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III SIMPÓSIO SOBRE A BIODIVERSIDADE DA MATA ATLÂNTICA. 2014 33
Coleções Biológicas e Coleções de DNA e sua Aplicação ao Estudo da Biodiversidade
Paulo Andreas Buckup 1
1Dept. de Vertebrados, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
E-mail: [email protected]
Introdução
Um pressuposto básico para os programas de conservação da biodiversidade é o
conhecimento daquilo que se deseja conservar. O conceito de biodiversidade envolve
vários aspectos da diversidade natural, que abrangem desde a variabilidade genética de
micro-organismos invisíveis a observação direta até serviços ambientais de grande valor
econômico e social, tais como a disponibilidade de mananciais de água para consumo
humano e geração de energia. Em todos estes aspectos, no entanto, existe um importante
foco na identificação das espécies biológicas como unidades básicas da manutenção da
diversidade e serviços associados. Infelizmente, no entanto, a maioria das espécies ainda
não é descrita ou não pode ser facilmente identificada devido à falta de conhecimento
sobre seus limites morfológicos e geográficos. Neste contexto, a preservação de
exemplares e amostras de DNA em grandes coleções biológicas é fundamental para a
identificação das espécies e, consequentemente, para o conjunto de esforços destinados a
conservação da biodiversidade. Mesmo quando incluídas no interior de áreas protegidas, a
valorização das espécies protegidas é dependente da sua representação nas coleções
científicas que permitem e validam sua identificação.
A disseminação de técnicas moleculares tem modificado a forma como a
biodiversidade é acessada (Fouquet et al. 2007; Vieites et al. 2009), assim como a
discussão acerca do limite entre as espécies (James 1999; Köhler et al. 2005). A
delimitação de espécies é fundamental em estudos de sistemática, evolução, biogeografia,
ecologia e conservação (Wilson 2004). Dados moleculares têm se mostrado promissores no
refinamento da prática taxonômica de grupos complexos e têm contribuído para estudos
que integram diferentes conjuntos de dados e métodos para lidar com a delimitação de
espécies (e.g. Page et al. 2005). O uso de marcadores moleculares é recomendado
especialmente em estudos de relações de parentesco de grupos que divergiram
recentemente, visto que, frequentemente, para estes grupos, pode haver escassez de
caracteres morfológicos informativos a serem analisados (Meyer 1997; Avise 2004).
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No contexto das técnicas moleculares úteis para a identificação de espécies,
destaca-se o uso de sequências DNA. Estas sequências podem ser usadas para
eficientemente identificar espécies de forma análoga ao uso de códigos de barra na
identificação de mercadorias em lojas e depósitos de material. O chamado DNA barcode é
um fragmento do gene mitocondrial Citocromo c Oxidase I (COI), denominado região de
Folmer, com aproximadamente 650 pares de bases (pb) (Ivanova et al., 2007), que tem
grande variabilidade entre espécies de vertebrados, mas é relativamente conservado dentro
de cada espécie (Hebert et al., 2003). Por causa desta característica este fragmento foi
escolhido como marcador genético no sistema mundial de bioidentificação de animais
conhecido como International Barcode of Life (IBOL; http://www.ibol.org). Este
marcador genético está sendo amplamente usado por pesquisadores dos mais variados
grupos de animais, existindo protocolos e iniciadores (primers) bem estabelecidos e grande
quantidade de resultados já disponíveis através do Sistema de Dados do Código de Barras
da Vida (Becker et al., 2011; BOLDSYSTEMS, http://www.boldsystems.org/). No Brasil
esta iniciativa é representada pela Rede Brasileira de Identificação Molecular da
Biodiversidade (http://brbol.org/pt-br).
A grande ampliação do uso de metodologias moleculares no estudo da
biodiversidade criou novos desafios e demandas para as coleções biológicas. Estas novas
demandas envolvem tanto a agregação de novas metodologias de custódia de material
biológico associadas à manutenção do material testemunho (vouchers) utilizado na
validação de dados moleculares, como a organização de novos tipos de coleções, como é o
caso das coleções de tecidos e coleções de extratos de DNA destinadas a prover o material
necessário para os procedimentos de geração de sequências propriamente ditos. Algumas
das soluções possíveis para estes novos desafios são apresentadas e discutidas a seguir.
Novas técnicas de fixação e preservação de exemplares. Tradicionalmente os métodos
de fixação de tecidos e preparação de exemplares destinados a incorporação em coleções
científicas valoriza a preservação, a longo prazo, das características de interesse para
estudos morfológicos. Infelizmente, no entanto, a maioria destes métodos é destrutiva ou
inadequada para a conservação das moléculas de DNA. Assim, por exemplo, a maioria dos
exemplares de vertebrados são fixados em solução de formalina 10% ou taxidermizados
através de uso de métodos e substâncias extremamente nocivos para a preservação de
DNA. Este problema pode ser contornado através de duas alternativas distintas para
fixação de tecidos no momento da coleta: (1) a coleta de alíquotas de tecidos a serem
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congeladas e/ou fixadas no campo separadamente dos exemplares a serem incorporados
como material testemunho nas coleções científicas, e (2) a fixação e conservação de
exemplares inteiros em líquidos conservadores (e.g., etanol anidro) apropriados para a
preservação das moléculas de DNA, para posterior remoção de alíquotas de tecido. No
primeiro caso, é necessário estabelecer protocolos e sistemas de rotulagem que permitam
assegurar o vínculo entre as amostras de tecidos e o material que será incorporado à
coleção de material testemunho. No segundo caso é preciso lidar com a preservação de
exemplares e líquidos e recipientes não convencionais. Nos dois casos, no entanto, é
necessário manter a correlação entre os exemplares preservados de forma tradicional e os
materiais preservados para estudos moleculares. Frequentemente, os dois tipos de
materiais são coletados num único evento de coleta e precisam coexistir fisicamente na
mesma coleção científica. O uso de mais de um método de preservação é necessário para
permitir a realização de estudos de morfologia baseados em exemplares fixados de forma
tradicional e sua associação com os exemplares destinados a estudos moleculares. Estes
últimos podem ter suas características morfológicas e de coloração severamente prejudicas,
por exemplo, pela desidratação e solubilização de compostos causada pelo uso de etanol
anidro.
Necessidade de rotulagem individual. Um dos pressupostos básicos para a geração e uso
de códigos de barra moleculares é a necessidade de existir uma relação unívoca entre a
sequência de DNA marcador e a identidade da espécie que ela representa. A integridade
desta relação somente pode ser garantida e verificada se o exemplar usado para gerar a
sequência identificadora for individualmente rotulado.
Um dos principais motivos para o uso de marcadores moleculares é justamente a
dificuldade de se produzir identificações inequívocas com base em estudos morfológicos.
Mesmo entre os grupos de vertebrados existe um grande número de espécies crípticas e
que simplesmente são podem ser adequadamente identificadas por falta de conhecimento
morfológico. Em algumas áreas da Amazônia, por exemplo, o número de espécies de
peixes que não podem ser identificadas pode chegar a 30 ou 35 % dos morfótipos presentes
numa única localidade. O número de espécies não identificáveis ou sujeitas a erros de
identificação pode ser muito maior entre os grupos de invertebrados e pode chegar
abranger a imensa maioria em alguns casos. Neste contexto é comum a ocorrência de lotes
mistos, isto é, grupos de exemplares que, inadvertidamente, incluem mais de uma espécie.
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Nestes casos é absolutamente imperativo que as sequências de DNA possam ser associadas
ao exemplar exato que foi utilizado para a obtenção do tecido que lhe deu origem.
A associação entre sequências identificadoras de DNA e exemplares testemunho é
facilmente estabelecida em coleções que tradicionalmente envolvem a catalogação de
indivíduos, como é o caso das coleções de mamíferos. Em coleções que tradicionalmente
envolvem a catalogação de exemplares em lotes de representantes de uma única espécie,
como é o caso das coleções ictiológicas, no entanto, é necessário estabelecer mecanismos
que permitam associar as amostras de tecidos aos indivíduos. Isto é necessário porque é
muito comum perceber-se, seja através dos resultados moleculares, seja através do
reexame morfológico, que os lotes de indivíduos incluem mais de uma espécie.
Para evitar os problemas associados à existência de lotes mistos, recomenda-se a
adoção de sistemas de catalogação de tecidos baseados na numeração de indivíduos. Estes
sistemas são facilmente implantados em coleções de tecidos (e extratos de DNA) que
geralmente são mantidas em criotubos individualmente ordenados, porém representam um
desafio significativo para o controle dos exemplares testemunho mantidos fisicamente em
lotes. No caso do material testemunho, cria-se uma intersecção e certo grau de duplicidade
nos sistemas de catalogação. Felizmente estas dificuldades podem ser contornadas através
da adoção de sistemas de sinalização, da adoção de planilhas de triagem e custódia, e
protocolos bem estruturados de processamento de material.
Rotulagem de material testemunho. A rotulagem de indivíduos é tradicionalmente
encarada como uma dificuldade para coleções científicas organizadas em lotes. A
catalogação de indivíduos no mesmo sistema adotado para lotes de múltiplos indivíduos é
possível porém geralmente inviável diante dos custos de manutenção de potes, rótulos e
espaço físico separados para cada indivíduo. A solução mais adequada nestes casos é
afixar números correspondentes às amostras da coleção tecidos nos indivíduos
propriamente ditos. Esta técnica é amplamente difundida em laboratórios de citogenética,
onde rótulos de tecido, de plástico ou papel vegetal resistente são afixados aos exemplares
dissecados por meio de linha de boa qualidade. Este tipo de rótulo pode ser usado em
exemplares de maior porte, porém é difícil de prender a exemplares de pequeno porte e
pode causar danos físicos ao exemplar. Para exemplares pequenos é possível isolar os
indivíduos e seus rótulos em criotubos ou tubos de centrifugação. Também é possível
imprimir rótulos de pequeno tamanho e inseri-los em cavidades dos indivíduos (e.g., fenda
opercular em peixes, cavidade oral em outros vertebrados). Esta última opção é vantajosa
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no caso de material preservado em etanol absoluto, pois, neste caso, os exemplares ficam
mais rígidos, o que ajuda a impedir que a etiqueta se desloque acidentalmente.
Sinalização de material. Convivência de material fixado com diferentes objetivos numa
mesma coleção científica exige cuidados especiais para evitar danos aos tecidos causados
pelo contato com substâncias que degradam o DNA. Material destinado a estudos de DNA
precisa ser mantido em freezers e, sobretudo, livre de contato com contaminantes que
possam destruir o material genético. Esta necessidade é conflitante com a necessidade de
manipulação dos exemplares para fins de identificação, catalogação, etiquetagem, etc.
Frequentemente o material é manipulado por especialistas visitantes e estudantes que
podem não ter familiaridade com os métodos de preservação de DNA. Nestas condições é
conveniente usar sistemas de sinalização que permitam facilmente distinguir o material
fixado para estudos morfológicos do material fixado para estudos de biodiversdiade
molecular. Uma experiência bem sucedida foi adotada na Coleção Ictiológica do Museu
Nacional através do uso de fitas coloridas amarradas no gargalo dos potes da coleção, de
forma similar a sinalização amplamente utilizada em museus para indicar exemplares de
tipos primários e secundários que necessitam de cuidados especiais. No caso da Coleção
Ictiológica do Museu Nacional utilizam-se fitas amarelas para indicar lotes de exemplares
destinados à remoção de tecidos e fitas verdes para indicar material fixado em etanol
anidro que do qual já foi removida uma amostra de tecido. Estes exemplares são mantidos
desta forma para distingui-los do material fixado em formalina e mantidos em etanol 70%
e podem, eventualmente, ser usados para obter tecido adicional em caso de perda das
amostras já extraídas. Uma vez que a identificação de espécies geralmente somente pode
ser confirmada em laboratório, é comum dispor-se de mais exemplares fixados em etanol
anidro do que a quantidade necessária para inclusão imediata na coleção de tecidos.
Nestes casos, os potes são sinalizados com fitas roxas e representam amostras
potencialmente incorporáveis na coleção de tecidos. A durabilidade do DNA em
exemplares mantidos em temperatura ambiente é limitada, porém sua preservação em
etanol representa um potencial de uso de pelo menos um ano, ou mesmo muitos anos no
caso de uso de técnicas aprimoradas de recuperação de DNA antigo. No caso da Coleção
Ictiológica do Museu Nacional os lotes destinados a estudos moleculares e morfológicos
são provisoriamente mantidos lado-a-lado com elásticos de borracha, podendo
eventualmente ser reunidos num mesmo pote de vidro como forma de economizar espaço
físico.
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Protocolos de triagem e custódia de material. A necessidade de associar amostras de
tecidos com o material testemunho exige cuidados especiais, que normalmente não são
necessários em coleções dedicadas exclusivamente a estudos de diversidade morfológica.
Baseado em nossa experiência na curadoria de grandes coleções científicas, que envolvem
múltiplos projetos e interesses, recomendamos a adoção dos seguintes protocolos mínimos.
1. Adoção de um sistema de numeração de eventos de coleta (“números de
campo” ou “field numbers”) que permita identificar de forma inequívoca
qualquer evento de coleta de material biológico. Um exemplo de sistema de
numeração de campo bem sucedido é método de Codificação de Números de
Campo constante na Norma Técnica para Informatização de Coleções
Ictiológicas adotada pela Comissão de Informática da Sociedade Brasileira de
Ictiologia
(http://www.museunacional.ufrj.br/vertebrados/vertebra/Norma.1.1.htm). Um
sistema deste tipo evita a ocorrência de duplicidade de números usados por
diferentes pesquisadores ou por erro de controle em numerações sequenciadas.
2. O uso de fichas de campo padronizadas que devem necessariamente ser
preenchidas no momento da coleta. Além dos dados de procedência usuais
(localidade, data, nomes dos coletores, georeferenciamento obtido por GPS,
etc.) esta ficha deve conter as anotações relativas à identificação das amostras
de tecidos dissecados no momento da coleta. Estas fichas devem ser arquivadas
nas instituições responsáveis pela curadoria das amostras e, em nenhuma hiótde
devem ser tratadas como registros pessoais, sob pena de se perder o vínculo
entre as amostras e os dados de campo, e, consequentemente, a validade das
sequências identificadoras eventualmente obtidas nos estudos moleculares.
3. O uso de fichas de triagem de material coletado que permitam associar as
amostras com códigos identificadores independentes da identificação
taxonômica, que frequentemente é subjetiva e sujeita a alterações. Estes
códigos identificadores podem ser facilmente gerados através da combinação do
código do evento de coleta com um número sequencial correspondente ao
morfótipo reconhecido no momento da triagem do material recebido do campo.
A principal vantagem deste sistema é a rotulagem de amostras de forma
independente da identificação das espécies. Este número permite assegurar a
coneção lógica entre amostras de tecidos e material testemunho mesmo nos
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casos em que o material ainda não foi identificado ou nos casos em que a
identificação taxonômica é alterada posteriormente por um especialista. Este
sistema de numeração de lotes também permite associar as amostras fixadas
para estudos morfológicos com as amostras fixadas para estudos moleculares.
Um modelo de planilha de triagem é apresentado na Figura 1. Este tipo de
planilha também é muito conveniente na medida que facilita e torna mais
eficiente a catalogação do material na coleção científica, mantendo organizados
os vínculos entre amostras e destas com os dados de campo.
Figura 1. Modelo de planilha de triagem de material ictiológico em uso no Museu Nacional. A planilha vincula os diferentes tipos de amostras aos dados de localidade associados a um Número de Campo. Cada lote de exemplares de mesma espécie é identificado pela combinação do número de campo com um número sequencial (SEQ). As quantidades de exemplares destinados a estudos morfológicos e molecualres são registrados nas colunas “Formol” e “Etoh”. A existência de alíquotas de tecido obtidas em campo a partir de exemplares destinados a estudos morfológicos é registrada na coluna “Tec.”. No momento da catalogação do material testemunho, os números de registro na Coleção Ictiológica são anotados na coluna MNRJ. A existência de informações sobre a existência de exemplares inteiros ou de tecidos nas colunas “Etoh” e “Tec.” remetem à Planilha de Pré-processamento de Material Genético (Fig. 2).
No caso de coleções biológicas em que o material é organizado em lotes de
indivíduos, é necessário utilizar uma planilha adicional em que são registrados os dados
pertinentes às amostras de tecidos. Este tipo de planilha permite registrar os dados relativos
às amostras de tecidos destinadas a estudos moleculares (tipo de tecido preservado,
identificação taxonômica, tipo de líquido preservativo, etc.), e deve permitir, sobretudo, o
estabelecimento dos vínculos entre os dados da ficha de campo, os dados de catálogo do
material testemunho, e a relação entre os códigos de identificação das amostras no campo e
no laboratório e os números de registro na coleção de tecidos. Esta planilha também é
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usada diretamente na catalogação do material na base de dados institucional da coleção de
tecidos. A Figura 2 apresenta um exemplo de planilha de preparação de dados de amostras
de tecidos em uso no Museu Nacional.
Figura 2. Modelo de Planilha de Pré-processamento de Material Genético em uso na Coleção Ictiológica do Museu Nacional. A combinação do Número de Campo com” -> “combinação do número de campo (anotado no campo superior) com o número do lote (coluna 1) permite vincular as amostras de tecido ao lote que contém o exemplar testemunho. As colunas 7 e 8 são usadas para registras os números de catálogo, respectivamente, da Coleção de Tecidos de Peixes e da Coleção Ictiológica.
Informatização de dados. No final do Século 20 o uso de bases de dados eletrônicos para
o armazenamento das informações sobre o material registrado em coleções biológicas
tornou-se amplamente difundido, existindo atualmente muitos sistemas de gerenciamento
de dados de coleções. A integração de coleções tradicionais com coleções de tecidos e a
geração de sequências identificadoras, no entanto, representa desafios adicionais que nem
sempre são adequadamente atendidos através dos sistemas tradicionais de curadoria de
coleções. A triagem, organização processamento do material destinado a estudos
moleculares pode se desenvolver em ritmos e formas diferentes daqueles adotados para o
processamento tradicional. Além disto, o registro e catalogação de diferentes tipos de
materiais pode envolver coleções e software distintos, especialmente nos casos em o
registro do material para estudo morfológico é realizado em lotes, o que é incompatível
com tratamento das amostras para estudo molecular que são tratadas de forma
individualizada. Por fim, a disponibilização dos resultados nas bases de dados
internacionais como GeneBank e o BoldSystems, exige o registro e controle de
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informações inerentes ao processamento laboratorial das amostras, tais como as
informações sobre os primers utilizados e segmentos de gene amplificados. Estas
informações são produzidas nos laboratórios moleculares independentemente da curadoria
das coleções tradicionais. Atualmente, a disseminação de múltiplos marcadores genéticos
em estudos de biodiversidade torna cada vez mais frequente a manutenção de coleções de
extratos de DNA genômicos que são repetidamente utilizados. Em alguns caso é
necessário identificar separadamente o produto de diferentes procedimentos de extração de
DNA genômico. Assim pode ser conveniente o estabelecimento de uma coleção de
extratos com um sistema de numeração próprio do laboratório, independente dos sistemas
de curadoria das coleções de origem dos tecidos.
A integração de todas estas etapas pode ser demasiadamente complexa para ser
feita através de uma base de dados centralizada, e envolve questões de segurança de dados
que requerem acesso diferenciado entre diferentes usuários das coleções. A possibilidade
de estabelecimento de redes colaborativas através de redes locais de computadores ou
mesmo da Internet (através de métodos de computação em nuvem) permite particionar o
acesso às bases de dados entre as diferentes etapas da cadeia de custódia de amostras
(Figura 3). Assim as bases de dados de catalogação de material testemunho e de amostras
de tecidos podem ser mantidas por técnicos e administradores de coleção. As planilhas de
controle de processamento de tecidos podem ser mantidas de forma independente na
nuvem computacional pelos técnicos responsáveis pela dissecção de tecidos e organização
física das amostras, sem necessidade acesso às bases de dados mais críticas. Da mesma
forma, os dados relativos aos extratos de DNA podem ser mantidos de forma independente
pelos técnicos do laboratório molecular, os dados sobre as reações de amplificação de PCR
e sequenciamento dos produtos destas reações podem ser administrados pelo pessoal
envolvido na produção das sequências identificadoras propriamente ditas. Por sua vez, a
integração de diferentes conjuntos de dados pode ser feita através de sistemas de base de
dados relacionais, os quais permitem vincular diferentes tabelas (no sentido computacional
do termo) de forma proporcionar uma visão integrada das informações de todos os
processos que interligam a coleta do material biológico à efetiva produção, publicação e
uso das sequências identificadoras DNA.
42 BUCKUP: COLEÇÕES BIOLÓGICAS E COLEÇÕES DE DNA.
Figura 3. Diagrama esquemático ilustrando a integração de diferentes coleções científicas, processos e bases de dados envolvendo a geração de sequências identificadoras de DNA (DNA barcodes) de vertebrados no Museu Nacional.
A integração dos dados dos diferentes tipos de amostras e processos naturalmente
somente é possível quando são adotados sistemas de registro de informação e protocolos
de custódia que assegurem o uso de números de registros padronizados em todas as etapas
da geração das sequências identificadoras.
Conclusão
A utilização de sequências identificadoras de DNA tem se mostrado uma eficiente
ferramenta em estudos sobre biodiversidade. Destacam-se como exemplos bem sucedidos
os estudos de ictiofaunas de bacias inteiras (Pereira et al., 2011; Carvalho et al., 2011). A
eficiência do uso de DNA barcode na identificação de espécies de peixes pode chegar a
99,2%, mesmo em áreas megadiversas com a Região Neotropical (Pereira et al., 2013). A
validade do uso das sequências identificadoras, no entanto, é fundamentalmente
dependente da sua correta associação com os exemplares testemunhos utilizados para sua
geração. O depósito do material testemunho em coleções científicas e a adoção de novos
métodos de curadoria visando assegurar a perenidade e disponibilidade da associação entre
as amostras, as bases de dados de coleções científicas e as sequências moleculares
impõem-se com novas demandas a serem enfrentadas pelos curadores de coleções
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biológicas. Os aspectos de organização física e informacional discutidos acima devem ser
considerados no atendimento destas novas demandas.
Agradecimentos
As atividades de pesquisa do autor são apoiadas pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (proc. 307610/2013-6, 562308/2010-5,
564940/2010-0, 476822/2012-2) e Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa
do Estado do Rio de Janeiro - FAPERJ (Proc. 111.404/2012). O autor agradece a
hospitalidade da Associação de Amigos do Museu de Biologia Mello Leitão – SAMBIO, e
de Luisa M. Sarmento Soares e Ronaldo F. Martins-Pinheiro em Santa Teresa. Marcelo
Weksler, Daniel F. Almeida e William Bryann Jennings contribuíram significativamente
para a organização do Laboratório de Pesquisa em Biodiversidade Molecular do Museu
Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, cujo funcionamento serviu de base para
as ideias aqui apresentadas.
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