impressão de umassustador vazio — o vazio da folha branca de papelantes do ato criativo — um vazio que os performersnão tentam preencher com atividades e movimentospreestabelecidos.

Os reflexos da água são projetados em três di-mensões, que foram divididas, através de biombos,em numerosas telas posicionadas em diferentes dire-ções, com o intuito de captar as imagens e sombrasprojetadas.

Esse espaço, expandido em três dimensões, ime-diatamente sugere a metáfora de um espaço que deveser preenchido com impressões visuais, de um espa-ço polimorfo a ser ocupado, e de uma partitura mu-sical através da qual a performance irá fluir. Essametáfora musical é rapidamente confirmada peladisposição espacial dos seis performers. Sob a dire-ção do capitão, meüeur en scène (diretor) e metteuren abyme (condensador de imagens) da história, elesse posicionam em frente a seus respectivos instru-

8. "Performance Toward a Semiotic Analysis", The DramaReview, p. 94.

9. Isso pode ser observado na foto de abertura deste capí-tulo, referente à performance descrita.

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mentos — num semicírculo, da esquerda para a di-reita, eles são: o padeiro, em frente a uma velhamáquina de coser, o açougueiro, afiando sua facanuma meseta, o coureiro conscientemente enchendoa piscina de água; o capitão movendo-se de um"músico" para outro e organizando a caçada do tur-pente10.

O texto, especialmente quando se refere ao leit-motiv do turpente, é dito seqüencialmente pelas per-sonagens, e em cada caso isso é feito através de umacomposição específica de gesto, dicção e ação.

Como no poema de Lewis Carroll, o texto édividido em oito espasmos ("crises") que contam asdesventuras da tripulação.

Essa mesma divisão, repetida no espaço inteiro,produz o efeito de um puzzle composto de palavras,gestos e imagens.

3. São Paulo (VII Bienal de Artes de São Paulo)— Outubro de 1983

As performances que descrevemos a seguir11 foramrealizadas pelos integrantes do Grupo Fluxus especialmen-te convidados para VII Bienal. Elas se desenvolveram noandar térreo do edifício da Bienal, no que se denominou"espaços-fluxus", espaço esse não delimitado por luz ouqualquer outro tipo de marcação. Segue-se o relato doacontecido.

Num determinado instante, iniciam-se simultanea-mente duas performances: Ben Vautier senta-se aopiano e fica dedilhando continuamente a mesma nota;a seu lado, Walter Marchetti senta-se numa cadeirae começa a juntar latas de alimento espalhadas a seuspés: à medida que suas mãos vão se enchendo delatas, estas começam a "escorregar" e ele recomeçaa tarefa de pegar as latas. O "trabalho" realizadonum gesto contínuo (como um Sísifo), somado à ex-pressão do artista e ao som seco das latas caindo nochão, produz uma sensação de angústia. Nesse ins-tante Wolf Vostell inicia a sua performance provo-

10. Na versão brasileira do poema de Carroll o neologismosnark (snake + shark) foi muito bem traduzido por Álvaro Antu-nes para turpente (Tubarão 4- Serpente). Em A Caça ao Tur-pente, Ed. Interior.

11. Estive presente nesse evento.

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cando o deslocamento do público para um espaçovizinho. A sua performance consiste em atirar lâm-padas num anteparo de vidro (foto).

O ruído e a sensação de explosão produzem alí-vio e prazer na platéia, talvez pelo contraponto daperformance anterior. O conjunto das performancesapresentadas pelos Fluxus não dura mais que dezminutos.

Performance de Wolf Vostell.

A partir desses três exemplos, podemos tentar estabe-lecer alguns traços de contigüidade que permitam caracte-rizar todos esses "espetáculos" como performance. Antesdisso, seria interessante discutirmos, a nível de referên-cia, duas definições de performance:

• • • teatro total, desafiando qualquer classificação porque incluitodas as artes, ou. . . uma arte ao vivo que é justamente o opos-to da Gesamlkunstwerk. . ,12.

12. SALLY BANES, "Performance Anxiety", The VillageVoice, 30.12.81, p. 27. Sally Banes é crítica de dança. In XERXESMEHTA, Versions of Performance Art, p. 192.

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uma forma antiteatral na qual convivem ilusão com tempo real.personagem com pessoa, marcação c o m espontaneidade, o enge-nhoso com o banal. A idéia vale mais que a execução. . . É umaespécie de interarte... 13.

A nosso ver, essas definições são complementares ereforçam idéias apresentadas na Introdução deste traba-lho. Pode-se considerar a performance como uma formade teatro por esta ser, antes de tudo, uma expressão cê-nica e dramática — por mais plástico ou não-intencionalque seja o modo pelo qual a performance é constituída,sempre algo estará sendo apresentado, ao vivo, para umdeterminado público, com alguma "coisa" significando(no sentido de signos); mesmo que essa "coisa" seja umobjeto ou um animal, como o coiote de Beuys. Essa "coi-sa" significando e alterando dinamicamente seus signifi-cados comporia o texto, que juntamente com o atuante("a coisa") e o público, constituiria a relação triádica for-mulada como definidora de teatro.

Nesse sentido é fácil ver que a performance estámuito mais próxima do teatro do que das artes plásticas,que é uma arte estática — é claro que é muito diferenteobservar uma figura humana interagindo com um coiotedo que observar um quadro ou uma escultura14.

Da mesma forma, quando a performance pende paraum discurso visual — não-verbal — composto a partirdo movimento dos atuantes, é a intenção dramática quevai aproximá-la mais do teatro do que da dança. Disap-pearances é um bom exemplo disto, ficando caracterizadaesta "teatralidade" tanto pela linguagem utilizada pelosperformers (gesto, entonação, ação etc.) quanto pela com-posição da mise en scène.

Por outro lado, pode se considerar a performance umalinguagem antiteatral, na medida em que procura esca-

13. BONNIE MARRANCA, "The Politics of Performance",Performing Arts Journal, 16, p. 62. Bonnie Marranca tem váriosensaios sobre a arte de performance. Idem.

14. Essa comparação não é totalmente precisa, na medidaem que um quadro ou uma escultura também poderiam funcionarcomo instalação no contexto de uma performance. Na verdade,o que distancia a performance das artes plásticas e a aproximado teatro é o contexto com que esses signos são introduzidos, con-texto este que está ligado ao que se constitui na "linguagemteatral", que é composto de uma série de características como adinamicidade, a tridimensionalidade, a atemporalidade etc.

É importante lembrar também que, como estamos tratandode uma conceituação topológica. estamos nos utilizando aqui deexemplos extremos.

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par de toda uma vertente teatral (e que é a mais aceitaenquanto teatro) que se apoia numa dramaturgia, numtempo-espaço ilusionista e numa forma de atuação em queprepondera a interpretação (na medida em que se cami-nha em cima da personagem)15.

Não obstante ser importante perceber por qual lin-guagem passa mais próximo a linguagem híbrida da per-formance, este tipo de distinção torna-se difícil e inopor-tuna em alguns casos, tanto pela já mencionada buscade integração das artes quanto pela característica "dioni-síaca" (no sentido de se escapar do rótulo e da formacaracterizante) da performance. Um diretor como Bob Wil-son, por exemplo, funde propositadamente as linguagensda dança e do teatro, sendo muito difícil dizer até ondevai uma e onde começa a outra.

A performance se estrutura, portanto, numa lingua-gem "cênico-teatral" e é apresentada na forma de ummixed-media onde a tonicidade maior pode dar-se emuma linguagem ou outra, dependendo da origem do artis-ta (mais plástica no Fluxus, mais teatral em Disappea-rances).

Feitas essas distinções, podemos apresentar alguns tra-ços que caracterizam a linguagem performance e que sãocomuns aos três espetáculos:

A performance não se estrutura numa forma aristo-télica (com começo, meio, fim, linha narrativa etc), aocontrário do teatro tradicional. O apoio se dá em cimade uma collage como estrutura e num discurso da miseen scène.

Em Disappearances temos um exemplo desse "discur-so da mise en scène": os atores compõem caracteres quesão carregadores de signos. Esses signos podem ser me-tamorfoseados durante a peça. O açougueiro e o cozi-nheiro, num determinado momento, se transformam emporcos e tomam contato com a água. A superfície inun-dada funciona como um hipersigno. Não existe lineari-dade temática e sim um leitmotiv que justifica o enca-deamento da ações. O leitmotiv no caso é a caçada aoturpente, e o espetáculo se suporta com base em um dis-curso visual:

separado, solto do espaço e da continuidade lógica da ação, odiscurso visual finalmente cria uma corrente que cativa a aten-

15. No Cap. 3 voltamos com mais detalhe a essa questão.

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ção porque está separado do discurso lingüístico e conectado coma estrutura da fantasia e da imaginação 16.

Na performance existe uma ambigüidade entre a fi-gura do artista perjormer e de uma personagem que elerepresente17.

Na performance de Joseph Beuys quem está lá é opróprio artista e não alguma personagem. É importantedistinguir, no entanto, que à medida que Beuys metafori-camente está representando (simbolizando) algo com suasações, quem está lá é um "Beuys ritual" e não o "Beuysdo dia-a-dia".

Para se compreender melhor esta questão, é interes-sante ter como referência a Teoria de Papéis. Os papéisque estão presentes não ficam apenas a nível da dicoto-mia ator-personagem. O que existe é uma multifragmen-tação, isto é, existem vários níveis de "máscaras".

O performer, enquanto atua, se polariza entre os pa-péis de ator e a "máscara" da personagem. A questãoé que o papel do ator também é uma máscara. E é impor-tante clarificar-se essa noção; quando um performer estáem cena, ele está compondo algo, ele está trabalhandosobre sua "máscara ritual" que é diferente de sua pes-soa do dia-a-dia. Nesse sentido, não é lícito falar que operformer é aquele que "faz a si mesmo" em detrimen-to do representar a personagem. De fato, existe uma rup-tura com a representação, como demonstramos no capí-tulo seguinte, mas este "fazer a si mesmo" poderia sermelhor conceituado por representar algo (a nível de sim-bolizar) em cima de si mesmo. Os americanos denomi-nam esta auto-representação de self as context18.

É lógico que o que Beuys faz na sua performanceé diferente do seu fazer cotidiano. Não existe esse natu-ralismo na performance (aliás, o Naturalismo, enquantomovimento estético, é uma das tendências que sofre maio-res ataques por parte dos praticantes de performance).

Esse processo de atuação seria semelhante ao dos ín-dios que se "pintam" para ir à guerra ou às cerimôniasreligiosas.

16. PATRICE DAVIS, Op. cil.17. No Capítulo 3 tratamos com detalhe esta questão.18. RICHARD SCHECHNER, "Post Modem Performance

Two Views", Performings Arts Journal, p. 16.

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É interessante observar a leitura que Beuys faz de suaperformance:

Eu queria me concentrar somente no coiote. Eu queria meisolar, me distanciar, não ver nada da América além do coio-te. .. e trocar papéis com ele.

Beuys escolhe o coiote selvagem como símbolo de per-seguição aos índios americanos, assim como da relaçãoque os Estados Unidos mantêm com a Europa19.

Observa-se que, à parte de toda a "espontaneidade"que ocorre na performance de Beuys, existe uma preocupa-ção de simbolização.

Os espetáculos de performance têm uma caracterís-tica de evento, repetindo-se poucas vezes e realizando-seem espaços não habitualmente utilizáveis para encenações:a performance de Beuys, apesar de durar uma semana,só se realizou uma vez; a performance Disappearances,do que temos notícia, foi repetida só mais uma vez; damesma forma as performances-demonstração do grupoFluxus foram realizadas somente nessa Bienal.

Todas as três performances se realizaram em espaçosde galerias, não sendo utilizados teatros. Esses espaçoslivres reforçam a tridimensionalidade e eliminam uma se-paração clara entre área do público e área do atuante.

Ideologicamente, a performance incorpora as idéiasda Não-Arte20 e da chamada Arte de Contestação. Asperformances do Fluxus tentam reforçar a idéia, propos-ta por Mareei Duchamp, de que qualquer ato é um atoartístico, desde que seja contextualizado como tal. E nes-sa conceituação vai toda uma crítica aos estetas da arte(um vaso sanitário industrial vira um objeto de arte aoser colocado numa galeria)21.

As performances do Fluxus e de Joseph Beuys po-dem ser consideradas como uma vertente da arte de per-formance (não havendo sentido, portanto, para as aspas),que caminha em cima de uma "não intencionalidade" edo choque da ação direta. Por trás da ironia e do apa-rente despreparo desses espetáculos existe a crítica a umaarte instituída (e inútil, para estes), arte essa da qual se

19. ROSE LEE GOLDBERG, Performance: Live Art from1909 to the Present, p. 94.

20. Ver Cap. 1.21. Esse tipo de performance caminha em cima da defini-

ção de Bonnie Marranca de que na performance o conceito émais importante que a realização em si.

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apossaram uma série de "profissionais" com finalidadespouco altruístas. É contestando toda essa cultura e, im-plicitamente, toda uma arte de concessão, compactuadora,que Joseph Beuys, artaudianamente, se imola em públi-co, levando às últimas conseqüências sua metáfora artís-tica.

Existe, em contrapartida, uma outra vertente de per-formances, em que se enquadra o espetáculo Disappea-rances, que tendem para uma maior formalização e rigo-rismo estético22.

Da Criação: Livre-Associação e Collage como Estrutura

Conforme comentado, um dos traços característicosda linguagem da performance é o uso da collage comoestrutura. Isto se dando tanto na elaboração final do es-petáculo quanto no processo de criação.

Antes de aprofundarmos a análise da causa desta es-truturação na performance — se pelo privilégio conce-dido à imagem sobre a palavra, se pelo processo de cria-ção geralmente anárquico quando comparado ao de outraslinguagens — devemos analisar a collage como linguagemem si.

Atribui-se a "invenção" da collage a Max Ernst, tal-vez tendo como inspiração a técnica dos papiers collés.

Numa primeira definição, collage seria a justaposiçãoe colagem de imagens não originalmente próximas, obti-das através da seleção e picagem de imagens encontra-das, ao acaso, em diversas fontes23.

O ato de collage é por si só entrópico e lúdico —qualquer criança com uma tesoura na mão faz isso —

22. No Cap. 4 procuramos mostrar que é a transição doespetáculo mais espontâneo para o espetáculo mais formalizadoque caracteriza a passagem do que se chamou happening parao que se tem denominado "performance". Nesse sentido, os espe-táculos Fluxus e Beuys seriam mais um happening que umaperformance.

23. Entende-se aqui, primeiro, porque collage não deve sersimplesmente traduzido por colagem. Collage caracteriza a lin-guagem e a colagem em si é apenas uma das partes do processode criação que inclui a seleção, a picagem, a montagem etc. Emsegundo lugar é fácil ver que essa definição é apriorística porquenão é preciso acontecer materialmente todos esses processos (pica-gem, colagem etc.) para termos uma collage. Como num quadrosurrealista, as figuras da collage podem ser imaginadas.

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possibilitando ao "colador" sua releitura de mundo. J. C.Ismael24 coloca o fato de forma bastante poética:

O colador enfraquece os deuses do Olimpo, separando unsdos outros, rearranjando-os à sua maneira, agindo como um Deussupremo capaz de impor sua vontade sem admitir a menor con-testação. Para o colador a harmonia preestabelecida leva aodelírio. Cumpre-lhe buscar uma nova ordem para essa harmonia,resgatando-a das amarras prosaicas do cotidiano.

Nesse processo de "reconstrução" de mundo, geralmen-te, vão se justapor imagens que na realidade cotidiananunca apareciam juntas (no quadro de Max Ernst,O Sangue, um homem segura uma mulher nua cravandouma espada no seu pé; a cabeça do homem não é huma-na, é a de uma águia).

A obra de René Magritte (que influenciou decisiva-mente artistas como Bob Wilson e Pina Baush) é umexemplo claro desse processo de criação. A busca obsessi-va em sua obra é a de

liberar os objetos de suas funções ordinárias, alterar as proprie-dades originais dos objetos, mudar a escala e a posição dos obje-tos, organizar encontros fortuitos, desdobrar imagens, criar para-doxos visuais, associar duas experiências visuais que não podemocorrer simultaneamente 25.

Essa união de antinomias, como no quadro Les Va-cances de Hegel de Magritte (uma brincadeira com Hegel,por causa da dialética), onde aparece um copo de águacheio até a metade sobre um guarda-chuva aberto (jun-tando-se, segundo Magritte26, dois objetos opostos — umque repele e outro que contém a água), cria um "estra-nhamento visual". Este "estranhamento" tem pelo menosduas funções: uma, como a idealizada por Brecht, é a de,ao "destacar" um objeto de seu contexto original, forçaruma melhor observação do mesmo. A segunda, mais pró-xima dos surrealistas (principalmente da linha patafísi-ca), é a de criar novas utilizações para o objeto em des-taque, além da função inicialmente definida.

O artista recriando imagens e objetos continua sendoaquele ser que não se conforma com a realidade. Nuncaa toma como definitiva. Visa, através de seu processo al-químico de transformação, chegar a uma outra realidade

24. J. C. ISMAEL. uCollage em Nova Superfície", O Estadode S. Paulo, p. 9.

25. HARRY TORCZYNER, Magritte, Signes et Images.26. HARRY TORCZYNER, op. cit.. pp. 50-51.

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— uma realidade que não pertence ao cotidiano. Essa bus-ca é uma busca ascética talvez, a do encontro do artista,criador, com o primeiro criador.

A técnica de collage como criação é muito semelhanteaos processos, descritos por Freud em A Interpretação dosSonhos21, utilizados pelo inconsciente na elaboração oní-rica: por exemplo, na performance Disappearances, numadeterminada cena em que o protagonista está atirando,ouve-se o som de uma máquina de escrever batendo, enão o tiro. Nessa pequena cena, ocorrem três processos— condensação (verdichtung) com a junção de uma ima-gem (o homem atirando) com um outro som (o da máqui-na de escrever) e não seu som característico, desloca-mento (verschiebung), que se dá porque o som de má-quina de escrever remete a alguém escrevendo, e elabo-ração secundária que vem a ser a interpretação do quesignifica a intromissão do escritor-autor nessa cena es-pecífica.

A utilização da collage na performance resgata, dessaforma, no ato de criação, através do processo de livre-associação, a sua intenção mais primitiva, mais fluida,advinda dos conflitos inconscientes e não da instânciaconsciente crivada de barreiras do superego.

Entra-se, com esse processo, na linha da pintura auto-mática dos surrealistas, da prosa automática dos escrito-res beats (solta, sem preocupação estilística), da impro-visação bop dos jazzistas.

Essa arte, tomando-se aqui a dialética freudiana, cami-nha em cima do princípio do prazer (dionisíaco) e nãodo princípio de realidade (apolíneo)28. O princípio de rea-lidade já diz respeito a toda uma "realidade" cotidiana, eé esse o erro, a nosso ver, de todo um teatro racionalistaque repete esse caminho, não liberando, como diz Ar-taud29, as "potências vitais" do homem. A arte e todoprocesso de salto de conhecimento deve constituir-se deuma parcela de não intencionalidade, de não deliberação.É necessário penetrar o desconhecido para se descobrir onovo.

27. Sigmund Freud, Obras completas, Rio, Imago.28. A associação com os termos "dionisíaco" e "apolíneo" é

minha. Como já conceituamos anteriormente, estamos falando demodelos teóricos. A performance não é totalmente dionisíaca: aorganização síguica é claramente apolínea (ligada à realidade).

29. O Teatro e seu Duplo.

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Duas observações sao importantes a partir dessas colo-cações:

Primeiro que não existe esse "fluxo criativo" direto doinconsciente. A chamada "prosa automática" é uma abs-tração; para algo se "materializar" em criação, esse algojá passa pelo crivo do consciente, já nasce híbrido. Pode-se falar portanto em graus de criação inconsciente e umdesses processos extremos é o de artistas que criam emestado de semiconsciência ou utilizando-se de impulsossubliminares30.

Não há também, como coloca Jacó Guinsburg, o ele-mento dionisíaco sem o apolíneo. Uma "criação" dionisía-ca só se corporifica através de uma "forma" apolínea. Umnão existe sem o outro, como na imagem Tao não existe oyin sem o yang. É a união das antinomias.

O que se pode falar é em grau de entropia (extrapo-laremos o conceito de entropia para medida do elementodionisíaco). Podemos portanto falar que uma performancecomo Disappearances é certamente mais entrópica, tantono processo de criação quanto no processo de encenação,que a montagem de um Êdipo, por exemplo31.

A segunda observação diz respeito ao processo de dis-tanciamento — que se obtém a partir da utilização dacollage como estrutura. Esse distanciamento, produzidopela recriação da realidade (como no exemplo citado —um homem com cabeça de águia) não vai provocar umaseparação entre vida (no que diz respeito aos aconteci-mentos cotidianos) e arte, mas, pelo contrário, vai possi-bilitar a estimulação do aparelho sensório para outrasleituras dos acontecimentos de vida. A arte funcionaria,dessa forma, como uma chave para uma decodificaçãomágica da realidade, constituindo-se segundo o pensa-mento esotérico, num dos quatro caminhos para a ver-dade ao lado da religião, da filosofia e da ciência.

A collage traz em seu caos aparente um desvelamento:

Se abordarmos a collage ingenuamente, ela nos parecerá cifra-da, escrita num código só acessível aos iniciados, apesar de aspartes que a compõem nos serem familiares: um tronco nu demulher, um relógio, um pássaro. Porém, o que o colador propõe

30. Bob Wilson compõe alguns de seus textos escutando tele-visão, em estado de meditação.

31. A título de exemplo tomamos como comparativo a mon-tagem de Êdipo realizada em São Paulo, em 1983, sob a dire-ção de Mareio Aurélio, por ter sido premiada como melhor espe-táculo teatral do ano, e por ser um espetáculo que se enquadrana estrutura tradicional do teatro.

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não é um enigma, mas uma desvelação. Ele nos ajuda a levan-tar o Véu de Maya, que transforma as coisas em silhuetas eabafa com a mesma indiferença os gritos de alegria e desespero.

Ou como diz Vilém Flusser32:

Se a collage evoca, por exclusão — e recusa, portanto, pordefinição —, o mundo codificado, ela impõe, por justaposição— e, portanto, por síntese —, releitura de tal mundo". Isso por-que a síntese proposta pela coliage não é um fim em si mesma,mas incita a desmembramentos infinitos, que são as possibili-dades de reler o mundo.

A utilização da collage, na performance, reforça abusca da utilização de uma linguagem gerativa ao invésde uma linguagem normativa: a linguagem normativa estáassociada à gramática discursiva, à fala encadeada e hie-rarquizada (sujeito, verbo, objeto, orações coordenadasorações subordinadas etc). Isso tanto ao nível do verbalquanto ao nível de imagético. Na medida em que ocorrea ruptura desse discurso, através da collage, que traba-lha com o fragmento, entra-se num outro discurso, quetende a ser gerativo (no sentido da livre-associação)33.

O processo de collage, na performance, reforça tam-bém a importância do colador (no caso o encenador), quepassa a ser o elemento preponderante do processo.

Existe também uma analogia entre o processo de mon-tagem na performance e o processo cinematográfico:

A essência da collage é promover o encontro das imagense fazer-nos esquecer que elas se encontram. O mesmo raciocínio,aliás, que preside a montagem cinematográfica: um filme nadamais é do que a colagem de milhares de pedaços aproveitadosde outros milhares que foram jogados fora 34.

Essa analogia com o processo cinematográfico, em quealgumas performances, como Disappearances, tendem paraum discurso totalmente visual de efeitos da mise en scène,faz com que certos diretores-encenadores trabalhem como sistema de storyboard. O storyboard funciona como umtexto de imagens, onde o script contendo as cenas é intei-

32. J. C. ISMAEL, op. cit.33. É importante lembrar que essa transformação de lin-

guagem desencadeia uma série de modificações, tanto no processode criação, quanto no processo de cognição, por parte do espec-tador (que passa a ser mais subliminar, menos racional). Da mes-ma forma que mexe com todo o processo de educação, se lem-brarmos a discussão que aponta o fato de todo discurso (norma-tivo) ser um discurso fascista (na medida em que propõe umahierarquização rígida de estrutura).

34. J. C. ISMAEL, op. cit.

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ramente desenhado antes de ser produzido. Dessa formao storyboard vai servir de suporte para o trabalho doencenador, da produção, para os artistas cênicos (figuri-nistas, cenógrafos etc), para os performers e outros artis-tas envolvidos na montagem. Existe também uma seme-lhança entre esse processo e a linguagem de história emquadrinhos.

O uso do storyboard facilitará inclusive a venda e aveiculação do espetáculo, passando esse "texto de ima-gens" a substituir o texto dramatúrgico como materialreferencial. Alguns grupos que trabalham com esse pro-cesso são o Mabou Mines e a Byrd Hoffman Co. de BobWilson.

Da Utilização dos Elementos Cênicos:O Discurso da Mise en Scène

Na arte de performance a relação entre os diversoselementos cênicos (atores, objetos, iluminação, figurinosetc.) vai ter uma valorização diferente que no teatro35.

Ao contrário deste, na performance não vai haver umahierarquiazação tão grande dos elementos. A cena nãoé necessariamente do ator, e este passa a ser um elementoa mais do espetáculo. Uma cena inteira pode ser desen-volvida por um objeto (na Eletroperformance de GutoLacaz, que descreveremos a seguir, um rádio é o perso-nagem único de um quadro). A iluminação, a sonoplas-tia etc. podem passar de simples fundo (por exemplo,uma iluminação de marcação, que só tem a função de"acompanhar" os atores) para centro de alguns quadrosna performance26.

O espetáculo vai sendo montado a partir de quadrosou sketches num processo que se assemelha ao constru-tivismo proposto por Meyerhold.

35. Estamos tomando para comparativo o teatro apoiadona dramaturgia onde a função principal é a de "passar o texto"e "mostrar as personagens".

36. Isso é marcante nas óperas de Bob Wilson. Em DeathDestruction & Deíroit (1979) o principal elemento de uma cenaé uma lâmpada gigantesca mostrada à frente, enquanto ao fundoo nazista Rudolf Hess dança feliz pelo nascimento de seu filho.É importante ressaltar que a arte de performance, ao eliminar oprocesso de texto narrativo e da rígida construção de persona-gens características do teatro, coloca alguma coisa em troca, ouseja, um "espetáculo de efeitos" e a habilidade inusitada dosPerformers.

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Essa forma de construção, que privilegia a forma, aestrutura, em detrimento do conteúdo e da linha narra-tiva, permite que se alinhe a performance com o chama-do teatro formalista, estruturalista37.

Esse tipo de construção de cenas, estruturado porcollage e ao mesmo tempo trabalhando com " re-signa-gem"38, vai criar em algumas performances (como Disap-pearances) a obra aberta, labiríntica, acessível a váriasleituras.

O uso de multimídia cria o que Schechner39 chamade mutiplex code que vem a ser o sinal capitado a par-tir de uma emissão multimídica, reforçando esse efeito da"re-signagem".

A eliminação de uma cena mais concreta na perfor-mance ("concretitude" no sentido aristotélico, em termosde um espetáculo com início, meio, fim, texto, mensa-gem etc.) não vai impedir e, ao contrário, vai aumentara carga dramática, dando à performance a característicade um drama abstrato.

A eliminação de um discurso mais racional e a uti-lização mais elaborada de signos fazem com que o espe-táculo de performance tenha uma leitura que é antes detudo uma leitura emocional. Muitas vezes o espectadornão "entende" (porque a emissão é cifrada) mas "sente"o que está acontecendo.

Na performance a intenção vai passar do what parao how (do que para o como)M. Ao se romper com o dis-curso narrativo, a história passa a não interessar tanto,e sim como "aquilo" está sendo feito.

Essa intenção reforça uma das características princi-pais da arte de performance e de toda a live art, que éo de reforçar o instante e romper com a representação41 •

37. Esse termo é utilizado por THEODORE SHANK, Ame-rican Alternative Theater.

38. A "re-signagem" seria a utilização combinada de diver-sos tipos de signos que são retransformados através de processoscomo amplificação, multiplicação, inversão etc. Em Shaggy DogAnimation (1978) do grupo Mabou Mines, este processo é uti-lizado: Rose é um cachorro, mas é representada por uma boneca;trabalha-se com a persona dissociada e com os "fragmentos dalinguagem". Maiores detalhes em SILVERE LOTRINGER, Tran.sSemiotic Analysis: Shaggy Codes, pp. 88-94.

39. RICHARD SCHECHNER, "Post Modern Performance:Two Views", p. 13.

40. RAKESH SOLOMON, "Alan Finneran's PerformanceLandscape", pp. 95-106.

41. Ver Cap. 3-

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Trata-se de trabalhar com as dialéticas — stage time xreal time42 e performer x personagem.

Como isso vai se dar na prática? Reforçando-se aschamadas tarefas de palco. Por exemplo, na performanceA Wall in Venice/3 de Alan Finneran43 uma performerfica fazendo inúmeros desenhos no palco, repetindo váriasvezes essa tarefa. Num determinado momento a tendên-cia é de que a platéia passe a observar mais como elaestá fazendo aquilo e não o porquê daquela ação. Ficaclaro que a habilidade é dela, da performer, e não deuma personagem que ela esteja "representando". Naqueleinstante, ela está trabalhando em cima do real time (en-quanto não "acertar" os desenhos a peça não continua).

Essa atuação no real time acontece também na perfor-mance Fluxus, do homem catando as latas, ou na perfor-mance de Beuys, onde este é mordido pelo coiote. Ambosnão estavam "representando", embora, como já comen-tamos, esses atos estivessem revestidos de um caráter sim-bólico. Podemos falar então em "níveis de simbolização"e "níveis de realidade". (Na montagem do Édipo, tudoé simbólico, se reportando ao stage time.)

Talvez o exemplo mais claro dessa ruptura com a re-presentação seja o do circo (que também pode ser enten-dido como um tipo de performance). Quando o atiradorde facas atua, ele não está "representando", não está fa-zendo nenhuma personagem. Ele está praticamente atuan-do no real time. Talvez o risco nesse caso é que estejatrazendo mais "realidade", mais "vida", para esta cena(na medida em que se trabalha com o imprevisto).

Ao se analisar a utilização dos elementos cênicos naperformance cabe especial atenção para o uso do texto(verbal). Por uma série de razões que explicitaremos aseguir, pode-se dizer que o texto se transforma em maisum elemento da mise en scène.

Em uma série de espetáculos o texto é simplesmenteeliminado, por isso se tem chamado essa linguagem desilent theatre; quando se utiliza o texto, na performance,

42. Literalmente "tempo de palco" (tempo cênico) e "temporeal"; o primeiro é o tempo ficcional, tempo da representação. Dizrespeito à personagem. O "tempo real" diz respeito ao que efeti-vamente está acontecento no momento. É o tempo do ator. Essaterminologia é introduzida por XERXES MEHTA, Some Versionsof Performance Art.

43. RAKESH SOLOMON, "Alan Finneran's PerformanceLandscape".

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ele não vai ser narrativo; em muitos casos, o texto estarásendo utilizado muito mais pela sonoridade que pelo seuconteúdo (utiliza-se o texto enquanto significante e nãosignificado) funcionando como uma sound poetry44.

Em alguns casos, o texto chega a se transformar numtexto paisagístico, adquirindo características de cenário,como uma cor, uma luz ou um efeito especial: ele é trans-mitido simultaneamente com uma série de outras coisas,compondo um todo da mise en scène, sem haver, ao mes-mo tempo, uma preocupação essencial com sua intelecção.Talvez o melhor exemplo desse tipo de utilização de textoseja a "ópera" de Bob Wilson: alguns de seus espetáculossão bastante verborrágicos, mas a inserção do texto, comoveremos, é basicamente arquitetônica.

Analisaremos a seguir alguns trechos das "peças-ópe-ras" The $ Value of Man (1975) e / Was Sitting on myPátio this Guy Appeared I Thougt I was Hallucinating(1977) de Bob Wilson45.

Antes de entrarmos na análise dos "textos", é impor-tante falar-se um pouco do processo pelo qual eles foramcriados. The $ Value of Man foi quase que totalmenteescrito por Christopher Knowles. Christopher é um autistaque através de um longo trabalho terapêutico com BobWilson teve condições de adaptar-se a uma vida razoavel-mente normal.

Está provado que os autistas têm maior desenvolvimen-to do hemisfério direito do cérebro, em detrimento doesquerdo. Isso lhes confere maior visualidade espacial emdetrimento do encadeamento lógico do discurso.

O hemisfério direito está relacionado com o senso mo-delar e pictórico. Ele controla as funções geométricas eespaciais. É o hemisfério direito que organiza os processosgestálticos e a memória de imagens, a chamada memóriaholística.

Cabe ao hemisfério esquerdo o controle do pensaranalítico e seqüencial, bem como a aprendizagem do códi-go verbal. Alguns pesquisadores chamam o hemisfério di-

44. Poesia sonora.45. O texto de The $ Value of Man ("O Valor em Dólares

do Homem") pode ser encontrado em ROBERT WILSON, $ Va-lue of Man, Theater. Yale School of Drama, pp. 90-109. O textode / Was Sitting. . . I Was Hallucinating (Eu Estava Sentado noMeu Pátio, Esse Rapaz Apareceu, Eu Pensei que Estava Alu-cinando) pode ser encontrado em ROBERT WILSON "I WasSitting. . . I Was Hallucinating", Drama Review, pp. 75-78.

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reito do cérebro, que é mais desconhecido pela ciência,de hemisfério dos artistas46.

É importante falar desse hemisfério holístico, porquea performance como um todo — tanto a nível de criação,quanto de cognição — está muito relacionada com essesprocessos (poder-se-ia dizer, em contraposição, que o tea-tro racionalista trabalha mais com o outro hemisfério).

Christopher Knowles tem seu hemisfério direito muitomais desenvolvido, o que lhe permite dizer frases inteirasao contrário, ou como um computador, ir cortando letrasde seu discurso47.

Nas Pranchas 1 e 2 que se seguem apresentamos tre-chos de The $ Value of Man. O texto foi compilado porCindy Lubar, que trabalha como atriz na companhia deBob Wilson.

As falas do texto são encadeadas na forma que apre-sentamos: em estrofes de 16 frases, ou múltiplos dessenúmero. A numeração que antecede as frases faz parte dotexto.

Os desenhos que foram feitos para delinear a formados textos servem para demonstrar a preocupação arquite-tônica de Bob Wilson.

46. Para uma leitura inicial sobre a questão dos hemisférioscerebrais, pode ser consultado o livro de fisiologia de JOHNECCLES, O Conhecimento do Cérebro, São Paulo, Atheneu Edi-tora/EDUSP, 1979.

47. As informações sobre Knowles foram obtidas com LuizRoberto Galizia.

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Prancha 1

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O texto de Pátio foi composto por Bob Wilson. Oprocesso de criação foi o de ir escutando vários canais detelevisão simultaneamente (girando o dial de tempos emtempos) e a partir daí colher fragmentos do que estavasendo falado. Para se entender melhor a forma com quefoi utilizado esse texto, descreveremos resumidamentecomo aconteceu essa performance*8;:

Prólogo. O público está entrando, o palco está escuro, ape-nas um spot ilumina um telefone que toca sem parar. Blackout.As luzes começam a se acender em resistência e o telefone párade tocar. Um homem (Bob Wilson elegantemente) trajado estásentado, absorto, em silêncio. O espaço da sala está totalmenteiluminado, e através de efeitos se tem uma sensação de umespaço amplo e vazio. Blackout. Início do primeiro ato. A luzsobe em resistência, o homem continua sentado, só que o espaçodo fundo se transformou numa biblioteca, repleta de livros. Ohomem começa a falar, sem impostação de voz, com auxílio deum microfone escondido na lapela. Em paralelo ao som do textoouve-se, ao fundo, o som de um piano. Fim do primeiro ato.Blackout. Início do segundo ato. Repete-se a cena do quadro ini-cial. Agora há uma mulher (Lucinda Childs) que está sentada,absorta, com um cenário vazio atrás dela. Novo blackout. Ocenário se transforma na biblioteca. Repete-se todo o texto doprimeiro ato, a mulher também usa um microfone escondido, sóque gesticula mais e dá um tom de maior angústia ao seu dis-curso. Ao fundo, ouve-se o som de cravo. No final do segundoato, à medida que o texto vai sendo falado, o cenário dabiblioteca lentamente vai se desmanchando no cenário vazio, en-quanto se ouve distante o barulho de mar.

48. A descrição dessa cena está em ROBERT WILSON./ Was Sittin. . . I Was Hallucinating, op. cit. Esta peça é quaseque totalmente diferente dos outros trabalhos de Wilson; não hágrandes efeitos de cena, apenas duas pessoas trabalham — umadelas, o próprio Bob Wilson — apresentando-se como performer.Na Prancha 3 apresentamos um trecho da peça.

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Prancha 3

ACT I

I was sitting on my pátio this guy appeared I thought I washallucinating1 was walking in an alleyyou are beginning to look a little strange to mePm going to meet them outsidehave you been living here longNO just a few days.would you like to come insurewould you like something to drinknice place you've gotdont't shootdon't shootand now will you tell me how we're going to find our agentsmight as weil turn off the motor and save gasdont't just stand there go and get helpPve never seen anything like itwhat are you running away from(you)youhas he gotten here yethas who gotten here yetNOwhat would you say that was(what would you say that was)1 2 5

(1 2 5)very weil(very weil)play opposum(play opposum)open the doors(open the doors)one you ali set(one you ali set)go behind the door(go behind the door)(now is the time to get away)(nov is the time to get away)1 and 2(1 and 2)

Pll be with you in just a minutePU be with you in just a minutePll be with you in just a minute(Pll be with you in just a minute)(oh hello that's just the call I was waiting for)

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Na análise desses dois "textos" podemos levantar al-gumas características que se repetem e são de certa formarepresentativas do uso que se faz do texto na arte deperformance.

A repetição como elemento constitutivo talvez sejauma das características mais marcantes da performance.No uso dessa repetição busca-se um "efeito zen", à me-dida que a fala continuamente repetida vai criando osom de um mantra, hipnótico, que conduz a outros esta-dos de consciência (o chamado estado <x).

Essa repetição provoca também uma emissão de men-sagem subliminar, que irá ocasionar uma cognição dife-rente por parte do receptor. Como já observamos, essarepetição não se dá só a nível de palavra, mas também deimagens (em Pátio, por exemplo, todas as marcações sãorepetidas no primeiro e no segundo ato).

As falas do texto são absolutamente comuns, podendo,por isto, ser fragmentos de qualquer tipo de discurso.Isso reforça a idéia de obra aberta, com o texto funcio-nando como matriz de um conjunto de possibilidades.

Estas falas, ao mesmo tempo, estão carregadas de umforte apelo emocional ("weil I don't want Janey to knowthis", "I've never seen anything like it", "what are yourunning away from").

Algumas falas simples e repetitivas, construídas porKnowles ("you're right and you're wrong") aludem àsbrincadeiras de linguagem propostas por Gertrude Stein(uma rosa é uma rosa é uma rosa. . . ) , têm também um"q" da lógica alógica de Lewis Carroll (o que não é deestranhar, por terem sido compostas por um "louco").Podem ser comparadas também aos poemas (na forma dehai-kais) de Heráclito.

Outro aspecto fundamental do uso da fala na arte deperformance é que dificilmente um texto é dito sem ouso de aparelhagem eletrônica. Raramente, como no tea-tro, um ator fala com sua voz livre impostada.

A fala ou é apoiada em microfone ou é apresentada(em off ou em cena) através de gravadores. Alguns outrosexemplos dessa fala eletrônica, além de Wilson, são asperformances United States de Laurie Anderson, ShaggyDog do Mabou Mines, e Southern Exposure de ElisabethLaCompte.

A principal razão para essa "eletronificação", a nossover, é que a arte é reflexo do tempo, do modus vivendide uma sociedade; estamos em plena era da eletrônica,

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da cibernética. O som que fica no subconsciente é o somda mídia — o som da televisão, do rádio, da música ele-trônica, do computador.

Outro aspecto importante, e talvez Wilson seja ocriador que tenha levado isto ao extremo, é o uso arqui-tetônico do texto. Como podemos ver na Prancha 2, otexto forma figuras retangulares, triangulares etc.

Essa forma geométrica, que lembra a poesia concreta,vai ter um outro uso no caso (porque o texto está sendofalado, não visto) que é de equacionar os tempos das cenas— o texto vai ajudar na marcação para divisão dosquadros.

Por último, pode se fazer uma associação entre essetipo de texto, fragmentado e desconexo enquanto estru-tura, com o texto do Teatro do Absurdo. E não é semmotivo; para Bob Wilson, Beckett é um grande inspira-dor e um dos poucos dramaturgos com quem demonstrouinteresse em realizar uma montagem.

Essa recusa de utilizar o texto enquanto significado(pelo menos significado referencial) diz respeito à inutili-dade que toda uma cultura tem aos olhos de tais artistas(os anos 80) são marcados pelo niilismo, não há maisdiscurso a ser feito) e a um fenômeno que pode ser de-nominado de esvaziamento da palavra, a falência dodiscurso.

O discurso é inútil, mentiroso, encobridor (e isso seconsubstancia com as descobertas de Freud). Quando essesartistas fazem uso da palavra eles o fazem no seu sentidomais primitivo, mais léxico.

A propósito de Freud, o que se instaura através desse"esvaziamento da palavra" é a dicotomia natureza x cul-tural. A discussão é sobre a validade do código cultural,ou sobre até que ponto a linguagem pode servir comoleitura de mundo, descrevendo as fruições e as sensaçõesmais íntimas do ser?

Ou, como sugere Bob Wilson em Pátio, todo discursoé orobórico, fechado e as efêmeras palavras e livros irãolentamente se desmanchando no vazio ao som do movi-mento contínuo e eterno do mar.

49. Esta dicotomia c básica na obra freudiana.

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Estudo de Casos: Do Ritual ao Conceituai comoExpressões de Performance

Para efeito de estudo de caso, tomaremos como objetode análise duas performances que acompanhamos. O cri-tério para seleção desses dois trabalhos, dentre o conjuntode performances assistidos (ver fontes textuais), foi queo Videoteatro de Otávio Donasci e a Eletroperformancede Guto Lacaz, além de apresentarem um alto nível dequalidade, resumiam, tanto pelas semelhanças quanto pe-las diferenças, características globais da arte de perfor-mance.

Um outro fator de escolha desses dois trabalhos é queeles representam tendências bastante diferentes dentro daarte de performance, no que tange à relação com o públi-co e à maneira com que se trabalha com a "significação".A idéia é que, além da já comentada variação entre espe-táculos mais espontâneos e espetáculos mais deliberados,a performance abriga dentre seu leque de tendências, numextremo, o espetáculo totalmente desmitifiçado, onde se

• brinca com a convenção e se "mostra" a representação[ — chamaremos esse tipo de trabalho, cujo exemplo é a) Eletroperformance, de espetáculo conceituai — e no outro. extremo o espetáculo que se aproxima do mítico, do ri-I tualístico, não havendo "decomposição" da cena. O exem-

plo para esse tipo de trabalho, que chamaremos de espe-táculo ritual, é o Videoteatro.

A seguir descreveremos e analisaremos as duas reali-zações.

Aproximação de um Espetáculo Ritual —O Videoteatro de O. Donasci

Local: Galeria de Arte São PauloData: Maio de 1982

O local da performance é uma galeria de artemoderna. O espaço é amplo, dividido em dois pavi-mentos: o térreo, maior, com uma área retangular, eo segundo pavimento, ligado ao térreo por escada,assemelhando-se a um mezanino de corredores.

A arquitetura do edifício permite que de qualquerlugar da galeria seja possível se observarem todosos espaços desta. As cores brancas e o material usadono ambiente transmitem uma sensação de "moderno".

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O público é de aproximadamente cinqüenta pes-soas. Estão todos concentrados no andar térreo dagaleria, alguns sentados em bancadas móveis dispos-tas no espaço e o restante em pé. Não existe nenhumefeito de luz e a iluminação é branca, com a luzambiental da galeria.

Início da performance: surge uma "criatura" noandar de cima. Trata-se de um "ser" de dois metrosde altura, totalmente vestido de preto, com uma "ca-beça" que, à distância se assemelha a um aparelhode televisão. A criatura inicia uma fala, em portu-guês, e em seguida põe-se a cantar. A voz soa metá-lica, maquinai, o ser se parece a algo inumano, apesarde sua forma antropomórfica (ver foto 78).

A primeira impressão causada com a apariçãoda "criatura" é de um misto de curiosidade e medo(talvez pelo seu tamanho). As pessoas no térreo selocomovem no espaço para acompanhar as evoluçõesda "criatura". O "ser" permanece uns dez minutosem cima e em seguida começa a descer as escadas.Alguns metros atrás "dele" desce um outro elemento,vestido de preto (contra-regra), carregando fios e umgerador de TV.

Apesar de a "criatura" ser aparentemente monito-rizada, ou melhor, ser ligada a alguma fonte que dávida, ela dá a impressão de ter vida própria. Asse-melha-se, talvez pelo seu tamanho, a um totem: umtotem eletrônico.

À medida que vai descendo, o "ser" continuaseu discurso acompanhado de gestos com os "bra-ços". A sua chegada ao térreo causa medo no públi-co, provocando um esvaziamento à sua passagem.Nesse momento a "criatura" busca um canto do es-paço, senta-se, e começa a discorrer sobre sua soli-dão, chegando ao choro e despertando piedade.

Com a conseqüente aproximação do público, a"criatura" se levanta, passa a cantar um tango e"agarra" uma menina do público — que está maispróxima — passando a dançar freneticamente o tan-go com ela, ao som de seu próprio canto. Terminadaa dança, o "ser" retira-se para um canto do espaço,faz um discurso final e seu rosto desaparece.

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A ViJeocriatura de Otávio Donasci.

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Na frente do público a "criatura" começa a ser"desmanchada". É o tempo de sair de um envolvi-mento mítico50 e voltar-se para uma observação nor-mal. O tempo real (do relógio) da performance foi deaproximadamente trinta minutos, o tempo mítico foinitidamente superior.

Ao se desmanchar a "criatura", entendemos comoela foi construída: um performer (o próprio OtávioDonasci) mantém, através de um suporte colocadosobre seus ombros e cabeça, um aparelho de televi-são que passa a ser a "cabeça" da "criatura". "Cor-po" e "cabeça" se integram pela vestimenta (umpano preto que esconde o suporte -— ver foto).

Nesse momento, entende-se também que toda aimagem que apareceu no "rosto da criatura" foi pré-gravada, pois o rosto que aparecia na tela era deoutra pessoa (o ator Osmar di Pieri) e este não seachava presente no espaço, sendo captado por umacâmera.

Aproximação de um Espetáculo Conceituai —A Eletroperformance de Guto Lacaz

Local: Ponderosa Bar (São Paulo)Data: junho de 1983

O local da performance é um café-teatro que tem,no segundo andar, uma pequena sala de espetáculos.A sala é dividida em um pequeno palco e um espaço(sem cadeiras) para o público.

O público é de aproximadamente setenta pessoase a performance acontece somente nesse dia, no ho-rário especial das 24 horas.

O espetáculo divide-se em quadros (num total de14), cada um tendo como base um aparelho elétrico,uma idéia e um clima determinado.

O espetáculo é apresentado por dois performers:Guto Lacaz e Cristina Mutarelli. Ambos vestem aven-tais brancos e usam óculos punk.

À medida que os dois vão mexendo com os apa-relhos elétricos, temos a impressão de estarmos dian-te de um "cientista (criador) maluco" e sua pariner.

50. Aprioristicamente podemos definir a "relação mítica",em contraposição com a "relação estética", como sendo aquelaem que não existe um distanciamento claro entre o objeto e oespectador. No Cap. 4 aprofundaremos a discussão dessas relações.

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O espetáculo é multimídico (utiliza-se de teatro,cinema, cibernética, plástica, iluminação por neonetc.) e não existe nos performers a preocupação de"interpretação"; a impressão que fica é de sempreestarmos vendo uma "demonstração". Os performers,com ironia e principalmente humor, vão mostrandoas várias possibilidades de utilização dos objetos elé-tricos (sempre inusitadas como descreveremos aseguir).

Deter-nos-emos em dois quadros da performanceque merecem destaque especial:

Num dos quadros a cena é de um rádio (do tipoantigo, de madeira e luminoso). O rádio é o perso-nagem único da cena (os dois performers estão foranesse momento). À medida que transmite informa-ções bombásticas, o rádio pisca e movimenta-se emcena (grande parte do mérito do espetáculo de GutoLacaz se baseia na qualidade das "engenhocas" queeste, originalmente um artista plástico, constrói. Orádio está encaixado em um trilho que permite a suamovimentação sem que se perceba isso da platéia).

O outro quadro é o do fechamento da performan-ce (ver foto p. 81). Os dois performers estão emcena. A luz de neon os ilumina. A partner segurauma bola de plástico. Uma música clássica, triunfal,anuncia que o gran finale está para acontecer. Gutoliga um tubo de ar (que se assemelha a um aspiradorde pó ao contrário) e aproxima suas mãos das de suapartner (ver foto). De repente, os dois se posicionamem cima do tubo, a bola sobe e fica flutuando a umacerta altura do espaço. O efeito produzido é mágico.

Antes de analisarmos as diferenças entre as duas per-formances, cabe apontar algumas semelhanças no proces-so de trabalho que são características de toda a expressão:

O processo de criação e apresentação se organiza den-tro do que se tem denominado work in process: os quadrossão montados, apresentados e vão sendo retransformadosa partir de um feedback, para futuras apresentações.

Coincidentemente, os dois trabalhos, no momento emque os acompanhamos, estavam praticamente estreando.A Eletroperformance foi posteriormente apresentada, en-tre outros lugares, na danceteria Radar Tanta, no Festivalde Campos de Jordão e no I Festival Nacional de Per-formances da Funarte (nessa última versão o espetáculo

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A Kletroperformance de Guto Lacaz.

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se chamou A Eletroperformance "Além da Realidade",contando com a participação de quatro performers, masmantendo, contudo, a estrutura original).

O Videoteatro de Otávio Donasci evoluiu enquantopossibilidade de linguagem, sendo apresentado, entre ou-tros lugares, no 1 e II Festivais Nacionais de Vídeo doMuseu de Imagem e do Som.

A criação através do work in process reforça a carac-terística de evento da performance. Os trabalhos são apre-sentados em locais alternativos (galerias, praças, festivaisetc.) e os espetáculos não ficam em temporada, comoacontece com as peças teatrais.

Como arte de vanguarda, a performance acaba sendoassistida por um público restrito e específico, um públicode iniciados, porém, como grande parte desse público écomposta também por artistas e os chamados "formadoresde opinião", existe todo um processo de transmissão das"experiências" testadas na performance para as outrasartes mais convencionais, no que tange a repertório, cria-ção de efeitos, formas de atuação etc.51.

Na utilização dos espaços observa-se, nas duas per-formances, a busca do uso do espaço no seu sentido maisamplo, ou seja, na tridimensionalidade. Principalmente noespetáculo de Otávio Donasci trata-se de fugir do "espaçochapado" utilizado pela maioria das companhias teatrais(pelo fato de se trabalhar no palco italiano). SegundoDonasci:

O videoteatro pretende ser o começo de um tipo de teatrode imagens tridimensionais que fluem com a velocidade do pensa-mento, que é a verdadeira linguagem do ser humano 52.

Concomitantemente com essa preocupação do uso doespaço está a preocupação com a relação palco-platéia.Não existe um objetivo claro — e isso fica, patente naperformance de Donasci — de delimitar onde termina eonde começa o espaço do palco e o da platéia. Essa ambi-güidade fica intencionalmente ampliada pelo uso de es-paços livres, sem cadeiras fixas para o espectador. Como

51. Um exemplo disto é que na temporada de 1985 PauloAutran e Raul Cortez, dois dos mais consagrados atores do Teatro,estruturaram a divulgação de suas montagens à base deles, enquan-to performers, e não à base da peça, como acontece tradicio-nalmente.

52. Em material de divulgação da performance.

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nos espetáculos experimentais dos anos 6053, palco e pla-téia se integram (e para tal acontecer não é preciso ocor-rer necessariamente a intervenção física do público noespetáculo), permitindo, ao mesmo tempo, a observaçãode vários ângulos ou partes do espetáculo (na performan-ce do Fluxus, por exemplo, desenvolviam-se cenas simul-tâneas e o público escolhia onde fixar sua atenção).

Reforça-se com semelhante uso de espaço a situaçãode rito, da prática em si, da transição do Que para oComo (a história, o que está sendo narrado, em si não éo mais importante, interessa mais a própria prática, ohappening, o acontecimento). Essa proposta de relaçãocom o espectador é ilustrativa da visão radical de Appiasobre um Teatro do Futuro, onde vida e arte se aproxi-mariam a ponto de verificar-se a supressão dos espectado-res, todos se tornando atuantes e ao mesmo tempo obser-vadores54:

Mais cedo ou mais tarde chegaremos ao que se denominará"sala catedral do futuro", a qual, dentro de um espaço livre, vasto,transformável, acolherá as mais diversas manifestações de nossavida social e artística, e será o lugar por excelência onde a artedramática florescerá, com ou sem espectadores ( . . . ) • O termorepresentação tornar-se-á pouco a pouco um anacronismo. A artedramática de amanhã será um ato social ao qual cada um daráa sua contribuição r'5.

Os dois trabalhos têm como mola propulsora a pes-quisa de linguagem. Donasci está interessado na busca deum mixed-media: "o videoteatro não é vídeo nem teatro.É uma linguagem nova que se realiza no espaço cênico"56.

Guto Lacaz centra sua pesquisa no que podemos cha-mar de uma cenotecnia eletrônica.

Os dois espetáculos se enquadram na linha do trabalhoformalizado, deliberado. Principalmente na Eletroperjor-mance, as cenas (uso dos aparelhos) são rigorosamente

53. Esses espetáculos experimentais eram classificados quercomo happening quer como Teatro de Vanguarda. O happening,enquanto expressão artística, mantinha com o teatro a mesmarelação que hoje é mantida pela performance.

54. Dentro da definição que adotamos anteriormente, tea-tro implica em espectador. A supressão do espectador, de alguém"de fora" observando, faria o espetáculo tender para o psicodrama.No Cap. 4 retomamos essa discussão.

55. ADOLPHE APPIA, prefácio inédito à edição inglesade Mosik und Inszenieurs, 1918. Citado em ALAIN VIRMAUX,Artaud e o Teatro, p. 360.

56. Em material de divulgação do Videoteatro.

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ensaiadas e cada efeito é milimetricamente calculado. NoVideoteatro existe uma combinação de marcação com es-pontaneidade: o espetáculo combina situações preestabe-lecidas e formalizadas (texto e imagem pré-gravados) comuma situação de improviso no instante da apresentação:o performer (manipulador da "criatura") adapta-se àsreações do público, como, por exemplo, nos instantes emque ele senta num canto da sala, ou que tira uma meninapara dançar.

As duas performances trabalham à base da dialética' tempo-espaço ficcional (stage time) tempo-espaço real[ {real time). E é justamente pela forma com que lidam com1 essa dialética que as duas performances tomam rumos

diferentes.O videoteatro se aproxima do que chamamos de espe-

táculo ritual. Trabalha à base do tempo-espaço ficcional,só que levado às últimas conseqüências, isto é, trabalha-seà base da relação mítica que rompe com a representaçãoresultante da mera observação estética.

Essa aproximação com a relação mítica e com o espe-táculo ritual é conseguida através dos seguintes disposi-tivos:

A forma pela qual se dá a relação com o público) e. com o espaço; a "criatura" se locomove livremente entrej as pessoas, tomando-as como uma espécie de corpo com

o qual ela contracena.A situação de imprevisto (na performance quase nunca

o espectador sabe o que vai acontecer a seguir. Não existeum texto, em geral de domínio público, como no teatro,a partir do qual já se pressupõe o que vai acontecer)reforça essa condição de participante do espectador, que

, se vê colocado numa observação que não é apenas estética.O espectador tem que se locomover tanto para obser-

var quanto para se "defender" dos avanços da "criatura".1 É justamente essa situação de imprevisto para o especta-

dor (e imprevisto para o performer) que proporciona a' quebra com a representação e a aproximação com as si-

tuações de vida (que pressupõe o inesperado).Outro aspecto é a impressão causada pela aparição da

"criatura" — que causa espanto e medo — tanto peloseu tamanho quanto pela voz eletrônica que alude ao quechamamos de totem eletrônico. Um totem que funcionacomo catalisador do rito.

i' Existem duas quebras nesse "envolvimento mítico".I Primeiro, quando se "mostra" o contra-regra carregando

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os fios (se bem que ele esteja vestido todo de preto e seposicione, em relação à "criatura", como um operador debonecos do Teatro Bunraku). Segundo, quando a "cria-tura" é desmanchada diante de todo mundo. Não ficaclaro se essa quebra é intencional ou não, mas no momen-to em que se desenvolve a ação ela já está acontecendo notempo/espaço real.

Na Eletroperformance trabalha-se mais com a dialéti-ca tempo-espaço ficcional/tempo-espaço real. É justamen-te o jogo com esses dois "tempos", que se dá através deuma brincadeira com a convenção teatral, que faz comque essa performance possa ser apontada como um espe-táculo conceituai (na medida em que brinca com os con-ceitos de convenção, representação, atuação etc. que es-truturam a arte teatral).

A Eletroperformance funciona como uma demonstra-ção. Fica demonstrado que qualquer coisa interessante podeser uma cena (como o rádio) e que não precisa haver ofio dramatúrgico, nem grandes personagens em cena, parao espetáculo se sustentar.

A Eletroperformance caminha sempre à base do anti-clímax, da anticena, da antiatuação. Os performers en-tram e saem de cena e demonstram o uso dos aparelhoselétricos (sempre inusitados) como uma feira de utilida-des domésticas: Guto e Cristina entram, seguram a bola,olham para o público e de repente o aspirador é ligadoe a bola, inusitadamente, fica suspensa no ar. Não acon-tece nenhuma grande cena, nenhuma grande interpreta-ção, mas o efeito produzido é mágico.

Fica sempre demonstrado, nessa performance, a subs-tituição do eixo de sustentação do teatro convencional(narração/personagem) pelo eixo da performance (liveart/performer). O que o performer coloca em cena, nolugar de uma personagem construída, é sua habilidadepessoal (no caso a habilidade de Guto Lacaz de cons-truir as engenhocas e de fundir linguagens).

Outro aspecto que reforça a diferença entre os doisespetáculos é a preparação do ator-performer. No Video-teatro existe um trabalho minucioso que se divide em qua-tro níveis07:

57. Essas informações foram colhidas em entrevista comOtávio Donasci e através de material de divulgação do espe-táculo.

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• Laboratório de vídeo e expressão facial — fasede preparação do ator para ter sua imagem gra-vada.

• Laboratório de criação de protótipos com moni-tores-fase onde são criados os "seres" (criaturasantropomórficas, formas de animais etc).

• Laboratório de expressão corporal com protóti-pos-treinamento do performer que fará o "corpo"da "criatura" em termos de habilidade, gestuali-dade e sincronicidade com a imagem do "rosto".

• Laboratório de utilização do espaço cênico parao espetáculo-treino de uso do espaço e de contatocom o público.

Na Eletroperformance não existe esse trabalho de pre-paração do performer. Isto é intencional, não existe apreocupação com interpretação. O artista está livre (dastécnicas teatrais) e anda e fala no espaço cênico comoquiser58.

Finalizando, cabe ressaltar nessa classificação de ex-pressões da arte de performance — do espetáculo ritualao espetáculo conceituai —, que um outro tipo de classi-ficação tópica é utilizada pelos americanos59:

As performances são classificadas em três tipos:Organização sígnica: o leitmotiv é a estruturação pela

mise en scène e o melhor exemplo é a performance Disap-pearances.

Organização tempo/espaço: a estrutura da performan-ce se dá pela utilização espaço-temporal.

Poderíamos colocar dentro dessa classificação a per-formance do Fluxus (à medida que uma cena termina,outra se inicia, em outro lugar) e também a performancedo Videoteatro (utilizam-se vários espaços, com váriostempos — ao vivo, pré-gravado etc).

58. Esse não-uso de técnicas é mais radical em artistascomo Joseph Beuys, Andy Warhol entre outros. Ninguém estápreocupado em como se imposta a voz ou como se anda nopalco. Se com isso, por um lado, vai se perder em qualidadeestética, ganhar-se-á, pelo outro, no aumento de espontaneidade ede quebra de representação.

59. RICHARD SCHECHNER, ,Post Modern Performance— Two Views".

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Organização pelo self: o motor da performance é oego pessoal do artista. Nesse caso se encaixa a perfor-mance de Beuys e as performances do americano SpaldingGray baseadas na sua própria vida.

É claro que essa divisão é didática e muitas perfor-mances têm características provenientes das três estrutu-ras, porém sempre haverá uma acentuação maior de umadelas.

Da Ideologia da Performance: Uma Reversão da Mídia

Interessa-nos, neste ponto, examinar com mais atençãoo que está por trás da linguagem da performance. Dopor que da estrutura fragmentada, das imagens multifa-cetadas e das vozes eletrônicas. Do por que do sacrifíciode Joseph Beuys? Questionar o que o Fluxus, com suasperformances-demonstração desejou mostrar.

Para encontrar alguma resposta, talvez seja precisorediscutir a função da arte. O artista é antes de maisnada um relator de seu tempo. Um relator privilegiado,que tem a condição de captar e transmitir aquilo que to-dos estão sentindo mas não conseguem materializar emdiscurso ou obra.

Talvez a melhor definição de arte para o nosso tempo— tempo da eletrônica, da aldeia mcluhaniana, das ima-gens efêmeras — seja a definição cibernética de Sche-chner: "rearranging bits of information is the main wayof changing experience"60.

Cabe ao artista captar uma série de "informações"que estão no ar e codificar essas informações, através daarte, em mensagem para o público. Essa codificação nãoimplica limitação, mas, isto sim, retransformação atra-vés de outros canais.

E retransformação, releitura são conceitos do momen-to. Trabalha-se com a redundância, com o reaproveita-mento da própria arte através de uma outra ótica deobservação. É a era do Pós-Moderno, estética híbrida,que examina e realiza com outra tecnologia conceitos for-mulados na modernidade.

60. "O principal meio de trocar experiências é rearranjandobits de informação", RICHARD SCHFCHNER. "Post ModernPerformance: Two Views".

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E qual a mensagem que está sendo captada? A men-sagem da mídia. A voz eletrônica do sistema (a voz orwel-liana de 1984) que veicula seus estatutos e seus rostospadronizados. E essa emissão é cada vez mais fragmen-tada e subliminar. O sistema se insinua em cada texto,em cada imagem, em cada objeto utilitário. O sistematrabalha em multimídia. Artistas se "vendem" por umpequeno valor ou por uma breve aparição narcísica noespaço da mídia.

O discurso da performance é o discurso radical. O dis-curso do combate (que não se dá verbalmente, como noteatro engagée, mas visualmente, com as metáforas cria-das pelo próprio sistema) da militância, do underground.Artistas como Beyus e o grupo Fluxus fazem parte dacorrente que trouxe os dadaístas, os surrealistas e a con-tracultura entre outros movimentos que se insurgem con-tra uma sociedade inconseqüente (e decadente) nos seusvalores e também contra uma arte que de uma forma ou

I outra compactua com esta sociedade.

i, O uso da collage, da imagem subliminar, do som ele-trônico são propostas estéticas de releitura do mundo.Da mesma forma que a mídia "cria realidades", na artede performance vão se recriar realidades através de outroponto de vista. Resistente. Vai se jogar, sensivelmente,com as armas do sistema. A linguagem da performanceé uma reversão da mídia.

A mídia manipula o real (artificialmente se criampadrões, mitos, imagens etc. que passam a ser aceitoscomo verdade). O que se faz na performance é, utilizan-do-se essas mesmas "armas" (incluindo-se tecnologia eeletrônica), manipular também o real para se efetuar umaleitura sob outro ponto de vista (como na metáfora Zeligde Woody Allen onde se cria uma realidade histórica).

A linguagem fragmentada diz respeito ao nosso tempo.O século XX (segunda metade) é o século do fragmento.As tentativas unificadoras do século XIX, de se enten-der o mundo através do cientificismo racionalista, já nãocabem mais. Se o século XIX produziu a fotografia, edepois o cinema que trabalham com o registro, a do-cumentação; o século XX introduz a televisão, o vídeo,que trabalham com a imagem efêmera, fragmentada, semmemória. Qual a unidade que existe entre uma emissãoe outra? Como bem coloca f. C. Ismael, após Hiroshima,o que nos sobra são os cacos, as peças do quebra-cabeça.

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Da mesma forma já não faz mais sentido a cena na-turalista (observada da fechadura da porta) nem o dis-curso narrativo. Não há "história" para ser contada —todas as "histórias" já são conhecidas. Na medida emque o teatro (parte dele) se basear em uma forma-idéiaque vem do século passado, ele nunca mais ocupará olugar de vanguarda, que já ocupou em outras socieda-des, mas sim o de reboque das outras artes. Conservaráapenas uma função museologica. Isso por puro miso-neísmo, porque a relação teatral do homem em frente dooutro homem (mesmo com aparato tecnológico) é eterna.

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3. DA ATUAÇÃO:

O PERFORMER, RITUALIZADOR DOINSTANTE-PRESENTE

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M' (Ê.

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To me, performance is a spiritual discipline.You've either gone as high as you can or youhaven't. . A

MEREDITH MONK

A Dialética da Ambivalência

Se o que distingue o teatro de outras linguagens é acaracterística do aqui-agora (algo está acontecendo na-quele espaço, naquele instante; sua realização é viva na-quele momento) e se, simbolicamente, este "algo que estáacontecendo" está sendo "mostrado" — geralmente •—•por um "ator", é lógico supor que os grandes paradoxosdo teatro acabem "passando" pela figura do comediante2.

1. "Para mim, a performance é uma disciplina espiritual.Você pode chegar lão alto quanto puder, ou não. . . "

2. Utilizamos aqui a formulação de Diderot. que utiliza utermo comediante para designar o ator.

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No seu "Ensaio para um Pequeno Tratado de Alqui-mia Teatral":!, Jean Louis Barrault compara o teatro comas outras expressões de arte. Para ele, o que caracterizae define a pintura é o pincel na tela, a música é o arconas cordas, a literatura é a pena no papel, e o que de-fine o teatro é o ser humano no espaço. Uma analogiabastante lúcida. Porém, para precisá-la melhor, diríamosque teatro é o ser humano no espaço e no tempo. Mate-maticamente pode-se expressar essa definição como:T = h§(s, t), onde T — Teatro, h — homem, §—fun-ção, s — espaço da apresentação, e t — tempo da apre-sentação. Este tempo e espaço se referem ao instante daapresentação e são simultâneos, não se confundindo como cinema, por exemplo, onde algo está sendo apresentado,mas foi "gravado" num outro espaço, num outro tempo.

É então pela figura do comediante, que funciona comouma espécie de "corrente elétrica" por onde todas as ener-gias vão passar, que se reproduzem as grandes questõesontológicas do teatro. Questões essas que são extensíveisà arte como um todo e que dizem respeito à representa-ção — se cabe recriar ou representar o real — a ideolo-gia — a arte deve ser um canal estético, de engajamento,é justo falar em arte pela arte? —, a própria ontologia— a arte é um canal para contato com estados de cons-ciência superior?

Todas essas questões vão estar sendo enfrentadas pelocriador no teatro e vivenciadas pelo ator na cena.

Através de alterações na conduta do comediante,criam-se gêneros diferentes de teatro. É fácil notar que asimples fala, em tempo alterado, de um texto realista,faz com que ele soe surreal ou absurdo. Como um pin-tor que, pela simples alteração de cores na tela, modificaseu estilo, por exemplo de realista para impressionista.

De uma forma simples o Paradoxo sobre o Comediantepode ser enunciado como o da impossibilidade de sere representar simultaneamente. O ator não pode "ser"e construir um outro ser (a personagem) ao mesmo tempo.É a impossibilidade física de dois corpos ocuparem omesmo lugar no mesmo instante, e também a impossibi-lidade psíquica de haver dois egos numa só psique.

Essa primeira abordagem tem um sentido didático enão estamos considerando aqui casos descritos como de

3. S.R.D.

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"possessão" ou, dentro de uma linguagem psicanalítica,de esquizofrenia (a patologia da fragmentação do ego).

Julian Olf4 nomeia, precisamente, esse paradoxo comoa "dialética da ambivalência". É necessidade do ator deconviver simultaneamente com seu próprio ser e o de suapersonagem. Essa ambivalência passa a ser a questão cha-ve e também o problema pelo qual os diretores e ence-nadores vão se colocar diante do teatro: alguns lutandocontra o paradoxo, como Stanislavski, que cria uma sé-rie de técnicas para que prevaleça o "como se fosse",e quando consegue um resultado verossímil é porque estáapoiado numa convenção; e outros, como Brecht, que seutiliza dessa ambigüidade de se lidar com um nível derepresentação e outro de realidade, como analogia domundo.

É importante destacar, já que nesse estudo temos tam-bém uma preocupação topológica, que essa enunciaçãoem termos de um "desdobramento" (ator e personagem),que pode soar arbitrária, se apoia numa conceituação se-miológica. À medida que o ator entra no "espaço-tempo cênico" ele passa a "significar" (virar um signo)e com isso "representar" (é o próprio conceito de signo,algo que represente outra coisa) alguma coisa, podendoser isto algo concreto — o qual tem-se nomeado "per-sonagem" — ou mesmo abstrato (como as figuras queaparecem em peças surrealistas, por exemplo, Les Mamel-les de Tirésias, de Apollinaire).

Se colocássemos essa dicotomia (ator, personagem) emlinguagem binaria, expressando-a em termos de uma va-riável P, teríamos três situações possíveis: P = 0, ondesó temos o ator; P = 1, onde só temos a personagem e to-das as situações intermediárias entre 0 e 1, onde ator epersonagem convivem juntos através da vontade do ator.Os casos extremos (0 e 1) se aproximam do teórico e sãoaqueles estados em que o ator só "atua", não "interpre-ta", e o outro em que ele está completamente tomado,"possuído" pela personagem, não existindo enquantopessoa.

É claro, como bem coloca ]acó Guinsburg, que essassituações são impossíveis mesmo em teoria, porque se to-mada como verdadeira a "possessão", esta ocorrerá atra-vés do aparelho psicofísico do ser receptor, e pop maisque a personagem ou esta "outra coisa", no caso dos ritos,

4. "Acting and Being: Some Thoughts about Metaphysicsand Modern Performance Theory". Theatre Journal, p. 34.

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se "materialize" estará limitada àquele ser, portanto con-tinuará havendo o desdobramento. No outro extremo,alguém nunca pode estar só "atuando": primeiro, porquenão existe o estado de espontaneidade absoluta; à me-dida que existe o pensamento prévio, já existe umaformalização e uma representação. Mesmo que a perso-nagem seja auto-referente (o ator representando a si mes-mo). Ainda assim haverá o desdobramento. Segundo, por-que sempre que estamos atuando (e isto é extensível paratoda as situações da vida) existe um lado nosso que "fala"e outro que observa. Essas situações-limites não são daesfera do humano ou, se o são, pertencem àqueles mo-mentos de transcendência, visualizados por Artaud, e atin-gidos por seres privilegiados em momentos de onicons-ciência, de perda do ego individual, denominados pelosorientais como samadhv'. É interessante que nessa situa-ção paradoxal os dois extremos se tocam: eu não soumais "eu" e ao mesmo tempo eu não "represento".

Ruptura com a Representação: Valorizaçãodo Sentido da Atuação

Pode-se dizer que, dentro da proposição P(O,1), oteatro ilusionista6 tende para / acentuando a "represen-tação" e a performance e a live art, como um todo, ten-dem para 0, acentuando a "atuação".

O que dá a característica de representação a um es-petáculo é o caráter ficcional: o espaço e o tempo sãoilusórios (se reportam a um outro instante), da mesmaforma que os elementos cênicos (incluindo os atores) sereportam a uma "outra coisa". Eles "representam algo".O público é colocado numa postura de espectador queassiste a uma "história". Tudo remete ao imaginário. Eaqui existe mais um paradoxo, que fica claro se pensar-mos em termos da cena naturalista. Quanto mais eu entrona personagem, mais "real" tento fazer essa personagem,mais reforço a ficção e, portanto, a ilusão. Quanto maisme distancio, "representando" a personagem, e não ten-

5. Às vezes se usa, para este estado, o termo sutori.6. O termo "ilusionista" aparece com freqüência na biblio-

grafia, referindo-se a uma cena que tenta criar a ilusão de repre-sentar alguma coisa "real". O teatro ilusionista alcança sua maiorexpressão no teatro naturalista.

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tando vivê-lo, mais eu quebro com essa "ilusão cômica"7.Essa quebra me possibilita a entrada num outro "espaço".Aquele evento (um espetáculo para um público) passaa não ser mais o de uma representação, mas o de umaoutra coisa, que pode ser um rito, uma demonstração etc.O mesmo ocorre com o comediante à medida que nãopassa a ser somente um ator "representando" uma perso-nagem, ele abre espaço para outras possibilidades.

É nessa estreita passagem da representação para aatuação, menos deliberada, com espaço para o improviso,para a espontaneidade, que caminha a live art, com asexpressões happening e performance. É nesse limite tênuetambém que vida e arte se aproximam. À medida quese quebra com a representação, com a ficção, abre-seespaço para o imprevisto, e portanto para o vivo, pois avida é sinônimo de imprevisto, de risco.

Theodore Shank8 observa, com propriedade, que àmedida que o teatro entra pelo lado iusionista, em de-trimento de sua característica mais forte que é o aqui-agora, não reforçar a representação, vai estar sempre per-dendo para o cinema ou a televisão, onde os efeitos ilu-sionistas criados serão sempre mais verossímeis do queno teatro9.

Na performance há uma acentuação muito maior doinstante presente, do momento da ação (o que aconteceno tempo "real)". Isso cria a característica de rito, como público não sendo mais só espectador, e sim, estandonuma espécie de comunhão (e para isto acontecer nãoé absolutamente necessário suprimir a separação palco-platéia e a participação do mesmo, como nos espetáculos

7. Manonni utiliza essa expressão no seu artigo "A IlusãoCômica, ou o Teatro do Ponto de Vista do Imaginário". O termo"cômica" alude ao uso da palavra comediante, para designaratuante.

8. American Alíernative Theatre, p. 3.9. É por isso que a nosso ver o método de Stanislavski

funciona muito melhor para o cinema onde a personagem estánum cenário mais "real" (se ele está num navio, é um navioe não a simbolização deste) que no teatro. Ao mesmo tempo oator no cinema não convive com as ambigüidades do teatro, taiscomo imaginar uma "quarta parede" e ao mesmo tempo ter cons-ciência do público; falar no tom da personagem e ao mesmotempo ter de impostar a voz para a audiência ouvir. É o paradoxode ser "natural" e impostado ao mesmo tempo. No cinema, atorsó tem que estar "natural" na sua personagem, podendo esquecero resto, que a máquina (câmera, equipamento etc.) se encarregade "pegá-lo".

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dos anos 60). A relação entre o espectador e o objetoartístico se desloca então de uma relação precipuamenteestética para uma relação mítica, ritualística, onde há ummenor distanciamento psicológico entre o objeto e o es-pectador.

A característica de evento da performance (muitasvezes os espetáculos são únicos, não se repetem, ou quan-do se repetem são diferentes) acentua essa condição, dan-do ao público uma característica de cumplicidade, de tes-temunha do que aconteceu. Conforme comentaremos noCapítulo 4, é importante destacar que esse caráter deritualização já foi mais radical no happening dos anos60, sendo a performance, em relação a este, uma expres-são de muito mais esteticidade.

Essa valorização do instante presente da atuação fazcom que o performer tenha que aprender a conviver comas ambivalências tempo/espaço real x tempo/espaço fic-cional. Da mesma forma, quando o performer lida coma personagem a relação vai ser a de ficar "entrando esaindo dele" ou então a de "mostrar" várias personagens,num espetáculo, sem aprofundamento psicológico.

A performance tem também uma característica de es-petáculo, de shcw. E isso a difere do teatro. Esse movi-mento de "vaivém" faz com que o performer tenha queconduzir o ritual-espetáculo e "segurar" o público, semestar ao mesmo tempo "suportado" pelas convenções doteatro ilusionista. É um confronto cara-a-cara com o pú-blico (às vezes acentuado pelo uso de espaços diferen-tes como ruas, praças etc.) que exige muito mais "jogode cintura" ou pelo menos um treinamento diverso doteatro ilusionista. O processo se essemelha ao de outrosespetáculos como o circo, o cabaret e o music-hall.

Verticalização do Processo de Criação: o Ator-Encenador

A forma com que o projeto de um espetáculo ou deum evento se estrutura na performance é bastante dis-tinta do teatro10. Essa estrutura, como coloca Shank11, éoriginária dos grupos alternativos americanos, surgidosem meados dos anos 60. Esses grupos tinham aspirações

10. Aqui, a título comparativo, estamos nos referindo aoteatro comercial contemporâneo.

11. American Alternaíive Theater, p. 3.

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temáticas que o teatro do establishment representado pelaBroadway não comportava.

Nesse momento afloravam temas sociais e existenciais:Guerra do Vietnã, emancipação de minorias (mulheres,gays, blacks), o movimento de contracultura (época emque floresce a cultura hippie com toda a influência doOriente através do zen-budismo, da ioga etc).

Surgem então novos grupos nesse movimento que podeser chamado de um Teatro da Contracultura. Esses gru-pos vão trazer, também no estilo, toda uma série de novi-dades: muitos artistas plásticos como Allan Kaprow, WolfVostell, Claes Oldenburg e Andy Warhol, para citar al-guns, estão saindo de sua "mídia estática" para vivencia-rem uma mídia mais dinâmica. Cria-se nesse momentoo happening, a action painting, a body art. Da mesmaforma que, com essa nova visão plástica, outros grupos"teatrais" na sua essência vão valorizar uma criação queé muito mais imagética que subordinada à palavra.

A estrutura desses grupos alternativos se organiza emtorno de um criador que responde pelos papéis de ence-nador, diretor e às vezes ator. É o caso de Julien Becke Judith Malina no Living Theatre, Joseph Chaikin noOpen Theatre, Bob Wilson na Byrd Hoffman Company,Richard Foreman no Ontological-Histerical Theatre e tan-tos outros. No Brasil, o Teatro Oficina com José CelsoMartinez Corrêa segue uma estrutura semelhante.

Ao contrário do teatro comercial (ver Prancha 4),onde a verticalização do processo criativo é hierárquicae autoritária, no teatro alternativo vão ter acesso a esse"espaço vertical" as mesmas pessoas que participam doprocesso inteiro. Dois aspectos importantes decorrem des-sas estruturas:

1. A forma com que o teatro comercial se estruturafaz com que geralmente se trabalhe somente com drama-turgia. O tempo que a máquina comercial exige impedeum trabalho de pesquisa de linguagem. O produtor con-trata autor, diretor, atores e todos os outros elementosnecessários (todos esses, geralmente, os melhores "profis-sionais" disponíveis no mercado). Só que via de regranão há tempo disponível para a pesquisa. Não despontaa figura imprescindível do encenador (que é precaria-mente substituída pela do diretor)12.

12. Poderíamos diferenciar o encenador como sendo aqueleque acumula as funções de diretor e alguma coisa mais. Essa

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No teatro alternativo, a figura principal é a do ence-nador que vai decidir o processo de criação e a lingua-gem a ser utilizada: se mímica, se ritual, se drama, seteatro de bonecos etc. Um exemplo interessante é o doSnake Theatre que se especializou em "Teatro Ambien-tal" (a peça, Somewhere in the Pacific (1978) tem o marcomo cenário).

É o encenador também que vai decidir o tipo de pre-paração que os atores devem receber13.

2. A forma com que o processo é conduzido no tea-tro alternativo faz com que se aproxime daquilo que sechamou "criação coletiva". Muito do que é criado resul-ta de laboratórios, experiências e discussões a partir dotrabalho dos atores e de todos os outros artistas envolvi-dos no processo — artistas plásticos, poetas, técnicos etc.Isso tudo é feito com a coordenação do encenador. Esseprocesso teve seu ápice nos happenings, onde essa "cria-ção coletiva" acontecia inclusive no momento da apre-sentação, cabendo aos assistentes participação no pro-cesso.

Na passagem para a expressão artística performance,uma modificação importante vai acontecer: o trabalhopassa a ser muito mais individual. É a expressão de umartista que verticaliza todo seu processo, dando sua lei-tura de mundo, e a partir daí criando seu texto (no sentidosígnico), seu roteiro e sua forma de atuação. O performervai se assemelhar ao artista plástico, que cria sozinho suaobra de arte; ao romancista, que escreve seu romance;ao músico, que compõe sua música.

Por esse motivo vai ser muito mais reduzido o tra-balho de criação coletiva. Mesmo quando o artista (nocaso, um encenador) trabalha em grupo, com outros ele-mentos, caso dos grupos Ping Chong, Mabou Mines, TheHouse (o grupo de Meredith Monk) etc. Esse processo

alguma coisa é a pesquisa, o processo de produção, a interaçãocom a sociedade e até detalhes da montagem — do tipo se apeça deve usar mímicos ou atores. Exemplos de encenadores sãoJérome Savary, Bob Wilson, Arianne Mnouckine, Antunes Filho,Caca Rosset. O diretor em geral é contratado por um esquema deprodução e nessa linha trabalham os diretores da Broadway e amaioria dos diretores brasileiros.

13. É claro que esse tipo de organização não é invençãodo teatro alternativo. O famoso Teatro de Arte de Moscou, diri-gido por Stanislavski já no século XIX se estruturava dessa forma.O que o teatro alternativo traz de inovação é sua temática e formade apresentação.

100

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Prancha 4

Teatro Comercial

Produtor

Dramaturgo

Diretor

Iluminador Atores

V TeatroE AlternativoR (Anos 60)TIC

Cenógrafo

LIDADE

Figurinistaetc.

Encenador

Diretor

Atores

Performance(Anos 70-80)

Colaboradores

H O R I Z O N T A L I D A D E

Performer

(Encenador)

se dá ou por "colaboração" ou por "direção". No pri-meiro caso, por exemplo, pede-se a um artista para com-por a trilha sonora, realizar algum fechamento estéticoetc. — caso da relação entre Bob Wilson e Philip Glass,que compõe, independentemente, as partituras para suas"óperas".

Essa relação dentro de nosso modelo (Prancha 4) vaiser uma relação horizontal, de colaboração. No segundo

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caso, a organização é "vertical", com atores que seguemrigidamente a orientação do encenador-diretor, através deum processo de criação que descrevemos a seguir.

Na performance, a ênfase se dá para a atuação e operformer é geralmente criador e intérprete de sua obra.Apesar da ênfase para a atuação a performance não éum teatro de ator, pois, conforme comentado no Capítulo2, o discurso da performance é o discurso da mise en scène,tornando o performer uma parte e nunca o todo do espe-táculo (mesmo que ele esteja sozinho em cena, a ilumina-ção, o som etc. serão tão importantes quanto ele — elepoderá ser todo enquanto criador mas não enquantoatuante).

Richard Foreman14 coloca o seguinte do falar sobreseu proceso de direção-encenação:

O papel dos atores é o mesmo que o papel das palavras,cenário, iluminação etc. É parte de um mundo real que eu estoutentando organizar.

Eu penso que é um teatro de diretor. Contudo, certamentenão me interessam atores que sejam autômatos ou bonecos, oque eu não penso que meus atores o sejam, mesmo sabendo quemuitos achem isso deles.

Essa mesma característica de uma obra de colagem,suportada na mise en scène, faz com que o trabalho dosatores seja o de criar "figuras vivas", quadros vivos, quetransitam pela cena — é o caso do teatro de Bob Wilson,onde seus atores não trabalham o aprofundamento psico-lógico, tendo em contrapartida um outro treinamentopara lidar com a utilização do tempo e do espaço.

O performer, à medida que verticaliza todo o pro-cesso de criação teatral, concebendo e atuando, se apro-xima da pessoa descrita por Appia em A Obra de ArteViva15, que acumularia as funções de autor e encenador.Da mesma forma que a cena apoiada na mise en scènee na idéia de uma arte total se integra com as visõesutópicas de teatro de Artaud e Gordon Craig.

Do Momento de Concepção: Criação deuma Cena Formalista

O performer trabalha em cima de suas habilidades,sejam elas simplesmente físicas como, por exemplo, o

14. Em "With Foreman ow Broadway", Five Actor's Views,p. 67.

15. Op. cit.

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homem que engobe bolas de bilhar na Praça da Sé (eaquilo é uma performance), ou totalmente intelectuaiscomo o espetáculo Hantlet (ver figura) de Stuart Sher-man, em que ele representa Shakespeare de uma formatotalmente esquemática, conceituai.

Hamlet de Stuart Sherman.

O atuante à medida que não tem, como no teatroilusionista, somente a personagem para mostrar, terátambém que se "mostrar". E para isso tem que ser algoespecial, pois a performance é um "espetáculo": se eusubo no palco é para mostrar "algo diferente".

A partir disso, o performer vai desenvolver e mostrarsuas habilidades pessoais, sua idiossincrasia. É a criaçãode um vocabulário próprio. Exemplos dessa idiossincra-sia são a capacidade de Meredith Monk de emitir sonsestranhos, a linguagem mímica de Denise Stocklos e outrosinfinitos exemplos, que vão desde uma Nina Hagen quefunde ópera clássica com ritmos new wave e conseguemodular uma voz de "bruxa" até uma de "garotinha",passando pela capacidade camaleônica de um David Bo-wie ou de uma Laurie Anderson com sua eletronizaçãoritual. O que interessa é uma marca pessoal ou uma mar-ca de grupo, em caso de mais pessoas. É a definição deum estilo, de uma linguagem própria.

No próprio processo de propaganda do espetáculo vaise veicular a figura do artista e não alguma coisa que

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ele vai "representar". Anuncia-se uma performance deAguillar, de Ivald Granatto, de Denise Stocklos, e nãodas personagens ou da peça que eles possam fazer.

O processo de preparação16 do performer vai ser bas-tante distinto do trabalho do ator-intérprete.

É lógico que se alguma coisa é "tirada", no caso todoo trabalho de interiorização psicológica da personagem,algo é colocado no lugar. Isso é físico. O trabalho decriação e preparação do performer aponta para os se-guintes caminhos:

Desenvolvimento de suas habilidades psicofísicas: oconceito de aparelho psicofísico é o mais genérico possí-vel e não diz respeito apenas a corpo, voz e expressãotratados de uma forma estanque. É importante lembrarque toda essa geração de artistas foi muito influenciadapela filosofia oriental e pelos "métodos de autoconsciên-cia" de alguns esotéricos contemporâneos como AleisterCrowley e Gurdjieff. Este criou um modelo onde colo-ca o corpo humano como a interação de um centro motor--instintivo com um centro emocional e um outro intelec-tual. Ele vai propor justamente a harmonização destescentros para se chegar a um equilíbrio. Meredith Monk,comenta esse método:

De algum modo eu sinto que a minha idéia central é a deum equilíbrio. Quando trabalho com todos esses elementos ésempre para integrá-los em uma forma única que é harmônica,e é isso que tento fazer também na vida, tanto quanto eu possa— manter uma espécie de equilíbrio: o equilíbrio entre o pessoale o universal, o equilíbrio entre o emocional e o intelectual 17.

A busca do desenvolvimento pessoal é um dos prin-cípios centrais da arte de performance e da live art. Nãose encara a atuação como uma profissão, mas como umpalco de experiência ou de tomada de consciência parautilização na vida. Nele não vai existir uma separaçãorígida entre arte e vida.

16. É importante destacar que, ao contrário do que algunspensam, existe toda uma preparação, às vezes meticulosa, parauma performance. O que existe de "menos preparado" é o quese chama de "intervenção", que vem a ser um "ataque" a umlugar não determinado como espaço cênico de representação.Mesmo nesses casos, os "interventores" vão se valer de recur-sos preliminares desenvolvidos. A "intervenção" totalmente espon-tânea, com um aspecto mais kamikaze, se aproxima mais do hap-pening que da performance.

17. KOENIG, "Meredith Monk: Performer-Creator", p. 66.

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As técnicas para se chegar a esse desenvolvimentopsicofísico são as mais diversas possíveis. Existe uma in-corporação de tudo: técnicas orientais (tai-chi-chuan,ioga, meditação, lutas etc), mímica, pantomima, técnicascircenses, guignol, ilusionismo, dança moderna, uso deeletrônica (vídeo, gravadores, microfones etc), máscara,teatro de sombras etc

O fato de o perjormer lidar muito com o "aqui-agora"e ter um contato direto com o público faz com que o tra-balho com energia ganhe grande significação.

Essa energia diz respeito à capacidade de mobilizaçãodo público para estabelecer um fluxo de contacto com oartista: a energia vai se dar tanto a nível de emissão, como artista enviando uma mensagem sígnica — e quantomais energizado, melhor ele vai "passar" isto — como anível de recepção, que vem a ser a habilidade do artistade sentir o público, o espaço e as oscilações dinâmicasdos mesmos. Nesse processo de jeedback, ele tem a pos-sibilidade de dar respostas a possíveis alterações na re-cepção — se, por exemplo, tinha um script ensaiado, eestá sendo recebido com vaias, ele tem várias possibilida-des de improvisar, para eliminar as vaias — pode alterarseu roteiro, pode retribuir a vaia provocando o públicoetc.18.

No processo de criação do "aXor-performer", quandoexistir um trabalho de personagem, este vai ser muitopeculiar. Ao contrário do método de Stanislavski, em quese procura transformar o ator num potencial de emoções,corpo e pensamento capazes de se adaptarem a uma for-ma, ou seja, interpretarem com verossimilhança persona-gens da dramaturgia, nesse outro processo o intento é o de"buscar" personagens partindo do próprio ator. O proces-so vai se caracterizar muito mais por uma extrojeção (tirarcoisas, figuras suas) que por uma introjeção (receber apersonagem). É claro que o método de Stanislavski ensinaa construção da personagem a partir das característicaspessoais do ator e que o processo de escolha da persona-

18. Esses processos existem também no teatro "ilusionista",só que o fato do ator-ilusionista estar "preso" a uma personageme um texto fixo dá muito menos possibilidade de resposta e dese sair de uma trilha prefixada. Numa performance de IvaldGranatto, por exemplo, um outro artista pulou nu sobre o palco.Ivald Granatto continuou seu script e de vez em quando aludiaao fato de o rapaz não ficar "excitado" com seu espetáculo.

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gem pelos atores geralmente se dá por empatia (semelhan-ça) ou por oposição (encarando-se como desafio), mas naperformance art esse processo é mais radical, sendo realça-do pela própria liberdade temática que faz com que seorganizem roteiros a partir do próprio ego (self-as-context,ver Cap. 2). O perjormer vai representar partes de si mes-mo e de sua visão do mundo. É claro que quanto maisuniversal for esse processo, melhor será o artista.

Essa forma de trabalhar mais o atuante e menos apersonagem é característica em diretores como Bob Wil-son em cujo teatro o papel das donas-de-casa, por exemplo,é feito por donas-de-casa, não necessariamente atrizes, de"loucos" por verdadeiros psicóticos e assim por diante (éum processo muito mais artaudiano que stanislavskiano,reforçando a quebra com o "ilusionismo"). Vai se partirde um physique-du-rôle — não só físico, mas existenciale levá-lo ao paroxismo (à semelhança do "cinema de ti-pos" de Fellini).

A forma de construção do espetáculo, apoiada na miseen scène e no imagético, faz com que o processo de cons-trução seja gestáltico. Gestalt é forma, configuração. Aperformance remonta ao teatro formalista. O processo decriação geralmente se inicia pela forma e não pelo con-teúdo, pelo significante para se chegar ao significado.

Os conceitos de Gestalt passam a ser importantes notrabalho do encenador-performer. Trabalha-se com a trans-formação, com figura principal e com figura fundo. Numdeterminado momento o performer é frente, depois éfundo de um objeto, de uma luz etc.

Na construção das figuras — esse termo é mais apro-priado do que personagem — trabalha-se com as partesde cada atuante. Elas "afloram" nos processos de labo-ratório.

Como a figura do performer geralmente coincide coma do encenador, este trabalho de construção está integra-do com as mídias utilizadas no espetáculo, que são asmais diversas possíveis: dança, vídeo, esculturas, instala-ções, slide, retroprojeção, holografia, neon, manequins etc.

O processo de criação tem uma componente irracionalna elaboração e outra racional na justaposição e colagemdos quadros que vão compor o espetáculo. Nesse momen-to o ator passa a funcionar como uma espécie de "totem",carregador de signos.

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Na performance geralmente se trabalha com personae não personagens19. A persona diz respeito a algo maisuniversal, arquetípico (exemplo: o velho, o jovem, o urso,o diabo, a morte etc). A personagem é mais referencial.Uma persona é uma galeria de personagens (por exemplo,velho chamado x com característica y).

O trabalho do performer é de "levantar" sua persona.Isso geralmente se dá pela forma, de fora para dentro (apartir da postura, da energia, da roupagem desta persona).

Eis o depoimento de Joanne Akalaitis20 sobre seu pro-cesso de trabalho:

A partir de uma idéia surgida nos ensaios, parte-se para umaexecução física. Eu não falo em termos de movimento mas emtermos de transformação do corpo. E quando você transformaseu corpo, você transforma sua face, você transforma sua voz.Eu penso que o jeito que eu pessoalmente faço é de voltar-mepara mim mesma com mais profundidade e, me observando, ten-tar ter uma imagem de alguém, e então preencher essa imagem,através de mim. É como projetar um slide na parede e tentar sever dentro dele.

Você pode fazer isto também pela voz. Em The Shaggy Dog,o processo era começar com (esse é um típico exemplo de comoo Mabou Mines trabalha) a voz — "uma voz feminina, madurae sexual" — "Voz, trabalhe com voz". Havia muito pouco movi-mento físico — eu estava apenas trabalhando vocalmente com omicrofone. E eu comecei com aquilo que eu acreditei ser umasincera fêmea sexual.

Daí alguém disse: "Oh, é como a Billie Holiday" — na qualeu nunca havia pensado. Daí eu fui estudar a Billie Holidayespecificamente. Eu ouvi os discos dela, comecei tentando imitá-lavocalmente, e depois tentei abstrair e trabalhar em algo pare-cido com Billie Holiday e depois fui ficando comprometidacom aquele trabalho, porque eu realmente gostava do jeito quesoava.

Nessa descrição ficam implícitos alguns pontos doprocesso de "construção da persona" na performance,que, sutilmente, o diferenciam do método e de outrosprocessos de atuação: a persona surge no processo decriação e pode tomar qualquer rumo (ela surgiu de umaidéia, não de um texto prefixado, e tomou, por "acaso",

19. O termo "personagem" é bastante aberto e dá margema uma série de leituras dependendo da linha de teatro que sesiga. No teatro de Arianne Mnouchkine, por exemplo, as perso-nagens têm o sentido que estamos adotando para o termo persona.Portanto, a título de nomenclatura, estamos criando uma distinçãoentre "personagem" e essa "outra coisa" que chamaremos per-sona.

20. Joanne é performer do grupo americano Mabou Mines,"Joanne Akalaitis of Mabou Mines", p. 9.

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o rumo da Billie Holiday, assim como poderia ter tomadoum outro rumo qualquer).

O primeiro impulso é de "extrojeção" a partir dascriações da atriz. Depois a partir de um modelo — en-contrado, no caso de Billie Holiday — vai haver um tra-balho de introjeção e composição.

O fato de se trabalhar a partir do exterior faz comque, em geral, as personas não sejam realistas, muitoembora tenham uma energia própria, que guardam umaverossimilhança com o modelo original.

Dentro dessa ótica, a biomecânica criada por Meyer-hold é uma técnica bastante apropriada para esse tipo decriação.

A seguir apresentamos o comentário de MeredithMonk sobre esse processo de trabalho21:

Personagens como aqueles de Vessel (1971) — o mágico, amulher louca, o rei, a bruxa etc. são mais fáceis de representarem termos de arquétipo. Eles são como fantasia em nossas men-tes e, também, estão muito mais longe da gente num certo sen-tido. . . Quanto mais próximo da realidade, mais difícil é passarpara algo universal. . . Para fazer essa aproximação específicapara uma personagem existe todo um teatro no qual eu nãoestou interessada. Eu estou interessada em trabalhar com a atem-poralidade.

Por último cabe lembrar, no tocante à concepção0 eatuação que é impossível falar-se de uma linguagem purapara a performance. Ela é híbrida, funcionando como umaespécie de fusão e ao mesmo tempo como uma releitura,talvez a partir da própria idéia da arte total, das maisdiversas — e às vezes antagônicas — propostas modernasde atuação. É esse o processo dialético de absorção daperformance, semelhante à absorção que a estética newwave e a arquitetura pós-moderna realizam com as con-cepções "modernas". Em termos de técnicas de criação eatuação se absorveu um pouco de tudo: as técnicas deinteriorização propostas por Stanislavski — principalmen-te através da "releitura" deste feita por Meyerhold eGrotowski (com a qual muitos destes "novos" encenado-res iniciaram seus trabalhos) — de Grotowski veio tam-bém todo o trabalho de laboratórios (de "extrojeção", enão no sentido usual do termo que é de pesquisa do con-texto da personagem); o teatro didático-conceitual deBrecht (com a qual a performance guarda muita seme-lhança) — toda essa dialética atuar-interpretar, tempo fic-

21. KOENIG, "Meredith Monk: Performer-Creator".

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cional x tempo real, está muito próxima do conceitobrechtiano de Distanciamento (o Verfremdungseffekt); oteatro ritual proposto por Artaud (a ruptura com a repre-sentação, o uso do irracional-metafísico, o discurso damise en scène não cativo à palavra); o teatro oriental comtoda sua movimentação num estado de "alfa", o teatro deintervenção e escândalos, herdeiro das manifestações dadae surrealistas, a plasticidade e o uso do atuante como ele-mento sígnico (a partir da incursão dos artistas plásticosna mídia teatro), o instant-acting e o teatro espontâneoque vem do happening e se aproxima do psicodrama for-mulado por Moreno, fora a absorção de outras linguagenscomo a dança, o circo, a mágica etc.

Nesse sentido, a performance é uma releitura contem-porânea a partir de uma mixagem (mixed-midia) dasidéias da modernidade.

Do Momento de Atuação: Ritualização doInstante-Presente

Talvez a marca mais forte que vá caracterizar, naatuação, o performer como alguém distinto do ator-intér-prete é essa capacidade de condução do espetáculo-ritual,valorizando a live art, a arte que está acontecendo aovivo, no instante presente.

Se no dia-a-dia os nossos pensamentos fazem com quegeralmente estejamos "voando" no passado ou no futuro(recordando situações ou programando outras), o palcoacaba sendo um momento onde isso não pode acontecer(e quem atua sabe disso). Você está com uma platéia àsua frente — que o "traz" para o momento — e temque estar absolutamente concentrado no que está fazendo.O que distingue o performer do ator-intérprete é que essasua presença, pelo que já comentamos, será muito maiscomo pessoa do que como personagem.

Joanne Akalaitis22 fala sobre esse processo de "pre-sentificação":

Tem sido a minha experência o fato de a atuação23 ser umdos meios de entrar em outro estado de consciência. Performan-

22. S. SOMMER, "Joanne Akalaitis of Mabou Mines", p. 10.23. Em inglês performance quer dizer originariamente

atuação. Nesse ponto traduzimos por atuação (ela não está sereferindo à linguagem performance).

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ce existe no presente — é por isto que ela se assemelha a dro-mance existe no presente — é por isto que ela se assemelha agas e meditação — é uma das poucas situações em que vocêestá vivendo totalmente o momento. Eu adoro a sensação deestar "saindo" para outra zona de tempo, uma outra zona deespaço. A gente vive tão raramente no presente que, quando con-segue fazê-lo, isto é extraordinariamente diferente da vida dodia-a-dia — que é futuro e passado.

Eu pensei sobre o que fiz antes de vir aqui (N. do T.: paraa entrevista). Eu não estava atenta para o que eu era, quandoandava na lOth Street. Eu vinha pensando numa série de coisasdiferentes; minha mente estava cheia de lixo. Uma das coisasque acontece durante a atuação é que você pára de ficar pen-sando daquele jeito, e isto é um grande alívio. É realmente umaexperiência mística, como "tocar o vazio" como eles chamamisto.

Durante as noites de espetáculo, eu entro num novo espaçofísico e interior. Todas minhas relações com as pessoas mudam,elas se tornam mais emocionantes, mais intensas, mais diretas.Eu me sinto em toque com as outras pessoas da peça — e coma platéia que são estranhos — de uma forma que eu não con-sigo em nenhuma situação que não a de atuação. Penso que ocontato é físico e do físico vem o emocional. Somente depois vocêvai poder dizer "oh, aquilo foi excitante", porque enquanto vocêestá fazendo aquilo, você está somente jazendo aquilo, envolvidacom o evento, com suas atribuições e orientações.

Alguns aspectos interessantes podem ser tirados dessedepoimento:

Enfatiza-se a busca de desenvolvimento pessoal, jácomentada, que o artista procura na performance. Aquiloque ela chama "tocar o vazio" é o que se busca na me-ditação transcendental e em outras experiências místicas.

É lógico que quem atua sabe que esta "vivência doinstante-presente" não é privilégio da performance art,mas sim de qualquer tipo de atuação; só que na per-formance você estará mais presente como pessoa emenos como personagem do que no teatro, onde esta re-lação é inversa.

Seguem-se algumas impressões de Joanne Akalaitis arespeito do tratamento da ambigüidade ator-personagem.Ela responde sobre até que ponto ela perde a sua cons-ciência como pessoa e "entra" na persona e como elatrata essa relação:

Eu penso que eu troco de uma para outra, c eu não tra-balho mais para me perder na chamada personagem, como faziaquando era uma jovem atriz. Era muito importante para mimme perder na peça, me perder na personagem; me parecia uma"forma mais verdadeira ou mais artística de atuação", porqueeu conseguia me erradicar completamente.

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Nos últimos quatro ou cinco anos as coisas tomaram umrumo que eu não esperava; eu sou mais eu mesma e menosa persona quando eu atuo.

Existe sempre uma espécie de controle que está atuando.Eu penso que isto é conseqüência de eu estar ficando mais velha,e penso também que é conseqüência de trabalhar em um tipodiferente de teatro 24.

24. S. SOMMFR. -'Jonne Akalaitis of Mabou Mines",p. 10.

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4. DAS INTERFACES:

PERFORMANCE — CRIAÇÃO DE UM TOPOSDE EXPERIMENTAÇÃO

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. . . o Teatro refunde todas as ligações entre oque é o que não é, entre a virtualidade do pos-sível e o que já existe na natureza materializada.. . . O Teatro devolve-nos os nossos conflitos dor-mentes e todas as suas potências e dá a essas po-tências nomes que aclamaremos como símbolos.. .

ANTONIN ARTAUD1

A Idéia de um Topos Cênico

Pretendemos neste capítulo examinar com mais deta-lhe os elementos constitutivos da expressão cênica2.

1. "O Teatro e a Peste", O Teatro e seu Duplo.2. Quando usamos o termo "expressão cênica" estamos nos

referindo principalmente a teatro. Só não usaremos o termo"teatro" porque os conceitos que estamos definindo se aplicamtambém a algumas performances e espetáculos de dança não clas-sificáveis como teatro. Nesse sentido o termo "expressão cênica"é mais abrangente.

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A idéia é de a partir da relação ternária (atuante-tex-to-público), formulada como constitutiva da cena, exami-nar as características que dão especificidade à linguagemcênica.

O elemento que utilizaremos como referência paraessa análise é o envoltório, onde estas relações se desen-volvem, ou seja, o espaço da cena. O próximo passo élembrar nossa definição de expressão cênica, como sendoa de algo que acontece num certo espaço, num certo tem-po (existe uma simultaneidade). Portanto quando falamosde "espaço", o "espaço da cena", intrinsecamente estamosassociando este espaço a um tempo (o tempo real em quea cena está acontecendo). Por último, cabe lembrar quenessa especulação inicial procuraremos buscar outras re-lações para o conceito de "espaço", além da conotaçãomais direta que é a física (ao pensarmos num espaço,temos a tendência de visualizarmos um lugar físico).

Ao invés de "espaço", passaremos a utilizar o termotopos que remete a um lugar físico e também a um lugarpsicológico, a um lugar filosófico etc.

Será nesse topos que se darão as relações entre osdois pólos definidos da expressão cênica (atuantes-públi-co). Essas relações ocorrerão através de um "texto", porintermédio do qual acontecerão todas as transposiçõescaracterísticas da arte (passagem da vida para a represen-tação, do real para o imaginário e o simbólico, do incons-ciente para o consciente etc).

Pretendemos, com essa abordagem, examinar algumasquestões centrais da arte cênica como a passagem do realpara a representação, e como vai se dar, nessa passagem,o suporte da convenção. Além disso, tendo como pontode partida a performance — que é, como definimos, umalinguagem de interface que transita entre os limites dis-ciplinares — tentaremos situar essa linguagem dentro douniverso maior da expressão cênica.

Nesse sentido, se tivermos em mente um modelo topo-lógico, a performance funcionará como uma linha defrente, uma arte de fronteira, que amplia os limites doque pode ser classificado como expressão cênica, ao mes-mo tempo em que, no seu movimento constante de expe-rimentação e pesquisa de linguagem, funciona como umespaço de rediscussão e releitura dos conceitos estruturaisda cena (forma de atuação, forma do transpor o objetopara a representação, relação com o espectador, uso derecursos, uso da relação tempo-espaço etc).

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É fácil ver que é na forma que se irá lidar com astransposições (do objeto para o símbolo, da vida para arepresentação), que vão se diferenciar os gêneros e aspossibilidades cênico-teatrais3.

Antes de passarmos para a proposição de um modelotopológico e de situarmos a performance dentro dessecontexto, analisaremos algumas características da expres-são cênica como um todo, características essas que lhesão únicas e a diferenciam de outras linguagens como ocinema, o vídeo e a literatura, por exemplo.

A principal característica da arte cênica, como já assi-nalamos no Cap. 3, é a situação do aqui-agora. Existeo corpo a corpo entre o atuante e o espectador.

Por mais que esta relação entre o atuante e o espec-tador se revista de "significação" — no sentido sígnico,como explicitaremos a seguir — sempre existirá um nívelde concretismc. O atuante pode estar representando umsigno, mas seu corpo, função transporte do signo, sempreestará presente. Seria nesse caso a dicotomia personagem-ator. Como diz Umberto Eco:

No teatro qualquer pessoa pode ainda acreditar encontrar-se diante da realidade bruta, sem mediação de signos: no cinema,como na palavra ou imagem, qualquer pessoa percebe que estáse defrontando com um significante visual que remete a qual-quer outra coisa4.

No cinema temos somente a imagem de uma .cenapretérita; no teatro por mais que estejamos diante de umarepresentação, previsível, estaremos ouvindo as respira-ções dos atores, vendo seu suor, sentindo sua energia.Isso sem falar na possibilidade sempre presente do "aci-dente" (alguém cair, uma fala sair errada, o atirador defacas errar seu alvo), possibilidade esta que aumenta o"índice de vida" do teatro, se comparado ao cinema,vídeo etc.

3. Para se compreenderem variações na arte cênica é inte-ressante ter-se em mente uma analogia com a pintura: um objetoque pode ser, por exemplo, uma paisagem, pode ser pintado(representado) de forma realista (objetiva, que se aproxima dafotografia), de uma forma impressionista (subjetiva), de umaforma surrealista (transformada), de uma forma abstrata (nãoguardando uma relação icônica com o objeto) etc. Nesse sen-tido é possível falar em cena naturalista, em cena impressio-nista, surrealista, expressionista, abstrata etc.

4. JACÕ GUINSBURG & COELHO NETO, Semiologiado Teatro, São Paulo, Perspectiva, 1978, p. 19.

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Essa possibilidade do tête-a-tête da arte cênica, doaqui-agora, do risco, vai lhe conferir uma característicade ritual, que se assemelha às antigas celebrações religio-sas do homem primitivo. E vai ser também um dos pontosfortes dessa expressão que permite superar as limitaçõestécnicas em relação às outras artes5.

A arte cênica é preponderantemente a arte do simbó-lico. A transposição do objeto real para o representadose dá principalmente por simbolização e nesse sentidopodemos situar a arte cênica entre o cinema e a litera-tura: o cinema, como observa R. De Marcy6, guarda umarelação do ícone com o objeto (relação de analogia, desimilaridade), a literatura guarda uma relação imagináriacom o objeto e a arte cênica seria um meio caminho entreas duas, representando-se pelo símbolo. Por exemplo, umexército em movimento, no livro seria imaginado atravésde descrição, no cinema seria representado através demilhares de extras (reproduzindo-se o seu tamanho "real")e no teatro provavelmente seria simbolizado por algunsatores.

É lógico que essa representação via símbolo no teatroé característica, mas não regra: toda a tentativa do teatronaturalista foi de caminhar em cima do ícone7. Ao mes-mo tempo existem filmes que não caminham com baseno ícone e são totalmente simbólicos como Alphaville deGodard ou o Teorema de Pasolini; a poesia concretacaminha em cima do ícone etc.8.

5. Utilizamos nessa comparação o teatro convencional queenfatiza a representação. Se tomarmos como referência as expe-riências do teatro de vanguarda dos anos 60, em que o públicoera instado a participar, ou os happenings e as performancesem que as cenas nunca são previsíveis, teremos um aumentodo que denominamos "índice de vida".

A característica "ritual" do teatro é um dos trunfos dessalinguagem numa comparação com cinema ou artes plásticas porexemplo.

É também esse "rito-teatral" que tem alimentado os tãobem-sucedidos concertos de rock, com essa absorção se dando nasmais diversas tendências, do heavy metal ao punk.

6. Semiologia do Teatro, p. 27.7. Talvez o limite desta tentativa tenha sido o conhecido

exemplo do encenador francês Antoine que colocou pedaços reaisde carne em cena, provocando o grito de todos os simbolistas.

8. É importante ressaltar também que nunca temos o sím-bolo puro, no sentido da relação totalmente convencional comoo objeto. Sempre teremos algum outro nível residual de signo,seja ícone, índice ou outra combinação. Portanto, no processoteatral teremos uma preponderância de símbolos, mas também

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É certo que com toda a tecnologia disponível noséculo XX e pelas próprias limitações da linguagem (localde apresentação, público restrito etc.) o teatro nunca con-seguirá competir com o cinema em termos de possibili-dade de "reproduzir" o real. Por outro lado, na materia-lização da cena, o teatro perde, em muitas ocasiões, paraa literatura, que sempre ao caminhar sobre o discurso doimaginário tem a possibilidade da obra aberta (na des-crição do livro a fantasia é do leitor; na cena uma daspossibilidades já está delimitada).

Essa relação simbólica com o objeto — na medida emque estamos conceituando símbolo como algo que guardauma relação convencional, cultural com o objeto — dáum caráter de artificialidade aos signos teatrais.

Quando falamos em "reconstruir a realidade" (p. 74)estamos nos encaminhando para o signo elaborado, arti-ficial. O teatro funcionando como espaço de manipulaçãodo "real" (como funciona a arte de collage, estrutura daperformance).

Na arte cênica a relação com o tempo é dicotômica:por um lado temos uma temporalidade, a cena que sedesmancha, que não volta e que não fica gravada comono cinema. Por outro lado, se voltarmos ao teatro no diaseguinte, na mesma hora, teoricamente iremos ver a mes-ma cena9. Seria o componente atemporal da arte cênica.Essa repetição diária poderia ser expressa em termos deuma re-presentação (no sentido de tornar de novo pre-sente), ao invés de representação.

Na performance, pela característica de evento, depoucas repetições, o que prevalece é a "temporalidade".

Na verdade, toda a arte cênica se reveste desta "tem-poralidade", porque no final da temporada o que vaificar são fotos, recordações, críticas e, hoje, com a tecno-

ícones e índices. Estamos adotando o modelo peirceano, apre-sentado por Décio Pignatari (Semiótica e Literatura) que sim-plificadamente conceitua signo como qualquer coisa que substituae represente outra, dividindo os signos em ícones, índice e sím-bolos. O símbolo guarda uma relação de terceiridade, conven-cional, com o objeto.

9. Isso falando-se num teatro de temporada. A idéia deuma cena igual é teórica, porque apesar de alguns leigos acre-ditarem, a cena do dia seguinte é semelhante, mas nunca é amesma; a repetição exata não é humana (os atores não vãoestar iguais, o público não será o mesmo, a energia será outraetc).

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logia, um vídeo do espetáculo (que nunca vai reproduziro que foi a peça, pois se trata de outra linguagem).

Falando-se em tempo, podemos dizer também que oespetáculo de teatro é lento (em relação à duração dasimagens) se comparado ao cinema e à televisão. Compa-rando-se um filme com uma peça de mesma duração, aquantida.de de imagens e coisas apresentadas na cena tea-tral será muito menor10.

Cada imagem, cada signo introduzido permanece al-gum tempo em cena. Isso reforça o sentido de "signifi-cação" do teatro: é sempre comum o espectador perguntaro que aquilo "representa" ou o que o encenador "quisdizer com aquilo". Cada som, cada iluminação, cada en-trada em cena vai conotar alguma coisa, além do sentidodenotado.

É por isso também que a arte cênica é a arte que sepresta melhor à experimentação: o tempo de contato coma imagem é mais longo e sempre são múltiplas as possibi-lidades de se criarem variantes de uma cena. No cinemanão há "tempo" para uma observação mais detalhada dossignos. O fluxo de imagens é muito mais rápido e, quandomuito, podemos nos fixar em alguns poucos símbolos queatravessam o filme (por exemplo a personagem central deTeorema ou o granito de 2001). Ao mesmo tempo, ocusto do cinema faz essa arte pagar um tributo maior aogosto comercial que prima pela redundância.

Quanto ao aspecto do espaço, a arte cênica é a artedo tridimensional. Cinema, vídeo, pintura são chapados,bidimensionais. A possibilidade da tridimensão, que é umdos recursos da arte cênica, e que a aproxima da vida,tem sido muito mal-explorada no teatro, que utiliza ape-nas o recurso da "caixinha" do palco italiano, o qual ten-de a "chapar" todas as figuras.

É esse uso do espaço tridimensional, polimorfo, com-binado com recursos cênicos de "atemporalidade" (atravésde cenários, marcações, iluminação abstrata etc), quepermite à arte cênica se completar como arte de expressão

10. Aqui também estamos falando genericamente. Numapeça de Bob Wilson, como Life & Time of Joseph Stalin (1973),a quantidade de imagens introduzidas é imensa. Na verdade, esteexemplo enfatiza nosso comentário, pois Wilson busca um teatrode imagens que, como já comentamos (ver Cap. 2), tende paraa roteirização cinematográfica.

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do discurso poético11. Nessa vertente, existe uma analogiaentre a arte cênica e a música, que é impalpável, abstrata,poética. Esse teatro, que caminha para a metáfora, parao discurso visual vai se aproximar da cena mallarmeana,do Teatro da Crueldade de Artaud ou da cena descritapor Craig12.

Discutidas algumas das características da linguagemcênica, voltamos à abordagem das relações entre atuantee público a partir da idéia do topos, da localização, queé, como coloca Richard De Marcy13, definidora da noçãode encenação:

A encenação mise en scène é a localização mise en placepor meio de diversas materializações, de um discurso de ordemvisual e sonora, a partir de um texto, de um esboço (ou não)cujas tomadas de posição com relação ao seu conteúdo sãomúltiplas.

Da Relação Binaria: Emissão e Recepção

De uma maneira genérica, podemos falar em doistopos estruturais na arte cênica. Um primeiro, emissor,onde se dá a gênese da cena e onde se coloca o atuante(o performer), e o segundo topos, receptor, onde se colocao espectador.

Poderíamos representar esquematicamente essa relaçãopor:

Fig. 1: A Relação Binaria

Topos 1' criação, emissão

\

' Topos 2 *recepção

Observamos que esta primeira aproximação é teóricae não estamos considerando, no modelo, as múltiplas va-riações a esta regra; desde a supressão dessa divisão, ouseja, como formula Appia (ver Introdução), a inexis-

11. A performance Disappearances descrita no Cap. 2 éum exemplo disto.

12. A Obra de Arte Viva.13. Semiologia do Teatro, p. 28.

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tência desses dois topos, até a possibilidade de haveralternância de emissão e recepção entre os dos topos14.

Desse modelo inicial, podemos partir para dois mo-delos englobantes que se diferenciam justamente pela for-ma como se trata a separação dos dois topos (emissor-receptor).

Chamaremos o primeiro modelo de modelo estéticoe o segundo de modelo mítico, tomando como referênciapara essa conceituação a definição psicanalítica da relaçãoestética e relação mítica:

O que diferencia a relação estética da relação míticaé que na primeira existe um distanciamento psicológicoem relação ao objeto — eu não entro na obra, eu nãofaço parte dela; eu sou observador, tenho um contato defruição com a obra (através da emissão e recepção), masestou separado dela. Fica claro para mim, enquantoespectador, que eu tenho um distanciamento crítico emrelação ao objeto.

É interessante que esta postura "estética" em relaçãoà obra vale também para o atuante. Fica claro para oatuante que ele "representa" a personagem, que ele não"é" a personagem (existindo portanto o distanciamento).

Na relação mítica, este distanciamento não é claro;— eu entro na obra, eu faço parte dela — isto sendo vá-lido tanto para o espectador que fica na situação departicipante do rito e não mero assistente (não sendo bom,portanto, o termo "espectador") quanto para o atuanteque "vive" o papel e não "representa".

Podemos dizer que na relação estética existe uma re-presentação do real e na relação mítica uma vivência doreal.

É importante deixar claro, antes de nos aprofundar-mos nesses modelos, que essas duas situações extremas(estético, mítico) são teóricas.

Como bem coloca Jacó Guinsburg, não existe umarelação totalmente estética, distanciada, nem totalmente

14. Como em certos happenings em que o atuante iniciauma ação que será terminada pelo público, polarizando-se oefeito de emissão e recepção.

É importante destacar também que quando Artaud, Groto-wski, Julien Beck e outros encenadores propõem uma interaçãopalco-platéia implicitamente estão considerando a existência des-ses dois topos.

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mítica, inserida. Num rito, por exemplo, existem instantesde observação estética, de estar fora. Dessa maneira, oque diferencia um modelo de outro é a gradação comque se apresentam essas relações.

O Modelo Estético: Da Representação à Fruição

O modelo estético representa a corrente mais conhe-cida do que se entende por expressão cênica e, maisparticularmente, teatro. Sua prevalência está ligada à ins-titucionalização da cultura e atribui-se seu início à culturagrega, berço da cultura ocidental.

O teatro grego, que foi coligido por Aristóteles, insti-tui uma separação espacial, dividindo palco e platéia.Nesse espaço se dá a representação, suportada por umaconvenção teatral (falaremos dela a seguir). Não há li-gação física entre os dois topos durante a representação;o objetivo é, através da representação, levar o espectadorà empatia com o que está se mostrando e a uma conse-qüente catarse psíquica.

Em termos de esquema, podemos representar o mo-delo estético por:

Fig. 2: O Modelo Estético 15

COXIAS

/ PALCO \

7 \PLATÉIA

Através dos tempos, inúmeros gêneros cênicos se de-senrolam em locais semelhantes ao esquema. Praticamentea partir do final da Idade Média, quando o teatro começaa sair das feiras e igrejas para ocupar edifícios teatrais,

15. Em geral o que estamos chamando de modelo estéticoe, particularmente, um teatro estético acontece em edifícios-teatro.O esquema que desenhamos corresponde ao chamado palco ita-liano. Existem inúmeras variações desta disposição palco-platéiacomo o teatro de arena, o teatro elisabetano, o coliseu etc, quevão utilizar um outro tipo de convenção teatral.

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vários gêneros e estilos vão ser apresentados no palco:auto medieval, teatro renascentista, clássico, romântico,épico, naturalista, surreal etc.

Hoje, a identificação da expressão cênica com o "Edi-fício-Teatro" é tão grande que quando se fala em teatroa primeira associação é com o teatro de palco.

Para se falar do teatro estético, da forma que o esta-mos conceituando, o melhor exemplo é o teatro natura-lista. Pela pretensão de "representar a vida", tal como elaé e, ao mesmo tempo "esconder" essa representação, talvezseja no teatro naturalista o momento em que mais se apro-fundem as limitações e potencialidades da linguagem cê-nica e se utilize do apoio da convenção.

O teatro realista16, como o próprio nome diz, criauma cena que deve dar ao público a impressão de reali-dade. Este teatro se insere dentro do movimento natura-lista-cienticifista do final do século XIX que se propunhaa observar e interpretar o mundo a partir da visão dostelescópios e microscópios. A idéia, para o teatro, é que oespectador observe a cena como se estivesse acompanhado,por um buraco de fechadura, um "instante de vida".

É a proposição, em última análise, de um teatrovoyeur.

Cria-se, inclusive, como artifício para os atores, aidéia de uma quarta parede imaginária que "fecha" aparede aberta para o público. É o que se chama de cenafechada:

O ator deve dar a impressão de não estar sendo visto eouvido senão pelas personagens que com ele se encontram nouniverso representado e com as quais e para as quais fala. Etodo esse universo representado e tudo o que nele acontecedeve ser de tal modo figurado como se não houvesse ninguémpara observá-lo de fora (isto é, de um lugar que fica fora douniverso representado); esse mundo deve ser tão "natural quantopossível"!7.

16. Quando falamos em naturalismo e realismo estamos nosreferindo às idéias cênicas propostas por Stanislavski. É claro queexiste uma distinção entre naturalismo e realismo, assim comodentro dessas correntes estéticas existe uma produção tão diversaque vai de encenadores como Antoine a Jean Vilar. Para efeitodesse estudo não entraremos no detalhe desses trabalhos.

17. ROM AN INGARDEN, Semiologia de Teatro, p. 159.A contraposição a essa cena é chamada cena aberta, que foibuscada por Brecht, entre outros, visando acabar com a passi-vidade do espectador. Nela "cai" esta quarta parede e o atortrabalha dialeticamente nos dois tempos: o tempo da ilusão(fechado) e o tempo real, falando direto para o público.

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A "cena fechada" vai existir na medida em que opúblico espectador acredita na "realidade" do que estásendo apresentado. Essa "realidade", artificial, estará sus-tentada sobre a convenção teatral, que Manonni18 chamade "ilusão cômica".

Quando Laertes morre no duelo com Hamlet, todomundo sabe que quem morreu foi a personagem e não oator que o estava representando. A "realidade" se dá noplano ficcional e o ator obviamente está deitado no chãoe não morto19.

Outro exemplo de utilização da convenção teatral éa questão do tempo — em inúmeras representações otempo ficcional não corresponde ao tempo real (do reló-gio) e dias e noites se passam no espaço de uma hora20.Essa "representação" do tempo está sendo feita com usoda convenção (por exemplo, uma entrada e saída de cena,uma mudança de plano ou uma mudança da iluminaçãovão significar que um tempo se passou) e à medida quenos deixarmos levar por essa representação (deixandode "observar" a convenção) acreditaremos mais na "reali-dade" da cena.

A "ilusão cômica" vai se dar, segundo Manonni, namedida em que o espectador afrouxar sua resistência crí-tica e entrar no jogo do "acreditar na máscara". E esse"acreditar na máscara" não é acreditar que o que se passaem cena é real:

A expressão "acreditar nas máscaras" não teria sentido seisso significasse que acreditamos nas máscaras como algo ver-dadeiro ou real. Por exemplo, se tomássemos as máscaras porrostos verdadeiros. Resultaria daí um efeito que não teria maisabsolutamente o efeito da máscara. A máscara não se faz pas-

18. Em A. MANONNI, Chaves para o Imaginário, Ed.Vozes.

19. O contra-exemplo usual para esse caso é a história deum camponês que vai assistir a uma encenação de Júlio César,sem conhecer a convenção teatral. Na hora em que Brutus vaimatar César o camponês "sobe no palco" e segura a faca dele.Ao tomar a cena como "real" e não como representação-con-venção, o camponês está tendo uma participação mítica e nãoestética. Esses dois exemplos são extremos, mas, em gêneros comoo happening e a performance, há uma clara ambigüidade entreo universo do real e o universo da representação promovidopelo afrouxamento da convenção teatral.

20. Bob Wilson busca, em suas encenações, baixar esseefeito da convenção, aproximando o tempo real do tempo ficcio-nal: o tempo de duração de um jantar vai ser o tempo que o jan-tar efetivamente duraria. Por esse motivo, alguns trabalhos seuslevam mais de dez horas.

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sar por outra coisa que não é, mas tem o poder de evocaras imagens da fantasia. Uma máscara de lobo não nos dá medocomo o lobo, mas segundo a imagem de lobo que temos emnós. Dizer que outrora se acreditava em máscaras significa quenum certo momento o imaginário reinou de maneira diferentedo que no adulto 21.

Essa "realidade do imaginário" é uma realidade quea cena ilusional dos processos oníricos. Quando Mallarméafirma que "no palco tudo é falso", aludindo à represen-tação, está sendo drástico demais. Existe de fato o ilusórioda representação, um maya que se desmancha no apagardos spots. Existe também, em paralelo, um nível concretoque chamamos de função transporte dos signos (atores,objetos cênicos, spots, caixas de som etc).

Essa "raelidade do imaginário" é uma realidade quese não é primeira enquanto objeto (o imaginário trabalhaa imagem e não o objeto), ocupa um grau de realidadena nossa psique, mobilizando instâncias, despertando sen-timentos etc. (à semelhança do sonho que provoca, nocorpo, durante sua ocorrência, uma série de movimentosfísico-vegetativos, tendo, portanto, uma "realidade con-creta").

Se tomarmos a comparação entre as linguagens doteatro e do cinema, podemos dizer que o processo, colo-cado por Manonni, de "acreditar na máscara" será muitomais facilmente alcançado no cinema que no teatro.

Na realidade, o que se propõe é o afrouxamento dojuízo crítico: baixa-se o superego e mergulha-se catartica-mente na vivência do personagem-herói dentro do seuuniverso ficcional22.

Algumas características da linguagem cinematográficavão facilitar esse mergulho no universo da fantasia: nocinema, como já comentamos, existe muito maior adequa-ção para uma reprodução do real (que dá maior veros-similhança à fantasia). O processo de amplificação dasimagens somado ao som eletrônico, baixo, e a "caverna"em que se transforma a sala de projeção vão conduzir oespectador a um estado semi-hipnótico, de relaxamento,que permite uma entrada com maior facilidade no uni-verso da fantasia.

Outro fator importante, no cinema, que favorece omergulho na "ilusão cômica", é o fato de sempre se saber

21. Chaves para o Imaginário.22. O espectador vivência, por empatia, as emoções da

personagem, sem ter, em contrapartida, que passar pelos riscosa que este se acha submetido na ação.

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estar diante de uma cena pretérita (a cena que está sendoapresentada já aconteceu, e foi filmada, num outro ins-tante; eu, enquanto espectador, não corro nenhum risco,podendo, portanto, relaxar e fruir a cena).

No teatro, o mergulho na "ilusão cômica" é mais difí-cil. A cena está acontecendo naquele instante. Mesmoque o gênero teatral estudado caminhe apenas sobre oficcional existe sempre no ar a expectativa de ruptura da"ilusão cômica" — essa ruptura pode se dar por um aci-dente, por má interpretação, por alguma intervençãoinusitada. Esses casos seriam quebras não intencionaisem estilos, como o naturalismo, que se elaboram sobreum tempo-espaço ficcional.

Em outros estilos que trabalham a dialética tempoficcional x tempo real essas quebras seriam intencionais,como nos Effect-V de Brecht, ou nos happenings e perfor-mances vivenciais que visam tirar o público da catarsehipnótica, proporcionando ao mesmo tempo uma valori-zação maior do ato de apresentação (em detrimento darepresentação).

Independente desses momentos de ruptura, no teatro,existem fatores que funcionam como distanciadores da"ilusão cômica": a necessidade da fala impostada, porexemplo. Outro fator é que, pelas próprias característicasdos espetáculos, normalmente a platéia no teatro ficamuito mais iluminada que no cinema.

Voltando à questão da convenção, é importante deixarclaro que o uso desta não é privilégio do naturalismo esim de toda expressão cênica. O teatro enquanto arte dosimbólico se alicerça na convenção.

A diferença é que, no naturalismo, por exemplo, vaise buscar "esconder" a representação-convenção e em ou-tros estilos se "mostra" essa convenção (por exemplo, comatores se caracterizando em personagens em cena, comquebras no texto, com alusões ao cenário etc) .

No teatro de Meyerhold, em Brecht, na performance,o jogo cênico é dialético, passando-se tanto no universoficcional, suportado pela convenção, quanto no universodo "real" que rompe com a convenção.

Um exemplo interessante é a montagem de Hamletde Stuart Sherman em que este usa, a exemplo do próprioteatro elisabetano, placas indicativas de locais do espaçoficcional (cemitério, local do duelo, castelo etc.). Nessemomento, mais do que nunca, está sendo usada a con-venção: uma placa indica que um local do palco é o

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cemitério. Este local encontra-se vazio, sem nenhum signoconotando o cemitério, apenas com a placa nominativa.

Na verdade o que Sherman está buscando é uma cenaconceituai, vazia de signos conotativos. Ao mesmo tempofaz uma fusão de linguagens, na medida em que os atorestrabalham com a linguagem de teatro (signos icônico-sim-bólicos) e com um cemitério que se articula na linguagemescrita (ao invés do ícone, temos o símbolo enquantocódigo lingüístico).

O caminho trilhado por Sherman é semelhante à linhados construtivistas russos e às idéias cênicas propostaspor Appia (A Obra de Arte Viva).

Parte-se para uma cena abstrata onde os signos cons-truídos (cenários, figurinos, marcação de cena) não guar-dam uma relação direta com o objeto representado. Oque se busca com essa "cena abstrata" é fugir das relaçõessígnicas habituais, eliminando-se redundâncias e, princi-palmente, abrindo-se caminho para novas combinações designos.

O Modelo Mítico: Da Vivência à Intelecção

Outro modelo cênico-teatral é aquele em que a relaçãoentre atuantes e espectadores vai ser mítica, ritualística23.

Em termos de esquema podemos representar o mo-delo mítico por:

Fig. 3: O Modelo Mítico

No modelo mítico a separação entre os dois toposdefinidos anteriormente será flexível e dinâmica.

Esse "teatro mítico" geralmente não acontece em edi-fícios-teatro. Ele se dá em praças, galpões, campanários

23. Como já observamos essa relação não é o tempo todomítica. A diferença em relação ao modelo estético é que doponto de vista'ps'c°lógico o público é participante, oficiante, enão meramente espectador. Outro ponto importante a destacaré que a relação mítica não implica necessariamente a partici-pação física do público.

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etc, como os espaços sugeridos por Artaud24 para seu"teatro sagrado".

Modernamente o que se tem utilizado são espaços va-zios, sem cadeiras, transformáveis em espaços cênicos, emque público e atuantes vão ocupar posições cambiáveis.

Exemplos desses espaços são as galerias e museus uti-lizados para performances (ver descrição no Cap. 2).

É interessante que, apesar da quase totalidade de oteatro acontecer hoje em espaços propriamente reservados(os edifícios-teatro), chegando ao ponto de os espectadoresleigos só conhecerem esse tipo de expressão, as grandesinovações no teatro ocorreram fora desses espaços e emmovimentos especiais: "Em todas as épocas as experiên-cias essenciais do Teatro sempre se deram fora doslugares previstos para o teatro"25.

Algumas dessas experiências a que Brook se refereacontecem em festivais de teatro. Esses festivais, cujasrealizações mais importantes se verificam nos EstadosUnidos e Europa26, abrem espaços para todo tipo de ex-perimentação, comportando montagens que não encontramlugar no teatro comercial; ao mesmo tempo, a caracterís-tica de evento desses festivais aumenta o aspecto de ri-tual dessas montagens (o espectador é "participante" deum evento às vezes único).

Alguns exemplos de montagens em festivais são:A montagem de KA Mountain and Guardenia Terrace

realizada por Bob Wilson, em 1972, no extinto Festivalde Teatro de Xiraz (Irã). Foi basicamente uma experiên-cia de uso de tempo e espaço que durou uma semana eocupou uma área de sete colinas.

A apresentação do Living Theatre no Festival de Ve-neza: a cena se desenrolava em vários locais e o públicose deslocava de barco até uma ilha, para acompanhar odesenlace.

Do mesmo festival Teixeira Coelho27 destaca as mon-tagens de Orlando Furioso de Luca Ronconni e a apresen-tação dos poloneses Teatr'77, ambas com soluções inusi-

24. O Teatro e seu Duplo.25. PETER BROOK, O Teatro e seu Espaço.26. Alguns festivais tradicionais são: Veneza, Avignon, Bar-

celona, Hamburgo, Minesotta. Na América do Sul o festival demaior expressão é o de Caracas que tem reunido alguns dos gru-pos mais expressivos do teatro contemporâneo.

27. COELHO NETO, Uma Outra Cena, p. 180.

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tadas de uso do espaço e condução do público. Gruposcomo o Theatre du Soleil de Arianne Mnouchkine e oBread and Puppet Theatre se apresentam em igrejas ecampos abertos (no que tem se chamado environmenttheatre que pode ser traduzido por teatro ambiental).

O Squat Theatre (grupo de húngaros radicados emNew York) se exibe em locais invadidos (lofts abando-nados) e em vitrines de lojas.

Podem-se apontar centenas de outros exemplos desse"teatro ritual", que vão desde um teatro de rua até espe-táculos underground da fase hippie28.

Ao se falar de um "teatro ritual" é importante abrirum parênteses para mencionar uma corrente pouquíssimoconhecida, pelo reduzido número de apresentações reali-zadas, mas, de grande importância, pelos elementos queestiveram envolvidos nas montagens: o tnistery drama.

Talvez seja nesses espetáculos, juntamente com algunshappenings, que a idéia de um teatro ritual e as propo-sições da cena artaudiana tenham sido melhor realizadas.

O mistery drama29 era conduzido por praticantes eadeptos de esoterismo e não por pessoas originalmenteligadas à atividade artística. Alguns praticantes desse tea-tro ritual foram Aleister Crowley, Gurdjieff e RudolfSteiner.

A contribuição desses elementos para a arte contempo-rânea além de todo seu peso na doutrina esotérica, é desuma importância. Gurdjieff queria chegar ao "homemharmonioso" utilizando teatro e dança como um dos meiosde externação desses conhecimentos. Seus trabalhos, ini-cialmente baseados na dança dervixe e no rito oriental emais tarde reunidos à experiência de Dalcroze (e suaEuritmia), vão influenciar toda uma geração de artistas,de Isadora Duncan a Meredith Monk.

28. Um exemplo de espetáculo underground é o que JackSmith anunciava publicamente e realizava em seu próprio apar-tamento. Suas experiências, de Teatro de Crueldade, envolviamo público que o acompanhava (uma boa descrição desses "espe-táculos" underground está em Queer Theatre de Stefan Brecht).No Brasil experiências com um "teatro ritual" vão desde mon-tagens do Oficina como Gradas Senor até alguns trabalhos degrupos como Asdrubal Trouxe o Trombone, Abracadabra, Viajousem Passaporte etc.

29. Uma descrição pormenorizada desse tipo de rito-espe-táculo encontra-se em Drama Review, 22 (2) 1978.

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Aleister Crowley (um dos fundadores da GoldenDawn) realiza, em 1910, em Londres, uma série de ritos-espetáculos denominados Ritos de Elêusis30.

Esses espetáculos se realizavam mensalmente, sendocada evento dedicado à comemoração de um astro (comoem Elêusis na Grécia). O público era composto de inicia-dos que passavam por uma série de preparativos, receben-do inclusive drogas para acompanhar o ritual-espetáculo(prática que também ocorre em alguns happenings).

A condução do espetáculo era feita por uma violinistae os atores, segundo relato, trabalhavam em transe. Naépoca, Aleister Crowley foi objeto de uma série de acusa-ções que iam desde o charlatanismo até a prática de magianegra, mas, à parte disso, suas experiências influenciaramartistas como Bob Wilson e Peter Brook.

Uma terceira figura de importância a cultivar o misterydrama é Rudolf Steiner, fundador da Sociedade Antropo-sófica. Steiner pratica um tipo de espetáculo que se apro-xima de um teatro espírita — o seguinte trecho doprograma de The Portal of Iniciation (1910), apresentadonos Estados Unidos, atesta essa tendência:

In that Spirit's name/ who through every striving wordhere spoken/ reveals himseíf to souls/ Do I appear this momentbefore men/ who will from now on/ Listen to the words/ whichhere so earnesty resound to souls. . .31.

Afora essa corrente menor, o "teatro mítico" vai tersua maior expressão na live art, que é, como conceitua-mos, a arte de acontecimento, do espontâneo.

Na live art agrupa-se uma série de tendências queficam no limite do que tem sido conceituado como arte.

Pode-se considerar o happening, enquanto expressãoartística, como esse ponto-limite. A partir dele existemduas tendências, uma que caminha para o rito puro ouno sentido terapêutico, onde a intenção maior é vivenciale não a de mostrar alguma coisa para o público — umexemplo é o psicodrama. Na outra tendência, que cami-

30. A descrição desses eventos está em J. F. BROWN."Aleiter Crowley's Rites of Eleusis".

31. Trad. livre: "Em nome daquele espírito/ o qual atravésde todo esforço de palavra aqui dita revelando-se para as almas/Devo aparecer nesse momento entre os homens/ que vão deagora em diante ouvir as palavras/ tão cuidadosamente reserva-das às almas". In Antroposophisical Performance, p. 70.

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nha na direção do que se considera arte, a intenção prin-cipal é a da expressão e é aí que se dá a passagem dohappening para a performance.

Free Theatre — Happening e Performance: Rupturada Convenção Teatral

A existência da tríade — atuante, público, texto —num espetáculo que acontece ao vivo, permite classificaro happening como uma forma de teatro.

O happening se associaria à idéia de um free theatre(teatro livre); liberdade essa que se dá tanto nos aspectosformais quanto ideológicos.

O happening se apoia no experimental, no anárquico,na busca de outras formas. Lebel32 coloca alguns slogansque funcionam como bandeiras do happening. Neste sebusca:

— Livre funcionamento das atividades criadoras sem considera-ção alguma sobre se agrade ou se venda.

— A superação dessa aberrante relação de sujeito e objeto(observador/observado, explorador/explorado, espectador/ator,colonizador/colonizado, alienista/alienado) separação frontalque até aqui domina e condiciona a arte moderna 33.

No happening interessa mais o processo, o rito, a in-teração e menos o resultado estético final. Não existe umsuperego crítico. Os valores de julgamento foram abando-nados; o contexto do happening é o da década de 60,da contracultura, da sociedade alternativa.

Ao incursionar pelo caminho do risco, do experimen-mental, o happening entra em sintonia com a idéia doTeatro da Crueldade de Artaud na sua busca metafísica,procurando despertar o homem para outras realidades.

No teatro autêntico uma peça perturba o repouso dos sen-tidos, liberta o inconsciente recalcado, estimula uma espécie derevolta virtual e impõe à coletividade reunida uma atitude simul-taneamente difícil e heróica. Tal como a peste, o teatro é umterrível apelo às forças que impelem o espírito, pelo exemplo,para a fonte originária dos conflitos 34.

32. Jean Jacques Lebel é um dos primeiros praticantes dohappening na Europa. Organizou em Paris, em 1959, um eventoque se chamou Festival da Livre Expressão e que contou coma participação de Joseph Beuys e Claes Oldenburg entre outros.

33. Ed. Denoel, 1966, Le Happening, p. 31.34. ANTONIN ARTAUD, O Teatro e seu Duplo. p. 47.

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Não é sem motivo que o Living Theatre, que tem seuprocesso de criação centrado nos happenings, é um dosgrupos que melhor concretiza o "teatro artaudiano".

No happening se realiza outra idéia de Artaud, ouseja, de um teatro que incorpore a vida e não seja somen-te auto-referente (caminhando em cima de si mesmo).

No happening esta incorporação acontece ao extremo— magia, rituais terapêuticos, plástica, estética de van-guarda, luta de classes etc. — tudo é absorvido.

Da mesma forma, no processo de atuação não existeuma limitação estético-qualitativa para alguém atuar. Oprocesso é anárquico. Cada um pode subir ao palco e"dar o seu recado": Andy Warhol faz experiências comtransexuais, Steve Reich pendura microfones sobre alto-falantes provocando microfonias, John Cage conduz seusconcertos aleatórios, Yves Klein mergulha suas modelosnuas em piscinas de tintas. Toda experimentação é pos-sível; Bob Wilson trabalha com pessoas e não com ato-res-intérpretes — os loucos de suas cenas iniciais35 sãoverdadeiros loucos, suas donas-de-casa são donas-de-casae não atrizes interpretando donas-de-casa e assim pordiante.

Toda essa experimentação provoca uma ruptura nachamada convenção teatral, na medida em que não existeuma preocupação com a encenação, nem com a repre-sentação.

No happening, o limite entre o ficcional e o real émuito tênue e nesse sentido a convenção que sustenta arepresentação é constantemente rompida. Esta ruptura sedá de várias formas, como pelas situações de imprevistoque caracterizam os happenings — o público não sabendoo que vai acontecer — e nesse sentido entrando em "si-tuações de vida" em que pode ser instado a participar aqualquer instante.

Em outras situações o performer "mostra" sua repre-sentação, revelando a convenção que está por trás da cena(por exemplo se caracterizando em cena, usando metalin-guagem etc).

Todas essas "quebras" de convenção fazem algunspuristas não classificarem o happening como uma formade arte: o happening, para estes, e parte da expressão

35. O teatro de Bob Wilson evolui de peças iniciais, ondea tônica maior era a liberdade de expressão durante a cena,para peças mais estéticas, com rigorosa marcação.

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que classificamos como modelo mítico, se aproximariamdo psicodrama, de um trabalho terapêutico, ou de sim-ples processo anárquico de criação. Arte, para estes, seriaapenas o que classificamos como modelo estético, enfati-zando-se, portanto, o distanciamento crítico e a represen-tação36.

Na Prancha 5 que apresentaremos a seguir colocamospara fins de comparação as diferenças estruturais entre oteatro, o happening e a performance. Para efetuar essecomparativo utilizamo-nos de algumas generalizações queefetivamente não são regra:

1) Evidentemente happening e performance não são amesma expressão. No item seguinte apontamos asprincipais diferenças entre essas duas formas de ex-pressões. Para efeitos das comparações realizadas, sãoválidas as generalizações.

2) Quando falamos em "teatro" obviamente não esta-mos esgotando as inúmeras formas alternativas de or-ganização dessa expressão. Estaremos falando do tea-tro estético, comercial, convencional, do século XX.

3) O quadro funciona como o resumo dos conceitos einformações que apresentamos nesse capítulo e nosanteriores.

Da Passagem do Happening para a Performance:Aumento de Esteticidade

Pode-se dizer, de uma forma genérica, que a Perfor-mance está para os anos 70 assim como o happeningesteve para os anos 6037.

A partir da classificação em modelo mítico e modeloestético podemos dizer que a principal característica napassagem do happening para a performance é o "aumentode esteticidade": se o happening marcou a radicalizaçãodo que chamamos "teatro mítico", a performance vaitender para uma maior aproximação com o "Teatro Es-tético".

36. Outro ponto de vista interessante para essa discussão éa formulação do conceito de não-arte (ver Cap. 1).

37. Essas datas em relação ao exetrior. No Brasil essesmovimentos tiveram expressão num tempo defasado; o apogeu daperformance, enquanto arte se dá, no Brasil, no início dos anos 80(ver Apêndice).

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Prancha 5

Elemento

Sustentação

* Fio Condutor

Construção

* Técnicas

* Ênfase

* Forma deEstruturação

Local deApresentação

Tempo deApresentação

TEATRO(Modelo Estético)

Ator

Representação

Narrativo

Personagem

Lógica de açãoHierarquização

DramaturgiaCrítica social-política

Os artistas se juntampara uma peça. Cadaum tem sua carreira

Edifícios-teatro

Temporada

FREE ART(HAPPENING E

PERFORMANCE)

Performer

Live Art

Colagem/ritual

Idiossincrasia

Livre-associaçãoindeterminaçãoUso livre: objetos —espaço — tempo

Plástico, terapêuticoDiscurso poético

Artistas se juntam emgrupos.Trabalho em colabo-ração

Museus-Galerias-Edifício-Teatroetc.

Evento

* Esses conceitos foram adaptados a partir do artigo deRICHARD SCHECHNER, "Post Modem Performance: TwoViews", Performing Arís Journal, 11, 1979, p. 13. Em "Fio Con-dutor" ao invés de colagem/ritual Schechner usa os termos infor-mation bits.

De uma forma estrutural, happening e performanceadvêm de uma mesma raiz: ambos são movimentos decontestação, tanto no sentido ideológico quanto formal; asduas expressões se apoiam na live art, no acontecimento,em detrimento da representação-repetição; existe uma to-nicidade para o signo visual em detrimento da palavra etc.

Pode-se enumerar uma série de outros pontos comuns,desde aspectos temáticos, organizacionais, estilísticos etc.Porém, apesar dessas duas expressões serem convergentesna sua estrutura, elas divergem numa série de caraterís-ticas. Evidentemente, grande parte dessa divergência sedeve à defasagem temporal que permeia esses dois movi-mentos. Historicamente, essas duas expressões estão defa-sadas em uma década. De 1960 para 1970 mudanças

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radicais acontecem em todos os níveis; o movimento queestá por trás do happening é o movimento hippie exter-nado pela contracultura. Em 70 já não se fala mais emsociedade alternativa. Todo um niilismo será incorporadoà expressão artística. As action paintings, os ritos comu-nitários, todo tipo de experimentalismo não cabem nosanos 70. São caminhos já trilhados e, em se tratando deexpressões de vanguarda38, não tem sentido o déjà vu,deve-se ir sempre para a frente.

Talvez a melhor conceituação para essas duas expres-sões seja a de considerá-las como duas versões de umúnico movimento, ou seja, a performance como sendo ohappening dos anos 70/80.

Prancha 6

Período

Sustentação

Fio Condutor

Forma deEstruturação

Ênfase

Objetivo

Material

Tempo deApresentação

Happening1960-1970

Ritual

Sketches(algum controle)

Grupai

SocialIntegrativa

TerapêuticoAnárquico

Plástico

Evento(sem repetição)

Performance1970-1980

Ritual-Conceitual

Colagem -» Sketches(aumento de controle)

Individual(colaboração)

IndividualUtopia pessoal

EstéticoConceituai

Eletrônico

Evento(alguma repetição)

Na prancha acima apresentamos um comparativo en-tre os pontos divergentes nas duas expressões.

Se no happening a marca é o trabalho grupai, na per-formance prepondera o trabalho individual — uma leiturade mundo a partir do ego do artista39.

38. Essa "vanguarda" não tem o sentido do novo pelo novo,do simples prazer de ser moderno, pelo gosto da ruptura. Pelocontrário, são movimentos subterrâneos, de trincheira, de lutacontra o sistema, onde alguns idealistas buscam saidas e repre-sentações para a angústia do homem moderno.

39. Uma das linhas de performance, apontada por Schechner("Post Modern Performance: Two Views", p. 3) é o self as con-text onde a criação se dá a partir da vivência do autor. Exemplosdessa forma de trabalhar são Spalding Gray, Stuart Sherman,Elizabeth LaCompte etc. No Brasil Ivald Granatto, Aguillar etc.

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Essa tendência para o individualismo tem duas razõesprincipais:

A primeira social, ligada à evolução cronológica quemarca uma quebra, nos anos 70, com a visão integrativaproposta na década anterior. Os novos valores cultivadossão o niilismo e o individualismo.

A segunda razão está ligada ao fato de uma série deartistas que estiveram ligados a grupos, no happening,partirem para sua experiência individual. Um exemplo éSpalding Gray que trabalhou alguns anos com o OpenTheatre antes de partir para seu próprio trabalho.

Soma-se a esta individualização outra marca da per-formance, que é a de absorver, na arte cênica, algunsconceitos das artes plásticas.

Aí toda criação é individual. Nenhum pintor trabalhaem grupo. O performer vai conceituar, criar e apresentarsua performance, à semelhança da criação plástica. Seriauma exposição de sua "pintura viva", que utiliza tambémos recursos da dimensionalidade e da temporalidade.

Na performance vai-se visar uma maior estetizaçãoIsso decorre tanto da necessidade de passar signos maiselaborados que demandam um maior rigor formal, quantodo desejo dos artistas de produzir uma obra mais deliena-da, menos bruta.

Nessa busca, que gera uma maior necessidade de con-trole no processo de çriação-apresentação, vai-se ganharem força sígnica, perdendo-se, em contrapartida, do ladolibertário e terapêutico. Um exemplo claro dessa transi-ção é a produção do Bob Wilson, cujas primeiras óperasenfatizavam uma criação mais livre, mais coletiva, traba-lhando-se com muitas pessoas, na sua grande parte,pessoas comuns. Numa evolução de seu processo, Wilsonpassa a trabalhar muito mais com artistas e especialistas— Lucinda Childs, Andrew de Groat, Philip Glass sãoalguns desses artistas que o acompanham. Da mesmaforma, suas óperas mais recentes irão ter uma marcaçãomuito mais rígida que as primeiras.

Na performance, a exemplo do happening, a criaçãonasce de temas livres, da collage como estrutura, da livre-associação. A diferença em relação ao happening é que,depois de criados, os quadros vão ter uma cristalizaçãomuito maior, não se permitindo improvisos durante aapresentação.

O simples fato de as performances serem repetidas maisvezes que o happening (que em geral acontece uma

H7

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única vez) e de envolverem uma produção muito maissofisticada (com multimídia, mise en scène aprimoradaetc.) vai exigir essa cristalização. Na performance, par-te-se para o espetáculo e, nesse sentido, vai haver apro-ximação com o "teatro estético".

A possibilidade de intervenção do público numa per-formance é muito menor que no happening. Nos hap-penings do Living Theatre, de John Cage, Allan Kaprowe outros, o prosseguimento e o término do happeningdependiam exatamente do público. Na performance, tra-balha-se com o jogo dialético performer x personagem,tempo real x tempo ficcional, mas é menos comum ouimprevista esta abertura para o público. Performances,como Lazarus do Ping Chong ou United States I-IV deLaurie Anderson, são realizadas num clima em que o pú-blico é espectador, não sendo chamado a intervir.

O performer em relação ao praticante do happeningnecessitará de uma maior habilidade de artista para "se-gurar a cena". Justamente porque no happening não ha-via esse sentido de "cena", de "espetáculo", o condutordeste funcionava mais como um xamã, um catalisador,um mestre de cerimônias do ritual. A participação dopúblico diminuía sua responsabilidade enquanto atuante— a ênfase do trabalho se dava na elaboração dos sketchese na habilidade de improvisar diante de situações im-previstas.

Na performance esse "improviso" é muito menor. Operformer tem que colocar algum preciosismo de artistaem cena, seja sua habilidade gestual — caso, por exem-plo, de Denise Stocklos, que tem uma forma totalmentepessoal de atuação — seja uma habilidade de comporquadros visuais — como Bob Wilson, o grupo Ping Chonge outros — seja uma voz surpreendente — como Mere-dith Monk etc.

Se no happening a ênfase está na utilização do mate-rial "plástico" — pela própria influência dos inúmerosartistas plásticos praticantes como Andy Warhol, ClaesOldenburg, Allan Kaprow e outros — na performance o"material de contorno" será o uso de tecnologia, de mul-timídia. Essa transformação é conseqüência da evoluçãoda década em que todo o aparato desenvolvido pela tec-nologia será absorvido pelo espetáculo. Um dos melhoresexemplos dessa utilização de tecnologia eletrônica é aperformance de Laurie Anderson.

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Das Relações de Gêneros: Proposta de um ModeloTopológico

A tentativa de localizar a performance, enquanto gê-nero, numa relação com outros estilos de arte cênica, éao mesmo tempo difícil e contraditória. A performance,na sua própria razão de ser, é uma arte de fronteira quevisa escapar às delimitações, ao mesmo tempo que incor-pora elementos das várias artes. O mais pertinente é loca-lizar esta expressão com estilos afins e apontar estilosdivergentes.

O universo da performance, conforme detalhamos noCapítulo 1, é o da live art, havendo uma relação históricacom outros movimentos, como o futurismo italiano, oteatro da Bauhaus, o cabaret dadaísta, os manifestos cêni-cos surrealistas e, mais recentemente, com o happening.

Ao incorporar o uso da multimídia, visando a umatotalização das artes e na busca de um discurso cênico-poético, na sua forma mais pura, apoiada na imagéticae na exploração dos recursos da linguagem cênica (des-critos no início deste), a linguagem da performance seaproxima da cena proposta por Craig e Appia.

A corrente ritualística da performance, herança dohappening, dá uma proximidade entre essa expressão e oTeatro da Crueldade de Artaud. Outras relações de pro-ximidade são com o teatro dialético brechtiano, usando-seessa dialética tanto a nível do jogo personagem x atorcomo na dicotomia tempo/espaço real x tempo/espaçoficcional.

Se levarmos em conta o processo de atuação em queo performer trabalha sua idiossincrasia, desenvolvendosuas habilidades — em detrimento do desenvolvimentocomo intérprete de qualquer papel — a performance seaproxima tanto da commedia deVarte quanto da artecircence.

Em termos de fronteira com outras artes, há uma apro-ximação, quer com a dança, quer com as artes plásticas.Há também um tangenciamento com expressões que nãosão consideradas artes (ritos terapêuticos, intervençõesetc).

Em termos divergentes, a performance se distanciado teatro que caminha segundo as proposições da cenaaristotélica, apoiada na representação — convenção.

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Enquanto o realismo, por exemplo, vai em busca danaturalidade (na interpretação), na performance vai sebuscar o histrionismo, a "teatralidade"40.

De uma forma genérica, a performance acaba con-servando as principais características da linguagem cênica,ao mesmo tempo que incorpora elementos das expressõesafins. Mais do que isso, a performance cria um topos deexperimentação onde são "testadas" formas que não têmainda lugar no teatro comercial.

Nesse sentido, existindo como um topos de pesquisade linguagem, a performance funciona como vanguardanutridora das artes estabelecidas.

40. O interessante é que existem também pontos em comumentre a cena naturalista e a performance: o teatro de Bob Wilsontrabalha em certo sentido com a representação e o uso da quartaparede. O seu uso distinto da relação espaço-tempo e da formade interpretação é que cria uma cena divergente da cena natu-ralista.

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5. DO ENVIRONMENT:

ANOS 80 — PASSAGEM DE EROS PARATHANATOS

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God Save the QueenThe fascist regimeIt made you a moronA potencial H-bomb

When there's no futureHow can there be sinWe're the flowers in the dustbinWe're the poison in your human machine

There is no futureNo future for youNo future for me. . .

SEX PISTOLSGod Save the Queen,

Niilismo e Esquizofrenia: um Retrato de Época

Se o artista funciona como uma espécie de antenaque capta e transmite uma mensagem1 — e para isso,

1. O artista seria aquele que recebe uma série de imputsdipersos, como todo mundo recebe, e que tem a capacidade detransformá-lo num output processado, em geral uma obra artís-tica, que pode ser uma escultura, uma peça, uma música etc. eque vai servir como input processado para outras pessoas.

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mais do que uma sensibilidade aguçada ele dispõe detempo e interesse de pesquisa — é fundamental, para sesituar a arte de performance dentro de um contexto maior,analisar o "envoltório" para onde estão apontadas asantenas.

Para tornar mais claro o conceito de "envoltório",torna-se necessário entendermos o termo environment:essa palavra, que não tem uma tradução satisfatória emportuguês, diz respeito ao clima, ao envolvimento, aomeio ambiente. Seria uma espécie de cor de fundo, nãono sentido de uma mera referência estética e sim comouma "energia" que está no ar. Usando uma expressão dagíria, environment poderia ser traduzido por "astral". Éesse "astral" que é conseqüência de fatos, comportamen-tos e, talvez, de um fator destino que é captado.

E qual é o "astral" que está sendo captado? Conside-rando os anos de 19802, o que se tem em relação à décadapassada é uma nítida quebra com a esperança que mar-cou aqueles anos. Não se sonha mais com a sociedadealternativa — o sonho hippie foi absorvido pelo sistema,e slogans pela paz e pelo amor soam ingênuos, quandonão carolas.

Nos anos 80 vão continuar existindo movimentos deresistência, como o punk, só que agora revestidos de umapersona muito mais violenta — a ordem é combater osistema com suas próprias armas. Se Eros marcou os de-cênios de 1960-1970 com o flower-power, o "amor livre",o retorno à natureza e aos cultos místicos, é Thanatosque rege os anos 80: cultuam-se as cores negras, a violên-cia, o lado podre do sistema3.

Tudo isso gera uma onda de niilismo, que vem abar-cada de um escapismo romântico. No seu artigo "Juve-

2. Como no Brasil a repercussão dos movimentos estético-filosóficos é defasada, os anos 80 aqui correspondem ao finaldos anos 70 na Europa e Estados Unidos. As datas que aparecemno texto são referentes ao Brasil.

3. A idéia punk é existir como denúncia das coisas podresdo sistema. Os conjuntos têm nomes como The Dammed, TheStranglers, Dead Kennedy etc. No Brasil, Etiópia, Cubatão, AsMercenárias, Ira etc. Suásticas, correntes, nomes de campo de con-centração são incorporados como símbolos do que o sistema pro-duz. Punk (podre) não é o movimento é o sistema. Só que aincorporação dessa persona (do agressivo) produz uma reverbe-ração sobre essa violência. Denuncia-se violência com maisviolência.

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niilismo, a Decadência na Moda"4, Matinas Suzuki Jr.capta com precisão esse clima. Destacamos a seguir umtrecho do artigo:

Não é difícil localizar alguns pontos de influência dessa novaonda de pintar o mundo com as cores da melancolia: um certogosto pela maldição romântica — e suas ramificações contempo-râneas — que passa pelo culto da imagem de putrefação exis-tencial difundida pelo encantamento do ritmo dissoluto da vidanoir de poetas e escritores; uma espécie de neodecadentismo cul-tivado sofisticadamente na avant-garde da música pop; um vagoterror nas entranhas das cores expressionistas da jovem pintura;uma reciclagem do viver penumbrista; o hábito — redivivo deusar roupas negras, e por aí vai. Mas, sobretudo, uma alegriaorgânica a qualquer sinal de otimismo ou orgulho telúrico.

Esse gosto pela maldição romântica — o neo-roman-tismo, ou new romantic — faz ressurgir elementos do mo-vimento romântico do século XIX, do culto a uma radi-calidade que se autodestrói, da fragilidade do puro —os heróis são cantores como Sid Vicious e Ian Curtis5,para citar alguns, precocemente mortos. Vão ser cultua-dos como "totens fúnebres"6.

Esse caminho doloroso, da chamada via negativa (negoDeus desesperadamente na esperança de encontrá-lo) éforçosamente um caminho de destruição. É o caminho tri-lhado por muitos artistas — Artaud é um dos melho-res exemplos — que não conseguem realizar (no ritmoe no nível desejado) seu projeto de transcendência, ao mes-mo tempo que não se conformam com o cinismo assu-mido pela sociedade.

A título de ilustração, já que não é nossa intençãoaprofundar uma discussão tão polêmica, citamos em adi-ção a esse pensamento dois trechos de "The Aesthetic ofSilence" de Susan Sontag7:

4. Folha de S. Paulo, Folha Ilustrada, 10.08.85 p. 39. "Ju-veniilismo" é uma fusão de juventude com niilismo. Como ré-plica e complemento a esse artigo, Sérgio Augusto escreve nomesmo jornal, em 17.08.85 o artigo, velhiceticismo a descrençaestá na moda. É importante destacar que Matinas situa sua obser-vação numa restrita faixa de jovens de São Paulo.

5. Sid Vicious era guitarrista e letrista do Sex Pistols, oprimeiro e mais importante grupo punk. Morreu em 1979. IanCurtis era o vocalista e líder do grupo punk Joy Division. Suici-dou-se com 24 anos, em 1980.

6. Em "Velhiceticismo, a Descrença está na Moda".7. Styles of Radical Will, New York, Delta Book, 1966.

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Art becomes the enemy of the artist, for it denies him therealization — the transcendence — he desires 8.

Silence in the sense as termination as a zone of meditation,preparation for spiritual ripening. an ordeal that ends in gaining theright to speak9.

Sontag está falando da dupla tensão a que está sub-metido o artista, tanto a nível interno onde se confrontacom suas emoções que, se são, por um lado, de difícilexpressão, o são, por outro lado, "bombas de tempo",isto é, têm que imperativamente "sair para fora", tomarforma. Do lado externo, o artista tem a cobrança do pú-blico e a dificuldade do diálogo (muitas vezes criador ereceptor não estão sintonizados na mesma freqüência).Essa angústia interna e essa ruptura no diálogo condu-zem ao silêncio. O silêncio do artista tanto é represen-tado pela não-produção quanto pela produção de obrasque intencionalmente, ou não, não comuniquem.

Se a passagem para os anos 80 está marcada, de umaparte, por um niilismo (que muitas vezes desaguou nosilêncio ou no ruído), de outro, vai estar, também, mar-cada por uma grande efervescência em termos de produ-ção artística.

Os anos 80 são marcados pela releitura: cria-se a es-tética do new wave, do pós-moderno, que vem a ser umaretomada, um re-mix, embalado por uma tecnologia ele-trônica que não existia na época, de tudo o que se pro-duziu em termos de arte nesse século: surrealismo, kitsch.expressionismo, ultra-realismo etc.

Esse processo de simbiose, de fusão das várias influ-ências, não se caracteriza porém pela integração. A com-posição das diversas formas e idéias não se fecha pelasíntese, e sim por justaposição, por collage. Muitas vezesesse processo será desintegrado: a própria estética queespelha o movimento — o pós-modernismo10 — é defini-

8. Trad. livre: "A arte se torna inimiga do artista, pois nega-lhe a realização que ele deseja — a transcendência".

9. "Silêncio no sentido de término, de uma zona de medi-tação preparatória para um amadurecimento espiritual, uma pro-vação que acaba na conquista do direito de falar".

10. Não entraremos aqui na discussão se o pós-moderno seimpõe como algo novo, justificando essa nova nomenclatura (namedida em que rompe conceitos do modernismo) ou se é apenasum movimento de continuidade, revestido de uma jogada merca-dológica (de marchands). Uma discussão consistente sobre oassunto pode ser acompanhada em "Modernidade versus Pós-Modernidade" de JURGEN HABERMAS.

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da como uma forma esquizofrênica de composição. Char-les Jencks, um dos principais idealizadores da arquite-tura pós-moderna, observa o seguinte: "the building mostcharacteristic of Post-Modernism show a marked duality,conscious schizophrenia"11.

Na arquitetura pós-moderna vão conviver colunas jô-nicas com o néon. Funde-se o novíssimo com o clássico.É um lidar com os opostos, onde o movimento de ida evinda muitas vezes tangencia a ruptura.

Da mesma forma, se extrapolarmos esse conceito dalabilidade dos opostos para o homem — e, principal-mente, para o criador dos anos 80 — veremos que eleconvive com o sagrado e o profano (da meditação trans-cendental à prática orgiástica, entre o mítico e o banal,entre o eterno e o trivial, entre Eros e Thanatos). É lógi-co que tal convivência com opostos é intrínseca ao serhumano, mas nunca essa oscilação foi tão abrupta, nemos mecanismos de defesa (superego) tão frágeis como nes-ses tempos, provocando um contato esquizofrênico com arealidade.

Do New Wave ao Pós-Modemo: Estética da Releitura

O dia 24 de julho de 1976 marca o início do mo-vimento punk em termos da mídia e da imprensa12. É odia em que se realiza, no 100 Club de Londres, o 1.° fes-tival punk, contando com a participação, entre outros, dosgrupos Sex Pistols, The Clash, The Dammed e Siouxssieand the Banshees.

Entre 1976 e 1978 o movimento punk começa a tomarcorpo e pela primeira vez se ouve a expressão new wave— principalmente associada à estética. Apesar das diver-gências — com alguns puristas considerando o new waveuma resposta "comercial" do sistema ao movimento punk— um e outro podem ser considerados "duas faces damesma moeda"13.

11. Trad. livre: "As construções mais características do pós-modernismo mostram marcante dualidade, que é esquizofreniaconsciente". In Post Modem Architeture, p. 6.

12. Antes dessa data já havia um movimento incipiente, comgrupos tocando em pequenos clubes e garagens, mas com o nomepunk não significando nada ainda. Uma informação bastante deta-lhada do nascimento do movimento punk/new wave pode serobtida em The New Wave-Punk Explosion de CAROLINE COON.

13. A expressão é de Caroline Coon.

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Se o punk se externa através do niilismo dark e con-grega as tendências mais radicais — o harcore, o skin-head (alguns até se dizem inimigos dos punks) o newwave aparece sob a figura de "hippies apocalípticos",compondo tipos como moicanos, zens e seres futuristas.Ambas as tendências — o punk e o new wave — sãoessencialmente, na sua origem, movimentos de contestaçãoque têm na música sua principal linguagem de propa-gação.

O ano de 1980 marca a entrada do new wave nos Es-tados Unidos, em clubes underground, como o C.B.G.B. eo Snafu, onde se tocam os novos grupos e se mostra a novaestética que chega. Nesse momento o movimento a nívelartístico já é internacional e, entre os grupos e artistas dedestaque que aparecem no início, podem se citar os ingle-ses David Bowie, Brian Eno, Gary Numan, Duran Duran,os alemães Kraftwerk, os americanos Blondie, TalkingHeads e Laurie Anderson. Eles representam uma pri-meira geração new wave.

A partir daí, o movimento que existia apenas no cir-cuito underground já está absorvido pela mídia e pela"indústria cultural" (indústrias de moda e fonográficaprincipalmente). Inicia-se a fase daquilo que se chamou"guerra de estilos", que vem a ser a multiplicação de ten-dências a partir do punk e do new wave — gótico, tecno-pop, ska, ôi, rockabillity, para dar alguns exemplos —surgindo com essas novas correntes dezenas de grupos.

Para se traçar um caminho histórico do movimentonew wave e entender as origens da tendência new roman-tic, que nasce a partir deste e que recria temas e formasdo movimento romântico do século XIX, é preciso sedeslocar até Berlim.

A época é 1977 — o mesmo ano em que a correntepunk está se consolidando em Londres. Berlim é a metá-fora viva da desintegração esquizóide da era moderna.É a cidade do muro, da separação, onde se dividem Oci-dente e Oriente. E é para lá que os artistas vão, buscandonesse environment a inspiração para sua criação.

Em Berlim, David Bowie — precursor dessa nova era— se junta a Brian Eno, o mago dos teclados, oriundodo Roxy Music. Juntos, eles vão criar três discos anto-lógicos: Low, Heroes (1977) e Lodger (1979). Tais dis-

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cos, marcados por um ascetismo futurista14, vão dar oscontornos do que virá a se chamar "estética new wave".

Tomando como ponto de partida as letras de Bowiee do disco Big Science, 1981, de Laurie Anderson —artista americana multimídica, que abre novas direçõespara o new wave — analisaremos alguns temas que sãomarcantes no movimento15:

As letras falam de personagens que geralmente sãofiguras arquetípicas — samurais, damas medievais, an-jos, astronautas e heróis da raça humana (o Major Tomde David Bowie e o caçador de andróides de Blade Run-ner, para citar alguns exemplos). Trata-se de um autên-tico revival dos grandes temas românticos. É a volta doherói mítico que trafega num mundo de encantamento.Seus inimigos são os "monstros" e as ignomínias criadaspelo sistema.

Se essa evocação do romântico indica um certo esca-pismo de uma realidade — dos anos 80, que é brutale irreversível — por outro lado, o new wave é marcado,através de suas letras e de sua estética (que às vezes sereveste de um realismo chocante), por uma feroz con-testação ao sistema: Bowie fala dos horrores do sistema— "I feel like in a burning building" e "I am barred forthe event/I really donft understand the situation/sowhere's the moral/people have their fingers broken/ tobe insulted by these fascists/It's so degrading/It's nogame"16.

Laurie Anderson é irônica: "I just want to say thanks.Thanks for introducing me to the chiei"17.

14. O artista é um searcher, buscador, que procura o trans-cendental, que crê. Nesse sentido ele é um asceta. Esteticamente,o movimento se reveste de uma forma futurista.

15. Incluímos nessa observação também exemplos de filmes,videoclips, textos etc. que são representativos do pós-modernismoe do new wave. No apêndice deste trabalho apresentaremos arelação completa das fontes multimídicas que foram utilizadas paraa nossa pesquisa.

16. Trad. livre: "Eu me sinto como que num edifício emchamas" e "Eu me confronto com os impedimentos/Eu nãoconsigo entender a situação/então, onde está a moral/as pessoastêm seus dedos quebrados/para ser insultadas por esses fascistas/Étão degradante/e não é uma brincadeira" (Scary Monsters, 1980).

17. Trad. livre: "Eu só quero dizer obrigado. Obrigado porme apresentar ao chefe". Este texto aparece em Big Science e éenunciado por uma voz robotizada, que alude às pessoas coloni-zadas pelo sistema, até um nível esquizóide.

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Os cenários new wave (vistos através de videoclips)são sempre fantásticos, observados através de tomadasde câmara extravagantes: doses e afastamentos rápidos,câmeras lentas e aceleradas, muito uso de filtro e lentesde distorção, filmagens a partir de ângulos incomuns —de cima, de baixo, invertido etc. As cores vão do artifi-cial ao hiper-realismo. O clima onde alguns videoclips sepassam é de um alegre pesadelo, onde se trabalha numarelação espaço-tempo subvertida e com uma sucessão deimagens que são apresentadas em velocidade superior àcapacidade de percepção humana, provocando uma cogni-ção supraconsciente, que visa atingir diretamente (peloprocesso subliminar) o inconsciente. O processo de cria-ção do videoclip procura imitar o processo onírico. O re-sultado pode ser chamado de "surrealismo eletrônico"18.Para dar um pequeno exemplo, no videoclip de Ashes toAshes (música de Bowie) sucedem-se imagens dele comopierrô, como uma criança frente a uma mãe enérgica, numacena de sonho ao lado de damas e cavaleiros medievais,numa sala forrada para psicóticos, num escafandro nofundo do mar etc.

Os cenários são incomuns e os cortes se dão rapida-mente de uma tomada para outra.

O new wave fala também de multidões "androtiza-das", de pessoas sem rostos diferenciados, como nos qua-dros de Magritte. Na foto que segue, apresentamos a capado disco Computer World (1981) de Kraftwerk.

Os homens são presas de seus destinos ("which infact, he turned out to be" — Laurie Anderson) e pare-cem incapazes de qualquer reação.

Outro exemplo desse pesadelo futurista é o filmeBrazil, que reproduz o universo de 1984 de Orwell e quetem uma técnica pós-moderna de filmagem.

Os fatos e os dramas abordados no new wave sãointernacionais. As imagens reproduzem um mundo dofuturo, sem fronteiras, provavelmente de língua inglesacom marcante influência japonesa (de novo lembramos deBlade Runner). Não se fala de países, de fronteiras. Po-rém, o contexto wave é sempre urbano, pós-industrial.A linguagem utilizada é internacional — uma das músi-cas de Laurie Anderson é Dear Amigo (fusão do inglês

18. Seria um surrealismo mais próximo a Magritte, porexemplo, porque as imagens guardam uma relação realista comos objetos representados.

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Temas NEW WAVE.

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com o espanhol). O título do disco de David Bowie é:Lodger — Locataire — Untermiter — M i r â i - (inglês,francês, alemão e japonês). No Lp Scary Monsters umadas músicas é cantada em japonês (o Japão que conseguefazer as sínteses moderno-tradicional, sacro-profano, ori-ente-ocidente, é uma das grandes fontes de inspiraçãopara o movimento new wavé).

Finalmente, na comparação do new wave com o punk,enquanto ideologia, poderíamos dizer que o new wave,que pode ser englobado numa corrente maior, caracteri-zado pelo jargão "Pós-moderno", se propõe a uma relei-tura do kitsch, do surreal, do dada, do expressionismo,em suma, de tudo o que se produziu em termos de esté-tica e ideologia na modernidade — e, na medida que "re-lê", está aceitando uma cultura. Dessa forma, o new wavese carrega de Eros. O punk aparece como quebra, não sepropõe a fazer re-leitura de uma cultura — que é vistacomo terminal e nessa medida se carrega de Thanatos.Porém, como já dissemos, punk e new wave são corpoe alma de um mesmo movimento19.

O Darkismo Punk: Culto à Thanatologia

A geração anos 80 é a geração "no future". Vivemosa era em que o capitalismo entra na sua fase terminal20

e o comunismo burocrático se mostra cada vez mais pa-quidérmico e podre.

O criador punk se insurge contra as velhas retóricas,ao mesmo tempo que se digladia com os ferozes mecanis-mos da mídia21.

19. O próprio environment se encarrega de dar vida a essametáfora: a peste que assola nosso tempo se transmite pelo atode amor. Thanatos se insinua através de Eros.

20. A expressão "capitalismo terminal" é de uso corrente ealude tanto à decadência desse sistema que se fragiliza cada vezmais diante da relação absurda entre Primeiro e Terceiro Mundos(se houver moratória em massa todo o sistema se quebrará),quanto às populações que estão à margem do consumo, e queingressam na sua fase terminal.

21. A mídia, representada pelos chamados "meios de comu-nicação" e pela propaganda, se encarrega de transformar qualquermovimento estético-filosófico em moda e, conseqüentemente, capi-talizar em cima dele. Ocorre que nessa passagem — pela mídia— não vai acontecer a mera propagação do movimento (queseria benéfica) e, sim, a sua "pasteurização" para ser transforma-do em "produto". Essa "pasteurização" arrasa qualquer tentativade resistência cultural. Tudo é transformado e absorvido pelosistema.

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Em "The Aesthetic of Silence", Susan Sontag, falade uma corrupção do discurso:

Human beings are so "fallen" that they must start withthe simplest linguistic act: the naming of things. Perhaps no morethan this minimal function can be preserved from the generalcorruption of discourse 22.

Essa corrupção do discurso se dá tanto a nível dotexto verbal quanto do texto composto a partir de ima-gens. O sistema manipula o real. Como o objetivo finalsempre é mercadológico, a mídia (televisão, agência depublicidade etc.) procura conferir uma "aparência de vida"a situações totalmente artificiais.

O criador punk, consciente dessa corrupção, e nãocompactuante com o cinismo do sistema, vai utilizar o hor-ror, o culto à tanatologia como forma de externação deideologia. Metaforicamente, é um movimento semelhanteao do mar que devolve à terra todas as impurezas quenele foram jogadas (como já dissmeos, o punk exibe tudoo que o sistema produziu de podre — Auchwitz, Malvi-nas, Etiópia, Bomba H etc).

Apesar dessa postura de destruição, o punk não é total-mente niilista, na medida em que, propondo o choque, estápropondo luta — e, na medida em que se coloca comoum movimento de resistência, o punk se imbui de vida(luta-se por alguma coisa). Pela nossa formulação, se im-bui de uma parcela de Eros; o verdadeiro tanatólogo seriao esquizóide, aquele que não tem mais pulmões, que nãoresiste mais.

De uma forma sintética, é dentro desse environmentdos anos 80 que a arte de performance se insere. Na ver-dade existe uma profunda consonância entre a performancee essas expressões estético-filosóficas, seja pelas raízes (oromantismo, o niilismo nietzschiano, os movimentos damodernidade: dada, surrealismo, expressionismo etc), sejapela forma de externação que deságua no que se tem cha-mado de pós-moderno.

Num momento em que se caminha para uma totali-zação das partes, em que fica difícil dissociar a qual mídiapertence determinado artista — e isso acaba se dando

22. Trad. livre: "Os valores humanos estão tão 'degradados'que se deveria recomeçar do mais simples ato lingüístico: o dedar nome às coisas. Talvez nada mais do que esse simples atopossa ser preservado da corrupção generalizada do discurso".(Styles of Radical Will).

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pela tônica do trabalho — podemos dizer que a perfor-mance é uma das pontas do movimento. Artistas original-mente ligados à música, como David Bowie, Laurie An-derson, David Byrne, o grupo inglês Bauhaus, para citaralguns exemplos, transformam suas apresentações, ao vivo,em verdadeiras performances, com grande preocupaçãocom o fechamento estético-ideológico dos seus shows.Quando nos referimos à ideologia, estamos entendendoos signos que vão sendo introduzidos, nessas cenas-shows,e o contexto em que eles aparecem (letras e imagens secompletam numa composição que dá a característica ideo-lógica) .

Podemos dizer, portanto, que a performance é a ca-nalização, dentro do veículo teatro, do pensamento esté-tico-filosófico que se irradia desses movimentos.

A linguagem performance favorece, enquanto collage,a externação dessa ideologia, na medida em que o artistatem total liberdade de manipulação (ao contrário de outraslinguagens teatrais em que essa possibilidade é limitada).Nesse sentido, o criador da performance, enquanto "cola-dor", dispõe de poder de estabelecer uma expressão deresistência.

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6. DOS LIMITES:

PERFORMANCE COMO TOPOSARTÍSTICO DIVERGENTE

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The main and most important issue is thatthe hody and performance art forms will pro-bably engage the imaginations of more artisís,more of the time, in the art of the future, thanany other art from of our time.

GREGORY BATTCOCKl

Live Art e Performance como Topos Artístico Divergente

A observação do fenômeno artístico performance con-siderada a partir da experimentação prática — tanto no

1. GREGORY BATTCOCK, The Art of Performance, p. 96."O essencial é que a arte de performance e a body art vão, pro-vavelmente, engajar a imaginação de um número maior de artistas,tas, por um tempo maior, para a arte do futuro, que qualqueroutra forma de arte de nosso tempo".

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exterior quanto no Brasil — e de uma confrontação comoutras linguagens estéticas do século XX nos conduz aduas conclusões importantes:

Primeiro, que tanto pelas suas características de lin-guagem. — uso de collage como estrutura, predomínioda imagem sobre a palavra, fusão de mídias etc. — quantopelas suas premissas ideológicas — liberdade estética, artede combate etc. — a performance não pode ser conside-rada como uma expressão isolada e, sim, como uma ma-nifestação dentro de um movimento maior que à faltade um nome mais consagrado estamos chamando de liveart2. Dessa forma a performance é o elo contemporâneode uma corrente de expressões estético-filosóficas doséculo XX da qual fazem parte as seratas futuristas, osmanifestos e cabarets dada, o teatro-escândalo surrealistae o happening.

A performance é portanto a expressão dos anos 1970/1980, estabelecendo, apesar da confusão no Brasil, umaclara distinção com o happening, havendo em relação aeste um aumento de esteticidade obtida através do aumen-to de controle sobre a produção e a criação — em de-trimento de espontaneidade e um aumento de individua-lismo — com maior valoração do ego do artista criador— em detrimento do coletivo e do social, privilegiados nohappening.

Ao mesmo tempo, ao final dos anos 80, a performanceenquanto expressão de pesquisa de linguagem já mostrasinais de esgotamento. Percorrendo, com uma linguagemde fronteira, sempre caminhos novos que visam eliminarredundâncias, e, isto se dando não por uma necessidadede apologizar-se o que é vanguarda, mas sim, pela ne-cessidade imperativa da arte — e também da ciência —de caminhar sempre em frente tentando aproximar-se daverdade, essa expressão tende a padecer de um altíssimograu de obsolecência.

Além de ser uma expressão que trabalha com grausmuito pequenos de redundância, cobrando de seus pra-ticantes uma altíssima criatividade e reciclagem e tendopor essa característica uma vida útil datada, a perfor-mance sofre esgotamento filosófico, na medida em que

2. Lembramos que essa nomenclatura foi utlizada por CA-ROLINE COON em Performance: Live Art — 1909 to lhe Pre-sent. JORGE GLUSBERG, A Arte da Performance, utiliza a ex-pressão body art como termo aglutinador.

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apesar da sociedade entronizar o individualismo, setoresmais sensíveis desse meio, onde os artistas buscam suasfontes, já não aceitam uma arte que exacerba o ego doartista — mesmo que sua mensagem seja anti-sistema —preferindo apostar numa linguagem mais humanista.

O fato é que esse esgotamento identifica não só umamorte e, sim, um nascimento eminente de uma nova ex-pressão, porque assim como a ciência caminha de formaprogressiva e transformativa (a destruição de um modeloforçosamente impulsiona a criação de um substitutivo su-perior) da mesma forma a arte e particularmente a cor-rente que chamamos de live art é auto-reciclável, traba-lhando com os elementos básicos do homem, reportando-se sempre ao que o homem tem de mais primitivo e essen-cial, rompendo sempre que possível com a representaçãoe não correndo por isto risco de aniquilação, ao contrá-rio de outras "modas" inventadas pelo sistema.

É importante enfatizar então o legado que os artistaspraticantes da performance deixam atrás de si; paracitar só alguns exemplos, podemos falar do minimalismoque é uma forma genial de se trabalharem as estruturasessenciais do discurso humano — dando nova luz aoapontar as bases de certos sistemas mitológicos, filosó-ficos, semiológicos (como os cientistas que identificam es-truturas químicas básicas constitutivas dos organismosvivos) etc. e permitindo, ao mesmo tempo, o desdobra-mento de leituras e a superposição de obras. Dessa ma-neira, por exemplo, pode-se organizar uma leitura-coí/agebaseada em toda obra de Shakespeare, a partir da extra-ção de elementos essenciais4 que se repetem em toda asua obra e contrapor-se isso a elementos da obra deKafka, ou à mitologia bíblica por exemplo.

Outra contribuição importantíssima é a de, através daexacerbação da "imagem emocional", se resgatarem emcertas performances estruturas arquetípicas básicas e situa-ções que pertencem ao inconsciente coletivo de toda co-munidade.

3. Esses artistas, que são pesquisadores na sua essência, fun-cionam como uma espécie de "cientistas da arte", legando suasdescobertas para serem aproveitadas por uma arte mais massivae continuando seu trabalho de desbravar novas fronteiras doconhecimento humano.

4. Essa extração dos elementos essenciais não é feita deuma maneira racional, intelectual e sim de uma maneira intuitiva,quase sensitiva com a utilização de todos os elementos psicofísicosde captação.

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Dessa forma, nesses anos recentes, algumas perfor-mances transformaram-se em alguns dos últimos redutosnão contaminados pelos tentáculos do sistema, onde pra-ticantes e platéia mantiveram viva a ritualização de si-tuações antropológicas e práticas essenciais à preserva-ção da psique coletiva da comunidade.

A segunda conclusão importante é que a performancee a live art como um todo, apesar de terem as caracterís-ticas por nós formuladas como definidoras da expres-são cênica — texto, público, atuantes, intervindo ao vivonum determinado espaço — ocupam um topos divergentedaquele ocupado pelo teatro (ou o conjunto de manifes-tações que se definem como tal).

A evocação do nome "teatro" — principalmente noBrasil — estabelece uma expectativa de público, dos pra-ticantes, da crítica e principalmente da mídia (represen-tada pelos meios de comunicação) que diverge da idéiade performance. A performance a partir do termo visaescapar da idéia "teatro" ou, pelo menos, do que se conotaa "teatro".

A linguagem "teatro" está amarrada — mesmo quede uma forma inconsciente — a correntes ancestrais, ten-do todo um tipo de comprometimento com representação,dramatização, ritualização etc. que a tornam "pesada" de-mais para servir como suporte de certas experiências cêni-cas mais ágeis que têm maior pertinência com linguagensde experimentação5.

Ao mesmo tempo, o teatro enquanto linguagem se esta-belece como uma forma estrutural com regras — que va-riam de estilo para estilo — de composição dos signosconstruídos, assim como a dança ou a linguagem de vídeotambém têm as suas. A performance flutua entre essasvárias linguagens podendo, como já enfatizamos, ser clas-sificada como uma expressão cênica.

Porém, a nível de completitude essa classificação serámuito mais abrangente se considerarmos a performanceantes como um topos divergente que esporadicamenteatravessa fronteiras e ocupa espaços pertencentes ao tea-tro, do que como uma vanguarda teatral que o espaçode influência dessa linguagem amplia.

5. Fica claro também que certo tipo de teatro classificadocomo "teatro experimental" tem grande aproximação com a lin-guagem de performance, porém uma montagem de Beckett, porexemplo, por mais que rompa com a estrutura do teatro tradicio-nal não chega a atingir a performance.

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Da Experiência Brasileira: Limites

Em fins de 1986, a expressão performance ainda épraticada com bares e cabarets com o Off, o Zoster e oMadame Satã6. A Funarte prepara-se para realizar o IIEvento Nacional de Performance.

A noção que fica para o público brasileiro é que aperformance é um conjunto de sketches, ligeiramente en-saiados, apresentados poucas vezes e em lugares alterna-tivos, utilizando uma técnica em que prevalece o movi-mento corporal e a utilização de elementos plásticos —a performance é o teatro do artista plástico segundo colo-cação de Guto Lacaz — em detrimento do texto faladoe da composição de personagens.

O público que acompanha as performances é um pú-blico de iniciados, composto por uma maioria de artistas— e não de leigos — das mais diversas artes7.

Esse público brasileiro não toma contato, como já co-locamos anteriormente, com um outro tipo de trabalhoque, à guisa de nomenclatura, estamos chamando de per-formance art.

O trabalho da performance art se vale dos mesmos ele-mentos utilizados nas performances brasileiras — a fusãode linguagem, o uso de tecnologia, a liberdade temática,a tonicidade para o plástico e para o experimental.

O que vai diferenciar esses trabalhos da performanceart é o nível de preparação, onde são gerados espetáculossuportados num trabalho de produção e de pesquisa mui-to mais sólido. As criações resultantes desse processo têmum resultado estético muito mais contundente, aliada auma exploração temática e a uma formalização que a dis-tinguem de trabalhos de teatro.

6. No dia 29.11.86, às 22 horas, assisto à performance Zoi-que de Didi Nascimento e Valéria Kimachi no Madame Satã: "osdois performers entram em cena seminus, separados, dentro deplásticos transparentes e acompanhando um som tribal fazem evo-luções corporais que aludem a nascimento, morte, acasalamentoe outras funções vitais. Trata-se de uma performance extremamen-te simples e curta (10 minutos), mas que carrega dentro de si todaa vitalidade da expressão.

7. O que consubstancia a tese de que a performance é umtopos de experimentação onde outros praticantes vão buscar refe-rências.

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Exemplos deste tipo de trabalho são performances deartistas como Laurie Anderson, Spalding Gray, o grupoPing Chong, os espanhóis da Fúria de Barcelona etc.8

Num momento em que a performance enquanto lin-guagem de pesquisa já entra na sua fase terminal a pro-dução brasileira aporta para as seguintes vertentes:

De um lado, a dos performers oportunistas, emmaior quantidade, que realizam trabalhos de extrema gra-tuidade — em geral alguma coisa "engraçadinha" ou al-gum erotismo inócuo — que é consumido ou por umpúblico de amigos ou, como aperitivo, por um públicoque espera uma banda de rock. Esses "artistas" são her-deiros do mau vaudeville e contribuem com sua experi-mentação vazia para exacerbar os detratores da arte depesquisa — composta por uma massa de burocratas, igno-rantes e misoneístas — fechando com isto preciosos espa-ços e oportunidades de pesquisa.

Um outro grupo de artistas, com um trabalho e umapesquisa mais consistente, caem numa outra armadilhaperigosa, que é a da compactuação e exposição exage-rada com a mídia9.

A sua produção passa a ser feita sob encomenda, comdata e temas encomendados para eventos produzidos pelamídia, assumindo um tal grau de cumplicidade que extin-gue, por um lado, o tempo da criação que; é diverso dotempo da produção e, principalmente, perde a isenção

8. No Brasil, experiências deste tipo são limitadíssimas eincapazes de documentar a potencialidade desse universo. A títulode ilustração, é importante citar que a montagem de O EspelhoVivo — Projeto Magritte, espetáculo em multimídia baseado emimagens e situações criadas pelo pintor René Magritte, da qualparticipei como criador e encenador e que foi apresentado emmaio de 1986 no Centro Cultural São Paulo, causou grande sen-sação no público e na crítica, principalmente pela surpresa comas possibilidades de uso de linguagem e pela forma inusitada deatuação dos performers. Esse trabalho à falta de uma crítica paraa performance art foi enquadrado como teatro e pelo mesmorecebi indicação de revelação do ano pelo INACEN. Afora isso,essa montagem, que caminha como trabalho prático paralelo aessa pesquisa, desencadeou uma procura muito grande por partede artistas, o que atesta ao mesmo tempo a potencialidade e acarência em que estamos mergulhados, onde trabalhos como essesão acontecimentos completamente isolados.

9. Hoje assistimos ao nascimento de uma nova categoria— a dos midiotas (idiotas da mídia) que sucede à dos vidíotas,os quais são uma massa de indivíduos consumistas que seguem osditames de pessoas que controlam as mas-media, pessoas estas quereduzem a vida e a história alguns adjetivos e rótulos.

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para a crítica ao sistema que a linguagem impõe. É lógi-co que é muito difícil manter-se à margem do sistema,mas a história mostra que, quando a arte envereda poresses caminhos, ela perde capacidade de renovação e decriação de novos referenciais, cumprindo apenas uma fun-ção de consumo e entretenimento.

Essas duas vertentes conservam de bom apenas umacaracterística que é a de liberdade, enquanto expressão,produzindo algo como um anarquismo estético.

Alguns outros artistas continuam empenhados na bus-ca de uma nova linguagem que trabalhe dialeticamente aspotencialidades do homem e suas relações com o meioambiente, conservando ao mesmo tempo a liberdade e aradicalidade que são essenciais para a existência da arte.Acredito que, dentro do ruído atual, a maioria dessesartistas se encontre em silêncio.

Do Futuro: Mídias Dinâmicas como Suportede uma Arte de Resgate

A arte lida com verdade, lida com transcendência, lidacom imanência, é um dos veículos para o ser humanotomar contato com estados superiores de consciência. Oartista lida com as dialéticas corpo/alma, cabeça/cora-ção (razão/emoção), vida/morte, que são estruturais àcondição humana. O verdadeiro artista lida com abstra-ção, tendo consciência que a mídia é apenas uma fun-ção de transporte, o corpo para uma alma (que é esseato artístico), o suporte para se atingirem os propósitosmencionados.

A prisão à mídia, ao suporte, ao mero referencial levaà exacerbação de corpos sem alma, estátuas sem vida:a idéia de separação/fragmentação é associada às teoriaseconômicas do século XX — já em franca decadência —que compartimentalizam o homem em especialização elimites dos quais ele não pode escapar. E os artistas caemnessas armadilhas. Não existe uma arte fragmentada, nãoexiste teatro sem dança. Caminhamos para uma arte total,para uma transmídia, para a eliminação de suportes queimpedem ou que se tornem mais importantes que a pró-pria transmissão da mensagem artística.

Caminhamos, de um lado para mídias cada vez maiscomplexas — tecnologicamente falando — e dinâmicas,

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tendo na transformação sua função básica, e, de outrolado, para o eterno resgate das funções essenciais do ho-mem, permitindo entendê-lo como um ser harmônico einteiro. Nesse ponto, Battcock (ver citação) é um visio-nário, percebendo que linguagens como a performancee a body art que lidam com a dialética (uso de suportes/essencialidade), terão muito mais eficácia de comunica-ção que as linguagens estéticas de arte.

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APÊNDICE

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Lógica vertus Acato

PERFORMANCE /PRESEPADA DE PAULO BRUSCKY

A ARTE COMO UM JOGOUM DRIBLE

O ACASO ALIADO A OUSADIA

ENTREENTEEN

./TE.

'BOL

A ARTE COMO UM "CHUTE"UMA OBRA COM VÁRIOS "CHUTES"

UM JOGO PERFORMANCEUMA PRESEPADA.

Duração aproximada: 10 minutosProjeção de slidesmúsica/vozes de:Mareei Duchamp/Paulo Sérgio Duarte/Richard Hamilton/TransmissSo de uma partida de futebol/John Cage, Walter Smetack, Hermeto Pascoal

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Material fonte

Classificamos como material fonte todo material bruto, pri-mai, aue foi utilizado como referência para a elaboração da pes-quisa.

Para efeito de classificação, distinguimos o material primaicomo sendo aquele que não é analítico; nesse sentido, o roteirode uma performance estará incluído no material fonte e uma aná-lise sobre a mesma estará relacionada na bibliografia.

Pelo fato do tema que estamos tratando ser de alcance mul-timídico, a pesquisa do material fonte não se restringiu apenasàs fontes textuais.

Consideramos portanto como material fonte roteiros de peçase performances, textos, storyboards, manifestos de artistas.

Quanto às performances, a classificação se divide em duaspartes, uma relativa às performances realizadas no exterior, daqual tivemos contato por via de fotos, roteiros, comentários etc.— nesse item procuramos relacionar as performances dos artistase grupos que julgamos mais significativos; na outra relação incluí-mos as performances realizadas no eixo Rio-São Paulo, das quaispresenciamos a maior parte. Essa relação serve inclusive parailustrar o que de mais significativo aconteceu em termos de artede performance no Brasil (no período de 1980 a 1986).

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Fontes textuais

Roteiros de Peças/Performances h

ANDERSON, Laurie. For Instants (1976). In: Performance IÂveArt 1909 to the Present. London, Cox and Wyman, 1979, 112.

. "United States: Parts l-IV" (1983). Theatre Journal,249-252, maio, 1984.

AKALAmS, Joanne. "Southern Exposure." In: "Some Versionsof Performance Art." Theatre Journal, 36 (2) 173-181, 1984.

BECK Julien e MALINA, Judith. "Frankesteins" (1965). In: TheLiving Theatre (Pierre Biner). New York, Avon Book, 1972.

. "Paradise Now." (1968). New York, Vintage Books,1971.

BEUYS, Joseph. "Coyote: l Like America and America LikesMe" (1974). In: GOLDBERG, Rose Lee. Performance: LiveArt from 1909 to the Present. London, Cox and Wyman Ltd.,1979, 96.

BREAD & Puppet Theatre. "A Monument of Ishi". Theatre Quar-terty, V (19) 73-88, nov. 1975.

CAGE, John. "Happening" (Black Montain College) (1952). Ho-rizon, 23 (12) 6, 1980.

CHONG, Ping. (The Fiji Company). "Humboldfs Current". In:"Some Versions of Performance Art. Theatre Journal, 36(2) 165-175, 1984.

CROWLEY, Aleister. "Rites of Eleusis" (1910). The Drama Re-view, 22 (2) 3-26, 1978.

DE MARCY, Richard. "Disparitions (Disappearances)". TheDrama Review, 25 (3) 93-104, 1980.

FINNERAN, Allan. "A Wall in Venice/3." The Drama Review,22 3) 95-106, 1978.

FOREMAN, Richard. (The Ontological-Histerical Theatre). "Pan-dering on The Masses: A Misrepresentation". In: MARRAN-CA, Bonnie. Theater of Images. New York, Drama BookSpecialists, 1977.

. "Book of Splendeurs". Theater, Yale School of Dra-ma, IX (2) 79-89, Spring, 1978.

GRAY, Spalding e LA COMPTE, Elizabeth. "Rumstick Road".Performing Arts Journal, III (2) 92.115, Fali, 1978.

. "Three Places in Rhode Island". The Drama Review,23 (1) 31-42, 1979.

GURDJIEFF. "Dervish Dance" (1910). The Drama Review, 22(2) 32-44, 1978.

1. O nome relacionado é o do artista ou grupo realizadorda performance. O nome grifado e com aspas é o nome do tra-balho. A primeira data é a data da performance, a segunda adata da fonte. De alguns trabalhos só temos uma documentaçãofragmentada, por isso não temos a indicação bibliográfica, masiremos citá-los pela sua importância.

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Page 168: Cohen Renato Performance Como Linguagem

LUDLAN, Charles. (The Theater of The Ridiculous). "LadyGodiva". In: BRECHT, Stefan. Queer Theatre. New York,Surkamp Verlag, 1978, pp. 28-55.

MABOU MINES. "Dressed Like an Egg'. Theater Magazine,Yale School of Drama, 110-118, 1978.

. "Shaggy Dog." The Drama Review, 22 (3) 45-54,1978.

MONK, Meredith. "Quarry" (1976). The Drama Review, 20 (3)51-66, 1976.

. "Vessel" (1971). The Drama Review, 20 (3) 51-66,1976.

SHERMAN, Stuart. "Hamlet". The Drama Review, 23 (1) 69-78,1979.

SMTTH, Jack. "The Horror of Sex" (1975). In: BRECHT, Stefan.Queer Theatre. New York, Surkamp Verlag, 1978, pp. 157-177.

STEINER, Rudolf. "The Portal of Iniciation' (1910). The DramaReview, 22 (2) 70, 1978.

WARHOL, Andy. "Andy WarhoVs Last Love". In: SHANK,Theodore. The American Alternative Theater. New York,Grove Press Inc., 1982, pp. 182-189.

WILSON, Bob. Ka Mountain, Guardenia Terrace. New York(mimeog.), 1972.

. Life A Times of Joseph Stalin. New York (mimeog.),1973.

. Dia Log/A Mad Man a Mad Giant. New York(mimeog.), 1974.

. "A Letter for Queen Victoria" (1975. In: MARRANCA, Bonnie. Theater of Images. New York, Drama Book,1977, pp. 46-109.

. The S Value of Man" (1975). Theater, Yale School ofDrama, 9 (2) 90-109, Spring, 1978.

. "/ was sitting on my Patio thisguy appeared I thoughtl was hallucinating" (1977). Drama Review, 29 (4) 75-78,1977.

-. Vídeo 50 (roteiro para vídeo). New York, (mimeog.),1978.

. Death Destruction of Detroit (roteiro para vídeo).New York, (mimeog.), 1981.

Artigos/Textos/Poesias

THE CLASH. (Letras de Música). In: COON. Caroline. ThePunk-New Wave Rock Explosion. London, Oms., 1982, pp.61-91.

GINSBERG, Allen. "I saw the sunflower monkeys of the moon."In: KOSTEL, Richard. Text-Sound Texts. New York, Wil.Co., 1980.

KAPROW, Allan. "A Educação do A-Artista". Revista Malasar-tes, 3, pp. 34-36, 1976.

KEROUAC, Jack. "Sound Poetry". In: KOSTEL, Richard. Text-Sound Texts. New York, Wil. Co., 132-160, 1980.

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Page 169: Cohen Renato Performance Como Linguagem

KNOWLES, Cristopher. "Sound Poetry". In: KOSTEL, Richard.Text Sound Texts. New York, Willian Co., 1980, pp. 240-242.

THE SEX PISTOLS. (Letras de Música). In: COON, Caroüne,The Punk-New Wave Rode Explosion. London, Oms., 1982,pp. 47-60.

STEIN, Gertrude. *Many Many Women*. In: KOSTEL, Richard.Text Sound Texts. New York, William Co., 1980, pp. 208-214.

Roteiro de peças/Performance» assistidas:

Evento: "14 Noites de Performance"Promoção: Sesc Pompeia.Local: Teatro do Sesc Pompéia/SP.Data: de 12 a 25 de julho de 1982.Participantes: Patrício Bisso, Arnaldo & Go., Fausto & ThomasBrum ("Robôs Efêmeros"), Cindido Serra A A Gang, Caria Au-tuori ("Performance Corporal"), Núcleo Música Nova ("Musi-catalise"), Denise Stocklos ("Show de Mímica'), Leon Ferrari("Concerto de Percantias"), Taller de Invest. Teatrales e NinaMoraes, Verdadeiros Artistas ("A Curva da Tormeota"), Gang 90e Absurdettes, Ivaldo Bertazzo, Viajou sem Passaporte, Manhas& Manias, Teatro do Ornitorrinco (canta "Brecht e Wefll"),Ivald Granatto ("O Pai da Performance Brasileira"), TVDO, Ar-tur Matuck ("Leüio de Arte NSo-Intemadonal").

Evento: "Ciclo Nacional de Performance"

Promoção: FUNARTE.

Local: Sala Guiomar Novaes/SP.Data: 03 a 05 de agosto de 1984.Participantes: Ivald Granatto ("Top Secret"), Paulo Yutaka ("AConstrução"), Artur Matuck ("Leilão de Arte Não-Internacional") EdgarRibeiro ("O Pior Espetáculo da Terra"), Guto Lacaz ("EletroperformanceAlém da Realidade"), Paulo Bruscky ("Lógica Versus Acaso"), José EduardoGarcia de Moraes flludir o Mágico"), Eduardo Barreto (" Acabou?") RogérioNazari/Carios Wladimirsky ("Entre a Baleia e o Tigre"), Luis Gü Finguermann(Gil do Extintor).

Evento: "O Próximo Capítulo — Performances Ponkã"Promoção: Grupo PonkS.Local: Teatro Eugênio Kusnet.Data: 19 de outubro a 18 de novembro de 1984.Roteiro: Paulo Yutaka — direção: Seme Lntfi.Participantes: Grupo Ponkã (Paulo Yutaka, Carlos Barreto, AnaLúcia Cavalieri, Celso Saiki, Milton Tanaka, Graciela de Leonar-dis e Hector Gonzales) Convidados: J. C. Violla, Celina Fuji,Claudia Alencar, Mira Haar, Luiz Galizia, Tvald Granatto, TatoFicher, José Celso Martinez Corrêa e outros.Título das Performances: "Kodomo no Koto", "RE-lações Afeti-vas*, "Gólen", "Neo nazi", "Moreno Claro" etc.

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Evento: "Arte Performance"

Promoção: Centro Cultural São Paulo.Local: Sala Paulo Emílio Salles Gomes/Centro Cultural - SP.Data: 05 a 11 de novembro de 1984.Participantes: Artur Matuck, Emanuel Pimenta & Dante Pigna-tari, Hudinilson Ir. & Claudia Alencar, Andrés Guibert, FernandoZarif, Osmar Dalio, Guto Lacaz e Rafic Jorge Farah.

Performances fora de Festivais

Plan K?

Local: Sesc Pompéia.Data: março de 1982.

Otávio Donasci

"Vídeo Teatro"

Local: Galeria de Arte São Paulo.Data: maio de 1982.

Aguillar e a Banda Performàtica"A Noite do Apolicalipse Final"Local: Centro Cultural Sâo Paulo.Data: 28 de abril de 1983.

Grupo de Arte Pon-kã"Tempestade em Copo D'Água"Local: T.B.C.Data: abril de 1983.

Ivald Granatto

"O Teatro que eu vi na Broadway"

Local: Carbono 14.Data: 06 de maio de 1983.

Guto Lacaz"Eletroperformance I"Local: Ponderosa Bar.Data: junho de 1983.

Fluxus

"Performances Diversas"Local: 7.' Bienal de Artes de São Paulo.Data: novembro de 1983.

2. O Plan K é um grupo belga que trabalha com a arte deperformance. Nessa apresentação o grupo apresentou quadros ins-pirados m imagens de Boch e Magritte.

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Page 171: Cohen Renato Performance Como Linguagem

Valéria Kimachi & Didi Nascimento

"Zoique"

Local: Madame SatãData: 29 de novembro de 1986.

Harpias & Marcelo Mansfield & Júlio Sarkany e outros"Creme de Ia Creme"Local: Madame SatãData: dezembro de 1986.

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TEATRO NA PERSPECTIVA

O Sentido e a MáscaraGerd A. Bornheim (D008)

A Tragédia GregaAlbin Lesky (D032)

Maiakóvski e o Teatro deVanguarda

Ângelo M. Ripellino (D042)O Teatro e sua Realidade

Bernard Dort (D 127)Semiologia do Teatro

J. Guinsburg, J. T. CoelhoNetto e Reni C. Cardoso(orgs.) (D138)

Teatro ModernoAnatol Rosenfeld (D153)

O Teatro Ontem e HojeCélia Berrettini (D166)

Oficina: Do Teatro ao Te-AtoArmando Sérgio da Silva(D175)

O Mito e o Herói no ModernoTeatro Brasileiro

Anatol Rosenfeld (D 179)Natureza e Sentido daImprovisação Teatral

Sandra Chacra (D183)Jogos Teatrais

Ingrid D. Koudela (D189)Stanislávski e o Teatro de Artede Moscou

J. Guinsburg (D192)O Teatro Épico

Anatol Rosenfeld (D 193)Exercício Findo

Décio de Almeida Prado(D199)

O Teatro Brasileiro ModernoDécio de Almeida Prado(D211)

Qorpo-Santo: Surrealismo ouAbsurdo?

Eudinyr Fraga (D212)Performance como Linguagem

Renato Cohen (D219)

Grupo Macunaíma:Carnavalização e Mito

David George (D230)Bunraku: Um Teatro de Bonecos

Sakae M. Giroux e TaeSuzuki (D241)

No Reino da DesigualdadeMaria Lúcia de Souza B.Pupo (D244)

A Arte do AtorRichard Boleslavski (D246)

Um Vôo BrechtianoIngrid D. Koudela (D248)

Prismas do TeatroAnatol Rosenfeld (D256)

Teatro de Anchieta a AlencarDécio de Almeida Prado(D261)

A Cena em SombrasLeda Maria Martins (D267)

Texto e JogoIngrid D. Koudela (D271)

O Drama Romântico BrasileiroDécio de Almeida Prado(D273)

Para Trás e Para FrenteDavid Bali (D278)

Brecht na Pós-ModernidadeIngrid Dormien Koudela(D281)

João CaetanoDécio de Almeida Prado (EOll)

Mestres do Teatro IJohn Gassner (E036)

Mestres do Teatro IIJohn Gassner (E048)

Artaud e o TeatroAlain Virmaux (E058)

Improvisação para o TeatroViola Spolin (E062)

Jogo, Teatro & PensamentoRichard Courtney (E076)

Teatro: Leste & OesteLeonard C. Pronko (E080)

Page 175: Cohen Renato Performance Como Linguagem

Uma Atriz: Cacilda BeckerNanei Fernandes e Maria T.Vargas (orgs.) (E086)

TBC: Crônica de um SonhoAlberto Guzik (E090)

Os Processos Criativos deRobert Wilson

Luiz Roberto Galizia (E091)Nelson Rodrigues: Dramaturgiae Encenações

Sábato Magaldi (E098)José de Alencar e o Teatro

João Roberto Faria (El00)Sobre o Trabalho do Ator

Mauro Meiches e SilviaFernandes (El03)

Arthur de Azevedo: A Palavra eo Riso

Antônio Martins (E107)O Texto no Teatro

Sábato Magaldi (El 11)Teatro da Militância

Silvana Garcia (El 13)Brecht: Um Jogo deAprendizagem

Ingrid D. Koudela (El 17)O Ator no Século XX

Odette Aslan (El 19)Zeami: Cena e Pensamento Nô

Sakae M. Giroux (El22)Um Teatro da Mulher

Elza Cunha de Vincenzo(E127)

Concerto Barroco às Óperas doJudeu

Francisco Maciel Silveira(E131)

Os Teatros Bunraku e Kabuki:Uma Visada Barroca

Darci Kusano (El 33)O Teatro Realista no Brasil: 1855-1865

João Roberto Faria (El36)Antunes Filho e a DimensãoUtópica

Sebastião Milaré (E140)O Truque e a Alma

Ângelo Maria Ripellino (E145)

A Procura da Lucidez emArtaud

Vera Lúcia Felício (E148)Memória e Invenção: GeraldThomas em Cena

Sílvia Fernandes (El49)O Inspetor Geral de Gógol/Meyerhold

Aríete Cavaliere (E151)O Teatro de Heiner Müller

Ruth Cerqueira de OliveiraRohl (E152)

Falando de ShakespeareBarbara Heliodora (E155)

Moderna DramaturgiaBrasileira

Sábato Magaldi (El59)Work in Progress na CenaContemporânea

Renato Cohen (E162)Stanislávski, Meierhold e Cia

J. Guinsburg (El70)Apresentação do TeatroBrasileiro Moderno

Décio de Almeida Prado(E172)

Da Cena em CenaJ. Guinsburg (E175)

O Ator CompositorMatteo Bonfitto (E177)

Ruggero JacobbiBerenice Raulino (El 82)

Papel do Corpo no Corpo do AtorSônia Machado Azevedo(E184)

O Teatro em ProgressoDécio de Almeida Prado(E185)

Édipo em TebasBernard Knox (E186)

Do Grotesco e do SublimeVictor Hugo (EL05)

O Cenário no AvessoSábato Magaldi (EL10)

A Linguagem de BeckettCélia Berrettini (EL23)

Idéia do TeatroJosé Ortega y Gasset (EL25)

Page 176: Cohen Renato Performance Como Linguagem

O Romance Experimental e oNaturalismo no TeatroEmile Zola (EL35)

Duas Farsas: O Embrião doTeatro de Molière

Célia Berrettini (EL36)Marta, A Árvore e o Relógio

Jorge Andrade (T001)O Dibuk

Sch. An-Ski (T005)Leone de 'Sommi: Um Judeu noTeatro da RenascençaItaliana

J. Guinsburg (org.) (T008)Urgência e Ruptura

Consuelo de Castro (T010)Pirandello do Teatro no Teatro

J. Guinsburg (org.) (Tüll)Canetti: O Teatro Terrível

Elias Canetti (TO 14)

Três Tragédias GregasGuilherme de Almeida eTrajano Vieira (SO22)

Edipo ReiTrajano Vieira (S031)

Teatro e Sociedade:Sliakespeare

Guy Boquet (KOI5)Eleonora Duse: Vida e Obra

Giovanm Pontiero (PERS)História Mundial do Teatro

Margot Berthold (LSC)O Jogo Teatral no Livro doDiretor

Viola Spolin (LSC)Dicionário de Teatro

Patrice Pavis (LSC)Jogos Teatrais: O Fichário deViola Spolin

Viola Spolin (LSC)