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COLEÇÃO ECOS DA HISTÓRIA

COLEÇÃO ECOS DA HISTÓRIA · (D. Maria Isabel, rainha de Espanha, numa sua carta de Madrid para o pai, em 4.12.1817) … E desejo que governe como governou sua Mãe… (D. Maria

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COLEÇÃO

E C O S D A H I S T Ó R I A

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Um livro vai para além de um objeto. É um encontro entre duas pessoas através da palavra escrita. É esse encontro entre autores e leitores que a Chiado Books procura todos os dias, trabalhando cada livro com a dedicação de uma obra única e derradeira, seguindo a máxima pessoana “põe quanto és no mínimo que fazes”. Queremos que este livro seja um desafio para si. O nosso desafio é merecer que este livro faça parte da sua vida.

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© 2018, Alice Lázaro e Chiado BooksE-mail: [email protected]

Título: Andorinhas e Sabiás – Os Casamentos em Espanha das Filhas de D. João VI (1810-1823)

Editor: Rita CostaCoordenador Editorial: Vasco Duarte

Composição gráfica: Andreia MonteiroCapa: Vasco Lopes

Revisão: Alice Lázaro

Impressão e acabamento: Chiado

P r i n t

1.ª edição: Agosto, 2018ISBN: 978-989-52-3821-7

Depósito Legal n.º 443856/18

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A l i c e L a z a r o

Andorinhas e SabiasOs Casamentos em Espanha das Filhas de D. João VI

(1810-1823)

Portugal | Brasil | Angola | Cabo Verde

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Nos trois jeunes Princesses ont été parfaites ; les deux qui sont avec le père ne l’ont pas quitté d’un instant et l’ainée que votre oncle avoit eu l’occasion de voir le mardi

4 et à laquelle il avoit fortement conseillé de parler à son père n’a pas peu contribue à lui faire prendre la résolution qui a sauvé l’État. Pourquoi notre duc de Bourbon ne veut--il pas se marier et procurer à la France cette aimable Isa-bel Maria, elle seroit si belle femme qu’elle est bonne fille

elle et sa sœur sont des véritables Antigone.

Baronesa de Neville

(1823)

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… Agora vou dizer a VM que fomos ao Escorial e à Granja [de St.º Ildefonso] e vimos as fontes que são lindas e óptimas, mas eu gostei mais do Escorial, porque é muito grande. Parece-se muito com Mafra, a igreja é magnífica e fazem-se as cerimónias muito bem e a catuxão perfeita-mente. Eu lembrei-me muito de VM pois sei quanto gosta

de todas estas coisas …

(D. Maria Isabel, rainha de Espanha, numa sua carta de Madrid para o pai, em 4.12.1817)

… E desejo que governe como governou sua Mãe…

(D. Maria Tersa de Bragança, Princesa da Beira, numa sua carta de Sevilha para o pai, em 7.6.1823)

…E eu peço a VM pelo amor que lhe professo, que viva com muita cautela e que não consinta em nada que

seja contra os seus direitos e que não admita senão as Leis antigas do reino, pois com elas têm sido felizes os Povos e

não com outras…

(Infanta D. Maria Francisca de Assis, numa sua carta de Sevilha para o pai, em 18.10.1823)

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Andorinhas e sabiás

Interpela-nos o rasgo audacioso do Príncipe-Regente e futuro Rei D. João VI, numa altura em que Portugal su-portava a terceira investida napoleónica e o continente euro-peu se achava dominado por um clima inquietante, quanto ao seu futuro, não se sabendo ao certo, o desfecho político disso. Ruía a olhos vistos o mundo organizado até ali em torno de um ideal político-religioso, sobre o qual e através do qual, a Europa se levantara das antiquíssimas cinzas de bárbaras invasões de outrora.

O núcleo da reflexão plasmada neste livro gira à volta dos anos de 1810-1823, matéria-prima de que se alimenta, nascida dos episódios dos reais esponsórios de três das filhas de D. João VI, com infantes de Borbón e Casa Real de Espa-nha: o primeiro em 1810 e os segundos em 1816.

Num arrojado esforço político-diplomático, o Prínci-pe-Regente de Portugal avança para uma renovada união di-nástica, no contexto peninsular e europeu de pós-revolução, a partir do Brasil, casamentos, aqueles, que haviam de ser os derradeiros entre as duas Casas Reais, realizados nos moldes da ancestral aliança ibérica, sendo de levar também muito em conta o casamento do príncipe herdeiro, D. Pedro, com uma princesa de Habsburgo e Casa de Áustria, no ano ime-diatamente a seguir, o qual visava o alargamento do projecto real, embora inserido noutra frente.

Com aquela deliberação, o Príncipe abriu caminho à reacção anti-imperialista europeia, a partir de um espaço ul-tramarino, acto que não só descentraliza a visão europeísta, predominante, mas fazia renascer o projecto visionário ibé-

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rico, antigo. Pode-se dizer, portanto, que a diplomacia portu-guesa daquela época antecipa as contrapropostas que pouco depois seriam os desígnios da Santa Aliança.

Ambiciona este discurso despertar a atenção do leitor para aquele momento do reinado de D. João VI, que se pro-jectará além dos limites cronológicos dos reais consórcios, im-pondo-se o ano de 1823, como fronteira, mas também ponto de partida para uma renovada etapa europeia, que se quer antirre-volucionária, ainda que paradoxalmente alicerçada nos escom-bros da mesma revolução que combate, visto aceitar as bases lançadas por ela e cujo fruto renascerá dos grandes confrontos civis daí resultantes, não menos intensamente dramáticos. Mas isso já não será da conta de D. João VI.

Do destemido papel que as filhas do rei protagoniza-ram, no âmbito daquele quadro político, é que trata esta nar-rativa, ao rebuscar o desempenho das infantas para o cenário onde se movem e cujo guião se inspira nas suas notícias de âmbito privado. Dentro desta linha de pensamento e decla-ração de intenções, o leitor saberá que o léxico que identifica as correntes ideológicas aqui recuperadas, não visa outro in-tuito que não seja adequar a acção deste drama ao vocabulá-rio em voga, na altura, para melhor o descrever, fosse assu-mido ou não, expressa ou implicitamente, pelos próprios, no território das suas respectivas facções.

Antígonas é o identificativo que poderia acrescer ao título do livro, sugerido por uma frase da baronesa de Neu-ville, que acompanhou o marido em 1823 a Lisboa, quando Luís XVIII o enviou como seu embaixador, junto de D. João VI. Observadora atenta e pessoa de refinado gosto e cultura, deixou-se a baronesa impressionar pelo zelo das filhas do rei, que gravitavam em volta dele, solícitas e mimadas.

Não viu M.de de Neuville na roda destas infantas, as irmãs mais velhas delas, mas parece ter adivinhado a pre-

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cisão com que aquelas escreviam lá de Espanha para o pai, servindo-lhe mais de maternal conselheiras do que de filial amor, parecendo querer emendar, através do seu discurso, a necessidade que pressentiam nele, do seu cuidadoso desve-lo. No âmago do seu silêncio é essa mensagem, transportada e escondida nas cartas aqui resgatadas, com declarado e ine-gável sentimento de respeito e admiração da parte de quem o ousou.

A energia varonil das três irmãs – psicologicamente falando – é o cunho da sua força de carácter e vincadíssima personalidade, acentuada naturalmente pelos traços físicos, transmitido pela sua herança genética, que as afasta radical-mente da imagem das princesas dos românticos, propagada e comummente aceite, como produto fantasioso da visão ho-liudesca, que no adocicado da sua filmografia nos confronta modernamente, adulterando a realidade histórica.

Não podiam fugir mais ao estereótipo os retratos des-tas princesas, mais próximos, os delas, da pujança expres-sionista de uma pintura de Paula Rego ou da própria Frida Kahlo, do que alguma vez será do das anódinas e loiras prin-cesinhas dos contos de fada de Walt Disney. Curiosamente e mesmo neste aspecto, as princesas desta narrativa aproxi-mam-se terrivelmente da força esmagadora de uma tragédia clássica – trajectória que prosseguirá até ao fatídico desenla-ce das suas próprias vidas, como o tempo adiante provará, já fora do alcance da presente narrativa – não obstante o porte sumptuoso dos retratos delas, adultas, desafiador da mimosa sensibilidade da nossa apreciação.

Terem saído dos trópicos, aonde o insondável destino as levou, contra a expectação do seu quotidiano europeu, eis que dali hão-de tornar à Pátria de aquém-mar, recriada na fugaz imagem, antevista entre quimeras da felicidade, pro-metida. Aclimatadas já aos exóticos horizontes, cativas na

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doçura da idade juvenil do linguajar doce e do deslumbra-mento das selváticas paisagens, serão confrontadas com a terra estranha, saudosas da que deixaram para trás, para nela vir cumprir as tecidas e renovadas etapas do seu destino.

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Do Rio de Janeiro para Madrid

Antes de tombar exaurida aos pés da Sétima Coliga-ção em Waterloo, a águia napoleónica ensaiou um derradei-ro voo. Mas a Batalha das Nações já tinha aberto o caminho para o seu exílio em Elba ao mesmo tempo que agendava o Congresso de Viena. Foi nesta altura que as deliberações das potências aliadas – depois em Santa Aliança – acordaram a fénix e a atraíram para o confronto final.1

À corte no Rio de Janeiro chegava também a no-tícia de que os estandartes da Grande Armée se tinham cerrado à parafernália dos pendões e troféus, na espe-rança de uma nova e pronta desforra. Levada todavia ao limite, a vontade de paz dos povos europeus, mostrou-se mais forte que os ímpetos revolucionários, que os ali-mentara e tinha varrido o velho continente de uma ponta à outra, até ali.2

1 Leipzig em 1814 antecipa a derrota de Napoleão Bonaparte em Waterloo (20.3.1815), que pôs termo ao governo dos “Cem dias” do imperador. No ínterim, verificara-se o regresso de Luís XVIII ao tro-no francês, apoiado por Talleyrand. O imprevisto regresso de Napo-leão obrigou Luís XVIII a retirar-se para o território belga, reentrando em França, após a derrota e o afastamento do rei de Roma (Napoleão II) que, entretanto, fora jurado sucessor do pai (Junho/Julho de 1815). Luís XVIII irá governar dali em diante e até à sua morte, em Setem-bro de 1824.2 A notícia das derrotas e rendições de Napoleão iam chegando em tempo record ao Brasil e, em menos de um mês, após Waterloo. Os passos que acompanham a expectativa portuguesa são narrados pelo P.e Luiz dos Santos Gonçalves, na sua importante narrativa Memó-rias para servir a História do Reino do Brasil…, T. I, Lisboa, Impren-sa Régia, 1825.

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No que toca a Portugal, particularmente, o horror da França revolucionária e imperialista, começara cedo a ga-nhar forma, mal os nossos soldados foram arrastados para a guerra do Rossilhão, em nome do Pacto de Família, situação que se adensou, portas adentro, com a incursão da chamada Guerra das laranjas, para vir a materializar-se em grande, quando as hordas francesas, uma atrás da outra, irromperam por aí dentro, no fim de Novembro de 1807, levando tudo à frente até à sua derrota e expulsão, quatro anos depois, sem nunca afrouxarem da fúria calamitosa de que vinham inves-tidas. Foi a atmosfera do imperialismo napoleónico, que não podia deixar de fora Portugal, envolta no dramatismo de que se fala, que obrigou à retirada da corte para o Brasil.

Humilhado o ímpeto armipotente de Napoleão, os go-vernos da Europa deram-se pressa em reatar a diplomacia antiga, unindo-se e solvendo pendências contra a França agressora, enquanto o irmão de D. Carlota Joaquina, Fer-nando VII de Espanha, livre, finalmente, do cativeiro de Valençay, regressa a Madrid a 13 de Abril de 1814 e abole a constituição revolucionária de 1812, chamada de Cádis, declarada na sua ausência, pela autoproclamada regência.3

Tais boas-novas reacenderam no peito da princesa do Brasil, D. Carlota Joaquina, a chama das suas adiadas ex-pectativas, de colocar no trono de Espanha uma das filhas, depois de gorado o primeiro projecto de casar a primogéni-ta – princesa da Beira, D. Maria Teresa de Bragança – com Fernando VII.4

3 O imperador francês, Napoleão Bonaparte, tinha imposto em 1808, no auge do seu poder e arrogância, o exílio aos Bourbon de Espanha, depois de os destronar, perpetrando um vergonhoso golpe palaciano, que colocou o irmão, José Bonaparte, naquele trono espanhol.4 D. Maria Teresa de Bragança é a 1.ª dos filhos de D. João VI e D. Carlota Joaquina. Nasceu a 29.4.1793 e logo jurada herdeira do trono, razão para ter sido sempre chamada de princesa da Beira, título que a acompanhou, apesar do nascimento de um irmão, infante D. António,

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Via a princesa do Brasil uma forma de reaproximar as duas coroas ibéricas, pelo casamento da filha, colo-cando-a ao lado do irmão no trono da sua pátria natural, maltratada pelas continuadas agitações revolucionárias e traições, que franquearam as portas de Espanha ao bona-partismo, consequência desastrosa do propósito amaldi-çoado do valido de Carlos IV, Manuel de Godoy, Príncipe da Paz, titulo que faz jus à sua inclinação pro-francesa e raiz das desgraças portuguesas, sobretudo, no âmbito militar das invasões.

Desfeito, por força maior, o plano de D. Carlota Joa-quina, retomou-o, novamente, nas circunstâncias de 1814, fazendo recair a sua escolha, agora, sobre a segunda filha, a infanta D. Maria Isabel de Bragança, a qual acabou por envergar, efectivamente, o manto de rainha de Espanha, na qualidade de esposa de Fernando VII. O acordo que pro-moveu estes esponsais, todavia, não se ficou por esta união, sendo reforçado, naquela mesma conjuntura, pelo enlace da terceira infanta, D. Maria Francisca de Assis, que casou com o outro dos irmãos de D. Carlota Joaquina, infante de Espa-nha, Carlos Maria Isidro.5

dois anos depois dela (21.3.1795), que foi jurado legítimo herdeiro do trono e recebeu o título de príncipe do Brasil. Também este infante não seria o sucessor de D. João VI, pois viria a falecer, sendo criança (11.06.1801). 5 Além dos acima referidos, nasceram ao régio casal, D. João VI e D. Carlota Joaquina, por ordem dos nascimentos, os seguintes filhos: infanta D. Maria Isabel (19.5.1797); príncipe D. Pedro (12.10.1798) (1.º imperador do Brasil, não obstante, ter reclamado e subido ao tro-no de Portugal, como rei, D. Pedro IV); infanta D. Maria Francisca de Assis (22.4.1800); infanta D. Isabel Maria (4.7.1801) (Regente no período intercalar que vai da morte de D. João VI (6.3.1826) à vin-da do irmão, D. Miguel, do exílio em 26.2.1828); infante D. Miguel (26.10.1802); infanta D. Maria da Assunção (25.7.1805) e infanta D. Ana de Jesus Maria (23.12.1806).

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Antes de passarmos à avaliação dos capítulos e clau-sulado do duplo contrato de esponsórios, que congraçou en-tre novos membros das duas casas reais, é obrigatório lem-brar o casamento, anterior a estes, que se interpôs e desfez os planos de D. Carlota Joaquina, uma vez que a primogé-nita, D. Maria Teresa, acabou por casar, não com Fernando VII, mas com o primo, infante D. Pedro Carlos de Borbón y Bragança, primogénito e único remanescente dos três filhos do casal, infante D. Gabriel de Borbón y Sajonia e infanta D. Mariana Vitória, irmã de D. João VI.6

Celebrou-se este matrimónio no Rio de Janeiro a 13 de Maio de 1810, dia que assinalava o aniversário do (en-tão) Príncipe-Regente, D. João, com a intenção simbólica de realçar o afecto que nutriu ao longo da vida pelo sobrinho, vendo nele, D. Pedro Carlos, a marca viva do fraternal amor que o unia à irmã, mãe deste infante, D. Mariana Vitória de Bragança. São testemunho disso, memórias coevas, que su-blinham os laços de sincera estima com que D. João VI sem-pre premiou o infante, agora, seu genro, não o distinguindo em nada no trato que dava aos seus, próprios, filhos.

Foi o casamento precedido da dispensa papal, firmado pelo núncio a 8 de Maio do dito ano e do contrato antenupcial de dote e arras, ratificado entre o Príncipe-Regente e o próprio infante D. Pedro Carlos, a 12 do dito mês e ano, sendo o noivo representado pelo seu procurador, o conde das Galveias, D. João de Almeida de Mello e Castro, ministro e secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos.7

6 Os trâmites do casamento de D. Maria Vitória de Bragança com o referido infante de Espanha, D. Gabriel, celebrado na ocasião do de D. Carlota Joaquina com o infante D. João (VI), no ano de 1785, foram objecto de estudo, nos livros da autora: La Menina…; Se Sau-dades matassem…. (V. Bibliografia). 7 Colecção dos Tratados e Convenções, Contratos e Actos Públicos celebrados entre a Coroa de Portugal e as mais Potências, &, &, T. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1857.

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Clarificada neste documento contratual, fica a or-fandade de D. Pedro Carlos, além do mais, pelo não con-sentimento prévio da Casa Real de Espanha, isto é, do rei Católico, pormenor que não é despiciendo, na medida em que evidencia o clima excepcional das relações familiares e diplomáticas, entre as duas cortes, dado o exílio de Fernando VII e sua condição de prisioneiro de Napoleão, situação que vigorava, ainda, testificando, ao mesmo tempo a plena adop-ção do infante, pelo Príncipe-Regente e futuro D. João VI.8

A orfandade do sobrinho é realçada pela declaração do Príncipe-Regente que assegura, pela sua palavra escri-ta, a manutenção da casa, agora estabelecida, em virtude da privação do infante dos seus bens patrimoniais e privilégios, inerentes, tanto à sua condição de herdeiro da Casa e Mor-gado do infante D. Gabriel de Borbón y Sajonia, como aos bens a que tinha direito legalmente instituídos, por Carlos III de Espanha, na altura do matrimónio daquele seu filho, com a infanta, filha de D. Maria I de Portugal.9

Dentre o clausulado de obrigação das partes, deste contrato antenupcial, são referidas, especificamente, a oferta

8 O clima de excepção fica patente no Art.º II do contrato antenupcial: “Foi convindo o estipulado que Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal e dos Algarves, logo que se removerem os embaraços das actuais circunstâncias, participará a Sua Majestade Católica este casamento, solicitando a Sua aprovação pelo que respeita ao Serenís-simo Infante D. Pedro Carlos, a qual, tem todo o motivo de esperar”. Já no Art.º V do referido contrato diz-se: “Entretanto, que não pode ter efeito a entrega e inteira satisfação deste dote (Art.º IV), o Serenís-simo Senhor Príncipe Regente manterá, à sua custa e despesa, a Casa e Estado dos Sereníssimos Infante e Princesa, com aquele esplendor que convém à Sua alta dignidade e decoro…”. Colecção dos Tratados e Convenções…, p. 432. 9 Sobre a Casa e Morgado do Infante de Espanha, D. Gabriel de Borbón y Sajonia vd. Juan Martínez Cuesta, Don Gabriel de Borbón y Sajonia, mecenas ilustrado en la España de Carlos III. Real Maes-tranza de Caballería de Ronda, Editorial Pre-Textos, Madrid, 2003

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das jóias (ou o seu valor), bem como o direito de pertença das que a noiva já tinha, que seriam próprias, suas e de seus herdeiros e sucessores e daqueles que tiverem seu direito.10

O infante de Espanha, que tinha vindo para a corte da avó, rainha D. Maria I, no recuado ano de 1789, num 10 Vd. Art.º IX do Contrato antenupcial, in Colecção dos Tratados e Convenções…p. 435. Fazemos especial menção aqui e às jóias, por-que as mesmas hão-de no futuro ser matéria grave, quando a princesa da Beira se vir na contingência de as empenhar, para custear o pão de cada dia, na ominosa circunstância da expulsão dela e da sua famí-lia, no rescaldo das guerras civis de Espanha. Duas vezes, achamos menção às jóias da princesa da Beira: na retirada de D. Miguel e das irmãs e respectivas famílias, que desembocou na Convenção de Évo-ra-Monte, episódio lembrado pelo conde de Rodezno: “Ocupados por Rodil los equipajes de la familia real en su apresurada retirada de Al-meida, carecían los infantes hasta de camisa para mudarse y los hijos de Don Carlos llegaron a caminar descalzos hasta encontrar refugio en Évora (…). La suerte de los españoles que seguían al Príncipe, hostilizados, por los ingleses, por las fuerzas españolas y por las del gobierno de Lisboa, no podía ser más triste y fue entonces cuando María Francisca y María Teresa, como Isabel la Católica, se despren-dieron de sus joyas cuya venta negociaron con un comerciante inglés, para aliviar la suerte de aquellos desgraciados”. La Princesa de Beira y los hijos de Don Carlos, 2.ª ed., p. 78-79, Cultura Española, 1938; A 2.ª ocasião é num interessante apontamento da própria princesa D. Maria Teresa, onde ela relembra a circunstância de um empréstimo a que recorreu de 50$000 (cinquenta mil) francos, que recebera da mão do 1.º conde da Póvoa (la moitié en argente et la moitie en billets de ma dot …), empenhando, em troca do empréstimo, parte das suas jóias e das que, entretanto, recebera em herança, por morte da irmã, a infanta D. Maria da Assunção e da avó, a rainha D. Maria I. As jóias aqui referidas, terão voltado à sua posse, pelo que se entende da carta de D. Maria Isabel para o conde do Lavradio: Conde: remeto a procuração da mana que me chegou ontem; ela ficou muito satisfeita de tudo quanto se tem feito; e meu tio de se tirarem as jóias de meus sobrinhos ao mesmo tempo; veja o conde se isto se pode realizar e a mana também pede que lhe mande a relação das suas jóias. @ Isa-bel, Benfica, 2 de Fevereiro de 1843. Ângelo Pereira, in As Senhoras Infantas Filhas de el-Rei D. João VI, Lisboa, 1938, p. 47.

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contexto político bem diferente, viu recair sobre ele, com o passar do tempo, o ressentimento, derivado, talvez, dum profundo despeito, senão, mesmo rancor de D. Carlota Joa-quina, não obstante os laços de parentesco próximo, que os ligava, sendo primos coirmãos e tia-sobrinho.11

Nunca se saberá ao certo a genuína razão desta mal-querença que, do domínio privado, passou a semipúblico, na medida em que isso no interior da corte não seria ignorado, se tivermos em conta o que diz D. José de Presas, opinião, posteriormente, expandida, por diversos autores. Presas afir-ma que ouviu aquela espécie de desabafo da boca de D. Car-lota Joaquina, dito quando soube da assinatura do convénio, que uniu a filha ao sobrinho:

Menos sensible seria para mí el que me hubiese traído de que mi hija Maria Teresa se había caído en un pozo.12

11 Prima coirmã na medida em que eram filhos de irmãos: ela, de Carlos IV e o infante Pedro Carlos de D. Gabriel, ambos, filhos de Carlos III de Espanha e D. Maria Amália de Sajonia. Tia, por afinida-de, também, visto D. Pedro Carlos ser sobrinho de D. João VI, como fica referido. Além disso, D. Carlota Joaquina tratava D. Pedro Carlos de sobrinho.12 [sofria menos com a notícia que me desse de que a minha filha Maria Teresa tinha caído a um poço]. D. José Presas, Memórias se-cretas de D. Carlota Joaquina, introd. R. Magalhães Júnior, RJ, 1940, Cap. XI. A frase, a ter sido proferida, pela princesa do Brasil, foi no momento em que lhe chegou a confirmação do projecto de enlace da filha, mostrando o alto grau da sua contrariedade. No entanto, D. Carlota Joaquina foi quem levou a filha pela mão ao altar, enquanto o noivo era levado pelo Príncipe-Regente. Memórias para servir a História do reino do Brasil…, P.e Luiz Gonçalves dos Santos, Lisboa, Imprensa Régia, 1825, T. I. O papel de intriguista que coube à figura de D. José Presas não o recomenda muito, pese, embora, o mérito ou a intenção das suas causas. Por outro lado, contrasta tal reacção de D. Carlota Joaquina com o clima narrado pelo P.e Dâmaso da Congrega-ção do Oratório, in Relação histórica das festas…, afirmando que ha-via mais de um ano que se falava no casamento do Senhor Infante D. Pedro Carlos de Bourbon com a Senhora Princesa da Beira D. Ma-

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Ciúme primário pode ser a razão das palavras de D. Carlota Joaquina, proferidas naquela altura. Na vinda do so-brinho, órfão, para Portugal, a quem o marido prodigalizava tanta afeição, via ela o prolongamento da amizade que D. João nutrira pela irmã, no filial apego ao filho dela. A bo-nomia do marido não a podia aceitar a princesa do Brasil e menos, ainda, compreender talvez, por sentir que o primo coirmão escapava à influência das suas opiniões, na exacta proporção, em que medrava sob as do Regente.

Acrescia ao ciúme o prejuízo, em função das suas am-bições, no campo político. Aliás, o lusitanismo de D. Pedro Carlos versus castelhanismo de D. Carlota Joaquina é apon-tado pelos autores espanhóis, tendo-o por demasiado afecto ao tio, em detrimento da amizade, que devia nutrir pela pri-ma, sendo ambos infantes de Espanha. 13

ria Teresa. Relação histórica das festas…, Biblioteca da Ajuda, BA – 54-X-6, nº 27, Transcrito por Luís Joaquim dos Santos Marrocos, in Carta de 16.10.1811. V. Transcrição integral in Apêndice a este livro.13 Elucidam-nos, a este respeito, as considerações dos espanhóis sobre o infante de Espanha, D. Pedro Carlos, notadamente as do ci-tado conde de Rodezno: “Quísolo el bondadoso Don Juan como a un hijo y cuando, con ocasión de sus desvencijas con su esposa, surgió la separación de los Príncipes, siempre Don Pedro Carlos acompañó a su tío y residió con él”. E citando o Marquês de Casa Irujo (enviado junto da Corte, no Brasil, no período de ocupação de Espanha, sob o domínio francês): “Entiendo es muy poco inclinado a los españoles y puede decirse de él que carece igualmente de los vicios que de las virtudes de un príncipe. Con todo, el Señor Príncipe Regente le quiere con la misma ternura que si fuera su propio hijo…”. Atesta a veraci-dade desta amizade parental de D. João, pelo sobrinho, tê-lo nomeado Grande-Almirante da Esquadra Portuguesa, à idade de 21 anos, no Rio de Janeiro, mantendo-o na sua companhia, no palácio de S. Cris-tóvão, residência oficial do Príncipe-Regente, juntamente com a avó, rainha D. Maria I e o príncipe herdeiro, D. Pedro, enquanto as infan-tas e o pequeno D. Miguel habitavam com a mãe, no palácio e quinta da princesa. O conde de Rodezno acrescenta que D. Pedro Carlos, juntamente com o conde de Linhares e Francisco Lobato (Visconde

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A primeira intenção – relembra o conde de Rodezno – fora a de casar D. Maria Teresa com o príncipe das Astúrias, Fernando VII, em 1806, quando este enviuvou da princesa na-politana, D. Maria Antónia, numa clara tentativa de reequilibrar as relações ibéricas, perdidas, no período das invasões napole-ónicas e, até mesmo, antes, recordando o autor que o projecto constituíra la primera gestión de la Infanta Carlota, que siempre soñó en ver a sus hijos y descendiencia en el trono de España. 14

Não respondeu às ambicionadas expectativas e plano da princesa do Brasil Godoy, Príncipe da Paz, no apogeu da sua valia, que preveniu logo o embaixador espanhol desse tempo, para não deixar ir adiante e crescer aquela empre-sa, instruindo-o no sentido de evitar qualquer compromisso, embora não deixasse de solicitar detalhes, acerca da infanta portuguesa, que contava treze anos. 15

Em Lisboa, parecia acreditar-se que o matrimónio poderia vir a realizar-se, de acordo com a especificidade do mesmo relato, notavelmente, quando se afirma que D. Carlota Joaquina falava abertamente do plano, num tom que demonstrava bem, quanto o desejava. Porém, o momento de Vila Nova da Rainha) formavam “a trindade predilecta que acom-panhava sempre o príncipe”. In ob. cit., pp. 24-25. Sobre o perfil do infante, v. Capítulo neste livro: O Infante D. Pedro Carlos de Borbón e Bragança – Apontamentos para uma Biografia.14 Rodezno, in ob. cit., p. 22. O ano de 1806 foi o do desenlace do golpe palaciano, conhecido por conspiração dos fidalgos, no qual D. Carlota Joaquina teve papel activo.15 Escrevia o embaixador: “La edad de esta señora pasa de trece años; su estatura, media por su edad, pero que anuncia mayores pro-gresos; bien formada; bellos ojos y parece bien. Al color algo bajo, pero es posible mejore con la edad y en llegando a ser mujer, de que ya tiene preludios, según me ha dicho el Príncipe; goza de buena salud, pues en el tiempo que llevo aquí no le he conocido más indis-posición que algún resfriado. Tiene un aire, semblante y porte nobles, al mismo tiempo, dulce y afable, que inspirando respecto, previne al mismo tiempo en su favor”. Rodezno, in ob. cit., pp. 22-23.

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excepcional de guerra e revolução que trespassava as fron-teiras da Europa antepôs o imperialismo de Napoleão à di-plomacia particular das duas cortes ibéricas, tendo o valido espanhol chegado a “mendigar” a mão de uma das princesas da família Bonaparte, para o futuro rei Fernando VII.16

Os trágicos acontecimentos que marcaram a ferro-e--fogo, Espanha, em particular, quando esta nação passou de aliada de Napoleão, a sua vassala, deu azo a uma trégua, durante a qual, aparentemente, D. Carlota Joaquina suspen-deu a antipatia que tinha por D. Pedro Carlos, verificando-se a reaproximação entre ambos, sob a permissão ou égide do Príncipe-Regente, D. João, quanto à atitude a tomar, face ao ultraje infligido a Espanha, pela França revolucionária.17 16 Idem, p. 24.17 Não são ignoradas e têm merecido atenção e estudo, as iniciativas da princesa do Brasil, primeiramente, a favor do levantamento mo-ral da nação espanhola, propondo-se defender os seus direitos, como legítima herdeira do trono, contra a usurpação da coroa de Espanha, aliando-se ao primo, D. Pedro Carlos, este, pressionado por D. João VI, que não permitiu o afastamento da linha sucessória do sobrinho, como neto de Carlos III. A reivindicação emergiu da reacção conjun-ta, à sublevação das colónias sul-Americanas, proclamando-se inde-pendentes da sua metrópole. Durante esta crise, D. Carlota Joaquina não recuou nem se escusou em nada, antes, arrostou as dificuldades com denodo político e diplomático – nomeadamente, contra os agita-dores ingleses, que no seu entender manobravam a favor da rebelião do Rio da Prata e de Buenos Aires – e de âmbito pessoal e financeiro, a fim de assegurar a continuidade das instituições espanholas e seu governo, dentro da linha de ordem borbónica. O primeiro dos actos de D. Carlota Joaquina – na qualidade de pretendente ao trono de Espanha – é a assunção da proclamação geral, denominada Manifesto à Nação, dirigida também ao povo das colónias, a partir do Rio de Janeiro a 19.8.1808 (tempo record se tivermos em conta que José Bo-naparte assumira a governação a 20 de Julho pp., em Madrid). O pas-so seguinte foi a divulgação da Justa Reclamação dos Representantes da Casa Real de Espanha, dirigido ao Príncipe-Regente de Portugal, documento que sublinha o objectivo do Manifesto, pelo qual se in-voca a necessidade de protecção e defesa dos direitos de D. Carlota

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Mas o alastramento da crise, motivada pelo prolonga-mento da guerra de ocupação e simultânea rebelião dos povos, pôs em jogo o destino das colónias americanas e redundou na divergência dos dois protagonistas, quanto ao plano de acção, a ser levado à prática, desviando-os do propósito inicial, o que levou o Príncipe-Regente a retirar, em nome dos interesses portugueses, o apoio a D. Carlota Joaquina, por discordar das derivas, criadas, em nome dos interesses pessoais, dela.

Da iniciativa atribuída ao Conde de Linhares (na opi-nião dos autores espanhóis), mas, certamente, a secundar os aspirações de D. João, nesta matéria, surgiu a ideia de casar a princesa da Beira com o infante D. Pedro Carlos, considerando-se a hipótese de eles virem a reinar sobre as colónias da América espanhola, a partir de Buenos Aires ou Montevideu, na tentativa de com isso dominar a rebelião em curso, plano que afrontava de alguma maneira, o de D. Car-lota Joaquina.18 Joaquina, à coroa de Espanha, tal como os de D. Pedro Carlos. Os interesses políticos de Portugal, no momento, nos moldes, em que os actos eram formulados, conjugavam-se, encontrando bom acolhi-mento da parte do futuro rei, D. João VI, havendo a destacar que as referidas petições foram elaboradas em separado, embora na mesma data de 20.8.1808, sendo a do infante na qualidade de “Infante de Es-panha e Grande-Almirante das Esquadras de SAR o Príncipe Regente de Portugal”. O Príncipe-Regente despachou logo em Julho de 1809, como seu enviado extraordinário e ministro, plenipotenciário, a Cá-dis (onde residia a Junta Central do Governo autoproclamado, contra a ocupação francesa), D. Pedro de Sousa Holstein, futuro duque de Palmela, que se revelou hábil diplomata, na actuação que protagoni-zou em prol dos interesses de D. Carlota Joaquina. “A sucessão em Espanha”, Cf. Ângelo Pereira, in D. João, Príncipe e Rei…, Vol. I, Lisboa, 1953. 18 Não é despicienda a opinião, que sustenta o desejo de D. Carlo-ta Joaquina ver no trono de Espanha a filha primogénita, através do enlace dela com Fernando VII. Mas lembra bem, a este propósito, D. José Presas (que não desmente o ardente desejo de D. João de efec-tivar o casamento da princesa da Beira com D. Pedro Carlos), que

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A ideia não só causou profundo desagrado à prin-cesa do Brasil, como lhe opôs a maior resistência, tena-cidade que D. José Presas, através da citada frase que, com ou sem verdade, deixou em memória e mais tarde ganhou eco, conjuntamente com outras de D. Carlota Jo-aquina, mas serve para dar uma ideia da impotência da princesa, obrigada a vergar-se à vontade do Regente, seu marido.19

ele, Fernando VII, permaneceu irresoluto até lhe chegar a notícia do avanço francês no território espanhol, precipitando – segundo sugere – a perda da esperança de D. Carlota Joaquina de poder realizar-se alguma vez tal consórcio, persuadido também que estava o próprio Príncipe-Regente de que nem Fernando VII nem os irmãos (além do já mencionado D. Carlos Maria Isidro) voltariam a ocupar o trono de Espanha. Este facto teria pesado a favor do enlace da princesa da Beira com o primo, D. Pedro Carlos, apesar de toda a relutância de D. Carlota Joaquina, a qual terá reagido mal, tal o seu desapontamento político. Apesar das contrariedades, D. José Presas faz justiça à união dos jovens primos, ao declarar que o amor que unia o casal era no-tório e que “…a princesa [do Brasil] teve a satisfação de ver que se enganara nos seus cálculos e previsões, porque estes dois esposos de-ram-se muito bem e se amaram, por tal forma, que o infante, de quem tanto se temia (ela, Carlota Joaquina) sempre viveu subordinado a sua mulher….” Memórias secretas, p. 93.19 No contexto deste pré-confronto entre os esposos, em 1808, hou-ve intenção de concertar o casamento do infante D. Pedro Carlos com a rainha da Etrúria (irmã mais nova de D. Carlota Joaquina, que tinha fama de ser filha de Godoy), entretanto, viúva de D. Luís de Parma. Todavia, o que acabou por vingar foi o plano do conde de Linhares – escreve o conde de Rodezno – cujo fim era esmagar as ambições políticas de D. Carlota Joaquina, de ser substituída, pelo novel casal no governo das colónias americanas em rebelião. Apresentado este plano a D. Carlota Joaquina, diz que “puso pie en pared” (Casa Iru-jo), escudada na pouca qualidade política de D. Pedro Carlos, mas na verdade, porque o alcance de um tal projecto significava também a ruína dos seus direitos e ambições pessoais. O infante, sem querer, atravessava-se no caminho da prima e sua tia, atraindo sobre si mes-mo, a animadversão dela. Rodezno, in ob. cit., p. 27.

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Tal pressuposto representava uma viragem dramática nos planos da princesa, pois, significava, teoricamente, o fim de qualquer hipótese de unionismo das colónias da América do Sul, agenciado por um governo de sua iniciativa pessoal, na qualidade de infanta de Espanha. Como se entende, este projecto chocava de frente com a política portuguesa, porque, além de adverso à vontade primeva de D. João, era-o também aos interesses político-económicos de Inglaterra, abrindo-se uma brecha nas relações diplomáticas, numa altura pouco azada, a partir do momento em que se tornou óbvio aos ingle-ses, que os desígnios de Carlota Joaquina eram mais abran-gentes do que a materialização do velho sonho ibérico.20

Casaram, então, a princesa da Beira e D. Pedro Carlos de Borbón e Bragança, sendo ele sete anos mais velho que a noiva, que contava dezassete, tida como uma princesa “de bela presença e singular atracção”.21

Acertou-se os desponsórios para o dia do aniversário de D. João, que o celebrava a 13 de Maio e quando comple-tava a idade de 43 anos. À distância de mais de dois séculos é difícil imaginar ou talvez nem se faça ideia, da dimensão que alcançaram em brilho e dignidade os festejos, com que foi honrado aquele enlace. Concorreram nesse sentido todas as razões, sendo a principal o nunca se ter realizado nada deste género em terras americanas. Este facto não podia pas-

20 Esta matéria não oferece margem para dúvidas: D. Carlota Joaqui-na fora instrumento de um plano, delineado por Carlos III de Espanha e o ministro Floridablanca. É nesta linha de raciocínio que deve ser tida a Pragmática sanção que propunha a alteração da Lei sálica, em 1789, por Carlos IV, sucessor no trono daquele soberano, de modo a acomodar na cabeça da filha (Carlota Joaquina) a coroa dos dois reinos ibéricos. O futuro não muito longínquo mostraria, quão desas-trosa fora esta alteração para aqueles desígnios expansivos, quando subir ao trono de Espanha uma fêmea, não da parte de D. Carlota, mas de Fernando VII. 21 Conde de Rodezno, in ob, cit., p. 27.

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sar despercebido ao cronista, que o assinala com inaudito orgulho.22

Com inaudito regozijo narra ele, posteriormente, a alegria do nascimento de um menino ao régio casal, alegria que foi não só dos pais, mas se estendeu a toda a família e à terra brasileira, por ter sido nela, que veio ao mundo, pela primeira vez, um príncipe da Casa Real. Foi na noite de 3 para 4 de Novembro de 1811, que ocorreu o feliz evento, ao qual se associou o céu – nas palavras daquele autor – visto ter honrado os brasileiros, dando-lhes um patrício da mais alta e preeminente hierarquia e que seria contado – previa ele – nos fastos da América portuguesa com singular pri-mazia (…) o primeiro no Novo Mundo. Ditoso Brasil e mais ainda no Rio de Janeiro! 23

Coincidiu aquele dia com a celebração do onomástico da avó do menino, D. Carlota Joaquina, facto que intensifi-cou as galas, celebrativas, mas ignora-se a que ponto, o nas-cimento do primeiro neto terá tido o efeito de fazer baixar as guardas dela, em relação ao genro. Aguardou-se mais de um mês, por vontade do Príncipe-Regente, avô do menino, recém-nascido, para fazer coincidir o dia do seu baptismo

22 Referimo-nos ao relato do P.e Luiz Gonçalves dos Santos, que dada a sua extensão, evitamos transcrever, mas outra versão não me-nos empolgante, pode ser lida em Apêndice, neste livro. Consta o re-lato de dois momentos independentes, cronologicamente, falando. O primeiro narra as cerimónias cujo principal dia foi o de 13 de Maio de 1810, por ser este o do recebimento, mas o festejo inaugural estender-se-ia por vários dias. Seria depois retomado, como seu encerramen-to, que ocorreu em Outubro, por ocasião do aniversário do príncipe herdeiro, D. Pedro de Bragança, dia 12.10.1810, festas que, por sua vez, se estenderam ao longo de vários dias. Santos, in ob. cit, T. I, pp. 161-178 e 182-198. De salientar a notícia, por carta de 26.10.1811, de Luís Joaquim dos Santos Marrocos que acompanhou o relato do P.e Dâmaso da Congregação do Oratório. 23 P.e Luiz Gonçalves dos Santos, in ob. cit., p. 231 e segts.

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com outra efeméride, justamente, a do aniversário da rainha D. Maria I – bisavó, pela primeira vez – que ocorria a 17 de Dezembro, dia do seu 78.º aniversário. Foram padrinhos do menino, D. João e sua augusta mãe, representada pela avó do infante, D. Carlota Joaquina.24

O menino recebeu no baptismo o nome de Sebastião Gabriel Carlos João José Francisco Xavier de Paula Miguel Bartolomeu de S. Geminiano Rafael Gonzaga, cerimónia em que, mal soou o vade in pace, os músicos da Real-capela en-toaram, com toda a nobreza de pé, Te Deum Laudamus, di-rigido pelo autor da música, Marcos António Portugal, que também dirigiu a sinfonia que rompeu à entrada de SS.AA e que continuou, nos intervalos da majestosa cerimónia. 25

O extenso nome do infante segue o costume de home-nagear os varões ascendentes, logo a seguir à imposição do nome próprio, vindo em primeiro o do pai do baptizando, seguido do dos avós, paterno e materno, aditado do trisa-vô materno, D. José I. Segue-se a evocação de S. Francisco Xavier, santo da eleição da família real portuguesa e a dos santos da devoção particular das famílias reais, espanhola e italiana.

Já quanto ao nome próprio, Sebastião, não se sabe de quem partiu a ideia nem o cronista satisfaz a curiosidade do leitor, embora possa ter sido ideia do Príncipe-Regente, vis-to ser ele o padrinho do recém-nascido. Sobre o simbolismo deste nome, não vale a pena especular, porque, é evidente a presunção de que o menino era “Desejado”, tendo D. João sempre em mente, o quanto o teria sido também para a in-fanta Mariana Vitória cuja memória o príncipe, certamente, pretendeu associar à feliz circunstância. Afinal, Sebastião era o primeiro neto de ambos.

24 Santos, idem. Marrocos, in ob. cit., Cartas de 16.11. e de 2.12.1811.25 Idem.

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Antes, a 9 de Dezembro, o Príncipe-Regente fez pu-blicar o decreto pelo qual fez constar que era sua vontade que o Menino recém-nascido fosse havido e tratado como infante, reconhecido e respeitado, por todos os seus vassa-los com todas honras, preeminências e precedências que, como lhe eram devidas como tal e das quais gozava o pai, o infante D. Pedro Carlos. 26

Mas pode tanta alegria mudar-se em tristeza? 27

Tínhamos testemunhado com extraordinário prazer da corte do Rio de Janeiro celebrarem-se os seus despo-sórios [do infante D. Pedro Carlos] com a sereníssima se-nhora princesa, D. Maria Teresa, de cujo enlace nasceu um real infante, o sereníssimo senhor D. Sebastião cujo solene baptizado presenciámos, há pouco, com tanta alegria, como esperança, de gozarmos ainda de outras cenas de igual pra-zer e felicidade nacional. 28

É deste forma e estilo elegíaco, que o cronista inculca em nós o triste e inesperado momento, que atingiu a alegria da corte, soava ainda os ecos festivos dos esponsais, cinco meses passados, sobre o nascimento do filhinho do jovem casal. Ficava viúva, no dia 26 de Maio de 1812, com um menino no colo, a primogénita de D. João VI e de D. Car-lota Joaquina. A má fortuna, que havia de ferir a princesa, o resto da vida, dava os primeiros sinais. Em vão, procurámos perceber a que ponto a desdita da filha, viúva, na flor da idade, calou fundo no coração da mãe, D. Carlota Joaquina, ensimesmada como parecia no seu próprio ego. 29

26 Ibidem, ob. cit., p.235.27 Quod gaudium quo moerore mutatum est? Interrogação do P.e Luiz Gonçalves dos Santos, enfatizando a dor pela súbita morte do infante D. Pedro Carlos. In ob. cit., pp. 257 e segts. 28 Santos, ibidem.29 Não vai mais longe o autor español J. M. Rubio, defensor da postura política de Carlota Joaquina, limitando-se assinalar as coin-

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Achámos por outro lado, significativa, a réplica que deu a princesa do Brasil à Regência de Cádis, quando dali lhe veio a ordenação da linha sucessória dos pretendentes ao trono de Espanha. Ao aceitar, sem reservas, a deliberação oficial, parecia que D. Carlota Joaquina queria encerrar a sua luta, mediante a indiscutível cláusula, constituinte, saída das ditas cortes. Entrava naquela linha, assim ordenada, o infante D. Pedro Carlos, na qualidade de filho, herdeiro do infante de Espanha, D. Gabriel de Borbón y Sajonia, por sua vez, filho de Carlos III e irmão de Carlos IV. 30

A 28 de Junho de 1812 a princesa do Brasil respondeu à nota do governo provisório.31 Diz o autor espanhol, que

cidências: “Desaparecidos del escenario cortesano ríojanerense los principales personajes que hicieron girar la política del Príncipe Re-gente desde su arribo al Brasil, y suspendida la actuación de la infanta D.ª Carlota, por rara coincidencia, al desaparecer aquéllos, quedaría cerrada esta narración demasiado bruscamente sin el ligero resumen que, a manera de epílogo, debe rematarla, acerca de los actores que en ella intervienen”. La Infanta Carlota Joaquina y la política de España en América (1808-1812, Madrid, 1920, p. 179.30 Acerca da maneira como as pretensões de D. Carlota Joaquina tinham sido encaradas pelo Conselho da autoproclamada Regência, gaditana, dada a vagatura do trono, por causa do banimento da fa-mília real, por ordem de Napoleão, como temos mencionado, J. M. Rubio toma o lado da princesa do Brasil e reprova, sempre, a incom-preensão e má-vontade da Junta Central – manifesta, pelo menos, a partir da morte do conde de Floridablanca (Dezembro de 1808), indefectível membro do partido, que defendia os direitos da infan-ta espanhola – bem como o aparente menosprezo e desconfiança do Conselho, quanto à acção interventiva dela, em prol da união e manu-tenção das colónias da América do Sul. 31 É de sublinhar a cronologia dos acontecimentos, interligados com a doença e morte do infante D. Pedro Carlos cujos indícios são certos, antes de 3 de Abril de 1812, data de uma carta de Luís Joaquim dos San-tos Marrocos, onde dá a notícia ao pai, do contágio que grassava, entre a população do Rio, sobretudo a europeia, depois de falar do seu próprio mal-estar de saúde “…isto me desconsola, pois, vejo morrer no dia às dúzias! Tem sido tal o contágio que, em poucas semanas, têm morrido

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seguimos, nesta matéria, que a notícia da ordem de sucessão ao trono espanhol teria provocado algum despeito no Prín-cipe-Regente de Portugal, pela maneira fria como reagiu e demais membros do seu conselho, a ponto de não se exibir o regozijo público, usual das cerimónias de cumprimentos, neste caso, à princesa, D. Carlota Joaquina.32

Neste sentido – escreve o autor citado – sabendo D. João das démarches da esposa, junto do núncio, para a re-alização da festa protocolar, para celebrar a sua posição na linha sucessória, não lhe mereceu da parte dele, príncipe, aprovação e negou permissão de que tal se realizasse. Isto assevera J. María Rubio, com base numa carta do embai-xador Casa Irujo, datada do Rio de Janeiro de 11 de Abril de 1812.33

mais de mil pessoas; e Sua Alteza Real (D. João) retirou-se para a sua xácara de São Cristóvão, com tenção de passar para Santa Cruz, mas não se efectuou esta, por saber que também ali havia o mesmo contágio.” Sem relacionar o mal do infante, directamente com a moléstia grassante, acrescenta: “O Senhor Infante D. Pedro Carlos tem passado muito doen-te, creio que por excesso de seu exercício conjugal e por isso fizeram se-parar os cônjuges, estando também a Senhora Dona Maria Teresa doente e já 2.ª vez mãe.” (Marrocos, in ob. cit., p. 118). Merece reparo a suposi-ção de Marrocos, sustentada em boatos, sem fundamento, como se verá, quanto à origem da doença do infante e, no mesmo passo, quando afirma achar-se grávida D. Maria Teresa, facto que se provou ser falso alarme.32 Rubio, in ob. cit., p. 175. As cortes reunidas em Cádis de pendor maçon, na sequência dos levantamentos revolucionários em Espanha, tratavam da elaboração de uma constituição, designada depois de Cádis ou de 1812. De acordo com as bases fixadas no código, a ordem de su-cessão ao trono era como segue: 1.º Fernando VII; 2.º D. Carlos Maria Isidro (seu irmão); 3.º D. Carlota Joaquina (irmã de ambos), 4.º D. Maria Isabel (duquesa de Calábria); 5.º D. Pedro Carlos de Borbón y Bragan-za; 6.º D. António Pascual. Ficavam excluídos da sucessão ao trono de Espanha a rainha da Etrúria (D. Maria Luísa) e o infante D. Francisco de Paula “como indesejáveis à nação, por se supor serem descendentes de D. Manuel de Godoy” [de uma relação com a rainha D. Maria Luísa de Parma]. Conde de Rodezno, in ob. cit., p. 26. 33 In, ob. cit., p. 175.

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Faz outro sentido a interdição dos regozijos protoco-lares, se a lermos do ponto de vista do Príncipe-Regente, ainda mais, sabendo-se, como fica anotado, do progresso da enfermidade do sobrinho, seu genro. A frieza de D. Carlota Joaquina, porém, fica evidente, nesta sua atitude, egocêntri-ca, excessivamente focada no que toca só aos seus próprios interesses, nunca deixando de se centrar, neles, sobrepondo a política aos sentimentos.

Não pensava nem agia deste modo o Príncipe-Regen-te, D. João, do que há testemunho invariável, à apreciação dos seus gestos, quando lido do ponto de vista da sua pro-verbial bondade, que os críticos e opositores classificam como fraqueza. Achamos, portanto, na tristeza que invadia o Regente – agravado por sobejas razões que tinha – a proibi-ção de promover manifestações de público regozijo num tão delicado momento, como aquele, do prestes desenlace do infante, como se deu dali a pouco tempo, doente já entre a vida e a morte. In dubio pro reo – admitamos que D. Carlota Joaquina foi tomada da mesma mágoa e espanto, que em todos provocou o falecimento do infante D. Pedro Carlos, pouco antes de perfazer 26 anos de idade!

Em memória dele, entenderemos melhor a decisão de Carlota Joaquina, princesa do Brasil, de abdicar da sua luta, mostrando-se favorável ao legítimo herdeiro, Fernando VII, quando agradeceu a deliberação dos constituintes de Cádis, através das congratulações e abnegação pessoal, como cons-ta da dita sua carta de 28 de Junho de 1812, dia em que fazia um mês sobre a morte do genro e seu sobrinho.

Outros motivos subjaziam, eventualmente, à anuência da princesa do Brasil à determinação da Regência de Cádis, relativa à premente necessidade de Fernando VII contrair matrimónio, a fim de garantir sucessão, caso viesse a reas-sumir o trono de Espanha, sendo rei de Espanha – como era

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na altura – José Bonaparte, contra quem lutava abertamente a Junta de Cádis.

Após enviuvar, a princesa da Beira, por seu lado, mostrou-se activa, no tocante à defesa aos direitos do filho, D. Sebastião. O momento, todavia, não mostrava ser o mais propício para agir, junto da provisória corte espanhola em Cádis nem havia de sê-lo, antes da libertação dos membros da família real espanhola, presos e exilados, mormente Fer-nando VII, com quem D. Maria Teresa havia de entabular bom relacionamento e ser muito bem acolhida, na qualidade de infanta de Espanha com maioria de razão, por ser mãe de um legítimo infante daquele reino.

Referem as notícias que ela, princesa, D. Maria Tere-sa, entretanto, nunca deixou de seguir as actividades do pai, Príncipe-Regente, que nutria por esta sua filha, uma especial predilecção, a ponto de a ter elegido ajudante nos trabalhos do seu real gabinete. No entanto, na viuvez dos seus 19 anos o projecto de voltar a casar D. Maria Teresa não foi posto de lado, tendo sido alvitrado ainda, no Rio de Janeiro, seu puta-tivo noivo, Fernando III, grão-duque da Toscana. 34

O projecto não foi avante – diz-se – por falta de aprova-ção da própria princesa, sustentada em dois bons motivos: um, a idade do noivo (que enviuvara em 1802, da herdeira das Duas Sicílias, Luísa Teresa Amália), sendo D. Maria Teresa de Bra-gança da idade da filha mais velha do noivo, hipotético, a quem ligavam laços fortes de consanguinidade, por via da Casa Real de Espanha. O outro motivo – mais plausível e provavelmente o de maior peso na decisão – era o desejo, que D. Maria Teresa acalentava de fixar morada em Madrid, com o filho, mal findas-se a guerra em transe, contra o jugo napoleónico. 35

34 Florença:1769-1824.35 Documentos publicados por Ângelo Pereira, in As Senhoras in-fantas…, pp. 44-45. Sobre a ventilação deste casamento da princesa

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Só com o regresso em 1814 de Fernando VII ao po-der, é que foi reatado o diálogo familiar, situação que D. Carlota Joaquina aguardava, mal findasse a referida guerra, em curso. Todas as notícias vão no sentido de confirmar o bom clima de entendimento que corria, entre os dois irmãos, ainda mais, quando se percebeu que Fernando VII se nega-ra governar, debaixo da constituição de Cádis, abolindo-a. Estavam então lançadas as bases para negociar o casamento de duas das infantas portuguesas com os primos, coirmãos, da família espanhola, isto é: de D. Maria Isabel com o rei Fernando VII e D. Maria Francisca de Assis com infante D. Carlos Maria Isidro.

É precisamente em meados do referido ano de 1814 que, à corte do Rio de Janeiro, chegam alguns dos indiví-duos que tinham sustido a rebelião independentista das co-lónias espanholas da América, achando refúgio, entre duas situações, junto da princesa do Brasil – falamos sempre de D. Carlota Joaquina – que lhes deu, como seria de esperar, o melhor acolhimento.

Entre estes acham-se dois personagens cuja voz pas-sou a ser ouvida por D. Carlota Joaquina, de tal modo, que houve queixa da parte do encarregado de negócios espanhol, por causa do conselho e acção deles (Don Gaspar Vigodet e frei Cirilo Alameda y Brea), de perturbarem a palavra de Villalba, representante diplomático da Espanha liberal, visto falar em nome da Regência de Cádis. 36

da Beira, bem como das suas duas irmãs, as infantas D. Isabel Maria e D. Maria da Assunção, é de notar que pelo menos o nome da pri-meira tinha sido sugerido durante as negociações, que redundaram no casamento do príncipe herdeiro, D. Pedro, com a arquiduquesa Maria Leopoldina de Áustria. Carlos Henrique Oberacker Jr., A imperatriz Leopoldina: sua vida e sua época: Ensaio de uma Biografia, Rio de Janeiro, 1973. 36 Don Gaspar Vigodet era Tenente-general e teve o cargo de Capi-tão-general das Províncias do Rio da Prata, o mesmo que defendeu

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Ambas as referidas figuras, foram havidas no pré--acordo que levou à assinatura do duplo contrato nupcial, das duas infantas, sendo negociador privilegiado frei Cirilo, mediador entre as duas cortes, tendo viajado para Espanha, com a devida urgência, para aquele efeito.

Favoreceu a fraternal comunicação dos dois irmãos – escreve Rodezno – a coordenação de pontos de vista, no âm-bito de conter a insurreição colonial da América espanhola, que ainda decorria. Afirma o conde, que infere, ter sido dado poder a D. Carlota Joaquina, para tratar das questões concer-nentes àquelas colónias – isto, após a cedência dos direitos dela em 1812 – parece que, na intenção de contrabalançar o peso inglês, na corte do Brasil.37

O intrépido mediador, frei Cirilo, tornou o mais rápido que pôde ao Brasil e logo em Março de 1816, já estava tudo pronto para o embarque das duas infantas rumo a Espanha, a bordo da nau S. Sebastião. A presteza com que tudo foi

com brilhantismo a praça de Montevideu, antes da sua capitulação. Frei Cirilo Alameda y Brea é descrito pelo conde de Rodezno como sendo “un joven e inquieto fraile franciscano” cuja saga havia de per-durar pelo tempo afora, no meio político e clerical, tendo sido ele-vado à condição de Geral da Ordem Franciscana em Espanha, no reinado de Fernando VII. Após a morte deste rei, Frei Cirilo abraçou a causa carlista, tendo-se tornado, como afirma o conde, a alma do partido “transaccionista”, juntamente com o jesuíta P.e Gil e o general Maroto. Exilado em França, voltou a Espanha já no tempo de Isabel II onde foi eleito arcebispo de Burgos. Morreu à frente do Primado de Toledo em 1872. Rodezno, in ob. cit., p. 36.37 A maneira sigilosa como foi negociado o duplo contrato nupcial, não agradou ao ministro de Estado Ceballos, tal como não comprazeu ao representante espanhol no Rio de Janeiro, Villalba. Este, despei-tado, com a falta de consideração de que se queixava, não deixou de mostrar a sua hostilidade, na medida em que, nas informações que envia para Espanha, enfatiza negativamente – reparou Rodezno – a frágil saúde da futura rainha, D. Maria Isabel de Bragança. Ob. cit., p. 37 e nota.

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planeado, entretanto, sofreu, um mais ou menos imprevis-to, atraso, em virtude da morte da rainha D. Maria I, que ocorreu, precisamente, quando se fazia os preparativos da partida. 38

Só a 13 do seguinte mês de Maio, é que seriam publi-citados, os convénios oficialmente de efectivação das bodas--reais, embora, tudo indique que a notícia já corria de forma oficiosa, há algum tempo, uma vez que o apresto do embar-que das infantas não se podia realizar às escondidas. As con-tratualizações foram redigidas e firmadas, separadamente, ao longo de Fevereiro de 1816, a partir do dia 3, formalidade que terminou com a assinatura das respectivas escrituras, a 22 do mesmo mês e ano. 39

A data de 13 de Maio da publicitação dos acordos nupciais coincide com a do aniversário de D. João VI, altura por ele azada, para emissão do comunicado aos membros do corpo diplomático, representado no Rio de Janeiro e a toda a corte, fazendo constar que Sua Majestade Católica, por carta do seu próprio punho, de 7 de Fevereiro [de 1816], lhe havia antecipado a notícia, de que na corte de Madrid, com a bênção do Todo-poderoso, se haviam de celebrar, naquele faustíssimo dia [13 de Maio] os seus desposórios com Sua Alteza, a senhora infanta D. Maria Isabel e os do serenís-simo senhor infante D. Carlos com Sua Alteza, a senhora infanta D. Maria Francisca. 40

O plano previa inicialmente que D. Carlota Joaquina via-jasse na companhia das filhas, projecto que acabou por sofrer alteração, em virtude da morte de D. Maria I. Tal é a convicção do P.e Luiz Gonçalves dos Santos, secundada por Luís Marrocos, que o declara também, numa carta, já em cima do acontecimento.

38 A rainha D. Maria I faleceu no Rio de Janeiro a 20.3.1816.39 Cf. Colecção dos Tratados, Convenções…, T. V.40 Santos, ob. cit., T. II, p. 77.

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Escreve o primeiro que as cousas estavam dispos-tas para a jornada, mas que em vésperas da partida, tinha acontecido a lamentável morte de Sua Majestade Fidelís-sima e que, por tal motivo, a jornada das senhoras infantas fora suspensa, por alguns meses e se transtornara a ida da rainha [D. Carlota Joaquina, após o falecimento de D. Maria I e a subida ao trono de D. João VI].41

Em finais de Fevereiro, contudo, Marrocos informava o pai acerca de dois pontos que traziam suspensa a expecta-ção geral: 1.º a moléstia de Sua Majestade [D. Maria I]; 2.º o embarque e partida de Sua Alteza Real e Senhora Dona Carlota, com SS.AA. as Senhoras Infantas Dona Maria Isa-bel, Dona Maria Francisca e também Dona Ana de Jesus Maria. 42

Acrescenta o autor da carta que a ida de D. Carlota Joa-quina não era objecto de dúvida, naquela altura e, chega a avan-çar os custos, que envolvia a viagem da princesa do Brasil (logo rainha), com toda a família de servidores, assim das Senhoras como de Criados [que] estava pronta, com as respectivas aju-das de custo e que iam, da camareira-mor às açafatas, fechando nos varredores e moços de quarto e a tenção prevista de ser a saída a 20 de Março, se mantinha.43

O afã era muito intenso e o mesmo Marrocos não dei-xou de o registar e de afirmar que se sentia incapaz de des-

41 Idem, p. 92.42 Marrocos, Carta de 23.2.1816, in ob. cit., p. 320.43 O desconhecimento de alguns destes pormenores faz variar a data da saída das infantas do Rio, nomeadamente, a Rodezno, que afir-ma que a mesma aconteceu em Março. Quanto à ida de D. Carlota Joaquina, há notícias que deixam no ar a ideia de que ela ia para se curar da doença que padecia do “peito”, supomos bronquite crónica ou asma, referindo-se-lhe os diplomatas, ao mesmo tempo que nota-vam a “indiferença” de D. João, instigados pela própria D. Carlota Joaquina a fazer constar isso.

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crever o fervor e a pressa com que se fazia o embarque do “trem”, vendo passar caixões que custavam a carregar por 20 negros, mas que a nau S. Sebastião estava linda, renova-da e pintada, assim como a fragata espanhola de Vigodet. 44

Que as infantas aproveitavam todas as ocasiões, que podiam, para ir a bordo jantar, alvitrando-se quais seriam as embarcações que haviam de seguir na companha. Faziam-se apostas sobre a concretização daquela “empresa”, apesar de ele – Marrocos – não achar razão para tais dúvidas, senão as reflexões políticas, que fazia sugerir, a actual moléstia de Sua Majestade [D. Maria I]. 45

Na carta de 30 de Março, dá já conta do boato, que circulava na corte, esclarecedor do clima, gerado, pelo re-tardamento da viagem das infantas. Inopinadamente, eis que se tinha rompido o véu que encobria o mistério – escreve Marrocos. As infantas D. Maria Isabel e D. Maria Francisca tinham casado em Espanha no dia 4 de Novembro do ano anterior (1815) e na fragata Benjamim, que saíra há meses do Rio de Janeiro tinha seguido as procurações competentes. A partida achava-se diferida, só devido à aclamação de Sua Majestade (D. João VI), cerimónia a que haviam de assistir as infantas, embora as embarcações estivessem prontas.46

44 Marrocos, in ob. cit., p. 320.45 Idem, p. 319. 46 Os rumores, à volta dos casamentos reais, iam sendo cada vez mais precisos. Na carta de 28.5.1816, anuncia as directrizes quan-to ao rumo da fragata Benjamim que ia em “direitura a Cádis”, o que, na realidade se previa, “se para aquele porto não se oferecesse a saída mais próxima e mais cómoda de um navio espanhol, que foi em seu lugar, com ofícios de Vigodet e do célebre [sic] frei Cirilo.” Acrescenta que havia ordem para a dita fragata “não levar malas [de correio], com razão de sua comissão (…)”. “O embarque das duas noivas está próximo, segundo consta: já aqui deram beija-mão aos espanhóis no dia 19 e hão-de levar muitos criados para Espanha…”. Ibidem., p. 338.

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Quer dizer que a viagem, na qual estava previsto ir D. Carlota Joaquina, fora justificada, agora, com a cer-teza dos reais matrimónios, de que só se sabia, através de vagos rumores. Esta notícia tem foros de verosimi-lhança, se admitirmos que só corria à boca pequena, o assunto de que tratavam frei Cirilo e o Tenente-general Vigodet. Marrocos, de facto, inicialmente não fala de casamentos, a propósito da propalada viagem e dos seus aprestos.47

Também é verdade que pendeu sobre a saída das in-fantas, já sem a mãe, a aclamação de D. João VI cujas ce-lebrações o próprio rei postergou para terem lugar daí a um ano, sobre a morte da rainha e mãe, D. Maria I, acabando por acontecer em 1818, no dia 6 de Fevereiro, fazendo coincidir a cerimónia da elevação ao trono com o 1.º Domingo da Quaresma e celebração das Chagas de Cristo. 48

Marrocos adianta um dado que não se achou noutra fonte, a ver com o arranjo do casamento das outras duas in-fantas, irmãs das noivas, D. Isabel Maria e D. Maria da As-

47 É só na carta de 10.7.1816, que Luís Marrocos remete para dia de S. Fernando (que Espanha celebra a 30 de Maio) dando conta ao pai de que naquele dia, emblemático, como era, em Espanha, tinha tido lugar, na Capela Real do Rio de Janeiro, um Te Deum em Acção de Graças, pelos felizes desposórios de SS.AA. (…) celebradas antes, em Madrid, no dia 13 (de Maio). ” A notícia é curiosa, ainda, noutro aspecto, porque indica que tinha sido aberta a Real Capela “pela 1.ª vez, depois que havia sido toda gessada e dourada, em que se gas-taram 19 dias só e se despendeu grande soma de mil cruzados”. Ao acto litúrgico seguiu-se um “beija-mão público de parabéns (…).” El-Rei condecorara nesse dia “ao Tenente-general Vigodet com uma grã-cruz da Torre e Espada. SM. Católica, a senhora D. Maria Isabel, condecorou igualmente, por sua própria mão, a todos os oficiais es-panhóis, que aqui se achavam, com a insígnia da Ordem de Cristo”. Marrocos, in ob. cit., pp. 341-342.48 Santos, in ob. cit., T. II, p. 212.

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sunção: a primeira com o duque de Berry49 e a segunda com um filho do rei de Nápoles.50

Sobre o filho (não identificado por Marrocos) do rei de Nápoles – adianta aquele – o casamento podia ser com a princesa D. Maria Teresa, em vez da irmã, o que vai ao encontro do que se disse, acerca do plano de voltar a casar a princesa da Beira. Finalmente, ao seu estilo, Marrocos não se exime de comentar que a política do nosso Ministério tinha sido assaz sublime, em virtude do sigilo que conseguiu manter e pela forma como geriu os tratados de casamento das senhoras infantas.51

Qualquer destes planos e em particular, sobre o possí-vel noivado da princesa D. Maria Teresa, não obstante não ter ido por diante, enquadra-se a realização daquele noivado no xadrez da Europa, pós-napoleónica, dominada pela po-lítica de Metternich, chanceler de Francisco I da Áustria, o qual, a par do concerto das Nações no Congresso de Viena, geriu ou influenciou, de modo decisivo, a Santa Aliança, iniciada esta a partir das propostas do czar Alexandre I da Rússia e Frederico Guilherme III da Prússia.

Portugal, mal saído da calamidade das invasões fran-cesas, no contexto da guerra peninsular, só poderia achar--se do lado em que se achou e onde se achava os demais reinos, ducados e principados cujos soberanos, unidos por laços de consanguinidade, uma vez restituídos aos seus tro-nos, notadamente, as dinastias de Bourbon e de Habsburgo, norteado, Portugal, pelos mesmos valores e princípios que sempre tinham pautado, estas casas-reinantes, no fundo, se atendermos ao império russo, a grande cristandade euro-

49 Carlos Fernando de Bourbon Artois (1778-1820).50 Francisco I das Duas Sicílias (1777-1830). Já viúvo da 1.ª esposa, arquiduquesa Maria Clementina de Áustria.51 Carta de 30.3.1816, in ob. cit., p. 331.

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peia, entendida, nas suas orientações católica, ortodoxa ou luterana. 52

Múltiplas uniões matrimoniais, naquele exacto perío-do de tempo, ressurgiram, reforçando as alianças entre reinos e nações, vilipendiadas, pela força imperialista napoleónica. Foi este o princípio que prevaleceu, no tratado que anteci-pou o casamento do herdeiro português, príncipe D. Pedro (e 1.º imperador do Brasil), com uma das filhas de Francisco I da Áustria, a arquiduquesa D. Maria Leopoldina.53

É neste contexto que deve ser lido, além do mais, por ser do interesse particular das duas coroas ibéricas, o casa-mento das filhas de D. João VI e D. Carlota Joaquina, com os príncipes, seus tios. Assim, completados os três meses de luto, pela morte da avó, rainha D. Maria I, vimos aprestar--se, finalmente, as naus que hão-de levar as noivas ao seu

52 Estudiosos não hesitam em atribuir ao czar Alexandre I da Rússia o ideal da Santa Aliança cujo lema, congregador, assentava no eleva-do pressuposto da justiça, paz e caridade contrapondo-se às ideias do iluminismo, veiculadas pela revolução francesa.53 Acerca desta união, já foi escrito, o que fica acima referido: “D. Leopoldina representa na história luso-brasileira, uma grande parte da Europa do seu tempo, na América portuguesa: liga-nos à cultu-ra vienense, a Metternich contra Napoleão, ao legitimismo medieval contra o demoliberalismo; oferece ao Brasil reinado, um desvio da aliança utilitarista inglesa a favor do conservadorismo imperial das monarquias independentes; defende D. João VI do isolamento ame-ricano e coloca-o face a face do imperador Francisco I da Áustria e Metternich, que é a Santa Aliança. É D. Leopoldina, pela sua simples presença no continente americano, um agente ideal de comunicação do Brasil com a Europa […]. Ligando a Casa de Bragança à Casa de Habsburgo, contra a vontade da Grã- Bretanha, D. João criou no Brasil uma força nova, em que colaborava, pessoalmente, como me-dianeira a princesa real, sua nora.” Oberacker Jr., in ob. cit., Introd., p. XXVI. Não obstante o interesse que o assunto propõe, não nos deteremos sobre o casamento de D. Pedro e D. Maria Leopoldina, por sair do cerne desta reflexão imediata, sobre as filhas de D. João VI.

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destino espanhol, sem a mãe, D. Carlota Joaquina, que terá desistido dos seus intentos, ficando no Rio, pelas razões, ób-vias, que se intrometeram, como rainha-consorte.

Qualquer uma das duas citadas fontes – o P.e Luiz Gon-çalves dos Santos, em sintonia, com a voz de Luís Marrocos – é precisa, na maneira como descreve a partida das duas infantas e o clima emocional da despedida, da parte, não só da família real, mas também do povo, que se ajuntou ali. Dos grandes da nobreza, no séquito que embarcava, iam o marquês de Valada e o visconde de Asseca e respectivas esposas, levando, o primei-ro, a incumbência de protagonizar o cerimonial da entrega das noivas, na recepção, em Cádis. Com as suas comitivas, as duas irmãs fizeram entrada e instalação a bordo da nau S. Sebastião, na manhãzinha de 2 de Julho de 1816, nau que zarparia, majes-tosa, ao amanhecer do dia seguinte. 54

54 Eis o relato do P.e Luiz Gonçalves dos Santos: “Finalmente, no dia 2 de Julho, pelas 9h da manhã, embarcaram a bordo da nau S. Sebas-tião, as Sereníssimas Senhoras Infantas de Portugal, D. Maria Isabel, rainha de Espanha e D. Maria Francisca de Assis, acompanhadas dos Ex.mºs Viadores, o Marquês de Valada e o Visconde de Asseca, dos quais, o Ex.mº Marquês e a Ex.mª Marquesa, sua esposa, tiveram a honra de acompanhar a Sua Majestade Católica e a Sua Alteza até Cádis, onde o Ex.mº Marquês faria a entrega solene de tão preciosas jóias ao Ex.mº Procurador d’el-Rei Católico, que ali as havia de rece-ber e conduzir para Madrid. Neste mesmo dia (2), concorreram à nau, muitas pessoas da primeira nobreza, precedendo-as a Rainha Nossa Senhora [D. Carlota Joaquina], que se demorou com as suas Augustas Filhas, até às 10h da noite, em que voltou para o Paço. No dia seguin-te, Sua Majestade, a Rainha Nossa Senhora, se dirigiu outra vez, para bordo da nau e logo pelas 8h da manhã, largou a nau S. Sebastião com um benigno terral [vento] todas as velas, tendo arvorado o estandarte real. Salvou, então, a fortaleza da ilha das Cobras e, sucessivamente, todas as mais, até a da praia Vermelha, que foi a última, estando já a nau fora de barra. Muitos escaleres foram em seguimento da nau, até grande distância das fortalezas e foi, então, que a Rainha Nossa Senhora, dando o último adeus às suas Augustas Filhas, a Rainha de Espanha e a Infanta, se retirou e veio desembarcar na praia Vermelha,

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Luís Marrocos secunda o P.e Luiz Gonçalves dos San-tos, mas dá à notícia um toque muito pessoal, além de par-ticularizar alguns aspectos, quanto à descrição da comitiva. Menciona igualmente um lado interessante – provavelmente vivido pelo próprio – que é o beija-mão público de despedi-da a bordo ao qual foi imenso povo, a que se dava entrada na nau, sem excepção de pessoa. 55

Numa linguagem chã, o bibliotecário dá-nos conta de que a saída das reais noivas tinha sido muito vistosa mas pranteada, enquanto evidencia o contraste das despedidas do rei e da rainha. Esta – da mesma forma que narra o P.e Santos – embarcou na nau, onde viajaram as filhas e foi de-sembarcar adiante, após o bota-fora, na praia Vermelha.

Já D. João protagonizou o lado terníssimo – desfeito em lágrimas – contrastando nisso com o ânimo varonil de D. Carlota Joaquina, que deixou de manifestar publicamente o que lhe ia na alma, para o revelar no desvelo dos preparos. Na conserva da nau S. Sebastião seguia a fragata Soledad, onde viajou o encarregado da missão, Tenente-general Vi-godet e a fragata Príncipe D. Pedro, que levava, de volta a Lisboa, o marechal Beresford.56

donde chegou ao Paço, às 11h1/2.” In ob. cit., T. I., pp. 92-93.55 Carta de 10.7.1816, in ob. cit., pp. 341-343. Parte desta carta, no que respeita à matéria em pauta, é transcrita na íntegra por Ângelo Pereira, embora notemos a gralha, ano de 1810, em vez de 1816. As Senhoras Infantas, Filhas de el-Rei D. João VI, p. 25.56 Marrocos, idem. Adversamente ao clima de união familiar, este autor cruza informações de carácter bélico, na região do Rio da Pra-ta. Depois de dar conta da chegada de tropa portuguesa ali, acres-centa que se tinham “repetido exercícios de Caçadores” recebidos pela população com muitas honras, enquanto representavam “aque-las batalhas, em que se têm feito famosos [da guerra peninsular] ” e acrescentava que, naquela semana, tornavam “a embarcar todos [para ir] desembarcar em Maldonado, a fim de atacarem com vigor aos es-panhóis do Rio da Prata”, que tinham passado já a “nossa fronteira”. Logo que fosse dada a partida da tropa, sairia também o Marechal

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A partir de Fevereiro, a Gazeta de Lisboa passou a divul-gar as notícias que iam sendo plantadas, aos poucos, junto da opinião pública, tanto espanhola como portuguesa, a respeito dos duplos esposórios, antes, tão sigilosamente tratados, pela mãe das noivas e, agora, às claras, uma vez que passara a ser do conhecimento geral, acção consentida, pelos respectivos gabi-netes e cortes.57

Achamos no número de 22 daquele mês um comunicado, que nos remete para 14, dia em que Fernando VII de Espanha, por seu decreto, fez constar os postulados em que assentava a união dos membros das duas famílias, recuando aos interesses da coroa e à felicidade dos povos, diligenciados, anteriormente, por seu avô, Carlos III, através do pacto que o tinham levado a concordar, com a rainha Fidelíssima, os duplos esposórios dos infantes de Espanha, D. Carlota Joaquina, sua neta e de D. Gabriel de Borbón, seu filho, com D. João (VI) e D. Mariana Vitória, infantes de Portugal.58

Movido de idênticos e comuns e recomendáveis interes-ses, desejando se aumentasse e estreitasse com novos e mais fortes vínculos este parentesco, tinha aquele soberano, na quali-dade de rei de Espanha, tratado com D. João, Príncipe do Bra-sil, Regente do Reino de Portugal, de unir-se pelo matrimónio, com a infanta D. Maria Isabel Francisca, filha segunda deste último; e o Infante D. Carlos Maria Isidro o mesmo, com sua filha terceira, a infanta D. Maria Francisca de Assis.59

Beresford para Lisboa “com as ordens competentes para aí organizar outra divisão de 6000 homens” que se destinava a guarnecer o Rio de Janeiro e a Baía. In Carta de 28.5.1816, pp. 338-339. 57 Do ponto de vista da comunicação social, chama-nos a atenção para a discrepância de datas oficiais, do clausulado dos convénios nupciais e a sua divulgação, acentuando o que fica dito acima, a este propósito. Cf. Colecção dos Tratados, Convenções…, T. V.58 Matéria de que trata a autora, nos livros: La Menina…; Se Sauda-des matassem…; Com o mais Fino Amor…. (V. Bibliografia).59 Quando se declara segunda e terceira das filhas de D. João VI e

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Tinham sido para esse fim expedidos os convenien-tes plenos poderes, para se ajustar e concluir as convenções matrimoniais, o que se achava já realizado, com a melhor inteligência e harmonia e cerrado o entendimento, que de-via preceder os dois enlaces, a celebrar, com a solenidade e cerimónias augustas, que a sua grandeza exigia. Conclui o comunicado régio, reiterando algo, que chama a atenção, na medida em que revela a alta valia, em que era tida a nova realidade política e o quanto havia a esperar dela, acredi-tando-a duradoura e ajustada, ao pressuposto de regenerar e restaurar o sistema antigo, isto é, vigente, anteriormente, à instauração do constitucionalismo liberal de 1812, em Es-panha.

O convénio nupcial dava disso a mais acabada de-monstração, visto assentar nos exactos valores que, por muitos séculos, tinham escorado e norteado a ordem tem-poral e espiritual da Europa, subvertidas, entretanto e de cuja ruina se erguia e refazia a custo, agora. Neste senti-do, se entende o manifesto d’el-Rei Fernando VII, nome-adamente, quando ele se compromete e admite de ver nos referidos enlaces os resultados mais favoráveis à religião católica, à minha coroa e aos meus mais fiéis e amados vassalos.60

Aquele manifesto, sob a forma de decreto, seria publi-cado na íntegra num número especial da Gazeta de Lisboa do dia 6.3.1816, vertido em português, com o título “Artigo de ofício”. Ao encontro do enunciado, trata-se de um excelente repositório dos ideais, que norteavam, naquela altura, a políti-ca de Fernando VII, logo após a saída do cativeiro e acabado de regressar ao trono. Menos de dois anos decorridos sobre aqueles factos, o documento vinha dar público testemunho do

D. Carlota Joaquina ter em mente as fêmeas e não a ordem do nasci-mento dos filhos do casal.60 Gazeta de Madrid de 17.2.1816; Gazeta de Lisboa de 22.2.1816.

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clima, propiciado pelo seu retorno, ao poder, não obstante as manobras das diversas correntes de opinião, que permeavam a sociedade espanhola, trabalhada pela intelligentzia, aposta-díssima na defesa e manutenção do sistema liberal, falido.

É significativo o teor do preâmbulo do referido ofício, onde são invocados os golpes na carne e no espírito da na-ção, deixados pela revolução e guerra civil:

Depois da mais sanguinolenta e gloriosa luta, que tem co-nhecido os séculos, sustentada pela magnânima e leal na-ção espanhola, contra o opressor da Europa, coroou o céu os seus desejos, restituindo a seu trono, o seu amado sobe-rano o Senhor D. Fernando VII com seus, irmão e tio, os Sereníssimos Senhores Infantes, D. Carlos Maria Isidro e D. António.61

Ganham ainda maior sentido as palavras do monar-ca, quando avaliza a falta das primeiras e urgentes medidas, indispensáveis para afiançar a segurança e quietação dos seus amados vassalos, reparar o imenso acúmulo de males que, naqueles anos, haviam experimentado e achando-se restabelecida a paz na Europa era importante dedicar-se, agora, toda a sua atenção ao gravíssimo cuidado de um en-lace que afiançasse para o futuro o sossego e a felicidade da monarquia.62

O ascendente que Fernando VII toma como exemplo, não podia ser melhor do que aquele que ele invoca: o de Car-los III, seu avô, monarca cuja imagem perdurava, no ima-ginário comum da nação espanhola, destinada a atravessar gerações, numa aura de poder e grandeza, nomeadamente, quando se firmara a renovada aliança com a casa reinante de Bragança. Na verdade, visava mais longe o rei entronizado,

61 Gazeta de Lisboa de 6.3.1816.62 Idem.

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do que lembrar o facto, nesta evocação, se se tiver em mente o quadro político europeu, que redesenhava e devolvia, as fronteiras dos antigos poderes, do mapa da Europa, desde logo, com o regresso da dinastia Bourbon, ao trono francês.

A proverbial rivalidade da Espanha e Inglaterra tinha sido atenuada, na medida em que, ao empenho militar des-ta última, se devia muito, do impulso libertador, do invasor napoleónico. Neste mesmo contexto, não podia ser escamo-teado, por ser tão evidente, o concerto da política de defesa comum, dos reinos peninsulares, sob a égide daquela então, emergente, potência mundial.

Era, por isso, mais premente do que nunca, a manu-tenção da dinastia espanhola, que a questão da independên-cia das colónias da América do Sul, fomentada pelo gabinete inglês, contrariava, no terreno, mas que em matéria de jogos diplomáticos, convém não esquecer que o modo de se mover das potências aposta no absurdo.

Três dias de gala com iluminação nocturna foi o decre-tado, para assinalar em Madrid, publicamente, o feliz anún-cio dos noivados, com início a 22 de Fevereiro de 1816, o da outorga dos contratos, sendo o dia posterior a este destinado ao beija-mão geral e o terceiro, ao beija-mão dos Tribunais. Não se pode dizer que o monarca espanhol tivesse agido à socapa, tendo em atenção o protocolo, que foi mantido e guardado rigorosamente, conforme os preceitos e solenida-de usual da corte de Madrid.63

63 A notícia das fontes indicadas descreve circunstanciadamente os passos da cerimónia e identifica as figuras que incorporavam o imenso cortejo, uma a uma, trajados de grande gala, servidores do Estado e toda (quase) a grandeza de Espanha, identificadas pelo título e cargos respectivos: mordomos-mores, damas e camareiras, estes, os destinados ao serviço da rainha de Espanha e da infanta, sua irmã. Retivemos a identificação dos dois mordomos: marquês de Valverde, conde de Torrejón e marquês de Lapilla e Monasterio, Cavaleiros da

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Os números seguintes das gazetas têm por objecto central os noivados e saíram em Madrid a 27 de Março. Dá conta o periódico espanhol de que no dia 25 tinham tido a honra de congratular a SM em nome da Real Maestrança de Sevilha,64 pelo ajustado enlace de Fernando VII com a Sereníssima Senhora Infanta de Portugal, D. Maria Isabel Francisca, o duque de Abrantes65, o marquês de Alcanices e o marquês de Sottomayor.66

Por toda a Espanha as demonstrações de regozijo eram manifestas, sendo de 29 outra notícia de Madrid, onde se faz o relato de idênticas cortesias no dia 11, estas pela Real Maestrança de Ronda, ali representada por D. Pedro Cevallos, D. Fernando Queipo de Lhano e D. Domingos Ra-mires de Arelhano, cerimónia alargada ao infante D. Carlos Maria Isidro, pelas razões análogas, do casamento dele com a Senhora Infanta D. Maria Francisca de Assis, respeitos, recebidos com notório júbilo, pelos visados. A 25, exibira-se a Real Maestrança de Granada, representada pelo tenente de D. Carlos Maria Isidro, D. João de Deus Padilha e Escove-do, pelo conde de Clavijo e D. Luiz Fernandes de Córdova.

Da última cerimónia, a Gazeta de Lisboa destaca, a partir da sua congénere de Madrid, passagens do discurso de circunstâncias, que merecem ser realçadas, dado o contexto político em que foram proferidas.

Senhor: A Vossa Real Maestrança de Granada, que entre to-dos, os Corpos do Estado, tem procurado distinguir-se sem-pre em amor, respeito e fidelidade para com seus amados so-beranos, nos encarrega hoje de congratularmos a VM pelo tratado enlace, com a Alta e Poderosa Casa de Portugal. Grã-Cruz da Real Ordem de Carlos III de Espanha.64 Corpos de nobreza de Espanha, dados ao exercício da arte da picaria.65 Título espanhol, criado no século XVI. Não confundir com o títu-lo dado a Andoche Junot, por Napoleão.66 Gazeta de Lisboa de 4.4.1816.

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E prossegue:

A bela educação e prendas de que é dotada a augusta so-brinha de VM a Sereníssima Senhora D. Maria Isabel, suas eminentes virtudes, assim cristãs, como civis, sem dúvida terão decidido VM a tão acertada eleição e prometem à monarquia espanhola, um reinado tranquilo, glorioso e fe-liz. Digne-se VM aceitar, benigno, estas demonstrações de gratidão e de respeito, com que a Maestrança de Granada assegura à Vossa Real Pessoa, a sua constante lealdade.

Disse o mesmo orador dirigindo-se ao infante D. Carlos:

Sereníssimo Senhor: O Corpo da Real Maestrança de Gra-nada, que merece a honra de ter a VA por seu irmão-maior, nos autorizou para darmos os parabéns a VA, pelo seu ajus-tado consórcio com sua sobrinha, a Sereníssima Senhora D. Maria Francisca de Assis cuja alma, verdadeiramente gran-de, religião e eminentes virtudes, unidas às de VA, promete à nação espanhola os mais felizes resultados. Estes são os votos que a Maestrança de Granada tributa, com o maior amor e respeito, a VA.67

Se levarmos na consideração, que o âmago dos discur-sos nos suscita como exemplo, avalia-se por ele o sentimen-to dominante, que percorria a nação espanhola, no desejo de reconciliação com o passado e recuperação dos seus valores, por oposição à lembrança trágica dos acontecimentos dos últimos anos, tão vívidos na memória de toda a gente. A ex-periência, mais do que dolorosa, animava a vontade grande de arrepiar caminho, a ver se ainda se ia a tempo de sarar e regenerar a ligação desfeita entre nação e trono.

Por outro lado, não pode passar despercebida a alta conta em que era tido o benéfico e augurado papel das in-fantas portuguesas, como participes de tão eminente anseio

67 Idem.

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– sendo elas, filhas de D. Carlota Joaquina, infanta de Espa-nha, factor a não menosprezar – evidenciado na educação, prendas, virtudes cristãs e civis da futura rainha e a alma verdadeiramente grande, religião e virtudes da esposa do infante.

A confiança que o povo demonstrava ter nas qualida-des das infantas de Portugal, realça o alcance do projecto de reunião e desmistifica o preconceito estigmatizante da prole de D. Carlota Joaquina e D. João VI, por imprepa-ração – para dizer o mínimo – a qual, posteriormente, pela prática das suas vidas e exemplos de coragem, determinação e virtudes, de que deu prova irrefutável o testemunho, pre-nunciado.68

Os cumprimentos e o regozijo eram óbvios, pelo no-ticiário que o periódico português reflecte, do congénere de Espanha. Nas páginas das duas Gazetas acompanhamos as notas, que destacam os actos solenes e que não podem ser escamoteados, pelo testemunho evidente da onda de mudan-ça, que percorria a nação espanhola. Correspondem a esta onda, as novidades – as primeiras – que relatam a expecta-tiva, criada em torno da chegada das noivas e suas comiti-vas, notícias, todavia, que nunca indicam a data prevista da

68 Pondo de lado considerações quanto à personalidade das pes-soas em questão, todos os filhos do casal foram educados, segundo os preceitos dos príncipes, no que toca à etiqueta, a elegância e con-duta social, bem como, religião e valores tradicionais, além do apre-ço pela leitura. Disso há testemunhos coevos, além da prova cabal, fundada na qualidade do corpo de mestres que teve a seu cargo tais ministérios. V. Francisco António Martins Bastos, Breve Resumo dos Privilégios da Nobreza: 1.º dos Professores Públicos; 2.º dos Mestres dos Príncipes; 3.º dos Aios, dos mesmos Senhores, &, Dedicado a Sua Majestade Fidelíssima, el-Rei Dom Pedro V, Imprensa Silviana, Lisboa, 1854; Carlos Eduardo de Almeida Barata, Grandes Mestres servindo aos Reis e Príncipes – A Nobreza da Nobreza (1734-1889). (Artigo Web).

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chegada – conforme notámos – num eventual controlo de informação, evitando proporcionar encontros, indesejáveis, em alto mar, visto os dias que corriam, não serem molde a afastar fundados receios.

Em Alicante, a notícia que corria a 30 de Março, remetendo para 22, era ser este o dia previsto para o em-barque das infantas, no Rio de Janeiro, dando conta de se ter principiado as preces públicas para implorar ao Todo--Poderoso para conceder uma feliz navegação às Serenís-simas Senhoras Infantas de Portugal, indício da dificul-dade e escassez de comunicação natural, dada a lonjura, uma vez que já se sabe, que a saída fora protelada, devido à morte da rainha D. Maria I, facto que se ignorava ainda, na península.

Já a 25, seguia-se nova rogativa pública solene, por conta do cônsul de Portugal no reino de Valência, pelo mes-mo motivo e pronta navegação de SAR a princesa do Bra-sil (D. Carlota Joaquina), que intencionava acompanhar as infantas, conforme constava na corte de Espanha e de suas augustas filhas, notícia que evidencia o desfasamento refe-rido. Para a cerimónia de cariz religioso, foram expedidos convites aos cônsules estrangeiros, daquela praça e a outras pessoas da maior distinção, que não deixariam de acorrer ao luzidio e piedoso acto e em cuja homilia se rogaria pelas reais famílias, das Casas de Bragança e Borbón.69

Daí a quatro meses as cartas de Madrid e do interior de Espanha ainda não anunciavam nada de grande impor-tância – escreve a Gazeta de Lisboa – e ainda não se sabia quando é que chegariam do Brasil, as princesas, ansiosa-mente esperadas. A par disto, sabia-se, que as pessoas en-viadas pelo rei (Fernando VII) para as receber em Cádis lá permaneciam e por todas as terras de caminho de Cádis a

69 Gazeta de Lisboa de 14.4.1816, repercutindo a fonte em Espanha.

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Madrid já se podia ver o arranjo de festejos e arcos triunfan-tes para a passagem das princesas.70

Finalmente, a Gazeta de Lisboa trazia, sempre a partir da fonte em Madrid, com data de 9 de Setembro de 1816, que remetia para a nota oficial de 4 que à 1h30m da tarde se tivera em Cádis a dita tão completa, quanto suspirada de ver fundear na sua baía, a nau portuguesa S. Sebastião e a fragata Soledad, que conduziam a bordo SM, a Rainha Nossa Senhora [D. Maria Isabel de Bragança] e SA, a Sere-níssima infanta D. Maria Francisca de Assis, no término de uma feliz navegação de 62 dias, sem terem experimentado indisposição alguma.71

Serve o dito aviso para participar as medidas e precei-tos, preparados, a fim de realizar, presencialmente, a união dos dois casais, por meio de uma representação dos reais noivos, que se deslocara a bordo. De facto, a bordo da nau S. Sebastião, é que teve lugar a celebração e para a realizar foi designado o conde de Miranda com todas as outras pessoas da real comitiva, nomeada, por Fernando VII. Naturalmen-te representação real foi recebida pelas augustas senhoras com a mais grata e afável benignidade. Dado o adiantado da hora, as noivas não saíram a terra.

A bordo da nau voltaria o dito enviado e sua comitiva, com o arcebispo de Laodicéia, o qual, com a solenidade cos-

70 No mesmo número da Gazeta de Lisboa, chama-nos a atenção a curiosa notícia da incomum deslocação de cada vez mais ingleses, de Londres para Paris, séquito que engrossava diariamente e englobava dois membros da oposição britânica. Entre o grande número de in-gleses que habitavam os arredores de Genebra, notava-se a presença de um dos poetas mais distintos da Inglaterra, Lord Byron, que tinha peregrinado grande parte do Oriente, fazendo notar o autor da notícia que as obras dele eram cheias de imagens e de gosto, mas um pouco lúgubres. Gazeta de Lisboa de 19.7.1816.71 Gazeta de Lisboa de 18.9.1816.

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tumada celebrou as cerimónias nupciais de uma e de outra, esposadas. Um esplêndido almoço foi então servido, ainda a bordo, à custa e em nome da corte portuguesa. Só após, é que as noivas passaram ao escaler real e desembarcaram em terra.72

Diferindo entre si os testemunhos coevos, apenas na ri-queza dos pormenores, fruto do ponto de vista do observador, mas não quanto ao cerne da questão, vai novamente a notícia da Gazeta de Lisboa, dando conta da nota oficial, publicada na de Madrid, de 9 de Setembro, ao encontro de um relato par-ticular, com o propósito de memorizar a relevância do grande acontecimento. Do mesmo modo, realça a Gazeta de Lisboa os episódios mais dignos, da ocasião, acentuado pelo troar da artilharia das embarcações, da praça-forte e das terras à volta de Cádis, que retumbavam longe, sublinhado pela força dos vivas! e aclamações do povo que ali se juntou.73 72 Conhece-se a extensa lista de víveres e outras delicadezas para usufruto do séquito das infantas a bordo e já em terra, documentadas pela contabilidade, sob a responsabilidade do marquês de Valada, que apresentou as devidas relações de contas. Publicado por Ângelo Pe-reira, sob indicação Col. do Autor, in Os Filhos d’el-Rei D. João VI, pp. 213-21973 Digno de realce pelo interesse e memória histórica é o relato diário da condessa de Linhares, D. Gabriela Ignacia Asinari Di San Marzano, camareira-mor que viajou desde o Rio de Janeiro até Cá-dis e depois até Madrid, na companhia das duas infantas. Viajou a condessa no lugar da rainha D. Carlota Joaquina, a quem a condessa escreveu depois, dando conta do que de imediato se lhe oferecia di-zer, acerca da viajem e disso conhece-se a resposta que lhe enviou, na sequência das novidades, a própria D. Carlota Joaquina: “Muito gos-to me destes com as notícias que me comunicastes em data de 16 de Julho de irem passando bem de saúde minhas Filhas, depois dos pri-meiros incómodos de mar; estimarei que esta felicidade continue até ao fim e que eu logo tenha a satisfação de o saber. Também estimarei que estas recebas com perfeita saúde e satisfações e que na posse do mesmo benefício achasses os teus Filhos e quanto te pertence. Estes dias em que me mudei para a casa de Mataporcos, não o tenho passa-

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Contrastava com o alvoroço ruidoso do regozijo. o semblante singularmente brando e benigno volver d’ olhos da nossa soberana [D. Maria Isabel de Bragança] sobre

do sem incómodos de defluxo (constipação/gripe), mas já estou me-lhor e em termos que me permite variar os ares até St.ª Cruz visitar a el-Rei e na 2.ª feira próxima será a partida. Rio de Janeiro, 10.8.1816. À condessa de Linhares @ C.J.R.”. Segue-se a esta carta da rainha para a condessa de Linhares, uma outra, já de Janeiro de 1817, que transcrevemos, pelo interesse de que se reveste, em nossa opinião, de ouvir em privado a palavra de D. Carlota Joaquina: “Recebi duas cartas tuas de 4 e 31 de Outubro do ano pp (1816), em que me fazes ver com miudeza todos os acontecimentos que ocorreram na digres-são que fizeram com minhas Filhas até ultimar-se a tua comissão em Madrid; estimando muito que tudo se fizesse com muito sucesso e à satisfação alegre de minhas Filhas, seus Maridos e Tios e dos mesmos povos, por onde transitaram: Eu me congratulo destas boas-novas, bem como da que me dás na 2.ª carta, de haveres observado antes da tua partida de Madrid, indícios ou sintomas de haver sucessão. Estimo que o teu merecimento o conhecessem e te premiassem com as honras que me dizes, sobre o que nada tenho a dizer-te, mais do que teres o meu amplo consentimento para usares das insígnias delas como pretendes e também o d’el-rei. Nada tinha que te perdoar por defeitos que tivesses cometido, por coincidirem os teus serviços e desempenho com a eleição que de ti fiz para essa comissão, de que estou muito satisfeita. Deus te guarde muitos anos. Rio de Janeiro, 4 de Janeiro de 1817. À condessa de Linhares. @ C.J.R.” Ângelo Perei-ra acrescenta uma nota de rodapé onde indica a proveniência destas cartas: “Arquivo do actual Conde de Linhares, D. Carlos de Sousa Coutinho, acrescentando que o monograma C.J.R. era conforme o original das cartas. In ob. cit. pp. 229-230. A condessa de Linhares fez relato da sua missão e deu conta, do que fez, além da rainha, a D. João VI, relato que o mesmo Ângelo Pereira publicou, na ob. cit., pp. 228-229. Não menos cuidadoso foi o marquês de Valada cujos relatos foram publicados pelo mesmo autor, a pp. 224-228 da citada obra e ainda do general Vigodet para o mesmo rei, a pp. 220-223, seguido da missiva do enviado, à corte de Madrid, Joaquim Severino Gomes, para D. João VI e para o marquês de Aguiar, a pp. 223-224, missivas que indica serem da Col. do Autor, as quais transcrevemos in Apên-dice a este livro.

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os seus domínios e vassalos, bem como também o de sua augusta irmã [D. Maria Francisca de Assis] – sublinha a Gazeta de Madrid.74

De aparente insignificância, deve-se, contudo, atender ao alto alcance daquele reparo, pelos sinais que imagina-mos, do rosto das infantas e ensejo que a multidão colhia de poder contemplar a serenidade das infantas – seu apanágio real – do qual toda a gente andava apartada, pela força im-piedosa dos desvarios e clima de guerra cujo rasto fumegava ainda na lembrança e no olhar sofrido da nação espanhola.

É de reconciliação o sentimento que desponta, nos corações de um povo atormentado, almejante de esperan-ça e paz, que previam por meio daquela bênção, simboli-camente anunciada, nos rostos das duas princesas. Gestos de majestade não se ensinam: transmitem-se pelo costume e dele vinham instruídas as duas irmãs. Ciente disso, o relator garante que o espectáculo era tão terno como jucundo, apro-veitando para transcrever o discurso da ocasião, dedicado à jovem rainha.75

A nova rainha de Espanha deu a conhecer a sua inten-ção de ir em acção de graças, à catedral de Cádis, episódio que propiciou uma atitude, habitual das populações, analo-gamente, ao que se via também em Portugal, de mostrar o seu regozijo, tomando alguns populares o lugar das pare-lhas, que puxavam o coche, querendo todos distinguir-se na demonstração de lealdade.

Já na Sé, as princesas foram recebidas à porta pelo prelado e cabido e dali, depois da entoação do Te-Deum, se recolheram ao palácio, contínua e efusivamente, aclamadas. De sua iniciativa e arbítrio, ambas assomaram à varanda, repetidas vezes, por largo de tempo, antes de se recolher a

74 Gazeta de Lisboa de 18.9.1816. 75 Idem.

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tomar uma refeição em privado, servida pelos seus áulicos, como era do costume, antigo.76

O aparato de arte efémera, que serviu de palco da fes-ta, traz à recordação outro, idêntico, erguido no Rossio de Lisboa, por ocasião dos matrimónios dos infantes de Portu-gal e Espanha, D. Carlota Joaquina e D. João e D. Mariana Vitória e D. Gabriel de Borbón, à imitação do que se elevara em Madrid, para assinalar festivamente a mesma circuns-tância.77

Aqui vemos – segundo a narrativa das festas de Cádis – um molhe, semicircular, circundado por quatro balaústres e pilares, sobre os quais foram colocadas quatro colossais estátuas, simbolizando as virtudes cardiais. Em volta, uma cadeia de bronze, ligada pelas extremidades às colunas co-ríntias, sobrepujadas pelas efígies de S. Francisco Xavier e Santo Inácio de Loyola (evocações emblemáticas das tradi-ções católicas e da hispanidade, que desafiavam os exórdios liberais) afrontados por duas portas de arquitectura dórica, ladeadas de colunas do mesmo estilo, guarnecidas de ban-deiras com os escudos das armas dos reinos de Portugal e Espanha.78

76 No referido número da Gazeta, sublinha-se os actos celebrativos, aqui enunciados, ansiando-se nesta capital, pelo “desejado momento” de anunciar ao público a feliz conclusão do consórcio das augustas princesas, informando que já a Espanha gozava da “ventura de pos-suir uma rainha, digníssima, por suas prendas e pelos dotes com que a natureza a enriqueceu” e não menos motivos para celebrar o afecto pela sereníssima esposa do senhor infante D. Carlos, “sendo estes desposórios de dois augustos irmãos, com duas princesas tão abali-zadas em tudo o que constitui a verdadeira grandeza”. Cf. Gazeta de Lisboa de 18.9.1816.77 V. da autora: La Menina…; Se saudades matassem…78 La ciudad de Cádiz en los felices días de la llegada y mansión de su amada Reyna y Serenísima Señora Infanta. En el mes de setiembre de 1816. Citado por Ângelo Pereira, in As Senhoras Infantas…, p. 26.

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A festa prolongar-se-ia pela noite adentro, à luz dos fogos-de-artifício, oferecendo às duas noivas um melodrama alegórico, inspirado na sua feliz chegada e nos seus enlaces, conforme se lê no opúsculo, onde vemos inscrito o nome do autor do melodrama, D. Francisco Laiglesia y Darrac, o qual foi musicado por D. Esteban Cristiani.79

Diz que, não só naquela ocasião, mas toda a cidade de Cádis, se via engalanada das mais variadas e formosas ale-gorias, para o que tinha concorrido a participação dos me-lhores e mais afamados artistas. Especialmente, para assina-lar o dia 5 de Setembro de 1816, Fernando VII fez cunhar moedas/medalhas de ouro e prata ostentando as reais efígies, sobrepostas, lendo-se no anverso e no reverso o versículo bíblico do profeta Isaías:

Super muros tuos constitui custodes.80

Majestade e Alteza seriam recebidas no dia 6 de Ou-tubro, pelos membros do Ayuntamiento e no mesmo dia à tarde, presenteadas, com uma corrida de touros, ocasião

79 Parente (talvez sobrinho) do P.e Felipe Scío de San Miguel, o mestre pedagogo e confessor que acompanhou D. Carlota Joaquina a Portugal, em 1785, como se vê nas notas inseridas nas referidas obras da autora, nomeadamente, in La Menina… A colaboração daquele maestro na elaboração do dito melodrama não é casual e reforça a ideia que vimos formulando sobre as expectativas criadas com a ida destas infantas para Espanha (sendo filhas de D. Carlota Joaquina e bisnetas de Carlos III em cuja corte singrou a família Cristiani) e o quanto se esperava ver de mudança, em relação ao estado das coisas que se vivia.80 Porei sentinelas sobre as tuas muralhas. Conhece-se a reprodu-ção da efígie dos dois soberanos, ladeados por um querubim e um amor empunhando fachos, respectivamente, à direita e à esquerda dos noivos. O querubim eleva acima das cabeças reais uma coroa de murtinho, enleados por um festão entre o amor e o retrato da jovem esposa, alegoricamente representada pela pomba, que soçobra, atin-gida pela seta, tirada da aljava do amor. Fundo online da BNE.

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que serviu para renovar a sua aclamação popular, por uma multidão desejosa de ver a sua rainha. As noivas e comitiva permaneceram durante uma semana em Cádis e no dia 11 é que rumaram para Madrid, seguidas, pelas deputações do Ayuntamiento gaditano e do Cabido até Xerez de La Fron-tera, vendo-se, desde a saída de Cádis até à ponte do Arillo formações de tropa de guarnição e alas de povo, em contínua ovação.81

No mesmo sentido é a notícia da Gazeta de Lisboa que informa, baseada no Diário de Cádis, que, na véspera da sua partida dali, as duas princesas tinham saído a passeio entre aclamações do imenso concurso, que não cessava de as aplaudir e que no dia a seguir, pelas 8 horas da manhã tinham deixado a cidade portuária ao som de salvas de ar-tilharia, repiques de sinos e não interrompidos vivas, mis-turados de pesar, pela ausência de tão amáveis senhoras.82

As formações militares estendiam-se do palácio real à Porta de Terra, enquanto numeroso povo se despedia da sua soberana até à fortaleza de S. Fernando com a mesma ternu-ra e júbilo, com que a tinha recebido à sua chegada. Segundo a mesma notícia, tanto a rainha como a irmã, não deixaram nunca de corresponder às manifestações populares e que com a maior eficácia, saudavam a todos, doce e amorosamente.83

81 Documentação original, citada, por Ângelo Pereira, in As Senho-ras Infantas…, pp. 26-27. 82 Gazeta de Lisboa de 23.9.1816.83 A notícia citada abre um parêntesis para descrever a cena do adeus e fala da rainha, num breve diálogo, entreposto, com o decano do senado gaditano: “Achando-se a câmara plena desta cidade de Cádis, formada em ala às nove da manhã no dia de hoje para se despedir de SM. e A. na sua jornada para a corte (Madrid), sobre a ponte do rio Arilho, termo da jurisdição de Cádis, teve a alta honra de que, reco-nhecendo-os SM., mandasse parar o coche e, chegando todo o senado à portinhola, teve a satisfação de ouvir da sua real boca estas expres-sões: ‘Vou muito reconhecida aos obséquios que hei devido a todo o

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Completa e corrobora a narrativa, afirmando a fonte que uma deputação do Ayuntamiento de Cádis escoltara a comiti-va real até Xerez passando pela Ilha de Leão, que se esmerou, igualmente, nas primorosas armações das suas ruas e contínu-os aplausos, com que manifestou o seu júbilo.84

Expressaram idêntico júbilo as cidades de Porto Real e Porto de Santa Maria e nesta fez a comitiva régia uma última paragem, para jantar e passar a força do calor, no ser-viço da qual se “soube unir a magnificência ao bom gosto”, servindo um mui decente jantar às reais pessoas, ali condu-zidas desde a entrada num carro de triunfo até ao palácio, pelos maestrantes, militares e outras pessoas de distinção. 85

povo e lhe peço que continue a querer-me bens’; às quais, expressões, respondeu o Senhor Decano, D. José Maria de Lila, cheio de júbilo: ‘São mui diminutos e escassos os obséquios que este povo tem feito a VM. e A. pelo muito que merecem; e asseguro a VM. em seu nome, que sempre a amarão com a ternura de fiéis vassalos de VM. e d’ el-Rei’. Comovida a câmara prorrompeu nas vozes de Viva el-Rei, Viva a Rainha! E a Senhora Infanta! a qual teve também a bondade de lhes manifestar o seu apreço”. Cf. Gazeta de Lisboa de 23.9.1816.84 Idem. 85 A partir de Madrid de 16.9.1816. In Gazeta de Lisboa de 24.9.1816, a qual encerra as notícias veiculadas no seu próprio, número, anterior.

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As reais saídas e entradas – de Cádis a Madrid

O entusiasmo com que foram recebidas as duas prin-cesas de Portugal, desde o momento do desembarque em Cádis até à entrada em Madrid, não cessou nem diminuiu de intensidade e júbilo. Pelo contrário, regista-se um cres-cendo, do qual Sevilha pode ser tido como o ponto alto, de acordo com o testemunho que nos chega e que não pode ser ignorado. O leitor depara-se ali com um rigoroso programa de boas-vindas, que poderia ser rotulado como hoje, um ba-nho de multidão.

Avaliando, retrospectivamente, a conduta, franca e graciosa, das duas filhas de D. João VI, a pergunta que se coloca é saber qual o efeito que terá repercutido em Madrid um desempenho tão feliz e tão, rigorosamente, acatado. Seria o programa, um simples fruto do acaso, decorrente da espontaneidade das populações, com que nos vimos confrontados o tempo todo, pelas narrativas coevas ou resultado de uma amadurada preparação? Tão excelente foi o efeito que causou, que não pode deixar de espantar.

A autointerpelação conduz-nos, infalivelmente, à resposta de não ser o programa obra do acaso. Todavia, há-de atender-se ao facto incontornável de as manifesta-ções reflectirem a mesma imagem de sentimento comum e do momento, que a Espanha atravessava, no rescaldo das cruéis guerras, que a esventravam dos seus filhos, tanto pela ocupação inimiga como das que fumegavam daquelas chamas, em virtude dos confrontos civis, que, da opinião política, inamistosa tinham passado à luta armada, por todo

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o território, marcando, de forma indelével, a memória dos vivos e vindoiros. A ocasião oferecia-se propícia a celebrar a reaproximação ibérica e à recuperação da lembrança de tempos passados, os quais tinham assentado em idêntica matriz e razão de ser, materializado nos renovados acor-dos, destes reais matrimónios.

Mudaram, entretanto, o tempo e as circunstâncias. Mas, pelo menos, do lado lusitano, não tinham morrido no esquecimento outras jornadas grandiosas da condução e en-trega ao reino vizinho das suas noivas. Grandes e memorá-veis foram os casamentos de D. Isabel de Portugal e Carlos V de Espanha, para não falar da troca das noivas, no reinado joanino, da qual fora réplica a última, ainda vivíssima na memória de muitos, do tempo de D. Maria I, porque vivos, eram ainda alguns dos protagonistas, nomeadamente, os pais destas noivas, D. Carlota Joaquina e D. João VI.

Paradoxalmente estavam destinadas estas jovens prin-cesas a ser o vínculo da derradeira aliança, firmada nestes moldes, entre os dois países ibéricos, por meio dos espon-sórios de príncipes e princesas das casas reinantes, frontei-riças. Ela, aliança, representa também e de forma não me-nos paradoxal, a última tentativa de manter um ideal, que se escorava, ao longo de séculos, nos princípios emanados da igreja de Roma, à sombra da qual os reinos ibéricos se tinham guindado ao comando da história do mundo.

Não era inocente – como não seria de esperar – a efec-tivação de contratos deste tipo enquadrados pelo xadrez da diplomacia, preceito que serviu de modelo de conduta dos reinos europeus, até vésperas da revolução francesa. Fazia, todo o sentido, para os reinos ibéricos, que assim tornasse a ser, dentro do pressuposto da reconciliação e reencontro do mundo antigo e das raízes comuns, ancestrais, ultrapassada a tempestade revolucionária, que se creu extinta, aliás, favo-

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recidos, pelo clima que germinava, de renovada concórdia, europeia, depois de 1815.

O sucesso destas jornadas reais – a que a Europa sur-presa, assistiu – estava destinado a nunca mais ser visto, fi-cando a dever o seu brilho ao sentimento de orfandade, que despertava, nos povos ultrajados, a obrigação de proteger a herança familiar, rechaçado o invasor e as suas ideias espú-rias, embora à custa do holocausto sacrificial, de incontáveis vidas. Goya retratou-o como não há outro testemunho, disso.

Infelizmente, o reverso da grandeza perspectivada, de acordo com o catecismo oitocentista de cariz revolucioná-rio-maçon-liberal, acabou exposto e desmascarado na fla-grante miséria física e moral, que não tinha ainda estancado, ao invés das expectativas, criadas, havendo de prosseguir a sua caminhada no porvir, o qual atiraria muitos dos que aplaudiam agora as duas noivas reais, para o monturo das desgraças, de que se julgavam livres.

Não se pode julgar em D. Carlota Joaquina uma tão grande clarividência, quando apostou no relançamento de uma aliança, mediada pelas filhas, como tinha sido ela, um dos elos, anteriores, na arquitectada entre Carlos III e D. Maria I. Mas é evidente que não lhe escapava o alcance vi-sionário, como provou com a teima em levar por diante o que lhe falava no íntimo, como sendo de todos, o melhor, se-não o único, caminho: nunca trocar por sistemas filosóficos, contrários à tradição em que nascera e fora criada, a aliança do trono e do altar.

Tal era o pensamento que alimentava e expressava e nesta linha é que tinham sido educados as infantas. Ha-via, por isso, razões para confiar nas duas jovens, instruídas nesta obediência a princípios religiosos, lição cabalmente aprendida, como vieram demonstrar em Espanha, cumprin-do primorosamente o reportório, que lhes subia do coração

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à mente. As provas dadas pelas infantas ilustram bem até que ponto a confiança depositada numa aliança firmada, por meio delas, não fora em vão, mostrando-se coerentes com esta linha de pensamento e acção, não desmentidas, pela narrativa histórica. Entre outros, o contributo das filhas de D. João VI, teve a virtude de ajudar a levantar o ânimo dos espanhóis e congraçar a população, em torno de Fernando VII, numa altura em que ele precisava de recriar o élan de outros tempos, se havia de garantir as rédeas do poder.86

Esta é a conclusão, que ressalta da leitura do que se passou, ao longo da jornada de quinze dias, unindo Cádis a Madrid, naquele Setembro de 1816, como se pode afe-rir pelos testemunhos, aportados, de variado género e pro-veniência, do manuscrito, ao impresso, passando pela ico-nografia, a ponto de crermos que não ficou nada ao acaso, tanto a nível particular, como público, por via dos órgãos de comunicação espanhóis, que os portugueses bisaram. De resto, mais exactamente os de Espanha, na medida em que a Gazeta de Lisboa é o eco dos relatos que saíam impressos no reino vizinho.

A partir da Gazeta de Lisboa, reescrevemos o glorioso itinerário, percorrido pela comitiva, desde o cais de desem-barque até à entrada em Madrid, seu destino, com passagem por Aranjuez, local onde teve lugar o encontro dos noivos, constituindo-se aquele relato numa fonte preciosa, neste as-pecto, uma vez que não nos chegou nenhum protocolo, ofi-cial, do dito percurso, como terá sido fixado previamente, resgatado das experiências anteriores.87

86 V. Adiante texto exploratório do modelo de educação ministrada aos príncipes, Capítulo: Um manual de conduta de princesas e rai-nhas.87 É prova disso, um protocolo, preexistente, usado nas entradas reais, intitulado: Entrada e recibimiento de SM. como Reina de Es-paña, acompañada de su augusta hermana en Madrid día… (em bran-co) de Setiembre de 1816; o qual se baseia e repete quase inteiramen-

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Serve-nos de cotejo ao texto da Gazeta um impresso de finais do século XVIII, relativo aos caminhos espanhóis, que abrange o percurso designado “Caminos de Andalucía”, itinerário que nos interessa seguir, embora trate do trajecto Madrid-Cádis, inverso do que percorreu o séquito das duas princesas, crendo que a rota era a mesma, nos dois sentidos, mantido inalterável ao longo dos séculos que assentaria num trilho, antiquíssimo.88

O trajecto contempla as cidades onde estanciou a co-mitiva régia, quando cotejamos o do século XVIII com o que fornece a notícia da Gazeta de Lisboa. Falta-nos somente a certeza, quanto aos pontos de mera passagem, sem detença. Verifica-se por este relato, que a saída de Cádis, com passa-gem por S. Fernando e Porto de Santa Maria, Porto Real e Ilha de Leão, teve lugar no dia 11 de Setembro, da parte da manhã e que no mesmo dia se deu a partida para Xerez de la Frontera, aonde se chegou ao cair da tarde.

Tal como se viu anteriormente, aqui também os mora-dores tiraram as mulas do coche e conduziram-no a braço, pelas ruas todas, de todas as povoações, por onde passa-ram, competindo com os de Cádis… em entusiasmo e vivas demonstrações de amor e fidelidade à nossa augusta sobe-rana e a SA.

A 13 saiu o cortejo de Utrera caminho de Sevilha, fal-tando-nos a estação intermédia, Xerez-Utrera, tendo pernoi-tado nesta cidade. Em Sevilha, estava previsto ficar um dia inteiro, somente, mas a rainha quebrou o protocolo e ficaram

te modelos das entradas régias da corte madrilena. No mesmo sentido é o protocolo seguido nas reais entradas em Sevilha.88 Itinerario español, o guía de caminos para ir desde Madrid à todas las ciudades y villas más principales de España y para ir de unas ciu-dades à otras y à algunas cortes de la Europa. Añadido y corregido en esta quinta impresión. En Alcalá: en la imprenta de D. Isidro López, 1798.

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três dias, como relata a Gazeta de Madrid de dia 18, recupe-rado o relato no n.º de 26 de Setembro da Gazeta de Lisboa.

Não obstante a resolução das senhoras, rainha e infanta, de saírem de Sevilha a 14, tiveram de condescender com as ins-tantes súplicas da câmara (Ayntamiento), em nome do povo, para que se demorassem mais algum tempo e não saíram senão a 16, pelas 7h da manhã” com destino a Carmona.89

Tendo pernoitado em Carmona, a comitiva prosse-guiu viagem no dia 17 de madrugada e chegou pelas 9h da manhã a Écija. Tanto na entrada aqui, como antes na saída de Carmona, assistiu-se à repetição das desmonstrações de fidelidade e amor à realeza, como escreve o articulista. Na descrição da Gazeta lê-se que a comitiva saíra de Écija entre os aplausos daqueles habitantes e dos das povoações ime-diatas, que tinham concorrido para terem a complacência de ver as reais pessoas. O destino dali foi para La Carlota, onde se serviu o jantar e se descansou, antes da comitiva se pôr de novo a caminho de Córdova cuja entrada teve lugar às 5 horas da tarde.

Identicamente foi recuperado o protocolo do costume, tendo as princesas sido recebidas pelas instituições relevantes da cidade: ayuntamiento, cabido eclesiástico e corporações, rodeados do inumerável concurso de povo, que não se cansa-va de exibir o seu regozijo com as mais vivas! Aclamações, a que a rainha correspondia, com a sua natural bondade.

Como antes em Sevilha, impunha-se às princesas re-parar as energias, para convir ao que se esperava delas, nas

89 A importância da paragem real na cidade de Sevilha surpreen-deu de tal modo, que justificou uma repetição do relato, alargado, da mesma reportagem no número seguinte da Gazeta de Madrid, para onde nos remete a de Lisboa de 27 de Setembro. Apanhados pela dita surpresa, perante a dimensão e alcance da recepção, dá-se especial relevo a esta recepção num capítulo separado.

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funções em sua honra, justificado na necessidade de não criar nos habitantes o sentimento de terem empregado tão avultados cabedais, sem lograrem o fim dos seus desejos. No dia 18, logo de manhãzinha, as noivas reais visitaram a catedral de Córdova e andaram vendo com a maior atenção as cousas mais notáveis daquele célebre templo.

À tarde houve beija-mão, seguido de um passeio, ten-do a rainha e a irmã sido objecto de repetidos vivas e acla-mações. Já à noite, reuniram-se com as senhoras locais e assistiram aos fogos-de-artifício e iluminação, jogos subli-nhados por música. A saída de Córdova foi na manhã de 20, em direcção a Aldea del Rio, onde as dificuldades materiais não permitiram pernoitar, malgrado os desejos e vontade dos seus habitantes. A comitiva descansou em Andújar.

Assinala a notícia a extensão caminhada vencida, só num dia e a grande preocupação das duas princesas de nun-ca desagradar à população, que tudo fazia para as festejar, vinda de grandes distâncias a dar vivas às reais pessoas. Andújar não foi excepção ao cenário visto por todo o lado e os seus moradores, igualmente atarefados nos enfeites das ruas com sumo gosto e simetria. Dali, a comitiva saiu a 22, tendo pernoitado e reajustado o propósito de chegar a Aran-juez a 26.

A Gazeta de Lisboa de 26 e 28 de Setembro, sempre a partir de Madrid, acrescentava que a comitiva, no dia da sua saída de Andújar, se detivera em Bailén, tendo ido dormir a La Carolina, donde partiu na manhã seguinte caminho de Santa Cruz de Mudela, acompanhada de manifestações de regozijo e obsequiadas – como diz a notícia – em toda a parte, com as maiores demonstrações de amor e lealdade.

Prevendo a chegada das esposas a Aranjuez, tanto Fer-nando VII como o irmão, assistidos pelo tio, infante D. An-tónio, tinham deixado Madrid logo a 22, para irem encontrar

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ali as noivas. Nesta altura há um hiato noticioso sendo o fio retomado só depois de 10 de Outubro. A Gazeta de Lisboa – ao remeter para 9 – teve o cuidado de esclarecer o público, de que não se podia ajuntar nada, acerca da viagem, a partir de Santa Cruz de Mudela, por falha de correspondência de Madrid.90

Conclui-se que a comitiva real venceu as duas jor-nadas que faltavam, desde a estância referida até Aranjuez, onde se previa a sua entrada a 26 de Setembro, tendo-se de-morado em dois dos três sítios do itinerário restante, dada a impossibilidade física e temporal de a comitiva transpor num dia ou em dois, que fosse, uma distância daquelas.

Não sabemos ao certo, mas é provável que tenham pernoitado em Manzanares ou em Villarta de San Juan e em Camuñas ou Madridejos, antes de entrar em Aranjuez, que corresponde às noites dos dias 23, 24 e 25. Supõe-se, portan-to, que a comitiva terá ficado as duas noites de 23 e 24 em Manzanares e terá saído a 25 de manhã dali, indo dormir a última noite da jornada numa das duas cidades sugeridas, já próximo de Aranjuez em cujo palácio se achariam as noivas, ao entardecer de 26 de Setembro.91

Tendo o séquito descansado duas noites em Aranjuez, saiu dali para Madrid a 28 de Setembro, havendo notícia de

90 As notícias entre Espanha e Portugal eram desfasadas, por razões de vária ordem, além do factor distância. Mas neste número da Gaze-ta referente a 10 de Outubro, dá conta de que no dia 29 de Setembro (dia já posterior à chegada da comitiva real a Madrid) tinha sido de-cretado o “de perdão aos presos de segunda ordem” “em atenção ao júbilo de dar aos seus vassalos uma terna mãe na sua muito amada e querida esposa”. Gazeta de Lisboa de 10.10.1816.91 O itinerário de 1798 não assinala Madridejos, mas sim Camuñas, pelo que concluímos que a estrada seguia um traçado desviado da estrada actual (E-5/A4) que assenta, praticamente, sobre o traçado da antiga.

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que tanto o rei, como o irmão, se adiantaram às noivas no regresso à capital, de modo a poderem recebê-las na Porta de Atocha, como mandava o protocolo. Das cerimónias de recebimento oficial e público dá-nos conta novamente a Ga-zeta de Lisboa, em dois números da sua edição, de 14 e 17 de Outubro de 1816.

Curiosamente, a notícia de 14 de Outubro é uma an-tecipação das cerimónias, baseado no dito protocolo, prees-tabelecido e de que existe memória impressa, como notá-mos, reeditada por ocasião destas núpcias. À parte a data do cerimonial, que seria aditado, em cima do acontecimento, reparamos que o inteiro conteúdo se adapta ao protocolo do costume.92

No que toca ao segundo momento da cerimónia das entradas, o número da Gazeta de Lisboa de 17 de Outubro é mais descritivo, servindo-nos de confirmação e individuali-zação dos actos, das pessoas e seu estatuto e circunstâncias, relativas aos três dias de duração das festas. Existe um relato paralelo, que diz respeito, unicamente, às festas populares, que se realizaram no dia da chegada das noivas à corte ma-drilena. A descrição é de autor anónimo e exibe um forte sentimento patriótico, acompanhando e acentuando a vee-mência dos demais festejos, em honra das duas princesas.93

92 Ceremonias y etiquetas que deben observarse en la entrada de SM. la Reina Nuestra Señora y de la Serenísima Señora Infanta Doña Maria Francisca de Asís en Madrid: desposorios de ambas Señoras: velaciones: ida a dar gracias a Nuestra Señora de Atocha: besamanos generales y de los consejos, etc., recopiladas del ceremonial observa-do en iguales casos, y arregladas à la etiqueta del día, para el mayor decoro y obsequio de su Majestad y Alteza. Imprenta Real (Madrid).93 Manifiesto de la feliz llegada à esta Corte de la Reyna nuestra Señora con la Serenísima Señora Infanta su hermana y el Serenísimo Señor Infante Don Antonio [Pascual, tío paterno de Fernando VII], en que se refiere el recibimiento que hizo el Rey nuestro Señor y el Sere-nísimo Señor Infante Don Carlos su hermano à sus dignísimas Espo-

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O interesse desta memória assenta, sobretudo, no fac-to de nos dar uma imagem, não oficial, dos acontecimentos. Centra-se o relato na criatividade popular, quando narra as encenações alegóricas, montagem que terá brotado da es-pontaneidade, genuína dos madrilenos, embora não se apar-te inteiramente do cerimonial protocolar da gala pública, credibilizando a narrativa anónima.94

As reais pessoas – afirma o autor – antes de entrarem no palácio, para onde se dirigia o cortejo, que tinha início na Porta da Atocha, tinham tido oportunidade de observar os letreirosdas cartelas e de ler a mensagem onde estava escrito que esta heroica villa había puesto para manifestar en todo tiempo el grande amor que tiene à sus monarcas.

Feliz Madrid que à poseerte alcanza / bella Isabel, tu amor es nuestra gloria / y tu fecundidad nuestra esperanza / Entra en el seno amoroso de tu pueblo y de tu esposo / verás del Rey el anhelo por guardar Justicia y Leyes / y un Pueblo que

sas y à su Tío, la alegría y complacencia que sus amados vasallos han demostrado con tan plausible motivo y las funciones é iluminaciones que se han ejecutado en honor de SS. MM y AA. en esta heroica Villa y Corte de Madrid. Biblioteca da Ajuda, BA-154-I-6.14 94 O protocolo obrigava a um programa rígido que sintonizava o ritual da chegada da comitiva com o do palácio: “Al llegar SS.MM (Fernando VII) à la Cabeza de la Guarnición, que será fuera de la puerta de Atocha, se presentará el Capitán General à caballo con toda la plana mayor y generales agregados à la Plaza de Madrid, que todos irán a caballo con uniformes de gala y continuaran agregados à la comitiva de SS.MM hasta palacio. Llegado el cortejo à la puerta de Atocha, por donde deben entrar SS.MM, estará el Ayuntamiento de Madrid à caballo, delante los ministros inferiores de gala, después cuatro maceros con ropas de terciopelo carmesí con franjas de oro y las mazas: Luego por su antigüedad el Procurador general, escriba-nos de Ayuntamiento y regidores con su uniforme de gran gala y sin botas; entre los últimos regidores el Corregidor, si llegase el tiempo, arengará à SM y en su defecto el Decano, detrás el Alguacil mayor, contadores y receptores.”

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es el modelo / de cómo se aman los Reyes / Augustas pere-grinas ya es llegado / del gran viaje el fin: Madrid os guarda / y el trono en que Fernando es adorado.

A manifestação partia do povo, que se tinha ajuntado, com muita antecipação, a fim de esperar à dita Porta da Ato-cha, entre altos vivas e aclamações, a rainha e a infanta. Isto confessa por palavras suas, autor da memória, dizendo que lhe parecia estar a ver o coração dos madrilenos que sem-pre haviam sabido amar os seus monarcas, facto assinalado nas oitavas dedicadas à rainha e recitadas por alguns nobles paisanos.

Mil enhorabuenas damos / Señora los madrileños / por vuestra feliz llegada / y veros en nuestro pueblo. / Reyna ya de las Españas / esposa de Fernando Séptimo / Rey muy querido y amado / de todo su basto Reino.

E continua:

Descansad Señora un poco / y levantaos con silencio / y ve-réis à vuestro esposo / oprimido con el peso / de una carga insoportable / que es el yugo de su Reino / y antes que Vos toméis parte / pedir à dios el acierto.

O discurso inscrito nas cartelas é todo um programa que elucida o leitor acerca do contexto político-social que se

vivia.

!O nobles madrileños! ¡Cómo vuestro corazón no os puede engañar! ¡Cómo os valéis de la intercesión de una Señora que viene à favorecer y que seguramente tiene todas sus miras en el Rey de los Reyes, que es el Dios Supremo y os atrevéis à hablar con tanta satisfacción y confianza por tercera vez; y en fin os suplican por el grande amor que tienen à vuestro querido Esposo el Señor Don Fernando VII, que le ayudéis en sus apuros, para que en todo tenga el mejor acierto!

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Ayudad à vuestro Esposo / con maravilloso ejemplo / y no perdonéis trabajos / para el bien de vuestro Reinao / y se-réis en pocos años / un dechado de acierto / gloria de los españoles / y honor de Fernando VII.

Que viva el Rey Fernando / y la Reina Isabel / y amen los españoles / à su Reyna y Rey.

Reyes tan amables / que el cielo nos dio / es justo que los amemos / con gloria y honor.

As rogativas não podiam ser mais eloquentes do senti-mento comum e do qual o autor se faz porta-voz. São exemplo disso – que escusa comentário adicional – os reais-consórcios, provedores da esperança que interpelam quem lê os escritos. Assim enquadrado, o cortejo subiu até ao Prado, com os corações a respirar de júbilo e de alegria.95

À entrada da Calle de Alcalá, via-se um magnífico arco, ri-camente ornado, com inscrições dirigidas:

À los Señores Infantes

María y Carlos, juntos desde ahora / entre el Pueblo y su Rey son mediadores / y vuestra luz será de la Aurora / que prepare en el Sol rayos mayores.96

Seguem-se a estas as inscrições dedicadas

95 Sobre o trajecto predefinido, diz o protocolo oficial: “Concluida que sea la arenga del Ayuntamiento se pondrán ocho o doce soldados de Caballería para abrir la carrera y en este orden continuarán por la puerta de Atocha, Prado, calle de Alcalá, puerta del Sol, calle de las Carretas, calle de Atocha, plaza Mayor, calle Mayor, arco de Palacio &.”96 Politicamente sabe-se, quanto significou a união dos dois irmãos, rei e infante, perspectivado na influência apaziguadora das duas in-fantas portuguesas. O dístico testemunha que era essa também a ex-pectativa popular.

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À los Reyes

Cuantos presagios de ventura envuelven / de Braganza y Borbón juntas las ramas / que de recuerdos de inmortal renombre / de Isabel y Fernando encierra el nombre / En cuanto alumbra el Sol y el mar abarca / hoy aclama à la Isa-bel gente española / y su dulce bondad alcanza sola / hacer feliz al pueblo y al monarca.

De los pasados males se consuela / el mundo, cuanto al tro-no ve elevado / los pueblos y las tropas à Fernando / las gracias y venturas à Isabela.

O cortejo real seguiu rumo à Plaza Mayor, obrigado a passar mais três arcos, ornados com a maior formosura, que reafirmavam o grande amor, que os madrilenos sempre tinham tido aos seus soberanos, reunindo nesta declaração o voto dos comerciantes da praça que apelavam à especial atenção o 2.º arco, por nele haver muito escrito.

Y decían solo las verduleras:

À la feliz unión / y fausta alianza / de la casa de Borbón / y de Braganza

Venid Reyna esclarecida / à ceñir diadema real / ven al tála-mo nupcial / à gozar dichosa vida / y darla con tu venida / el Iris de claridad / Isabel, en realidad / vienes à resplandecer / pues Reyna vienes à ser / para nuestra felicidad.

Un arco de ricas flores / publique à la faz del Mundo / este obsequio sin segundo / à los unos Reyes y Señores / arco de bellos colores / os tributan nuestras ansias / à la feliz alian-za / y fausta unión / de las excelsas casas / de Braganza y de Borbón.

À nuestro Rey y Señor / nuestra Reyna venerada / nuestra infanta idolatrada / y nuestro Infante de amor / obsequio

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sea y loor / Españoles fieles y dichosos / celebremos finos y leales / estos matrimonios reales / y enlaces tan venturosos / vivan felices esposos.

Conclui neste passo, declarando que a notícia seria de nunca acabar, se tivesse que referir-se ao pé da letra, quanto se tinha passado ali, naquela Plaza Mayor, reafirmando sempre o amor dos madrilenos aos seus monarcas. Era-lhe, pois, ne-cessário a ele, autor, omitir muito do que havia para dizer até se chegar junto do palácio, ponto, onde o Ayuntamiento fizera erguer um magnífico arco, podendo ler-se nos seus letreiros

HOY CON ISABEL PARTE FERNANDO EL LAUREL IBERIO: VENTURA À NUESTRO ESTANDARTE EN UNO Y OTRO EMISFERIO, PUES SI HAY QUE APE-

LAR À MARTE, NO BASTARÁ UN MUNDO À SU IM-PERIO.

Si la Isabel Gloriosa / vendió sus ricas alhajas / para darnos un nuevo Mundo / ya el nuevo Mundo la paga / dándonos joya más rica / en Isabel de Braganza.97

A casa do “heroico ayuntamiento” estava ricamente adornada com dois belos retratos do rei e da rainha. A comi-tiva já tinha, entretanto, chegado à entrada do palácio, onde as pessoas reais iriam tomar uma refeição e descansar algu-ma coisa, visto que às 9 horas da noite teria lugar as celebra-ções, propriamente ditas, dos esponsórios.98

97 Analogia que alude ao exemplo de Isabel a “Católica”.98 Eis o que prescreve o protocolo, relativamente a esta função: “En la escalera de palacio esperaran el Mayordomo Mayor, Sumiller, Gran-des, Gentileshombres del Rey, Mayordomos de Semana, Jefes y Ayu-das de Cámara y Señoras de Tocador. SM y A. (rei e infante) se apearán con tiempo suficiente para estar en la escalera à la llegada de la Reina, darán la mano à sus respectivas esposas y pasando por las salas de Guardias, de Columnas, de Embajadores las conducirán à su cuarto; y SM el Rey, acompañado de los Serenísimos Señores Infantes se retirará à su cuarto, donde permanecerá hasta la hora de la ceremonia.”

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Passa a narrar as festas do dia seguinte (29 de Setem-bro), o das velaciones, que tiveram lugar na igreja do real convento de São Francisco “o Grande”. Semelhantemente, ao dia anterior, o caminho achava-se profusamente ornado, registando-se a afluência de uma grande multidão de gente, incluindo tropa, enquanto soava ao longe os acordes mu-sicais em harmonia com o acto celebrativo, executado no meio da maior magnificência.99

99 A celebração e bênção dos reais noivos eram reservadas e, portan-to, fora do alcance da vista, pelo que o Manifesto, a que reportamos, não a descreve. No que respeita às “velaciones”, observemos o que diz o protocolo: “Se pasarán con anticipación los oficios al Excmo. Sr. Patriarca para que dé las ordenes correspondientes à la comunidad de San Francisco y haga saber la determinación de SM y al mismo tiempo que levante la clausura el día de los Desposorios. En la igle-sia se prevendrán de antemano todos los asientos que debe ocupar la comitiva de SM según se acostumbra en los días de gran ceremonia y capilla y también los sitios de los embajadores, ministros extranje-ros y secretarios del Despacho, Consejos de que cada uno asistirán cuatro, por no permitir más el recinto; el Capitán General con los generales y Plana mayor, la villa de Madrid, obispos residentes en ella, capellanes de honor y todos los individuos de la real capilla: el estradillo para las Grandes y Señoras de Tocador, que todas asistirán vestidas y con velos en la cabeza: lo restante de la iglesia se dispondrá con sillas para los convidados, los cuales entraran por billetes. A la entrada de la iglesia estarán los Mayordomos de Semana acompaña-dos de Porteros para recibir à los convidados y dos en la iglesia para dirigirlos à sus sitios y evitar todo desorden que puede ocurrir. Dada la orden por SM y puesta la guarnición sobre las armas, empezará à desfilar desde el cuarto del Rey todo el acompañamiento de etiqueta, colocándose en los coches que le corresponde y seguirán la carrera, que será arco del palacio, calle de la Almudena, calle del Sacramento, puerta Cerrada, calle de Toledo, plazuela de la Cebada y carrera de S. Francisco. Las demás personas estarán con anticipación colocadas en la iglesia. Una salva de Artillería anunciará la salida del palacio de SS.MM. y AA. (…). Concluida la ceremonia se dirigen proce-sionalmente al altar mayor y colocados SS.MM. y AA. En sus sitios correspondientes, principia la Misa. Concluida esta, saldrán SS.MM. y AA. En el mismo orden y con la misma comitiva por la carrera de

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À retirada SS.MM e AA.AA. passaram ao real con-vento de São Tomás, onde se escutou um solene Te-Deum. Fazia votos, o autor deste “manifiesto” de que o Todo-Pode-roso abençoasse aqueles matrimónios as maiores felicidades e os noivos fossem repletos dos frutos da bênção para con-suelo de toda su nación.100

Descreve as iluminações gerais, de tal maneira gran-diosas, que até o céu colaborou, durante duas das noites da celebração, de forma que os moradores da vizinhança de Ma-drid puderam segui-los. Até as ruelas mais esconsas aparen-tavam ser ruas principais de otros tempos e particularmente a grandeza, siempre, tan adicta ao soberano, D. Fernando VII, o aclamara muito em especial. Não deixou o autor anó-nimo de nos dar uma ideia do ar festivo das principais casas, a partir do levantamento que fornece das que exibiam ricas colgaduras e outras mais peças, abundantemente coloridas.

Enumera uma longa lista de palácios privados, pelo nome dos seus moradores, todos titulares e grandes de Espanha, que seria fastidioso repetir, mas que permite ajuizar quem mostrava ser, ostensivamente, favorável aos S. Francisco, plazuela de la Cebada, calle de Toledo, calle de Bote-ros, calle Imperial, calle de Atocha à la iglesia de Santo Tomás y se apearán SS.MM. y AA. Con sola la precisa comitiva à dar gracias à nuestra Señora de Atocha, en donde se cantará un solemne Te Deum y en seguida volverán SS.MM. y AA. À su Real Palacio pasando por las calles de Atocha, de Carretas, puerta del Sol, calle Mayor, por Santa María.”100 O Manifesto é omisso quanto às cerimónias semipúblicas do encerramento do 2.º día que conhecemos através do protocolo ali ob-servado: “Aquella noche asistirán SS.MM al teatro y al siguiente por la mañana habrá besamanos de los Consejos. El besamanos de las Señoras será la noche que señale SM la Reina cuya orden se dará de antemano.” Conclui o protocolo com a instrução de que tanto o dia da entrada de SM. e A. como os dois seguintes eram de gala, com iluminação geral, salvas de artilharia, segundo a ordenança e repique geral de sinos. O quarto dia era de meia-gala.

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duplos enlaces, o que quer dizer, apoiante da restauração antiliberal.

Daquele elenco salientaremos as famílias cujas mo-radias se excediam na ostentação, tais eram a do duque de Uceda y Liria a qual, além da grandeza da ornamentação da frontaria, oferecia a iluminação artificial do jardim, que realçava plantas e estatuária, de tal modo vistoso, que atraía o maior concurso da gente da que acorrera a ver as funções públicas. Iluminados, ricamente, via-se o palácio do embai-xador de Portugal e o do duque de Hijar, com gosto e grande diversidade de luz. No mesmo sentido e gosto, via-se tam-bém iluminado e decorado, o palácio do embaixador inglês.

Destacava-se do conjunto, o palácio do conde de Oñate, que mereceu o maior elogio do autor, adornado com muitas e ricas colgaduras, a cobrir a fachada iluminada e a rica varanda. Acima da porta principal, admirava-se um magnífico pavilhão em forma de sólio-régio, adornado com a coroa real e dentro desta, os retratos de nuestros amados reyes e dos senhores infantes D. Carlos Maria Isidro e Maria Francisca de Assis, sobrepujados por alegorias, alusivas, aos reais desposórios, rematado pela Fama, encimando o con-junto.

Dos palácios institucionais, a memória salienta o da Real Companhia das Filipinas, que ostentava o retrato de Fernando VII; a Casa da Imprensa que ostentava também o de Sua Majestade e sobre as varandas da frontaria, os retra-tos dos maiores escritores da nação espanhola, cenário subli-nhado pela vistosa luz artificial.

As reais Casas dos Correios e La Moeda e o Real Jar-dim Botânico, este, em particular, a refulgir da luz que jor-rava ao longo das alamedas, quadros e oficinas, oferecendo um magnífico efeito cenográfico. Podiam admirar-se, final-mente, a Casa dos Cinco Grémios, os Coliseus e os Arco da

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Calle de Alcalá e da Villa. Também os três arcos da Plaza Mayor se viam adornados e iluminados com idêntica mes-tria.101

Como foi referido, a Gazeta de Lisboa divulgou um 2.º caderno, das funções das bodas. Confrontando o conteú-do deste relato com o do Manifesto anónimo, que seguimos acima, conclui-se não se ter afastado a Gazeta do âmago do relatado, tanto por aquele, como do protocolado. Mas adianta pormenores, que os referidos não trazem, quanto aos aparatos de arquitectura efémera, montados para o efeito, aditando precisão em relação à dimensão, recursos e deta-lhes estilísticos, que escapam à linguagem mais chã do autor anónimo.102

101 Cf. Manifiesto de la feliz llegada a esta corte…etc.; Biblioteca da Ajuda, BA-154-I-6.14

102 “No ponto maior da elevação da rua de Alcalá se tinha erguido um soberbo arco triunfal, semelhante ao do grande Constantino em Roma. Constava de três entradas, a do meio de 20 pés de largo e 37 e ½ de alto e as outras duas de 14 e ½ de largo e 17 de altura. Estava decorado com quatro grupos de colunas da ordem jónica de 29 pés de altura sobre seus competentes pedestais de 12 pés. A cornija geral era de 7 pés de altura e o ático de 15. Sobre a imposta destacava-se a guarnição do arco e nos tímpanos que ressaltavam se viam pintados trofeus marciais. Havia no ático um baixo-relevo que representava Madrid coroando de lauréis os seus soberanos; outros dois baixos-re-levos se descobriam nos arcos laterais; o da direita representava as Artes e as Ciências apresentando a el-rei os seus adiantamentos e o da esquerda figurava a Espanha com as suas províncias, oferecendo aos seus soberanos as produções de cada uma. No ático se liam duas elegantes inscrições”. (Nota: inscrições que correspondem às do re-lato do autor do Manifesto). Prossegue a descrição do arco triunfal: “Sobre as quatro colunas, no soco, de 3 pés de altura, estavam coloca-das as Virtudes, fechando a rua com dois corpos, a que davam passo umas portas de 10 pés de largo e 16 de alto, com dois nichos em cada um dos seus botaréus com as quatro estátuas que representavam a Magnificência, a Majestade, a Esplendidez e a Clemência e em cima outros quatro medalhões circulares alegóricos. A fachada que olhava

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Diríamos a concluir que à entrada da Atocha as in-fantas portuguesas cumpriam o término de uma jornada de 17 dias, a contar do dia da sua partida de Cádis, tempo de percurso de mais de 600 quilómetros de mau-trilho. Isto, sem olharmos à situação geral da paisagem envolvente toda ela marcada pela profunda crise, deixada no pós-ocupação francesa e guerra e sublevações de todo o tipo, que a Espa-nha vivia ainda e estava para durar. Neste ambiente é que acabavam de ingressar as duas jovens, afastadas do lar, onde tinham nascido e sido criadas.

Dum cenário físico e mental daqueles, dificilmente, alguém poderá esperar boas condições, qualquer que seja o aspecto que se aborde. Neste sentido, não será nunca de-mais, enaltecer, o esforço feito, tanto pelo povo esgotado, recobrando forças que evidencia, no gosto com que acolheu as suas novas princesas, tal como a bondade da parte delas e sua comitiva, à medida que se deparavam com uma realida-de, distinta e diversa, da que deixavam para trás de vivência tropical e verdes anos, da sua juventude.

Sem dificuldade adivinha-se o desgaste e cansaço emocional a que ficaram expostas as duas infantas, ao cabo de uma travessia atlântica, logo seguida de 15 dias de jor-nada, por terra, através de caminhos inóspitos, senão des-truídos, obrigadas ao cumprimento do cerimonial protocolar

para a porta do Sol era em tudo conforme à antecedente, com a dife-rença de que o baixo-relevo do centro representava Madrid com as ninfas do Manzanares festejando os soberanos. O da direita sobre os arcos laterais representava a Justiça entregando a vara que assinalava o caminho da Glória ao monarca e o da esquerda os Reis d’ Armas guiando a Majestade a indagar e socorrer as necessidades dos seus povos. Sobre as colunas estavam estátuas que representavam as qua-tro partes do Mundo e no ático, à direita e à esquerda, com inscrições (transcritas no corpo do texto), ocupando os nichos dos corpos, que faziam o fecho da rua: a Indústria, as Artes, a Agricultura e o Comér-cio”. Gazeta de Lisboa, de 17.10.1816.

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das boas-vindas, sempre com semblante respeitoso, face às multidões solícitas e avaras de atenção e que elas não po-diam nem deviam frustrar.103

A grande entrada em Madrid foi da maior imponência, como vimos. Apesar de tudo o que se imagina, relativamen-te a tudo o que Espanha atravessava, nada foi dispensado do cerimonial, próprio daquela envergadura e da corte ma-drilena, que conhecemos doutras passagens, eventualmente, menos ostensivo este, ajustado agora, como era natural, a uma época de crise das maiores.

A ostentação de poder, exibida nestas entradas é, con-tudo, reveladora da galhardia espanhola e da imagem em-blemática, que passava, querendo realçar a importância dos enlaces em Portugal, que permitem vislumbrar o desejo de continuidade da tradição e regresso à antiga grandeza, da-quela nação. A etiqueta não sofreu alterações, no que toca à recepção de boas-vindas aos noivos, périplo das igrejas e pública aclamação, realidades com que se está familiari-zado, quando se conhecem as cerimónias das bodas de D. Gabriel de Borbón com D. Mariana Vitória e de D. Carlota Joaquina com o infante D. João, antes de deixar Madrid, no tempo de Carlos III. 104

103 Acrescentamos um dado interessante ainda sobre o percurso descrito no itinerário do século XVIII, que o mesmo era designado “caminho de ruedas”, conforme “Caminos de Andaluzia – Madrid Cádis”passando “por las ciudades de Andújar, Córdoba, Écija, Xerez y Puerto de Santa Maria” e que a saída de Madrid se fazia “por la Puerta y Puente de Toledo en el rio Manzanares”. Acha-se no roteiro a delimitação territorial, de maneira, que é possível perceber que a co-mitiva partiu do reino de Sevilha, atravessou o reino de Córdova e a Sierra Morena, depois de passar pelo reino de Jaén, que extrema com o de Castilha, o mais extenso da jornada. Cf. Itinerário español… 104 Vd. Descrição dos esponsais das infantas D. Carlota Joaquina e D. Mariana Vitória de Bragança em Madrid, nas cortes de Carlos III e D. Maria I. Da autora, in La Menina…; Se Saudades matassem… (conforme bibliografia).

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Nota-se a falta da grande exibição dos embaixadores, que entre si se emulavam, na demonstração da respectiva grandeza. A ausência só pode ter-se ficado a dever ao contex-to em que se realizaram estes enlaces de 1816 e, no caso de Portugal, tratados a partir do Rio de Janeiro. Acresce o recém--estabelecido convénio das relações diplomáticas, suspensas, nas circunstâncias da guerra peninsular, período que traz à lembrança o duro golpe que atingiu o sentimento português, perpetrado em Fontainebleau, de tão má memória e trágico desfecho, para os portugueses. As dificuldades de comunica-ção, por outro lado, tinham-se agravado, em face da postura revolucionária, adoptada pela Junta Central de Cádis.105

Dilui-se nas funções de enviado plenipotenciário, no-meado para a entrega das duas princesas, em Cádis, o conde da Caparica, marquês de Valada, mordomo-mor da rainha de Portugal, nos cenários de pós-cerimonial, a bordo da S. Sebastião. Não se descortinou indicação expressa que afian-ce também a permanência na corte madrilena dos servido-res, que tinham acompanhado as infantas na viagem e Luís Marrocos afirmava, que iriam para ficar. Porém, teremos alguma notícia da permanência de alguns destes servidores (renomeados, talvez, posteriormente) referidos, no contexto da correspondência de D. Maria Teresa de Bragança, como adiante veremos.106

105 Não obstante, a Junta Central de Cádis tinha designado um em-baixador junto da corte do Rio de Janeiro, com carácter semioficial, durante a destituição e exílio da família real e prisão de Fernando VII em Valençay. Destaca-se a figura do marquês de Casa Irujo de cuja missão nos dá conta J. M. Rubio, como ficou referido. 106 Carta de Marrocos de 10.7.1816, onde ele confirma o embarque das noivas e dá indicação da comitiva privada das duas princesas: “No dia 2 do corrente mês [Julho] as Senhoras Dona Maria Isabel, rainha d’ Espanha e Dona Maria Francisca, embarcaram logo de ma-nhã na nau S. Sebastião e suas criadas, 3 açafatas, as criadas destas, 2 retretas, 2 moças de quarto e duas pretas, para ficarem em Espanha ao seu serviço (…).” E acrescenta: “Os criados (sic) não tinham destino

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Alguém da família de criados, portugueses, havia de ficar ao serviço das princesas, pois era esse o costume, aça-fatas e retretas, sobretudo, por um tempo determinado, que podia ir de dois a cinco anos, como se conhece da última troca de noivas, em 1785.107

A última notícia que temos do mordomo-mor de D. Carlota Joaquina, o marquês de Valada, dada a especificida-de da sua incumbência, acha-se na Gazeta de Lisboa, a partir da de Madrid de 15 de Outubro e do número “extraordiná-rio” de 13 desse mês, esta relativa “unicamente às mercês” de SM. Católica, pelo plausível motivo do seu casamento e do Senhor Infante D. Carlos. Acha-se o marquês de Valada, entre as muitas pessoas, investidas na dignidade das conde-corações, o qual foi agraciado com a alta distinção do colar do Tosão d’ Oiro.108

Amerceadas igualmente, mas com a Banda da Real Ordem de Damas Nobres da Rainha Maria Luísa, foram as senhoras infantas, irmãs mais novas das noivas, D. Maria da Assunção e D. Ana de Jesus Maria, assim como a princesa-de ficarem em Espanha, menos aqueles que as senhoras quiserem, que ali fiquem, para o que levam licença somente nesse caso.” In ob. cit., pp. 342-343. Nota: É pouco clara a notícia, nomeadamente, quando se fala do “médico Azevedo [Vicente António de Azevedo], irmão do barão do Rio Seco”, parecendo que se refere a ele uma au-torização expressa, de ficar, querendo. 107 Do disposto nos capítulos dos dois convénios, pré-nupciais, a este respeito, nada consta de particular, ainda que paire no ar, o espírito de assegurar a dignidade, tanto de uma, como da outra das infantas, conforme ao seu estatuto, através da segurança de dotes e arras. Invoca-se no preâmbulo dos tratados a disposição que presidiu aos reais esponsais de 1785, mas não vai além disso, no tocante aos servidores nem ao tempo de sua permanência, pelo que há-de fazer-se fé nas palavras de Luís Marrocos, por dentro da correspondência oficial, dadas as suas funções. Sobre os contratos: Vd. Colecção dos Tratados, Convenções, etc., V.108 Gazeta de Lisboa de 22.10.1816.

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-viúva, D. Maria Francisca Benedita (tia das infantas) e ain-da, as senhoras, condessa de Linhares e marquesa de Valada, servidoras e esposas dos titulares referidos.

Posteriormente, já no número de 15 de Novembro da Gazeta de Lisboa constava – fonte a partir de Madrid, de dia 9 – que a rainha D. Maria Isabel tinha condecorado com a Banda da sua Real Ordem de Damas Nobres da Rainha D. Maria Luísa as senhoras marquesa de S. Miguel, marquesa de Lumiares, condessa de Cavaleiros e D. Maria do Resgate Noronha.109

109 Estas senhoras eram damas das princesas e da casa da rainha. A condessa de Cavaleiros era, então, D. Francisca Correia de Lacerda, mulher do 2.º conde do título, D. Gregório de Eça e Menezes, sogros de D. Maria do Resgate, 3.ª condessa da Lousã.

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A arte das funções em Sevilha

Não é só político o que se vislumbra nas medidas le-vadas a cabo pelo Ayuntamiento de Sevilha, em ostentação e apoio à causa de Fernando VII, prevenindo e não querendo ficar à margem do recebimento das duas princesas portugue-sas, nas suas qualidade de rainha e de infanta de Espanha e, portanto, não deve ser matéria que passe por alto. A recolha que derivou da pesquisa de testemunhos coevos, leva-nos ao encontro de um programa cultural e ideológico do maior alcance, revelando-se muito estimulante a sua leitura, se havemos de entender mais amplamente, o contexto político interno e externo de Espanha, na reafirmação da aliança ibé-rica, enquadrada pelos esponsais de 1816.110

Além do minucioso programa, específico, que impor-tará ao leitor seguir, faculta-nos o autor da memória, Rev.º P.e Fr. Govea y Agreda, uma introdução de cariz histórico, com a qual pretende fixar a lembrança futura de proveito so-bre a lealdade e nobreza, apanágio daquela distinta e milenar urbe, facto sempre assinalado no brasão da cidade conferido pela realeza, desde a reconquista da cidade.111

110 Fiestas reales con que celebró la muy N. y L. ciudad de Sevilla la venida de su Reyna y Señora Dona María Isabel Francisca y de la Serenísima Infanta Doña María Francisca de Asís de Braganza, se da à luz de orden de Su Excmo. Ayuntamiento y la escribió el M.R.P. Mtro. Fr. José Govea y Agreda, &, Imprenta Real y Mayor, 1816.111 Acerca das armas da cidade, lembra o autor: “La empresa y mote de la madeja orlada con el nodo la dio à Sevilla el Rey D. Alonso el Sabio, por mano de un caballero del linaje de Villafranca en testimo-nio de la fidelidad con que esta ciudad había preservado obediente à su rey, cuando las principales ciudades y hasta las Ordenes Militares (excepto la de Alcántara) le dejaron en el desamparo casi universal

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Interpelada pelo tempo, sobre qual era o seu desem-penho e papel, naquelas particulares manifestações de hos-pitalidade às duas princesas, especialmente, à nova rainha de Espanha, não podia Sevilha responder outra coisa, senão, que tinha sido feito tudo quanto podia em obséquio da sua amada e augusta rainha e sereníssima infanta, arredando de si as dificuldades, que só a Lealdade saberia superar, querendo engrandecer-se e deleitar-se em vencê-las.112

A retórica do estilo é desmontada, através da eficácia dos actos, com que se desincumbiu Sevilha, no seu público regozijo, que não podia ficar aquém nem desmentir, a len-dária memória da sua aura. Era Sevilha a herdeira do corpo corruptível do santo rei Fernando III, figura emblemática da hispanidade, desde a sua conquista e sobre todas, amada, re-mida por aquele rei de escrava a metrópole, gesto assinalado no depósito dos seus restos mortais, nela.

E novamente interpela sobre quem terá levado mais longe o esmero, em consagrar tão grandiosos obséquios: os monarcas, honrando Sevilha ou esta, correspondendo fiel e agradecida aos seus monarcas? A isto responde, lembrando um passado de glória e de lealdade – emblema que é distin-tivo da urbe – poderosos estímulos, que excitavam o zelo, actividade e nobres sentimentos, na pessoa de D. Manuel de Masa, procurador-maior cuja prestação fora no sentido de apelar à recordação dos sevilhanos a obrigação que tinham de felicitar a SM por aquele motivo e de se fazer representar, através dos seus capitulares deputados, condes de Altamira e de Frias.113

y desobediencia y se alistaron à favor del hijo del rey D. Sancho, el Bravo”. Fr. José Govea y Agreda, ob. cit., p. 2, Nota 1.112 Agreda, Evocação, in ob. cit.113 Este intróito à recepção de Sevilha oferecida às duas infantas tem a sua justificação, na medida em que não estava prevista a sua paragem, conclusão que vai ao encontro da troca de correspondência oficial, inserta na dita memória.

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Determinara-se, portanto, suplicar a real permissão para que uma deputação da cidade fosse cumprimentar a SS.AA num dos lugares do trânsito, oferecendo-lhes o amor e respeito, seu mais fiel atributo aos seus soberanos, anteci-pando-se à eventualidade de o trajecto previsto, decorrer nas imediações de Sevilha, facto que indica que o itinerário era desconhecido e/ou não tinha sido divulgado.114

Tal deliberação foi tomada em reunião de Cabildo de 29 de Abril de 1816, na sequência da prévia nomeação dos membros da referida deputação de 6 daquele mês, a qual integrava os mais altos títulos do Ayuntamiento os quais, reunidos, teriam encargo de se dirigir e indagar dos tribu-nais, nobreza e mais corpos, sobre tudo que pudesse evitar o descuido e levar Sevilha a manifestar a sua indefectível lealdade e amor ao seu soberano.

Foram redigidas cartas de apelo ao monarca, aos du-ques do Infantado e ao conde de Miranda (figura de maior relevo na condução das reais noivas desde Cádis, onde as recebeu, em nome de Fernando VII e as entregou, na ceri-mónia de recebimento, como lembramos), solicitando per-missão para se realizarem as boas-vindas públicas. Era im-perioso que o rei satisfizesse a tal súplica, tendo em mente, que de Sevilha, sempre os reis de Castela tinham garantido com firmeza e estabilidade o sóleo espanhol.115

Naturalmente, pelo alcance de tais declarações, estas não carecem de segunda leitura. Delas se colhe uma inter-pretação que vai ao encontro não só do reiterado papel da-

114 Acentua o autor que a cidade sempre tinha sido vigilante, quanto às suas obrigações exemplificando com o remoto tempo de Felipe V, quando constou em Sevilha que o monarca iria a Badajoz, com a rainha e demais família, na ocasião da troca das noivas, D. Maria Bárbara de Bragança e D. Mariana Vitória de Borbón, que decorreu no reinado de D. João V. 115 Agreda, in ob. cit., p. 6.

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quela cidade milenar, presente ao longo da história hispânica, mas, ainda, no sentido de lembrar os dias funestos: não para os fazer reviver, mas para os afastar, em nome da ordem, que se perspectivava, com o regresso de Fernando VII ao poder. Esperava-se da sua parte que não saísse defraudada nem des-mentida a expectativa dos sevilhanos. Assim, teve o augusto soberano o gosto de condescender e atender ao pedido, permi-tindo-se que a rainha e a infanta transitassem por Sevilha, não obstante os ajustes, ao programa, preestabelecido.

Chama-nos a atenção o sublinhado da resposta de que era da real vontade que os festejos públicos, nos lugares por onde transitasse a comitiva, fosse conforme às circunstân-cias, a fim de não agravar as condições de vida dos vassalos, que tanto haviam padecido, durante as passadas ocorrên-cias.116

Ao encontro disto vai a opinião que o autor emite, quando enaltece o regozijo de Sevilha antiga corte dos reis de Espanha, não por mera vaidade, mas pelo ensejo de po-der acreditar à nação e a toda a Europa que, não obstante as vicissitudes dos tempos, causar notáveis mudanças, tanto na opulência das riquezas, como na nobreza, ciências, artes e virtudes civis Sevilha ainda, assim, não desmerecia do que sempre tinha sido. Este era o seu pundonor.

Lembra a propósito o deplorável estado das suas ren-das e vontades, a lastimável situação do seu comércio, a ru-ína das suas antigas fábricas, o menosprezo da sua riqueza e magnificência, ostentadas no tempo de Felipe II, quando Se-vilha se orgulhava de ser o mais rico empório comercial.117

116 A resposta foi expedida de Puerto de Santa María, a 28.4.1816, por intermédio do conde de Miranda, plenipotenciário de Fernando VII, no convénio da entrega e do recebimento, como ficou notado. Vd. Aviso oficial, in Agreda, ob. cit., pp. 7-8.117 Idem., p. 10.

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O repositório das lamentações não pára ali, pela voz do Rev.º Agreda, qual profeta Jeremias, perante a destruição de Jerusalém. E enumera um a um, os esplendores perdi-dos de Sevilha, desde as fábricas, às artes pujantes, com que abastecia toda a Espanha, fonte primordial de todos os ra-mos de comércio, que abasteceu de luxos a própria Europa.

Era impossível omitir o abismo onde tinha sido preci-pitada a cidade, por invasores injustos, que tinham cevado a sua cobiça, como avaros e sedentos hidrópicos, até aos mais recônditos mananciais das riquezas particulares e públicas. Males dos quais não convalesceriam cidades e reinos, se-não muito lentamente, a menos que o poder e a sabedoria viessem em socorro, apelo simbólico do P.e Agreda, não só à diligência do povo, mas ao zelo do soberano, a quem se dirigia a invocação.

Um tal reportório, alicerçado na lembrança do que fora a idade de ouro de Sevilha e ao peso da cidade no con-texto, não só espanhol, mas europeu cuja decadência espe-lhava agora a situação geral de Espanha, visivelmente re-duzida em todos os aspectos, em relação ao que tinha sido. Sevilha queria participar da restauração da ordem antiga. A melhor forma de o manifestar é dar públicas boas-vindas à jovem rainha, emblemática imagem da promissora e resga-tadora idade.

Prossegue o autor com a explicitação dos passos que, na sua opinião, se ofereciam indispensáveis, à consecução deste alto desiderando, dando conta das notícias que re-metem para o 1.º de Maio – o do expediente – quando se solicitou o avanço da verba à Tesoreía general de Rentas, necessária para custear a acomodação da comitiva e relativo édito, pelo qual se dava licença à entrada de víveres e caldos libres de derechos, nos dias de permanência ali da comitiva régia, para o povo.

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Não era bastante cuidar do acolhimento, só portas adentro. Era fundamental atender fora delas, à reparação e construção de caminhos, fontes e alcantarilhas, terraplana-gens, decorações, adornos do palácio, aposentação da co-mitiva, provisões, fogos-de-artifício, música e outras mais coisas, dependentes do cuidado do ayuntamiento.

Bastará ao leitor atender à especificidade das interven-ções camarárias, enumeradas, pelo P.e Agreda, para fazer uma pequena ideia do estado geral do país inteiro. De não menos consideração, seriam os aspectos que ele sublinha: o policiamento e a ordem pública, através da renovação dos éditos, que regulavam o arranjo acomodatício das pousadas, fondas e osterías. Asseio e reparação das ruas e fachadas das casas, por toda a cidade, com especial destaque para aque-las, onde o séquito real passaria. A outro nível, tratava-se dos contactos que respeitava ao espiritual, por meio de ora-ção e rogativas, para o céu abençoar a virtuosa empresa.118

Parece que à porfia, ninguém queria ficar atrás de nin-guém, no desvelo de alcançar o fim em vista, cômputo onde reaparece a figura do conde de Miranda, a cada momento, na qualidade de mordomo-mor, enviado de Fernando VII e superintendente do inteiro programa, das festas de recebi-mento das duas infantas, em Espanha.119

118 “El rogar a Dios por los soberanos es tan antiguo, como la ver-dadera religión. Doctrina que enseñaron los santos apóstolos S. Pe-dro y S. Pablo, costumbre que ha practicado la Iglesia en todos los siglos. Tertuliano en su Apología nos dice: rogamos por la salud de los emperadores al Dios verdadero, vivo y eterno, de quien ellos han recibido el imperio. En una palabra, le deseamos todo cuanto él mis-mo puede desear como hombre y como emperador. En esto fundarán las Apologías en defensa del cristianismo S. Policarpo, S. Acacio, obispo, S. Cipriano, obispo de Cartago, Teófilo, obispo de Alejandría, Athenagoras. Arnobio, etc., etc.”. Agreda, in ob. cit., p. 14, Nota 1.119 E porquanto ao mundo literário ande escasso da prosa clássica, que recrie a beleza da linguagem, não há força que resista à eleição

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O aviso da chegada a Cádis da nau onde viajavam, por um próprio, logo enviado a Sevilha, foi o estrelejar do foguete que deu o arranque aos dias felizes da quadra memorável, que teve por alvo, particular, as princesas portuguesas: As reais hós-pedes estavam próximas! – Insistia o bando, que repercutia for-ça no abrilhantamento das fachadas, no asseio das ruas e nas lu-minárias, em três noites seguidas: calles de S. Pablo, del Angel à la Cruz de la Cerrajería, calle de la Sierpe, Plaza de Fernando VII, calle Génova, Gradas, Casa Lonja, Real Palacio Alcázar.

A partir daquela confirmação de que o séquito estan-ciaria em Sevilha, o relato segue a par e passo todas as fun-ções que iam tendo, lugar, na cidade, fazendo-se eco de ou-tras, Espanha afora: o repicar contínuo dos sinos, o Te Deum de Graças, a reunião do Ayuntamiento, ao compasso dos da catedral, o último retoque na decoração do teatro, o carrea-mento de alimentos, para alimentar a demanda popular da gente, proveniente das terras mais distantes.

Finalmente, um correio extraordinário trazia a notícia mais esperada: quarta-feira, 11 de Setembro, seria o dia da saída de Cádis da rainha, contando dar entrada em Sevilha na manhãzinha de 13, acompanhada da sua augusta irmã. Um único pedido, fazia a rainha: antes de se instalar, dese-java apear-se à porta da catedral, para assistir ao Te-Deum e ajoelhar diante da imagem da Virgem e do túmulo do glorio-so rei S. Fernando!120

do trecho seguinte, para avivar a memória dos cultores, deixando-nos mergulhar no regozijo das festas de Sevilha: “Confiaba haber de cantar al Altísimo sus alabanzas y finalmente vio colmados sus deseos. Ni el perdido caminante en noche tenebrosa ni el vigilante pastor se recrea-ron con más puro gozo al ver el nacimiento de la Aurora, que Sevilla, cuando supo que la Reyna nuestra Señora y Serenísima Infanta estaban à la vista de Cádiz cuya alegre nueva anunció el ministro de la Real Hacienda del Puerto de Santa Maria, por extraordinario al Intendente y su Asistente electo D. Francisco Laborda…”. Idem, p. 15. 120 Esta notícia bastaria para fazer cabal demostração do quanto

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Não passou despercebido às dignidades e instituições o desejo manifestado pela rainha, visto ser tão digno de me-mória, o sábio gesto:

Assim se preparou Sevilha para receber a sua augusta rai-nha e a sereníssima infanta, pressentido nela que, tendo pro-vado também a amargura da guerra, sabia, como amável mãe, compadecer-se do miserável estado dos seus vassalos, apreciar a fidelidade dos povos e proporcionar-lhes os bens e doçuras da paz.121

Acreditamos a declaração do autor como realmente digna, quando afirma terem ficado despovoadas e cidades da Andaluzia para acudir a Sevilha, num concurso estimado em 35 000 almas – cálculo, por baixo – para rejubilar e aclamar a rainha. No entanto, malgrado a alegria espelhada no olhar do povo e o amor e lealdade dos seus semblantes, a nobre cidade já não podia receber como dantes, as suas princesas.

Faltava a Sevilha a magnificência d’outrora com que presenteara Fernando de Aragão e Isabel “a Católica” ou Car-los V e Isabel de Portugal, Felipe II e Felipe V. Não o podia no luzimento, mas podia-o, como mostrava na grandeza de âni-mo, que supria os efeitos, grandiosos, com afectuosos gestos da gente, simbolizado na oferta de um carro triunfal, constru-ído com o que tinham, para carregar nele a nova soberana. 122

A reacção da soberana foi o mais inteligente e digna possível, no instante em que confessou que prezava mais

estava bem-instruída dos hábitos locais e das suas obrigações, na qua-lidade de rainha de Espanha, a infanta D. Maria Isabel de Bragança.121 Agreda, in ob. cit., p. 20. 122 Em vista do que se estava a generalizar, nas terras por onde passava a real comitiva, o conde de Miranda, como superintendente, ordenou que não fosse desenganchado o coche real, pela gente que queria puxá-lo a braços, invocando “perigos que podia suscitar e que em vez disso se circulasse pela beira dos caminhos dos lugares em trânsito, dali até Aranjuez”. Idem, p. 22.

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as virtudes cívicas do que exacerbadas manifestações, es-cusando apresentar-se com o fausto das altivas princesas ou admitir obséquios, próprios dos tiranos e não dos bons prín-cipes, dando a conhecer publicamente, com tais palavras os princípios em que fora educada.123

A verdade é que, estando tudo prevenido para ter lugar, na manhãzinha de 13, as entradas reais, às portas de Sevilha, por uma alteração de última hora do conde de Miranda, a en-trada teve de ser remarcada para de tarde. Desmobilizaram--se, por conseguinte, os corpos militares destacados, para o efeito, as instituições de cortesia e a deputação da câmara.124

Colhida foi toda a gente de surpresa, quando repenti-namente se avistou da atalaia da torre da catedral de Sevilha a comitiva que se aproximava. Eis que avisada ou não, das alterações, a sentinela mantivera o seu programa e fez arvo-rar as vinte e uma bandeiras de tafetá encarnado e branco com as armas de Espanha e de Portugal e anunciou, por meio do repique de sinos, que o séquito real se achava às portas da cidade.125

Sem mais perda de tempo correu a deputação cama-rária a pé, ao encontro do correio de gabinete, no sítio de Almedilla, fora da Porta de Triana, o qual perguntava já por D. José de Masa. A passo acelerado, tendo no avanço quatro aguazis, correu ao campo de S. Telmo, deparando-se aí a deputação com os batedores e coches da real comitiva. For-mou-se a deputação em ala e a rainha, sem perder o sangue--frio, foi quem deu ordem de paragem ao coche onde vinha.

123 Corrobora as palavras do autor, o que se conhece a este propósito e é matéria do capítulo deste livro, baseado no manual de conduta de princesas. 124 O autor não desvela a razão que levou o conde de Miranda a tomar aquela decisão, mas facilmente se depreende, que se deveria ao receio de algum imprevisto ou suspeição de algo fora do controlo.125 Agreda, in ob. cit., p. 27.

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Em lágrimas, D. José de Masa teve oportunidade de explicar o ocorrido, tomado do sentimento de se achar a entrada da cidade desprovida dos arranjos, preparados es-pecialmente para a ocasião, sendo a rainha, recebida, agora sem esplendor nem aparato. A resposta de D. Maria Isabel não poderia ter sido mais diplomática nem mais delicada: Sevilha não faltou.126

A sabedoria prática salta à vista, se atendermos à ava-liação que o autor faz do desagradável imprevisto. Mas ser-ve também o propósito que nos guia, na intenção de realçar quão bem preparada vinha D. Maria Isabel de Bragança, para enfrentar não um pequeno percalço, mas todos os percalços e prejuízos, semeados ou haviam de sê-lo, no curso do seu exercício. Não eram tempos normais, aqueles, se tomarmos por norma, o costume. Antes de concluirmos ouçamos do sábio Rev.º Agreda, a lição que ele tirou do traiçoeiro per-calço:

Os campos de San Sebastian e de San Telmo hão-de recor-dar à posteridade um exemplo digno de admiração, que igualmente confunde a altivez e desconfiança dos príncipes tiranos e a perfídia dos povos e dos vassalos desleais.

Uma imensidão de povo, arrebatado pelo transporte do amor e do regozijo, tornava-se o escudo invencível, que cus-

126 O relato mostra como tudo acabou por se recompor e Sevilha assistiu às entradas reais, com a cortesia e dignidade, que se impu-nham e tão delicadamente preparadas. Por outro lado, o procurador apresentou a carta-ordem que havia recebido, não ficando claro para nós, se a ordem partira do conde de Miranda de facto ou se teria ha-vido infiltração, intencionando frustrar o programa. A desculpa do(s) protagonista(s) do lapso assentou na inculca de que SM, a rainha, pretendia viajar incognito até ao Alcáçar e após repousar é que daria abertura ao programa oficial, com a ida à catedral, como fizera ques-tão. Por causa disso, foi ordenado registo do acontecido com recolha de testemunho público, tanto da resposta da rainha como das explica-ções do conde de Miranda. Agreda, in ob. cit., p. 29 e nota 1.

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todiava a rainha das Espanhas, que podia comprovar com esta ocasião, quão verdadeira soberania, é a que domina os corações; e deu a conhecer com prazer, por experiência, o que, com tanta sabedoria, aconselhava aos príncipes um sábio político: ‘mais vale ter vassalos fiéis do que ter exér-citos vitoriosos’!127

De acordo com o desígnio que guiou o Rev.º Agreda a escrever para memória futura o que se passou em Sevilha – conforme vamos seguindo – deixaria incompleta a missão, se não desse exaustivo relato de todas as funções, do que de melhor a cidade ofereceu à realeza e, nisso, não se afastou do desígnio do autor anónimo, que citámos, a propósito das funções de Madrid. Mas aquilo que no primeiro é simpreza de estilo, em Fr. Agreda é refinamento.

Evitaremos repetir o inteiro roteiro das festas a que assistiu toda a Sevilha, nesta ocasião, emblemática, não obs-tante, cientes de perdermos parte da riqueza e do significado delas, na intenção de levar o leitor a focar-se somente nal-guns dos aspectos, mais relevantes – e são muitos os que constam daquela narrativa – os quais, pela sua pertinência, se fazem dignos de ser lambrados.

Num breve preâmbulo é introduzido o observador no ambiente das funções, no subtítulo: Adornos e iluminacio-nes de la carrera y otros sitios públicos, onde o autor mi-nistra uma autêntica lição sobre estética ou doutra forma, sobre o sentido e significado da arte, afirmando que a função primordial dela é servir a ética e a moral, de que nunca pode ser desligada a arte, se há-de alcançar o fim em vista.

Opõe-se-lhe o seu rebaixamento – na escala hierárqui-ca da arte – quando, em vez disso, é imagem da sociedade que a produz, no que esta tem de pior, no sentido em que não aprimora, não educa, não estimula, nem induz ao Bem.

127 O Rev.º Agreda cita Telémaco (‘), Liv.º 1, Cap. 5. Cf. ob. cit., p. 31.

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Sublinhe-se a ideia, a partir destes extractos, do ori-ginal:

El país ignorante no conoce la belleza y perfección de las Artes y el pobre no puede emprender obras y adornos con suntuosidad ni con exquisito y delicado gusto. La belleza no es (como juzga la ignorancia) un efecto del capricho; ni el placer y embeleso que causan las perspectivas dependen de la preocupación.128

Uma tal concepção de arte só pode ser plenamente entendi-da, debaixo de regras e princípios definidos:

La majestad de los edificios, sus elegantes ornatos perte-necen à una ciencia físico-matemática, que tiene reglas ciertas, principios verdaderos y máximas muy conformes à la razón y buen gusto. ¿Qué podrá abortar el capricho? Monstruos, garambainas ridículas, groseros follajes, que si logran embobar al ignorante vulgo; también desacreditan à sus artífices, à los pueblos, à las naciones y à los siglos.

E prossegue:

Los aplausos indebidos, con que han celebrado los pue-blos las obras y adornos, que debieron abandonar al olvido, contribuyeron no poco à la corrupción del buen gusto, à la decadencia de las artes y à los extravíos de sus profesores. Un genio será solamente el que renunciará las sendas que conducen al aplauso y la riqueza; primero que prostituir la belleza y perfección de su arte: antes su-frirá que la envidia y la ignorancia enemigas del mérito le declaren un adura guerra; que sacrificar el buen gusto al capricho, la razón à la barbarie y las reglas de las artes à una torpe codicia.

E ajunta:

128 Agreda, in ob. cit., pp. 35-38.

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¡Tal es la condición y la instabilidad de las cosas humanas! La ignorancia y la cultura, irreconciliables enemigas, se disputan la dominación en ciencias y artes y siendo el tem-plo de Momo más concurrido que el de Minerva, ha logrado dominar por más siglos y con más dilatado imperio.129

Ao ilustrar a fonte onde bebeu tais conceitos, o autor acaba por fazer o elogio dos soberanos – como que deixando a marca da sua época, se há-de ser de prosperidade ou de decadência das artes – os quais usaram da autoridade que lhes é inerente, no sentido de conter a torrente da ignorância de vários modos: mandando examinar as obras públicas, su-jeitando os projectos à aprovação da Real Academia de San Fernando, promovendo escolas de artes, recompensando os mestres, honrando-os e premiando os melhores alunos, insu-flando em todos o mesmo ardor.130

Reconhecia a dificuldade em atalhar o tropel – como afirma – das inumeráveis causas da corrupção do gosto:

El despilfarrado capricho de los que costean las obras y adornos públicos; El verse precisados los artistas à condes-cender o perecer en la indigencia; la fatal desgracia de que los ricos no suelen ser los más ilustrados, porque la riqueza no es el más abonado terreno para cultivar los talentos, las ciencias y artes; la falta de ilustración de los pueblos, que no conocen la influencia que tienen el dibujo y matemáti-cas hasta en las manufacturas mecánicas, han sido siempre

129 Idem.130 É evidente a admiração de Fr. Agreda pela escola de artes, que foi o reinado de Carlos III. Mas sendo pessoalizada a opinião, não in-valida nem podia, a razão dos pressupostos com que abre a defesa dos seus próprios pontos de vista, falando da época, que se vivia, agora, uma época de crise cuja descrição, curiosamente, vai ao encontro da opinião de autores, como Vargas Llosa (O herói discreto), quando ele confessa a sua apreensão e pessimismo em relação aos caminhos da Arte, por andar esta confundida com divertimento e recriação.

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causas que han influido en el atraso de las nobles Artes y en la ignorancia de las naciones.131

Encerra lamentando ver Sevilha espelho fiel do que acabava de atestar. Fonte de inspiração tinha sido ela até há pouco, mestra nas variadas áreas artísticas, Sevilha que se vangloriava de ter sido a que mais tempo resistira à barbárie, tinha experimentado, como outras, congéneres o tirânico império que costuma exercer a ignorância sobre as artes, as ciências, os talentos e o gosto dos tempos.132

Tal como se adivinha, desde o início da sua exposição, o autor evoca fielmente a memória de Carlos III, monarca que tinha revivificado as artes de Sevilha, ao mesmo tempo que demonstra a expectativa de achar em Fernando VII a re-petição do exemplo do avô e nesse aspecto fizesse abortar os fetos da ignorância, que costumam crescer com a miséria e fortalecer-se com o tempo. Que el-Rei pudesse conter o mo-vimento retrógrado a que tinham sido votadas aquelas artes, em virtude das graves convulsões que o reino tinha sofrido.

E deixa o alerta que temos por sinal – bastante significa-tivo – de que não nos enganámos no juízo das suas refle-xões:

Aunque tenga derecho un pueblo ilustrado à impedir lo que pueda carrearle la censura y el desprecio; también tiene que dar alguna licencia à la arbitrariedad de los que con sus

131 Não podemos deixar de chamar a atenção para o facto impor-tantíssimo, que assinala a passagem da rainha D. Maria Isabel, pelo trono de Espanha, que foi o seu labor em prol da recuperação das artes e da instituição de museus, como seja o Museu do Prado (cuja obra lançou), não obstante ter sido um reinado de curtíssima duração. Igualmente e a propósito a renovada importância que imprimiu à Real Academia de San Fernando, matéria que colhe de surpresa e contraria os delatores da sua imagem.132 Cf. Agreda. Idem.

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expensas promueven los festejos y adornos públicos. No és fácil concordar estos principios!133

Segue-se por ele um roteiro de arte ditada em todas as suas vertentes, da arte efémera, arquitectónica e escultórica, à decoração, passando pela pintura. A descrição que o autor faz não oblitera nada do que descobria, maravilhado, o seu olhar, curioso. Além do mais, é o coração andaluz do ho-mem de cultura que fala, legando aos vindouros a recorda-ção do melhor da gala de Sevilha, na altura em que a cidade atravessava um dos mais dramáticos momentos da sua longa história.

Sobre a ponte do Guadalquivir, onde pára o coche a pedido da rainha, a fim de melhor apreciar a vista magní-fica que oferecia a noite serena; sempre acompanhada pela infanta, sua irmã, vislumbra-se a fachada do palácio do con-sulado na Lonja e percorre-se, atentamente, cada um dos le-treiros, suspensos, em sua honra.

Mereció el alto honor de que SM se dignase mandar parar el coche en la noche del catorce (de Setembro) frente de la fachada principal, observando de cerca y mui deter-minadamente la suntuosidad del edifico, la grandeza de su adorno, su brillante iluminación, que hacían resaltar sus perfecciones…134

Sobe e desce a gente curiosa a contemplar a ornamen-tação de cada detalhe das galerias, alta e baixa, das Casas Capitulares e a sala da Real Audiência.135

133 Agreda, in ob. cit., pp. 35-38.134 Idem, p. 52. 135 O Rev.º Agreda faz menção de um retrato duplo de D. Maria Isa-bel e Fernando VII, parte da ornamentação alegórica da Real Audiên-cia (Casas Capitulares) de Sevilha: “el único retrato de la Reyna N. S.ª que vio Sevilla, en aquellos días y la consideración de franquear entrada publica para satisfacer los ardientes deseos que manifestó el numeroso concurso de subir y ver de cerca en retrato el objeto de

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Defronte, jorra da Fonte, decorada a primor pelo Co-legio y Arte de la Platería no centro da Plaza (baptizada de Fernando VII), também esta, soberbamente enfeitada e ple-na de música, executada pelas orquestras que lhe recordaba la antigua opulencia y población de Sevilla y arrebataba los ánimos con deleitoso encanto.

Perscruta cada recanto do palácio mouro (Alcázar) que tanto orgulha Sevilha, desde a reconquista da cidade, onde SM. e A. iriam estanciar os três dias daquela jornada. Acredita ao esmero de D. Juan Downie (parece tratar-se de um membro do consulado inglês) o brilho da iluminação dos jardins reais e demais esforços em honra e mérito das reais visitantes. 136

Não pode o leitor calar o seu espanto, perante a varie-dade de tão pujantes e inusitadas manifestações artísticas que hoje, apesar da distância temporal, dariam para extasiar, não só a fantasia, mas a admiração de qualquer espírito sensível. Atraí-das, também, pela beleza da envolvência, diz que tanto a rainha

tan plausibles obsequios”. In ob. cit., p. 43. Nota: É provável que o aludido retrato corresponda ao que vem reproduzido no livro de Fr. Agreda, seguramente de 1816, já que é esse também o ano da impres-são do dito seu livro.136 Descreve a ornamentação do real alcáçar, afiançando o autor que bastava a relação dos adornos das antecâmaras, salas de recepção e de despacho, dormitórios de SM e A., gabinete e toucador, oratório e sala de jantar e ainda as instalações da comitiva régia, para confirmar aquilo que diz de Sevilha o autor da Crónica de Afonso XI: “que sabe bien acoger à su Señor al tiempo que à ella viene.” Sublinhamos o que diz Fr. Agreda acerca da colecção de pintura que tinha sido to-talmente destruída e/ou roubada “pelos inimigos que a profanaram”, devendo-se ao zelo do pintor da câmara e director da Real Academia de San Fernando, D. Joaquín Cortés, as três Artes Nobres, que tinha sabido e conseguido reunir “mediante a generosidade das pessoas de distinção da vizinhança, tantas e tão formosas pinturas, que chama-ram a atenção de SM. e A. bem como da real comitiva”. In ob. cit., p. 54.

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como a infanta não se puderam conter que não saíssem dos seus aposentos pelas dez da noite do primeiro dia, para contempla-rem de perto e usufruir dos atrativos, criados, à sua volta.137

É impossível de suster a curiosidade, que suscita em nós, o pródigo escrito de Fr. Agreda. Mas, não obstante rece-armos ficar aquém do brilho dele – para quem remetemos o leitor – arriscamos dar notícia de um pormenor, que a partir dos jogos de luz, água e música, ao gosto barroco, abrilhanta-do, magnificamente, pela presença das princesas portuguesas, com tal esplendor, que não o desdenharia a corte de Carlos III.

É elucidativa a passagem, que dá da encenação uma ideia da efémera delicadeza da decoração do palácio, onde nem faltou uma falua, a deslizar serena, à flor da água do lago artificial:

Para mayor festejo y regocijo surcaba sobre las aguas una hermosa falúa pintada de verde, forrada de damasco carmesí con almohadones, tremolando una graciosa ban-dera y en aquella se colocó la orquestra de música. Pensa-miento que aplaudieron SM. y A. con expresivas demonstra-ciones de regocijo y complacencia.138

137 La iluminación fue superior à todo encarecimiento y alabanzas. Se vistieron todos los muros, sus labores arabescos, lazos, follajes, trepados, frisos, grotescos, estatúas, ventanas, arcos, rejas, figuras, jeroglíficos, de vasos ingleses de colores con una admirable disposi-ción, guardando el mismo orden y vistosa simetría: laboreaban estos el estanque, fuentes, surgideros, juegos de agua, laberinto, riscos; for-maban estas mismas luces y seguían los cuadros de murta, naranjos, plantas y flores, todo abrillantado con la reverberación de tan lumino-sos resplandores, esclarecido con el refulgente brillo de tantas luces, brindaba al placer más puro; las noches apacibles, la armonía de las orquestras de música, la amenidad del sitio convidaban à gozar de este embeleso con tal atractivo que à las diez de la noche del trece descendió SM. y A. con los Grandes y Real comitiva à gozar y au-mentar esta encantadora belleza. Agreda, in ob. cit., p. 55.138 O espectáculo dos jardins interiores do palácio ficou vedado ao

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O guia leva-nos à Porta de Triana, depois de suspen-dermos o passo, junto da ponte do Guadalquivir com a real comitiva, para podermos comtemplar a vista nocturna da cidade, iluminada. Também ali, podia admirar-se a orna-mentação, saída das finas mãos dos artesãos dos grémios da seda: torcedores, tecedores, passamaneiros e tintureiros cuja obra mostrava ser à altura do seu renome. 139

O itinerário da visita encerra-se, tecendo o autor uma apreciação acerca do bom gosto dos adornos dos caminhos e sítios públicos, por onde deambulara o séquito real, abri-lhantado pelos inúmeros campanários das igrejas, paroquiais e conventos, da cidade, portadas das casas e edifícios de cujas varandas e janelas, cheias de luz, pendiam colgaduras e ricas sedas, numa complexa montra de boas-vindas. Mas a chave que nos abre o entendimento para o todo do signifi-cado do relato de Fr. Agreda é as cerimónias do beija-mão e das velações, nos quais se projecta emblemática a imagem, que o autor quer passar-nos, de um reino prospectivo de uma renascida Espanha.

São quadros vivos das mais justas aspirações de al-guém, que viu ultrajados os símbolos dos seus maiores cujo nome e acção queria que fosse o farol na noite escura. Não podia haver maior nem melhor esperança de reassunção dos valores antigos, do que o cenário que se oferecia ver, re-presentado pelo porte das duas princesas, quadros de que Espanha andava faminta!

público para evitar a confusão que viesse perturbar o usufruto das duas princesas, que se pretendia obsequiar em privado. Idem, p. 57.139 O autor insiste na descrição do espectáculo oferecido pelas di-versas ornamentações, nomeadamente, “Quartel de los Carabineros Reales”, Palácio do Arcebispo, Tribunal da Inquisição, Real Univer-sidade Literária, Palácio dos Duques de Medinaceli, Colégio Mayor, Casa-Tenente do Alcayde de Los Reales Alcazáres, Palácio do Conde de Monteagudo e Real Companhia Del Guadalquivir”. Ibidem.

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E interpela-nos:

Cuando los vasallos rinden su sumisión y obediencia à los reyes ¿qué se interesa más? ¿La gloria de estos o el honor de aquellos? Es mui dudoso. Los Príncipes y los vasallos encuentran en esto mismo su gloria, aunque por diversos respectos (…) Impulsados de tan gloriosos sentimientos se presentaron con la mayor pompa y gala en el Real Alcázar à las cuatro de la tarde del viernes trece los Excmo. é Ilustrí-simo Cabildos y el Real Tribunal de la Audiencia, obtenido el competente permiso.140

Terminado o desfile das figuras que encarnavam a autori-dade e o poder da cidade, à semelhança de todas as demais, eis-nos, diante do cenário de rendição, à potestade divina.

Nunca parecen los monarcas más exaltados que cuando se humillan ante la Suprema Majestad para rendirle reverentes homenajes ni más dichosos y firmes que cuando se escudan con el Divino auxilio. Las naciones y los siglos comprueban estas verdades con amargo, pero saludable experiencia. Por estos ejemplos de religión presagia la política del Evangelio la felicidad de los Reyes y Reinos.

Traspassado pelo ardor que nele suscita tais reverên-cias, Fr. Agreda pretende transportar com ele o leitor, ao descrever aquele seu exercício, místico. Nada do concurso humano à realização daquela contemplação, por mais luxuo-sa e digna que seja, podia superar em alcance, tão majestosa visão: o acto de fé e humildade de SM. e A. prostradas de joelhos, adorando o Santo Lenho e Ss.ª Virgem.

E cita:

Quando assim ajoelham e prostram por terra, os reis to-cam e apoiam o seu ceptro no Céu, como à escada de

140 Agreda, in ob. cit., pp. 72-76.

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Jacob sustenta Deus, quando por ela descem os Anjos em seu socorro. 141

Eis que a visão se eleva do sonoro coro na entoação do Te--Deum:

Al eco de este dulce cántico acompañaron lo repique ge-neral de las campanas, la salva de la batería y un general alborozo del público. Cantando este himno de glorificación fueron conducidas las reales personas procesionalmente à la Capilla Mayor. La iluminación del templo, la majestad del culto, la grandeza y pompa de esta solemnidad, la ar-monía de las voces e instrumentos, el gozo que inspira este sagrado cántico y el ejemplo de la Reyna é Infanta nueva-mente arrodilladas à los pies del altar, excitaban una alta idea de la Suprema Majestad del Altísimo…!142

Era, na verdade, uma visão do reino de Deus na Terra! Antecipa-o arrebatado, na sua explanação, o autor. Perante um tal cenário, quem haveria que pudesse ficar indiferente? Certamente não, ele, autor, que ama a ordem consubstanciada nos poderes da aliança entre o trono e o altar. Não é só uma questão de erudição e refinamento, o sentido que imprime às suas palavras, que vemos brotar, inspiradas, do coração de quem as dita. Mais o assevera na maneira como sublinha a confiança na fonte, donde brota-va a sua crença.143

Após o banho de espírito, as duas princesas submete-ram-se ao da multidão, voluntariamente, ao percorrer o iti-nerário da cidade de Sevilha, urbe que regurgitava de gente, de acordo com o relato. Melhor que ninguém di-lo o autor, numa exclamação:

141 Apud Saavedra Emp. 18.142 Agreda, in ob. cit., pp. 77-78.143 Agreda cita o livro bíblico de Jó, Cap. 12: 18, 21 e 23.

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Tal qual o filho pródigo que recupera uma amável mãe e po-derosa protectora afigurava-se Sevilha, perante tão augus-tas pessoas que só de vê-las devolvia os antigos e radiosos dias que a tempestade tinha obscurecido.144

Por tudo quanto se nos oferece do vívido relato do Rev.º Fr. José de Govêa y Agreda, entende-se quão difícil havia de ser, recusar o pedido de prolongamento de um dia mais, que fosse, da sua permanência em Sevilha, das duas princesas.145

Da delicadeza da jovem rainha, é ilustrativo um episó-dio, que não deve ser riscado. Perante o programa das festas, que incluía uma tourada em sua homenagem e da irmã, pela Real Maestranza de Caballería – numa das suas funções – quando confrontada com a oferta, a rainha relegou-a, pre-ferindo antes assistir a uma exibição equestre, espectáculo, mais ao encontro da sua sensibilidade.146

144 Agreda, p. 80.145 A prova documental desta súplica e resposta da rainha, mediada pelo conde de Miranda, insere-as Fr. José Govêa y Agreda, a pp. 81-84.146 Com a presença da nobreza e principais representações da ci-dade, tanto eclesiástica como civil, a que se juntou “um luzidio con-curso de senhoras da nobreza” e toda a real comitiva, via-se a Plaza composta da maior gala e riqueza de colorido, onde emergia o pavi-lhão real, majestosamente armado de colgaduras de seda encarnada, ponteada a prata. Em relação à exibição da Real Maestranza, diz-nos o relato: “La pompa y magnificencia de este Real Cuerpo, los briosos y soberbios caballos, la ostentosa gala de sus jaeces, la destreza del Real manejo, los alegres conciertos de la numerosa orquestra de mú-sica, la extraordinaria concurrencia de gentes, los repetidos vivas à SM. Y A., las demonstraciones de su real agrado, las ilustres personas que dedicaban este festejo, todo embelesaba la vista y la imaginación y ofrecía objetos de la mayor ternura y complacencia. La alegría pu-blica y general regocijo de las gentes, observando comedimiento y respeto, acreditaron que no era un pueblo incivil e inculto, sino una ciudad de nobles sentimientos que sabía guardar el debido decoro à

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No remate das celebrações de Sevilha em honra das duas princesas, fica-nos a faltar somente o depoimento na primeira pessoa, que não nos chegou, mas terá certamen-te existido, sabendo, como se sabe, do exemplo e costume familiar, escrito nos intervalos de tempo, subtraído ao do seu repouso. Quase de certeza nenhuma das duas infantas se escusou de dar conta da experiência, nova, narrando os episódios mais relevantes daquelas recepções em particu-lar, aos pais, sem falar das manas e manos, que morriam de curiosidade lá longe, no Rio de Janeiro.147

SM. Y A., respeto à las personas ilustres, aprecio à la memoria de los que con gloria inmortal honraron su Patria y descendencia y la mo-desta publica, que son raros los pueblos que saben observarlas en los alegres espectáculos y en los grandes anfiteatros y circos.” Agreda, in ob. cit., pp. 95-96. 147 Este hábito de trocar correspondência e fazer narrativa das via-gens, repetem-se na documentação estudada, pela autora, nas suas citadas obras e mais adiante se comprova, concernente a momentos, vividos pelas infantas portuguesas, através da sua correspondência de Espanha.

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Da alegria das bodas ao elogio fúnebre da Rainha de Espanha, D. Maria Isabel de Bragança

Na memória de toda a gente estava ainda vivo os acor-des das orquestras, que enchiam de música o ar de Sevilha, sublinhando o entusiasmo dos vivas! e bailados de água nos jardins do alcáçar, com que os sevilhanos festejaram a sua nova rainha, quando, enlutada e compungida, a cidade se curvou ao elogio fúnebre do Rev.º Fr. Agreda, depois de nos ter levado a percorrer o périplo das entradas na mesma Sevi-lha cuja memória nos legou, honrando a sua rainha.148

Tão depressa passou por este mundo a infanta D. Ma-ria Isabel de Bragança, que bem se poderá dizer, que ela morreu, mal tinha acabado de nascer – nas palavras do ora-dor – deixando-nos a nós a avaliação da essência moral des-ta sentença, ao chorar a vida ceifada em flor ou – na visão do crente – louvar-lhe o privilégio de tão cedo usufruir das bênçãos com que Deus galardoa os seus justos.149

O rasto deixado por esta princesa na lembrança da-queles que conviveram com ela, não é senão uma marca de afável virtude, de que ficaram privados, irremediável e pre-maturamente, pela doença e morte, conjuntamente, da crian-

148 Sermón fúnebre de la Augusta Señora Doña María Isabel de Braganza, reina que fue de España, que en las solemnes exequias celebradas por el Real Cuerpo de Caballeros Maestrantes de Sevilla, en la Iglesia del Convento de Regina Angelorum del Orden de Predi-cadores dijo el M.R.P. Fr. José Govea y Agreda, En la Imprenta Real y Mayor, 1819.149 “¿Por qué, Gran Dios, tronchó tu mano poderosa el árbol de nuestras esperanzas y arrasó con el fruto o prole, que apenas vivió, sin haber nascido?”. Agreda, in ob. cit., p. 5.

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ça, que trazia no ventre. Mal dos deuses, como era designada na Grécia antiga a epilepsia, tão-somente, na crueza clínica do vocábulo. Acidentes, dizia-se, popularmente, como quem deseja aplacar a carga maléfica do anátema.

! Murió la Reina en que todos nos mirábamos! ¡Se transfor-mó súbitamente la paz del reyno, los festines se trocaron en duelos, los júbilos en lloros, la nación quedó consternada y su amado monarca anegado en amargura, herido su cora-zón y partido en su mitad!

Não mais de vinte e sete meses foi o tempo do seu rei-nado, ao lado de Fernando VII, rei de quem a própria dizia ser a primeira vassala, pendor do modelo, adoptado por ela, para ser seguido por todos os espanhóis, se queriam honrar – ou reaprender a amar – a autoridade da realeza.

Dios de inmensa majestad, justo juez de vivos y muertos, no pretendo prevenir ni sondear los arcanos de tu Sabiduría. Alabaré las acciones que à nuestra vista fueron irreprensi-bles y someteré mis juicios al de tu justicia.150

Do clima de ressentimentos e divisões, que ali foi achar e com que teriam de lidar ela e sua irmã, a infanta D. Maria Francisca de Assis, deu logo mostras de estar aper-cebida D. Maria Isabel, não obstante a juventude dos seus dezanove anos:

Fue una reina virtuosa y una madre amable. Ved aquí aquella mujer perfecta à quien el Espíritu Santo llama el mejor adorno de su casa.151

Três coisas saltam à vista de quem percorre os tes-temunhos – sobrepujando o número dos que recolhemos – que reúnem acções e carácter daquela princesa: a esposa e rainha discreta, que reinou, sem se intrometer publicamente

150 Idem, p. 7.151 Ibidem.

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na governação, a mãe, que ousou adiantar-se ao seu tempo e estirpe e alimentou ao peito a própria filha, a mulher de causas, que adoptou, servindo-as, em campos tão distintos, que vai das artes à assistência pública.

De tal modo calou fundo no coração dos espanhóis a atitude de D. Maria Isabel de Bragança, que teve o condão de gravar, neles, uma impressão indelével, num misto de es-panto e admiração tanto mais agradável, quanto inespera-dos. Tudo vai no sentido de mostrar que esta jovem rainha excedeu largamente o que se possa idear, na observância do seu papel.152

O mérito primacial atribui-o, em grande medida, o Rev.º Fr. Agreda, autor do Elogio Fúnebre, a D. Carlota Joaquina, o que não é de admirar, uma vez que a aura desta infanta de Espanha pairava, ainda, acima das cabeças dos espanhóis, fé-nix renascida, dadas as circunstâncias políticas conhecidas,

152 A frase que colhemos num autor (anónimo) bastaria para ilus-trar a conta em que foi tida a conduta da rainha D. Maria Isabel de Bragança, pelos súbditos, em geral: “Fue una mujer de quien nadie habló mal”. “Igual siempre a ti misma en la altura del trono y en el ángulo más retirado de tu cámara, donde eras un modelo de virtudes (…).Nadie te miro sin amarte, à nadie honraste con tu palabra que no lo prendara tu bondad…”. Exequias con que la M.N.M.L. y M.H. Ciudad de Sevilla honró la Memoria de Su Amada Reina Y Señora Dona María Isabel de Braganza, los días 16 y 17 de Febrero de este ano de 1819…, Y se publican por acuerdo de Su Ex.mº Ayuntamien-to, pp. 1-2; “…que practicó con singular admiración de todos cuantos tuvieron el honor de conocerla y tratarla dentro y fuera del palacio, no me es posible dejar de hacer de ellas [calidades] un ligero diseño. El cuadro general de su preciosa aunque corta vida, es demasiado grande y hermoso, para que mí pequeño pincel entre ni aun à bos-quejarlo…”. Bienes y Males de España: Oración fúnebre que en las solemnes honras consagradas por La Real Universidad Literaria de La Ciudad de Granada… dijo El Doctor Don Miguel Alarcón y Mo-rales,… en los días 26 y 27 de Febrero de 1819, Granada, Imprenta de D. Juan María Puchol, s/d.

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intervindo a seu favor, na ausência do rei, devido à prisão e exílio, decretado por Bonaparte. Prova isso também que, muitos dos que viviam ainda, não estavam alheados do geral conceito, que tinham formado da fama daquela sua infanta, sendo criança cuja educação esteve a cargo do P.e Scío de San Miguel cuja memória o autor do Elogio, rebuscou.153

Ignoravam os citados autores, que abordam a questão, quase exclusivamente, sob esse ponto de vista, o contributo aportado pelo meio, onde acabou de se criar a infanta D. Carlota Joaquina: a corte de D. Maria I, rainha cujos precei-tos piedosos e ilustrados influenciaram, decisivamente, as práticas da nora e descendência, dela, situação de que hoje ninguém, de recta intenção, poderá duvidar. Nesse meio é que tinha sido educado, com o príncipe do Brasil, D. José e a infanta D. Mariana Vitória de Bragança, irmãos do marido de Carlota Joaquina, o infante e futuro rei D. João VI.154 153 Agreda procurou, no passado longínquo, a matéria de que as Gazetas de Madrid e de Lisboa tinham feito eco, no contexto dos esponsais de D. Carlota Joaquina com D. João (VI), elogiando e real-çando o papel do pedagogo da infanta, o qual acompanhara a discípu-la a Lisboa, por incumbência de Carlos III de Espanha, no intuito de prosseguir a ilustração daquela neta, que o avô admirava, pela desen-voltura e prodigalizava futuro bem-aventurado. Agreda, in ob. cit., p. 10-11. Sobre a influência materna na conduta de D. Maria Isabel de Bragança, escreveu um dos citados autores: “De España salió esa Madre solicita cuyos talentos han fructificado la educación de esa joven envidiada de las naciones para su felicidad.” In Exequias, p. 17. 154 Quando lemos a passagem que transcrevemos, acerca das prá-ticas e atitudes de D. Maria Isabel de Bragança, parece-nos que o autor está a descrever as que conhecemos em D. Maria I e no seu núcleo familiar. Por outro lado, a admiração que causava em todos, a jovem, rainha de Espanha, com tais virtudes, sugerem uma rup-tura em relação à rotina da corte de Carlos III. D. Maria Isabel de Bragança “Asistía al templo en los días festivos y festividades de la Iglesia desde Vísperas hasta que se los divinos oficios: siempre acompañada de sus Augustos Padres y tan inseparable de ellos, que à ninguno hicieron participante de esta gloriosa confianza. Hubieran

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E quando falamos do ambiente da corte de Lisboa, não queremos dizer apenas educação a nível de saber acadé-mico. Mais sólido e estruturante foi o exemplo, sustentado em princípios, de que deu prova o comportamento da rainha D. Maria I – mãe, sogra e avó – no sentido que é destacado, pelos ditos autores, quando falam da conduta de D. Maria Isabel de Bragança. Ao tecer o elogio da princesa do Brasil – referindo-se a D. Carlota Joaquina – na criação das filhas, é recriar a corte mariana.

Quien entrara en el palacio del Brasil y llegase à la es-tancia de la Princesa, al observarla cercada de sus hijas à todas horas, ya repartiéndoles las tareas, ya tomándoles residencia de su aplicación, o bien enmendando sus traba-jos, o dándoles documentos para reglar su porte, no podría menos que exclamar: No es este el lugar de la vida regala-da y deleitosa, esta es la morada de virtudes, seminario de princesas…155

Se o leitor tiver presente o que foi introduzido pela cizania, na seara bibliográfica de D. João VI, colhe, além do preconceito faccioso, aquilo que prezavam mais, na ob-servância de D. Maria Isabel de Bragança, os autores que consultámos: a sua frequência do sagrado, como garantia da permanência dos valores tradicionais de Espanha, num qua-dro de referências do quotidiano.

venido acompañadas de su Augusta Madre, como lo tenía dispues-to, si la Reina Madre de Portugal no hubiera fallecido en aquellos días y subido al Trono la Augusta Reina Doña Carlota Joaquina. Era devota sin hipocresía, modesta sin afectación, humilde y afable sin amancillar su grandeza y sobremanera compasiva con los pobres, con quien repartida su dotación de Infanta”. Cf. Agreda, ob. cit., p. 14. Servirá de aferição, à opinião acima, o espólio documental onde é retratado o ambiente da corte portuguesa, no tempo de D. Maria I. Vd. Da autora, obras citadas.155 Exéquias…, p. 15.

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¡Qué uniformidad no se observaba en todas sus virtudes! Sa-bía que, así como el Rey es el ojo vigilante de Dios sobre la Tierra, así la Reina lo es de su Palacio y familia: que sus palabras, acciones y vida eran un espectáculo adonde fijaban los ojos sin pestañear sus súbditos: aún no he dicho bastan-te, sabía que, las personas constituidas en dignidad forman, como decía San Pablo, un espectáculo para Dios, para los Ángeles y los hombres. Por esto fueron sus ejemplos lecciones de prudencia, recogimiento, agrado, honestidad, piedad y de-voción; no aquella devoción que se hace ridícula, depreciable y pueril; no la que no conoce sino celo exterminador y que fomenta el amor proprio; sino la que sabe unir y concordar el decoro de la Soberanía, con la Majestad y pureza del culto. La corte vio y admiró à su Real Familia con aquella circuns-pección y dignidad que respiran los palacios cuando en ellos rige y preside la sólida virtud! 156

De notar o teor de uma das raras cartas que nos chega-ram, das que D. Maria Isabel, já rainha, escreveu ao pai, por dizer dela muito, acerca de ambos. Como as demais missi-vas deste género, não se alonga nos pormenores – até porque as notícias trocadas tinham um carácter frequente – mas os assuntos que refere são de grande interesse, na medida em que vêm reforçar a opinião acima expressa.157

156 Agreda, in ob. cit., pp. 19-20. 157 “Senhor: Meu Pai e meu Senhor do meu maior respeito e amor: para mim, é sempre o maior desgosto, o não ter cartas de VM. Po-rém, agora muito mais, pois, como sei que VM. tem estado doente da perna, me dá muito cuidado, porque, se é possível, cada vez me interesso mais pela saúde de VM. Deus me dê o gosto de saber que VM. está inteiramente restabelecido. Eu agora passo muito bem e desde que tive a minha Filha não tenho tido acidentes. O meu Espo-so faz os seus cumprimentos a VM.; a minha pequena ainda os não sabe, mas faço-os eu por ela; saberá VM. que já não tenho o gosto de a criar, porque me faltou o leite, sem motivo algum. VM. não pode supor quanto me custou deixar de a criar. Agora vou dizer a VM. que fomos ao Escorial e à Granja [de St.º Ildefonso] e vimos as fontes

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São dignas de reparo as expressões de carinho e de respeito, em que o primeiro se sobrepõe ao segundo, sem menosprezo, pela majestade do rei e a preocupação pelo seu bem-estar e saúde, uma vez que D. Maria Isabel sabia do sofrimento crónico do pai, que era, afinal, uma doença de família, pois sabe-se que D. João V e D. Pedro III sofreram enfermidade idêntica.

A lembrança do pai acompanhara-a na jornada ao Es-corial e à Granja de St.º Ildefonso – afirma D. Maria Isabel – quando compara o palácio filipino ao de Mafra e traz à me-mória o gosto D. João VI pelo cantochão, que tanto prazer lhe dava escutar, entoado pelos frades arrábidos do conven-to. Pormenor, relevante, o ter em vista, quanto a esse facto, uma vez que D. Maria Isabel deixou Portugal, quando tinha dez anos de idade e nunca mais voltou aqui.158

E que maior ternura e atenção do que dar conheci-mento ao pai, da sua decisão de alimentar ao peito a filhinha e o desgosto de o ter descontinuado, por se lhe ter secado o leite! Tão singela, quanto próxima do sentimento das mães,

que são lindas e óptimas, mas eu gostei mais do Escorial, porque é muito grande. Parece-se muito com Mafra, a igreja é magnífica e fa-zem-se as cerimónias muito bem e a catuxão (sic) perfeitamente. Eu lembrei-me muito de VM. pois sei quanto gosta de todas estas coisas. Peço a VM. me faça a honra de dar-me a sua bênção e de crer-me. De V.M.F. Filha muito amante e obediente, Maria Isabel. Madrid, 4 de Dezembro de 1817. P.S. Esqueci-me dizer a VM. como sucede muitas vezes, que quando chegam as minhas cartas a Lisboa, já os navios têm saído, por isso, daqui em diante, não escrevo por Lisboa e escrevo pelo paquete de Inglaterra, todos os meses, para que assim não faltem cartas minhas a VM. e veja VM. que eu jamais deixei de escrever.” Carta de Madrid, de 4.12.1817, publicada por Ângelo Pe-reira, in As Senhoras Infantas Filhas d’el-Rei D. João VI, pp. 69-70, sob indicação “Col. do Marquês de Lavradio”.158 A infanta D. Maria Isabel de Bragança nasceu a 19.05.1797 e saiu em Novembro de 1807 de Portugal para o Brasil e dali para Es-panha, como damos conta.

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que prezam este gesto, natural. Não é sem razão, a ênfase que dão a esta matéria os autores espanhóis. Já quanto à sua própria saúde, tranquilizava o pai, com a boa notícia de que os acidentes lhe tinham parado, depois de ter sido mãe.159

A necessidade de saber da família do Brasil, agravada pela distância, fazia que se procurasse meios diversificados para o envio da mala da correspondência. O paquete de In-glaterra era um deles, comprova-o D. Maria Isabel, nas suas palavras, com o que demonstra não descurar estas minudên-cias, todavia, importantes para dar a conhecer a sua maneira de estar, ao mesmo tempo que preenche a nossa curiosidade.

Tudo o que fica acima enunciado é creditado aos refe-ridos autores espanhóis, sendo simultaneamente motivo de lástima e de orgulho para nós, quando se lêem as memórias, acerca da morte de uma tão jovem princesa e rainha. Deve ter convivido com ela de muito perto, o Rev.º Fr. Agreda, pelo que escreveu a seu respeito, em duas ocasiões – tão paradoxalmente diversas no motivo – tornando-se credível, no seu testemunho, não obstante o estilo encomiástico, jus-tificado, pelo sentimento que experimentou face ao desen-cantamento de não ver com o seu fim, Espanha restaurada:

! Cuanta esperanza frustrada! Cuanta felicidad destruida!

Num só golpe, perderia também Fernando VII uma esposa, perfeitíssima, digna do seu amor, das suas lágrimas e dos seus lamentos; os pais – e reis de Portugal – uma fi-lha, glória e bênção do seu nome e nação; perdeu o palácio real a alegria; a corte madrilena, um modelo; os infelizes o alento; e o reino, uma mãe amorosa. Desgostos, o único que D. Maria Isabel de Bragança deu, foi o de ter morrido! Mãe dos espanhóis é o epíteto mais repetido, tanto por Fr. Agre-

159 D. Maria Isabel de Bragança deu à luz uma menina em 21.8.1817, que se chamou pelos nomes próprios da mãe e da avó paterna: Maria Isabel Luísa. Faleceu a 19.1.1818.

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da, como pelos demais autores, demonstração evidente das expectativas, criadas e depositadas, naquela jovem, rainha de costumes cristãos, comprovado pela prática e vivência, pública e privada.

De facto, alicerçado nos testemunhos que nos chegam, D. Maria Isabel de Bragança, enquanto rainha, teve o mérito de trazer para a ribalta a prática vulgarizada no século XIX, denominada, causas públicas. Não se trata, obviamente, de causas-propaganda, mas das que assentam numa base altru-ísta, contribuindo para as tornar mais visíveis, retirando-lhes a carga estigmatizador da marginalização, baseada, sobretu-do, no nascimento e orfandade, além de promover a partilha e a solidariedade, materiais.

Los establecimientos públicos de la patria comua que es la corte: aquellos asilos venerables, donde la humanidad prostrad en los lechos del dolor, o en la cuna de su infancia espera alivio de sus males, o la conservación de su existen-cia, lloran y claman con desconsolados lamentos, porque les faltó ya la que los visitaba con frecuencia edificativa, interesándose en consolidar y acrecentar sus fondos píos, tratando de perfeccionar y extender sus edificios, proveyen-do à su costa algunas veces, de sábanas, camisas y envol-turas, que se hicieron en su cuarto de labor por su misma real mano y alternando familiarmente con las damas de su servidumbre.160

Note-se que não é tanto a criação de instituições, no caso de D. Maria Isabel. O que é evidente é a promoção do trabalho social – diríamos – propondo-se como exemplo, como modo de chamar a atenção e ajudar os mais desvalidos e o modelo de envolvimento e aproximação de classes. É neste sentido que merece ser entendido, do que se conhece da acção da rainha, desde logo oferecido pelo relato de Fr.

160 Bienes y Males de España, p. 14.

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Agreda:

María Isabel de Braganza la bondadosa, benéfica, caritati-va, la tierna, sensible y buena madre de los españoles!

Neste empreendimento missionário não é de somenos o que aquela rainha chamou a si, relativamente às crianças expostas, essa praga, que o século XIX veio agravar, pela continuada guerra e rebeliões sangrentas. A rainha procura-va estar com aquelas crianças, não se distinguido na atitude para com elas, da que tinha com as filhas, como mãe – sa-lienta o orador, a este propósito.161

Vira-a Madrid visitar os niños expósitos repetidas ve-zes e ir trabalhar, na Real Casa de La Inclusa, maneira que a rainha escolheu para incentivar os serviçais da instituição a aprimorarem o seu próprio exercício: …que se desveló ze-lando el desempeño de las personas encargadas de vuestro cuidado – observa o autor, dirigindo-se, metaforicamente, às crianças abandonadas.162

161 Recorda-nos o autor a prática, adoptada, pela própria D. Maria Isabel e referida na citada carta que escreveu ao pai: “Desde que la corte vio à su reina, criar y lactar à la Serenísima Infanta, llevarla en sus brazos y mostrarla cariñosa à su pueblo…”. In ob. cit., p. 23. 162 Ignoramos o âmbito específico, mas Fr. Agreda faz, a dada al-tura, alusão à atitude pedagógica da rainha, a propósito de uma reu-nião que terá havido com patronos das fundações piedosas (na qual o próprio Fr. Agreda terá figurado, pessoalmente): ‘y oye la voz que resuena en mis oídos, que me parece sale de su augusto sepulcro y que clama con especialidad à los patronos de fundaciones piadosas’ com “as mesmas queixas amargas dos concílios vienenses e tridenti-no”, citando os capítulos das suas fontes: “Conc. Vienens. Constitut. Que principia Quia contingit e Trident. Sess. VII de Reformat, Cap. 15.” In ob. cit., p. 25 e Nota 4. Também o outro dos autores, a que nos referimos, dá a entender que a rainha tinha o hábito de dialogar, direc-tamente, com os membros da hierarquia eclesiástica: “La grandeza de España de uno y otro sexo, los ministros y áulicos, deben llorar à María Isabel, porque les faltó aquella graciosa y amable soberana

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Todavia, D. Maria Isabel alargou o âmbito da sua ac-ção, sem restrições de nenhuma espécie, as suas visitas e tra-balho em hospitais e hospícios, como seja, o Real Hospício de San Carlos e outras instituições de beneficência, prova-velmente similares à Casa Pia e à sua semelhança, também, designadas Escuelas Pías: No llenaba la capacidad de su corazón la infancia abandonada: Tenía también cabida muy espaciosa toda clase indigente.163

Nestes aspectos, pode-se dizer que D. Maria Isabel avançou anos e gestos ao seu tempo, não baseada em apo-logias filosóficas, mas inspirada no modelo antigo, que não lhe era estranho, tendo em mente o exemplo daquela Isabel – seu onomástico – que foi a Rainha Santa, certamente recor-dado, ao longo da sua vida e com razão de ser, sendo como era, permanente evocação daquele nome, que lhe tinha sido posto, a ela, na pia baptismal.164

que los honraba con su afabilidad y dulzura como la santa Ester en la corte del benigno Azuero. Los obispos, los generales y prelados de las órdenes religiosas, los sacerdotes de uno y otro clero deben llorar con dolorosos y santos gemidos, porque les faltó ya la que en medio del esplendor de la soberanía los distinguía y respetaba con pastores y ministros de aquel Supremo Monarca que da y quita los cetros como Señor único y árbitro del universo”. Cf. Bienes y Males de España, p. 12. 163 Cf. Exéquias, p. 26.164 A rainha D. Maria I, avó paterna de D. Maria Isabel de Bragan-ça, era particularmente devota da rainha Santa Isabel, copiando-lhe as atitudes piedosas, em mais de uma situação, nomeadamente, ao torná-la patrona da Casa Pia de Lisboa. (Ver da autora: O Reinado do Amor). Um aspecto digno de ser realçado – falando da rainha D. Maria Isabel – é a introdução, em Espanha, do costume que já achá-mos nas práticas da rainha D. Maria I de ministrar alimentos, como serviçal, não só na ocasião da cerimónia do Lava-pés, mas noutras, demonstrativas da virtude da caridade, tal como na ocasião da bên-ção da Basílica e Convento da Estrela (Sagrado Coração de Jesus), quando a rainha e as infantas, suas irmãs, serviram a congregação de freiras carmelitas que para ali vieram habitar. É provável que o autor,

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Outro campo de acção de D. Maria Isabel de Bragan-ça, como causa própria, foi a protecção das artes. Neste sen-tido, falam os testemunhos coevos também, da actividade que desenvolveu em prol da instituição académica – Acade-mia de San Fernando – cujos méritos não precisam de ser aqui recordados, tendo contado a sua fundação com o alto patrocínio de Carlos III (avô de Fernando VII), mas que a sequela revolucionária tinha praticamente paralisado. Isto se depreende do juízo de Fr. Agreda do estado da arte, a que de-mos voz, a propósito da arte ornamental efémera das ruas de Sevilha, aquando das entradas reais, da rainha e da infanta D. Maria Francisca.165

Não é, portanto, supérfluo, trazer à lembrança o pa-pel de D. Maria Isabel de Bragança, na sua qualidade de rainha, quando fez recolher o acervo importantíssimo – pe-dra basilar – da grande instituição cultural de Espanha que é o Museu do Prado. Hoje, já não há quem ignore tal facto, basta consultar o guia. As razões, por trás de um tão gran-dioso projecto – pictoricamente assinalado numa pintura de

que citamos, se esteja a referir também a um Lava-pés, seguido de distribuição de alimentos, quando narra a cerimónia que espantou os espanhóis: “Industria fue de su humildad la que se ha divulgado de haber dado de comer à doce pobres mujeres y servídosles à la mesa por sí misma con agasajo, tan sin afectación ni artificio, que se ma-nifestaba bien el espíritu de que se hallaba animada.” Cf. Exequias, p. 22. 165 É de salientar quão notória neste campo foi aos espanhóis a acção da rainha, a ponto de se lhe fazer menção, nas memórias: “Las ciencias y las bellas artes ¡Ah! Qué lla nto amargo y qué luto tan nuevo deben tener sus sabios profesores, porque perdieron en María Isabel la maestra protectora que las pensaba engrandecer elevando unas à su mayor gloria y otras a nuevos grados de aumento y per-fección: su amor y afición à algunas, se le notó ya desde muy niña en Lisboa; el Brasil la admiró maestra de otras y Madrid tuvo la dicha de verla hecha Diosa protectora de todas…”. Cf. Bienes y Males de España, p. 13.

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Bernardo López Piquer166 – hão-de achar-se na sua vocação pelas artes da pintura e desenho.167

Este é outro passo no caminho da desmistificação da ideia, feita, acerca da incapacidade intelectual e imprepara-ção das filhas de D. João VI e D. Carlota Joaquina. Amal-gamadas pelo prejuízo, que marcou quase toda a família – a excepção será o liberal, seu irmão, D. Pedro I do Brasil e a irmã de ambos, Regente, D. Isabel Maria – sabemos que daí deriva, tanto em relação a ela, como às irmãs, o labéu de iletradas e incapazes, causa e efeito, que meteu no mesmo saco a educação, a aparência e a enfermidade, de que pa-deceram, todas as infantas, excepto a princesa da Beira, D. Maria Teresa. Felizmente, tal visão retrógrada está hoje de-sactualizada e mais ainda, quanto mais se persegue a senda da verdade. 168

166 Museu do Prado, n.º 863.167 Teve D. Maria Isabel por Mestre de Desenho e Pintura assim como das infantas, suas irmãs, Domingos António de Siqueira, além das lições de José Viale, que parece ter sido o mestre mais presente, na formação básica, tanto de D. Maria Isabel, como das irmãs e ir-mãos. Viale chegou a ser mestre do infante D. Sebastião de Borbón y Bragança (filho da princesa da Beira e de D. Pedro Carlos de Borbón).168 Todos os autores espanhóis citados aludem à qualidades inte-lectual e predisposição vocacional da rainha D. Maria Isabel. A título de exemplo, citamos um deles cuja opinião é também um elenco de princípios orientadores do desempenho da esposa e rainha: “El mé-todo de la educación de la Reyna por el orden, extensión de objetos y por el arte con que fue dirigida correspondió à la discreción y à la piedad de sus maestros. Era el presupuesto de ellos formarla en toda la perfección moral y civil, que correspondía à la Reyna en las relaciones de su alta jerarquía con la sociedad, hacerla capaz de santificar un tálamo y de brillar en un trono: educarla en fin cual cumplía à su sexo en todos los estados, à una buena madre de fa-milias y à una Reyna”. E, adiante, sobre o modo e os fins, daquela educação, que em tudo devia ser moderada e razoável, porque não era um fim em si mesma, mas um meio de alcançar o objectivo. E passa a identificar as diversas artes, nas quais era visível ter sido instruída

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À luz têm sido trazidos os nomes dos mestres cujas artes e saber – do melhor que havia então – contratados para o serviço da família real para ministrar a educação das infan-tas e dos infantes, em áreas tão diversas quanto a equitação, o desenho, a música, a dança e as línguas modernas (espa-nhol, francês e inglês), além da formação básica, que incluía princípios da filosofia e religião, disciplinas que formavam um leque de tarefas de ordem doméstica e feminina, sendo este ao cuidado das aias e açafatas, aliado às práticas devo-cionais. Achamos, assim, entre os professores de D. Maria Isabel de Bragança, em simultâneo (ou não), com as irmãs, artistas e mestres cuja fama acompanha a sua reconhecida aura.169

D. Maria Isabel, aspectos dignos de realce: “Con esta misma modera-ción se la instruye en la música hasta el punto de conocer la filosofía y saber el uso moral a que se ordena este honesto recreo. Adornada de los conocimientos científicos, se le entrega con la lengua latina la llave de oro del tesoro más rico de la sabiduría y seguidamente se le ensena los idiomas vivos de las naciones cultas española, francesa e inglesa, con quienes había de estar en comercio y en cortos anos corrió con acelerado adelantamiento la filosofía, historia sagrada y profana, con la mitología, esfera, computo, geografía, elementos de humanidades, música, idiomas y con preferencia la ciencia de la religión, que poseyó, no como una instrucción vulgar, sino profunda y sólida que la incitaba à la virtud. (…). No se permitía à si misma ociar por un breve espacio. Se variaban las labores, se intercalaban la lectura y ejercicios de piedad para divertir la atención y sostenerla sin cansancio. No sazonaba la molestia con pasatiempos: las belle-zas de las artes y los encantos del dibujo eran su espaciamiento y el público admiró sus progresos en las obras que gozaran sus ojos”. Cf. Exequias, pp. 9-13. 169 De Língua Portuguesa, Fr. António de N.ª Sr.ª da Arrábida, (1771-1850), franciscano arrábido, que também exerceu o cargo de confessor de membros da família real; de Desenho e Pintura, Domingos António de Siqueira (1768-1837). Achámos também, como Mestre de Desenho e Pintura de Miniatura, das infantas e seus irmãos, José Viale, artista, italiano, natural de Génova. (Nota: Cyrilo Machado (p. 151) refere, que Viale tinha sido professor do infante D. Sebastião, filho da princesa D.

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Cessou a vida da rainha a sua tão grande, quanto exte-nuante, entrega, no dia 26 de Dezembro de 1818. Morte que lhe sobreveio, quando menos se esperava, durante o parto da segunda gravidez, ocasião que se julgava de felicidade para toda Espanha, desejada, por ser ensejo de reassegurar a sucessão, após o triste falecimento da primogénita. O ri-bombar de um trovão, sem a luz avisadora do relâmpago, eis como um dos autores mencionados, declara a surpresa de que em geral colheu a todos:

La reina ha muerto! Al punto se repitió con silencioso dolor por toda la ciudad, más cada cual buscaba motivos para no creerla. Era un pesar y esto bastó para que se verificara.170 Maria Teresa); De Língua Inglesa, Guilherme Paulo Tilbury (que che-gou a ser professor da futura rainha, D. Maria II); De Língua Francesa, abade Renato Pedro Boiret (professor no Real Colégio dos Nobres);De Matemática, José Monteiro da Rocha (1734-1819). (Nota: Monteiro colaborou na revisão dos estatutos da Universidade de Coimbra, relati-va às Ciências e à Matemática). Foi doutor por esta Universidade, onde regeu a cadeira de Astronomia. Foi cónego magistral da Sé de Leiria e vice-reitor da Universidade de Coimbra; De Música, José Totti, que foi Mestre de todas as infantas e infantes; Mestre de Música exerceu também Marcos Portugal, especificamente, do príncipe D. Pedro e de D. Maria Isabel; (Particularmente concernente a Marcos Portugal, ver nota ao Capítulo Manual de Conduta…). Igualmente Mestre de Música achámos Manuel Inocêncio Liberato dos Santos Carvalho e Silva, que foi, segundo consta, Mestre de Música de todos os filhos de D. João VI, cargo em que substituiu o P.e Joaquim Cordeiro Galão; Mestre de Dança, Lourenço (Laurent) Lacombe, de origem francesa, nascido em Madrid, em 1787, tendo seguido com a corte para o Rio de Janeiro. Vivia em Lisboa já em 1805, data do seu 1.º casamento com D. Júlia Durant, natural de Turim; De Equitação (Picaria) entre outros, achá-mos Joaquim José Vallucci, que o foi, especificamente, da princesa da Beira. Carlos Eduardo de Almeida Braga, Grandes Mestres servindo aos Reis e Príncipes: A Nobreza da Nobreza (1734-1889). Nota: José Valluci acompanhou a Espanha a princesa da Beira, quando para lá foi a fim de resolver a questão da herança do filho, infante D. Sebastião, matéria abordada adiante, neste livro.170 Exequias, p. III.

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Igual sentimento patenteia um outro autor, que se socorre das palavras do profeta Jeremias:

Defecit gaudium cordis nostrii…!Vae nobis!171

…Também eu disse, para mim mesmo e aos primeiros ami-gos que encontrei, enquanto o som constante dos sinos e o pausado estrondo dos canhões anunciavam a esta capital a prematura e apressada morte da nossa amorosa e augusta rainha Maria Isabel Francisca de Bragança e Borbón! 172

A incontida emoção, provocada pela súbita morte da rainha, é o que emana de todas as notícias, indiferenciada-mente. Mais ou menos, noticiosas, todas elas realçam que no dia 26 de Dezembro, dia seguinte às celebrações natalícias, logo depois de assistir às Matinas da Natividade e satisfeito o exercício de devoção – entre as nove da noite e as três da madrugada – deu-se o desenlace fatal de D. Maria Isabel.173

171 “Cessou a exultação do nosso coração (…). Ai de nós”. Lamen-tações, Cap. 5: 15-16.172 Bienes y Males de España, p. 5.173 Os autores são uníssonos, quanto aos últimos actos devocio-nais da rainha D. Maria Isabel, noite e madrugada adentro, de Natal: “Asistió à los Maitines de La Natividad desde las nueve de la noche hasta las dos de la madrugada: llamó después al ilustrísimo Señor obispo su confesor, recibió el Sacramento de la Penitencia, lavó sus defectos con lágrimas de verdadera contrición, participó en la mesa del Altar de aquel Pan de los Ángeles que llena el alma, que digna-mente le recibe de gozos y consuelos celestiales, oyó después las tres Misas de rodillas. (…). Repetía con admiración de todos los circuns-tantes lo que aun antes solía decir con frecuencia: ‘estoy muy conso-lada, muy conforme con la voluntad de Dios, bendito sea que tanto nos favorece. ¡qué contenta me hallo! Venga ya lo que Dios quiera!’”. Fr. Govea y Agreda, in ob. cit., pp. 30-31. “Bien impreso ha quedado en nuestra memoria aquel fervor extraordinario con que señalo los últimos periodos de su vida, asistiendo en la noche de Navidad, que antecedió à la de su muerte, à los oficios eclesiásticos hasta las tres de la madrugada, sin que fuesen parte à retirarla sino después de oír tres misas y recibir la sagrada comunión, ni las molestias que le

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A Gazeta de Lisboa repercute, como seria de esperar, a má notícia, veiculada pelo extraordinário da congénere madrilena, notícia cujos pormenores satisfarão a curiosida-de do leitor:

Achando-se às nove da noite SM., sentada na cama, a con-versar com algumas pessoas do seu serviço, deu-lhe de re-pente um ataque de epilepsia, que mostrou despedir-se em dois ou três minutos, ficando SM. com algum conhecimento e em grande inquietação, o qual terminou em outro ataque ou convulsão. Desde este momento, continuou o acidente sem interrupção e apesar dos oportunos remédios, próprios destes casos, com que se acudiu rapidamente, para salvar a preciosa vida de SM., nada bastou e tendo durado o mal uns 22 minutos, faleceu a melhor das rainhas.174

Revela também o órgão noticioso as tentativas de salvar a criança que a rainha trazia no ventre – operação cesárea – com licença do rei. Baptizou-se o feto – que era uma menina – que não resistiu e faleceu em poucos minu-tos. Dá-nos conta ainda do pesar que, então, se abateu sobre toda família e da prostração em que entraram Fernando VII e sua cunhada, D. Maria Francisca, acompanhados da geral consternação de toda a corte. Madrid deu evidentes mostras do mais profundo sentimento da perda de uma soberana que era as suas delícias.

Pela repercussão da morte da rainha de Espanha, através da circulação das notícias, fica-se com a noção do desamparo em que entraram os necessitados, com a perda da sua benfeitora, bem como as artes, pela orfandade em

aquejaban en su delicada y penosa situación, ni las oficiosas per-suasiones de su comitiva porque evitara el peligro de la demasiada fatiga, à que respondió con una sentencia digna de un espíritu enar-decido: ‘en el servicio de Dios no hay trabajo’”. In Exequias, p. 21. 174 Gazeta de Lisboa de 5.1.1819.

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que os deixou a ilustrada protectora cujo comprazimento era mantê-las e fomentá-las. Não havia classe do povo para quem não fosse aquele dia, um dia de pranto e amargura. 175

Foi decretado um luto de seis meses, enquanto se assistia por toda Espanha, às reais exéquias. Salientamos como elemento indispensável ao todo do que se afirma, a magnificência de que se revestiram tais cerimónias e cuja memória chega de várias formas, nomeadamente, através de gravuras dos sumptuosos mausoléus e dos aparatos de arte efémera, erguidos para o efeito. Um deles – o de Sevilha – vem reproduzido nas Exequias, bela e ricamente descrito, pelo seu autor.176

Das memórias do século XIX, onde se acha notícia da rainha D. Maria Isabel, é talvez das mais divulgadas a que escreveu a cronista Rachel Challice que, sob reservas, não podemos omitir. A autora faz eco do género daquelas obras que poderíamos designar, por literatura cor-de-rosa, parente do romance histórico e cujo estilo mais elaborado dá para fazer uma ideia do que constava, ainda, nos finais daquele século, acerca da corte madrilena e da relação de D. Maria Isabel e Fernando VII, particularmente.177

175 Idem.176 Sevilha assistiu às reais exéquias nos dias 16 e 17 de Fevereiro de 1819, ordenadas pelo Ayuntamiento da cidade. Há notícia de elegias e composições musicais, celebrativas da liturgia e pompa fúnebre. A título de exemplo, veja-se: “Canción fúnebre a la grata memória de La Reyna Nuestra Señora D. María Isabel de Braganza Q.E.E.C para forte-piano por D. Mariano Ledesma”. Esta composição existe grava-da, na interpretação de cantores líricos da actualidade. Também deste compositor, datada de 1819, é a grande “Misa de Difuntos” que terá sido composta para honrar o passamento da rainha D. Maria Isabel de Bragança. Nota: Mariano Ledesma (1779-1847) é considerado o primeiro músico e compositor romântico espanhol.177 Rachel Challice. The secret history of the court of Spain during the last century. London, John Long, 1910.

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Recorda esta autora o casamento do rei de Espanha com D. Maria Isabel de Bragança, quando ele contava trinta e dois anos, acto que significou – consideração da mesma autora – o início de uma nova era para Espanha, reforçado pelo enlace do irmão (D. Carlos Maria Isidro) com a cunha-da, infanta D. Maria Francisca de Assis.

Escreve a citada autora: the king’s bride was soon be-loved by all her subjects for her sweetness and intelligence – afirmação que merece ser retida – por vir de fora e ainda mais, datada de uma época sui-generis como a daquela pro-sa, da belle-époque. Mas não só o diz como reafirma que era tal a confiança que Fernando VII punha na opinião da espo-sa, que procurava sempre ouvi-la e não constava que o ti-vesse deplorado, alguma vez. Diz mais, sobre a matéria tes-temunhada: “A jovem rainha era efectivamente muito dada à arte e foi o seu amor pelas belas-artes e vocação para a pintura, que a levou a fundar a Academia de San Fernando, com intenção constituir uma mostra de pintura estrangeira.”

Descreve particularidades da vida doméstica do casal e será, porventura, esta autora a porta-voz mais citada, quan-do se fala da leviandade de Fernando VII, o qual, por mais qualidades de que a esposa fosse dotada, não lhe eram bas-tante para o prender. Notamos, todavia, que, levada por certa severidade dos costumes da época em que escreve, Challice parece esquecer a viuvez de Fernando VII de um anterior esponsório, juvenil, antes do exílio francês. Sem desculpar os excessos de Fernando VII, porque não é o lugar para fazer o seu julgamento, sublinharemos, contudo, a dissolução dos costumes de que estava rodeado, jovem e príncipe, além da geral tolerância da sociedade, perante as relações extrama-trimoniais, indiferentemente do estatuto da pessoa.178

178 Fernando VII (1784-1833). Casou a 1.ª vez (1802) com D. Maria Antónia (ou Antonieta) Nápoles e Duas Sicílias (1784-1806), filha de Fernando I, Duas Sicílias e de Maria Carolina de Áustria. Dela

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O episódio, repercutido no dito livro, é bastante elo-quente acerca da subtileza da rainha D. Maria Isabel de en-gendrar um estratagema, para atrair a atenção do marido, numa das vezes em que ele tornava de uma noitada. Conta--se ali que a rainha lhe saltou à frente, trajando à andaluza e de castanholas, volteando os passos de uma seguidilha en-fatizados no manejo do leque, que lhe encobria e descobria o olhar sedutor.

A rainha parece que foi bem-sucedida no jogo de se-dução já que fez cair em si o marido, que terá repensado a conduta que levava, passando a mostrar mais recato e res-peito pela esposa. Era, porém, demasiado forte nele o fas-cínio do mundanismo, sendo vulnerável, mais à influência boémia, do que aos afagos singelos e honestos da esposa.179

enviuvou a 21.5.1806. Sendo príncipe herdeiro subiu ao trono através do golpe palaciano promovido por Napoleão Bonaparte (17.3.1808) e obrigado a abdicar e logo exilado pelo imperador francês em Valen-çay (6.5.1808) onde permaneceu até ao seu regresso a Espanha e ao trono (13.04.1814). Depois de contrair matrimónio em 1816, com D. Maria Isabel de Bragança, ficou viúvo desta e voltou a casar, agora com Maria Josefa Amália de Saxónia de quem enviuvou também. Por fim, contraiu um derradeiro matrimónio com a princesa Maria Cristina Fernanda, Duas Sicílias, cg. 179 Sobre o carácter de Fernando VII escreve o historiador oitocentista: “Más por una parte, queriendo Fernando huir de las pri-vanzas que habían perdido à su padre, habíase propuesto no dejarse dominar ni por un favorito ni por su propia esposa, no advirtiendo que por apartarse de este peligro había caído en otro no menos funesto, cuál era el de dejarse encadenar por una baja camarilla de su servi-dumbre. Por otra, apoderados ya estos serviles aduladores del cora-zón de Fernando y acostumbrados à explotar sus flaquezas de hom-bre, especialmente Alagón y Chamorro, que eran al propio tiempo los negociadores y los confidentes de ciertas aventuras nocturnas que llegaron ya a ser pasto de las lenguas del vulgo, continuando en su propósito no solo lograron entibiar el amor conyugal, sino que lleva-ron sus malos oficios hasta producir escenas lamentables de familia, dolorosas por la reina, deshonrosas para el rey y sus satélites, escenas

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Tal a aura que coroou a lembrança daquele rei. Mas alguma coisa terá calado fundo no seu coração, a fazer fé no testemunho, acerca do influxo benéfico, a todos os ní-veis, causado pela acção da rainha sobre o marido, no cam-po político. Dessa opinião é o autor da clássica História de Espanha, o qual atribuiu a D. Maria Isabel de Bragança a capacidade de agir, como moderadora, sobre os actos do ma-rido, na condução que imprimiu aos negócios de substância política, subtraindo-o ao dos antiliberais, a ponto de os libe-rais verem na rainha uma aliada.180

en que intervinieron personas de alta y baja esfera cuyos nombres estampan algunos escritores y cuyos pormenores refieren, pero que nos otros no hacemos sino apuntar, por parecernos más de carácter privado y doméstico, que asunto proprio de historia.” Don Modesto de Lafuente, in Historia General de España, Madrid, 1866, T. XIV, P. III, Libro XI.180 “La otra esperanza de los liberales, la amable y virtuosa reina Isabel, non tardó en faltarles de uno modo todavía más triste y digno de lástima. Aunque Isabel no había logrado apartar del lado del rey las influencias perniciosas, ni cambiar las inclinaciones y tendencias de su carácter, mirábasela siempre como un lazo que le sujetaba sua-vemente, o al menos le contenía de precipitarse en mayores desacier-tos. Había le hecho ya gustar las dulzuras de la paternidad, dando a luz, aunque con grave peligro (21 de agosto, 1817) una infanta, à la cual se puso por nombre Maria Isabel Luisa. La reina, dando ejemplo de buena y amorosa madre, la alimentaba con el jugo de proprio seno. El pueblo veía en esta princesa un lazo que estrecharía los afectos entre el rey, la reina y la nación; más por desgracia su naturaleza poco robusta prometía una vida corta y así fue que falleció à los pocos me-ses de haber venido al mundo (9 de enero, 1818). Otra vez renacieron las esperanzas de nueva sucesión. Fernando iba a ser segunda vez padre; pero Dios no quiso conceder este don ni al monarca ni al reino. Hallándose la virtuosa y amable Isabel en altos meses de su embarazo un ataque de alferecía la envió súbitamente al sepulcro (26.12.1818), con gran dolor de los españoles y no poca aflicción del rey, à quien se observó, como nunca en su vida, apenado y tiernamente conmovido. (…). Con la muerte de Isabel quedaba otra vez Fernando, entregado à los hombres funestos de su camarilla.” Cf. Lafuente. Idem.

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A morte de D. Maria Isabel de Bragança foi deveras chorada, por todos os espanhóis, consequência dessa coisa extraordinária que foi saber atrair sobre si a admiração e o respeito da nação, na proporção em que lhe fugia a do mari-do, levado pela reiterada conduta privada. No entanto, é de realçar, que o historiador evita, propositadamente, falar das cenas da vida marital. Apesar de não ser omisso, adivinha--se nele a reprovação que faz a Fernando VII, opondo-se-lhe também, politicamente.

À corte no Brasil chegou o mais rápido que foi pos-sível – início de Março – a funesta notícia do falecimento da rainha D. Maria Isabel, rápida se atentarmos à lonjura e à demora das distâncias a percorrer, terrestre e marítima e a morosidade que isso trazia às comunicações, entre as cortes. Não há uma data precisa, que testemunhe o momento em que aquela má-nova foi levada ao conhecimento de D. João VI e de D. Carlota Joaquina que, adivinhamos, foi um duro golpe, para qualquer deles.

O que se sabe é da decisão de manter em segredo a má-nova, adiando-se o início do luto, que foi decretado só depois de 15 de Abril de 1819, para não perturbar o fim da gravidez e parto de D. Maria Leopoldina (mulher de prínci-pe herdeiro, D. Pedro), prestes a dar à luz a primogénita do casal, D. Maria da Glória, que nasceu a 4 de Abril de 1819.181

181 Escreve Luís Marrocos ao pai: “Pela Gazeta, que vai inclusa, será constante a Vossa Mercê a publicação, que aqui houve, no dia 15 para o luto, em sentimento da morte da Senhora Dona Maria Isa-bel, nossa Infante e Rainha de Espanha cuja desgraça já se sabia há muito, mas se conservava em segredo, para evitar algum incómodo a Sua Alteza Real, que se achava próxima ao seu parto. Sua Majestade (D. João VI) recolheu-se por oito dias, inda que não suspendendo o despacho e saindo a passeio ocultamente e, da mesma sorte, toda a Família Real, isto é, sem estado nem comitiva nem continências. Segundo a lei, será este luto por seis meses para a Corte, mas é de presumir que se estenderá a mais tempo, visto que se verifica a morte

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Não podemos fugir do testemunho do P.e Luiz Gon-çalves dos Santos, o qual se refere, com habitual precisão, à morte da rainha de Espanha, D. Maria Isabel de Bragança, após fechar o relato das alegrias e festejos do nascimento da princesa do Brasil, D. Maria da Glória, sublinhando o que disse Luís Marrocos, acima citado.

…Mas sobreveio um grande motivo de sentimento para el-Rei nosso senhor e toda a real família, como também para a na-ção portuguesa, pela infausta notícia do falecimento de Sua Majestade Católica, a Senhora Dona Maria Isabel, Rainha das Espanhas e Índias e a alegria se converteu em tristeza.182

E como quem está a par da admiração suscitada pela figura e acção da rainha e como o amor por ela tinha domi-nado o coração dos espanhóis, reitera-a, ao dizer que a au-gusta soberana, fora amada em extremo, pela inteira nação espanhola, tanto pelos seus dotes naturais, como pelas suas eminentes virtudes.183

…Posto que tão triste nova tivesse chegado a esta corte do Brasil, nos princípios do mês de Março, Sua Majestade sus-pendendo as demonstrações da profunda mágoa, que afligia o seu real coração e consternava toda a real família, pelo breve espaço que exigia a segurança do próspero sucesso da sereníssima senhora Princesa Real e os festivos aplau-sos, que depois dele se seguiram.

Só no dia 14 de Abril, de tarde é que teve lugar a au-diência oficial ao enviado extraordinário e ministro plenipo-

dos soberanos de Espanha, pais de Fernando 7.º e de Sua Majestade, a Rainha Nossa Senhora [fala da morte de D. Maria Luísa de Parma e do marido, Carlos IV]. Carta de 22.4.1819, in ob. cit., p.427. Nota: D. Maria Luísa de Parma e Carlos IV faleceram logo a seguir à rainha D. Maria Isabel, em Roma e Nápoles, a 2 e 19.1.1819, respectivamente.182 Santos, in ob. cit., T. II, pp. 347-349.183 Idem.

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tenciário espanhol, conde de Casa Flores, portador da carta de Fernando VII que continha a notícia de tão fatal aconte-cimento.184

Confirma o P.e Santos que D. João VI se encerrou por 8 dias – assim como a família real – dando início ao luto de 6 meses, pesado, nos 3 primeiros e aliviado nos seguintes e que, só no dia seguinte ao decreto, é que se deu início à litúrgica cerimónia, fúnebre. Não podemos deixar de evocar essa função, através das palavras daquele autor e testemunha ocular dela, dada a grandeza e a majestade de que a mesma se revestiu, a exemplo das habituais de pesar, a nível de pro-tocolo de Estado, mas que a sua frase apieda e pessoaliza, por ser a palavra de quem conviveu de muito perto, com a falecida rainha e infanta.

Logo que amanheceu, a fortaleza da Ilha das Cobras içou bandeira a meio pau, dando uma salva de vinte um tiros e imediatamente todas as mais fortalezas e embarcações de guerra puseram as suas bandeiras em funeral, firmando--as com um tiro de peça e continuaram a dar de quarto em quarto os mesmos tiros até anoitecer, em que outra salva de vinte e um tiros da Ilha das Cobras terminou esta lúgubre demonstração de sentimento, que foi acompanhada com os dobres dos sinos de todas as igrejas, os quais não se suspen-deram senão pelas dez horas da noite.

Nos dois seguintes continuaram os dobres dos sinos e posto que já não houvesse tiros de peça de quarto em quarto, logo que o sino maior da real Capela fazia o sinal, era seguido imediatamente pelos de todas as igrejas, o que grandemente avivava a saudade e fazia recordar com mágoa os belos dias em que tivemos a satisfação de ver Sua Majestade Católica, passeando no seu coche, pelas ruas desta cidade do Rio de Janeiro, que posto não tivesse a glória de lhe dar o berço,

184 Ibidem.

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tinha certamente a honra de ter passado nela os melhores anos da sua juventude.185

A evocação da curta passagem por esta vida da infanta e rainha, D. Maria Isabel de Bragança, encerramo-la, com a máxima, proferida na solenidade das suas exéquias. Pou-quíssimas mulheres da sua estirpe tiveram na morte a honra de ter o valor estimado, como nesta síntese, em tão alta e afiançada distinção.

Mujer virtuosa, esposa perfecta y reina digna.186

185 Idem.186 Exequias, p. 5.

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Do luto e da esperança

Fernando VII – opina Lafuente – mal achado com a viuvez ou certificado do que os tribunais, ayuntamientos e corporações lhe tinham exposto, sobre a conveniência de dar legítima sucessão ao trono, decidiu contrair terceiras núp-cias, logo depois da morte de D. Maria Isabel de Bragança. A 14 de Agosto de 1819, participou ao régio conselho que tinha ajustado casar com D. Maria Josefa Amália, filha do príncipe Maximiliano da Saxónia.

As entradas da jovem princesa em Madrid tiveram lu-gar, a 20 de Outubro seguinte, tendo as escrituras sido outor-gadas a 14 de Setembro, com grande pompa, no Salão dos Reinos. O povo renovou a ocasião de assistir às cerimónias e festas, à semelhança do que tinha acontecido com a recep-ção oferecida à infanta de Portugal, quando perfazia exacta-mente três anos, sobre a entrada dela, na mesma corte.

Tudo igual e rigoroso, quanto ao protocolo, mas não quanto à personalidade da nova rainha, segundo o testemu-nho do citado historiador, que se mostra bastante céptico, em relação ao enlace, na linha das memórias, que traz à co-lação. Afirma Lafuente que a princesa Amália, apesar de do-tada de excelentes prendas e virtudes, em extremo religiosa, todavia pouco experiente, apoucada e tímida, se mostrava como alguém que tinha sido mais educada para o oratório e o claustro do que para o trono e os régios salões.187

Esta rainha acabaria, assim, por ser tida como inca-paz, não só de preencher as esperanças, que a parte mais

187 Lafuente, in ob. cit., T. XIV, Cap. III.

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ilustrada da nação havia fundado, nas condições de carác-ter da rainha Isabel, como também para influir no coração do seu augusto esposo, de modo a neutralizar as paixões e influências.188

Ver-se-ia D. Maria Josefa Amália ocupada, adiante, na tarefa generosa de costurar roupas para os pobres e orar no seu oratório, particular. Apesar dos dez anos de união, D. Amália não concebeu nenhum herdeiro ao trono, o que contribuiu, largamente, para agravar a conduta mundana do real esposo. Neste sentido, transparece da opinião do autor, a frustração do povo, pela perda de uma rainha que trouxera um novo alento a Espanha cuja atitude não se via superada, pela novidade nem pela beleza e juventude da princesa da Saxónia.

Sobre a candura de ambas, triunfara em Maria Isabel a força dos desígnios, em que ela fora criada e dera creden-ciais, tendo em linha de conta a conduta da sua vida breve, onde triunfa a ideia do dever em contribuir para o recobro do vigor da nova pátria (pátria da mãe e dos seus avós) e dos horizontes perdidos, sem nunca abdicar da eficácia da injunção trono-altar. Ainda que, a médio prazo, a atitude da terceira esposa de Fernando VII, tivesse evoluído no sentido de corresponder às expectativas dos espanhóis ilustrados – como sublinha o historiador – a verdade é que a acção dela estava longe de se mostrar sofrível, aos olhos dos súbditos.

As comparações eram inevitáveis e enquanto D. Ma-ria Isabel de Bragança sustentara uma imagem de determi-nação alicerçada na certeza que parecia torná-la imune às convulsões, que permeavam a sociedade espanhola, faltava a força da crença em D. Maria Josefa Amália – educada em idênticos valores e princípios da antecessora – porque a sua lição de vida era totalmente diversa.

188 Idem.

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D. Maria Isabel tinha no seu passado o exílio atlântico e um constante viver de aflições comuns à família, desde logo, ao pai, Príncipe-Regente, obrigado a travar lutas surdas e de vária ordem. Nada consta que D. Maria Josefa Amália tivesse sido exposta a um grau de experiências, tão desafiador, como fora D. Maria Isabel, tendo vivido aquela, como viveu, no recato de colégio conventual. Por isso, além de uma exemplar conduta e da incerta maternidade, pouco ou nada se poderia esperar de desafiador, na princesa da Saxónia.

A incerteza quanto à maternidade desta rainha era a questão que escorava ou derrubaria a relação, entre os mem-bros da família real de Espanha, se havia de ser harmonio-sa. Ou seja, da rainha D. Amália e cunhadas (do lado do marido), D. Maria Francisca de Assis e D. Maria Teresa de Bragança – que viera juntar-se a esta sua irmã com o filho, nas circunstâncias que adiante veremos – e naturalmente, o irmão do rei, infante, D. Carlos Maria Isidro. Sobre este recaia a sucessão ao trono, caso não nascesse no seio do ma-trimónio um herdeiro, varão, a Fernando VII.

Desde Maio de 1818 – ainda em vida da rainha D. Maria Isabel – que se juntara à família, em Madrid, o irmão mais novo dos príncipes de Espanha, infante Francisco de Paula, o único que acompanhara no desterro os pais, Carlos IV e Maria Luísa de Parma. Casara, entretanto, aquele infan-te com Luísa Carlota das Duas Sicílias, a qual desembarcou em Barcelona, no referido mês de Maio tendo entrado na capital só a 11 de Junho de 1819, isto é, seis meses após o falecimento de D. Maria Isabel de Bragança.

Antecipava o casamento do infante D. Francisco de Paula o do irmão e rei, ao mesmo tempo que crescia gran-demente o número de membros da família real e corte e respectivas comitivas, o que deu origem ao incremento das tendências e tensões entre famílias.

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Dez anos foi a duração do terceiro matrimónio de Fer-nando VII, o qual corresponde – no parecer crítico dos his-toriadores – ao período historicamente classificado década ominosa e um dos mais tranquilos e menos turbulento do reinado de Fernando VII189. A delimitação sugerida inclui o tempo que medeia entre as mortes das duas rainhas.190

Faz sentido, portanto, contextualizar, na medida pos-sível, o clima vivencial, que permeou as relações, entre estes membros da família real espanhola, grosso modo enuncia-dos, na medida em que é nele que se movem as infantas portuguesas, após a morte da rainha, sua irmã. Falamos da presença da princesa da Beira, D. Maria Teresa de Bragança, viúva do infante de Espanha D. Pedro Carlos de Borbón y Bragança, que se foi juntar à infanta D. Maria Francisca de

189 Lafuente, in ob. cit., T. XXIX, Cap. XXII. Alguns autores mo-dernos têm classificado os 10 anos em causa como a-histórico. O dito período – também designado “Década absolutista” ou “Década de soberania régia” – uma vez revisitado, tem dado origem a “algumas brilhantes monografias” nomeadamente os estudos de Frederico Suá-rez como o que dedica aos “Mal-contents catalanes” ou “Los suces-sos de La Granja”. Salienta o autor, que muito há ainda por conhecer, lamentando que tais monografias não tivessem merecido a atenção devida. Já quanto a uma mais recente publicação das “Actas del Con-sejo de Ministros” concernentes ao período em causa é considerado como uma das séries mais completas do arquivo daquela instituição, mostrando-se convencido de que passava lamentavelmente quase desapercebida. Alfonso Bullón de Mendoza y Gómez de Valugera, Los últimos meses de Fernando VII através de la documentación di-plomática portuguesa, Rev.de Historia Contemporánea, in Separata, Aportes, 40,XIV (2/1999).190 A rainha D. Maria Josefa Amália faleceu em Aranjuez a 18.5.1829. Descreve Lafuente a personalidade da rainha, como sendo a de uma “alma pura, que mais parecia ter sido feita para consagrar uma vida de virtude e de contemplação de Deus, na quietude solitária de um claustro do que para participar das inquietações prazerosas do trono e do bulício da corte e dos régios paços.” Lafuente, in ob. cit., idem.

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Assis, ainda que não fosse com o propósito de reforçar a posição desta. Porém, acabou por reforçar um ambiente pró--português relevante na opinião de Lafuente e do qual nos aperceberemos melhor, se cotejarmos o testemunho apor-tado, com o das próprias infantas, na sua correspondência, ao longo da duração do casamento de Fernando VII com a terceira esposa.

Afirma o historiador que, enquanto a devoção religio-sa e o carácter apoucado e frio, daquela excelente senhora a apartavam do convívio, evitando com isso acesas conten-das e discussões de cariz político, se desenhava um marcado contraste, relativamente às aspirações da esposa de D. Car-los Maria Isidro, a infanta D. Maria Francisca de Assis.

Tal facto não evitou um profundo sentimento de tris-teza, da parte da família portuguesa, em oposição à esfera de interesses, que a morte da rainha D. Josefa Amália veio privilegiar. Adianta o mesmo autor, que o partido dominante na corte (apoiado pelo rei) tinha os olhos postos no infante D. Carlos Maria Isidro, uma vez que a lei em vigor – nunca antes questionada – tinha a este como legítimo sucessor do trono espanhol, dada a sua condição de varão e irmão do rei, face à vacuidade do matrimónio real.

A morte inopinada da jovem rainha não augurava, por-tanto, harmonia, na medida em que o jogo político poderia mudar de rumo, se Fernando VII resolvesse contrair novo en-lace, hipótese que favorecia os desígnios do partido liberal. E agradava tanto mais aos sequazes desta facção, essencial que lhes era, por ir contra a pessoa do infante D. Carlos, não tanto pela sua pessoa, mas, porque almejavam do futuro reinante inclinação favorável aos seus desígnios, que não divisavam da parte do infante seu irmão, favorecido pelo panorama pe-ninsular que se lhe oferecia propício, considerando que, do lado de Portugal era rei, agora, D. Miguel I.

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Para entender a abrangência do contexto, de finais da década de vinte, há que regressar ao início de tudo, que é como quem diz, a 1819, quando a expectativa liberal espa-nhola se viu espoliada de uma aliada tácita. Quer dizer, o desaparecimento da rainha D. Maria Isabel, em cuja influên-cia benéfica, tinham depositado esperança e alento – agora abalados – na proporção em que a rainha nova tornava evi-dente não alinhar no desiderando paradoxalmente augurado pela sua antecessora. Afirma Lafuente textualmente que com a morte de Isabel, Fernando ficara novamente entregue aos homens da sua camarilha.191

É claro que a opinião do autor o mostra propenso à de-fesa dos seus próprios ideais liberais, não indo nem preten-dendo ir, fundo, na análise do jogo político nem das razões do poder, que assistia ao rei, o qual, é certo, revela um com-portamento evasivo, pouco confiável a quem esperava tanto favor dele, por cauteloso e inseguro, em relação às decisões de peso que ia tomando, o que favorece a enunciação dos juízos de valor, que costumam ser-lhe, adversos, sobretudo, por afrontar a facção maçónico-liberal.

É o próprio Lafuente que aponta o dedo à crescente si-tuação, que cerceava a governação, pondo em xeque o rei, de todas as maneiras. Fala, por isso, do clima conspirativo, embo-ra letárgico, gerado pela manobra subterrânea das sociedades secretas, que se correspondiam entre si, atiçando fogos, que se apagavam à custa de sangue, enquanto não se ateava noutro ponto, porque nem uns se resignavam a aceitar a situação de aparente impasse nem os outros afrouxavam a sua conduta, sendo os primeiros os oprimidos e os segundos os tiranos.192

191 Lafuente, in ob. cit., T. XIV, Cap. III.192 Este ponto de vista não aprofunda as motivações em pauta, sen-do óbvio que oprimidos e tiranos não poderiam de boamente ser en-carados de forma tão linear. Assim, o autor designa por oprimidos

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Não vale a pena descrever aqui o clima de perturbação que regressava a Espanha e a percorria, fazendo-nos eco do que narra o historiador e se calcula pela duração da instabili-dade reinante, nunca inteiramente apaziguada, desde o lon-gínquo 2 de Maio de 1808, que – lembramos – marca o iní-cio do clima insurreccional, dos espanhóis, na sequência da deposição da realeza borbónica de Espanha, por Napoleão. A violência – não é preciso referi-lo – era de todo o tipo, sucedendo-se as rebeliões lideradas por militares maçons, os quais arrastavam consigo os subordinados e criava focos de rebelião, depois de acalmia, aparente, verificada com o regresso de Fernando VII ao trono de Espanha, não obstante a suspensão da constituição de 1812.

Desemboca-se, deste modo, no 1.º de Janeiro de 1820 – praticamente um ano depois do falecimento da rainha D. Maria Isabel – altura em que uma epidemia de febre-amarela grassava e causava não poucos estragos e mais pobreza, en-tre a gente mais desgraçada, mal cujo foco parece ter partido de Cádis, enquanto se propagava uma miséria generalizada, por toda a Andaluzia. Ao procurar evitar a contaminação en-tre os soldados, distribuiu-se a tropa por acantonamentos.193

aqueles que falavam em nome do povo, através da manipulação da imprensa, enquanto escamoteava os interesses, na sombra, com que se escudavam. Por tiranos, é claro, toma todo o exercício de poder, contrário ao catecismo, propalado pela imprensa, sabendo-se que a sua noção de democracia é estreita e exígua, na medida em que cha-ma de camarilha ou bando, todo o partido (por mais alargado que seja o número dos seus sequazes) que não comungue daqueles seus propó-sitos. Lafuente, ao defender, sem criticar, esta linha de pensamento, torna-se faccioso.193 Um dos nomes que emerge no relato histórico é o de Mendizá-bal, intrépido maçon e homem de negócios, que há-de figurar mais tarde, entre os apoiantes materiais, de D. Pedro (IV), no período da guerra civil (1832-34) em Portugal, guerra que opôs aquele ao irmão, D. Miguel. Voltando ao clima de turbulência geral em Espanha, La-fuente diz que os amotinados se tinham refugiado dentro na fortaleza

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Estava assim criada naturalmente uma ocasião, que os chefes das facções não desperdiçaram, dos quais o coman-dante do batalhão das Astúrias, D. Rafael Riego, em Cabe-zas de San Juan. À frente de bandeiras desfraldadas arengou aos soldados e exaltou a constituição gaditana de 1812, ao som de vivas à liberdade. Os episódios descritos que se su-cedem são de indesmentível brilho, atraindo o leitor para um cenário de luz e sombras, onde refulgem os heróis, sem má-cula, numa luta contra a perfídia, avolumando o repositório de um memorial, inesgotável.

Em Março de 1820, sai uma resolução governa-mental, amedrontado o executivo com a repercussão do dito levantamento, andaluz, a que se juntou um outro na Galiza e sublevações que tinham lugar ou iam a caminho disso, noutros pontos de Espanha, pressentindo-as – diz o historiador – o governo, mas dando mostras de debili-dade em contê-las ou dirigi-las, acabando por preferir a mediocridade de uma decisão, dúbia. Tal era o cariz do decreto de 3 de Março de 1820 – na opinião de Lafuente – tido assim pelos opositores do rei e visto como um “ser-mão”, uma vez que não viera satisfazer as expectativas

de Cádis, tentando resistir à força real, enviada contra eles, dividin-do-se o protagonismo, entre as hostes. Do lado dos revoltosos surge, então, o referido capitalista Mendizábal o qual, ao lado de Galiano e Vallesa “tinha trabalhado na preparação de todo o ocorrido e con-tinuavam a trabalhar, primeiro, dentro de Cádis, os dois últimos e Mendizábal, do lado de Riego.” Nota: Lafuente adita uma breve nota biográfica sobre o general Riego, pretendendo ser imparcial, com re-curso a duas fontes, distintas. Uma, que o faz um homem de pouca importância e qualidade, de ascendência pouco mais que humilde, de discurso pouco acutilante e condição arrebatada, valor impetuoso, mas de pouca força, oscilando entre feitos de arrojo e desprendimento e puerilidades de pura vaidade, enquanto a outra o descreve dotado de singeleza, bondade e sem rasgos de ambição. É claro que o pendor do historiador tende a valorizar a segunda imagem de Riego. In ob. cit., idem.

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dos revoltosos, interessados na reposição da constituição de 1812.

A resposta dos insurrectos, pela voz do conde de La-Bisbal, foi a proclamação unilateral da constituição de 1812, em Ocaña, onde ele num volte-face contrariou a missão confiada de apaziguar o espírito revolucionário, preferindo pôr-se à frente do regimento imperial de Ale-xandre. Diz o historiador que o golpe do conde provocou uma reacção, igualmente inopinada, no ânimo do próprio rei, levando-o a passar de um extremo ao outro, com sur-presa do conselho – palavras do mesmo historiador – ao decretar três dias depois da rebelião, a convocação das Cortes.

Esta reacção incendiou mais ainda os ânimos alte-rados, sendo impossível evitar que uma multidão corresse desde as Portas de San Felipe até às Portas do Sol e Praça do Oriente, defronte do palácio real a manifestar-se con-tra Fernando VII. A fermentação da insídia foi a ponto de constar que a guarda-real tencionava tomar o palácio Del Retiro e prender quaisquer deputações que aí fossem, ao encontro do rei. A pressão surtiu o efeito desejado e vive-ram-se momentos, não só de aturdimento, mas de pavor, no interior do palácio, de tal modo que a 7 de Março de 1820 o rei se viu forçado a declarar a reposição da constituição de 1812.

O que se seguiu foi uma onda tumultuosa que Lafuen-te compara à tomada da Bastilha, quando descreve o furor da turba a eleger representantes, como se vira durante a revolu-ção francesa. A demência colectiva observada – na opinião dele – tinha subido a tal ponto, que a histeria idólatra da populaça a levara a beijar de joelhos exemplares da cons-tituição. A frase mais elucidativa para descrever o cenário profere-a o próprio Lafuente:

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A revolução e a mudança de governo tinham-se feito com seis anos de paciência, um dia de explicação e dois de re-gozijo.

E já desesperançado exclama:

Oxalá se tivesse podido dizer o mesmo dos tempos que se seguiram…!194

194 Modesto Lafuente, in ob. cit., T. XIV, Cap. IV.

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Da ida da Princesa da Beira para Espanha

Na sua condição de viúva, regressou com a corte a Lisboa, D. Maria Teresa de Bragança, princesa da Beira, en-gendrado este regresso pela proclamação revolucionária do sinédrio maçónico, a 24 de Agosto de 1820, na cidade do Porto. A entrada da armada na barra do Tejo teve lugar no dia 3 de Julho de 1821, embora o desembarque real ocorres-se só no dia seguinte, por volta do meio-dia, precedido do protocolo ideado pelos membros da assembleia constituin-te.195 195 A família real e corte, estimada em umas 4 000 pessoas, chega-ram a Lisboa na nau D. João VI (onde viajou o rei), fragatas Carolina e Princesa Real e mais cinco outras de transporte, que eram Grã-Cruz de Avis, Sete de Março, Quatro de Abril, Phoenix e Orestes. O articulado protocolar, altamente burocratizado, pelos “patriotas” da revolução, é transcrito por Simão da Luz Soriano, in História da Guerra Civil e do Estabelecimento do Governo Parlamentar em Por-tugal, 3.ª Época, T. I, 1881, Cap. VIII. O historiador, curiosamen-te, não esconde a sua indignação, perante a conduta exacerbada dos constitucionais, face à pessoa do rei, indignação que expressa, em parte, na narrativa da festa da recepção: “Com esta frieza das cortes para com el-rei contrastou por notável maneira a agitação do espírito público, sobretudo entre os absolutistas, que passaram logo a falar em reacções contra o sistema liberal. Mas se houvesse já ou não para elas algum projecto, o que se viu foi que a regência (constitucionalistas), usando dos poderes ilimitados de que estava revestida, tomou todas as providências ao seu alcance para manter a ordem, de que resultou passar-se o resto do dia 3 (Julho) e a noite que se lhe seguiu sem al-teração alguma do sossego público. Junto do cais das colunas tinha o senado da câmara, mandado levantar duas grandes barracas, uma de cada lado do mesmo cais, ambas, elas, asseadamente mobiladas e para elas entrou, pelas 10 horas da manhã do dia 4 (Julho), o referido senado, com alguns dos empregados da sua repartição, além de ou-

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tros mais cidadãos de certa graduação e hierarquia, destinados todos a esperar ali o desembarque de el-rei. O cais estava até junto do mar coberto de alcatifas e flores. O Terreiro do Paço, desde o mesmo cais até à Rua Augusta achava-se todo areado numa largura igual à do re-ferido cais. Por igual modo se achavam as ruas, por onde el-rei tinha de passar para se dirigir à Sé e, portanto, areadas e cheias de flores, murta e louro. Todas as janelas dos prédios dos respectivos edifícios se viam ornadas com sedas escarlates, em conformidade da ordem que sobre este ponto tinha dado o senado da câmara. A Sé estava ricamente armada de damasco, veludo, prata e ouro; uma escolhida música, composta das melhores vozes e instrumentistas da capital, se achava nela, esperando o monarca para entoar o solene Te Deum, a que ele, em acção de graças da sua chegada, tinha de assistir. Desde o cais até à mesma sé, corriam duas alas de Infanteria, por entre as quais el-rei havia de passar. Diferentes partidas de Cavalaria enchiam o Terreiro do Paço, havendo outras às bocas das ruas para manter o sossego e descobrir a passagem dos trens que a podiam embaraçar. Desde a madrugada do dia 4 (de Julho) as galerias da camara, as suas imediações e até mesmo as ruas próximas das Necessidades, acha-vam-se atulhadas de gente de todas as classes, quer para ver o jura-mento (da constituição), quer para ver el-rei na sua passagem para as cortes.” Prossegue o relato com as imposições, quanto à forma como haviam de ser seguidos, tanto o desembarque real como a missão da deputação, a bordo para o respectivo discurso de boas-vindas. Nem deixa de comentar a humilhação, imposta pelos “patriotas” (expres-são daquela época para referir-se os revolucionários maçónico-libe-rais) ao rei, imprópria e desnecessária, mais adiante, quando fala dos festejos em honra do monarca: “El-Rei pouco depois do meio-dia saiu efectivamente de bordo da nau para a real galeota, acompanhado de seu filho e neto, os infantes D. Miguel e D. Sebastião, chegando pela meia hora ao cais das colunas, no Terreiro do Paço, acto que se anunciou por novas salvas de artilharia no castelo e embarcações de guerra. A este tempo estava o senado da câmara formado na laje do dito cais, achando-se acompanhado por muitos ministros e cidadãos, afluindo também para ali um grande número de pessoas notáveis de diferentes classes e jerarquias”. Descreve depois a cerimónia de en-trega das chaves da cidade ao soberano e inicia a do cortejo real: “Findos estes cumprimentos, el-rei entrou debaixo de um riquíssimo pálio de cetim branco, bordado a oiro, que o senado ali tinha pronto para este acto, sendo os vereadores os que lhe pegaram nas varas. Por

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Justamente para a recepção d’el-Rei, a que acorreu o povo da capital e seus arrabaldes, enquadrado pela galhardia dos diversos ramos militares, corpo diplomático e aristocra-cia titulada, tudo em grande gala, viu-se descer no cais das colunas D. João VI, ladeado pelo jovem infante D. Miguel e pelo infante D. Sebastião, seu neto de 10 anos. Com ambos, dirigiu-se D. João à Sé, num cortejo de coches, ricamente colorido, conforme descrevem os relatos coevos.196 este modo foi conduzido até junto do coche, que se achava a pouca distância do cais. O coche era puxado por seis formosos urcos e nele se meteu D. João VI com os ditos, seu filho e neto que, adiante dele, tomaram assento. O povo que, de todas as partes afluíra ao Terreiro do Paço, era imenso e os repetidos vivos que lhes saíam dos lábios iam misturar-se com o estrondo das salvas de artilharia de terra e mar, bem como com a dos repiques dos sinos de todas as igrejas da cidade. Uma companhia de Cavalaria seguia o coche, indo aos lados dele uma guarda de honra, composta de generais. El-Rei mandou an-dar devagar, para satisfazer os ardentes desejos que notou ter o povo de o ver e reconhecer, vitoriando-o sempre, com repetidas vivas. O esplendor e asseio das ruas, a riqueza da sua ornamentação e o bri-lhantismo das senhoras e homens que, por toda a parte, enchiam as janelas, vendo-se igualmente atulhados de gente os passeios laterais das mesmas ruas, tornavam este acto da passagem de el-rei o mais brilhante e pomposo possível…”. Soriano, in ob. supracitada. 196 A vinda do rei recobrou na nação inteira a esperança, no rescaldo do sofrimento, que sarava as chagas, agora, na alegria, com que rece-beu, o monarca, longe de imaginar os quadros de horror alguns anos depois que se perfilavam no horizonte, com o desencadear de uma tenebrosa guerra-civil. Assinala a renovada esperança o 7.º Marquês de Fronteira (5.º de Alorna), nas suas Memórias, numa perspectiva que contrasta, embora complete, a visão mais popular de Soriano, cada qual, engajada à condição dos autores: “Logo que descobrimos a barra, avistámos, ao largo, a grande esquadra, acompanhada dum sem número de barcos de pesca, porque todos os que andavam por fora entraram juntamente com a esquadra. Pouco depois, ouvimos salvar as torres à entrada da nau D. João VI. A curiosidade levou-nos ao lado da esquadra: fizemos a volta dos diferentes navios de guerra e minha sogra (D. Maria Benedita de Noronha) pode descobrir, na tolda de alguns, muitos dos seus parentes que não via havia muitos anos e que

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eram estranhos, tanto para mim, como para minha mulher, pois que nenhuma ideia tínhamos deles. A população de Lisboa embarcou em peso para ir felicitar el-rei pelo seu regresso. O governo provisório (regência) e as cortes tiveram a triste ideia de colocar escaleres do Arsenal junto à esquadra para a tornar incomunicável. Nenhum rei recebeu uma afronta menos merecida e nenhum rei se esqueceu dela com mais generosidade, porque teve ocasião em que podia mostrar o seu ressentimento. Sempre tive pena de que a arte de pintura estivesse tão atrasada no nosso país e que não houvesse talento transcendente para fazer um quadro do belo espectáculo que eu presenciei e com saudade descrevo (…). Enquanto Sua Majestade entrava o Tejo eu presenciava este belo espectáculo, as cortes funcionavam em sessão secreta e o governo estava em sessão permanente. A famosa Asso-ciação Patriótica achava-se reunida e as sociedades secretas nos seus trabalhos ocultos. A influência destas para com os corpos do Estado e os receios que os mesmos corpos tinham do rei e da alta aristocracia, produziram medidas as mais humilhantes, para uma testa coroada, que até hoje têm aparecido em uma monarquia. Decidiram que el-rei não desembarcasse senão vinte e quatro horas depois, que fosse acompanhado ou antes, vigiado, por alguns membros da regência e por uma deputação da câmara de deputados.” O marquês refere-se ao facto de alguns membros da comitiva régia terem sido impedidos de desembarcar, nomeadamente, os condes de Palmela e de Parati, desterrados, por ordem dos liberais no poder, indo o primeiro para Borba e o segundo para Torres Novas. Critica o marquês a actuação de deputados, membros da constituinte e governo (José da Silva Car-valho, Anselmo José Braamcamp e Borges Carneiro, entre outros) e a bizarria das medidas providenciadas por eles, maçons confessos: “O mais extraordinário é que todas as embarcações da esquadra estavam comunicáveis, menos aquela em que vinha el-rei e, por isso, todos os indivíduos que tinham parentes que vinham naquele navio, não lhes podendo falar, estavam em botes, a certa distância, onde soltavam entusiásticos vivas a el-rei, o que muito incomodava os patriotas”. É o marquês que na idade dos seus 18 anos, descreve o cenário da re-cepção à deputação – da qual ele tomou parte na qualidade de oficial do Estado-maior, não obstante a pouquidade – sendo as suas palavras ilustrativas da diferença de gosto e costumes, que situa o leitor num antes e no depois de 1807: “O general (Sepúlveda) fez diligência para se aproximar da câmara da ré e eu e o meu camarada pouco nos pu-demos adiantar e ficámos junto ao portaló, donde pudemos observar

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el-rei D. João VI cujo porte e fisionomia me surpreenderam pela sua pouca elegância e fealdade, vestido com o uniforme mais bordado que até ali tinha visto, condecorado com numerosas ordens, tanto na-cionais como estrangeiras, com o chapéu de galão na cabeça, mãos atras das costas, com uma bengala de castão, em que, de vez quando se apoiava, dando alguns passos para um e outro lado. Dirigia algu-mas palavras ao velho conde de Sampaio, presidente da regência e algumas vezes se riu, dirigindo-se a um companheiro de infância, filho do seu antigo mestre, o major Franzini, o qual fazia parte da deputação. Eu mal podia descobrir a rainha Carlota: só lhe via a mão e o leque, fazendo mil gestos, mas via perfeitamente o individuo a quem se dirigia, que era o deputado Borges Carneiro. (…). Não podia admirar a beleza da princesa da Beira e das suas três lindas irmãs, pela grande distância e pela muita gente, o que impedia que eu visse, à vontade, tão lindo grupo. Contudo, posso assegurar que as quatro princesas, com os seus gentis trajes de viagem, formavam um dos mais belos quadros que um hábil pintor desejaria copiar”. (…) “. Le-va-nos depois ao cenário do desembarque, no dia seguinte: “Nos cais da Pedra (Rocha) e do Sodré e em todos os pontos donde se podia avistar a esquadra, estava grande quantidade de povo, para ver o de-sembarque e a chegada de um monarca tão desejado, pois era muito diminuta a parte dos habitantes da capital que olhavam para el-rei e sua família, como para inimigos ou adversários e que aplaudiam, por isso, as medidas tomadas, a que chamavam de segurança pública e se preparavam para, no dia seguinte, fazer uma manifestação contra os áulicos, que era como designavam os camaristas e oficiais menores que tinham a honra de acompanhar Sua Majestade do Rio de Janei-ro”. E opina, liminarmente: “Foi sempre para mim fora de dúvida que o que naquela época concorreu para desconceituar o sistema constitucional e facilitar a restauração do absolutismo foi a conduta absurda dos patriotas para com el-rei, no dia da sua chegada, dia, para todo o país de verdadeira festa nacional, mas em que eles julga-ram dever obrigar o soberano a humilhações que custam a acreditar a quem não as presenciou.” (…). “Pouco depois, largou da nau uma brilhante e numerosa esquadra, arvorando uma das galeotas o estan-darte real que foi cumprimentado por todas as embarcações de guerra e fortalezas. Era el-rei D. João VI que, com a exactidão que fazia parte do seu carácter, saía da nau, para estar no cais ao meio-dia em ponto, segundo o programa que se realizou. Os tribunais, a corte, o clero parecia que se queriam precipitar ao rio, para todos, ao mesmo

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Já a rainha D. Carlota Joaquina e as infantas – gru-po que incluía a tia, D. Maria Benedita, princesa-viúva do príncipe D. José – desembarcaram da nau D. João VI, sendo recebida a real comitiva, por uma deputação de boas-vindas. Dos escaleres, festivamente engalanados, desceram rainha e infantas no cais de Belém, tendo seguido dali para o palácio de Queluz.

Também a Queluz iria ter D. João VI, depois de for-malizada a visita real às cortes, que funcionavam na livraria do convento dos Néris (Congregação do Oratório) nas Ne-cessidades, onde os deputados, reunidos, receberam o rei, trajados de grande gala e o presidente da assembleia, Fran-cisco Manuel de Aragão Trigoso, pronunciou o discurso de boas-vindas. Nem mesmo aqui D. João VI deixou de escutar vivas a el-rei que se ouviam, entre vivas à liberdade e mor-ras aos áulicos, brado este, que havia de perturbar o espírito dos visados e o marquês de Fronteira e Alorna assinala, com desagrado.

Metendo-se no coche o rei, fatigado, seguiu para a Ajuda, escoltado pela guarnição de Cavalaria, que circulava a muito custo, dado o numeroso concurso de gente, que se amalgamava para ver passar o rei. Neste palácio da Ajuda,

tempo, abraçarem o augusto monarca e a muito custo puderam os oficiais mores e a guarda-real dos archeiros abrir caminho a el-rei até ao coche que o esperava. (…) El-Rei parecia enternecido e muito pensativo. Entrou no coche, acompanhado de seu filho, D. Miguel e de seu neto, filho da princesa da Beira, o infante D. Sebastião, o qual, então, era uma criança. Os oficiais mores de serviço entraram nos diferentes coches que precediam o de Sua Majestade. Os antigos e elegantes coches não serviam desde 1808 e era um novo espectá-culo para a nova geração. (…) Custou muito a pôr em movimento o numeroso préstito, porque as carruagens dos grandes do reino e de toda a corte precediam o Estado de el-rei. Em todo o trajecto foi el-rei muito festejado…”. Memórias do Marquês de Fronteira e d’ Alorna, Coimbra, Coimbra, 1926, T. I-II, Cap. VI-VII.

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D. João mudou de equipagem e entrou “para uma carrua-gem do uso ordinário” – conforme palavras do marquês de Fronteira – pondo-se a caminho de Queluz escoltado pelos oficiais de serviço, da sua guarnição, precedida aquela de uma escolta de cadetes, que fazia de batedor, às ordens do irmão mais novo do marquês de Fronteira. Correu-se muito rapidamente o percurso – confidencia ele – porque el-rei ti-nha um grande prazer em viajar com rapidez.197

Na estrada de Queluz esperava-o outra recepção de gente dos arredores do palácio. Explica o memorialista que tal se devera a ser D. João muito popular entre os saloios, que o consideravam seu patrício, porque tinha nascido e vi-vido entre eles. Ao seu estilo, o marquês vai introduzindo notas de pitoresco, que tornam mais vivido o cenário, desta feita, lembrando a beleza serena daquela noite de Julho, que permitia marchar como se fosse de dia, luz ampliada pelos archotes e foguetes que iluminavam a estrada.198

Instalada a comitiva e séquito, a vida da corte pareceu recuperar a sua rotina e o marquês, em jeito de diário, fez questão de referir para memória futura a beleza das infantas que observava à distância, quando cumpria os deveres de oficial da guarnição:

Vimos a família das janelas que deitam para o jar-dim; vimos primeiro passar a bela e elegante princesa da Beira, que tinha o ar mais distinto e real que tenho visto na família de Bragança; não tinha ainda trinta anos: uma bela figura, olhos animados, belos dentes, oferecendo um todo extremamente simpático; trajava de luto, porque era viúva do infante D. Pedro Carlos, sobrinho d’ el-rei D. João VI.

O interesse que despertava em todos a figura da prin-cesa D. Maria Teresa de Bragança é notório e eloquente, pela

197 Alorna, in ob. cit., pp. 248-249.198 Idem, p.249.

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largueza da descrição que fixou dela, o marquês de Fronteira e Alorna, D. José Trasimundo. É certo que não deixou de se referir às infantas, D. Isabel Maria, D. Maria da Assunção e D. Ana de Jesus, irmãs mais novas da princesa, as quais con-sidera três belezas muito alegres e contentes, por se verem na pátria e na residência dos seus maiores.199

Mas alguma coisa havia nela, D. Maria Teresa, que atraía a geral atenção à sua volta, dado o relevo que lhe dão os autores que com ela conviveram de perto – incluindo os espanhóis – sempre que se lhe referem.200 Não se ficaria por um comentário, apenas, a este respeito, se voltássemos à ju-ventude desta princesa, dada a curiosidade de que era alvo, sobretudo, se nos ativéssemos à época em que ela se apre-sentava politicamente, como presuntiva noiva de Fernando VII, intenção que foi gorada, pelas razões e contexto, que trouxe à tona um tal projecto acalentado, sobretudo, por D. Carlota Joaquina.201

Dotada de um vigor e uma força interior indomáveis, de que deu provas pela vida adiante, que nunca a deixaram desistir nem abandonar as causas em que entrou, abertamen-te, em defesa dos valores em que acreditava piamente, D. Maria Teresa de Bragança parece tê-los herdado da mãe, mas, como mais-valia, favorecida por uma beleza de arrei-gados princípios e afectos, que imitam a conduta privada

199 Ibidem, pp. 251-252.200 Nomeadamente, o conde de Rodezno: “Su belleza y arrogante figura, muy superior a sus otras dos hermanas (…) e a la napolitana Luísa Carlota, esposa de Don Francisco de Paula, conmovió a la so-ciedad cortesana y su austeridad y prácticas religiosas diéronle pronto el máximo respeto y prestigio.” In ob. cit., p. 41.201 A Espanha – como lembramos – atravessava, por volta de 1810, um dos piores momentos da sua história. A família real tinha sido des-tronada e Fernando VII feito rei por Napoleão, foi depois mandado para o exílio em França, donde voltaria a Espanha, em 1814, depois de Waterloo.

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e pública do pai, el-Rei D. João VI. Esta junção fez dela, efectivamente, uma mulher única, no seu tempo.

Lisboa ofereceu-se-lhe à data, somente porto de esca-la, uma vez que, a princesa vinha determinada a seguir para Madrid, pela condição que reunia na sua pessoa de infanta de Espanha, visto o seu casamento com o infante D. Pedro Carlos de Borbón, de quem era viúva, mas também na qua-lidade de tutora do filho de ambos, o infante D. Sebastião de Borbón y Bragança, que contava nesta altura dez anos de idade – como ficou referido. Espanha reclamava a presença do jovem infante, pelas leis em vigor naquele reino, se havia de ser tido e mantido naquela condição, como herdeiro de seu pai, por sua vez, filho e herdeiro de D. Gabriel de Bor-bón y Sajonia.

Os preceitos legais ofereciam-se-lhe mais fáceis de acatar, em virtude do casamento das irmãs, as quais tinham constituído na corte de Madrid uma rede pessoal de relações, não obstante o falecimento entretanto de D. Maria Isabel. Apesar disso e das circunstâncias, o clima político do mo-mento ainda favorecia um entendimento cordato das duas cortes, não obstante a turbulência revolucionária, explícita ou subterrânea, que germinava discórdias internas, nos dois reinos. A seu favor, contava D. Maria Teresa com o apoio tácito e mesmo fraternal, de Fernando VII, seu tio, que a es-timava e tinha em grande conta e, naturalmente, o suporte da irmã, infanta D. Maria Francisca de Assis e do marido desta, o infante D. Carlos Maria Isidro.

Antes de entrarmos no ambiente que D. Maria Teresa foi encontrar na corte madrilena, convirá situar-nos e fazer algumas clarezas, sobre as razões que levaram a princesa a deixar Lisboa com o propósito de acompanhar o filho, como tutora dele, naquela segunda pátria, que procurava cheia de boas expectativas. Ter-se a princesa e sua família privada,

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abalançado a ir viver em Espanha, num período tão contur-bado, não foi decisão à toa. Pelo contrário, obedecia a um decisão que contava com o apoio de D. Carlota Joaquina, indubitavelmente, mas, sobretudo, com o beneplácito de D. João VI, sinal que nos é dado, pelo testemunho aportado, nas suas cartas.

Comprovam tais indícios que D. João VI, sendo Re-gente, na altura em que se tratou dos esponsórios da sua primogénita com D. Pedro Carlos de Borbón e Bragança, pelas consabidas razões, já abordadas, percebe-se que não se descurou a realidade que se vivia na época nem o curso dos acontecimentos, no que respeita tanto à prevenção do futuro da filha e do genro nem ainda dos filhos que, porventura, nascessem daquele matrimónio.

Deparamo-nos assim com um bom acervo de docu-mentos, que testemunha a veracidade deste cuidado e mais adiante haveria de se provar de grande importância, dada a conjuntura de pós-1812 em Espanha – emergente da procla-mação da constituição de Cádis – código que veio introduzir alterações radicais nos usos e costumes, através da imposi-ção de nova legislação, situação que não se previa possível ainda em 1810, ano dos esponsórios, mas quiçá, se vislum-brasse, na opinião não só do Regente, mas também dos con-selheiros de cujo parecer o Príncipe-Regente se rodeou.202

202 Acerca do casamento da sua primogénita com o infante de Es-panha, D. Pedro Carlos de Borbón y Bragança, há pareceres (entre os que deu à estampa Ângelo Pereira in Os Filhos d’el-Rei D. João VI, Lisboa, 1946), dos conselheiros a pedido de D. João VI, relati-vos aos direitos do neto, infante D. Sebastião de Borbón y Bragança, na origem da sua ida com a mãe, para Espanha, conforme tratamos neste capítulo. (Vd. Ob. cit., sob indicação Col. do Autor, pp. 344-380.) Muito em especial aborda a questão o conde de Rodezno, na sua citada obra e a este propósito particularmente as obras seguintes, publicadas em Espanha: Memoria Histórica sobre La Fundación y Vicisitudes de La Casa de Su Alteza Real el Ser. Sr. Infante de España

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No tempo que mediou, entre o retorno da corte portu-guesa a Lisboa e a partida da princesa da Beira com o filho para Espanha, eclodira lá um processo judicial, que ques-tionava os direitos de D. Sebastião, justamente, uma fase reivindicativa, sustentado nos tribunais do reino, por se ter interposto aos direitos da herança do jovem infante D. Se-bastião – a viver então no Rio de Janeiro – o tio, D. Carlos Maria Isidro, situação que derivou em parte, das mudanças em curso e dada a ausência do infante fora de Espanha.

Debruçando-nos sobre o referido acervo dos docu-mentos que tratam a questão, tão longe quanto nos foi dado entender, aquilo que se nos depara é um caderno de bem argumentadas proposições, jurídicas, da parte dos peritos e assessores de D. João VI, onde se demonstra e favore-ce a defesa da causa daquele infante, seu neto, enquanto auguram o sucesso e boa recepção que teriam, junto dos tribunais competentes, a princesa da Beira, na qualidade de tutora do filho, pela razão que a este assistia, enquanto visado.203 y de Portugal Don Sebastián Gabriel de Borbón y de Braganza – Do-cumentos Justificativos, Madrid, 1868; Los Hijos y Descendencia de Sus Altezas Reales los Seren.ºs. Srs. Don Sebastián Gabriel y Doña Maria Cristina de Borbón, Infantes de España y Portugal, 1929.203 Importaria aqui destrinçar os meandros da questão, na origem, em parte, da ida da princesa da Beira e do filho para Espanha, onde passaram a viver, de resto, sendo como eram, tanto D. Maria Teresa como o filho, detentores de jure dos títulos e privilégios da Casa Real de Espanha, como fica entendido. A questão aqui trazida, à memória, tem a ver, então, com a vagatura dos títulos e herança, que eram do infante D. Sebastião, por morte do pai, D. Pedro Carlos de Borbón y Bragança. Isto é: primeiro pela sua ausência no Brasil e depois com a sua morte, ficaram sem herdeiro os bens patrimoniais, inerentes à condição deste de filho do infante D. Gabriel de Borbón y Sajonia e de D. Mariana Vitória de Bragança. Precavida a situação – como fica dito – por altura do convénio matrimonial, passaria a herança, segundo o preceito das leis em vigor, respectivamente, ao neto de D. Gabriel, o infante D. Sebastião, filho de D. Pedro Carlos, entretanto,

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Verifica-se então, que, menos de um ano após a sua chegada a Lisboa, isto é, logo em Maio de 1822, a princesa era informada sobre a sentença, que repunha a justiça do pleito, a favor do filho, infante D. Sebastião. Sem entrar nos arranjos e preparativos da partida para Espanha, convém no-tar, que a mesma se verificou em início de Agosto do mesmo ano de 1822, viagem de cujos trâmites se ocupou o autor espanhol, que fornece dados precisos sobre a biografia da princesa da Beira, mais detidamente, do que qualquer outro, que se saiba:

Con inmenso júbilo recibió, a principios de 1822, la noticia de la resolución del litigio en última instancia y de modo favorable a los derechos de su hijo, y este acontecimiento la decidió a solicitar de Fernando VII permiso para instalarse en la Corte de España como tutora de su hijo. Tramitó sé diplomáticamente este asunto y en el mes de Mayo quedo convenida la instalación en Madrid de María Teresa, como viuda y madre de Infantes de España.

El 10 de agosto emprendió su viaje por Villaviciosa y Ba-dajoz, con pocos criados, dejando a la elección del Rey el

nascido e a residir no Brasil, também, como seus pais. O afastamento deste infante no estrangeiro e o provável receio da perda daqueles bens e títulos – criados por Carlos III a favor do filho, D. Gabriel, seu segundogénito, na altura do seu matrimónio – bens centrados no Morgado do Grande Priorado de Castilha e Leão em a Ordem e Hos-pital de São João de Jerusalém, interpor-se-ia, agora, o segundogéni-to de Carlos IV (irmão de Fernando VII, D. Carlos Maria Isidro), que se candidatou à herança do dito morgado. Desencadeou-se, então, na corte portuguesa, por interposição de D. João VI (na altura, Regente), a favor dos direitos do neto, um processo judicial, que resultou favo-rável (sem favor) a D. Sebastião. Contudo, a presença deste infante fazia-se necessária em Espanha, como infante que era daquele reino: eis o motivo imediato para a sua ida, acompanhado, como se entende, pela mãe, justificado pela sua pouca idade e por outras razões, que se oferecem óbvias, no contexto revolucionário em curso, já adivinha-das, antes ainda da saída da sentença.

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nombramiento de personas que la sirvieran en la Corte. Acompañáronla hasta Madrid los fidalgos portugueses, ca-balleros Castro y Tovar.204

Antes de assistirmos à chegada e boa acolhida da prin-cesa e do filho a Madrid, é apropriado inserirmos aqui, algu-mas notícias portuguesas da própria e daqueles que em Lis-boa aguardavam, com natural expectativa, notícias não só da viagem, mas dos trâmites da mesma. E não deixaremos de nos comover com o frenesi, que pressentimos, indo ao âma-go das palavras, ditadas pelo coração de pai extremoso, D. João VI, a braços com um dos momentos mais terríveis do seu reinado, a par de outros de não menos indizíveis temor e tremor.

São bastante elucidativas e autoexplicativas do clima que se vivia – não é por demais insistir. Isto, na medida em

204 Conde de Rodezno, in ob. cit., p. 41. Corroboram o apontamento do conde, os de Ângelo Pereira, que cuidou da divulgação dos docu-mentos concernentes a datas da jornada da princesa da Beira e sua comitiva, desde a saída com o filho de Lisboa até à sua entrada em Madrid: “A comitiva da Princesa e de seu Filho era composta, além de vários criados, pelo conde de Porto Santo, Diogo Vieira de Tovar e Albuquerque, pelo médico da câmara, Dr. Bernardo José de Abrantes e Castro, pelo P.e António (sic) e por Joaquim José Vallucy” [em nota de rodapé indica que este era Picador das Reais Cavalariças, indo na comitiva não só acompanhar, mas também para servir a princesa, enquanto ela o quisesse manter ao seu serviço. Foi-lhe assegurado os vencimentos na totalidade, conforme nota oficial assinada pelo es-tribeiro-mor, marquês de Loulé. Nota: Vallucy já o referimos antes, foi, efectivamente, mestre de equitação da princesa D. Maria Teresa]. Prossegue o citado Ângelo Pereira: “O comboio de coches, condu-zindo a Princesa e o seu séquito, percorreu até chegar ao seu destino, com um calor escaldante, o seguinte itinerário: Vendas Novas, Mon-temor, Évora, onde chegou a 14 de Agosto, Estremoz, Borba, Vila Viçosa, no dia 16, Elvas em 17, a Badajoz a 18, seguindo dali para Madrid, aonde entrou a 1 de Setembro.” In ob. cit., p. 369 e nota e p. 370.

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que, andando a par e passo, como eco, da turbulência polí-tica dos dois reinos – não obstante a idiossincrasia de cada nação – vê-se ali a mimética repetição dos acontecimentos, desfasados somente na prioridade espanhola, quanto aos episódios revolucionários oitocentistas.

Neste sentido, recordamos que, na ocasião da partida da princesa para Espanha, se achava este reino num perí-odo de crise, devido à reposição da constituição gaditana de 1812, denominada a traga, a qual tinha sido abolida por Fernando VII, mal regressou a Espanha e ao poder em 1814 – como foi feito menção – dado o contexto europeu de pós--Waterloo, suspensão que se prolongou daquela data até Março de 1820, quando eclodiu a dita revolta de Riego e reinstaurou o regime liberal.

Em Portugal, a partir de Agosto de 1820, eclodiu no Porto o movimento, que pôs em marcha a revolução do mesmo pendor, donde emergiu a constituição portuguesa de 1822 – inspirada nos mesmos moldes da sua análoga de Cá-dis – encontrando-se agora a nossa em fase de pré-rectifica-ção, por D. João VI, na qualidade de monarca, na altura em que daqui partiu para Espanha a filha e o neto. Mais do que adivinhar, sentia-se, no entanto, os ventos que ameaçavam varrer novamente a Espanha, mas contrários aos de Portu-gal, engrossando uma corrente de contraciclo, político.

É este ambiente que vimos, espelhado na correspon-dência, entre a família real de um e outro lado da fronteira. Quer dizer, nos cuidados de D. João VI e dos servidores de D. Maria Teresa, à parte do contentamento, que se perce-be, da alegria proporcionada pelo reencontro familiar das irmãs e respectivos cunhados ou seja, Fernando VII e o infante Carlos Maria Isidro, a infanta D. Maria Francisca e a muito discreta rainha, D. Josefa Amália, mulher de Fer-nando VII.

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Os relatos privados fazem-se crónica da atmosfera da-queles dias de divisão – para dizer o mínimo – que minava Espanha, pressentidos, mal a comitiva passou a fronteira em Badajoz, na agitação da gente que via na figura da princesa portuguesa, uma imagem apaziguadora dos seus desaires e angústias, trazendo à mente o que já sabemos, aquando da chegada de D. Maria Isabel de Bragança.

Nota-se uma inversão no rumo dos sentimentos da po-pulação: enquanto nas entradas de 1816, com a infanta D. Maria Isabel – na qualidade de mulher de Fernando VII – a população aspirava ver nela um elemento indutor da paz, perdida, pelos anos de miséria e guerra, agravada das rebe-liões, pró e contra-revolucionárias, parece-nos a gente em 1822, ressentida do monarca, tido como incapaz de liderar a intersecção das divergências partidárias, apesar de o rei procurar saídas, no intuito de alcançar a difícil estabilidade, política e governativa.

A este propósito, muito eloquente, é o conteúdo de uma carta aberta – diríamos – que dirigiu à princesa da Beira o médico da real-câmara (Bernardo José d’Abrantes e Cas-tro), que viajara até Madrid – como vimos – achando-se já em Lisboa, carta aquela, escrita, no rescaldo de uma conver-sa com D. João VI, a quem o médico exporia a impressão que colheu, politicamente, na jornada.

Na verdade, as palavras não são senão um pálido re-trato da realidade que excedia o teor, seguramente. Eis os conselhos do médico para a princesa, redigidos com a con-fiança, que o grau de intimidade, a idade e a vivência, lhe facultavam.205

205 A tendência liberal do autor deve ser levada em conta, porque, sem querer ou querendo, fala muito da realidade e das expectativas, que em Portugal eram alimentadas, na altura, pelos partidários do regime liberal, instaurado. Analisar esta questão específica cai fora do âmbito destas reflexões, motivando-nos a necessidade de enquadrar

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…Eu deveria terminar aqui esta carta; mas o amor e aferro que tenho à sagrada pessoa d’el-Rei e não menos a VAR e vivo interesse que tenho e terei sempre até ao último instante da minha vida, pela felicidade de VAR, de seu augusto Filho e de toda a real família, me obriga a levar à augusta presen-ça de VAR as seguintes observações:

1.º Que desde Badajoz até Madrid não ouvi senão elogios à sábia e circunspecta conduta de SM (Sua Majestade Fidelíssima)206 que tendo feito os mais duros sacrifícios, se identificou com a sua Nação, de quem é antes Pai do que Rei e a quem Portugal deve, entre mil outros bens, a paz e sossego em que vivemos; e não é possível que o Céu, sempre justo, deixe de recompensar um dia, dia que talvez não este-ja mui distante, os sacrifícios, a suma probidade e virtudes de tão bom Rei, de tão adorado Soberano e Pai;

2.º Que desde Badajoz até Madrid (e em Madrid e Badajoz ainda mais que em nenhuma outra parte), não ouvi senão exe-crações contra Sua Majestade Católica, pela sua conduta sem-pre inconsequente, sempre cruel, até para com os seus mais fiéis servidores e sempre inconstitucional; e uma tal conduta, atribuem os espanhóis, de todas as classes, a maior parte dos males, que pesam sobre eles e que afligem a desgraçada Espa-nha cujos filhos se estão degolando uns aos outros: uns porque desejam o império da Lei; os outros porque só querem o abso-lutismo, que a razão reprova e a religião condena;

o cenário, apenas, no qual se movem as personagens centrais dele. Lembramos, contudo, a figura do Dr. Abrantes [1771-1833], sobre quem penderam razões, que o levaram em 1810 a redigir e publicar a sua autodefesa, a partir de Londres, onde foi um destacado apologista do liberalismo, através do periódico “O Investigador Portuguez em Inglaterra”. Médico de reconhecida competência exerceu o cargo de Físico-mor do Reino, que desempenhou, a par da diplomacia. Por ser médico da real-câmara, mereceu a confiança de D. João VI, no sentido de acompanhar a princesa e sua comitiva à corte de Madrid. 206 Refere-se a D. João VI.

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3.º Que VAR se lembrará que recendo repetidos aplausos, v.g. em Badajoz, em Truxilho, em Madrid e muitos = Viva la Princesa de la Beira = Viva el Infante Don Sebastian; e em Madrid mesmo duas vezes = Viva Don Juan 6.º = nunca VAR ouviu um único = Viva Don Fernando 7.º;

4.º Que os espanhóis fizeram todos estes obséquios a VAR, não só pelas maneiras amáveis e verdadeiramente reais, que VAR, filha predilecta de um Rei Constitucional, era tão constitucional como seu augusto Pai; e todos os espanhóis em Badajoz e Madrid ouviram com entusiasmo e grande júbilo, que VAR não queria de modo algum ir viver em palácio [real]; e essa resolução foi olhada como uma de-cisiva prova de que VAR era uma Princesa Constitucional, quer dizer, uma Princesa amante da Lei e de Ordem. Mas que hão-de agora pensar esses mesmos espanhóis, quando souberem que VAR ficou em palácio, não por ser a isso constrangida, por el-Rei Católico, mas porque VAR assim o quis e assim lhe suplicou! Ah! Dirige-se VAR pensar e reflectir nisto um pouco; e fácil será antever as terríveis consequências a que VAR fica exposta e se augusto Filho, se, por desgraça, se renovarem os dias 6 e 7 de Julho deste ano! VAR sabe o perigo por que passou toda a Família Real e a virtuosa Rainha ainda mostra nos seus actuais pa-decimentos e susto, o medo e o perigo a que esteve exposta. O povo espanhol principalmente o povo madrileno, é natu-ralmente vingativo e atiçado pela facção dominante, se as armas constitucionais tiverem sérios revezes, pode romper no excesso de atacar o palácio e assassinar a Família Real (o que Deus não permita). VAR sabe que o palácio não tem defesa alguma e menos a tem, quando os mesmos soldados da Guarda se divertem em cantar canções indignas e se apresentam dentro do palácio com fitas nos chapéus, em que se acha estampada a seguinte legenda = Juré mi suerte – Constitucion ó muerte.

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5.º Se tudo ou grande parte do que se comunicou a VAR a respeito da péssima administração da Casa de seu augusto Filho, é verdade; VAR como tutora deste não pode deixar de exigir uma conta exacta daquela administração; amiga-velmente, nunca VAR o há-de conseguir e há-de VAR viver em palácio, sustentar demanda com seu cunhado [infante Carlos Maria Isidro], que vive na mesma casa?

Sereníssima Senhora: pela preciosa vida de Seu Augusto Pai, que tão necessária é aos portugueses, pela vida e pros-peridade e de seu Augusto Filho, pense um pouco (eu o su-plico humildemente a VAR), no que deixo dito e desculpan-do a minha natural franqueza, como filha de muito amor e aferro, que tenho a VAR, queira VAR fazer-me a justiça de se persuadir, que sou de todo o meu coração, de VAR, humilde e fiel e obrigadíssimo criado – Bernardo José d’Abrantes e Castro = Lisboa em 26 de Outubro de 1822.207

A extensão da transcrição tem justificação do nosso ponto de vista, na medida em que nos parece ser importante contrastar o teor dos avisos que nela se contêm, por servirem de cotejo aos de D. João, na carta que escreveu à filha, pelos mesmos, aparentes, motivos. E dizemos aparentes, porque, na realidade o que mais preocupa o monarca e pai é o bom ambiente que a filha possa criar à sua volta, para levar por diante a boa consecução dos assuntos, delicados, que tinha por objectivo, mas, sobretudo, pelo facto de ela se estar a mover em terrenos movediços, que emergiam das diversas correntes, opostas entre si, com que a princesa teria de saber lidar, aconselhando a que ela nunca se comprometesse com nenhuma.

Dirá, a certa altura, D. Maria Teresa ao pai, que acerca dos avisos com que saíra recomendada por ele de Lisboa,

207 Publicado por Ângelo Pereira, sob indicação Col. do Autor, in ob. cit., pp. 376-377.

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exactamente sobre o ambiente da corte madrilena (e mesmo familiar), que a realidade com que ela topou era ainda pior, do que o cenário que o pai lhe pintara, antes de partir de cá.

Posso segurar a VM que a ideia que aí tem, da intriga daqui do Palácio é nada, em comparação da que na realidade é. 208

Mas a questão que preocupava D. João VI de momen-to, face às primeiras notícias que lhe chegavam de Madrid, tanto da boca da própria filha como do médico eram, por contrapostas razões, paradoxalmente, sobre a imagem que a princesa da Beira estaria a dar, por causa das suas opini-ões políticas e seu comportamento, produzindo uma ideia comprometedora do próprio D. João VI e não tanto da sua inclinação pessoal, induzida tal impressão nos outros, pelas atitudes dela.

É por isso que vale a pena atentar às sábias palavras de D. João, as quais reproduzem o delicado quadro político--diplomático em contraciclo com que conviviam os mem-bros das famílias reais, das duas cortes:

Respondo a esta carta separada do N.º 15, pois vai por via segura, estimei infinito que a minha carta de 12 do corrente (mês de Outubro] te sossegasse. Quanto à resolução que tomaste de ir falar a el-Rei a respeito da mudança de quar-to, o sinto, pois que um tal passo te põe na indispensável obrigação de viver junto com a Família Real de Espanha, o que a meu ver te pode envolver em qualquer desgraça, que lhe aconteça, tanto mais que, pelo que me diz a tua irmã [infanta D. Maria Francisca de Assis] como te relato um parágrafo da sua carta: Estou contente porque a mana pe-diu a el-Rei outro quarto e SM logo lho deu e também lhe disse que jantasse sempre com ele, como todos nós; eu tenho

208 Carta de Madrid, de 23.9.1822. publicada por Ângelo Pereira, sob indicação Col. do Autor, in ob. cit., p. 403-404.

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o maior interesse por ela e assim estava na maior aflição porque Diogo Vieira [de Tovar] e outros lhe metiam na ca-beça, que fosse morar fora do paço e muitas outras cousas, que faziam que ela não tivesse a melhor opinião no público; porém, graças a Deus que tudo se vai remediando e todos vão vendo, que ela que não é nem pode ser, constitucional; tu és considerada hoje desafecta ao sistema constitucional; tendo-te eu recomendado tanto, que não te decidisses por partido algum, pois que a tua ida para Espanha só tinha por objecto cuidar da educação e negócios da casa de teu filho e não tomares parte ou envolver-te em negócios políticos tão perigosos na época actual. Não posso também deixar de observar que sendo tu uma filha tão querida e tão ligada comigo e no meu particular, que a opinião que há, como tua irmã me manda dizer, a teu respeito, me possa comprometer, podendo-se inferir que eu sou particularmente dessas mes-mas opiniões, que tanto mal tem causado a Espanha; por isso, espero que servindo-te do pretexto da tua fraca saúde, vás para o campo viver isolada de tudo quanto são partidos políticos, para que desse modo possas, com mais brevidade, com mais segurança e com a certeza de me não comprome-teres, vir para a minha companhia, como tu prometeste.

Quero por esta via, que é segura, me mandes dizer os moti-vos particulares que obrigavam contra o conselho de todos os de casa e de fora como tu dizes, a tomar a resolução de falar a el-Rei, como meio conciliatório para ficar no paço, visto o mau quarto que tinhas, que te dava lugar para sair do paço. Vejo o que me dizes a respeito do dote; estimarei que tua mana não fale, como me dizes que Silvestre lhe acon-selhou, pois podes estar certa de quanto desejo servir-te, pelo muito que te amo. Resta-me abençoar-te como Pai que muito te ama. @ Monograma d’el-Rei D. João VI – Paço da Bemposta, 23 de Outubro de 1822.209

209 Carta publicada por Ângelo Pereira, sob indicação Col. do Au-tor, in ob. cit., pp. 377-378.

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As cautelosas palavras do rei, que saltam à vista, ga-nham maior peso, ainda, se levarmos em consideração a al-tura em que as profere. Viera de pronunciar o juramento da constituição de 1822, na cerimónia realizada nas Cortes, na sessão de 1 de Outubro, constituição cujas bases D. João VI jurou cumprir, sumariamente, mal desembarcou.210

210 Conhece-se o novo protocolo do cerimonial que envolvia e/ou daí em diante passou a envolver, a relação institucional, entre o que seriam as cortes ou parlamento. Não pudemos fugir à tentação de transcrever o relato daquele momento, onde divisámos, à luz do que de privado se conhece, acerca desta premente circunstância. Não po-demos também deixar de trazer à lembrança a dolorosa divisão dos membros da família real, onde avulta a figura, quase trágica, de D. Carlota Joaquina, enorme na sua determinação de recusar mudar de opinião política, opondo-se, à não menos corajosa, vontade do ma-rido e rei, o qual arcou sozinho com os riscos da mudança, crente no melhor, que dali para a frente, talvez adviesse para a nação e seu povo. Não temos nenhum escrúpulo em confessar a profunda convic-ção do quanto era sincero este rei, ao fazer um tal juramento, crente de que evitaria que corresse sangue e mais sofrimento aos portugue-ses, ao dar o sinal com o qual fechava, para sempre, um modo de governo e um sistema que vigorara por séculos, com os quais nasceu e medrou Portugal. A sua corajosa aceitação é digna do maior res-peito, tendo em mente aquela sua figura de gigante e menino, que encarna el-Rei D. João VI em cujo coração abrigava, a sensibilidade de uma criança. “…Às 11h e 20m uma salva de artilharia anunciou que SM se achava próximo do Paço das Cortes e um quarto de hora antes do ½ dia participou o Sr. Presidente [Francisco Manuel Trigoso de Aragão Morato, identificado como Sr. Trigoso, nos diários das sessões] ao soberano Congresso que el-Rei acabava de chegar; imediatamente propôs que a deputação saísse a esperá-lo ao fundo das escadas, o que assim se observou. Vinte e quatro minutos depois do ½ dia entrou el-Rei na sala, precedido dos oficiais-mores da sua casa, moços de câmara, corpo da patriarcal, oficiais-generais e muito grande comitiva, vindo a sua real pessoa rodeados dos senhores deputados que o haviam, por nomeação do congresso, saído a esperar. O Sr. Infante D. Miguel, com as etiquetas devidas à sua dignidade, foi conduzido à tribuna, que estava reservada às pessoas da família real e bem assim para as outras do corpo diplomático, concelho de

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Estado e senado da Câmara; os oficiais-mores da casa de SM e a Corte tomaram o lado esquerdo do trono e os ministros de Estado e os tribunais, o direito. Então se achava o soberano Congresso em pé e SM subiu ao trono, acompanhado da deputação e manifestando para ela e para toda a assembleia, os mais evidentes sinais de todo o regozijo, em que transbordava o seu real coração. Tomando assento na magnífica cadeira, que está sobre o trono, igualmente o tomaram o Sr. Presidente e deputados e logo SM leu o seguinte discurso: ‘Examinei, Senhores, a política da Monarquia, que, em nome de todos os habitantes do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algar-ve me foi oferecida, por parte dos seus legítimos representantes, reunidos nestas Cortes-Gerais, Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa e contemplei com escrupulosa atenção as con-dições deste novo Pacto Social; Colocado pelo Providência à frente de uma Nação briosa e magnânima; e convencido de que a vontade geral é a fonte e medida de todos os poderes políticos; é do meu dever identificar a minha vontade com o voto geral, assim como sempre entendi, que a Minha própria felicidade era essencialmente ligada com a prosperidade do Povo português. Fiel aos meus prin-cípios lisonjeio-me de haver oferecido à Nação, ainda nas circuns-tâncias mais difíceis, provas decisivas do amor que lhe consagro e da lealdade que convém à Minha própria dignidade. Os portu-gueses o reconhecem e é esta a recompensa mais digna dos meus desvelos, assim como o único termo da Minha ambição. Sendo pois o novo Pacto Social a expressão da vontade geral e o produto das vossas sábias meditações, acomodado à ilustração do século e cimentado sobre a reciprocidade de interesses e sentimentos que tornam a Minha causa inseparável da causa da Nação, Eu venho hoje, ao seio da representação nacional, aceitar a constituição, que acabais de fazer e firmar com o mais solene juramento a invio-lável promessa de a guardar e fazer guardar. Sim: representantes da heróica nação portuguesa, a vossa obra magnífica fruto de tão esclarecidos, como patrióticos esforços, será respeitada e mantida. Eu o juro pela lealdade e firmeza que me reconheceis. Esta sagrada promessa, tão espontânea como a deliberação que Me trouxe do novo Mundo ao berço da Monarquia para cooperar convosco nesta gloriosa empresa, não pode ter melhores garantias do que essa mes-ma firmeza, com que hei mantido as bases, que jurei e se manifesta em todos os actos, que assaz caracterizam de sinceras as minhas promessas e de puras as minhas intenções. Eu, Me felicito, tanto de

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A mera leitura da oração do juramento levará o leitor a reter duas ou três passagens do mesmo, pela força do seu teor, que as faz destacar da generalidade das ideias discor-ridas. É provável que alguns dos conceitos proferidos por D. João VI, lhe tenham sido ventilados ao ouvido, em mais de uma ocasião, propiciatória, aquisições que não podemos datar, ao certo, mas que vinham presumivelmente de longe, conhecendo-se, como se conhece, as inclinações de vários dos membros do seu conselho e ministros, que não escon-diam – nem D. João as ignorava – do perfilhamento das ten-dências políticas e de pertença, maçónico-liberal.211

merecer a confiança da Nação, como de haver chegado a este dia venturoso e duas vezes célebre nos fastos da História Portuguesa. Ela mostrará à posteridade o exemplo, talvez único, de uma Nação regenerada, sem perturbação da tranquilidade pública; e que o pri-meiro rei constitucional dos Portugueses, sabendo fazer-se digno da confiança dos Povos, também soube quanto é doce reinar sobre os seus corações. Tal é senhores, a glória a que aspiro e tais são os sinceros motivos, que Me determinam a aceita e jurar a política da Monarquia.’” (sublinhados nossos).211 O perfilhamento das ideias libero-revolucionárias era facto re-moto na corte, pela formação de correntes distintas dos membros ma-çónicos, conforme a orientação do seu rito, fosse anglo-saxónico ou francês. Vários servidores, próximos e/ou ministros de D. João VI, eram confessos maçons, perfilhadores, de qualquer uma das ditas cor-rentes, sendo legítimo supor que o rei, não tendo abraçado nenhuma delas, mostraria mais abertura à corrente inglesa, por razões de vária índole, mormente, a influência de Rodrigo de Sousa Coutinho, tal, como tinha sido a de Luís Pinto Balsemão, responsável pela pasta do ministério, diplomático. Não indo além, na deriva, que particu-larize indivíduos, inclusive os que acompanharam a corte, tanto na ida como no regresso do Brasil, em Lisboa prosseguiram acções e a ter papel activo no 1.º liberalismo. Lembraríamos dois: Silvestre Pi-nheiro Ferreira e António Araújo e Azevedo, sendo que, entre outros cargos, este último exerceu o de secretário-Estado da Marinha (1816-1817). Lembramos também que, a propósito de Araújo, são comenta-das as suas teorias, enquanto defensor da classe e linha de pensamen-to, maçónico-liberal, exposto numa sua carta de réplica a uma outra,

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Cruzam-se, portanto, naquele acto público do juramen-to real, palavras de um léxico novo, com outras de índole di-versa, de uma linguagem menos arrebatada, obviamente do agrado dos membros da assembleia constituinte, todos eles, confessos maçons, antes de serem liberais, assumidos. Eis que soaram ali, aos ouvidos da audiência, as fatais noções de pacto social, soberano-congresso e, naturalmente, vontade geral – como quem diz, popular – conceitos iluministas, cate-goricamente afirmados, numa única frase: pois o novo Pacto Social a expressão da vontade geral e o produto das vossas sábias meditações, acomodado à ilustração do século.

Se por um lado D. João mostra ter aprendido e assimi-lado a generosidade daquelas ideias filosóficas, por outro, não podia tê-las aceitado no íntimo, se tais ideias não fossem ao encontro ou não se coadunassem com o que verdadeiramen-te prezava, a fazer jus à sua educação e linhagem, enquanto indivíduo, preparado para servir, de acordo com o ideal das virtudes idealizadas e reunidas na dualidade trono-altar. Ao mesmo tempo e pelo que se conhece das atitudes públicas e privadas deste príncipe, não se pode negar o seu apego aos valores implícitos na dita máxima a qual espelha, adequada-mente, os sentimentos generosos do seu coração, sempre con-doído, enquanto seu modelo de acção, governativa.212

É este imago que assoma de forma nítida à mente de quem escuta a voz do rei, sem contaminação alheia, quando declara, na 1.ª pessoa:

esta do 3.º marquês de Penalva (7.º conde de Tarouca, D. Fernando Teles da Silva), onde rebate as ideias tradicionalistas-conservadoras, deste fidalgo, da mais antiga linhagem e nobreza, polémica que veio a lume em 1806-7, divulgada e comentada, a partir de Londres, pelo famoso José Liberato Freire, n’O Investigador, Vol. IX, pp. 685-695.212 Ideias e sentimentos que acompanham as atitudes de D. João VI plasmadas nos testemunhos publicados pela autora (conforme biblio-grafia).

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…Fiel aos meus princípios lisonjeio-me de haver oferecido à Nação, ainda nas circunstâncias mais difíceis, provas de-cisivas do amor, que lhe consagro e da lealdade que convém à Minha própria dignidade. E salientamos: circunstâncias difíceis e provas decisivas do amor que lhe consagro…

Assenta nesta base o entendimento da chamada de atenção de D. João VI, perante a assembleia, quando procla-ma o seu papel de cimentador dos ideais professados, pelos constituintes, reunidos, papel que assume como fundamen-tal para a boa consecução dos propósitos regeneradores, por eles intencionados, de forma ordeira e pacífica até ali – facto digno de realce – na medida, em que, em mais lugar nenhum se tinha visto um tal comportamento, popular, face aos de-sígnios de Regeneração, palavra de ordem importada do lé-xicon progressista e cara – como parecia – à circunspecta assembleia:

Ela mostrará à posteridade o exemplo, talvez único, de uma Nação regenerada, sem perturbação da tranquilidade pú-blica; e que o primeiro rei constitucional dos Portugueses, sabendo fazer-se digno da confiança dos Povos, também soube quanto é doce reinar sobre os seus corações.

Não deixaria de evocar o pressuposto – hoje desaten-dido, dado a força do hábito e do esquecimento – que ditava a sua conduta, ao aceitar a constituição que lhe era oferecida, de ser ele o soberano de todos os habitantes do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve. Por isso, lembra, que, a fim de cumprir com a vontade soberana, já da própria nação, é que jurava, conforme aquela sagrada promessa, tão espontânea como a deliberação que o trouxera do novo Mundo ao berço da Monarquia, para cooperar naquela gloriosa empresa, a qual não podia ter melhores garantias do que essa mesma firmeza, com que tinha mantido as bases, que jurara e se manifestava em todos os actos, que assaz caracterizavam

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de sinceras as suas promessas e de puras as suas in-tenções.

Quando acima sustentamos a linha de pensamento de D. João VI, que nos remete para a maneira pacífica e ordeira, com que se tinha difundido e acatado as deliberações revo-lucionárias, do sinédrio, em Agosto de 1820, não podemos esquecer que o rei o declarava – não obstante o calamidade que escondia uma tal aceitação – numa altura em que ainda não tinha entrado na ordem do dia os conflitos, logo postos a nu, pela própria dinâmica dos interesses em presença, su-bordinados e inteligíveis frutos que germinavam, entretanto, sob a batuta dos que a festejavam, à luz do individualismo, perfilhado.

Enfatiza o rei o mês de Outubro, aquele em que jurara no seu 1.º dia, a constituição que lhe era oferecida – pala-vra generosa que esconde a obrigação implícita de ter de a aceitar – mas que assinalava outro acontecimento, o qual, não explicita, claramente, mas a conhecia a audiência, sua promotora:

Eu, Me felicito, tanto de merecer a confiança da Nação, como de haver chegado a este dia venturoso e duas vezes célebre nos fastos da História Portuguesa…213

Ousando nós, ingenuamente, especular, iludindo-nos, sobre o que realmente se passava na mente de D. João VI, quando proferia tais palavras, admitimos, à primeira ideia, que o rei se referia à sagração do monumento de Mafra, que encerra a tríplice vertente de templo, convento e palácio, projecto de D. João V, fundado nas razões sobejas, que os estudiosos do tema descobrem, encerrado simbolicamente

213 O 1.º de Outubro de 1820 é o dia do juramento dos membros dos dois movimentos revolucionários, em conjunto, o do Porto em 20 de Agosto e o de Lisboa, em 15 de Setembro. V. José Acúrsio das Neves, Obras Completas, Ed. Afrontamento, Vol. 6, p. 139.

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nele e dão a saber. Era aquele o refúgio, onde D. João VI se comprazia, quanto mais não fosse, pelo usufruto do pacífico lugar, quando ali vinha buscar repouso. A assunção do sen-tido profundo da efeméride, dado àquela sagração, adveio--nos da leitura de uma das cartas da princesa da Beira, para o pai, na qual faz menção do significado da festa celebrativa, para a família real.214

… E eu cada dia tenho mais saudades de VM e hoje estou com bastantes de Mafra, pois me lembro que VM lá estará para assistir à função da Sagração.

Retomando a narrativa do acto de juramento é ela que nos dá conta da presença de um único membro da família real – o infante D. Miguel – no séquito do rei, junto com os membros da nobreza, do particular serviço régio e casa. Estava em causa dar cobertura e amplitude a um aconteci-mento cuja repercussão não é demais enfatizar, dado o seu impacto. Caberá aos estudiosos desta matéria avaliar do seu proveito, mas nós, de acordo com o ponto de vista traçado, não podemos deixar de realçar, em vez da harmonia, a pro-funda divisão, que se instalou na sociedade portuguesa ab initio no seio da nobreza, membros da casa e família real.

É sem estranheza, portanto, que nos deparamos com o relato da sessão de 28 de Dezembro de 1822, na parte con-cernente à ordem do dia, onde é reiterada a nota, relativa aos projectos de decreto, nomeadamente e em 1.º lugar: Do Sr. Franzini para que pelo Tesouro Nacional se mande dar à Senhora D. Carlota Joaquina, Esposa d’el-Rei, o Senhor

214 Carta de Madrid, de 22.10.1822. Publicada por Ângelo Pereira, sob indicação Col. do Autor, in ob. cit. p. 410. Pode ser que nos tenha escapado, mas não achámos nenhuma notícia, que tivesse vindo a público, no Diário do Governo [substituto da Gazeta de Lisboa], de qualquer celebração comemorativa e/ou deslocação da corte à vila de Mafra, naquela altura. Todavia, cremos que a omissão não quer dizer que não se tivesse realizado.

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D. João VI, uma suficiente pensão para a sua subsistência. Admitido à discussão.215

Já não temos aqui a rainha, mas, tão-somente, a es-posa do rei, resposta mal-educada e profundamente discri-cionária dos deputados, em relação à recusa de D. Carlota Joaquina de jurar a constituição revolucionária, na qual ela via, com razão, o fim de um sistema, substituído por outro, que nenhuma legitimidade validava, não obstante a pretensa origem nacional do mesmo, na opinião formulada pelos seus promotores. Fixado que foi, um dia, para o juramento da rainha, estabelecia-se também o limite, pelo qual, ela per-deria todos os seus direitos e acarretaria para si, o desterro, se permanecesse naquela determinação. Determinada afinal, como se manteve sempre, D. Carlota Joaquina, assistiu-se no período dos dois meses seguintes ao do acto de juramen-to de D. João VI, ao clímax do drama – diríamos – de uma mulher só, vencida, mas não convencida.216

Indagámos acerca desta questão – dolorosa e premente – a existência de apontamento ou carta, que denuncie a reac-ção das filhas do casal real, face à resolução dos parlamenta-res. Falamos, nomeadamente, das duas infantas em Madrid, nesta altura, a infanta D. Maria Francisca de Assis e a princesa

215 Diário do Governo de 30.12.1822. 216 Muito haveria a dissecar, sobre a matéria, que se oferece, pre-mente e apetecível. Porém, é de tal monta a importância desta ques-tão, que, não só não pretendemos, como não ousamos, entrar nela. Contudo, foi abordada por alguém que foi, no nosso entender, quem melhor compreendeu e dissertou mais modernamente, acerca da figu-ra trágica e corajosa de D. Carlota Joaquina de Borbón: António Sar-dinha. Ao Princípio era o Verbo – D. Carlota Joaquina. Ed. Restaura-ção, Lisboa, s/d. Inspirou-se este autor, em muito, nos escritos de José Acúrsio das Neves cuja figura e obra dispensam pobres encómios. Vd. Cartas de um português aos seus concidadãos sobre diferentes objectos de utilidade geral e individual – Escritos diversos, Obras Completas, Vol. 6, Ed. Afrontamento.

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D. Maria Teresa. O que topámos foi o mutismo quase abso-luto da parte da princesa da Beira, mas não da irmã. Ora esta discrepância de atitude, face ao problema, parece-nos não ser verosímil. Donde concluímos, não se ter achado nada do que buscávamos, não quer dizer que não tenha existido.

Como se entende, o correio que veiculava a correspon-dência, entre as duas cortes, era pessoa da maior confiança. Sabiam, por conseguinte, os interlocutores que as missivas estavam sujeitas a espionagem e desvio, consoante a delica-deza do assunto, tal como das circunstâncias, pelo que, uma vez na mão dos destinatários em Lisboa ou Madrid, seriam destruídas, após a sua leitura.217

De facto, não achámos nenhuma carta da princesa da Beira, para a mãe, abordando a situação, nomeadamente, o tratamento de que era alvo a rainha, pela assembleia cons-tituinte, embora se refira a isso, com sofrimento, numa para o pai.

…Eu sempre passo incomodada de nervos, o que atribuo às saudades que sempre tenho de VM. e agora depois que aí sucedeu o caso de minha Mãe fiquei muito pior…218

Já da parte da irmã, a infanta D. Maria Francisca, o caso foi enfrentado mais abertamente. Não podendo sa-

217 Dão-nos conta disso, amiúde, as pequenas notas, acrescentadas pelo rei, nos sobrescritos. Por outro lado, algumas cartas nunca che-garam ao seu destino, como percebemos, por um reparo da princesa da Beira: “P.S. Agora sei que se perdeu a 1.ª carta que eu escrevi a VM datada de 24 de Setembro [de 1822] e VM deveria receber por mão de quem VM tem recebido outras e me aborrece muito que se perdesse, pois era muito circunstanciada em quanto a negócios meus, particulares”. Carta de Madrid, de 15.10.1822. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 89. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., pp. 409-410. 218 Carta de Madrid de 7.1.1823, Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 112. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 424.

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ber nunca ao certo quantas cartas terá escrito esta infanta à mãe, desde Madrid, versando tal matéria, há notícia de pelo menos uma, tratando, particularmente, daquela melindrosa questão, afinal de contas da maior gravidade, sendo um ul-traje à dignidade da pessoa da rainha. Assinalamos, todavia, o grande respeito da parte da infanta, na maneira como abor-da a questão, evitando melindrar a mãe, na circunstância, desafiadora, que esta atravessava. Também esse pormenor merece ser realçado, por falar mais alto acerca das condutas, tanto da filha como da mãe, especificamente, tratando-se de uma rainha e não de uma mãe, simplesmente. 219

Senhora – Minha Mãe e minha Senhora do meu maior res-peito e amor, não escrevi logo como devia a VM, por temor de ser molesta; porém, agora, que VM já estará mais des-cansada de tantas incomodidades, o faço, para manifestar a VM o quanto tenho sentido todos os desacatos que se têm feito a VM, ao mesmo tempo que eles fazem com que VM apareça aos olhos de toda a Europa, cheia de valor e de

219 Perante a impossibilidade de admitir a falta de comunicação de parte a parte, podemos concluir, que as cartas foram entregues discretamente e logo destruídas. Uma das pessoas de confiança que costumava ser mediador/portador é Joaquim Severino Gomes, que a infanta D. Maria Francisca de Assis identifica e recomenda ao pai: “O portador desta é Joaquim Severino Gomes; ele é um vassalo fiel de VM e tem feito os maiores serviços possíveis na justa causa, para que VM torne a ficar como é devido; ele, juntamente com António de Saldanha [conde de Porto Santo] não tem perdido nenhuma ocasião em que possam ser úteis ao real serviço de VM, pois, até estão sofren-do muito por este motivo, sem serem levados do interesse e só sim de um amor e respeito, sem limite, à pessoa de VM…”. Carta de Madrid, de 6.11.1822. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-50, nº 40. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 499. Nota: Joaquim Severino Go-mes era secretário da Legação Portuguesa em Madrid, notícia que colhemos, relativa ao ano de 1816, in Visconde de Santarém, Quadro Elementar, &&, T. II, p. 330. A figura e acção de J. Severino Gomes emergem em diversas situações cedo, relativas ao período que trata-mos e continuará a emergir, já depois da morte de D. João VI.

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heroísmo não conhecido até agora. Aceite VM, muitas sau-dades do meu homem, ele, os meus filhos e eu, estamos bons graças a Deus. Resta-me pedir a VM que se digne deitar a sua bênção a esta que se preza de ser de VM, Filha muito amante e obediente @ Maria. Madrid, 22.12.1822.220

Nesta fase comentar a questão é entrar pela desventura do casal, adentro, drama que estava a poucos anos do desen-lace final, após tantos episódios de turbulência, muita dela, causada pelas razões de ordem política, que a protagonista trazia à boca de cena, sem dúvida, D. Carlota Joaquina. Esta divisão conjugal partiu, desde cedo, da diferença profunda de personalidades dos esposos, é certo e encontrou terreno para medrar nas circunstâncias que se ofereceram, curiosa-mente, dimanadas da França revolucionária e imperialista cujo ideário, sem excepção, devassou a Europa inteira e fru-tificou, igualmente, tanto em Espanha como em Portugal.

Ainda que uma tal asserção pareça excessiva, deve-mos afirmar que, naquele contexto, as ambições políticas de Espanha causaram danos de monta no ânimo da princesa e futura rainha, D. Carlota Joaquina, tendo contribuído para isso, o grande influxo que exerceu sobre ela a animadversão antiga da mãe, D. Maria Luísa de Parma, em relação à corte de Lisboa. Tudo lhe era motivo e razão suficiente, para esta rainha atiçar ódios, malquerenças e mal-entendidos, à custa de interesses políticos, que vinham de trás.221

D. Carlota Joaquina tinha criado à volta da sua ima-gem, reflexos distorcidos, perturbadores da sua real digni-dade, agora, reavivados, numa época de acirrada ideologia

220 Biblioteca da Ajuda. BA – 54-IX-50, nº 43. Publicada por Ânge-lo Pereira, in ob. cit., p. 500.221 A este respeito, v. correspondência publicada pela autora, in La Menina – Retrato de Dona Carlota Joaquina nas Cartas Familiares: Viagem ao Interior da Corte Portuguesa (1785-1790), Chiado Edito-ra, 2011.

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revolucionária, sendo-lhe difícil, pela memória do passado, alcançar a boa vontade apaziguadora do marido e rei, sozi-nho, também ele e a braços com dilemas de poderosa índole, que demandavam do monarca uma energia que se esgotava, a cada dia, não tanto por causa da idade, mas, da doença que o minava, a olhos vistos.222

Chegados aqui, depois do juramento de D. João VI, perante a assembleia constituinte, ver-se-á como foi con-frontado com o dilema da recusa da rainha de jurar a mesma constituição, a qual ele vinha de aceitar. Passado o prazo, juridicamente dado a D. Carlota Joaquina, que fechava pou-co tempo depois do acto público régio, eis que é chamada a responder a rainha, que se mostraria à altura da sua demar-cada vontade, opondo-se a tudo o que se queria dela, que era consagrar um facto a que se manteria firme e determinada opositora, contra toda a expectativa dos promotores.

A par das notas e decretos oficiais, aos quais D. Carlo-ta Joaquina respondeu de maneira oficiosa, como convinha, dirigiu ao marido e rei uma missiva, a todos os títulos excep-cional, pelo vigor do seu conteúdo, apelativo e resgatador da sua razão. De tal modo vigorosa que, alguns meses depois da discussão da matéria, em cortes, estas, para acharem uma maneira airosa de se sair da espinhosa questão, sem perder a face, os membros do governo pelo seu porta-voz, fizeram divulgar pela imprensa, que a dita missiva era apócrifa. Não nos ocuparemos a desmentir tal afirmação, por ser desne-cessário, visto outros, melhor do que nós, já o terem feito.223

222 Se não tivéssemos outras fontes, bastaria atentar no conteúdo das cartas das infantas, evidenciando todas elas, a sua grande preocu-pação pela saúde do pai, facto, que não é mera retórica. A saúde de D. João VI agravara-se, substancialmente e no fim de 1822 são constan-tes as indagações das filhas, concernentes ao seu estado.223 Tomou à sua conta, reflectir sobre esta questão, António Sar-dinha, que reproduz a carta de D. Carlota Joaquina, escrita por ela em cima do ultrajante momento, depois de ter sido intimada, pelos

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ministros, portadores daquela intimação. Baseia-se o autor no escrito coevo de Acúrsio das Neves (in Cartas de um português aos seus concidadãos), sendo fiel à rainha e defensor, diante da assembleia, dos direitos dela, naquela qualidade. Vejamos a missiva que D. Car-lota Joaquina dirigiu a D. João VI, em resposta à intimação data-da de 22.11.1822: Senhor – Recebi esta noite pela mão dos vossos ministros, um decreto, para deixar o vosso reino. É pois para me mandar desterrada que VM me obriga a descer do trono, a que me chamou: de todo o meu coração vos perdoo e me compadeço de VM. Todo o meu desprezo ficará reservado para os que vos rodeiam e que vos enganam. Na terra do desterro, eu serei mais livre que VM em vosso palácio. Eu levo a minha liberdade; o meu coração não está escravizado nem jamais se curvou diante dos altivos súbditos que têm usado impor leis a VM e que querem forçar minha consciência a dar um juramento que ele desaprova. Eu nunca acedi às suas amea-ças. Obedeço unicamente à voz do céu, que diz que, se o tempo da minha grandeza passou, o da minha glória é chegado, porque de mim se dirá: ‘A rainha guardou inviolável a dignidade do diadema; não deixou manchar-se o seu esplendor e quando testas coroadas, que empunhavam o ceptro e a espada sucumbiram, ela se manteve firme e impávida. Como esposa submissa eu vos obedecerei, Senhor, mas obedecerei unicamente a VM e só a VM direi que o meu padecimento e o rigor da estação tornam no momento actual impossível a minha partida. Ainda não exigiram de vós o decreto da minha morte. Em breve partirei; mas aonde dirigirei meus passos para achar um asilo sossegado? A minha pátria, como a vossa, veio a ser vítima do espí-rito da revolução. Meu irmão, como VM é um cativo coroado e em vão sua jovem esposa [D. Maria Josefa Amália] requer o privilégio de se lamentar comigo em algum pio retiro. VM me não recusará a companhia das minhas filhas. Entre as leis que vos impõem, nenhu-ma há que separe os filhos de sua mãe e ainda que os meus direitos de rainha não sejam reconhecidos, os de mãe serão respeitados. Ao aproximar-se a primavera [do ano de 1823], deixarei o vosso reino, a terra onde reinei e onde fiz algum bem. Irei e participarei dos perigos de meu irmão. Eu lhe direi: Não puderam dobrar a minha resolu-ção; estou em desterro, mas a minha consciência está pura, pois me lembro do sangue que corre nas minhas veias. Adeus Senhor; eu vos deixo idoso e enfermo sobre um trono vacilante. Ao separar-me de VM é grande a minha mágoa. Vosso filho [príncipe D. Pedro] não está convosco e os malévolos põem entre vós uma barreira maior que

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Os ofendidos resolveram, então, recorrer à lei que ti-nham redigido e confrontaram, alicerçados nela, quem ou-sava retirar-lhes a legitimidade, que buscavam ter, junto da nação. Enfim, uma nódoa contra a pureza dos seus actos re-volucionários, destinada a maculá-los, à posteridade. A vin-gança liberal vinha a caminho e preparava-se o terreno para o acto seguinte.224

o mar. Pende de vossas cãs uma coroa maculada. Ah! Queira aquele Senhor que reina sobre os reis vigiar sobre VM e confundir vossos inimigos. Onde quer que existir a esposa que vós desterrais, há-de orar por VM! Ela pedirá a Deus vos conceda larga vida e ao país de que é lançada fora, felicidade e paz – @ A Rainha. Transcrito por A. Sardinha, in ob. cit., pp. 327-328. 224 Simão da Luz Soriano recorda este momento – para ele, de reac-ção contra o movimento liberal até ali triunfante – nesta sua resenha: “O primeiro rompimento que, por parte dos realistas [denominados absolutistas, posteriormente], apareceu em público, foi o que a rainha D. Carlota Joaquina manifestou, quando, pelo ministro do reino [Fili-pe Ferreira de Araújo e Castro, coadjuvado pelos ministros Silvestre Pinheiro Ferreira, dos Estrangeiros e Inácio da Costa Quintela, da Marinha] foi intimada para jurar a constituição, segundo, por lei, o determinara o congresso, para com todas as autoridades, sob pena de perderem os direitos de cidadãos e a de serem mandados sair para fora do reino todos os que assim o não fizessem. A resposta que a isto deu a rainha foi a de que não jurava, resolução que se participou às cortes, no dia 4 de Novembro [de 1822]. A isto seguiu-se ordenar el-Rei, por decreto do mesmo dia 4, que a rainha sua esposa se reco-lhesse à quinta do Ramalhão, em razão da alegação que fizera, das graves moléstias que padecia e do grande perigo a que exporiam a sua vida, quando, porventura, fosse obrigada a fazer viagem na estação invernosa que, por então, corria, alegação a que os médicos da real câmara deram por verdadeira, mandados, como foram, examinar a doente. Instada como a rainha novamente foi, no dia 22 do citado mês de Novembro, para que jurasse a constituição, por mais outra vez, persistiu firme, na sua negativa, dizendo que assim o havia já partici-pado a el-Rei. Ouvido sobre este ponto o conselho de Estado, foi este do parecer que se recorresse às cortes, por não ser claro o sentido da lei nem ela poder ser aplicada, senão pelo poder judicial.” In História da Guerra Civil e do Estabelecimento do Governo Parlamentar em

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Todavia, o contraciclo, político-revolucionário, agora, em curso e atrás apontado, penetrava o reino vizinho e no ambiente da corte de Espanha, eco dos ventos, que sopra-vam do interior da Europa – leia-se França de Luís XVIII – os quais, se anunciavam encorajadores, permitiram à infanta D. Maria Francisca de Assis ter esperança numa reviravol-ta, quanto ao vilipêndio que atingira a mãe, confinada no Ramalhão, ao mesmo tempo que lhe afiançava o reconhe-cimento do seu heróico gesto, único, pela forma corajosa e frontal como ela, D. Carlota Joaquina, afrontara o inimigo, não se deixando intimidar. Com tal determinação, faria de si exemplo para a Europa rendida, garantia à mãe, a infanta.

…Ao mesmo tempo que eles fazem com que VM apareça aos olhos de toda a Europa, cheia de valor e de heroísmo não conhecido até agora… 225

Portugal & (1777-1834), 3.ª Época, T. II, P. I, Imprensa Nacional, Lisboa, 1882; pp. 92-93. 225 Carta de Madrid, de 22.12.1822 de D. Maria Francisca para a mãe, inserta no corpo do texto.

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Para Espanha, outra vez!

A carta que a rainha D. Carlota Joaquina escreveu a D. João VI, oferece matéria bastante para reflectir ainda hoje e – ousaríamos afirmar – mais hoje, do que então, pelo sen-tido que promete, face à reserva de experiência acumulada, acerca das errâncias político-ideológicas, postas em marcha desde então, marcha que prossegue, a fim de levar a huma-nidade a alcançar a sua utopia.

O ignominioso ultimato falaria mais – se quisermos escutar a voz dos interlocutores – do remetente do que do destinatário. Porque, enfim, do destinatário (destina-tária, melhor dizendo) já se sabe e disse, quase tudo, que inflame e incendeie a sua memória, falando da sua per-sonalidade e vida. O mesmo acerca de quem o emitiu, talvez seja arriscado pronunciá-lo, por isso, não se disse quase nada. São parte do ninho onde foi gerado e partiu o sistema que vigora, com as melhorias que vêm sendo acrescentadas, pelos novos mestres-filósofos do nosso descontentamento.

Ora, quais eram as razões plausíveis, que abrigavam a rainha na sua resposta? As razões plausíveis, segundo o discurso liberal, repousam nos atropelos da lei, dimanada da dita assembleia, a qual preestabelece preceitos, onde entram prazos limite para a fazer cumprir. Atropelo é o mínimo que se pode dizer dos arremedos da lei inventada – na opinião de quem nos serve de guia pelos meandros deste entendimen-to – por uma das mentes da facção que a impôs, depois de cogitar a maneira de obrigar a real-consorte a jurar a consti-tuição, juramento, do qual estava excluída, à partida, vistos

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os bons motivos apontados na análise, altamente esclarece-dora, acerca das manigâncias gizadas pela dita lei.226

O prazo preestabelecido, como já foi mencionado, de-finia a partir de quando e quando, é que a justiça aplicaria a pena. E a pena prevista, era o desterro, além da exclusão

226 Falamos em nome de José Acúrsio das Neves, que desmonta o problema com lucidez, perante a imposição feita a D. Carlota Joaqui-na de deixar o reino, por causa de se recusar a jurar a constituição. Na verdade, a lei que a condenava não era objectiva nem quanto à sua pessoa em particular nem às mulheres, em geral, escreve o autor acima: “Ninguém se lembrava de obrigar as mulheres ao juramento, quando um deputado se levantou – cuja voz mui poucas vezes se tinha ouvido no congresso – e propôs que também fossem obrigadas a jurar, quando possuíssem bens das Ordens Militares ou da Coroa; e a sua lembrança foi aprovada. Bem longe estaria ele de prever as consequências que haviam de resultar da fatal proposta; mas vede como de tão pequena faísca se levantou tão grande incêndio! Supo-nhamos, por alguns momentos, que SM tinha descido do seu trono, para a considerarmos em tábua rasa com o mais povo: porventura não é óbvio, claro e evidente, que a lei, falando das mulheres, só podia entender-se das que fossem chefes de família? Ela não compreendeu os menores de 25 anos, porque são regidos por um curador; e contu-do, os menores podem ser chefes de família e em passando os 14 anos figuram com o curador em todos os actos públicos. E como havia de compreender as mulheres casadas, que não são chefes de família, não figuram nos actos públicos e são em tudo representadas pelos seus maridos? A que vinha o juramento da mulher, tendo jurado o marido? Porém deixemos hipóteses que não podem conceber-se sem indignidade. Todos nós sabemos o predomínio que a facção tinha no congresso se não tivesse dissolvido e lhe fosse proposta a questão, talvez que a facção não conseguisse o decidir-se, que debaixo daquela simples expressão = as mulheres = se compreendia a Augusta Con-sorte do Soberano, participante com ele de todas as honras e prerro-gativas do Trono. Livre porém de constrangimentos e embaraços, a facção decidiu que sim, porque no sistema dos revolucionários, como disse Burke, um Rei não é senão um homem, uma rainha senão uma mulher, uma mulher senão um animal e não de ordem muito elevada. Carta XXI, in ob. cit., p. 151.

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dos direitos ditos de cidadã. Tinha a rainha até ao dia 3 de Dezembro de 1822 – data estabelecida à revelia do próprio estatuído, como demonstra o crítico – para ela se decidir a jurar o documento, findo o qual, prazo, seria obrigada a dei-xar o reino, no caso de não o fazer. Aparentemente, tudo estava dentro do preceito legal, se não fora, como foi, atro-pelado o preceito, pela antecipação da notificação, tendo em vista não falhar a data balizada, querendo, ao mesmo tempo, os constituintes – como facilmente se depreende – colher, na opinião pública, o crédito político da humilhação, por eles infligida, à rainha.227

227 “A lei no art.º 11 concedia para o juramento o prazo de um mês, contado desde o dia preciso no art.º 1.º, isto é, desde 3 de Novembro; logo, nenhum procedimento tinha lugar contra SM, ainda que fosse compreendida na sua disposição, senão passado o dia 4 de Dezembro; mas a impaciência, a sofreguidão, era grande demais, para se esperar o complemento do prazo. Começam logo a instar e a ameaçar a SM para que jurasse, porque segundo a sua conta, devia infalivelmente sair do território português no dia 4 de Dezembro, se não tivesse ju-rado.” A. das Neves. In obra supracitada. Recuando na exposição do raciocínio, acima expresso, tornemos ao mesmo autor: “As Cortes fizeram a lei a 11 de Outubro [1822], em que declararam as pessoas que deviam jurar a constituição e também nela se não acha uma só pa-lavra a respeito de SM, a Rainha (…). Nenhuma deputação se enviou à Rainha Nossa Senhora, nenhum convite se lhe fez, nenhuma con-templação se houve para com ela (…). O congresso tinha-se dissolvi-do a 4 de Novembro, para dar lugar ao outro, que devia suceder-lhe; e a facção, vendo-se livre de algum constrangimento, que lhe faziam os deputados que não tinham perdido a honra e a probidade, apro-veitou este intervalo para descarregar um daqueles golpes decisivos, que umas vezes firmam e outras derrubam o poder das facções. Já se tinha feito o primeiro ensaio no Cardeal Patriarca e no Bispo de Olba; queria-se agora uma vítima de ordem superior na hierarquia política: uma Rainha, para fundar sobre a sua ruína o trono da revolução. Ne-nhum meio, mais próprio, podiam excogitar que o de irritarem o seu alto carácter, obrigando-a a jurar confundida com a massa comum das outras mulheres.” Idem. Ibidem. Notemos a este propósito, então, quais foram os trâmites da resolução que instituiu uma deputação,

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Expostos os trâmites que o processo vexatório segui-ria, a rainha adiantou-se-lhes, sugerindo a el-Rei que lhe fa-cultasse a saída e pedindo respeito pelos motivos que ela apresentava como dificuldade para o imediato cumprimento do que lhe era ordenado, sendo Cádis – como pretendia – o destino escolhido para o seu exílio.228

enviada a D. Carlota Joaquina no dia 22 de Novembro, baseado na análise do citado autor. “Começou o processo pela seguinte nota, a que chamaram verbal, por ter sido apresentada a SM a Rainha, por três dos ministros de Estado e lida por um deles. ‘Senhora. Estando próximo a findar o prazo marcado pela lei de 11 de Outubro p.p. às pessoas obrigadas a jurar a constituição política da Monarquia, que el-Rei jurou solenemente e não tendo VM ainda prestado o seu ju-ramento, como cumpria, el-Rei nos manda à presença de VM, para fazermos saber mui respeitosamente que, no caso, não esperado, de VM não querer jurar até ao dia 3 de Dezembro p.s., como a lei de-termina, el-Rei e os seus ministros se acharão na necessidade de pôr em execução a referida lei, que faz perder a qualidade de cidadão e sair imediatamente do reino a todo aquele que, sendo obrigado a jurar a constituição política da Monarquia, recusar cumprir tão religioso dever. Os Ministros encarregados por SM desta mensagem deixam à sublime consideração de VM calcular os inconvenientes que resulta-riam para VM no caso que VM recusasse cumprir com tão religioso dever. Palácio de Queluz, 22 de Novembro de 1822 = Filipe Ferreira de Araújo e Castro, ministro-secretário dos Negócios do Reino; Sil-vestre Pinheiro Ferreira, ministro-secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros; Inácio da Costa Quintela, ministro-secretário de Estado dos Negócios da Marinha.” In ob. cit., pp. 152-153. Nota: J. Acúr-sio das Neves acrescenta um pormenor, que achamos digno de ser realçado: “Consta que depois de acabado aquele acto, o Ministro da Marinha [Inácio da Costa Quintela] ajoelhando aos Reais Pés de Sua Majestade, os banhara com as suas lágrimas”. 228 Estava-se, entretanto, a 27 de Novembro. Acúrsio das Neves dá-nos em breves traços, o relato dos acontecimentos, verificados depois de 22 de Novembro. Percebe-se e sabe-se, de resto, que D. João VI, doente – como se vê da leitura das cartas das filhas – se afastara para a sua quinta do Alfeite, na margem Sul e naquele sítio é que teve lugar a reunião do conselho de Estado, que deliberou pôr em execução o previsto: a expulsão de D. Carlota Joaquina. É do dia seguinte a carta,

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Neste ponto diríamos que, se houvesse de eleger um evento, de particular significado, dentre os muitos que avivam a memória, deste caso, ainda hoje, através dos testemunhos que nos chegam da época, não hesitaríamos em nomear a carta de D. Carlota Joaquina para D. João VI, quando conheceu a sentença que lhe era imposta, pela lei daquele turbulento congresso, do-cumento cuja leitura nos dá a ver o cenário, donde partimos e nos desviámos, tantas são as vias que ele nos propõe, deslindar.

Nessa carta reside toda a força que costuma ser re-conhecida na rainha, que nasceu infanta de Espanha. De tal forma é poderosa na força que imprime ao conteúdo que atemorizava todos aqueles, contra quem se levantou, com um rotundo não, acaso fosse tornado público, então:

…Que eu já fiz a minha solene e formal declaração de que não jurava e agora torno a ratificar…229

em que a rainha responde, oficialmente, a D. João VI (a anterior tinha carácter privado, como se disse) e é nesta que lemos a sua intenção de ir para Cádis: “Ontem, pelas 10 h da noite recebi por mão do marquês de Valada a intimação que Filipe Ferreira me fez da parte de el-Rei, à qual devo responder o seguinte: 1.º Que eu já fiz a minha solene e formal declaração de que não jurava; e agora torno a ratificá-la; 2.º Que estou pronta a executar o que el-Rei me manda em virtude da lei, porém, sou obrigada a representar que eu sou muito doente, como todos sabem e ainda mais do que se pensa e é do direito natural a conservação da vida. Estou certa que nem el-Rei nem o Governo não hão-de querer que eu vá morrer por esses caminhos, pois estamos no rigor do Inverno e não me atrevo a empreender a jornada sem passar a força dele; e para mostrar a todos que eu não entro absolutamente em coisa nenhuma, estou pronta para me retirar para a minha quinta do Ramalhão com as minhas duas filhas (as quais sempre hão-se ser inseparáveis de mim) até que o tempo permita principiar a minha jornada para fora do reino. A minha tenção é ir para Cádis por mar, por ser assim mais suave, atendendo à falta de saúde e de forças que tenho. Palácio de Queluz, em 28 de Novembro de 1822.” J. Acúrsio das Neves, in ob. cit., p. 154. 229 Carta de Queluz, de 28.11.1822.

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Duvidaríamos até – dada a força das palavras – que fosse da lavra de D. Carlota Joaquina. Porém, cada vez que se nos depara qualquer, outro, apontamento dela, por breve que seja, topamos sempre com o mesmo carismático vigor do seu antiliberalismo. Ao resistir aos algozes, que se mo-viam contra ela, violentadores da sua consciência e coerci-vos, a rainha dá mostras de uma enorme clarividência – fruto talvez da experiência aprendida do exemplo alheio – que antecipa em anos, senão séculos, a desmistificação do bené-fico efeito pretendido pela radicalização ideológica, digna de inquisidores, ao autointitular-se pensadores da nossa li-berdade.

Dono de um código de conduta humanista e cristão julgou o deputado José Acúrsio das Neves, eleito pela Bei-ra à constituinte, que devia partilhar da opinião da rainha, defendendo-a do vilipêndio e decidiu tomar sobre si as do-res, dela. Não é possível, por outro lado, saber até que ponto estava o deputado a par das dissensões do casal-real, através de confidência privada, que lhe chegasse, para além do que constava. Todavia, sem nunca insultar a pessoa d’el-Rei – pelo contrário – resolveu avocar sozinho, contra a esmaga-dora maioria da assembleia, a defesa judicial de D. Carlota Joaquina, duplamente ultrajada, na medida em que ninguém ousara sequer dar voz por ela e nem o marido o podia fazer, porque também a ele, na qualidade de reinante, tinha sido subtraída a capacidade de a apoiar, sem perjúrio.230

230 Cartas de um Português aos seus Concidadãos…, in ob. cit., pp. 173-190. A bem articulada reflexão de J. Acúrsio das Neves, excede o conteúdo estrito das páginas mencionadas, uma vez que, a defesa da honra e direitos de D. Carlota Joaquina é por ele enquadrada num cenário, digno de ser avaliado, todo ele, ainda que não seja o único a apostar naquela atitude moral, mas foi, indubitavelmente, o primeiro a dar a cara e a sofrer as consequências da sua conduta. Não haviam de lhe perdoar os sequazes da revolução, aqui ajuizados generica-mente, pelo seu comportamento, vindo a saciar mais tarde na morte de Acúrsio das Neves, a sanha persecutória antiga, contra ele. Não

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O que sabemos é através da confissão de José Acúrsio das Neves, na memória que dá testemunho de quando subiu ao pódio palco da assembleia tribunícia e da felicidade que experienciou pela ocasião, que lhe tinha sido oferecida pela força do destino – como declara – de poder lavar a honra de uma vítima e de certo modo a sua:

Eu te saúdo dia memorável! tu assinalaste no meio dos tem-pos uma época que não interessa aos outros homens, porém, a mais importante da minha vida particular, porque abriste a carreira dos meus dias.231

Justamente, no dia comemorativo da sua efeméride natalícia, é que se deparara ao causídico a oportunidade, inesperada, de entrar em cena, para defender tão elevada causa:

Volvendo os anos marcaste outra de maior transcendência, que eu reputo a principal, da minha vida pública! A sua lembrança me será sempre cruel, pela violenta e arriscada posição em que me colocou frente a frente com a facção; porém, até ao momento em que eu pela última vez fechar os olhos, hei-de respeitá-la religiosamente, pela grandeza do seu objecto, pelos seus importantíssimos resultados e pela glória que dela me proveio” – afirma – pedindo perdão nes-te passo, pela hipotética imagem de vaidade que dava de si ao leitor, desculpando-se, porque, também ele, era humano.

A autojustificação dispensa palavras, mas não deixa-remos de sublinhar o trecho, que patenteia a harmonia entre a causa que o autor estava em vias de defender e o sentido

iremos intentar resumir o que ele, sagaz e belamente, escreveu. O leitor ganhará muito – em nosso entender – se dedicar algum tempo à leitura do dito libelo, breve, mas nem por isso, menor, para o rosário dos direitos humanos, tão caros aos progressismos cuja conduta é mil vezes mais, indigna, do que a dos que eles maldizem. 231 Vd. J. A. das Neves, Carta XXV, in ob. cit., p. 173.

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vasto que impendia dela e além dela, causa, que ele tomava como sua, em prol dos princípios da liberdade, da justiça, do bem e da verdade, apostado em ir contra a arrogância e prepotência de agitadores, açuladores das massas.

…Pela grandeza do seu objecto, pelos seus importantíssi-mos resultados e pela glória que dela me proveio. 232

Um dos pontos fortes da argumentação que José Acúr-sio das Neves desenvolve, é a doença de D. Carlota Joaqui-na, não que a rainha o usasse falaciosamente, visto ser pú-blico que ela padecia de alguma patologia não especificada, com sinais de cronicidade, da qual se ressentira no clima brasileiro, denotando ser do tipo brônquico-pulmonar.233

Como se afere pela nota oficial que respondeu à inti-mação de 27.11.1822, D. Carlota Joaquina declarou dispo-sição de sair do reino, avançando que esperava fazê-lo em altura menos prejudicial ao seu estado de saúde.

Que estou pronta para executar o que el-Rei me mandar em virtude da lei, porém, sou obrigada a representar que eu sou muito doente e ainda mais do que se pensa e é de direito natural a conservação da vida. Estou bem certa que el-Rei nem o governo não hão-de querer que eu vá morrer por es-ses caminhos, pois estamos no rigor do Inverno e não me atrevo a empreender a jornada sem passar a força dele…234

Estamos tão certos como o estava o causídico de que, apesar da sua revolta contra D. João VI, D. Carlota Joaquina achava que o rei aceitara de boamente o novo sistema, que lhe era imposto, crendo que o marido era refém da situação

232 Idem.233 Há menção recorrente aos padecimentos de D. Carlota Joaquina, nos trópicos, referidos pelos diplomatas espanhóis, corroborado na correspondência privada familiar e também de Luís Marrocos.234 J. A. das Neves, in ob. cit., p. 154.

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e que não tinha forma de evitar a coerção, mal desembarcara em Lisboa. Não vamos, portanto, tão longe quanto os detra-tores do monarca, os quais, por contumácia ou pura maledi-cência, o fazem simples joguete nas mãos dos facciosos, não apoiando o seu induzimento.235

D. João VI tinha em vista algo maior e menos percep-tível, ainda hoje, adoptando uma atitude contemporizado-ra, como forma de poder alcançar aquilo que era mais caro: manter a paz a todo o custo até ao restabelecimento do equi-líbrio, perdido. Este só seria viável, quando menos agita-dos fossem os dias, que acreditava, haviam de vir. Com isto sempre em mente, não só arriscou como sacrificou muito, D. João VI! Compreendemos melhor esta tese, se tivermos presente o diálogo, apaziguador, que o rei mantém com as fi-lhas. Desconhecedor do teor da correspondência, há alguma coisa nas reflexões de Acúrsio das Neves, que parecem en-contrar a atitude do monarca, enquanto ele, causídico, cuida e defende a posição da rainha. 236

235 Eis uma chamada de atenção de J. Acúrsio das Neves, em socor-ro da atitude de D. João VI naquela conjuntura, quando cita um autor francês (visconde de Bonald, Louis-Gabriel-Ambroise (França 1754-1840): “Não faltará quem me repute um perseguidor intolerante; será porém, uma grande injustiça. São necessárias medidas de segurança pública e nada de vinganças particulares. É necessário acalmar os partidos e não irritá-los: mas isto não se consegue senão poupando a multidão e reprimindo os instigadores. Mata-se a serpente esmagan-do-lhe a cabeça, enfurece-se para investir, pisando-se-lhe a cauda”. In ob. cit. p. 136.236 Após discorrer acerca das bases da constituição, que conduziram à obrigação de D. João VI ter de a jurar, leva-nos o autor a comungar outra das suas teses, onde discorre sobre os pressupostos da revo-lução em curso, à semelhança do que acontecera noutras partes da Europa, dramaticamente: “O juramento das bases era o que estava em vigor, quando a Real Família voltou do Brasil e com o pretexto dele, que ingrata hospedagem se fez ao soberano do Reino Unido [de Portugal e Brasil], aportando à sua própria capital, como se aportasse a uma terra estrangeira e inóspita! (…). A Maçonaria não quis que

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Nas premissas em que monta a defesa, o jurista aposta na alegação oferecida por D. Carlota Joaquina, como de-monstra a evolução do seu argumento:

Faziam consistir o crime de Sua Majestade em não querer jurar uma constituição que acabava de estabelecer como ponto cardial a divisão dos poderes, tirando ao Rei ou ver-dadeiramente ao Ministério, toda a influência no judicial; contudo, o Ministério, para coonestar de alguma forma o despotismo que ia cometer, dando-lhe as cores de legal, ar-vorou-se ele mesmo em poder judiciário, formando um pro-cesso, sobre o qual organizou depois um relatório que diri-giu ao novo Congresso. É este relatório o que eu seguirei exactamente na dedução das peças oficiais, expondo com fidelidade os sucessos tais como aconteceram. 237

Plantado o esclarecimento e cumprido o trâmite que advertia o funcionamento da dita assembleia, acabaria por recair sobre a junta médica a resolução do problema, depois

ficasse duvidosa a parte que tomou nesta acção. Eis aqui o Mani-festo do Grande Oriente Lusitano (p. 22, 2.ª ed.) ‘Finalmente o dia 4 de Julho apresentou a esta capital o espectáculo em grande, no desembarque d’el-Rei, do espírito da maçonaria pronto a qualquer transe [esta expressão diz muito – palavras do autor] para assegurar a causa da liberdade e abismar o servilismo. Quando a maçonaria em geral, sem exceptuar uma só loja nem mesmo um só indivíduo, pois que todas e todos se cobriram de glória, por seu zelo, valor, ac-tividade e denodo, &’. Esta glória – prossegue J. Acúrsio das Neves – este valor, esta actividade e denodo estavam nas pontas dos punhais, com que se armaram os assassinos, distribuídos pelas praças e ruas da capital, onde havia o maior concurso para obrarem de acordo ao primeiro sinal, o que eles mesmos não ocultaram. Foi depois de tudo, assim disposto e com um tal cortejo, que conduziram o soberano, por entre fileiras armadas, a prestar o juramento no meio do Congresso; porém, Deus, que nos protege, inspirou Sua Majestade uma conduta sábia e prudente, que evitou algum rompimento que alagaria o reino em sangue.” J. Acúrsio das Neves, Carta XIX, in ob. cit., pp. 140-141. 237 Idem, Carta XXI, in ob. cit., p. 152.

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de se mandar formar juridicamente este ajuntamento – como se vê do seu relato – a fim de ver provada, se era verdadeira ou falsa, a alegação da rainha, de resto, convencidos que estavam os membros da assembleia constituinte de ser falsa, com excepção de dois ou três deputados cujos nomes se re-velaram na votação final, conforme consta da memória de J. Acúrsio das Neves.

Enquanto não se chegava ao culminar da questão – uma vez que se entrepunha o encerramento da assembleia em vigência, para dar lugar à abertura das chamadas Cor-tes Gerais, no início do ano novo de 1823 – não esperou o quórum da dita assembleia, pela decisão final, sem prevenir a determinação para se aprontar a embarcação que deveria levar ao desterro a rainha, tendo sempre em vista que ela de-via ser expulsa do reino, estipulado que estava a data limite de 3 de Dezembro de 1822, impondo-lhe a saída de Lisboa, impreterivelmente, no dia seguinte, à data apontada.

No mesmo dia 27 de Novembro, em que se fez a intimação a Sua Majestade a Rainha para que declarasse o país estran-geiro aonde se destinava, também se expediu ao Ministro da Marinha a seguinte Portaria: ‘Manda el-Rei pela Se-cretaria de Estado dos Negócios do Reino que o Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Marinha retenha e faça preparar a fragata que lhe parecer mais convenien-te para a condução da Augusta Pessoa de Sua Majestade a Rainha, por tempo e destino indeterminado, visto que se depende ainda para a última Resolução da resposta de Sua Majestade e parecer do Conselho de Estado. Palácio do Al-feite, em 27 de Novembro de 1822 @Filipe Ferreira Araújo e Castro’.

J. Acúrsio das Neves elucida-nos ainda nesta sequ-ência, acerca da maquinação dos adversários de D. Carlota Joaquina:

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Ainda se não sabia o país estrangeiro que Sua Majestade havia de escolher e se destinava a fazer a viagem por mar ou por terra, a resposta de Sua Majestade não podia demorar-se senão horas, o Conselho de Estado havia de tomar a sua deliberação com um dia somente de inter-valo; mas a fragata havia de estar pronta; e com efeito se aprontou e aprovisionou de víveres a fragata Pérola, como respondeu o Ministro da Marinha. E comenta: De tanta importância era para a facção que a Rainha de Portugal saísse dos seus estados infalivelmente no dia 4 de Dezembro!238

Da intimação a 27 de Novembro, consta a rubrica d’el--Rei D. João VI, comprometido na decisão, pelo conselho de Estado, empenhado este em acreditar a simpatia revolucio-nária, facto que não carece de rodeios, porque os meandros são eloquentes. Ainda, segundo a palavra de quem viveu, por dentro, os acontecimentos, nos quais ele se envolveu de motu proprio, fica-se a saber a maneira como foi montado o esquema de comprometimento do rei cujo resultado teve o desmérito de acentuar ainda mais a divisão familiar, precipi-tando a ruptura inevitável, que a carta privada de D. Carlota Joaquina antecipou, carta por onde se deve principiar qual-quer discussão, à volta deste assunto.239

238 Carta XXII, in ob. cit., p. 155.239 J. Acúrsio das Neves considera, com razão, que estavam em causa os créditos da facção maçónico-liberal, que não abrandava nem recuava perante nada. Deste modo, era-lhe indispensável o compro-metimento do rei. “Debaixo do bárbaro jugo de tais dominadores, nenhuma barbaridade é estranha – afirma Acúrsio das Neves, tendo compilado um apanhado de exemplos, que tinham marcado a história da Europa, desde 1789. Ajuntai à lista das memoráveis façanhas dos nossos reformadores a violência com que extorquiram de um Rei tão conhecido pela sua bondade sem limites, a assinatura dos decretos, que contêm a terrível sentença contra a sua real-consorte e contra Si próprio.” Carta XXIII, in ob. cit., p. 165.

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El-Rei de cujo Augusto nome tão escandalosa e perfidamen-te se abusava, tinha passado para a Quinta do Alfeite, além do Tejo, talvez para dar algum disfarce à dor acerba que era bem natural lhe despedaçasse o coração e que não po-dia ocultar-se no seu semblante. Ali, foi acometido de uma activíssima inflamação em uma perna, moléstia que muitas vezes o tem atormentado, mas que desta vez se agravou em extremo. Disto não achareis menção nos diários e mais pe-riódicos daquele tempo; o do Governo, perfeitamente iden-tificado com a facção, jamais falava em Sua Majestade que não fosse para o comprometer e aviltar aos olhos do públi-co.240

Estava finalmente nas mãos da junta médica a solução deste problema político. Como se viu, foi o motivo da doen-ça que levou ao bom senso de alguns membros do conselho de Estado a decidir-se pela espera de uma resposta adequa-da, à melindrosa questão. Recorda J. Acúrsio das Neves:

No dia 2 [de Dezembro] houve outra reunião do Conselho de Estado. Alguns dos conselheiros, trazendo também os es-píritos fortemente agitados, principalmente depois do pare-cer unânime dos médicos, quiseram declarar os seus votos, o que fizeram por esta maneira: ‘Senhor. Ao conselheiro de Estado José Maria Dantas Pereira parece deve ainda fazer subir escrito à Real Presença de Vossa Majestade, relativa-mente à deportação da Rainha Fidelíssima, que a julga con-trária ao bem da nação nas actuais circunstâncias; e que não encontra muito claro estarem todas as mulheres e talvez menos a Rainha Fidelíssima incluídas no artigo (que cita) … parece-lhe que convém praticar a este respeito o que tem visto executar em outros casos … sem lesão da severíssima disciplina militar: a saber representar ou oficiar ao corpo legislativo para este decidir o que tiver de mais acertado.’241

240 Idem, pp. 155-156.241 Lembramos que o conselho de Estado que assessorava o rei

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É certo que o aconselhamento, de uma não pouco necessária, prudência, numa altura em que tal decisão do conselho de Estado já se via enquadrada pelos ventos de mu-dança, que partiam de França e se faziam sentir, por toda a Europa. Logo veremos o rumo deles a caminho de Espanha, ventos que haviam de repercutir aqui, em Portugal. É isso que previne o defensor da rainha.

Se o Ministério [portanto os propugnadores da aceleração da deportação da rainha] tivesse acção própria e em algum lúcido intervalo desse, ouvidos, à razão: ou desistiria redon-damente do projecto insensato de sacrificar aos caprichos da revolução uma Rainha, que estava tanto nos olhos da nação inteira, já extremamente agitada e convulsa ou, ao menos, aproveitaria a aberta que lhe oferecia o arbítrio da maioria do Conselho de Estado, submetendo o negócio à decisão do Congresso. Mas o Ministério não era mais que um agente ou um ramo do grande tronco da facção; e já tendes visto na Carta XXI os motivos porque os da facção queriam evitar este passo…242

Eis, o desenlace, que livrou a rainha da deportação, acto que tudo aconselhava fosse, tratado com cautela e caldos de ga-linha, por duas ordens de razões. Por um lado, tinha havido precipitação na tomada de decisão e, por outro, uma pro-

fora imposto. É certo que um ou dois membros lhe eram menos hos-tis, como se vê da sua postura, documentada, em vista das cautelo-sas decisões, que propõem. Citamos o parecer de José Maria Dantas Pereira, como exemplo, quase único, dos moderados liberais. Como vimos a propósito da biografia do infante D. Pedro Carlos de Borbón e Bragança, em capítulo separado, a figura de Dantas vem sendo bas-tante creditada, nos meios académicos, devido à sua carreira cientí-fica. Dantas não estava só, na proposta que apresentou no conselho de Estado, acima transcrita, mas foi dos presentes o único que terá aconselhado prudência na tomada da decisão, que não pôde evitar, ainda assim. 242 Carta XXIII, in ob. cit., p. 163.

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vocação da reacção popular, descontente com o rumo que as coisas tomassem, inerente ao processo revolucionário em curso e simpatia para com a rainha.

O parecer dos médicos não tinha abrandado a fúria dos re-volucionários nem tais monstros se abrandam senão pela força; porém, opôs um obstáculo à pronta execução dos seus projectos, que os obrigou a mudar de plano. Deve-se aos médicos a conservação da preciosa vida de Sua Majes-tade, que iria acabar os seus dias em triste desamparo por esses mares ou às mãos de outros facciosos em uma terra que a viu nascer, mas que agora lhe era inóspita; provavel-mente se lhe deve ainda mais o não se lavarem em sangue as ruas de Lisboa e a Real Casa das Necessidades [onde se reunia a assembleia constituinte].

Foi extraordinária a sensação que estes bárbaros procedi-mentos contra Sua Majestade imprimiram em toda a nação e muito particularmente desta capital que, como testemu-nhas oculares não podiam deixar de tomar um interesse mais activo pela inocência e grandeza oprimida. A Rainha não embarca, era já voz pública; mas como a facção tinha ainda por si a força armada, se teimasse em levar ao fim os seus intentos, no que pouca dúvida podia haver e se a mina chegasse a rebentar, a explosão havia de ser terrível. Feliz-mente o voto uniforme dos facultativos, dando uma grande força à opinião e ao espírito público, desorientou e pôs em confusão a s vistas e as maquinações dos mais exaltados chefes do partido.243

243 Carta XXIII, in ob. cit., p. 166. Somos remetidos para a decisão da junta médica, livradora daquele vexame, que seria, tanto para a rainha, como para a nação: “Os médicos da câmara de Sua Majestade, tanto efectivos como honorários, abaixo assinados, reunindo-se no dia 30 do corrente no palácio de Queluz, a fim de votarem sobre o es-tado de saúde de Sua Majestade a Rainha e satisfazendo à solução dos quesitos indicados na Portaria expedida pelo Ministério dos Negócios do Reino em data de 29 do mesmo mês [Novembro] tendo sido exac-

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O autor conclui, portanto, que não fora a humanidade nem tão pouco o respeito e a decência, mas sim o medo que contivera os rebeldes de ir mais longe e que disso provinha o rancor, que tanto manifestariam depois nos seus panfletos, contra os médicos da junta. Tinham querido expulsar do rei-no, definitivamente, uma opositora de peso, mas as circuns-tâncias adversas compeliram-nos a ter de se contentar com a reclusão e degredo da rainha, somente:

Desautorizando-a primeiro, de todas as suas honras e prer-rogativas e até dos direitos de cidadã; despojando-a da sua casa, da companhia das Senhoras Infantas, suas augustas filhas e de todos os meios de subsistência e de consolação, tudo no termo fatal que, uma vez estabelecido pela facção ficou improrrogável.244

Reatando o fio do vívido relato de J. Acúrsio das Neves, vamos dar a palavra às filhas de D. João VI, quan-do de Madrid reagiram à notícia, que lhes chegou, sobre a aviltante questão em pauta e a humilhante situação para que fora remetido o pai, além de enfermo e reduzido à

tamente informados, pelos médicos assistentes da história dos pade-cimentos de Sua Majestade, em diferentes tempos e da natureza dos ataques de que mui repetidamente tem sido acometida, ainda depois que regressou para Portugal, declarando os mesmos assistentes que muitos dos ditos ataques hão sido de perigo iminente de vida, pelo grande estrago que afecta já o seu pulmão e pelos longos padecimen-tos de fígado, a ponto tal que, em algumas ocasiões e em alta hora da noite, se hão reunido em conferência: à vista, pois, da história acima referida, os médicos convocados decidiram unanimemente: 1.º Que Sua Majestade a Rainha deve sofrer um destes ataques, logo que se exponha à intempérie da atmosfera e a outras muitas inerentes causas, empreendendo uma viagem ou jornada na presente estação; 2.º - Que o ataque desenvolvido então, por causas muito mais veementes, tanto físicas como morais, traria consigo iminente perigo de vida. Palácio de Queluz, em 30 de Novembro de 1822.” Com a assinatura de 11 clínicos. 244 J. Acúrsio das Neves, Carta XXIV, in ob. cit., p. 167.

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solidão da sua pessoa, mais isolado do que nunca, em re-lação à sua família.

Contudo, em nenhum momento se nos depara com um grito do rei, um desaforo sequer, sujeito à vileza daquele trato e posição, sem capacidade de manobra. O que as cartas denunciam é o pai extremoso, atento e moderador do ímpeto das filhas, inquieto por causa do seu bem-estar, advertindo contra o que pudessem acarretar de prejudicial, sobre si, mesmas, inseridas no meio hostil da corte de Madrid, em que se moviam, desde a rebelião de 1820.

Chegam-nos menos cartas do que as que desejaríamos. Ou não foram escritas ou por virtude das circunstâncias, já aludidas, sendo que a demora da correspondência também é um factor a considerar, na medida em que diminui o impacto das notícias, inversamente, à aceleração dos acontecimen-tos. Duas ou três das missivas das infantas, todavia, são su-ficientes para provar, que elas estavam a par das ocorrências e seguiam com a maior atenção o que se estava a passar cá.

Logo a de D. Maria Francisca de Assis, datada de Ma-drid, de 22 de Dezembro de 1822 (transcrita anteriormente no corpo do texto). Basta-nos a sua releitura para abarcar, tanto a preocupação da infanta, como o facto de ela estar atenta ao curso das coisas em Lisboa, naqueles dias momen-tosos, embora a sentença só viesse a dar-se no início de Ja-neiro, denotando a infanta uma expectativa de que aquela fosse livradora da mãe e rainha.

Já a carta de Manzanares, de 23 de Março de 1823, da mesma infanta, não traz alusão nenhuma aos acontecimen-tos passados. Isso, entretanto, porque em Espanha também algo acontecera. A corte deixara Madrid e havia razões para tal. A carta seguinte de D. Maria Francisca de Assis, é bas-tante tardia, relativamente ao que sucedera no fim do ano de 1822 e inícios de 1823, embora assinale novidades em

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Portugal e em Espanha, achando-se a corte madrilena em Cádis, cidade donde partiu a carta de 25 de Junho de 1823.

Senhora – Minha Mãe e minha Senhora do meu maior res-peito e amor; vou por este modo a dar a V. M. os parabéns do dia de ontem245, desejando que V. M. goze muitos com muita saúde e felicidades, em companhia de meu Pai e livre de todos os maus…246

Em Lisboa, como adivinhamos, pelo conteúdo desta missiva, teria havido reunião da família ou seja, pazes entre o rei e a rainha, por algum bom motivo não aludido na carta, mas nós sabemos ter sido a sublevação popular – que ficou conhecida por Vila-Francada – em que teve papel activo o infante D. Miguel.

Já a princesa da Beira, D. Maria Teresa, antecipan-do-se à irmã, logo na sua 1.ª carta para o pai, dá conta do processo judicial contra a mãe, o que evidencia que Madrid estava muito ao corrente dos factos. A carta é de 7 de Janeiro de 1823 e é elucidativa, quando a princesa aborda o assunto, sem rodeios:

…Eu sempre passo incomodada de nervos, o que atribuo às saudades que sempre tenho de VM. e agora depois que aí sucedeu o caso de minha Mãe fiquei muito pior…247

Houve demora na chegada destas notícias, por razões óbvias, uma vez que, nesta data, já se sabia da solução de substituir pelo desterro no Ramalhão, o exílio da rainha, separando-a das filhas, mais novas, as infantas D. Maria da Assunção e D. Ana Maria de Jesus. Não se consumara

245 A festa de São João a 24 de Junho dia do onomástico de D. João VI.246 Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-50, nº 60. Publicada por Ânge-lo Pereira, in ob. cit., pp. 310-311.247 Idem, BA – 54-IX-51, nº 112. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 424.

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a saída de D. Carlota Joaquina para Cádis, escolha que não chegou a ser aludida nas cartas, naquela altura, tanto quanto vemos. Já na carta da princesa de 7 de Junho de 1823, sem indicação do local, mas que seria Sevilha, sim.

Trata-se de uma missiva, escrita, debaixo de grande pressão, que não nos espanta, considerando os factos em Es-panha, que obrigaram à saída precipitada da corte de Madrid e errância até, finalmente, Cádis. Naquela sua carta é claro o nervosismo da princesa, ciente da dimensão da crise po-lítica, que a suplantara e aos planos que tinha de regressar a Portugal, intenção sempre reiterada antes, nas cartas que mandou ao pai, mal resolvesse os problemas, que a tinham obrigado àquela deslocação, ao reino vizinho.

Entrecortado pela dificuldade da decifração da escri-ta, lê-se a alusão da princesa à suspensão do processo re-volucionário em Portugal, enquanto evidencia expectativa de saída, satisfatória, ao encontro do seu almejo, deixando recomendações ao pai:

…Que estou no maior cuidado, pelas notícias que correm daí; antes, tivemo-las muito agradáveis, porém ontem muito tristes, para quem pensa como eu, pois unicamente desejo ver a … como deve ser, tenha portanto … em vista o que tantas vezes lhe tenho mandado dizer; pois só o digo pelo interesse que tenho por … e desejo que governe como go-vernou sua Mãe…248

Novamente torna agora, por carta de Cádis de 24 de Junho,249 a manifestar a mesma agitação nervosa que se en-tende, derivado da situação anómala, a que estava sujeita, com toda a família real de Espanha, num cenário de pré-

248 Rainha D. Maria I. Carta de Sevilha (?), de 7.6.1823, Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 155. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 447.249 23 e não 24 de Junho, como dá a entender o teor da carta.

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-guerra, simultaneamente, ao que lhe constava deste lado. Adivinha-se uma certa tranquilidade em relação à missiva anterior, sendo menos difusa a escrita e o teor mais espe-rançoso. Percebe-se que as notícias de Portugal tinham sido mais animadoras:

Meu Pai, e meu Senhor. Beijo com o maior respeito, e amor a mão a V. M. Ontem recebi a carta de VM de 16 por Seve-rino250 com a qual tive a maior alegria, por tudo quanto V. M. me diz a respeito da sua entrada nessa capital VM pode julgar qual será o meu contentamento sabendo que VM está restituído aos seus direitos, e o modo por que foi feito, e a parte que nisso teve o mano Miguel graças a Deus que VM está livre, porém agora necessita-se muita vigilância e cas-tigo, para que essa abominável facção não torne a levantar cabeça, pois se a chegar a levantar, não há remédio, perdoe VM falar-lhe assim, mas faço-o pelo grande interesse que tenho pela vida de VM e pela conservação da monarquia absoluta, VM sabe muito bem, que estes têm sido sempre os meus sentimentos, e que com eles me conservarei até ao úl-timo momento da minha vida. Eu já escrevi a VM uma carta felicitando-o pelos acontecimentos desse reino, a qual era nº 4 datada de 4 do corrente Junho, e juntas iam uma para minha Mãe251, e outra para o mano Miguel desejo saber se VM as recebeu. Nós vamos passando com saúde, o Sebas-tião beija com muito respeito a mão a VM e eu fico aos pés de VM como De VM. Filha obedientíssima @ Maria Teresa = PS. Como não sei se amanhã terei por onde escreva a VM dou-lhe mil parabéns252 e lhe beijo a mão da minha parte e da mana pelo dia de amanhã sentindo muito não o fazer pessoalmente.253

250 Joaquim Severino Gomes251 Rainha D. Carlota Joaquina252 24 de Junho (festa de São João), onomástico de D. João VI.253 Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 157. Publicada por Ân-gelo Pereira, in ob. cit., pp. 447.448.

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Para entender cabalmente as alusões que as infantas, uma e outra, fazem ao que tinha ocorrido aqui, apazigua-dos os espíritos em relação aos problemas familiares, pelas circunstâncias levados ao extremo, é preciso fazer o enqua-dramento no âmbito político da questão de natureza, aparen-temente, privada.

Se nos ativéssemos à progressão da informação, vei-culada nas cartas das duas infantas, conferidas com o relato histórico, dos factos, quanto à seriedade da sua dimensão, teríamos matéria que baste para poder avaliar o mimetismo revolucionário de um e outro lado da fronteira, não obstante, momentos de assinalado contraciclo do processo, acciona-do pelo mesmo móbil. Não sendo propriamente novidade, faltar-nos-ia estender a compreensão, tendo em conta o cur-so do mesmo facto, à roda da vida privada, das duas cortes.

Os ventos de mudança que atingiam directamente a Espanha não escaparam à agudeza de J. Acúrsio das Neves, quando se detém a analisar os factores que teriam induzido os membros do congresso revolucionário português a con-ter-se, diante da sua argumentação e que seriam exactamen-te os que a 23 de Fevereiro de 1823 – menos de 2 meses, após a sentença – sopraram a favor da sublevação do norte, encorajadores dos ânimos já deprimidos, na ressaca que cor-rera de euforia apoiante do movimento do Porto em 24 de Agosto de 1820.

Se o facto ou factos não fossem eloquentes per si, vi-ria ao encontro desta tese o testemunho dos coevos de indes-mentível pendor liberal. É exemplar o que escreveu Simão da Luz Soriano, através da compilação noticiosa que legou, muita dela apoiada na sua própria experiência de vida e de um outro memorialista que, sob a capa do anonimato, acaba-ria por publicar, ainda no decurso do século XIX, a sua visão crítica dos excessos cometidos pelo movimento revolucio-

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nário liberal, sendo-o ele, confesso. Os dois tipos de fonte servem-nos de antitético ao teor das cartas privadas das duas filhas de D. João VI para ele, a partir de Espanha.

Para o sucedido por cá, não concorreu pouco a desas-trosa condução política da autoproclamada regência, à frente do destino nacional, desde Agosto de 1820. Tomada da ener-gia intrínseca aos movimentos deste tipo, a radicalização foi um remoinho constante, podendo dizer-se que o desígnio do sinédrio era não deixar pedra sobre pedra, mostrando um desapego profundo pelo passado, facto que se tornou visível a olho nu, no abandono do país, deixado entregue a actos de vária ordem que produziram o fruto, exemplarmente de-monstrado, v.g. o processo da rainha e inumeráveis situa-ções da maior gravidade, só desculpabilizadas pelos ideolo-gicamente afectos à revolução.

Os indícios de contrarrevolução – segundo o léxi-co em voga – surgiram à luz do dia, explicitamente, a 23 de Fevereiro de 1823 – dizíamos – liderado pelo conde de Amarante, Manuel da Silveira Pinto da Fonseca, figura ca-rismática do norte, em função da sua actuação, aquando das invasões francesas. Evitando de momento o desvio a certas considerações de que Soriano faz eco, era impossível deixar de ver na sublevação nortenha um sentimento generalizado de descontentamento popular.

O autor anónimo da “História d’el-Rei D. João VI” – um confesso liberal como se depreende claramente do ali-nhamento do seu discurso – não escamoteia esse factor, ao referir-se à acção das cortes e falamos de algo muito mais vasto do que o processo movido contra D. Carlota Joaquina. Diz ele, queixoso do fracasso revolucionário:

As cortes, porém, nada faziam para consolidar o sistema constitucional cujos inimigos, ficando impunes, apesar de haverem sido convencidos de conspiradores, animavam

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e concitavam todos os seus cúmplices, pelo que, cada vez mais ousados, se tornavam.254

A linguagem é a usual: as coisas corriam mal, por cau-sa dos opositores ao sistema, falhando as cortes o seu papel por não terem reprimido adequadamente os “inimigos”. No mesmo sentido, podem ser lidas as passagens do livro a pro-pósito do fracasso da 1.ª fase de implementação do sistema liberal (vintismo), embora o autor indulte e elogie a conduta de D. João VI.

…Veio el-Rei em 31 do dito mês de Março encerrar pesso-almente a sessão ordinária das cortes e congratulando-as pela sabedoria e patriotismo [como tinha intervindo, minis-tério e cortes em relação ao levantamento do conde de Ama-rante], que haviam manifestado, reiterou o seu propósito de cooperar com elas [cortes] a prol das causas das liberdades pátrias. Pouco tempo depois, convocou Sua Majestade cor-tes extraordinárias, como as críticas circunstâncias em que se achava o estado, imperiosamente exigiam; e na sessão da abertura (de 15 de Maio) renovou as promessas de sustentar a constituição, assim como a dignidade nacional, em todas as conjunturas.255

Ao fazer justiça ao rei, o autor anónimo na realidade pontua, aquilo que, na opinião dos críticos, é tido por fra-queza. Por outro lado, reiterando o que foi ponderado já, relativamente à conduta privada de D. João VI, pela leitura da correspondência das filhas, percebe-se nele preferir con-

254 História d’el-Rei D. João VI – Primeiro Rei Constitucional de Portugal e do Brasil, em que se referem os principais actos e ocor-rências do seu governo, bem como algumas particularidades da sua vida privada, por S…L…, Lisboa, 1866. Nota: Há uma edição, ante-rior, desta obra, com pequenas diferenças de texto. Vd. Mesmo título, acrescentado de Vertida do Francês pelo Tradutor da Cartilha do bom cidadão, Lisboa, 1838. 255 Idem, pp. 97-98.

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temporizar com o regime, querendo no limite do possível evitar um agravamento da dramática conjuntura.

Deste modo, a conduta do rei, incompreendida e ina-ceitável debaixo de certo olhar, deverá ser reavaliada, na medida em que se oferece óbvia a intenção de D. João VI – notada pelos citados autores coevos – de levar a bom ter-mo “a regeneração” do sistema, querendo destacar-se nesse desígnio o soberano, na parte que lhe cabe, através da supe-ração constante das divisões dos vintistas, pugnando sempre pela concórdia, nunca perdendo de vista uma nefasta ima-gem da guerra fratricida. Cedeu o rei à pressão dos revolu-cionários e terá cedido, demasiado.

Apesar do evidente esforço de D. João VI de precaver rupturas, não tardaria a desencadear-se uma segunda rebe-lião, que eclodiria logo a 27 de Maio. Obrigava-se o rei a agir nas piores e mais dolorosas circunstâncias – o que já não é novidade para ninguém – para suster as fendas abertas no solo pátrio, sangradoras das feridas quais alastravam pela nação afora e que só o radicalismo revolucionário persistia em justificar.

Já inevitável, triunfaria, por fim, o movimento chama-do, pelos liberais, Vila-Francada, de reacção ao estado de coisas, manifesto no alastramento da insatisfação popular, tendo à frente a figura do infante D. Miguel, para desgosto do pai. Desgosto, na medida em que o infante se expunha de uma forma que contrariava a conduta de D. João VI, pelas razões sobre as quais poderemos sempre especular, sem ati-nar com a resposta mais adequada, dada a sua complexidade.

Ao rei desgostou profundamente a conduta do in-fante, pela crença da indesmentível inocência da sua boa--fé, que a oposição qualificou como agente ou ponta de lança da mãe, a rainha D. Carlota Joaquina, como convi-nha aos fautores desta imagem, ao procurarem tirar divi-

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dendos da situação, que, graciosamente se lhes oferecia. Aliás, não fora sem razão que o ministro da guerra, então, Manuel Gonçalves de Miranda, viera alertar a assembleia ordinária – que entrara em funções no início daquele ano – para o perigo que se corria, politicamente falando, con-siderando o panorama referido, dos ventos de mudança, que tinham principiado a soprar desde França, ao abrigo dos acordos e princípios aceites pelas potências da Santa Aliança.256

256 Escreve o insuspeito Soriano: “Entretanto não se pode estranhar que o sobressalto das cortes, filho da política liberticida em que o gabinete francês se colocou para com a Espanha, levasse também os portugueses a recearem-se de semelhante política e, portanto, que a nacionalidade e a vizinhança das duas nações peninsulares fizessem com que os nossos deputados olhassem a invasão dos exércitos fran-ceses na mesma península, como destinados a virem também contra Portugal, donde nasceu o vivo desejo dos nossos liberais mais exalta-dos quererem, igualmente irados, brandir as suas espadas a favor da causa comum. [Em Espanha, Fernando VII governava, nesta altura ainda sob a constituição de Cádis de 1812, que depois de suspensa, fora reposta em vigor em 1820, na sequência da revolta de Riego, revolta que antecedeu, curiosamente, a revolta capitaneada pelo gru-po do sinédrio no Porto, em Agosto desse ano]. Veio dar mais calor a semelhantes desejos, a exposição que em 1 de Fevereiro de 1823 o ministro da guerra, Manuel Gonçalves de Miranda fez nas cortes, dizendo-lhes que o aspecto político que a Europa apresentava, por efeito do congresso de Verona [reunião das potências da Santa Alian-ça] e das deliberações tomadas pelos soberanos, que o compunham, era realmente para infundir receios, donde resultava a necessidade de Portugal se dever acautelar, das tentativas liberticidas. ‘A guerra, lhes disse ele [deputado Miranda], em que a Santa Aliança quer em-penhar-se, é a guerra dos déspotas contra os povos, é a guerra do des-potismos contra a liberdade e nesta luta devem triunfar os povos… Se o governo francês nos ilude com o seu pérfido silêncio, engana-se e pode estar convencido que os portugueses não abandonarão os espa-nhóis, todas as vezes que atacar a Espanha para destruir ou modificar o sistema constitucional, adaptado e jurado na península’”. In ob. cit., pp. 140-141.

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Antes de reentrarmos em Espanha, mais propriamen-te, para voltar ao ambiente da sua corte, atentemos à reac-ção do monarca português, em relação ao movimento que o ministro da guerra, acima citado, prevenira as cortes, no início do mês de Fevereiro, quanto ao temor do que viesse a acontecer aqui, pondo em perigo as conquistas revolucio-nárias, peninsulares, na intervenção coordenada do invasor, como o próprio ministro fazia questão de lembrar aos cor-religionários.

Vimos como D. João VI se mostrara desafecto às ma-nobras do general Sepúlveda, quando este se pôs à frente dos revoltosos do norte, revolta que emergia na altura do dis-curso do ministro da guerra. Congratulou o rei a assembleia liberal, pela forma como ele reagira ao caso. Em todo este comprometimento do soberano, não há como vislumbrar má vontade, apesar da humilhante situação a que fora sujeito, retirados que lhe tinham sido todos os poderes, como se en-tende, não só pela completa limitação da sua intervenção no governo, imposto pela constituição em vigor, mas mes-mo assim agindo de acordo com o juramento de a guardar e fazer cumprir, transigindo a favor dos liberais, apesar da danação que alastrava.

Alguma coisa menos óbvia se nos escapa nesta passa-gem, da vida política, que D. João VI guardou para si, não temos dúvida. Ainda assim, o andamento natural das coisas ultrapassou tudo e é conhecidíssimo. Mas sempre valerá a pena recuperá-lo, para não nos perdermos no encadeamento dos factos.

O ministério português, receoso da indisciplina das tropas e de que fossem seduzidas, por alguns comandantes descon-tentes não tomava nem podia tomar, como mui desalentado que estava, senão medidas acanhadas, deixando destarte claramente ver, a sua falta de energia; mas anuindo enfim

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aos clamores dos patriotas [leia-se apoiantes dos liberais no poder], determinou formar um exército de observação na província da Beira. Havendo para aquele destino parti-do o Regimento n.º 23, no dia 27 de Maio, pelo romper do dia, revoltou-se nas imediações da cidade [de Lisboa], à voz do seu antigo comandante – o brigadeiro Sampaio – com o pretexto, dizia este, de livrar assim el-Rei, como a nação, do jugo, sob que gemiam e com este intuito, marcharam para Vila Franca.

Na mesma noite, se evadiu do paço o ex-infante D. Miguel257 com obra de trinta homens de Cavalaria n.º 4, havendo dei-xado na ocasião da fuga, uma carta para el-Rei, em que se desculpava por ter abandonado o palácio de Sua Majesta-de, sem licença ‘por saber que não a obteria da sua prudên-cia, ao passo que, sendo-lhe impossível continuar a ver, por mais tempo, o abatimento do trono contra a vontade de todo o reino, tomara por isso, um partido, que Sua Majestade não deixaria de aprovar, se bem que fosse obrigado a actos externos, contra o seu real coração’.258

Haveria aqui bastante pano para mangas, se nos ati-véssemos a destrinçar o teor tanto das palavras do autor, como da carta, que ele cita, do infante D. Miguel, nomea-damente, o reconhecimento implícito, que faz da condição generosa do coração paterno e por outro lado, a prudência do soberano, na condução dos melindrosos negócios, com que era obrigado a lidar, neste contexto.

O testemunho oferecido pelo autor anónimo é uma forma de se reconhecer a importância da obediência que se esperava do filho para com o pai e monarca, não sendo isto despiciendo para o enquadramento da atitude de D. João VI,

257 Designação facciosa e errónea, pois, nunca se é ex-infante, visto esta ser uma condição de linhagem.258 História d’el-Rei D. João VI…, pp. 98-99.

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na sequência, que há-de seguir-se, àquele acontecimento. O factor desobediência teve não pouca importância no desen-rolar dos factos, vindouros, donde D. Miguel sairá lesado, sendo isto uma pedra de toque e ponto de honra para o feitio de D. João VI.

Prossegue o autor citado a sua narrativa dos aconteci-mentos, relativos à rebelião, narrando como o general Pam-plona – figura controversa que dera logo nas vistas, quando entrou em Portugal, em 1810, integrado no exército francês de Massena – se juntou ao infante D. Miguel, desculpando--o, ao induzir o leitor a pensar que o experiente general ade-rira, enganado, à causa.

Não é por acaso que o autor – como liberal e apoiante do movimento revolucionário – sofre mal a situação para onde se encaminhava o estado de coisas, ao introduzir na narrativa a figura de D. Carlota Joaquina, admitindo ser ela a indutora da situação, ao afirmar que havia algum tempo que esta situação se tramava, tendo já chegado aos ouvidos d’el-Rei; nela tomava parte a rainha, como sempre aconte-ceu em todas as cabalas, que se forjaram, desde o seu re-gresso do Brasil….259

Curiosamente, ao fazer menção das cabalas da rainha, após o seu regresso à metrópole, não faz alusão às conspirações de D. Carlota Joaquina, antes da saída da corte para o Brasil, que os futuros apoiantes do sistema vigente-liberal viam com bons olhos, indo contra o então Príncipe-Regente, favoráveis à sua deposição, na chamada “conspiração dos fidalgos”.

Posto D. João VI ao corrente da “fuga” do infante, seu filho, preocupado, em nosso entender, pelo uso que fariam do seu gesto, os oportunistas, mandou “pelo seu camaris-ta intimar que voltasse à sua obediência” ao mesmo tempo, que é feita uma nota oficial, transcrita pelo referido autor:

259 Idem.

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… Que Sua Majestade continuaria a dar todas as providên-cias, conducentes a atalhar qualquer mal, que tão extraor-dinário acontecimento pudesse produzir.

Mas logo a 28 demitiu el-Rei todo o ministério, em virtude de uma representação das cortes e a 29, ele mesmo, acompa-nhou a pé a procissão do Corpus à roda do Rossio, debaixo de tranquilidade.

…Na noite deste dia (29.5.1823), porém, o general Sepúl-veda, comandante da força armada de Lisboa e um dos principais cabeças da revolução de 1820, partiu à frente de dois mil e tantos homens para se ir juntar ao ex-infante D. Miguel.

Notemos o comentário do autor, acerca da reacção do infante D. Miguel, quando o general Sepúlveda se lhe apre-sentou, gesto que é mais eloquente do que falam as palavas, não apenas por revelar o carácter do infante, mas por servir de tomada de pulso no discutível processo da revolução li-beral:

… D. Miguel, que recebeu-o como a um traidor, mandando--o preso para a praça de Peniche, a fim de ser julgado com todo o rigor das leis militares, atribuindo-se este tratamento – pelos que seguiam o acontecimento de fora – a não haver Sepúlveda acompanhado el-Rei no acto da procissão, como tinha prometido.260

Reconhece por aquele testemunho a fragilidade da re-volução e a posição dos seus acólitos, liberais-maçons, que conduziram até ali os negócios do Estado:

Desde, então, a segurança da capital, assim como as es-peranças dos liberais, repousaram quase unicamente sobre o patriotismo, tanto dos regimentos de artilharia como da

260 Ibidem, pp. 99-100.

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guarda cívica de Lisboa, debaixo do comando do general Jorge d’ Avilez cujos corpos defenderam até ao último ins-tante a causa da liberdade. 261

O ministério caíra e que o novo gabinete, embora mantivesse a maior parte dos anteriores ministros – nossos conhecidos do processo movido contra D. Carlota Joaqui-na – sofreu uma perda, justamente, quando o novo ministro da guerra – José António Guerreiro – se foi juntar aos “in-surrectos” que estavam com o infante D. Miguel em Vila Franca de Xira.

A rebelião antiliberal foi contida, mas acabaria por co-nhecer uma reviravolta e, em vez de se conter se reacendeu, quando o Regimento n.º 18, que tinha ordens para voltar a aquartelar a soldadesca, se dirigiu para o palácio da Bem-posta onde habitava D.. João VI cuja guarda era naquele dia do mesmo regimento, o qual, chegando-se por baixo da janela principal, começou a gritar em uníssono Viva el-Rei absoluto, morra a constituição.262

Não esconde o citado autor a confusão que progredia no perímetro da capital, à medida que o movimento rebelde juntava adeptos.

A estes gritos, repetidos pela guarda e por numerosos magotes da populaça aparece el-rei entre duas das infantas, suas filhas [D. Isabel Maria e D. Maria da Assunção], pretende impor si-lêncio e chamar a tropa aos seus deveres; mas esta, em respos-ta, pisa aos pés o laço constitucional e repete os mesmos gritos.

Reconhece o autor que vimos seguindo que, perante uma generalizada insurreição popular – expressão dele – era for-

261 Não podemos deixar de notar o preciosismo das palavras, hábito a que se agarram os ideólogos das revoluções, para realçar o valor das causas, que defendem – sempre virtuosas – contra qualquer maioria.262 História d’el-Rei D. João VI…p. 100.

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çoso ao rei ceder e cita as palavras do monarca, ditadas da janela avarandada do palácio:

Já que assim o querem, exclama, já que a nação o quer, viva el-Rei absoluto.263

O rei acompanhado das duas filhas saiu dali e meteu-se numa carruagem, escoltado pelo dito regimento, que conti-nuava a aclamá-lo, bem como por alguns, outros, indivídu-os, à porta do palácio da mais ínfima condição, porquanto a classe média mostrou-se até à última, sobremodo, afeiçoada ao sistema constitucional.

É de realçar o preciosismo da linguagem, pela conexão que estabelece entre o estrato dos contrarrevolucionários, em con-traste com o padrão mais elevado socialmente dos liberais.

Amotinar-se-ia de imediato como fogo o povo lisboe-ta, se não fosse a pronta intervenção das milícias, favoráveis ao governo por haverem os amotinadores intentado abrir as prisões e fazer delas sair toda a classe de malfeitores – reco-nhece o autor do relato – tratando-se, obviamente, da liber-tação de prisioneiros desafectos à causa revolucionária, os quais o autor não identifica. Diz mais: …el-Rei de modo al-gum contribuiu para a queda da constituição, durante cujo regímen se considerava mui feliz, como depois confessou a várias pessoas – sublinhe-se este trecho e o seguinte – e até mesmo quando previu o perigo que lhe estava iminente [à constituição], fez por convencer os membros mais influentes das cortes, para que a modificassem, a fim de obstarem à sua perda total.264

D. João VI não era tido, por conseguinte, pelos mode-rados da revolução vintista, como opositor ao regime instau-rado. Afinal, depreende-se que o que está em causa era o de-sequilíbrio entre os poderes, sendo que o moderador – como 263 Idem, pp. 101-102.264 Ibidem.

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a experiência viria impor – tinha sido pura e simplesmente ignorado na constituição de 1822. Vai nesse sentido e assim o entendemos, as admoestações do rei … para que a modifi-cassem, a fim de obstarem à sua perda total.265

Mostra-se o autor da memória convencido de que o rei não tinha outra alternativa evitando para obstar a queda do poder na rua: …a fim de segurar a coroa querendo des-concertar, quaisquer projectos de usurpação da parte de seu filho ou da rainha.266

Por conveniência, os liberais concertaram, entre si, enviar uma deputação a el-Rei D. João VI, para repor a or-dem no sentido da normalização e viu-se …naquela noite de 31 de Maio andaram afixando pelas esquinas das ruas de 265 O autor da História d’el-rei D. João VI era um apoiante da causa liberal – repetimos – como demonstram as suas tomadas de posição, na origem da memória que escreveu daquele reinado, que é também a dele, mostrando ser dissidente da mesma causa, por esta se ter radicalizado.266 Reiteram estas palavras o que fica avaliado na nota acima. Sendo indubitavelmente um pensador maçon e pessoa da teia conspirativa das lojas, denuncia esta sua postura a menção ao general Pamplona, figura controversa, como admite, chamando-lhe “astucioso”, o qual lhe revelara saber da conspiração antiliberal, à qual se juntou, ao mes-mo tempo, que se lhe gabara de ter evitado o triunfo de D. Miguel, por ter aconselhado o rei a juntar-se ao filho, anulando a conspiração. In ob. cit., p. 103. Simão da Luz Soriano faz-se porta-voz de um rasgado elogio ao gesto de D. João VI, dizendo a dado trecho: “Com relação a el-Rei D. João VI parece-nos que a fuga que fizera para Vila-Franca [para onde tinha ido o infante D. Miguel] foi um relevante serviço, prestado por ele ao país, porque, tendo-se o desalento apoderado do coração de todos os constitucionais, pela influência nefasta que as ocorrências da Espanha tinham determinado em Portugal, não lhes sendo possível tirarem bom resultado das suas tentativas de defesa, quando tomassem a iniciativa de resistirem a D. Miguel, el-Rei não só evitou a desgraça da sua destronação, mas igualmente os males da guerra-civil, que uma inconsiderada resistência forçosamente havia de trazer consigo…” (negrito nosso). In ob. cit., p.162.

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Lisboa uma proclamação d’el-Rei, com data do mesmo dia, que, concebida em os termos mais comedidos – palavras do autor – anunciava a mudança da constituição, então existen-te, prometendo ao mesmo tempo, substituí-la por outra.267

O mal-estar grassava e dividia os membros da assem-bleia ou congresso, que se sentiam além de lesados, ultra-passados. De tal modo que, após as menagens a D. João VI das instituições de Lisboa: câmara municipal, voluntários do comércio, guarda cívica, milícia e povo pela sua conduta prudente, firme e patriótica, teve lugar um convénio, assina-

267 Idem. É de assinalar a opinião de Simão da Luz Soriano a respei-to da situação criada, que pusera em causa a constituição vigente, em razão dos seus excessos revolucionários ou nas palavras dele, por ser “tão democrática”. É Soriano que narra toda a envolvência que levou à alocução do rei: “Com o fim de evitar as queixas, que o espírito público e a maior parte dos comandantes dos corpos da guarnição de Lisboa faziam contra uma constituição tão democrática, como era a ultimamente decretada [1822] pelo soberano congresso, o general Se-púlveda [membro do sinédrio que proclamou o movimento liberal de 1820 no Porto], por conselho que lhe deram, resolveu-se a fazer uma tentativa para alcançar de D. João VI uma constituição. Com este intento, saiu o dito general da sua residência, situada na calçada das Necessidades, durante a noite de 28 para 29 do citado mês de Maio de 1823, donde se dirigiu ao palácio da Bemposta, voltando de lá, na madrugada do dia seguinte, 29. Ao capitão Bernardo de Sá Nogueira [futuro marquês de Sá da Bandeira], que lhe havia dado o conselho e a outros mais, oficiais, que o ficaram esperando, contou ele, que acha-ra el-Rei de cama e tendo-lhe permitido que entrasse no seu quarto, ele, general, assim o fez e em seguida lhe ponderou o crítico estado das cousas e o seu muito receio do aparecimento de uma guerra civil, males que se evitariam com muita vantagem para o país, se Sua Ma-jestade houvesse por bem, tomar uma medida apropriada, tal como a de modificar a constituição existente. Disse mais que el-Rei, depois de o ter ouvido com a maior atenção, lhe respondera que ele havia jurado a constituição por sua livre vontade e que nela estavam es-tabelecidas as regras para a reformar, de modo que nem ele nem as cortes tinham o direito de arbitrariamente o fazer. Soriano, in ob. cit., p. 157 (negrito nosso).

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do a 2 de Junho, pelas individualidades, que ficaram de fora daquela gratulação. Isto é, mais de metade dos membros da assembleia opunha-se aos mais moderados – digamos – que tinham promovido as menagens.268

Os que se tinham posto à margem assentaram na re-ferida sua declaração de 2 de Junho – escreve o citado autor anónimo – que protestariam contra a violência que os ia coibir de continuar nas suas deliberações e de as fazer exe-cutar, assim como qualquer alteração que houvesse de se fazer na constituição de 1822.269

Pode dizer-se que o mencionado convénio maçóni-co-liberal, ao recusar frontalmente qualquer moderação ao clausulado da constituição da sua autoria, radicalizaram a situação e com o mesmo extremismo de posições, contribuiu em definitivo para extremar ainda mais a sociedade, enquan-to lançavam a pecha do rastilho da guerra fratricida que daí a pouco tempo pôs a nação ferro-e-fogo, deixando as sequelas que ainda hoje nos interpelam.

268 Soriano cita o discurso que D. João VI dirigiu ao povo naque-la circunstância, depois de instado, pela referida deputação, receosa do agravamento do clima antiliberal que crescia na população: Ci-dadãos! Eu não desejo nem nunca desejei o poder absoluto e hoje mesmo o rejeito. Os sentimentos do meu coração repugnam ao des-potismo e à opressão; desejo sim, a paz, a honra e a prosperidade da nação. Habitantes de Lisboa, não receeis pelas vossas liberdades; elas serão garantidas por um modo, segurando a dignidade da co-roa, que respeite e mantenha os direitos dos cidadãos. Entretanto, obedecei às autoridades, esquecei vinganças particulares, sufocai o espírito de partido, evitai a guerra civil e em pouco vereis as novas bases de um novo código que, abonando a segurança pessoal, a pro-priedade, os empregos, devidamente adquiridos em qualquer época do actual governo, dê todas as garantias que a sociedade exige, una todas as vontades e faça a prosperidade da nação inteira. In ob. cit., p. 164 (negrito nosso). 269 Cf. História d’el-Rei D. João VI…, p.103.

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O regresso do “Desejado”

D. João VI reagiu à rebelião de Vila Franca com ges-tos de grande repercussão e acabou envolto em aclamações populares, enquanto no secreto das lojas tinha lugar o en-contro dos membros mais pertinazes, que juraram naquela mesma noite de 2 de Junho de 1823, ir contra qualquer tipo de alteração aos seus ditames, ainda que a eventual propos-ta viesse de liberais. Tal divergência de opinião, entre ma-çons, é demonstrativa da desunião das forças no terreno, não obstante a cedência do rei, às exigências dos cabecilhas de 1820, que pretendiam manter nas mãos as rédeas do poder e, à sua maneira, gerir os negócios de Estado.270

Feria o orgulho e os propósitos, por eles delineados, o facto d’el-Rei D. João VI ter feito do infante D. Miguel, Generalíssimo dos Exércitos – nomeação, aliás, condizente com a inerente sua categoria de Condestável do Reino, na qualidade de segundo filho-varão – sendo o novíssimo título conforme ao léxicon instaurado. Mas não menos se ressen-tiram os maçons, genericamente falando, quando D. João foi encontrar a rainha ao Ramalhão, congraçando-se com os demais membros da família e de certo modo, festejando, a restituição dos seus direitos.271

270 Soriano acrescenta ao relato que faz deste episódio uma nota de interesse, que remete para a matéria abordada no convénio maçónico-liberal. In ob. cit., p. 165, Nota 2.271 Eis o relato tanto da revogação, como do reencontro no Rama-lhão, feito pelo autor da “História d’el-rei D. João VI”, a pp. 108: “Depois da contra-revolução, movido el-Rei pela facção dominante dos absolutistas [termo preferido pela facção radical em contraste com o de realistas usado pelos mais moderados] a cuja frente se acha-va a rainha, revogou imediatamente o decreto do desterro, que havia

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Paralelamente chegavam notícias de Espanha, que im-porta referir, não tanto pelos factos que respeitam à história espanhola, mas, por causa das opiniões veiculadas pelas car-tas familiares – que escaparam à delapidação do tempo e da fortuna – as quais reconstituem os acontecimentos, relatados na perspectiva das infantas. O cenário caótico, que podemos adivinhar pela narrativa de Soriano, é o símile daquele em que, do lado de lá, se moviam as filhas de D. João VI.

E não pode ser mais esclarecedor, quanto ao que se calcula e já não constitui novidade. Falamos do mimetis-mo político que agitava as duas nações, vogando ao sabor da corrente ideológica – a mesma de um lado e doutro da fronteira – verificando-se, por um lado, a necessidade dos liberais de segurarem o poder, que lhes fugia e, por outro, o alastramento do mal-estar das populações, constituindo-se o caldo propício à destituição dos códigos em vigor: a consti-tuição de 1812 em Espanha e de 1822 em Portugal, que D. João VI acabara praticamente de jurar, no 1.º de Outubro desse ano.272

promulgado contra a sua consorte, quando ela se recusara a prestar o juramento; e, por outro decreto de 2 de Junho de 1823 (1827 no origi-nal), declarou ter sido constrangido a assinar o de 4 de Dezembro de 1822 e restituiu à rainha os direitos, honras e dignidades de que, por aqueles, havia sido despojada. Teve, além disso, a condescendência de ir ao Ramalhão para a congratular pelos felizes acontecimentos, que a restituíam ao seio da sua família…em consequência desta visita voltou a rainha para Lisboa, ao cabo de uma diuturna separação, a fim de se reunir ao seu augusto marido, no palácio da Bemposta…”.272 “O certo é que a fuga do infante D. Miguel para fora de Lisboa causou nos liberais de Sevilha a maior consternação possível e em Lisboa foi olhada como um golpe mortal para a causa constitucional. Jornais houve em Espanha que clamaram contra a apatia do governo português, em semelhante conjuntura, desconhecendo e até mesmo relevando, a indiferença do seu próprio governo, que nada tinha feito para resistir aos franceses, deixando-se enganar miseravelmente com os projectos imaginários de uma revolução em França e a quimérica esperança dos auxílios da Grã-Bretanha. Não pode, pois, causar estra-

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Relendo o extracto acima transcrito da narrativa de Soriano, conforme nota de rodapé, parecem-nos obrigató-rias duas chamadas de atenção. Primeiro, o governo espa-nhol estava, agora, sediado em Sevilha. Segundo, a chamada “fuga” – isto é o movimento que alçou à sua frente o infante D. Miguel, era visto em Espanha com a maior consternação e tido como um golpe mortal, para a causa constitucional, quer dizer, as revoluções liberais na península e o governo português, também liberal que reagira apaticamente, em vez de punir os protagonistas.

Por outro lado – focando-se a crítica na atitude de Espanha – o seu governo nada fizera para impedir a in-cursão dos exércitos da França no território nacional, na expectativa de que o contexto diplomático europeu in-terviesse, nomeadamente, a Grã-Bretanha, contra a intro-missão francesa nos assuntos políticos internos daquele país.

Entrámos já no cenário europeu do congresso de Ve-rona cujas deliberações facultavam às potências signatárias o direito de intervir, quando se oferecesse a obrigação de estancar situações de alastramento de conflito, por “exces-sos de ordem democrática”, ainda que internos, às nações signatárias, dentro do previsto e acordado.

Sem comentar a força do conceito usado ali pelo autor – excessos da ordem democrática – cujo alcance não estava fora de prever a realidade política do advir não muito lon-gínquo, o reparo é digno de ser sublinhado, visto fazer eco da voz comum, que grassava. Ora, uma das potências repre-sentada em Verona, por vontade própria, era a França borbó-

nheza que, no meio de tão crítica conjuntura, a maioria dos habitantes de Lisboa se visse também obrigada a dar de mão a um sistema de governo, que supunha trazer novamente para o país os males de uma outra invasão das tropas francesas, além dos de uma guerra civil, que lhe não podiam ser mais funestos.” Soriano, in ob. cit., p. 157.

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nica de Luís XVIII. Uma vez que essa matéria extrapola o âmago da narrativa, evitaremos entrar nas boas razões, que justificariam aquelas intervenções e que para isso tinham, os franceses, particularmente.

Certo é que estava, efectivamente, em curso, um movi-mento cujo propósito era repor a ordem em Espanha, segun-do o conceito expresso, que sobrevivia mal àqueles excessos de democracia, tendo-se tornado ingovernável e ao mesmo tempo foco incendiário dos lumes que ardiam, designada-mente, no Piemonte e em Nápoles. Mas não chegara sem motivo a tal ponto, embora varie o parecer de quem observe a situação, não obstante o indiscutível sinal que garante não poder haver fumo sem fogo. Saltando etapas e discussões diplomáticas, por meados de Novembro de 1822 – pratica-mente em cima do juramento da constituição portuguesa – corria em Madrid a notícia de um ultimato de Verona, tendo como principal motor – dizíamos – a França, coadjuvada, pela Áustria, a Rússia e a Prússia.273

A Grã-Bretanha – como refere Soriano – oferecia-se, neste período, como um potencial aliado, na expectativa alimentada pelos liberais espanhóis, baseados no facto de que não participara do congresso de Verona e se achava, portanto, com as mãos livres para assinar o arranjo que mais conviesse aos seus interesses, que encontravam, neste caso, os do governo revolucionário espanhol, embora, duas nações tradicionalmente dissonantes, no concerto interna-cional.

273 “Correu logo (…) que a França fora autorizada, pelo mesmo congresso de Verona, a tomar sobre si, como país limítrofe à Espa-nha, o intervir de mão armada nos negócios políticos desta nação, segundo as bases adoptadas para tal fim, pelo referido congresso, o que se tinha por verdade, à vista dos preparativos de guerra, que no mês de Dezembro se passou a fazer em Perpignan…”. Soriano, in ob. cit. p. 117.

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As coisas não corriam de feição, quando em Janeiro de 1823 Matternich emitiu uma nota diplomática, em nome do seu governo, austríaco, visando, directamente, a situação interna da Espanha, enquanto respaldava o ofício do gover-no francês com aquela sua nota, precursora de outras, aos representantes diplomáticos das demais potências. Em sínte-se, alertava-se o governo de Espanha para a necessidade de introduzir medidas conducentes a um melhor entendimento da nação com as suas congéneres europeias, para dar ga-rantias de autoridade e estabilidade indispensáveis, às boas relações, entre potências.274

Nomeamos acima o político do momento, Metternich, o chanceler austríaco cuja palavra, a par da do czar da Rús-sia, Alexandre I, pairava acima das vontades europeias, so-bremaneira, após Waterloo. Não entraremos em pormenores concernentes ao mapa do poder europeu da época, por con-vir cercear a curiosidade e avançar com os dados que permi-tam somente compreender e na medida possível, o destino das filhas de D. João VI, no turbilhão espanhol.

Acompanhando o desenrolar dos factos, vamo-nos de-parar com o adensar do clima político-diplomático em torno de Espanha, motivado pela notificação do chanceler, na qual ele dava a entender que não havia alternativa e que do aviso passar-se-ia à efectivação da ofensiva em termos militares. Eis o que, a este propósito, escreveu Soriano:

274 Era voz pública (da imprensa europeia nos fins de 1822) que repercutia “quanto à invasão armada por parte da França, por então, era que não se reputava provável, pelo menos, enquanto as tropas francesas não fossem chamadas por algum partido ou facção po-derosa do país ou provocadas a entrar em Espanha, por excesso de jacobinismo, em cujo caso a massa do povo não podia deixar de se pôr em campo, em favor da causa realista, logo que lhe apare-cessem forças, que para tal fim lhe servissem de seguro apoio.” Soriano, in ob. cit., p. 113. (negrito nosso).

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A nota austríaca não propunha à Espanha um modo fixo e determinado, quanto à forma do governo que se desejava, coisa que se lhe deixava ao seu alvedrio. Pedia-se nela a liberdade do rei, que as nações contemplavam como cativo; pedia-se mais que o monarca fosse investido de autoridade necessária, à sua alta posição; e finalmente manifestavam--se os receios que lhes causava a revolução de Espanha, que atribuíam ao poder da força e das ocultas maquinações democráticas… 275

Destacaríamos deste trecho a insinuação da condição de prisioneiro de Fernando VII, não por se achar propriamente confinado num presidio, mas devido às restrições impostas de ordem política, que equivale à de movimentos, como adiante se verá. Aliás, o mesmo acontecia – segundo vozes da época – em relação a D. João VI. O clima de espionagem era indes-critível e a desconfiança era o modo de relacionamento dos protagonistas. Era de uma situação extrema, deste tipo, que importava libertar o rei e trazer a uma nova realidade, mais consensual e menos radical, o quotidiano, pós-revolucionário, no caso vertente e objectivamente, da nação espanhola. Portu-gal, ainda que soe estranho, não entrava no círculo estrénuo e imediato, das preocupações europeias.

Ainda e por outro lado – segundo o relato do mesmo autor – estava em causa a contenção de um tipo de revolu-ção, que tragava os próprios filhos, muitos deles, anónimos, perpetrado por atrocidades justiceiras, não se vislumbrando qual fosse o limite, à imitação do que tinha sido a época do terror em França, julgado, definitivamente, fora de qualquer hipótese de repetição. Nesta linha de pensamento é que se manifestavam os receios que lhes causava a revolução de Espanha, que atribuíam ao poder da força e das ocultas ma-quinações, democráticas…276

275 Idem, p. 118. 276 Soriano, in ob. cit., p. 118.

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Curiosamente ou nem por isso, tanto a nota do chance-ler como as dos seus pares, integrantes da reunião de Verona, chamam a atenção, por serem contundentes na insistência de um factor, premente, que era o reconhecimento dos excessos revolucionários verificados em Espanha, desde os idos de 1812 que de algum modo pareciam repetir-se com as sublevações alimentadas pela própria constituição, reposta em 1820.277

A reacção do governo liberal de Espanha, em termos de diplomacia, ignorando outra vontade que não fosse a dos próceres, maçónicos, foi de repúdio. Inteligível, por um lado, esta atitude, contra o tipo de ingerência que envolvia o pressuposto bélico, deixará de o ser, quando entendida sob a perspectiva de que a própria Espanha tinha sido uma das vítimas do imperialismo napoleónico e que igualmente con-signara os acordos de Viena, sob alguma caução.

Como desfecho das notas aludidas cumpriu-se a ame-aça, tendo começado a retirar da capital espanhola os re-presentantes diplomáticos das referidas nações, no curso do mês de Janeiro de 1823. Simultaneamente, o apoio de Ingla-terra mostrava-se falho, não indo em socorro de Espanha, como se chegou a acreditar em Madrid.278

277 “Todas as quatro notas [Áustria, Rússia, Prússia e França] eram acordes em repelir a constituição espanhola, como imposta à nação por uma insurreição militar [a do general Riego em 1820], mas não diziam quanto ao governo, por que devia ser substituída.” Idem, p.119.278 Perante a incapacidade do enviado britânico à corte madrilena, de obter o consenso que evitasse a intervenção francesa, diz Soria-no: “O mesmo O ’Court [enviado inglês], convencido disto, tentou induzir o governo espanhol a compor-se com a França; mas o cha-mado partido dominante não queria por modo algum prestar-se a uma acomodação, pela qual não só evitaria a efusão de sangue, mas até mesmo a sua própria e inevitável ruína não atendendo a que o entusiasmo dos gazeteiros contrastava manifestamente com a in-diferença do povo e das mesmas sociedades da capital, com bem poucas excepções. Muitos espanhóis havia já que olhavam para a

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Não tardou a repercutir-se a voz de Luís XVIII, atra-vés dos bastidores franceses, ainda antes de findar aquele mês de Janeiro, repetindo o seu discurso, a todos os títulos paradoxal, pelo qual o monarca se oferecia curador dos ma-les, originais de França, que desde 1789 tinham causado a implosão da Europa inteira.

A cegueira com que se tem repelido as representações fei-tas em Madrid, dá pouca esperança da conservação da paz. Chamei, portanto, o meu ministro; 100 000 franceses co-mandados por um príncipe da minha família, por aquele a quem o meu coração se compraz em chamar meu filho, es-tão prontos a marchar, invocando o Deus de S. Luis, para conservarem o trono de Espanha a um neto de Henrique IV, para preservarem este belo reino da ruina e reconciliá-lo com a Europa.se a guerra for inevitável, empregarei todos os meus esforços para lhe estreitar o círculo e limitar a sua duração. Ela não será empreendida senão para conquistar a paz, que o estado da Espanha tornaria impossível. Que Fer-nando VII seja livre de dar aos seus povos, as instituições que eles não podem, haver, senão dele e que, assegurando o seu repouso assegurem também as justas inquietações da França. É este meus senhores, o solene comprometimento, que diante de vós tomo.279

As palavras de Luís XVIII são autoexplicativas. Ver--se-ia o seu discurso levado à prática dando execução à von-tade em torno da Santa Aliança, apostadas, como estavam, as nações aliadas, em prosseguir o desígnio que eliminasse o mal trazido à Península, semeado pelos exércitos napoleóni-cos em 1807. A chaga não tinha sarado nas mentes nem nos

intervenção estrangeira como o único meio de salvar a Espanha da sanguinolenta guerra civil de que começava a ser vítima.” Ibidem, p. 121. (negrito nosso).279 Trecho do discurso de Luís XVIII da França, Apud Soriano, in ob. cit., pp. 121-122.

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corações dos povos. Pelo contrário, mantinham-se acesas as chamas da revolução, alimentadas por meio dos obscuros interesses das lojas, mais preocupados os seus membros, por razões intelectuais, na revolução do que nas da pobre gente, iludida pela retórica, perdidas, como ovelhas sem pastor.280

Postos em marcha os preparativos da incursão militar, no intuito de frear os impulsos da revolução contínua, que progredia por toda a Espanha, sem se avistar nela os bons frutos pregoados pelos próceres, viu-se o exército, emble-maticamente denominado Os 100 000 filhos de S. Luís con-duzidos pelo duque de Angoulême a atravessar o Bidassoa a 7 de Abril de 1823 e acampar em Logronho, dali a dez dias.

Antecipando-se, Fernando VII e a família real tinham deixado Madrid a 20 de Março, com destino a Sevilha, onde a corte deveria permanecer, após a lenta caminhada de 20 dias, protegida a extensa comitiva, por um dispositivo de 20 000 homens armados e destes, uma guarda pessoal de uns 6 000 de tropa de linha e voluntários madrilenos, muni-dos de artilharia. Entretanto, corria em Espanha a notícia da

280 Às vésperas da iminente incursão armada, achava-se a Espanha no limite da sua capacidade de sobrevivência, nação grande, que ti-nha sido. O estado miserável das gentes e das instituições é descrito nas memórias da época. Coevo, é o relato francês, publicado três anos depois destes acontecimentos, onde o seu autor destaca o quadro de miséria geral: “Après deux ans de révolution, l’Espagne se trouvait réduite à la plus triste situation : son commerce était anéanti, son agriculture négligée et son crédit presque entièrement perdu. Toute la population, distraite de ses occupations habituelles, était divisée en deux partis qui se faisaient une guerre à outrance. Les routes étaient infestées par des bandes de gens qui souvent n’avaient d’autre bout que de profiter des troubles pour se livrer impunément à toutes sortes de brigandages. Le gouvernement était méconnu et repoussé par la moitié de l’Espagne ; ce pays enfin n’offrait plus à ses habitants et à ses voisins de sécurité pour le présent ni d’espoir pour l’ave-nir.” Horace Raisson, Histoire de la Guerre d’Espagne en 1823, Paris, 1827, p. XX

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rebelião antiliberal do conde de Amarante no norte de Por-tugal – lembramos – que antecedeu a revolta de Vila Franca, sincronicamente, à incursão militar, francesa.

A notícia em Espanha das ocorrências do lado de cá, obrigou o governo liberal espanhol a tomar certas medidas de precaução, não apenas no intento de se precaver a si mes-mo de algum desaire, mas também defender os membros da família real, que no limite lhe servia de escudo. Essa foi a razão, pela qual, a entrada de Fernando VII em Sevilha, prevista para dia 23 de Abril, sofreu um avanço de duas se-manas, por decisão daquele seu governo.

Uma vez instalados em Sevilha, corte e governo, de-cretou este, de imediato, guerra à França. Julgando-se em segurança e usando da retórica lexical ajustada aos seus princípios, sem conter nada de palpável, em relação ao esta-do miserável da população, o discurso belicoso do ministé-rio soou aos ouvidos dos sediciosos, mas não produziu nada de concreto a favor do povo. Enquanto isso, a divisão militar do duque de Angoulême abivacava em Burgos, donde emi-tiu a ordem de reunião das unidades no terreno, de avançar conjuntamente sobre Madrid, como aconteceu, tendo o exér-cito feito alto a uma distância de 4 léguas desta capital, a 3 de Maio de 1823.281

Um nome emerge então em Portugal, nome que nunca mais deixou de ser um ícone a pender sobre os destinos por-

281 O relato precisa que foi a Burgos – onde estacionara por três dias o duque de Angoulême – que foi ter o séquito do conde de Amaran-te, com intenção de se reunir ao exército francês. Como se sabe e o relato confirma, a oferta do conde não foi aceite, pelas razões invo-cadas ali, evitando Angoulême de abrir uma frente não prevista no momento, aos franceses. “Ce général que pouvait disposer de quatre mille hommes et de quelques pièces d’artillerie, ayant vu ses offres repoussées, retourna en Portugal où bientôt après triompha la cause qu’il était venu défendre en Espagne.” Raisson, in ob. cit., p. 44.

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tugueses: o do infante D. Miguel de Bragança. Isto se con-clui da copiosa informação onde a sua imagem é destacada, enquanto fonte de preocupação dos membros actuantes das lojas maçónicas, na disputa que travam contra ele, pela con-duta dos destinos da nação.

Dali em diante nunca mais deixariam os seus adver-sários políticos de seguir os seus passos, reais ou imagina-dos, num ambiente de permanente vigilância, sempre atento aos movimentos do infante e da rainha, D. Carlota Joaquina, qual astro orientador dos actos do filho, extensão da von-tade dela, tido e visto assim, pelos adversários. Não resta dúvidas de que a rainha pensava pela sua própria cabeça e agia – como sempre agiu – de acordo com as suas crenças e princípios.

Constituíra-se D. Carlota Joaquina, desde cedo, uma vontade a ter em conta, como já notámos noutros lugares e aqui. A rainha, nascida infanta de Espanha, criara uma aura de má-vontade, junto de alguns círculos da corte portugue-sa, que adveio, com o passar do tempo e das circunstâncias, elemento adensador da sua imagem, mesmo quando actua-va debaixo da melhor das motivações, tal como a luta que moveu sempre contra Napoleão. Nesse tempo não hesitou sequer alinhar – como lembramos – com a Regência de Cá-dis, de índole maçónico-liberal, em prol da causa comum, que era libertar Espanha das garras bonapartistas e restaurar a coroa dos Borbón.

Igualmente e por extensão D. Carlota Joaquina, a partir do Rio de Janeiro, estendeu a sua influência, na luta travada contra a onda separatista, que alastrara na América hispânica, inclusive, uma guerra surda ao primo e seu genro, D. Pedro Carlos, que cria menos afecto à causa pátria, leia-mos, espanhola. Não pouco cavou o fosso que a separava do Príncipe-Regente, seu marido, nesta atitude persecutória

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que atingia o ministério português, tendo-o por insuficiente e pouco enérgico nas medidas que tomava e em desapoio ao seu desígnio.

Não era, pois, sem motivo, que D. João deixara de confiar na esposa, enquanto interlocutora, nas questões me-lindrosas, que respeitavam a política e a diplomacia de Es-panha, por reconhecer que ser uma Borbón, para D. Carlota, vinha em primeiro lugar. É neste sentido pelo menos que apontam os indícios que tornam singular a conduta de D. Carlota Joaquina, notadamente, quando passaram a estar em causa os direitos ao trono e à coroa do reino, sua putativa su-cessora, na qualidade de infanta de Espanha, na crise gerada, pelo afastamento, imposto a Fernando VII.

Tal reflexão interpela-nos, no sentido de obter respos-ta e perceber, até que ponto D. Carlota Joaquina agia como inimiga de Portugal. Isto partindo do pressuposto que a sua intervenção na coisa política se pautava, toda ela, sob o véu da clandestinidade e da suspeição, excepto a proposta oficial da sucessão, à coroa de Espanha e seus domínios, naquele tempo. Mas se por um lado, permanecem escusas e obscuras as causas por detrás da sua acção, antes da saída da corte de Lisboa para o Brasil, não se pode responder o mesmo, em relação à causa que ousou defender, como antiliberal.

Perante o agravamento da situação política em que a Espanha de permanente guerra civil, após a insurreição do general Riego, em Março de 1820 – obrigando à repo-sição constitucional da traga – tornou-se o ambiente do reino espanhol num factor determinante para o desenca-dear da revolução em Portugal, logo em Agosto seguinte, que causou uma instabilidade de cariz idêntico àquele, em menos de três anos. É razoável supor que os promo-tores da revolução, face ao perigo eminente que para eles representava a afronta de D. Carlota Joaquina – infanta

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de Espanha e rainha-consorte de Portugal – só podiam ver nela uma opositora de peso e a ela é que temiam as facções, votando-lhe um inaudito e famigerado ódio de morte.

Não deve pois, surpreender, a vigilância – dizíamos – a que ficou sujeita, mais do que ninguém, a rainha, mais, ainda, depois da sua ostracização política, obrigada ao exílio do Ramalhão, assim como a estrita vigilância de que eram alvo os passos de todos aqueles que a visitavam, segundo os testemunhos, não por acaso, todos da pena de liberais con-fessos ou encobertos, atrás da ferocidade panfletária, mais ou menos, clandestina, repetidas nas memórias: A arma que nos resta é a língua, declarava ainda no congresso, o depu-tado maçónico-liberal, Barreto Feio.282

282 Apud J. Serrão, artigo Vila-Francada, in Dicionário de Histó-ria de Portugal. Fiel às fontes e para evitar a proliferação de vozes, uma vez que, são uníssonas, veja-se, a título de exemplo: “A própria rainha D. Carlota Joaquina, tendo-se abertamente declarado hostil à constituição, não lhe foi difícil iludir a vigilância da polícia e corres-ponder-se livremente, não só para Espanha, com seu irmão, Fernando VII, por meio de agentes estrangeiros que, disfarçados em trajes de pastor, penetravam muito a seu salvo na quinta do Ramalhão, mas até com os próprios colaboradores portugueses, com os quais se achava de colaboração e acordo, sendo seu filho um, dos que de noite ia receber as ordens dela.” Soriano, in ob. cit., p. 154; “Havia algum tempo que esta conspiração se tramava, tendo já chegado aos ouvidos d’el-Rei; nela, tomava parte a rainha, como sempre aconteceu em todas as cabalas, que se forjaram, desde o seu regresso do Brasil, achando-se em contínua correspondência com seu irmão Fernando, por intervenção de muitos agentes sagazes, que souberam iludir a vi-gilância da polícia, entre os quais sobressai o famoso Fort, conhecido pelos nomes de coronel Fort e de marquês de Guarany, agente do Dr. Francia, chefe supremo do Paraguay e da facção apostólica [nome dado aos carlistas, em Espanha, anos mais tarde]. Este hábil intrigan-te, disfarçado em trajes de pastor, comunicou-se sempre facilmente com a rainha na quinta do Ramalhão.” In História d’el-Rei D. João VI…, pp.99-100.

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Não foi isso, extraordinariamente, suficiente para de-salentar a rainha, a ponto de a levar a abdicar da sua razão – razão de viver – diríamos. Porque é inevitável reconhecer a debilidade física de D. Carlota Joaquina, factor tido em pouca conta, quando se fala dela, preferindo-se, na esteira dos inimigos, vê-la como uma megera, alimentada por uma inesgotável energia, esquecendo que esta tenacidade lhe ad-vinha da porfia e da força da razão, que alega, pelos direitos em que fora nascida e criada.283

Infelizmente, o acervo conhecido da correspondência privada da rainha não se oferece tão copioso que permita avaliar a densidade das suas preocupações políticas, inega-velmente visíveis ao longo da sua vida adulta e mais ainda, na fase de que tratamos, aqui, nomeadamente, a que trocou com as filhas, iniciada, ainda no Brasil e depois, a partir de Lisboa. O que nos chega em termos de correspondência fa-miliar é, sobretudo, a que foi trocada, entre as infantas em Espanha e o pai.

A explicação já foi dada e nela a descodificação do enigma, acerca do desaparecimento do inefável espólio, o que se justifica pelo carácter clandestino ou semiclandestino da correspondência da mãe e das filhas, sem falar da que D. Carlota Joaquina trocou com Fernando VII. A palavra de ordem era de destruir as missivas – o que vale para ambos os lados – uma vez que não se trata de algo anódino, mas sim tomadas de posição, em torno da candente realidade. Nem

283 Tem passado muito desapercebida a qualidade intelectual de D. Carlota Joaquina de Borbón ou, pelo menos, das suas preferências de leitura. Acerca do recheio da sua biblioteca privada, conhece-se um estudo em vias de publicação, que traz muito à atenção a diversidade de conteúdos, nos quais entram, inesperadamente, obras de carácter iluminista-revolucionário, a par das de feição, confessional. Não foi também descurada aquisição de obras de índole romanesca, já ao gos-to do moderno século XIX. Vd. Moizeis Sobreira de Sousa, Catálogo da biblioteca da rainha D. Carlota Joaquina, no prelo.

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todas, porém, desapareceram e vieram hoje a ser o âmago destas reflexões.

Falávamos da emergência de D. Miguel na conjun-tura que se abriu em 1823. Sincrónico à migração da corte madrilena para Sevilha, pelas razões já adiantadas, vê-se re-percutir em Espanha o aplauso de que é alvo o gesto do in-fante, embora, neste particular, silenciado, pelos publicistas portugueses, justamente, porque o regozijo lhes escapava, por girar fora do seu alcance imediato e no recôndito dos aposentos das infantas.

Assinala-se, com o atraso da distância e das circuns-tâncias, o júbilo que causou a mudança de rumo político, que se anunciava, em Portugal. Na suposição das filhas de D. João VI era o desígnio o mesmo, aquele que as obrigara a deambular pelo território afora, parecendo-nos que espe-ravam ver concretizado tanto cá como lá, o retorno à esta-bilidade e aos tempos felizes. A persistência da ideia, em torno da defesa dos valores antigos, sintetizado na máxima do trono e do altar, é a que permeia as primeiras reacções das infantas, mal lhe chegou ao seu conhecimento a notícia do que se tinha passado cujo desenlace decorreu, auspicioso, entre 31 de Maio e 3 de Junho de 1823.

Precisamente um mês depois destas ocorrências – das quais o protagonista maior é D. Miguel – lemos nas entreli-nhas das cartas de Espanha um confessado orgulho, agrada-das as duas irmãs do heroísmo do irmão, tão ao encontro dos seus próprios almejos. A resposta é, primeiramente, muito sucinta, talvez devido à escassez de elementos de que dis-punham, mas também em virtude da situação de incerteza e grande provação, por que estavam a passar.

Neste sentido, é notória a pressa com que escreve a princesa D. Maria Teresa e o estado de nervos, observável no entrecortado das frases e na condução das ideias, como

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relembramos. Referimo-nos à carta, que estimamos como muito significativa, pelas razões apontadas no corpo do tex-to e abaixo reportada.284

E se nesta missiva não há muito a comentar, para além do que fica dito, acerca do desejo da princesa, de que D. João viesse a voltar a governar nos moldes de D. Maria I, já na sua carta de 23 de Junho, de Cádis – onde a corte acabava de se instalar – a opinião que expressa é mais completa e igualmente densa, quanto ao propósito. É aqui, então, que abertamente se toma consciência do papel do infante D. Mi-guel.285

Apesar da esperada veemência das palavras da prince-sa da Beira, surpreende-nos pela sua não menor veemência as expressões da infanta D. Maria Francisca, por imprevis-tas. E contudo, ainda em cima da notícia da entrada em Lis-boa, do infante D. Miguel – que vê como braço defensor da honra e princípios comuns – são dela as palavras que anteci-pam as da princesa da Beira.

Meu Pai e meu Senhor, já que tenho ocasião de escrever, não quero deixar de o fazer para lhe dizer que o que deve fazer é não se deixar enganar e não fazer nenhuma modi-ficação, pois fica perdido para sempre; eu sei que no rei-no há grande embrulhada para conseguirem isto, pois é o que todos os que estão comprometidos com esse governo querem, para assim que possam, torná-lo a pôr do mesmo modo que agora é pior; creia que isto não é falso, pois eu o sei decerto e o faço pelo grande amor que lhe tenho e porque quero vê-lo como deve ser; todos os que estão

284 Sevilha? 7 de Junho de 1823. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 155. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 447.285 Carta de Cádis 24 [23] de Junho de 1823. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 157. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., pp. 447-448.

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ao seu lado são interessados em esta tramóia, porque são péssimos e só querem atraiçoá-lo. As cartas que lhe es-crevemos no dia 5 de este não podem ir, pois como foram escritas, cuidando que já estava livre de tudo, não podiam ser vistas nestas desagradáveis circunstâncias, pelo não comprometer; tenha firmeza pois é o que se necessita; e todos esperamos que Deus o ajudará, pois todas as pesso-as boas estão fazendo orações, para que Deus o livre dos seus inimigos, que é o que todos desejamos, pois enquanto não for isto assim, não pode ser feliz. Estamos todos no maior conflito até saber o que lhe tem sucedido, pois todos o amamos e respeitamos como devemos. A nossa alegria é muito grande ao mesmo tempo por ver que o seu filho o quer por Absoluto como deve ser, pois de outro qualquer modo é o mesmo que nada e se se faz não tem remédio. Peço-lhe que me deite a sua bênção e que creia que tudo isto lho digo, porque sou e serei sempre, sua Filha muito amante e obediente e que só deseja vê-lo como deve ser M.286

Trata-se de uma mensagem autoexplicativa e não ca-rece de outras achegas. Sublinhe-se, entretanto, o à-vontade da infanta – de resto, apanágio das filhas de D. João VI – quando tece recomendações de cariz político, baseada não só na confiança mas, sobretudo, na amarga experiência, que ia acumulando, na vivência da corte madrilena.

O lema da infanta é o do costume, não fugindo à gíria imposta pelo léxico revolucionário, ao classificar o regime, a que aspirava tornar, como absoluto. Na mão do infante D. Miguel, o mais jovem dos irmãos, o irrequieto rapaz, que dava que fazer à mãe e às irmãs não poucas arrelias lá, nos idos do Rio de Janeiro, mostrava-se agora o garante da con-servação da coroa e segurança paterna: 286 Carta de 7 de Junho de 1823, s/l – Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-50, nº 58. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 508.

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A nossa alegria é muito grande ao mesmo tempo por ver que o seu filho o quer por Absoluto como deve ser, pois de outro qualquer modo é o mesmo que nada e se se faz não tem remédio.

Não traria o almejado remédio, qualquer outra solu-ção, que não fosse desfazer o malfeito, julgando, a infanta, o pai alinhado com os inimigos, sozinho e à revelia da demais família que, não obstante, se unia em torno dele. Encoraja--o, portanto, julgando-o medroso e enganando-se nesses as-pecto – como quase toda a gente – acerca da maneira de agir de D. João VI. D. Maria Francisca de Assis mostra ter uma opinião bastante sólida, do que deveria ser feito, po-liticamente falando, sustentada na sua própria experiência, como dizíamos. Logo, não se encurta de opinar que, o que o pai devia fazer, era não se deixar enganar e por conseguinte não ceder a fazer nenhuma modificação, pois ficaria perdido para sempre.

Entende-se que a infanta está a par das propostas em curso, que tinham sido feitas, no sentido de alterar a cons-tituição, o que significava na prática, manter inalterável a índole filosófica e revolucionária, em que esta assentava, deixando bem claro o seu ponto de vista, nesta matéria:

…Eu sei que no reino há grande embrulhada para conse-guirem isto, pois é o que todos os que estão comprometidos com esse governo querem, para assim que possam, torná-lo a pôr do mesmo modo que agora é pior.287

287 Na opinião de um indefectível liberal (autor da citada História d’el-rei D. João VI) vislumbramos o clima de efectiva embrulhada, usando as palavras de D. Maria Francisca, ressaltando o oportunismo dos protagonistas: “O novo ministro dos Negócios Estrangeiros [con-de de Palmela] dirigiu uma circular a todas as cortes, em que, confes-sando haver el-Rei jurado a constituição da melhor vontade, por se persuadir conformar-se destarte com o voto nacional, pretendia que, pelo mesmo motivo de satisfazer os bem manifestados desejos da na-

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Estranhar-se-ia, se menos avisado, ver o conde (e mais tarde duque) de Palmela metido nestes pareceres, após a sus-pensão da constituição de 1822, aclamado que foi D. João VI, pela população com vivas a el-Rei Absoluto e prometendo modificá-la de maneira mais conforme à vontade geral (pro-jecto logo rejeitado, como se viu, pelos membros das lojas no governo) e tecer elogios a D. Miguel figuras moderadas da nobreza e elite intelectual, das quais o futuro duque pretendia ser um. Era para a influência malévola deste círculo, por falsa, que alertava de Espanha, aquela filha de D. João VI:

…Todos os que estão ao seu lado são interessados em esta tramóia, porque são péssimos e só querem atraiçoá-lo.288

ção, é que ele havia derrogado aquela lei fundamental, pelo ministro estigmatizada de subversiva. Teciam-se nesta participação os mais pomposos elogios ao valor e demais partes do infante D. Miguel a quem, na opinião do então conde de Palmela, devia Portugal a sua salvação”. Cf. História d’el-Rei D. João VI…, p. 105. (negrito nosso).288 As notas ao texto do autor, acima citado (notas acrescentadas em data posterior à 1.ª ed.), vão no sentido de explicitar algumas das ideias expressas antes e no sentido de desculpabilizar a conduta de algumas das figuras que refere (como seja o duque de Palmela) na-quela circunstância, como no de reconhecer, que a acção de D. João VI tinha sido a mais acertada, tendo em conta o caos conjuntural. Diz a Nota O, a pp. 167: “… é porém notório que o duque de Pal-mela nunca entrara nos criminosos intentos do ex-infante e de seus satélites. A sua política é bem conhecida: prudente, sagaz e activo ao mesmo tempo deu, a princípio, estudadas mostras de partilhar o puritanismo político do ex-infante, para a seu salvo, poder minar o monstruoso sistema de terror e perseguição e sobre as ruinas deste, estabelecer o da moderação e regrada tolerância…”; Logo na Nota Q, opina sobre a atitude do rei (Junho de 1823): ”Em honra d’el-Rei D. João VI, em honra da maioria dos seus conselheiros, devemos con-fessar, que o governo estabelecido pela contra-revolução de 1823, longe de ser feroz, bárbaro e estúpido, como era de esperar de um partido, que recobrou a sua influência, pela resolução que tomara D. Miguel, com as suas criaturas, de derribar a constituição do Estado, foi, pelo contrário, o mais suave, justo e esclarecido, que as circuns-

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É digno de nota que, não obstante a situação de crise aguda, por que passava o reino de Espanha e a sua corte, em particular, pelos motivos sobre os quais discorremos, as fi-lhas de D. João VI prestassem tanta atenção ao que corria em Portugal, sobretudo no que concerne ao bem-estar do pai, que julgam isolado e entregue a si mesmo, rodeado de inimigos:

…E todos esperamos que Deus o ajudará, pois todas as pes-soas boas estão fazendo orações, para que Deus o livre dos seus inimigos, que é o que todos desejamos, pois enquan-to não for isto assim, não pode ser feliz. Estamos todos no maior conflito até saber o que lhe tem sucedido, pois todos o amamos e respeitamos como devemos.

O tempo é que havia de dizer da razão, se esta assistia ou não do lado da infanta que escreve, ao encontro da ma-tâncias podiam permitir”. E acrescenta: “Esta verdade talvez se não pudesse descortinar em 1827, quando esta obra foi escrita (…). A nomeação de uma Junta para apresentar o projecto da lei fundamental do Estado, claramente mostra a consideração em que o ministério absolutista [saído da remodelação pós de Vila-Franca] tinha a opi-nião pública, que não tem sido raro vermos entre nós, desprezada, ainda mesmo por ministros da coroa, responsáveis para com a Na-ção. Por outro lado, a diferença de opiniões e princípios políticos dos membros da Junta, também nos demonstra que a lei fundamental, que o governo pretendia, era tal, que devia reunir as simpatias não só dos povos, como da mor parte dos notáveis, conciliando todos os interesses, quando bem entendidos, como fazendo-os dimanar de um centro comum – o bem público.” Indica seguidamente os nomes dos membros da dita Junta de 14 membros, nomeada pelo decreto de 11.6.1823, criada no sentido de fazer a reavaliação da lei fundamental (constituição de 1822), tendo como presidente o conde de Palmela, projecto que nunca chegou a ir por diante: “Passados alguns meses em deliberações ora abandonadas, ora recomeçadas, conforme as es-peranças ou os receios dos ministros e a necessidade de conciliar a opinião pública, que eles sempre respeitaram, concluiu a junta os seus trabalhos e dissolveu-se em 1824, apresentando a el-Rei um projecto de constituição, que nunca fora avante.” In ob. cit., p. 106 e pp. 168-169.

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nifestada pelo dito autor da História d’el-rei D. João VI. Da parte do monarca português, nada sabemos da resposta que deu às filhas, mas estaremos certos em adivinhar, a sua ten-tativa, que terá feito, de amenizar os ânimos exaltados das filhas e cogitado no silêncio dos seus pensamentos a maneira mais ajustada de levar a bom porto aquele barco.289

O que se sabe ao certo é a tentativa de D. João VI de retirar de Espanha as filhas e respectivas famílias, quan-do lhe chega notícia fidedigna da incursão francesa e do clima de guerra civil, prestes a estalar. Envida o monarca esforços diplomáticos para a saída delas, em termos pa-cíficos, para com o governo liberal, no seu exílio ambu-lante, sem alcançar o pretendido. Por decisão do conselho de Estado espanhol não se anuiu ao pedido do rei de Por-tugal, sendo obviamente discordantes das suas, as razões invocadas.

Temos em pauta a carta da princesa da Beira, de Cádis de 2 de Julho de 1823, em resposta a uma do pai, de 25 de Junho, onde ele dava indicações dos preceitos para saírem, diplomaticamente, daquele reino. Fica-se a saber que D. João VI enviara um agente inglês àquela cidade portuária, combinado com o encarregado de negócios português na corte espanhola, José Severino Gomes, para tratar conve-nientemente da retirada delas.

289 Sublinhamos as contradições entre os membros do governo li-beral, no advento do movimento contrarrevolucionário, segundo a opinião de um dos seus próceres: “Tão convencido da utilidade das associações públicas, quando estas tendem a aumentar a massa das riquezas, que hão resultado entre nós das sociedades secretas, cre-mos que o governo tem rigoroso dever, tanto de promover e auxiliar aquelas, como de embaraçar e reprimir estas, se não quiserem que a causa da liberdade e dos povos ande sempre em contínua oscilação, como joguete das mais baixas intrigas…” In ob. cit., ed. de 1866, Nota R. (negrito nosso).

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Ao contrário do expectável nem a interposição de Fernando VII obteve a resposta pretendida, do seu conselho de Estado, que foi negativa. O assunto acabaria por morrer, forçado pelo agudizar das circunstâncias, no território. Ao mesmo tempo, depreende-se quão importante se revelava a família real para os liberais, como sua refém, metidos num beco sem saída e já cercada praticamente, toda a região, pelo exército francês, prestes a desencadear o assalto a Cá-dis, como acabou por acontecer. O dramatismo da situação é descrito, vividamente, pela princesa da Beira:

Meu Pai e meu Senhor cheia de amor e respeito beijo a mão a VM Ontem de tarde recebi uma carta de VM, datada de 25, a qual veio pela barca de vapor, o inglês que a trouxe só o vi hoje, pois as cartas as recebi por mão de Severino Gomes, por quem soubemos o fim a que vinha o dito inglês; imediata-mente fomos, eu e a mana, falar a el-Rei e SM nos disse que às 9 horas da noite fôssemos ao seu quarto, quando estivesse no despacho, para lhe participarmos os desejos de VM mes-mo diante do ministro de estado; assim o fizemos, dizendo a SM que tínhamos recebido carta de VM pela barca de vapor e que o portador da dita carta era um inglês que vinha da parte de VM buscar-nos e aos nosso filhos, se SM tivesse por bem dar-nos licença. SM respondeu que consultaria os ministros, o Carlos,290 pela sua parte, mandou chamar Calatrava291 (que é muito parecido com José da Silva292) e lhe disse que espe-rava que ele fizesse todo o possível para que obtivéssemos li-cença, ao que ele respondeu que não era possível obtê-la, nas circunstâncias presentes, para os nossos, filhos só que para nós só, que poderia ser, que SM tinha mandado reunir o Con-selho de Estado para que desse o seu parecer; porém, que ainda que o dito Conselho o desse a favor, que as Cortes o

290 Irmão de Fernando VII e marido de D. Maria Francisca de Assis.291 José Maria Calatrava (1781-1846)292 Alusão provável a José da Silva Carvalho.

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não consentiriam. Agora veio Calatrava dizer ao Carlos, que o Conselho de Estado tinha decidido que, não só não consen-tiam que fossem os nossos filhos, porém nem a nós: em uma palavra que nenhuma pessoa real daqui sairia! VM julgue o desgosto em que estou, pois além de conhecer por este fac-to, mais evidentemente os pérfidos fins destes malvados, fico privada de aproveitar esta ocasião de ir ter a honra e fortuna de gozar a companhia de VM o que tanto e tanto ambiciono; eu bem sei que aí se tem dito mais de uma vez que se eu qui-sesse podia ter deixado de seguir El-Rei e a família real e ter ido para esse reino; por este acontecimento fico justificada e VM, certo de que nunca lhe digo senão a verdade (…). Os franceses conservam-se no Porto de Santa Maria…293

Depois da peremptória declaração do ministro, já em cima do fecho da carta para o pai, a princesa dá-lhe a ele e a nós, o vislumbre do cenário de guerra aberta:

…Agora veio Calatrava dizer ao Carlos, que o Conselho de Estado tinha decidido que, não só não consentiam que fossem os nossos filhos, porém nem a nós: em uma palavra que nenhuma pessoa real daqui sairia!

Esta era a rotina imposta à família real de Espanha, opinião que a dureza da sentença, ditada pelos conselheiros de Estado, não permite desfazer.294

293 Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 159. Publicada por Ân-gelo Pereira, in ob. cit., pp. 449-450. (negrito nosso). Logo na carta de 5 de Julho, a princesa esclarecia: “Pelo portador desta tive a honra de receber carta de VM., enquanto à comissão, que ele trouxe, por Severino Gomes saberá VM o resultado.” Idem, BA – 54-IX-51, nº 160; Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., pp. 450-451.294 O tom peremptório dos liberais, perante o desafio, mostra como o governo se via acossado. Serve de exemplo o episódio, relatado por Soriano, quando se discutia a saída de Sevilha da corte para Cádis, cidade onde grassava uma epidemia de cólera, violenta: “Era, portan-to, evidente, que o intento dos franceses, depois de tomarem Madrid, era marchar contra Sevilha, onde os liberais dificilmente lhes podiam

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O trecho que damos em nota abaixo fornece matéria bastante para uma dissertação. Dela acentuaremos somente as passagens, que vão ao encontro do que sabemos, por in-termédio das cartas de família. É de facto indesmentível a sintonia dos relatos em causa, cotejo que iremos tecendo, à medida do ensejo. Assim, pela carta de Sevilha de 2 de Junho, a princesa da Beira dava conta ao pai do estado de coisas:

Meu Pai e meu Senhor: beijo com o maior respeito e amor a mão a VM, desejando quanto é possível a sua boa saúde. Agora vou dizer a VM que ontem houve aqui um grande resistir, pela insuficiência das forças de que para isso dispunham. Desde então, o terror difundiu-se em toda esta cidade, afectando os próprios deputados, muitos dos quais se ausentaram, pretextando mo-léstia, seguramente, por se considerarem comprometidos. Todavia, uma grande parte dos restantes deputados, assim como o governo, resolveram transferir-se para Cádis. Levando consigo o rei e a família real, tentando assim os últimos lances da desesperação, não obstan-te irem todos expor-se ao contágio da febre-amarela, que por então grassava naquela cidade, atento o justo receio que sobre isso havia na estação em que se estava. Quando o ministro D. José Calatrava fez em nome do governo a sua proposta a el-Rei, disse-lhe este que, à vista da existência daquela moléstia em Cádis, semelhante proposta equivalia a querê-lo matar e a toda a real família. A isto lhe respondeu Calatrava friamente, dizendo que Sua Majestade não ia ali correr mais risco do que ele próprio e os mais que, pela causa da nação faziam aquele sacrifício e acabou pedindo-lhe que convo-casse o seu conselho de Estado, para o consultar sobre isto, com toda a brevidade, por não haver tempo a perder. As cortes, pela sua parte, mandaram uma deputação a el-Rei, no dia 11 de Junho, convidando-o também a dirigir-se para Cádis, convite que ele, obstinadamente, se recusou, o que deu causa ao deputado Galiano, considerando el-Rei como demente, propusesse que, à vista da recusa, manifestada pelo monarca, em pôr a sua real pessoa e a sua real família em segurança, forçoso era nomear-se uma regência provisória, à qual se confiasse o poder executivo, o que foi aprovado pelas cortes, lavrando-se no dia 12 [de Junho] o respectivo decreto…”. Cf. ob. cit., pp. 128-129. (negrito nosso).

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barulho, que durou, desde a uma hora da tarde, até às onze e meia da noite (já se sabe, feito pelos milicianos nacio-nais); saquearam as casas do Chantre e de um Cónego e fizeram 4 mortes. Graças a Deus não nos sucedeu nada e nem [o] Palácio foi acometido, pois se tomaram todas as providências…295

A de 16 de Junho, já a partir de Cádis, há uma outra carta, mas da infanta D. Maria Francisca, escrita debaixo de grande agitação, clima que corrobora o que sabemos, da lavra de Soriano:

Senhor – Meu Pai e meu Senhor do meu maior respeito e amor, hoje esteve aqui o Cônsul de Portugal e disse-me que se eu queria escrever a VM. ele mandaria a carta, assim, não quero perder esta ocasião e participar a VM. que ontem à tarde chegámos aqui, com bastantes incómodos, pois em uma hora nos fizeram sair, paciência. Deus nos livre de tantos desgostos e se compadeça de nós… 296

De teor idêntico e do mesmo dia é a carta também para o pai, de D. Maria Teresa:

Meu Pai e meu Senhor – Beijo com o maior respeito e amor a mão a VM. desejando a sua boa saúde e a continuação de fortunas. Nós, aqui chegámos ontem, tendo passado pelo caminho quantos incómodos se podem imaginar e eu uma das noites na jornada, mesmo no coche tive um ataque de cabeça como os que tive em Madrid…297

De salientar a fidelidade dos relatos das infantas, uni-das no mesmo sentimento, advertidas da necessidade de

295 Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 152. Publicada por Ân-gelo Pereira, in ob. cit., p. 446.296 Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-50, nº 59. Publicada por Ânge-lo Pereira, in ob. cit., p. 509.297 Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 156. Publicada por Ân-gelo Pereira, in ob. cit., p. 447.

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partilhar com o pai notícias do dia-a-dia. No seguimento da-quelas e do que constou em Lisboa, informado o rei pelo en-viado português, vemos a fala da princesa da Beira, na carta acima transcrita, de Cádis, 2 de Julho e apercebemo-nos da tentativa de D. João VI de retirar as filhas e os netos daquele lugar e de quão infrutífero foi o ensaio.

No ínterim da resposta que Fernando VII deu aos mi-nistros e conselheiros de Estado, ainda em Sevilha, onde deu mostras da usa indisponibilidade para abandonar a cidade cuja população lhe era afecta, verificaram-se tumultos entre facções, perspectivando um clima que não convinha a nin-guém e já indiciado pelo teor da carta de 2 de Junho. Em razão desta crescente instabilidade, é que teve lugar a saída, preci-pitada, da comitiva real, para Cádis, escoltada pelos membros do governo e seguidos das representações diplomáticas.

O relato de Soriano – cuja fonte é os ofícios do en-carregado de negócios português – vai ainda mais longe. Sublinharíamos a notícia que reforça o que fica acima dito, acerca da fractura do povo espanhol, sendo nítida a que se-para o comportamento dos madrilenos da dos sevilhanos. Assiste-se, em Sevilha, ao clímax desta divisão, depois da suspensão dos poderes de Fernando VII – durante escassas horas – em virtude da sua recusa em deixar a cidade, segui-do da formação de uma regência, com o propósito de fazer cumprir legalmente a deliberação do governo de deslocar o centro do poder. 298

298 A regência liberal, para substituir interinamente Fernando VII, foi constituída a 12.6.1823: “… recaindo a escolha em D. Caetano Valdez, D. Gabriel Ciscar e D. Gaspar Vigodet. Estes, depois de terem prestado o respectivo juramento e de ouvirem a alocução do presidente, dirigiram-se para o palácio [real] a fim, de quanto antes, se efectuar a respectiva viagem, pois lhes fora incumbido o levar violentamente para a ilha de Leão [na proximidade de Cádis] toda a família real.” Cf. Soriano, in ob. cit., p. 129. Nestas circunstâncias e em paralelo, depois de ter recusado sair de Sevilha, Fernando VII fez

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Entende-se o receio de que se caísse na rua a notícia do “golpe” palaciano, se desse uma invasão do palácio real, no intuito de libertar a família real e o rei, como acabou por se dar e Soriano narra, não escondendo ele o seu incómodo, face à conduta dos realistas e a simultaneidade dos acon-tecimentos de cá e de lá, da fronteira. É a antevisão deste panorama, com desfecho incerto, que levou D. João VI a preparar a retirada das filhas e famílias, através do porto de Cádis, onde a corte se fixou, debaixo da apertada vigilância da milícia liberal. 299

constar a decisão, por ele tomada: “Em semelhantes circunstâncias [perante o ultimato do governo] D. Fernando tomou a deliberação de chamar à sua presença, pelas 11 h da noite do citado dia 11 de Junho, todo o corpo diplomático e fazendo a cada um dos seus membros uma exposição do acontecido, concluiu, dizendo-lhes, que dessem de tudo conta ao seu governo, para perfeito conhecimento dos seus soberanos.” Idem, ibidem.299 Fiel aos factos, não obstante o pendor liberal das suas impres-sões, Soriano dá-nos conta do roteiro físico e espiritual da saída da família real de Sevilha até Cádis, matéria que destacamos, visto ir ao encontro do que se acha relatado pelas duas filhas de D. João VI: “Durante a dita noite de 11 de Junho, foram presas mais de 20 ou 30 pessoas, como envolvidas numa conspiração, destinada a libertar o rei e a família real. Todas estas pessoas e uma parte da milícia activa de Sevilha, da qual se desconfiava, foram logo na manhã de 12 mandadas para Cádis. O palácio foi cercado pela tropa e pelas seis horas e ½ da tarde do mesmo dia 12, tiveram el-Rei e toda a sua família de começar a jornada, indo ficar a Utrera, em direcção a Cádis, onde chegaram no dia 15.” Soriano, in ob. cit., p. 129. (negrito nosso).

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Antígonas

A estranheza que assalta o leitor é a que nos perturba também a nós, quando transitamos pela correspondência das filhas de D. João VI: saber onde é que o rei encontrava a paz necessária ao homem, na turvação uma vida inteira de per-manente conflito de ordem política e doméstica. Na indife-rença não. Se algo diferencia a atitude deste rei, é justamente a minúcia dele e atenção a cada detalhe do quotidiano, seu e dos que o rodeiam, qualquer que seja e venha o apelo e a in-dagação. D. João VI era um homem que chorava, condoído de tudo, garantem-nos as notícias a seu respeito.300

Sem grande diferença de teor, as cartas das duas in-fantas afiançam a certeza desta conclusão, mas sobressai nelas o maior à vontade da filha mais velha de D. João VI, a princesa da Beira, pelo desvelo e intimidade do diálogo com o progenitor, depois de o admoestar rijamente, quando a conduta inesperada dele a fere, desfazendo-se logo a du-reza da frase indelicada, na candura do afecto que nutre por ele. Topamos isso a cada passo no decurso da leitura.

Na cadência das respostas silenciadas e podemos ima-ginar, do pai para as filhas, descobrimos a magnanimidade do rei, que não desvenda mais que o preciso dos seus actos e decisões do foro íntimo, não culpando nem desculpando,

300 Acerca dos sentimentos, que comoviam D. João VI, de infante a rei e imperador, passando pelo regente, enquanto irmão, filho, pai e marido, desde os anos do seu noivado à contemporização com a espo-sa, todos os testemunhos, privados e públicos, vão neste sentido. Até mesmo os adversários, mais críticos, assinalam e nunca deixam de re-conhecer a sua bondade, alguns deles até injustamente, quando con-fundem com indolência o que era a sua indesmentível benevolência.

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mas sempre vigilante, em todas os sentidos – dizíamos – seja na esfera do público ou do privado, mantendo vivo o alto desígnio de conduzir ao melhor dos mundos os que ama – seja a família ou o povo – debaixo da incompreensão permanente dos equívocos, até mesmo da filha, que mais destaque assume na preferência do seu coração de pai, para não falarmos do domínio político, onde é exigido a D. João VI uma incondicional adesão. Os depoimentos a favor desta tese são eloquentes.

Em plena retirada da corte a caminho de Sevilha e ins-talada já no refúgio desta cidade, D. João manobrava a favor do bem-estar da família em Espanha e cuja situação só podia ajuizar pelos relatos, mais ou menos oficiais, quando ele se achava a braços com a Vila-Francada, buscando neste caso a melhor saída da grave crise político-ideológica que se vi-via e catapultou o infante D. Miguel, para o cenário da histó-ria. Desculpamos D. Maria Teresa de Bragança pela dureza do discurso – reivindicativo – que nesta altura dirige ao pai, palavras que seriam admitidas e desculpadas, considerando o alto grau de amizade, que os unia:

Meu Pai e meu Senhor – com o maior respeito e amor, beijo a mão a VM. Tive o prazer de receber a carta de VM an-tes de ontem; estimei em infinito a certeza da boa saúde de VM; enquanto ao que VM me diz, relativo a ter mudado de vestido, tem-me custado muitas lágrimas, pois como amo e respeito a VM, como devo, não posso deixar de sentir um passo que pode ter consequências horrorosas; ainda que, isto há-de parecer a VM exageração, pode ter a certeza, que o não é. Agradeço muito a VM as lisonjeiras expressões que na sua carta me faz. Porém, permita-me VM que lhe diga, que as desejava acompanhadas com factos. Direi a razão: tendo VM há 29 anos e mesmo a bordo em todos os dias dos meus anos, vestido farda nova e posto as jóias ricas, não pode deixar de me ser muito sensível que este ano se vestisse

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com a casaca que traz ordinariamente, pois até nos anos da mana Maria Francisca VM sempre se enfeita…301

Antes de dissecar a mensagem e discorrer sobre o que se nos oferece o seu teor, convém lembrar que o correio entre Espanha e Portugal sofria os percalços da irregulari-dade, inerente à situação de excepção da época em causa. Isso mesmo é o que diz a princesa numa sua carta anterior, também de Sevilha, de 15 de Maio, na qual participa ao pai que a partir daquele dia é que a rotina diária do correio fica-ria suprida. Já noutra de 1 de Maio, imediatamente anterior àquela, a princesa informava acerca da sua mortificação pois desde o dia 22 do mês passado [Abril], não recebia carta, admitindo que não seria por falta de saúde do pai, uma vez que as últimas notícias indicavam que passava bem.302

A estranheza da princesa devia-se, em boa medida, ao facto, de contra o que era costume, não ter recebido as felici-tações – não explicitamente declaradas – pelo seu aniversá-rio, que passava a 29 de Abril. Se, por um lado, desculpava o pai, tendo em vista a variação da rotina da posta, por outro, não podia aceitar que, uma vez chegadas, as notícias lhe des-sem inopinada conta das razões, que o pai tinha, para não ce-lebrar aquele dia de maneira digna e semelhante ao que era habitual, razões que ela repudia, sentindo-se menosprezada.

Avisava-a o pai, respeitosa e ingenuamente, que em vez da farda nova e jóias ricas, com que costumava enfeitar--se naquelas festas de aniversário, preferira antes vestir, sem luxos ostensivos, a casaca que trazia ordinariamente.

A gentileza do pai, que temos por alerta de outro al-cance, provocou na princesa uma reacção intempestiva, evi-

301 Carta de Sevilha, de 23.5.1823. Publicada por Ângelo Pereira, sob indicação Col. Do Autor, in ob. cit. pp. 443-444.302 Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 147; idem, BA – 54-IX-51, nº 146, ambas publicadas por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 442.

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denciando isso o mimo e o à vontade dela para com o rei. À parte disso, notamos o seu desgosto noutro sentido, que era o pai envergar um traje daqueles, revelador de afectação ao regime liberal, sinal público de cedência com consequências horrorosas, que lhe custara muitas lágrimas.

Bastas ideias nos ocorrem diante da simples leitura destas palavras, aparentemente inócuas, trocadas ao abrigo da conivência familiar, se tivermos em conta – como não po-demos deixar de ter – a realidade profunda que elas escon-dem, obliterando tudo, o que sabemos de antemão. Assiste--se, por um lado, à maneira de reagir de D. João VI, face aos desafios do poder, numa fase aguda do processo revo-lucionário, que desaguaria na sublevação de Vila Franca, na acção dele, que mostra a conformidade com o seu discurso de moderação, proferido, na circunstância.

Por outro lado, patenteia o melindre da filha, que esti-maria no rei uma atitude mais alinhada com o que se estava a passar em Espanha e não uma conduta que desse a entender que enfileirava com o inimigo. Lembramos que este aniver-sário da princesa da Beira era o primeiro que ela celebrava, fora do Brasil, num contexto muito diverso do que ela estava acostumada, facto a ter em conta, se avaliarmos a sua recusa na aceitação da mudança, no hábito de celebrar com osten-tação os aniversários, no seio da família real.

Mas não só nesse ponto. A princesa vai mais longe e traz à boca de cena motivações de ordem mais particular, no que só a ela dizia respeito. Que ideia fariam dela os émulos, em Lisboa, na sua ausência, perante o desalinhamento de ordem política de ambos, sendo ela vista e tida como conse-lheira preferida do rei?

Primeiro – acusa ela – o rei dera prova pública de que ela era criminosa aos olhos dele e segundo, porque fizera a vontade aos seus inimigos, os quais são todos os que ro-

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deiam a VM à excepção do mano Miguel e João Louren-ço e que, enfim, ela bem conhecia que aqueles indignos, como desejam estar livres de quem lhes faça sujeição, para atraiçoarem VM buscam todos os meios para que VM só me aborreça, mas até o mostre, não a fim de que eu aí não volte, o que não conseguirão – afiança a princesa ao pai – pois nada é capaz de mudar os meus sentimentos de amor e respeito que consagro a VM.303

Não finda ali a revolta de D. Maria Teresa de Bragan-ça, perante a ofensa ao seu amor-próprio. Garante que não podia ver com indiferença o desprezo do pai para satisfazer quem nada lhe merece. Mas logo de seguida, pede perdão pelo amor de Deus, ao pai, do seu desafogo, admitindo sen-tir-se desculpada, pois não lhe acusava a consciência pela mínima coisa de ter faltado aos seus deveres. Antes pelo contrário! Despedia-se do pai, reiterando que ainda que VM me aborreça eu darei a vida por VM.304

O desespero da primogénita de D. João VI é mais do que evidente pela veemência das suas palavras, mais do que razoável, se atendermos à distância que a separava do proge-nitor e de quem ela jamais se apartara, ao longo da sua vida, ela que gozava do privilégio único, em relação aos outros irmãos, de ter sido jurada herdeira do trono, mal viu a luz do dia!

Também da veemência do discurso decorre a interpre-tação, legitimadora da ideia que se tem acerca da influên-cia e comunhão, de D. Maria Teresa sobre o ânimo do pai, do que não duvidamos, pois D. João VI escutava a opinião sensata desta sua filha. O que se depreende, por outro lado é que, não obstante a divergência, o monarca não se sentia vinculado a ponto de deixar de levar em conta outras opini-

303 Idem. Carta de Sevilha, de 23.5.1823.304 Idem.

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ões e de actuar em conformidade com os dados em presença, no jogo de poderes.

Não duvidamos da cumplicidade das duas infantas na corte espanhola, entendimento que é visto como conspirativo. E a este propósito, lembramos o que ficou dito acima, a pro-pósito da carta de D. Maria Francisca de 7 de Junho de 1823. É óbvia a sintonia que das irmãs, no que toca ao seu receio de ver o pai arrastado para o campo do inimigo, menosprezando o que de funesto podia advir daquela sua atitude e mostram o seu desagrado, baseadas na sua própria experiência. Da aná-lise aprofundada da missiva de D. Maria Francisca de Assis, diríamos, sem rodeios, que a infanta vai mais longe, politica-mente falando, do que o alcance das palavras da irmã.305

Entre o temor e a esperança e debaixo da insegurança que se calcula na deambulação da comitiva real, coercivamente imposta pelos liberais, assiste-se num intervalo da pressão às afectuosas demonstrações das filhas para com o rei, atentas ao bem-estar do seu progenitor. Surpreendente de alguma manei-ra, é o testemunho material desse cuidado, bastante elucidativo do interesse e gosto dos envolvidos, pai e filhas, particularmen-te, as atenções de D. Maria Teresa para com ele. Sentimo-nos tocados pela delicadeza de algumas prendas, enviadas por ela, como sinal da sua lembrança e saudade:

…Deixei ordem em Madrid para remeterem a VM um qua-dro de S. Francisco que ofereço a VM, por ser muito boa pintura e porque VM não tem nenhum quadro do dito santo. Desejo muito que VM o ponha no seu oratório.

É o teor de um post-scriptum à carta escrita de Sevi-lha, a 26 de Abril de 1823, na sequência das que a princesa ia remetendo, no curso da jornada.306

305 Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-50, nº 58. Publicada por Ânge-lo Pereira, in ob. cit., p. 508.306 Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 144. Publicada por Ân-

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D. João VI fazia anos a 13 de Maio. Portanto, pre-cavera-se a filha em não deixar passar por alto a data, sem parabenizar o pai. Não foi apenas uma representação de S. Francisco, que seguiu para Lisboa, a assinalar o aniversário do pai, naquele ano. Noutro post-scriptum agora, à carta de 25 de Maio, fazia notar que:

…Pelo brigadeiro Ouseley307 remeto a VM um tapete o qual ofereço a VM, por ser todo feito pela minha mão; desejo que VM o ponha no seu oratório debaixo da estante ou adiante da cadeira aonde VM se senta e a não querer pôr no orató-rio, peço a VM que o não dê a ninguém.308

Voltando a esta oferta, D. Maria Teresa escreve ao pai, já a partir de Cádis, num post-scriptum, à carta de 2 de Julho de 1823:

…Remeto a VM a alcatifa que outra carta dizia a VM que lha oferecia por ser feita toda pela minha mão. Brent informará a VM de tudo quanto quiser saber.309

Curiosamente é na carta onde consta post-scriptum acima, que a princesa narra a determinação dos liberais de proibir a saída dela e da irmã e suas famílias de Espanha para Lisboa, conforme ficou referido.

Mas não terá sido a circunstância do aniversário do pai, a única razão da princesa para o presentear. Mal chegou a Espanha e à medida que se ia entrosando, percebe-se a sua preocupação em arranjar ensejos de agradar-lhe e de ir encon-tro dos gostos dele. Da mesma maneira e, por isso, ficamos

gelo Pereira, in ob. cit., p. 441.307 Sir Ralph Ouseley (1772-1842).308 Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 150. Publicada por Ân-gelo Pereira, in ob. cit., p. 444.309 Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 159. Carta transcrita por Ângelo Pereira, in ob. cit., pp. 449-450.

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alertados também para as peculiaridades de D. João VI, na esfera do ócio – diríamos – facto que não é inteiramente es-tranho, por ser próprio da sua educação, mas por vir reforçar a convicção já firmada de que se trata de uma pessoa de gosto requintado, desdizendo a sombra que lhe adultera a imagem.

Exemplo disso é a notícia que colhemos numa outra carta de D. Maria Teresa a propósito da sua busca por casa própria, para sua instalação e da família, respeitando à reco-mendação do pai, que levou de cá, de viver em separado da família de Espanha, já antes mencionado. Tenha ou não sido levada em conta aquela advertência dele, sabemos que esta foi ultrapassada pela realidade e acabámos por ver a reunião das duas famílias, tanto no paço madrileno como no exílio, situação a que era difícil fugir dadas as circunstâncias.

Remetemo-nos à carta de 3 de Março de 1823, data que memorizámos, por estar intimamente ligada ao ditado da sentença, de D. Carlota Joaquina. Vivendo um intervalo de esperança, que partilhava com a mãe, relativamente ao desígnio que alimentava de restauração do regime realista, faz sentido que a princesa aproveite a ocasião para festejar e presentear o pai, oferecendo-lhe algo do seu agrado.

Sai amanhã daqui o Inácio310, o qual não pôde aproveitar na comissão para que veio, como Tovar311 informará a VM; por

310 Seria Inácio d’Abreu, mencionado noutra carta da princesa (Madrid, 12.11.1822), nos termos, que se adequam ao teor da carta, acima: “…Peço a VM que, sendo sua vontade, me mande o Manuel Francisco da Costa e se este não puder, então, Inácio d’Abreu, filho do Inácio da Ucharia, na certe-za que qualquer um dos dois, voltará para Lisboa, logo que tenha concluído a compra da dita fazenda.” No PS adstrito a esta carta, acrescenta: “Pedi a VM que a não poder vir o Manuel Francisco, que fosse o Inácio, porque o dito Inácio também já me tem servido e sei que é muito fiel e peço a VM me fazer a honra de me mandar os ditos criados, que os mande avisar já, para o coche não ter demora.” Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 97. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., pp. 415-416.311 Diogo Vieira de Tovar e Albuquerque, que acompanhou a

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o dito Inácio remeto 12 machos que ofereço a VM para o seu serviço, pois me persuado que são muito bons; ainda que eu tencionava mandar-lhos depois de terminarem o verde, para irem mais nutridos e melhor ensinados, contudo, as circuns-tâncias não permitem tê-los aqui nem mais um dia; sobre o estado deles, eu mando escrever ao Marquês de Loulé,312 para seu governo. VM perdoará, eu não pagar as despesas que os ditos machos fizerem pelo caminho, pois agora me é absolutamente impossível.313

Muito haveria a comentar sobre o teor desta missi-va, mas ultrapassaria o objectivo do momento. Valorizamos, contudo, o respeito da princesa pelo protocolo, pelas pesso-as envolvidas nele e a sua preocupação de querer agradar ao pai e o facto de não poder ir além do limite das suas despesas pessoais, na plenitude requintada dos seus gostos.314

A lembrança da princesa fala-nos também dos gos-tos dela, que descobrimos, apreciadora e praticante da arte equestre, de resto, como a mãe, também criada e educada naquela arte.315 O mesmo se aplica aos restantes membros

princesa a Madrid.312 Estribeiro-mor, 1º Marquês de Loulé, Agostinho Domingos José de Mendoça Rolim de Moura Barreto (1780-1824).313 Carta de Madrid, de 3.3.1823. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 126. Carta publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 432.314 D. João VI fora educado na prática da arte equestre e conhece-se dele um retrato quando jovem, montado a cavalo, no estilo e escola do marquês de Marialva. Interessante gravura, divulgada por Ângelo Pereira, in D. João VI, Príncipe e Rei (1953), com a legenda original: “O Príncipe D. João no Real Picadeiro de Belém – Luz da liberal e nobre Arte da Cavalaria, Of.ª ao Senhor D. João, Príncipe do Brasil, por Manuel Carlos de Andrade, Picador da Picaria Real de SM. Fi-delíssima, Lisboa, por ordem de SM., Reg.ª Of.ª Tipográfica, Ano 1790” Por outro lado, já antes neste livro, veiculado nas Memórias do marquês de Fronteira e Alorna, demos conta do gosto de D. João VI pela velocidade, quando saía na carruagem particular. V. Nota 197.315 D. Carlota Joaquina fez-se retratar a cavalo, conforme pintura

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da família real. Falamos das mulheres, porque dos homens não temos dúvidas, acerca disso. É de sublinhar que numa carta logo do seu início em Madrid (1 de Outubro de 1822), D. Maria Teresa descreve ao pai as primeiras impressões e os seus passeios a cavalo, lembrando-se dos que costumava dar na companhia dele.

Eu, meu Senhor, já saí três vezes a passeio com el-Rei e toda a família real; a primeira vez fomos a uma quinta, que era da mana Maria Isabel316; tanto a casa, como a quinta, são muito pequenas, porém muito ricas. As outras, fomos a uma quinta d’ el-Rei, uma que se chama o Retiro317, e a outra Moncloa, ambas são bonitas, porém qualquer das de VM é muito me-lhor. Ontem pela manhã saí a cavalo com a mana e o Carlos pelo caminho do Escurial, porém eu, todos os passeios que dou, me servem de mortificação, porque me lembram com a maior saudade os que tinha a fortuna de dar com VM…318

Merece uma atenção adicional as apreciações que a princesa da Beira tece na mesma carta, acerca dos pontos do roteiro, o que nos diz muito dos seus interesses e da sua ligação ao pai. Digno de reparo é o pormenor que fecha o dito roteiro:

…Todos os passeios que dou me servem de mortificação, porque me lembram com a maior saudade os que tinha a fortuna de dar com VM…

A propósito da necessidade de encontrar habitação própria, para si, para o filho e comitiva de servidores parti-

a óleo, do espólio da rainha, do seu palácio do Ramalhão, divulgada por Ângelo Pereira, in As Senhoras Infantas Filhas d’el-Rei D. João VI (1938).316 Refere-se à irmã, rainha D. Maria Isabel de Bragança (1797-1818).317 Quinta Buen Retiro (Madrid).318 Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 87. Publicada por Ânge-lo Pereira, in ob. cit., pp. 405-406.

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culares, em Espanha, topamos com o seu relato, acerca do que planejava vir a realizar:

… Agora vou comprar uma grande fazenda na Estremadu-ra e como é necessário uma pessoa capaz para ir comprá--la, levando o dinheiro, lembrou-se o Diogo Vieira319 que fosse um dos meus criados; porém como destes que aqui tenho, não posso dispensar nenhum. Peço a VM que sendo sua vontade, me mande o Manuel Francisco da Costa, e a este [sic] não puder, então Inácio de Abreu filho do Inácio da ucharia, na certeza que qualquer dos dois voltará para Lisboa, logo [que] tenha concluído a compra da dita fazen-da, o coche que leva Diogo Vieira, a VM fazer-me a honra de mandar algum dos ditos criados, será quem o conduza, mandando-lhe eu aí dar o dinheiro necessário, para a comi-da do caminho. Igualmente peço a VM que me faça a honra de me mandar o meu cocheiro Francisco no mesmo coche pois não quero tomar nenhum cocheiro espanhol, por causa da minha volta para aí. Toda a despesa de um e outro pago eu. VM perdoe tanto pedir, porém, só a VM tenho, pois é bom pai e amigo….320

Da concretização da intentada compra da grande fa-zenda na Estremadura não alcançámos mais do que nos consta por ela. Porém, do que se sabe, quando D. Maria Te-resa se refere a “Inácio” que levava na sua volta a Lisboa os “12 machos” oferecidos por ela ao pai, é provável que a compra não se tenha chegado a verificar, ultrapassada, pelas circunstâncias, conhecidas. Realçamos ainda aqui o modo e as palavras de fechamento com que se despede:

…VM perdoe tanto pedir, porém, só a VM tenho, pois é bom pai e amigo…

319 Diogo Vieira de Tovar.320 Carta de Madrid, de 12.11.1822. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 97. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., pp. 415-416

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Levar-nos-ia longe a dissecação da frase, na medida em que esta evoca a confiança que a princesa deposita no ombro paterno, quanto a poder contar com ele na resolução dos assuntos de índole pessoal, enquanto exclui qualquer outra pessoa daquele âmbito de entreajuda, indicado pela palavra amigo, além de pai, antecedido do adjectivo bom. Isto diz muito de D. João VI e da sua amizade incondicional. A mesma é elevada ao grau de superioridade moral, relativa-mente à princesa da Beira e irmãs, mais jovens, situação de que nos damos conta numa outra passagem, comentando o teor da carta do pai:

… Recebi ontem a carta de VM de 21; estimo quanto é pos-sível a boa saúde de VM e igualmente que estivesse bom o dia para Procissão dos Terceiros321, sentindo muito não poder, por agora, acompanhar a VM; enquanto ao que VM me diz das manas irem à varandinha de ferro, já eu tinha dito que assim havia suceder, pois posso segurar a VM que, apesar de estar tão longe, vejo demasiadamente o que por aí se passa; prouvera a Deus que não o visse, pois não me arrenegaria nem me mortificaria…322

As manas de que fala D. Maria Teresa na sua carta eram D. Isabel Maria, D. Maria da Assunção e D. Ana de Jesus Maria. O ascendente que a princesa exercia sobre as irmãs (e irmãos), é denunciado nestas suas palavras. Por um lado, pelo facto do pai lhe dar conta a ela das mais novas terem ido à varandinha de ferro (certamente localizada além do limite do decoro protocolar) e por outro, a censura evidente de que mal ela virasse as costas assim havia de suceder, quer dizer, por falta de vigilância, sua.

321 Procissão quaresmal que a Venerável Ordem Terceira de Peni-tência realizava em Mafra, ritual que teve início a 27.3.1740 reinava, então, D. João V.322 Carta de Madrid, de 28.2.1823. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 125. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., pp. 431-432.

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Sabe-se do modo como se julgava a si mesma, a prin-cesa D. Maria Teresa, quando, noutras ocasiões, assevera ao pai ter inimigos na corte de Lisboa, os quais ansiavam vê--la longe. Com exagero da sua percepção, a verdade é que a princesa da Beira, rígida nos seus princípios, reunia tudo para ser tida como figura influente, dado a precedência no nascimento e educação de presuntiva herdeira e sucessora ao trono, privilégio de que fruiu alguns anos.

Quais seriam os inimigos – na sua expressão – de que falava a princesa da Beira? A opinião que emite acerca de si, leva-nos a acreditar que pouca gente dentre a nobreza, ousaria passar-lhe adiante, junto de D. João VI, sobretudo os de tendência liberal, facto nunca explorado, mas que po-derá estar na origem da ideia de a afastar da corte de Lisboa naquela altura.

Isso é o que se deduz da carta, datada de 14 de Janeiro de 1823, época em que D. João VI enfrentava o ostracis-mo imposto, à rainha, pelos liberais e cujo desfecho não era ainda previsível, carta essa, onde D. Maria Teresa admite abertamente o confronto dissimulado dos seus adversários em quem reconhece a intenção deliberada de a arredar da esfera paterna.

…Enfim como eu estou muito costumada a VM me tratar com muita amizade e a fazer-me sempre as maiores honras, não posso sofrer que enganem a VM para me mortificarem; muito desejo, têm, que eu para aí não volte. Porém, não o conseguirão! Dizem a VM que desejam muito que eu para aí volte, porque conhecem que são infrutuosas todas as di-ligências que façam para que VM me aborreça; porém eles e elas desejam tanto ver-me, como podiam desejar ver a Sa-tanás: não me importa isso nada, pois sei que o crime que tenho é ser fiel a VM…323

323 Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 115. Publicada por Ân-

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A ser real o que afiança D. Maria Teresa, em data pos-terior, numa outra carta que dirigiu a João Lourenço – um dos raros amigos que confessa ter, segundo o seu próprio conceito – a princesa chega a admitir que era o pai que a cer-ceava, temendo o comprometimento político que adviesse dos ímpetos dela. É claro que seria no sentido de a proteger e não por ver na filha, uma adversária. Na base deste desabafo jazem motivos, que nos escapam.324

Trata-se de uma linguagem dura e desesperada, até. Mas se atendermos que a missiva foi escrita em Cádis, na altura em que as tropas do duque de Angoulême se achavam praticamente, às portas da cidade, nada garantido o desfecho que teria a operação militar, calcula-se que o estado de espí-rito, não só da princesa, mas de toda a gente ali sitiada, não seria de tranquilidade. Debaixo de tão grande aflição tinha enviado insistentes missivas ao pai – dez ao todo – sem ob-ter resposta nenhuma.325

A pressão no ânimo da princesa deu origem a que culpasse instintivamente o pai, por achar que ele se deixa-va manietar pelos seus (dela) inimigos políticos ou seja: D. João fazia a vontade a maçons! Assim, declara-se reduzida à fraqueza das suas próprias forças, para proteger sozinha, a única razão do seu viver, o filho.

João Lourenço – Aqui chegou ontem o expresso vindo dessa Corte quando eu por ele esperava ter carta sua, em res-posta a 10 que lhe tenho escrito, vejo claramente que tem

gelo Pereira, in ob. cit., p. 426.324 Também a forma de tratamento não permite identificar a pessoa de que se trata nem ir mais longe sem especular, mas seria, certamen-te, do círculo restrito da princesa e da sua família e, portanto, digna da sua confiança.325 Carta de Cádis, de 14.8.1823. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 165. Carta publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., pp. 453-454.

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proibição de meu Pai para me escrever, pois, se não fosse assim, certamente o João Lourenço não deixaria de o fazer; porém não posso deixar de lhe dizer que é capaz de me en-doidecer, o ver que, apesar de estar aqui presa e com tantas mortificações, me privam até corresponder-me para aí; têm conseguido bem os meus inimigos o que tanto desejavam; o que lhes falta para o completarem é a minha morte. Po-rém, como essa vem das mãos de Deus, espero que não o conseguirão, pois, Nosso Senhor sabe que faço muita falta ao Sebastião e por isso me dará forças para resistir a tudo [segue-se texto em cifra]; até ao dia 20 chega o Duque de Angoulême ao Porto de Santa Maria com 15.000 homens. Desejo-lhe saúde – Maria.326

Acrescenta no final um post-scrptum em cifra, de que falta o traslado, que derruba dúvidas sobre a forma de co-municar entre as infantas e o pai. PS. Tovar entregará a meu Pai uma caixa com o meu… (o resto em cifra).327 326 Idem.327 Numa carta de Madrid, de 3.1.1823, a princesa esclarece al-gumas dúvidas, sobre a comunicação em cifra e sua descodificação: “PS. Remeto esse papel que Tovar pode dizer a VM o que ele diz ou pode VM pedir a Tovar a cifra para VM mesmo o decifrar, que será melhor.”; Novamente, um recado de idêntico teor, na carta datada de Madrid, de 28.1.1823: “PS. VM pedirá a Tovar para decifrar o pa-pel incluso”; Como temos visto, o receio de caírem as cartas noutras mãos, pelas razões óbvias, fazia a princesa D. Maria Teresa, reco-mendar ao pai que destruísse as mesmas, quando o conteúdo fosse de molde a ter mau uso. Ainda de Madrid, na sua carta de 11.3.1823, escreve: “Remeto a VM o papel incluso para que veja que não deixei de meditar e consultar o assunto de que o dito papel trata; porém, peço a VM que, logo que o acabe de ler, o queime, pois seria para mim um grande compromisso, se alguém soubesse que eu tinha con-sultado tal assunto, como tenho obrigação e gosto de que VM saiba, até os meus pensamentos. Por isso, me arrisco a remeter a VM o dito papel na certeza que VM guardará um inviolável segredo […] esta é uma daquelas coisas que só VM deve saber, pois, unicamente por VM o fiz… PS. Peço a VM que assim que receba esta, me responda, pois

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Pelo contexto que se perspectiva de um e outro lado da fronteira, voltando aos cuidados de D. João VI, só pode-mos estar do lado dele. Mais do que pai, é o monarca quem procede e manda que se proceda. Por aqui se pode calcu-lar o temor que sentia pelo perigo que as filhas corriam. Mas ficarem ofendidas com o pai não era mal que durasse no coração das filhas. Sentimentos maiores e mais profun-dos ditavam outras expressões, sempre prontas a emergir, debaixo do sufoco que ia sendo a vida dele e delas, não obstante, visivelmente unidos, na cumplicidade da mútua afeição.

Cádis, 8 de Setembro de 1823 – Meu pai e meu Senhor. Bei-jo com o maior respeito e amor a mão de VM. Anteontem recebi com inexplicável prazer uma carta de VM de 22 do passado [Agosto], tanto pela certeza que VM me dá de estar melhor das suas pernas, como pela honra que me fez, de me escrever; posso assegurar a VM que nestas tristíssimas circunstâncias, a única consolação que tenho é receber car-ta de VM e ter a certeza que VM se lembra de mim, com amizade… 328

O mais interessante para quem lida com afectos e os preza é a sua manifestação nos post-scripta da princesa, re-lativamente, às prendas para o pai.

PS. Ofereço um corte de viguinha a VM por ser aqui um pano muito estimado e me parecer que VM gostará dele, agora, para o Inverno; espero que faça uma casaca dele,

fico no maior cuidado, enquanto não souber que a recebeu intacta.” Carta Publicada por Ângelo Pereira, sob indicação Col. do Autor, in ob. cit. p. 433. Nota: A mesma carta chegou às mãos de D. João VI, que anotou no sobrescrito – como sempre faz, aliás – Recebida na Bemposta em 15 de Março de 1823. 328 Carta publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 456, sob in-dicação Col. do Autor. Carta anotada no sobrescrito, por D. João VI: Recebida na Bemposta em 17 de Setembro 1823.

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logo e que goste dela, não pela ridicularia da oferta, porém, por quem lha oferece.329

Fica-se sensibilizado ao darmo-nos conta de que mes-mo na experiência duríssima de fuga forçada de Madrid para Sevilha, D. Maria Teresa assume-se o encargo de reportar o que lhe é dado ver. Certa, como estaria, da curiosidade inata do pai – sabemos dessa particularidade de D. João já notada na sua juventude, no diálogo que mantém com a irmã, D. Mariana Vitória de Bragança330 – a princesa vai partilhando com o pai o roteiro das suas próprias impressões.

A par dos relatos oficiais – digamos – damo-nos conta da precisão da princesa no diário que inicia a 20 de Março de 1823. Dois dias antes de deixar Madrid, D. Maria Teresa escreve ao pai, informando-o da decisão do governo liberal de abandonar Madrid e ir para Sevilha e da intenção de o manter a par do que houvesse.

…Depois de amanhã partimos para Sevilha; hoje conto falar com Torlade331 para ver como devem ser remetidas as minhas cartas a VM tanto as que eu escrever de cami-nho como de Sevilha; VM pode estar certo que escreverei sempre que tenha ocasião, pois respeito e amo a VM como devo…332

329 Adenda à carta de Madrid de 12.11.1822, publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 416, sob indicação Col. do Autor. Anotada por D. João VI no sobrescrito: Recebida pelo Tovar no Alfeite em 27 de Novembro de 1822. 330 Vd. Da autora: Se Saudades matassem…331 Jacob Frederico Torlade Pereira de Azambuja, oficial da Secre-taria de Estado dos Negócios da Marinha e ministro plenipotenciário, nomeado por D. João VI, encarregado dos mesmos, junto da corte de Madrid, em 8.3.1823. Cf. British and Foreign State Pappers – 1822-1823, London 1828.332 Carta de Madrid, de 18.3.1823. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 129. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit. p. 434.

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A carta seguinte é de 24 e foi enviada de Villarubia de los Ojos:

…Aqui chegámos hoje às 5 horas da tarde tendo saído ao meio-dia de Madridejos; todos vamos sem maior incómodo de saúde graças a Deus, porém, eu muito mortificada pois ainda não recebi a carta de VM., que devia receber no dia 20…333

Entre estas cartas, D. Maria Teresa de Bragança escre-veu uma outra, ainda de Madrid, na qual dava nota ao pai:

…Apesar de ontem ter escrito a VM como amanhã às 8 ho-ras partimos, faço esta para que vá pelo correio de sexta--feira, desejando infinito a boa saúde de VM. Eu, meu se-nhor, estou hoje muito incomodada da cabeça e bastante de espírito pois, até para maior mortificação minha, a Maria do Carmo334 está muito doente com um reumatismo e não me pode acompanhar; porém, fica no convento das Comen-dadeiras de Santiago e eu deixo-lhe 68$000 réis cada mês, que é o mais que posso fazer, mas muito mortificada estou. A Maria do Carmo pede que diga eu a VM que ela me não acompanha, porque, absolutamente, não pode…335

No dia seguinte, já em Manzanares, dirige-se ao pai, dando relato de que tinham ali dormido nessa noite e que no noutro dia às 9 horas da manhã seguimos a nossa jornada. Diz que se esqueceu de contar que tinham passado junto aos Olhos do Rio Guadiana na véspera e que este rio corria em 7 léguas por baixo da terra e tornava a rebentar e formar o rio uma légua para cá de Vila Rúbia, que é onde são os Olhos.

333 Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 130. Publicada por Ân-gelo Pereira, in ob. cit., p. 435.334 Parece que se trata da camareira-mor da princesa, que acompa-nhou a Madrid, mas cujo apelido não alcançámos saber.335 Carta publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., pp. 434-435, sob indicação Col. do Autor.

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Continuava sem novidades. Porém, ela com infinitas sauda-des de VM, lembrando-me muito das Funções desta Semana [Santa]. Recomenda-lhe – como aliás em todas as suas mis-sivas – o filho, infante D. Sebastião que, como sempre, beija a mão do avô e acrescenta recados dela para os manos. 336

De dois dias depois, 27 de Março, chegam duas cartas de D. Maria Teresa desde Valdepeña. Acusa as notícias que recebera do pai, carta datada de 14 do corrente Março e em resposta reafirma que podia certificar a VM que sempre é para mim uma grande consolação; porém, agora, até me alivia dos incómodos. Tinham chegado à referida localida-de, naquele dia 27 pela 1 hora da tarde e apanhado um tem-po muito bom, porém, debaixo de um frio insuportável.337

Na carta ainda a partir do mesmo sítio e com a mesma data, a princesa retoma o assunto da anterior e com o pesar que deixa transparecer, informa o pai que tinham passado ali o dia e ouvido missa, lamentando ter sido a única obrigação religiosa a que tinha sido possível assistir, tendo em conta que se estava na Semana da Páscoa, habituada a celebrações da maior grandeza solene, assunto a que alude na carta de 25.

Desta carta, destacamos o pormenor de ela dizer que não lhes fora permitido ficar mais tempo, não obstante ser intenção de Fernando VII, por causa de ser Sexta-Feira de Paixão. Dá conta – como sempre – do estado do tempo, que parecia conjugar-se com a estação do ano e ainda mais com o seu estado de alma, reflexo do dramatismo que a permea-va: …o tempo hoje está coberto e faz muito frio…338

336 Carta de Manzanares, de 25.3.1823. Publicada por Ângelo Pe-reira, in ob. cit., pp. 435-436, sob indicação Col. do Autor.337 Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 436, sob indicação Col. do Autor.338 Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 131. Publicada por Ân-gelo Pereira, in ob. cit., p. 436.

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Novamente na estrada escreve, já a partir de Caroli-na, onde a comitiva tinha chegado naquele mesmo dia às 4h ½ da tarde, vindos de Vizo del Marquez e donde saíram ao amanhecer do outro dia. A jornada entre Valdepeñas e Carolina sofrera uma paragem para pernoitarem em Vizo. Tendo ali chegado às 6h ½ da tarde, puseram-se em marcha às 8h da manhã seguinte para Carolina, atravessando a Serra Morena por uma estrada magnífica e linda; porém a subida é bastante íngreme e de um lado há despenhadeiros horro-rosos …339

Sob marcha forçada, com paragem só para dormir e pouco mais, vemos que a comitiva real pernoitou em Caroli-na, donde a princesa escreveu ao pai no dia 30, informando--o que hoje aqui ficamos e amanhã saímos às 2h da tarde. O tempo mostrara-se amigo e sem incómodos de maior, embora durante a noite tivesse chovido muito e feito muito frio. Em post-scriptum adiantava que depois de acabar de escrever tivera a fortuna de receber carta de VM de 21 do corrente Março. E numa frase cujo segredo ficou guardado no silêncio da eternidade, afiançava ao pai que ficava ciente do que VM me diz relativo ao papel que remeti a VM.340

Se regressarmos ao que acontecia em Portugal por esta altura, dará para fazer uma ideia do sobressalto que pairava acima das vidas dos interlocutores. Mais ainda, se lembrarmos o precário estado de saúde de D. João VI e a li-dação em que andava metido, tanto na esfera familiar como no campo político (nomeadamente a catadupa dos aconteci-mentos relacionados com a declaração de independência do Brasil), que o rei evitará detalhar para Espanha, intuindo-se que transitaria algo, através de mensagens privadas, as quais

339 Carta de Carolina, de 29.3.1823. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 132. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 437.340 Carta de Carolina, de 30.3.1823. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 133. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 437.

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se escaparam da nossa vista, pelos próprios destruídas ou desviadas.

É bem provável que a princesa não se coibisse de rela-tar ao pai o que ia constando das manobras em curso acerca da incursão francesa, comandada pelo duque de Angoulême, o qual, entretanto, fora instruído como se viu, para entrar naquele reino, numa missão resgatadora, enquanto no seio da família real se adensava o temor, perante a imprevisibili-dade do desfecho daquela empresa, reféns da situação, como eram efectivamente.

Não havendo nesta altura ainda notícia certa da apro-ximação das tropas do duque, que excursionava, aquém Pire-néus, D. Maria Teresa escreve a 1 de Abril a partir de Bailén, onde a comitiva descansou naquela noite, na progressão da travessia da Serra Morena. Para trás ficara o frio insuportável, surpreendidos agora por um calor intenso, como se a natureza fosse cúmplice dos sentidos, apaziguando-os, na transmuta-ção da aridez da paisagem em arborizados campos.

…Saímos ontem da Carolina às 2 ½ da tarde e chegámos aqui às 5; depois que passámos Serra Morena, encontrámos outro clima, pois até à Carolina fazia um frio insuportável e agora muito calor; o campo também faz muita diferen-ça, pois todos os caminhos que passámos até à Serra eram muito áridos e agora todo o caminho é cheio de árvores, o tempo está muito bom e nós todos estamos sem maior incó-modo de saúde…341

A mesma sensação de beleza perpassa nas palavras escritas em Andújar, para onde se encaminhara o séquito, naquele mesmo dia, 1 de Abril, prenunciadora do livramento da penosa jornada.

341 Carta de Bailén, de 1.4.1823. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 134. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 437.

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…Chegámos a esta cidade ontem, às 5 horas da tarde, tendo saído às 2h. O caminho de Baylen até aqui é lindo. Hoje passámos o dia nesta cidade. Agora que são 4 horas da tar-de foi el-Rei assistir a uma corrida de touros; eu não fui, porque a Rainha não foi e el-Rei disse, que nós fizéssemos o que quiséssemos e assim só foi Francisco António342 e Lu-ísa343…344

A almejada liberdade estava longe de se concretizar ainda em Sevilha, que era o destino do séquito. Julgava a princesa que se daria ali o confronto das forças em presen-ça, das que os faziam reféns com as que vinham livrá-los, presuntiva maneira de pensar, tanto da princesa, como dos demais. Cerca de duas semanas de caminho era o tempo que faltava para percorrer de Andújar até à capital andaluza, com paragem em El Carpio, Cordova, Ecija e Carmona, locais, donde D. Maria Teresa prosseguiu a escrita do roteiro da viagem.

A saída de Andujar deu-se no dia seguinte pela manhã e chegou a El Carpio à tardinha, do mesmo dia. Novamente, o tempo e a paisagem foram assunto das suas notícias: so-fremos muito calor, todo o caminho; esquecia-me dizer que passámos hoje o rio Guadalquivir e o caminho continua a ser lindo; o tempo está bom.345

Já em Córdova, dali partiram no outro dia de manhã-zinha depois da dormida, como de costume, perfazendo uma jornada, curta, de quatro horas. A principal preocupação da

342 D. Francisco de Paula António de Borbón, irmão de D. Fernando VII (1794-1865).343 Luísa Carlota, Duas Sicílias, esposa do infante Francisco de Pau-la. (1804-1844).344 Carta de Andújar, de 2.4.1823. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 135. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 438.345 Carta de El Carpio, de 3.4.1823. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 136. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 438.

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princesa ficara aplacada, ao saber do estado de boa saúde, do pai, por carta dele de Lisboa de 27 de Março. Respondeu-lhe D. Maria Teresa, com a nota do pitoresco, que a paisagem oferecia.

…Passámos uma ponte magnífica toda de mármore negro que está sobre o rio Guadalquivir; chegámos aqui ao ½ dia; estamos no palácio do bispo que é magnífico; o tempo con-tinua bom; dizem que nos demoraremos aqui até segunda--feira.346

Dali a dois dias já anunciava ao pai a previsão de sa-ída de Córdova, com destino a Ecija, ao amanhecer do dia seguinte e dava-lhe conta que esta cidade ficava a 10 léguas de caminho, que era a distância que tinham pela frente. O tempo mudou e piorara:

…Agora, 7 da tarde chove muito; porém, apesar da chuva, está o largo de palácio cheio de gente, querendo a todo o instante ver el-Rei e a todos nós, dando vivas a el-Rei e à família real.347

Este pormenor permite-nos supor o bom ânimo da princesa e demais família, prevendo ficar livres, prenúncio augurado ali, pelas manifestações populares que festejavam a chegada da comitiva. Em Carmona, três dias depois, anun-ciava a saída já para o dia seguinte, pela manhã cedo, rumo a Sevilha. Aqui chegariam no dia 9 de Abril, pela 1h da tarde, sem se terem detido em Ecija, ao contrário da sua previsão.

O regozijo, que se adivinha no semblante da prince-sa, não lhe permitia dizer muito mais, a não ser que o tem-po continuava nublado e muito ventoso e frio e neste breve

346 Carta de Córdova, de 4.4.1823. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 137. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 439.347 Carta de Córdova, de 6.4.1823. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 138. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 439.

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anúncio, sentindo-se quase em Sevilha, despede do pai, com o maior respeito aos pés de VM e saudações de Sebastião que beija a mão do avô, como de costume.348

Finalmente em Sevilha, D. Maria Teresa escreve, de-baixo de um sentimento mais distendido, espelhado na frase que tranquiliza o pai: faço esta para certificar a VM que chegámos todos de boa saúde, graças a Deus. E mais segu-ra, dá-lhe conta da sua intenção de no correio seguinte lhe remeter o itinerário da nossa jornada desde Madrid até aqui e alguma notícia desta cidade. Por enquanto, só adiantava uma primeira impressão, declarando que a entrada é muito bonita, não obstante, o estado do tempo terrível, muito chu-voso e ventoso. Despedia-se com respeito e saudades.349

Daí a cinco dias a princesa mostrava-se mais expan-siva, ainda. Tinha tido a alegria das notícias de Lisboa, na carta do pai de 4 desse mês, que lhe dava a certeza das suas melhoras. Também ela se sentia melhor dos abalos e das constantes dores de cabeça – mal sempre assinalado ao lon-go da jornada – agora, sem maior incómodo, ao mesmo tem-po que enfatiza a boa saúde de Sebastião que beijava com muito respeito a mão de VM.

Já a mana – infanta D. Maria Francisca – me pede que diga a VM que ela não responde hoje à carta que VM lhe fez a honra de lhe escrever, porque pôs bichas de um lado do ventre, por causa de uma dor que tem, porém não é cuidado…. No dia 12 – prossegue – fomos em público à ca-tedral que é magnífica: tem 6 órgãos muito bons; é toda de mármore e tem muitas capelas. Não posso dizer a VM o que se cantou enquanto ali estivemos, pois a catedral é muito grande, quase que não se ouvia a música.

348 Carta de Carmona, de 9.4.1823. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 140. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., pp. 439-440.349 Carta de Sevilha, de 10.4.1823. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 141. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 440.

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Ali, tinham voltado antes de ontem… para a vermos, pois foi tanta a gente que pouco se pôde ver; o que eu pude ver bem foi o corpo de S. Fernando, que está perfeitíssimo; também vi a espada do mesmo santo e uma imagem de N.ª Senhora, que levava sempre a todas as batalhas. Não terminava sem pedir notícias das “manas”, por via da sua aflição, relati-vamente, às notícias que corriam em Sevilha e dizer que o tempo estava bom. Junto com esta carta, remetia o itinerário da jornada, prometido, anteriormente.350

Oito dias depois, tornava a princesa a escrever, res-pondendo a uma carta de 18 de Abril do pai. Regozijando-se pelas melhoras dele, D. Maria Teresa responde à sua curio-sidade – o que enfatiza o que antes asseverámos acerca da personalidade de D. João VI – enquanto ao rio Guadalqui-vir pelo itinerário VM saberá como é, pois eu não o saberei descrever, tão bem como o descreve o dito itinerário.351

A correspondência parecia ter retomado agora a ca-dência, de quatro em quatro dias, de ida e vinda, nos dois destinos. Assim, depois da anterior carta, a princesa da Bei-ra prossegue a rotina do dia-a-dia dos passeios em Sevilha, tornando à catedral, que é magnífica! Desta vez, subiram à torre para chegarem aonde estão os sinos, no topo de 35 lanços de rampa, pelos quais podem subir 2 cavalos empa-relhados; e 25 sinos magníficos. Já do rio não podia dizer mais nada – responde a uma pergunta do pai – pois ainda não o vira senão de longe. Porém, pareceu-lhe muito bonito. O tempo em Sevilha estava muito bom e fazia muito calor. Não se esquecera do dia de ontem – 25 de Abril – aniversário da mãe, D. Carlota Joaquina e beijava por isso a mão do pai, assim como fazia o infante D. Sebastião. O dia tinha sido de

350 Carta de Sevilha, de 15.4.1823. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 142. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., pp. 440-441.351 Carta de Sevilha, de 22.4.1823. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 143. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 441.

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segunda gala na corte espanhola. Porém ela, D. Maria Tere-sa, declara que se vestira de grande [gala].352

Dali a dois dias, aproveitando um expresso, dava nota breve de que passava bem e a mana não escrevia por estar incomodada da cabeça.353

Desde a carta do pai de 22 de Abril, que não recebia notícias dele, acusa a princesa na sua de 1 de Maio. Tornava o sobressalto, por estar sem saber nada do que se passava em Lisboa. Consolava-a pensar que a razão não era a falta de saúde de D. João VI, pois soubera notícias dele, por outra via. Em Sevilha o tempo agora estava chuvoso.354

Entre 1 de Maio e 15 de Junho as cartas de D. Maria Teresa cumprem com a sua rotina, a partir de Sevilha, onde a comitiva dera a sua entrara a 10 de Abril. Sensivelmente dois meses depois, é que dava a entrada em Cádis. Neste meio tempo, ao sabor das circunstâncias, a comunicação voltava a ser interpolada, conforme indiciam as datas, re-flectindo a anormalidade do seu quotidiano.

Assim, com um intervalo de quinze dias (entre 1 e 15 de Maio), chega-nos notícia de uma carta da princesa, na qual reage à notícia de Torlade 355 (nomeado por D. João VI, seu ministro plenipotenciário, junto da corte de Madrid, em Março último) de que a 15 de Maio se retomava o correio 352 É nesta carta que insere o post-scriptum, atrás referido, onde dá conta ao pai do “quadro de S. Francisco de muito boa pintura” que lhe oferecia para ele pôr no seu oratório privado. Carta de Sevilha, de 26.4.1823. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 144. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 441.353 Carta de Sevilha, de 28.4.1823. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 145. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 442.354 Carta de Sevilha, de 1.5.1823. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 146. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 442.355 Jacob Frederico Torlade Pereira de Azambuja, oficial da Secre-taria de Estado dos Negócios da Marinha.

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diário. Aproveitava para cumprimentar o pai e enviava-lhe a descrição da catedral desta cidade, o que fazia na certeza de que ele gostaria de a ler. Por seu lado, relatava que con-tinuavam retidos e sem sair senão aos jardins, razão por que não lhe podia dar notícia nenhuma desta cidade (Sevilha). O tempo continuava bom, mas muito quente.356

Três dias depois, o tempo voltava ao âmago da missi-va onde reiterava que estava muito bom; porém fazia tanto calor, como fazia no Rio de Janeiro no Verão. E sem ne-nhuma novidade a carta repetia, praticamente, o discurso da anterior, fazendo do estado do tempo, assunto. Por aqui se imagina o tédio que dominava por inteiro a família, na ex-pectativa de se ver resgatada do impasse, em que jazia. Foi neste ambiente tenso, soturno e de absoluta incerteza, que D. Maria Teresa de Bragança escreveu a carta de afrontamento ao pai, mal soube de ele ter posto a casaca de estilo liberal.357

Intercalaríamos, ainda assim, o sentimento de vivida afronta de que foi tomada a princesa da Beira o que era ha-bitual nela, sempre que razões perturbadoras da sua vontade se intrometiam, receando ficarmos aquém da profundidade que pedirá a natureza da matéria.

Num apanhado breve, recolhido no transcurso deste diálogo, entre a princesa e o rei, na qualidade de filha e pai, o que perpassa, indiscutivelmente, é a obsessiva tentação de D. Maria Teresa defender o pai dos inimigos – por extensão também dela – pressentindo uma deliberada e malévola in-tenção deles em mantê-la longe da corte, a fim de manobrar a vontade real, coisa de que o pai não estava ciente, por tem-peramento generoso e confiante. 358

356 Carta de Sevilha, de 15.5.1823. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 147. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 442.357 Carta de Sevilha de 23.5.1823, Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., pp. 443-444, sob indicação Col. do Autor. 358 Reportamo-nos a uma carta de Madrid de 11.10.1822 onde a

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Ver-se-á na irmã, a infanta D. Maria Francisca, o mes-mo tipo de preocupação, em relação ao mesmo episódio e ajunta razões, ao saber a notícia – que o próprio D. João deu

princesa faz a sua defesa do que julga ser repreensão do pai: “…quanto [a] eu não mostrar muito empenho para que o conde [de Porto Santo] viesse, não era de admirar, pois eu via que ele vinha, sem que para isso fosse necessário o meu empenho, pois ele tinha o maior que podia ter, qual era o de VM. Paciência! Nunca julguei ser repreen-dida por VM, apesar de que eu conhecia que, assim que eu daí partisse, fariam todas as diligências possíveis para VM me per-der aquela amizade que, até esta hora, não me acusa a consciência ter desmerecido; porém, apesar das diligências que tenho feito para respeitar e amar ao último ponto a VM (ao que julgo não ter faltado em coisa alguma), nada disto é bastante. Conseguirão, enfim, os meus inimigos, triunfar; porém, devo dizer a VM que também são seus inimigos, pois querem afastar de VM uma filha, que não é capaz de o atraiçoar e que dará até à última gota do seu sangue, ainda que VM a aborreça.” Publicada por Ângelo Pereira, sob indi-cação Col. do Autor, in ob. cit. pp. 407-408 (negrito nosso); Noutra carta, de Madrid, de 31.1.1823, D. Maria Teresa insiste com igual veemência, procurando desfazer no espírito do pai uma intriga arma-da contra ela: “Quando eu mandar dizer alguma coisa a VM é porque o sei com certeza, pois não teria o atrevimento de enganar a VM, o que, repito a VM, é que muito desejam que eu não volte aí e que para isso excogitarão todos os meios; porém, se Deus quiser, não o conseguirão, pois eu desmancharei as suas tramóias… Fico aos pés de VM certificando-lhe que sou e serei até à morte filha obe-dientíssima”. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 119. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 429; Ainda antes da carta que aca-bamos de transcrever, parcialmente, por outra datada de Madrid, de 29.11.1822, declara: “Eu hei-de ir para lá [corte de Lisboa] se Deus quiser e junta a VM hei-de fazer aos maus a mesma sujeição que sempre lhe fiz, pois tenho e terei sempre os mesmos sentimentos […] e porque quero que VM também conheça que, apesar de eu estar desgraçadamente separada de VM, ainda me aborrecem, o que a mim se me não dá, pois eu sou aborrecida unicamente por ser leal a VM, por quem darei a vida”. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 102. Publicada por Ângelo Pereira in ob. cit., p. 419. (negrito nosso).

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às filhas – de ter envergado uma roupa diferente do habitu-al, reagindo ambas, com reprovação, à atitude do pai, tendo discutido e concertado – como parece – a crítica que tecem contra o progenitor.

… Nós todos graças a Deus estamos bons, porém, eu muito aflita por ver que VM pôs no dia dos seus anos um vestido tão odiado de todos; pois creia VM que até faz estremecer o nome dele, para aquelas pessoas que têm visto os crimes que se têm cometido debaixo da sua sombra; o que peço a VM é que não o torne a pôr, pois quem não está certo do modo de pensar de VM fica em dúvida se VM aprova todas as terríveis máximas de esta gente desmoralizada (…). Eu espero Senhor, que VM me desculpará que eu lhe fale deste modo, pois tudo é nascido do grande amor e interesse que tenho por VM….359

Não obstante a reacção veemente das duas filhas e que D. João conheceria nelas, qualquer melindre do assunto encerrava com pedidos de desculpa que o pai atendia por ser tudo nascido do grande amor por ele.

Sem grandes novidades, percebe-se nas palavras de D. Maria Teresa alguma distensão, depois do regozijo pela reposição da rotina dos correios, enquanto se sentenciava a permanência da corte em Sevilha, disposição que se antevê, na retoma das tarefas, relativas às obrigações reais e ao ócio. Vemo-la a dar conta ao pai de que tinham ido ver passar a Procissão, que saíra da catedral, com a precisão da hora de saída do cortejo. Destaca, igualmente, alguns pormenores, que julgamos ter despertado nela a maior curiosidade, com-parativamente, ao que estava acostumada.

… Levava logo atrás do primeiro pendão um andar com o Menino Jesus; seguiam sete comunidades, dois andores:

359 Carta de Sevilha, de 25.5.1823. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 508, sob indicação Col. do Autor.

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um em que ia uma custódia com a Espinha da coroa de N.º Senhor e o outro com outra Relíquia; seguia o Cabido e depois a Custódia, a qual está dentro de uma maquineta de prata, magnífica e tão grande que ia em um andor, levado por 17 homens. Dizem que estava magnificamente armada a cátedra; porém, nós não a vimos.

Completava o resumo do dia dando notícia de um fu-racão fortíssimo, porém sem trovões e agora que são 8h da noite, chove alguma coisa.360

A ansiedade, relativamente ao que se estava a pas-sar naquela altura em Portugal, trazia as duas filhas de D. João VI, num alvoroço constante, notadamente, a princesa da Beira. Depois de sentirmos nela um breve interregno de bem-estar e confiança, reinstala-se o clima de inquietação, que denota pelo teor da carta seguinte, na qual confessa a sua ansiedade expectante das notícias que atendia, para o dia seguinte, pois devo receber carta de VM.361

A rotina do correio foi de pouca dura e sofreu altera-ção, quase depois. Isto vê-se na interrupção das cartas de Lisboa, sem, no entanto, D. Maria Teresa abandonar a sua escrita, insegura – como parece – quanto a se as cartas dela chegavam ou não ao destino. Dá conta dos rumores que ti-nha, numa missiva para a mãe, escrita no mesmo dia em que escreveu ao pai, onde patenteia os seus temores, pelo anda-mento das coisas do lado de cá da fronteira, aludido atrás e novamente, enfatizamos.

Minha Mãe e minha Senhora beijo com muito respeito e amor a mão a VM, desejando que os acontecimentos que aí têm havido – sublevação antiliberal de Vila-Franca – não te-

360 Carta de Sevilha, de 29.5.1823. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 151. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., pp. 444-445.361 Carta de Sevilha, de 1.1. 1823. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 445, sob a indicação Col. do Autor.

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nham alterado a saúde de VM e peço a VM que tenha muito ânimo, pois a tragédia está em última cena…. 362

Aproveita a princesa para dar conta à mãe dos motins que tinha havido em Sevilha, no dia anterior, episódio com a duração apreciável de dez horas (entre a 1h da tarde e as 11 ½ h da noite), dando graças a Deus, porque a família não tinha sido atingida, por nada de mais grave.

Já na de idêntica natureza para o pai, na falta de no-tícias, D. Maria Teresa informava-o também de que no dia de ontem, houvera um grande barulho… já se sabe – diz ela – feito pelos milicianos nacionais363, que saquearam as casas do chantre e de um cónego e fizeram 4 mortes. Nada sucedera à família real e nem o palácio foi acometido, pois se tomaram todas as providências.364

Ainda sob o clima daquela circunstância, a princesa não parou de escrever ao pai, mas, só a 16 de Junho é que assinala terem-lhe chegado notícias de Lisboa, da parte dele, achando-se toda a família real e comitiva já em Cádis, onde tinham entrado no dia anterior, 15 de Junho. Antes, na sua carta de 7 de Junho, sem indicação de local – presumivel-mente de Sevilha – protestava, no meio da maior aflição, a falta de notícias e só boatos do que tinha havido em Portu-gal. Remete para o que constara no dia anterior (6 de Junho), enfatizando a necessidade d’el-Rei governar nos moldes em que governara Sua Mãe.365

362 Carta de Sevilha, de 2.6.1823. Publicada por Ângelo Pereira, sob indicação Col. do Autor, in ob. cit., pp. 445-446. Recebida na Bemposta a 7 de Junho de 1823, conforme anotação de D. João VI, no sobrescrito. 363 Forças pró-liberais.364 Carta de Sevilha, de 2.6.1823. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 152. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 446.365 Carta de 7.6.1823, s/l. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 155. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 447. No mesmo sen-

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Finalmente em Cádis, para onde a família real fora deslocada em virtude do agravamento da situação, a prin-cesa escreveu uma breve nota ao pai, onde lhe dá conta da chegada àquela cidade tendo passado pelo caminho quantos incómodos se podem imaginar – situação que abarcava to-dos – mas ela, princesa, em particular, o sofrera duplamen-te, por causa de um ataque de cabeça, numa das noites da jornada mesmo no coche, idêntico aos que sofrera antes da saída de Madrid.366

Deste dia, 16 de Junho de 1823, até ao do fogo aberto, entre sitiados e sitiantes, passaram-se dois meses, debaixo de apertado cerco, tempo, durante o qual, a comunicação entre D. João VI e as filhas é esparsa, não obstante, saber--se, por outras vias, as várias tentativas de as retirar dali, infrutíferas, como já referimos. Não deixou nunca o rei de tentar tudo quanto estava ao seu alcance, para livrar as filhas do cativeiro.367 tido escreveu D. Maria Francisca na sua carta da mesma data, embora mais alargada que a nota da irmã, de vivo repúdio pela atitude do pai de cedência aos liberais, teor transcrito no corpo do texto.366 Não sendo mais explícita do que isto, acerca do tipo de ataque de que era acometida frequentemente, cremos que sofreria de síndrome vertiginosa. Carta de Cádis, de 16.6.1823. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 156. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 447.367 D. João VI manteve-se ao corrente de tudo o que se estava a passar em Espanha (particularmente em Cádis, último ponto nevrál-gico do drama), pelos seus enviados, como se vê, através da corres-pondência diplomática. Transcrevemos uma daquelas notas da parte do futuro duque de Palmela, sendo ministro dos Negócios Estrangei-ros:”…Houve uma sortida da guarnição de Cádis (tropa dos liberais) no dia 16 [Julho], mas parece que foi rechaçada, com muita perda. Eu tencionava levar em pessoa estes ofícios a VM; porém, chegou ao depois um expresso de Cádis, com as cartas inclusas de SS.AA.RR. (filhas de D. João VI) e um ofício de Joaquim Severino que se está de-cifrando; reservo-me, portanto, a levá-lo à noite e beijo a mão de VM, que espero se ache aliviado do seu incómodo e dormisse esta noite melhor, do que a antecedente. Avisam-me da chegada do Núncio

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Vai no mesmo sentido mais outra missiva de D. Ma-ria Teresa, dali a 15 dias, para o pai, da qual demos con-ta, a propósito da decisão do conselho de Estado e governo espanhol, relativamente à solicitação de Fernando VII e do irmão, infante D. Carlos Maria Isidro, para se autorizar a re-tirada da família, solicitação que teve o desfecho apontado, de não permissão de saída de Cádis de nenhum membro da família.368

O que imaginamos, pelo teor das cartas das duas ir-mãs, é o prolongamento da reclusão, mais apertada, ainda do que em Sevilha, ao ponto de não se poderem mover fora do interior do próprio edifício da Alfândega, onde estavam alojadas, por ser o que dava maior garantia de segurança pela robustez da construção.

Agora estamos sempre em casa e só de tarde subimos a um pequeno terraço que há aqui na Alfândega onde estamos morando. 369

Uma semana depois, incriminava a princesa a condi-ção de prisioneiros, referindo-se ao estado, alterado, da sua saúde:

… Porém eu, bastante incomodada dos nervos, hoje princi-piei a tomar banhos de água salgada, para ver se me forti-ficam alguma coisa; esquecia-me de dizer que os tomo em casa, pois ao mar não os posso ir tomar, ainda que, os mé-dicos mos mandavam tomar….

[apostólico] e vou espedir todas as ordens do costume para o seu desembarque.” Nota da Secretaria de Estado do Reino de 30.7.1823. Documento publicado por Ângelo Pereira, sob indicação Col. do Au-tor, in ob. cit., pp. 486 e 491. (negrito nosso). 368 Carta de Cádis de 2.7.1823. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 159. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., pp. 449-450.369 Carta de Cádis, de 25.6.1823. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 448, sob indicação Col. do Autor.

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Por esta e a seguinte, notamos a sintonia entre o que acabá-mos de ler, em nota acima relativamente aos esforços de Lis-boa para seguir de perto a situação em Espanha, sobretudo Cádis e as notícias, em primeira mão, da princesa para o rei, quando informa de que pelo portador desta, tive a honra de receber carta de VM, enquanto à comissão, que ele trouxe; por Severino Gomes saberá VM o resultado.370

Quando, em cima do acontecimento, a princesa da Beira escreveu ao pai a narrar a sortida – referida na nota que o ministro dos Negócios Estrangeiros (Palmela) deu a D. João VI – esta vai ao encontro da expectativa em torno do que constava da aproximação do exército do duque de Angoulême, facto de que D. Maria Teresa, mal soube, teve o cuidado de avisar o pai, duas semanas antes daquela nota ministerial. 371

Finalmente, antecipando-se ao assalto de Angoulême para resgatar tanto o rei como a família real, os liberais, que

370 Carta de Cádis, de 5.7.1823. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 160. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 450.371 A resposta de D. João VI a esta carta da filha, talvez não tenha chegado às mãos dela, facto que a levou a queixar-se amargurada a João Lourenço e disso já demos conta, a propósito do seu desabafo, pelas suspeitas que lhe levantava a conduta do pai. Perceber-se-á que ela falava – como foi dito – debaixo da maior tensão, ignorante dos meandros da situação, que exigia contenção e sigilo, como se percebe dada a operação militar em curso. Escrevia, então, a princesa ao pai, a 26.6.1823: “Agora acabámos de saber que são 15 000 os franceses que estão no Porto de Santa Maria, fora os que também estão em Porto Real; o duque de Angoulême e o príncipe de Carignan estão hoje no Porto de Santa Maria. O general francês que está no dito por-to, escreveu hoje ao general Zayas [José Pascual de Zayas y Chacón (1772-1827)], que está com o exército de reserva na Ilha de Léon, oferecendo-lhe que capitulasse. Este ofício foi agora, que é ½ dia, veremos o que responde…” Carta de Cádis, de 26.6.1823. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 158. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., pp. 448-49.

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a tinham refém, investiram contra o exército sitiador, embo-ra, sem sucesso decisivo da operação, como se lê na carta da princesa para D. João VI.

…Como o portador é de confiança quero contar a VM que hoje os constitucionais atacaram os franceses, principiou o ataque às 4 horas da madrugada (ao menos foi quando nós principiámos a ouvir tiros) durou o fogo até às 10 horas da manhã; a mana e eu estivemos vendo toda a acção, com óculos, isto é a do Trocadero, pois as baterias, tanto dos franceses como dos constitucionais, estão defronte do meu quarto; seriam 11 horas chegaram muitos barcos de feri-dos e estes diziam, que o comandante do Regimento de S. Marcial se tinha empenhado, em tomar a bateria francesa e mandando avançar para o dito efeito. Os franceses fizeram uma retirada falsa e então os constitucionais atacaram à baioneta a bateria francesa; os franceses deram sobre eles uma descarga de metralha, da qual resultou muitos mor-tos e feridos; no número dos mortos entrou também o dito comandante do Regimento de S. Marcial. Em Chiclana [de La Frontera] os milicianos de Madrid, indo com tenção de atacarem também os franceses, estavam os Guardias Espa-nholas emboscados e logo que os ditos milicianos chega-ram a pouca distância deles, os surpreenderam e lhe fize-ram uma grande mortandade. Isto tudo é confessado pelos feridos que aqui chegaram. Agora, tanto os franceses como os constitucionais se conservam nos mesmos pontos, que antes da acção ocupavam, ontem a esquadra francesa apre-sou uma fragata espanhola, bastante interessante. Hoje até agora, que são 9 ½ da manhã, não há novidade nenhuma; deixo de escrever mais até à noite, para ver se sei alguma particularidade mais. Desde as 10 horas da manhã até ao meio-dia e ½ h ouviram-se continuadamente tiros de arti-lharia, para o lado de Chiclana e tornaram a ouvir-se desde

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as 5 até agora, que são 8 da noite para o lado de S. Pedro372; ainda não sabemos o que terá sido…373

O enviado especial a Lisboa, general francês Bour-mont, dirigiu, nesta ocasião, uma nota particular ao general Pamplona, conde de Subserra, ministro português da Guer-ra, na qual, entre outras coisas, lhe dava conta do insucesso da operação de Julho.

… Ce que j’avais eu l’honneur de Vous dire à Lisbonne au sujet de la prise de Cadix ne s’est point vérifié : les circons-tances qu’il était impossible de prévoir, quelques malenten-dus, ont était les causes de ce retard qui semble enfin ne plus devoir exister longtemps et malgré la réputation de mauvais prophète que je dois avoir laissée après moi, je crois pou-voir dire à Votre Excellence que, selon les probabilités, nous serons dans Cadix avant la fin de la semaine prochaine. Je puis me tromper encore une fois, mais tout nous porte à croi-re que ce sera même plutôt et que bientôt Sa Majesté Très Fidèle pourra le réjouir comme nous de la délivrance des Enfants…374

Estimava correctamente o conde francês, previsão inevitável, quanto à operação de resgate levada a cabo pelo exército do duque de Angoulême. De facto, não tardaria, que

372 Rio San Pedro (Cádis). Carta de Cádis, de 14.8.1823. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 165. Carta publicada por Ângelo Perei-ra, in ob. cit., pp. 453-454.373 Carta de Cádis, de 17.7.1823. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 161. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 451.374 Extracto da missiva particular do conde de Chaisnes de Bour-mont (1773-1846) para o general Pamplona, ministro da Guerra, pu-blicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., pp. 484-485, sob indicação Col. do Autor. Desculpa-se o remetente daquela nota, perante o ami-go, general Pamplona por ter falhado na sua previsão, sobre a referida operação gaditana, ao mesmo tempo que confia e afiança ao homólo-go de que se preparava uma nova tentativa que em breve resgataria do cativeiro as filhas de D. João VI.

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as notícias para Lisboa fossem de triunfo, ao encontro do acertado entre as potências, em Verona, na origem da resti-tuição de Fernando VII aos seus plenos poderes, dos quais tinha sido despojado em 1820, em consequência da consabi-da revolta do general Riego.

No ínterim, o que se nos depara é uma profusão de no-tícias, mais ou menos imprecisas, não obstante perseguirem o mesmo fim. Nada de muito seguro era adiantado, quanto ao que se passava, realmente, em Cádis, parecendo até em dúvida o almejado sucesso. Preocupava certamente D. João VI a grande questão de ordem política, internacional, de-cidida no país vizinho, mas não menos a sorte das filhas e netos. A incerteza, quanto ao destino da família, fica paten-te na correspondência da princesa. Foi no intervalo destas incertezas e angústias, que ela desabafou a sua amargura a João Lourenço, mostrando-se desconfiada da conduta do pai e rei, supondo-o alinhado com os revolucionários liberais de Espanha.

A dúvida desfez-se e arrependida das palavras que o coração lhe ditara ei-la a escrever já com outro semblante, a 21 de Agosto, acusando a recepção, na véspera, pela corveta Lealdade, da carta do pai, datada de 6 de Julho. Antevê-se o clima que redundava em temor pela falta de comunicação. De salientar, na resposta de D. Maria Teresa, a mesma afli-ção de sempre e mais, ainda, por não saber nada da saúde precária, dele.

…Deus queira dar-me o gosto de tornar a receber carta de VM com a certeza da sua melhoria, pois creia meu Senhor que é para mim a maior mortificação saber que VM está tão incomodado e ver-me privada da honra de receber carta de VM…

O âmago da operação de resgate vinha a seguir, nos cui-dados da princesa, adiantando agora detalhes ao pai – já depois

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dos indícios a 31 de Julho, sem resposta dele às cartas anterio-res – que no dia 6 de Agosto, Fernando VII iria fechar as cortes e que ela e a irmã iriam estar presentes, embora sublinhasse a dúvida que tinha, acerca do efeito, com um veremos o que sucederá. O impasse continuava na ordem do dia, quanto ao fu-turo político do rei espanhol, situação que espelhava de algum modo o que se estava a passar cá, em Portugal.375

D. Maria Teresa faz menção a uma carta sua de 17 de Julho, que se terá tresmalhado. Todavia, repete o teor, nesta de 21 de Agosto, facultando os fios da meada que nos faltam para abarcar a sequência dos acontecimentos, in loco, do braço de ferro entretido pelos liberais, situação que se prolongava na forma de chantagem, psicológica, exercida por estes, como se apura do discurso da princesa.

375 Uma nota pessoal do duque de Angoulême para o conde de Sub-serra, datada de Madrid, de 21.7.1823, deixa-nos perceber que o mi-nistro da Guerra, português, lhe oferecera apoio, tendo por trás a mão de D. João VI, tendo em vista a situação das filhas e netos, reféns dos liberais indo, naquela data, a caminho de Sevilha:“… Les instruc-tions que j’ai, sont de ne point accepter les offres de coopération du Portugal dans les affaires d’Espagne, par la raison que la France a refusée celle des autres grandes puissances…”. O único aspecto que o duque reconhecia poder vir a precisar, no que toca ao apoio ofere-cido, era de munições ou permissão para as adquirir em Portugal. Por outro lado, o marquês de Palmela esclarece o tacticismo da diplo-macia inglesa, face à situação em Espanha, na nota para D. João VI: “Esta manhã recebi os dois ofícios de Sevilha que tenho a honra de transmitir a VM e que nos dão notícias até 24 do corrente [Julho]. A mais interessante é ter o ministro de Inglaterra Sir William A ‘Court recebido ordem da sua corte para se retirar a Gibraltar, sendo certo que o governo inglês parece, por este modo, adoptar a mesma polí-tica que VM seguiu; isto é, a de não querer reconhecer o governo de Cádis, depois da violência cometida contra o Senhor D. Fernando 7.º; eu creio que os ingleses tomarão nesta ocasião a oferecer a sua mediação…” Nota do Ministro dos Negócios Estrangeiros, marquês de Palmela, para el-Rei D. João VI, publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 486, sob indicação Col. do Autor.

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… No dia 17 mandei dizer a VM que o Duque de Angoulême tinha intimado a este Governo que dentro de 5 dias poriam El-Rei em liberdade e que se assim o não fizessem SA o viria pôr pela força; hoje, estes malvados forçaram el-Rei a es-crever ao Duque de Angoulême uma carta, a mais insultan-te, concluindo-a dizendo, todo o mal que me suceder a mim e a toda a família real, VA é o responsável…

Não estavam os carcereiros dispostos a ceder, senti-mento que se adivinha, na omissão da princesa, perante a extorsão de que eram vítimas, acentuando a esperança que mantinha, de saírem dali, lembrada de perigos passados.

…Enfim, não querem ceder, teremos de sofrer bombas e as-salto; porém, nada disso me assusta e só ver que estamos nas mãos desta gente, mas tenho muita confiança em Deus que já que nos tem livrado de tantos perigos, nos livrará deste…

Sabedora faz menção às manobras diplomáticas de D. João VI, para os fazer sair daquele reduto portuário, tal como o vimos ensaiar, a título oficial e privado, de acordo com a nota do conde de Bourmont para Subserra.

… Agradeço muito a VM mandar para aqui as duas corve-tas e tudo quanto tem feito para nos livrar deste cativeiro.376

As achegas que dão enquadramento às manobras de bastidor, escapavam à princesa da Beira, como seria ne-cessário que fosse, mas, acicatada, conjecturava cenários, julgando-se abandonada pelo pai, ela, a sua mais fiel con-fidente, como nos dá a entender. Insistia na ideia de ser re-tirada dali, na carta que escreve ao pai, a 20 de Setembro, intranquila, como denota o discurso, malgrado o sucesso da operação do exército francês, contra o reduto gaditano.

376 Carta de Cádis de 21.8.1823. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-51, nº 167. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 454.

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… Lembro-me também que seria muito útil que VM escre-vesse ao duque de Angoulême, pedindo a SA que faça todas as diligências para quanto antes, nos tirar deste cativeiro e que SA pode estar muito persuadido, que toda a corres-pondência que esta gente tem com SA, é unicamente, para demorar e fazer com venham as tempestades (que aqui cos-tumam haver depois do equinócio) para que a esquadra abandone o cruzeiro e estes nos possam levar para as Ca-nárias (pois esse é o seu plano). Igualmente, que antes que SA empreenda as operações, mande aqui um parlamentário, intimando, que SA faz responsáveis da vida d’el-Rei e de toda a família real, ao Ministério, as Cortes, conselheiros de Estado, Copons, chefe de palácio e alabarderos (pois são péssimos), ao Ayuntamiento e a todo o povo de Cádis, de certa idade para diante…377

As palavras da princesa pedem que se reflicta mais nelas, ainda que, seja para acentuar somente algumas notas, que saltam à vista. Primeiro, acerca da postura dela, quanto à veemente necessidade de aconselhar o pai, temerosa de que ele não alcance o verdadeiro sentido e força das suas admoestações, no que demonstra ignorar o que se passava, realmente. Compreende-se por outro lado, a sua agitação e disso se conclui as constantes dores de cabeças, que a per-turbam tanto – literalmente falando – e das quais vai dando conta ao pai. Pensa em tudo, como se pode aferir. Cruzam-se na mente de D. Maria Teresa de Bragança uma indefinível teia de pensamentos, nos quais não somente cuida mas, in-tensamente, antecipa.

Percebemos também a atmosfera de alarme, derivado da falta de notícias fidedignas, alimentando boatos. Assim, a princesa pressente já as Canárias, como prolongamento do seu cativeiro e da família, factor de que ninguém estava 377 Carta de Cádis de 20.9.1823, publicada por Ângelo Pereira, sob indicação Col. do Autor, in ob. cit., pp. 457-458.

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apercebido – no seu entender – sendo toda a gente vítima das manobras de dilação dos revolucionários, que conjuga-vam o tempo e o clima, jogando com a impossibilidade de se prover socorro, por mar. Já via em toda a gente um conluio – talvez com razão – que abarcava desde os políticos aos ope-racionais, alabardeiros e governo, na manutenção daquele impasse e até mesmo o povo de Cádis, de certa idade para diante, como assinala, perspicazmente.

Em paralelo à correspondência da princesa da Beira, a da infanta, D. Maria Francisca de Assis, sofrendo idêntica pressão das circunstâncias e centrada nas mesmas dificul-dades, cotejando o teor dos escritos, o leitor tem pela frente um perfil diferenciado de narrador, evidenciado na infan-ta pelo temperamento igualmente diverso, mas não menos acutilante, quanto à avaliação do processo para onde foram arrastadas.

Adivinhamo-la vítima sofredora da terrível adversida-de, sem se alhear nunca do que se passava do lado de cá na mesma altura, cenário onde vislumbra idênticas dificulda-des, nascidas do mesmo tipo de padecimento, que sofriam em Espanha. O pai era o alvo principal dos adversários e por arrastamento os demais familiares. Não obstante, nota-se o discurso da infanta D. Maria Francisca mais apaziguador e menos alarmista do que o da irmã, denotando um menor so-frimento, psicossomático.

Sem diminuir o grau de temor que experimenta, pe-rante a incerteza que se adivinha nela, a infanta D. Maria Francisca teve a serenidade – pelo menos aparente – de redi-gir um cuidadoso diário dos dias mais difíceis do cativeiro, antes do desencadear da operação de resgate, demonstrando estar ciente da dependência de factores aleatórios para as-segurar a comunicação com o exterior, embora, isso não a tenha impedido de ir anotando tudo o que se estava a passar

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em Cádis, talvez a contar com a eventualidade de um porta-dor que levasse as notícias ao pai.

Denuncia indirectamente aquele gesto da infanta – por outro lado e mais uma vez – um D. João VI atento ao que girava à sua volta, ávido de notícias, convicção que mantemos, alicerçado na referência aos relatos que pedia – factos, itinerários ou ambientes – aludidos no curso desta correspondência, esperando-os tanto das filhas como dos seus mandatados em Espanha, os quais, depois de os ler, conservava e anotava, ordenadamente, pela data de chegada e o local, onde lhe era entregue a correspondência.378

Reputamos assim, por muito interessante, a narrativa dos dez dias da operação de rendição dos revolucionários liberais, às mãos do exército de Angoulême, operação, que os peritos desafectos concordam, ter sido excepcionalmente bem dirigida. O conde de Bourmont regozijou, quando lhe chegou ao conhecimento em Lisboa, a libertação do reduto portuário, cadeia da família real e tê-la-á festejado com o seu amigo Subserra, jubiloso do sucesso, previsto.

O relato dos acontecimentos, tanto os antecedentes, como o resgate em si, pela voz de D. Maria Francisca, principia a 20 de Setembro de 1823, completando-se pre-cisamente dia 30, muito embora, a expectativa da liberta-ção viesse aguardada de longe, tendo em vista os alertas que corriam desde finais de Junho – como se viu – data em que principiaram a correr os avisos da disposição no terreno do exército de Angoulême e na medida que cor-ria a informação da sua aproximação a Cádis, conforme ficamos a par pela correspondência, antes do fim daquele mês, de Junho.

378 As duas irmãs não deixam de recomendar ao pai que recompense pelos bons serviços, neste particular, de lealdade e esforço, alguns dos colaboradores cujos nomes emergem nas suas missivas.

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Nós todos estamos bons, graças a Deus; porém, sem saber o que sucederá de nós, pois os franceses já estão de aqui duas léguas e estes homens não querem ceder….379

A ansiedade relativa ao momento do resgate era cada vez maior e denuncia-o a notícia da tentativa falhada inten-tada a meio de Julho, fazendo recuar o comandante francês do plano inicial, para evitar um desenlace mais sangrento do que foi, pressionando o inimigo, ao mesmo tempo que esten-de aos revolucionários uma proposta de negociação pacífica, de rendição, a que se contrapôs a chantagem do opositor.

…Aqui se está esperando que os franceses ataquem a praça e que deitem bombas; eu não tenho medo nenhum de tudo isto e só o que me assusta é o povo [de Cádis], pois é muito mau e como estes homens estão desesperados são capazes de fazer alguma coisa má. Peço a VM mande aos conven-tos que façam orações por nos, pois muito as necessitamos, para que Deus tenha misericórdia de nós e nos livre dos nossos tão terríveis inimigos, os quais já teriam acabado connosco se Sua Divina Majestade não nos tivesse livrado tantas vezes…380

Notamos a aflição da infanta, quando pede ao pai que evoque a misericórdia de Deus para toda a família em Espa-nha, através das orações dos conventos, preceito muito habi-tual, em contextos de perigo ao longo da memória histórica. Destaca-se, igualmente, nesta sua carta a frase que antecede as despedidas, onde D. Maria Francisca solicita, entre sau-dades, para o mano Miguel lhe mandar dizer quanto pesava, para poder cumprir uma promessa que fiz por ele.

379 Carta de Cádis, de 25.6.1823, de D. Maria Francisca para a mãe, Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-50, nº 60. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 510.380 Carta de Cádis, de 24.8.1823. Publicada por Ângela Pereira, in ob. cit., p. 515, sob indicação Col. do Autor.

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O clima de grande expectativa torna-se latente a par-tir de 24 de Agosto e durará, praticamente, um mês, até ao desencadear da operação de resgate. Mas é só a 20 de Se-tembro – dizíamos – que tem início o “diário” da infanta onde ela narra o dia-a-dia de cativeiro colectivo, ainda sem desfecho à vista, na esperança de fazer chegar notícias ao pai. Ao longo desses dias, o leitor vai ficando informado do ambiente no reduto gaditano, ao pormenor, oferecendo-se--nos a escrita o sentimento chão que aflora da angústia pela realentada confiança.

Ficaria registado pelos apologistas da revolução libe-ral, que subiram ao poder e alimentaram a agenda opiniosa que ainda corre, como única verdade e portanto, virtuosa, de que na corte de Madrid, a influência das duas filhas de D. João VI era um foco conspiratório e antirrevolucionário, criando a fama da sua imagem inquinada.

Tal fama anda envolta na ideia de retrógradas e faná-ticas, porque apegadas à religião. Ora, lendo, sem precon-ceito, o diário dos dez dias, escrito pela infanta D. Maria Francisca – inferindo dele o que imaginamos acerca da po-sição da princesa da Beira e pelos seus próprios relatos – o que sobressai é o retrato de uma mulher culta e sagaz, atenta ao que se passa, dando conta dos trâmites do drama político que se desenrola ao redor e permeia o cenário de clausura, enquanto dura o antagonismo das forças em presença, estre-mada a situação dos liberais, incapazes de aceitar a realidade que se lhes opunha, tendo-se por salvadores únicos, da pátria e do mundo.381

381 No diário do 6.º dia do confronto, a infanta descreve a fase da trégua, aberta para negociações, pondo em evidências a inflexibili-dade dos liberais que manipulam as negociações, através do “minis-tério” e das “cortes”, tendo como mediador, coagido, a figura do rei, Fernando VII, em nome do qual os ministros ditam as suas condições: “Às 5 h da tarde foi o ministro de Estado ao quarto de SM e lhe mostrou as exposições que o Ministério ia apresentar às Cortes, a

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A infanta sabe captar esse clima e apontar a dedo, quando identifica um a um, os principais mentores e agita-dores, que manobram a situação, obstinadamente, para se segurar no poder, que lhes foge, apesar da impetração do ideal revolucionário, pelo medo e a violência. Sob coacção o rei no seu cativeiro – assim era de facto – serviam-se dele

qual se reduzia a dizer-lhes que o Ministério aceitava a oferta de SM [Fernando VII] e que pela sua parte lhe parecia que se podia mandar dizer ao duque de Angoulême, que SM já estava em liberdade e então, tratar com SA [duque de Angoulême], para o modo que havia de ser a saída de SM desta Praça [Cádis]; às 11 h da noite se acabaram as Cortes, às quais o Ministério apresentou a sua exposição e deu conta do estado da Praça. As Cortes nomearam uma comissão para tratar de este assunto, o qual se decidirá amanhã”. Neste ponto, a infanta tenta tranquilizar o pai, depois do que escreveu, relativamente aos dias anteriores, de descargas de fogo como manobras de intimidação, que tinham causado estragos, à volta do local, onde estavam alojados os membros da família real, dizendo-lhe que “podia estar tranquilo pelo que respeita à nossa segurança, pois vê-se mesmo a mão de Deus, que nos guarda dos nossos inimigos, de tal modo, que, até os ministros [liberais] que estavam emperrados, em que não se havia de ceder, já se vão conformando e também assinaram a exposição às Cortes”. Identifica pelo nome, os que não querem ceder: Calatrava, Golfim, Manzanares e Osório; e dos que estavam pela cedência, Luiando e Iandiola. “Estes dois últimos não são bons; porém, são mais mode-rados que os outros pois, todos os que agora cedem, é à força e não pela sua vontade, o que deve de servir para quando se sair daqui estar sempre com olho neles, porque, assim que possam, tornarão a fazer o mesmo ou pior que agora”. Neste passo, a infanta suspende o curso da narrativa e introduz um aviso ao pai: “O que deve VM fazer aí e creia que os que agora aparentam ser realistas e antes eram constitucionais não o deixaram de ser e no seu coração conservam sempre estas ideias para, se algum dia puderem, manifestá-las; em este número entra o conde de Vila-Flor e o marquês de Loulé, os quais VM devia separar do seu lado, pois, são lobos com pele de ovelha. VM creia que eu digo isto pelo interesse que tenho por VM e porque julgo que a minha obrigação é dizer-lhe tudo o que eu creia que pode contribuir para a sua felicidade.” Publicado por Ângelo Pereira, sob indicação Col. do Autor, in ob. cit., pp. 517-518.

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como moeda de troca nas negociações, finalmente entabula-das, sob permanente chantagem.382

D. Maria Francisca punha o pai de sobreaviso, dando--lhe como exemplo o que se estava a passar em Espanha, que fazia da real família refém dos exaltados, advertindo--o dos riscos que ele corria, temendo que como rei o pai viesse a cair numa armadilha, que ela pressentia por detrás de aparente adesão à causa realista, de um grupo de falsos apoiantes, onde pontificavam o marquês de Loulé e o conde de Vila-Flor.

Não se enganava na previsão a infanta, não tanto quanto ao tempo, mas no modo como haviam de se reve-lar opositores do trono e do altar, os referidos membros da melhor fidalguia. O conde de Vila-For – depois marquês do mesmo nome e duque da Terceira – adviria herói nacional, por ter militado e defendido a causa de D. Pedro IV, mere-cendo, por isso, honras de panteão. O marquês de Loulé, que era, por inerência familiar, estribeiro-mor de D. João VI, não

382 Logo no 4.º dia do assédio militar, a infanta descreve a situação, que pendia para o lado dos franceses: “O regimento de São Marcial levantou-se em Campo Roto contra a constituição e proclamou a el-Rei Absoluto, chamando na praia aos franceses para que se apode-rassem do dito campo e de todas as batarias; os franceses não o pude-ram fazer porque não tinham em Santi Petri senão a gente precisa e os constitucionais mandaram buscar tropa à Ilha [de Léon]; assim que chegou a tropa da ilha acomodou o regimento e o general [das tro-pas insurrectas] fez passar pelas armas a 9 soldados do regimento de São Marcial. A tropa toda está muito insubordinada e todos querem acabar com a constituição; o general que manda a tropa da Ilha disse ao Ministério que ele não respondia da tropa e que a única vantagem que tinha era que os franceses não tinham feito movimento nenhum, porque assim que o fizessem, julgava que a tropa o obrigaria a ca-pitular ou que deixariam entrar os franceses. O Ministério assentou em que amanhã se reuniam as Cortes para ver o que se há-de fazer; a esquadra [francesa] tornou para as suas antigas posições”. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 516, sob indicação Col. do Autor.

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chegou a alinhar com o imperador do Brasil, por ter apare-cido assassinado em Salvaterra, ponderação que cai fora dos limites cronológicos, deste livro. 383

Num espaço, geograficamente limitado, último reduto dos apologistas da constituição de 1812 e sequazes de Rie-go, o povo acabaria por ser joguete da situação, sob inaudito sofrimento, vendo libertadores em cada grito e os mais exal-tados, confinados a meia dúzia de pontos estratégicos: San Petri, Trocadero, Carraca e Castelos de Puntales e de São Sebastião, Puerto de St.ª Maria e e Puerto Real, dependendo da acção da tropa acantonada na ilha de Léon.384

O braço de ferro do ministério e deputados estreitava--se a cada hora que passava, divididas as cortes no intento de obter garantias de Fernando VII, servindo-se dele para pressionar o duque de Angoulême e não perderem de todo a face, no caso da rendição, que este lhes oferecia.

…Faço a VM a relação das coisas que têm sucedido hoje, dia 26 [de Setembro]. os ministros foram ao quarto de SM para que SM lhes oferecesse que havia de dar um gover-no representativo e uma amnistia; SM lhes respondeu que

383 D. Agostinho Domingos José de Mendoça Rolim de Moura Bar-reto, 1.º marquês do título, criado pela rainha D. Maria I em 6.7.1799.384 A partir de informação capturada aos liberais, a infanta transmi-tia ao pai: “hoje [dia 25.9) a tropa tinha ficado sem comer, mais que arroz e água e que amanhã nem isso poderia dar” clima que presidira à reunião das anunciadas Cortes. No mesmo dia, o 5.º desde o início do avanço francês, a infanta prossegue o seu relato, dando conta do impasse do Ministério e Cortes, pendentes entre si, sobre qual a deci-são a tomar: “As Cortes foram secretas e houve nelas grandes debates para que o Ministério dissesse a sua opinião; porém eles não a disse-ram e responderam que ainda não tinham tomado a sua opinião (…). Hoje tem embarcado na esquadra francesa muita tropa [rendida] e se crê que o duque de Angoulême está a bordo, porque uma fragata tem insígnia de almirante”; Publicado por Ângelo Pereira, sob indicação Col. do Autor, in ob. cit., p. 517.

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ele aqui [em Cádis] não podia prometer nada, pois não sa-bia qual era a vontade da nação e que só lhes prometia o perdão das suas vidas. Então os ministros disseram a el-rei que se SM os autorizava para que eles dessem parte de esta promessa às Cortes, SM lhes disse que sim. Depois que os ministros se foram do quarto de SM veio às onze horas da manhã um parlamentário da parte do general Guilleminot [enviado do comandante francês] com uma carta para o ge-neral Valdez e às três da tarde foi daqui a resposta (…) às cinco d tarde foi o ministro de Estado ao quarto de SM e lhe mostrou as exposições que o Ministério ia apresentar às Cortes, a qual se reduzia a dizer-lhes que o Ministério aceitava a oferta de SM e que pela sua parte lhe parecia que se podia mandar dizer ao duque de Angoulême que SM já estava em liberdade e então tratar com SA para o modo por que havia de ser a saída de SM desta praça [de Cádis]. Às onze horas da noite se acabaram as Cortes, às quais o Ministério apresentou a sua exposição deu conta do estado da praça; as Cortes nomearam uma comissão para tratar deste assunto, o qual se decidirá amanhã…385

À medida que entramos no âmago da situação, vamo--nos dando conta também de um tipo de linguagem, ajustada a um léxico, que entrou na ordem do dia, desde os primór-dios da revolução francesa e sem excepção se repercute em todos os processos do mesmo cariz. Chama-nos a atenção o calculismo das forças no poder, cuidadosas de qualquer mo-vimento e manobra, suspeito, no decurso do diálogo entre contendores.

…Dia 27 [de Setembro] – Reuniram-se as Cortes ao ½ dia e a comissão disse que se conformava com o ditame do Gover-no e então se votou a favor da comissão e ouviram 70 votos a favor e 30 contra; houve alguma gente que quis meter bu-

385 Publicado por Ângelo Pereira, idem, ibidem.

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lha, gritando constituição ou Morte; porém, as autoridades logo tomaram providências e tudo está sossegado, porque, como o duque de Angoulême os fez responsáveis [pelo que sucedesse ao rei e família real], é muito natural que eles se esmerem, não por virtude e sim, só por medo. (…)

Vieram os ministros e fizeram com SM escrevesse uma carta ao duque de Angoulême dizendo que já está em liberdade; que agora é preciso começar a tratar; SM escreveu esta car-ta, a qual foi por um camarista seu e saiu de aqui às onze horas da noite, quando vier a resposta terei o gosto de a participar a VM.

Chegou o camarista de SM às 9 e ½ h e trouxe uma carta de Angoulême, dizendo a SM que como SM estava em liberda-de, que esperava ter o gosto de jantar com SM amanhã em Puerto de St.ª Maria; el-Rei chamou os ministros e eles lhe disseram que isto era impossível e que era preciso mandar dizer a SA que SM não podia ir amanhã…386

As exigências, ditadas pelo desespero dos revolucio-nários, encurralados num beco, sem outra saída, que não fosse rendição ou morte, prosseguem, numa demonstração de falsa força, facto que não conseguem elidir aos olhos do adversário, dado o teor das suas contrapropostas.

…Os ministros fizeram escrever uma carta a el-Rei para o duque de Angoulême, na qual dizia SM que era preciso que SA concedesse a Ilha Gaditana a estes constitucionais e pro-

386 O discurso é autoexplicativo, quanto à sua índole, revolucio-nária. Fazemos reparo de um pormenor, em relação à construção da narrativa, na medida, sem hiatos, que vai mantendo o leitor suspen-so dos factos, redigidos, em cima das notícias. Tudo indica que este relato foi remetido completo ao rei, dentro de um único sobrescrito, conforme anotação de D. João VI: “Recebida em 12 de Outubro de 1823 pela Corveta’”. Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 520, sob indicação Col. do Autor.

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metesse que el-Rei havia de dar uma às vinte e quatro horas de sair daqui e que se lhes conservariam os seus ordenados e se aprovariam os empréstimos. Isto tudo foi pelo general Alaba e o intendente Torres (que é um dos mais exaltados), os quais saíram daqui às quatro horas da tarde…387

O excerto acima é do diário da infanta, relativo a 29 de Setembro, o qual abre com os parabéns ao Mano Miguel pelo dia, formulando votos das maiores felicidades em com-panhia de VM. Num relance pela efeméride, verifica-se que é o da celebração do dia de São Miguel, onomástico do in-fante. Curiosamente e porque os nomes carregam atributos, é significativo o de Miguel, nome do arcanjo bíblico cuja tarefa é promover a causa da justiça divina. É sintomática a expressão da infanta na evocação do dia do irmão, como a de alguém que cresceu aos seus olhos, querendo-o feliz, não por acaso, na companhia do pai, o que poderá ser lido como Miguel, o protector do monarca.

A suspensão do diário de guerra não altera a realidade que se vivia de impasse nas negociações, que o duque de Angoulême queria levar a bom termo e evitar mais derrama-mento de sangue. A notícia que a infanta dá ao pai, não pode ser mais auspiciosa para a sorte dos reféns, quando narra o clima adverso e desencorajador para os membros do gover-no revolucionário.

… Quando [os generais Alaba e Torres] chegaram ao Puerto [de St.ª Maria] acharam toda a tropa formada e to-das as ruas armadas e cheias de arcos triunfais, pois todos esperavam a SM; logo que desembarcou Alaba, foi a casa do general Guilleminot; este lhe disse que SA [duque de Angoulême] ia jantar e que quando acabasse lhe falaria. Tendo SS acabado de jantar, entrou Guilleminot no quarto

387 Carta de Cádis, de 29.9.1823. Publicada por Ângelo Pereira, sob indicação Col. do Autor, in ob. cit., pp. 519-520.

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aonde estava Alaba e lhe disse: ‘SA diz que se me entregue tudo o que o que V.ª Ex.ª traz’; o Alaba lhe entregou a carta de SM e as instruções que levava; Guilleminot levou tudo a SA e SA mandou responder a Alaba que SA não acedia às preposições que ele levava e que lhe advertia que se lhe entregasse a Ilha de Leão e a Cortadura de São Fernando e o Castelo de Puntales e o de São Sebastião e que se SM não estava no Puerto [de St.ªMaria] no dia de amanhã [30.9] tornariam a começar as hostilidades e ele tomaria isto pela força; e que assim o podia dizer o Alaba aos seus companheiros…388

O tacticismo da situação acabara de sofrer uma re-viravolta, notavelmente descrita pela infanta, que parece colher da boca dos interlocutores a cadência da acção, mostrando-nos de que lado estava o xeque-mate, agora. A retaliação do duque é visível, na frieza da resposta, inter-mediada, que deu só depois de acabar de jantar, fazendo esperar na sala ao lado o general, impotente, diante da afronta. Mas o espírito de militância não era de molde a dá-lo por entendido, digerindo, como pôde, o insulto. A par do curso dos acontecimentos, a infanta D. Maria Francisca prossegue a sua narrativa:

… Às onze horas da noite, chegou o Alaba e deu todas es-tas respostas e estes homens, que não cessam de trabalhar para comprometer; disseram a SM que era preciso que o Carlos [Carlos Maria Isidro, marido da infanta] fosse de parlamentário a tratar com SA, o duque de Angoulême; SM respondeu que ele lhe parecia que seu irmão não quereria separar-se dele nem sequer um momento, pois sempre o ti-nha acompanhado nos maiores trabalhos. Veio o ministro da Guerra ao quarto de Carlos e lhe disse que era preciso que ele fosse tratar com o duque; o Carlos respondeu que ele não se separava de SM nem um momento e que se SM o

388 Idem.

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mandava iria, por lhe obedecer, porém, de outro modo não o fazia. Foi o ministro dizer isto a SM e SM disse: ‘não, eu não quero que o Carlos lá vá!’…

O trecho é autoexplicativo. Percebe o leitor, nas en-trelinhas, a combinação entre os dois irmãos, o rei e o in-fante, precavidos do perigo que podia advir da sua desunião como, anos depois, acabaria por acontecer, num desenlace, que marca tragicamente a história do século XIX espanhol. Por enquanto e durante mais uns anos, a firmeza do infante Carlos Maria Isidro levou a infanta D. Maria Francisca a dar abertamente ao pai a sua opinião, acerca do marido, confis-são bastante ilustrativa, do seu modo de pensar e disposição que manteria inalterável, até à sua morte.

… Eu fiquei na maior alegria, pois este passo era terrível, pelos grandes comprometimentos em que o meu homem se veria, pois, primeiro o matariam que faltar ele à sua obri-gação, para com o seu rei e a sua religião. Graças a Deus, que me deu um marido assim e o que eu sinto é que VM o não conheça, pois estou certa que gostaria imenso dele, pois é um homem como não pode haver muitos iguais a ele…389

As convicções, que a infanta D. Maria Francisca tem para si, como as melhores, verificar-se-ão efectivamente na conduta futura do marido, a qual terá como pedra de toque a lealdade ao trono e ao altar, dito de outro modo, ao seu rei e à sua religião, lema que a há-se sustentar no decurso das então imprevisíveis fatalidades. Não passava despercebido à infanta a jogada que se desenrolava, como textura de novela, mostrando-se verdadeiramente sagaz no seu juízo:

… Nós temos estado estes dias, muito desgostadas [a in-fanta e a irmã], pois estes homens têm feito tudo quanto é possível, para comprometer a SM e têm-se servido dele

389 Ibidem.

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para instrumento das suas maldades, pois como SM não pode fazer senão o que eles lhe mandam e se não o faz, o obrigam, pela força; não tem outro remédio senão fazer o que eles querem e estando sendo tratado aos olhos de todos como um criado destes homens; também nos tem mortifica-do muito o modo por que enganaram o duque de Angoulê-me, fazendo-lhe esperar a SM e publicar que SM já estava em liberdade…390

Saliente-se a clareza de raciocínio, tanto mais inte-ressante, quanto mais oposto à imagem colada a ela e às irmãs. Admitimos que o discurso presente da infanta, seja fruto das reuniões de família, quanto à narrativa dos factos, vividos, evidenciando não ser, caso se pretenda fazer crer, uma pessoa alheada da realidade. Ao contrário, mostra-a expectante do desenlace, diversamente à postura de afas-tamento deliberado da rainha D. Josefa Amália (mulher de Fernando VII), confirmando o que consta dela nos anais da história de Espanha, apesar de inserida no mesmo con-texto.

… SA [o duque de Angoulême] dizem que está arrenegadís-simo e com muita razão, pois a nós nos sucede o mesmo e o que mais sentimos é ver que se não se resolve SA a tomar isto pela força, não sei o que será de nós, ainda que muita confiança tenho em Deus.391

Num importante post-scriptum, ao diário de 30 de Setembro, D. Maria Francisca mostra querer tranquilizar o estado de espírito do pai, fatalmente perturbado, face ao rol descrito:

…Agora mesmo acabam de vir os ministros ao quarto d’el--Rei e lhe disseram que nos podíamos ir para o Puerto,

390 Idem.391 Ibidem.

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quando SM quisesse. SM deu a hora das dez, para amanhã. Todos estamos muito azafamados e agora fechamos as car-tas para amanhã as levar ao Pedro, pela corveta, diremos a VM o que suceder depois.392

No ínterim do relato e post-scriptum, numa nota ci-frada pelo consulado português de Cádis, a infanta adentou algo mais ao pai. Este facto, corroborado pelo teor da dita nota, evidencia o limite da incerteza a que tinha chegado e de que a nota fora redigida, na urgência de fazer chegar ao conhecimento de D. João VI o que se estava a passar no momento, à parte o conteúdo do diário, que, neste particular, perdia importância. No último dia de Setembro entrou em cena o vale tudo, revolucionário.393

Na adenda – que aparenta ter sido feita em cima da or-dem de libertação – a infanta agradece ao pai as diligências movidas por ele, para que os ingleses – até ali neutrais – to-massem parte na nossa causa, referindo-se a si e à família.

Estou certa que VM fará todos os possíveis para nos liber-tar. (…) As nossas vidas correm o maior risco, pois há dois dias que a tropa [afecta aos liberais] está em armas, pois os comuneiros querem matar a todos. 394

Naquele há dois dias, que nos remete para um an-teontem, D. Maria Francisca remete também para Angou-lême e as exigências dele, enquanto vencedor, que era no momento em que os liberais acantonados ousavam tratar ainda Fernando VII como refém, mas dando a entender que rei falava como em nome próprio. Ao fazer de conta que acreditava, o duque responde na mesma moeda, de-clarando que o tinha – ao rei – como homem livre, quando ele se entregasse e o visse no meio do exército francês

392 Idem.393 Ibidem.394 Idem, ibidem.

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com toda a sua família em Cádis ou no Porto de St.ª Ma-ria.

De acordo com a princesa, a resposta ultimatum que motivara a do duque de Angoulême, acima, não era da lavra do rei mas sim, ditada, pelos revolucionários.

Ontem fizeram a el-Rei responder o seguinte, que se não en-tregava a praça que muito bem se lembrava [ele, Fernando VII] de quando tinha estado prisioneiro em França; porém, que, para evitar derramamento de sangue, iriam cada um à frente das suas tropas [o rei e o duque], avistarem-se e tratarem em um lugar determinado ou em uma embarcação de guerra neutral.395

E acrescenta:

…Agora avista-se o escaler que levou a chamada carta de el-Rei…396

No intervalo das negociações, a infanta introduz um reparo seu, contido na nota cifrada, de se ter esquecido de mencio-nar antes, que Alaba se tinha recusado a aceitar a missiva do duque já que só com ele trataria.397

Deu-se, por conseguinte, uma aceleração do proces-so, que saiu do impasse em que navegava, em menos de 48 horas. É este o clímax do bilhete cifrado, em que as dúvidas eram mais do que as certezas, em relação ao desfecho da-quele drama, sob ameaça dos liberais de que matariam a to-dos, ainda latente, trazendo à mente, episódios de situações análogas.398

395 Conteúdo da nota cifrada para D. João VI, de Cádis, s/d. Publica-da por Ângelo Pereira, sob indicação Col. do Autor, in ob. cit., p. 520.396 Idem.397 Ibidem.398 A remessa do bilhete cifrado no envelope do diário não garante, mas deixa-nos supor, que foi escrito para enviar separadamente a D.

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A libertação acabou por ter lugar, finalmente, a 1 de Outubro de 1823 – confirma-o a infanta D. Maria Francisca de Assis, no diário. De Cádis propriamente dita, o séquito real foi levado para Puerto de St.ª Maria e do desembarque há registo em gravura. É digno de nota o teor da legenda, que sublinha o alto significado do momento libertador. 399

Neste dia memorável – dizia a infanta D. Maria Fran-cisca no bilhete para o pai – anunciava-se o porvir, assente no princípio do regresso à normalidade futura, que trazia em si o cumprimento do desígnio que a união do trono e do al-tar, profanado pelos ímpios, encerrava.

Senhor – Meu Pai e meu Senhor do meu maior respeito e amor. Aproveito esta ocasião para escrever a VM e dizer-lhe que hoje às 11 horas da manhã desembarcámos aqui, com muitos aplausos e com as maiores demonstrações de alegria; logo fomos todos juntos para casa de el-Rei adonde janta-mos com o duque de Angoulême e o príncipe de Carignan, o qual ficou ao meu lado na mesa. Hoje de tarde vieram ambos visitar-nos a nossa casa e depois foi o Carlos à sua…400

O exílio imposto à família real espanhola, onde se achavam a princesa da Beira e o filho, D. Sebastião de Bor-

João VI na tentativa dele poder evitar que acontecesse o pior. Foi recebido pelo rei, como dissemos, juntamente com o “diário” confor-me anotação do próprio rei: “Recebida em 12 de Outubro 1823 pela corveta”.399 Legenda: Vista del deseado y feliz desembarco del Rey N. º Señor en el Puerto de St. ª María en el día 1 de Octubre de 1823 y acto de poner el pie en el muelle dando la mano a su Augusta Esposa y acom-pañado de su Real Familia y damas de la Comitiva. Nota: Acervo da Biblioteca Nacional de Espanha.400 Carta de Puerto de St.ª Maria, de 1.10.1823. Biblioteca da Aju-da, BA – 54-IX-50, nº 64. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit. p. 521. Nota: A infanta faz menção da corveta, a mesma que levou os apontamentos até Lisboa e cuja chegada (a 12.10) é apontada no sobrescrito, pela mão do próprio rei, D. João VI.

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bón y Bragança, atipicamente envolvidos no arrastamento, considera-se assunto fechado no diário da infanta D. Ma-ria Francisca de Assis, mas não o podemos fechar do nosso lado, sem dar conta de uma nota dela, bastante sugestiva, entendendo-se que nisto, como sempre, queria agradar ao pai.

Senhor – Meu Pai e meu Senhor do meu maior respeito e amor. Aproveito a ocasião da partida da corveta para es-crever a VM e dizer-lhe que ontem, quando saímos de Cádis nos pusemos um vestido cor-de-fogo com flores-de-lis, mas por cima trazíamos outro vestido para que os constitucio-nais não o vissem; porém, quando chegámos à barra o tirá-mos e ficámos com o outro. Hoje fomos ao Te Deum e eu fui pelo braço do duque de Angoulême …401

Por notícias, relativas ao dia 3 de Outubro, a partir de Xerez de La Frontera, vê-se que a comitiva real acabara de deixar para trás os dias do cativeiro, invertendo o sentido da marcha forçada, que a tinha levado a Cádis e tornava livre, à capital. Mas antes de avançarmos na exposição dos factos, há dois aspectos que conviria destacar.

O primeiro é ter cessado a correspondência da prince-sa da Beira com o pai a dada altura – do que amargamente se queixou como demos nota – não sabendo nós até que ponto isso se deu por instruções do próprio D. João VI, uma vez que – no entender do rei – a princesa devia abster-se absolu-tamente de interferir nos assuntos de Espanha, sendo que lhe pediu para que ela residisse em habitação própria, durante a sua estada lá.402

401 Carta de Puerto de St.ª Maria, de 2.10.1823. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-50, nº 65. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 521.402 Carta de D. João VI de Paço da Bemposta de 18.10.1822. Publi-cada por Ângelo Pereira, in ob. cit., pp.408-409.

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A carta de D. João VI para D. Maria Teresa mereceria uma reflexão mais aturada do que a simples menção de cota e data. Efectivamente, se atendêssemos aqui ao seu conte-údo com a profundidade que nos merece, iriamos dar com a justificação de que este livro e tema é o âmago: o grande carinho e amor fraternal deste rei clemente para com esta filha em particular, mas nunca exclusivamente, tendo em conta o amor que dedicava aos filhos, no todo. Expressões como as que D. João usa, nunca estiveram tão presentes em mensagens privadas da realeza, como ele dá mostras de ter feito uso para esta filha, a exemplo certamente de outras, suas cartas, infelizmente desaparecidas, a crédito do que por estas nos chega:

…Meu amor, cada vez te amo mais; o motivo que moveu a te escrever a dita carta – a do reparo de ela não ter acatado o seu pedido de morar em separado – foi o retardo da carta n.º 9 (como notámos, D. João era muito minucioso e seguidor rígido de normas cuidadoso de anotar por sua mão, datas, dias e locais de chegada).

…Eu nunca suspeitei nem suspeito do teu bom proceder, pois é bem público e podes estar certa que ninguém teria o atrevimento de me falar a teu respeito e podes estar certa que todos te amam muito e sentem a tua ausência, pois me-reces que todos te amem…

E depois de introduzir esta nota de apaziguamento, para sossegar o ânimo da filha, prossegue, no mesmo tom amoroso:

… Finalizo esta resposta dizendo-te se tenho alguma dife-rença para ti, é cada vez te amar mais e sentir muito a tua ausência e desejar quanto antes a tua companhia…403

403 Idem. Mereceria maior destaque, mas, por ora, cremos ser bas-tante para dar uma ideia acerca do que julgámos a este propósito da relação paternal e filial dos interlocutores.

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O segundo aspecto a levar em conta dentro do pano-rama de crise, é a superação da diferença de personalidade das duas irmãs, tendo em vista a conjugação dos mesmos objectivos, que nada nem ninguém desfariam, a não ser a morte. Onde cessa a notícia da correspondência da princesa da Beira, inicia-se o diário da infanta D. Maria Francisca, que acabamos de reportar.404

Sendo bastante completa e harmónica com provas oriundas de outras fontes a reportagem do cerco e seu con-texto, escapa-nos nela o ápice da viragem, que conduziu di-rectamente à libertação da família real e pôs termo à chan-tagem de que eram vítimas. Ao mesmo tempo, chama-nos a atenção a alusão aos ingleses, quando a infanta agradece ao pai o seu apoio.

…Agradeço a VM as diligências que pôs para que os ingle-ses tomem parte em nossa causa e estou certa que VM fará todos os possíveis para nos libertar…405

Tais pormenores não são de somenos se cruzarmos a palavra da infanta com outras fontes as quais, não sendo

404 O “diário” dos acontecimentos a que nos reportámos, quanto aos episódios do cerco e resgate de Cádis, pela infanta D. Maria Fran-cisca de Assis é mais completo do que os pontos que respigámos, devendo ser consideradas quatro cartas, não citadas aqui, respeitantes ao início da operação, as quais se acham igualmente publicadas, por Ângelo Pereira, no seu livro: “As Senhoras Infantas, Filhas de D. João VI”, 1936, pp. 87-91. Estas e ainda umas tantas outras, missi-vas, publicadas dentro da mesma sequência, pelo referido autor, na citada obra, pertencem ao conjunto que ele diz terem pertencido à Colecção do Abade de Castro, vendidas pelos seus herdeiros a el-Rei D. Carlos I por 50 libras, indicação que respeitamos e voltaremos a mencionar no capítulo respeitante ao tresmalho da correspondência real, privada. Nota: Abade de Castro ou António Dâmaso de Castro e Sousa (1804-1876), sacerdote, ensaísta e historiador, vulto da cultura que marcou a sua época.405 Nota cifrada, publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 520.

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explícitas – como nunca poderiam ser, dada a sua confiden-cialidade – notamos que D. João VI, através dos seus re-presentantes diplomáticos, nunca esteve parado. É o que se nos oferece, baseado na nota de António Saldanha da Gama (depois conde de Porto Santo), a partir de Paris, enviada ao conde de Palmela que era, na altura, secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros de Portugal.406

A referida nota diplomática dá-nos conta de que An-tónio Saldanha da Gama – representante de Portugal em Madrid – tinha sido autorizado em 25 de Outubro de 1820, por Fernando VII, a tratar com os soberanos aliados, dos meios de salvar a sua augusta pessoa e a sua real família e de livrar o reino de Espanha do estado de anarquia em que ele começava a entrar, esclarecendo o adido que, em anexo, juntava a carta do próprio monarca, por ele dirigida a todos os soberanos da Europa.

Logo no início da sua comunicação, o futuro conde de Porto Santo, informa Palmela que só agora – 6 de Julho de 1823 – podia falar abertamente daquela missão, sendo esta a primeira ocasião, que se me oferece de poder sem risco, co-municar a SM [D. João VI] o seguinte, julgo do meu dever não o demorar por mais tempo. 407

Todo o documento é rico de pormenores do maior in-teresse, para a compreensão do papel de Portugal – leiamos D. João VI – no contexto peninsular, relativamente ao clima político espanhol. Seria, contudo, exaustivo, transcrevê-lo na totalidade, subtraindo e transcrevendo dele apenas, o que ajude a perceber a dimensão do protagonismo da infanta D. Maria Francisca, por sua vez, naquela conjuntura histórica, saída da reunião das potências aliadas, em Verona.

406 Simão da Luz Soriano, Doc. 115, in ob. cit., 3.ª Época, T. VI. 407 A nota diplomática de António Saldanha da Gama tem a data de Paris, de 6.7.1823, quando já estava em marcha em Espanha a opera-ção militar francesa.

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… A causa de SM Católica era a causa do trono e do altar e na sua real família se compreendia uma filha de el-Rei nos-so Senhor – escreve Saldanha da Gama – empreguei, pois, todo o meu zelo e os fracos meios de que podia dispor, para conseguir um feliz resultado, tanto em Laybach, junto dos imperadores da Áustria e Rússia, como em Paris, junto de SM Cristianíssima [Luís XVIII].

E prossegue:

No mês de Junho do ano passado [1822], tendo finalmente achado SM Católica [Fernando VII] espanhóis, que se qui-sessem encarregar da execução das suas reais ordens, eu julguei do meu dever dar a minha comissão por acabada, apesar do desejo que mostrava o duque de Montmorency de tratar comigo de preferência e apesar de se me haver comunicado da parte de SM Católica o desejo de que eu me reunisse aos espanhóis, por ele nomeados.

E antes de chegar ao ponto que interessa destacar, o futuro conde de Porto Santo faz um parêntesis, para noti-ficar Palmela que levaria à sua presença um relatório cir-cunstanciado de tudo quanto obrei neste negócio. Continuei depois – prossegue o autor da nota – ainda que indirecta-mente, neste mesmo objecto, para cumprir com as especiais ordens de SAR, a senhora infanta D. Maria Francisca cuja correspondência fazia regularmente subir à presença de SM Cristianíssima.408

A importância desta confissão não carece de relevo maior do que o que já contém em si, a fim de provar o pa-pel da infanta, na mediação de influências, embora seja de admitir que não agia só, por sua conta e risco. Ainda assim, sublinhe-se as palavras do adido diplomático:

408 Título dos Reis de França, paralelamente, ao de Rei Católico dos de Espanha e Rei Fidelíssimo dos Reis de Portugal.

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… para cumprir com as especiais ordens de SAR a se-nhora infanta D. Maria Francisca cuja correspondência fazia regularmente subir à presença de SM Cristianís-sima.

António Saldanha da Gama não se coíbe de enaltecer o papel da infanta portuguesa, naquele conturbadíssimo pe-ríodo político:

A história imparcial gravará em letras de ouro o heroísmo, a tenacidade e actividade com que esta augusta senhora concorreu, mais do que ninguém – acentua ele – não só para criar o forte partido realista em Espanha, mas até, para quase forçar o governo francês a intervir como interveio.

E vai mais longe:

SM Católica antes de sair de Madrid mandou aqui um emis-sário para tratar com o governo francês todos os objectos relativos, não só à organização da Espanha, mas até ao modo de atacar Cádis por mar e por terra, no caso, prová-vel, de que SM fosse ali conduzido.

Não se está perante uma mera especulação. O discur-so não o permite. Fernando VII estava a par e fora o motor do movimento com que se intencionou conter a fúria revolu-cionária que devassou Espanha de pós-1820, para não recuar a 1812, ano da constituição gaditana.409

409 Vem a propósito uma outra nota, trazida a lume por Soriano, so-bre o clima de rebelião, nos anos a que respeita esta crítica: “Os parti-dos em Espanha eram por então numerosos; a uns, dava-se o nome de servis (denominação por que se designavam os do partido realista); outros olhavam-se como instrumento abjecto do despotismo, durante os últimos seis anos; outros tinham a reputação de afrancesados; isto, além das divisões que havia no próprio partido liberal, começando nos de ideias moderadas indo até aos republicanos, amotinadores, sendo difícil achar numa pequena reunião, mais de dois homens da mesma cor política.” In ob. cit., Nota de rodapé, à p. 108.

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A nota de rodapé fazia-a Soriano ao próprio texto, onde se narra o ambiente que dilacerava Espanha. Falamos, naturalmente, do que antecede a decisão de Fernando VII procurar, abertamente, o apoio francês, na decorrência dos ditos acordos e congressos, supracitados. Diz aquele autor:

… Não admira que, tendo-se o sistema liberal tornado em Espanha um mero instrumento de partidos e facções clubís-ticas, nada se lhes importando com a moralidade e a justiça, mas tendo somente em vista as suas particulares conveniên-cias, muitos liberais houvesse que, aplaudindo a sua insta-lação, por julgarem que com semelhante sistema a nação se tornaria prospera e feliz, depois conspirassem contra ele, por verem suceder inteiramente o contrário do que dele agouravam, sendo-lhes notório que muitos dos exaltados liberais nada mais eram do que ambiciosos díscolos, que se procuravam elevar, lisonjeando as massas que, aliás, ar-rastavam, sem nenhum escrúpulo, a revoltar-se contra a lei, levando-as à anarquia, para conseguirem os seus fins.410

Poder-se-ia, globalmente dizer, que o cenário descrito acima se aplicava igualmente a Portugal, no rescaldo do 20 de Agosto de 1820, movimento que elevou os membros do sinédrio ao poder. Mas, prosseguindo com a opinião coeva de Soriano, que verte nela o espelho das suas próprias má-goas, transpondo-o para o ambiente português – dizíamos – segundo a sua palavra:

…O que os liberais descontentes queriam era um governo que lhes assegurasse com a liberdade a paz interior do país; que preservasse a nação do antigo despotismo, sem a expor a novas revoluções; e finalmente que não só a pusesse a co-berto dos inimigos externos, mas igualmente da turbulência das facções, que iam aparecendo e medrando por espantosa maneira, facções que a ambição e a ignorância tinham cria-

410 Soriano, idem.

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do e a que a especulação dos agitadores dava maior calor e relevo. O que é certo é que nas províncias vascas o número dos guerrilheiros, postos em campo a favor do restabeleci-mento do governo absoluto do rei, era já consideravelmente crescido no princípio do ano de 1822.411

O fluxo da correspondência que trouxemos aqui da infanta D. Maria Francisca finaliza em Sevilha, cidade para onde se restituiu agora a comitiva real, vinda de Cádis e de-morou o tempo somente necessário à preparação da entrada triunfal do rei em Madrid, entrada que o próprio duque de Angoulême antecipou, conforme memória daqueles dias. 412

Fica patente, mais uma vez, o instinto político da in-fanta, quando atentamos ao conteúdo da missiva, que pôde amadurecer no caminho, até Utrera, donde escreve ao pai a 7 de Outubro. É uma carta para recomendar e apelar à recompensa honorífica daqueles que a tinham coadjuvado, durante a conturbação de que acabara de sair, pedindo que se faça menção do seu nome, na justificação da mercê. O teor é autoexplicativo, quanto aos cargos exercidos pelas figuras que a infanta achava dignas do merecimento.

…Vou por este modo aos reais pés de VM a pedir-lhe com o maior interesse que VM se digne conceder a graça que lhe peço para os três sujeitos seguintes (a qual é a comenda da Torre e Espada). Os nomes são Don João Paulo de Priego,

411 Idem. 412 “Son Altesse Royale voyant son glorieuse mission heureuse-ment terminée, accompagna le roi d’Espagne à Séville et précéda Sa Majesté Catholique à Madrid où le peuple le revit avec un nouvel enthousiasme et voulut lui décerner les honneurs d’une entrée triom-phale. Le prince se hâta de se dérober aux hommages de la population et quitta le 4 Novembre de la capitale de l’Espagne pour se diriger vers la France. En traversant l’Espagne pour rejoindre les Pyrénées, les troupes françaises reçurent de tous les habitants des témoignes de reconnaissance.” Raisson, in ob. cit., pp. 266-267.

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Ajudante de Câmara de SM [Fernando VII], com destino ao quarto do meu homem [infante D. Carlos Maria Isidro]; e Coronel de Cavalaria dos Reais Exércitos Don João José Martines Pinillos, 1.º Tenente do 2.º Regimento das Reais Guardas Espanholas; Don Luis Fernandez de Córdova, 1.º Tenente do 1.º Regimento das Reais Guardas Espanholas. Estes dois últimos, peço a VM que no despacho que VM lhe mande fazer diga que ‘tendo eu pedido a VM esta graça e conhecendo VM os distinguidos serviços que ambos têm feito em defender el-Rei de Espanha, muito particularmente desde o dia 7 de Julho do ano de 1822, VM lhe concede esta graça esperando que el-Rei de Espanha lhe dará licença para usar a dita comenda’. No despacho de Priego pode VM dizer que, por eu lho pedir e por ele ter acompanhado ao meu homem ‘VM lhe concede esta graça, esperando que el-Rei seu amo lhe dará licença para a usar’. Eu, meu Se-nhor, tenho o maior empenho em que VM faça isto e espero que, quando me responda a esta carta, me dê este gosto…413

O entendimento e a comunhão de sentimentos, que denota o teor desta missiva, em particular, deixam perceber uma partilha de atitudes, tacitamente aceite da parte de D. João VI, no sentido de caucionar o pedido que a infanta faz, remetendo a lembrança para aquelas circunstâncias. Nota-mos sintonia entre a disponibilidade que se oferece e o teor da nota de António Saldanha da Gama, que vêm cair no te-cido desta reflexão.414

413 Carta de Utrera de 7.10.1823. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-50, nº 68. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 522.414 Em tudo isto que acabamos de salientar faltará um pormenor da maior relevância, ainda a ver com a comunicação do conde de Porto Santo. Assinala ele, não como aparte, mas como assunto de peso po-lítico, que citamos, para melhor se entender a conduta de D. Maria Francisca de Assis, na medida em que a sua figura andaria envolvida nestas questões, embora não directamente citada. Escreve o conde: “O que vou expor a V.ª Ex.ª [Palmela] julgo que lhe deverá merecer uma mui séria atenção. El-rei de Nápoles pretende que a Lei Sálica

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Do mesmo modo, pensamos que achar-se, então, na qualidade de enviado britânico em Viena, o duque de Wellington, o qual não deixaria de receber as mensagens confidencialmente transmitidas a favor da libertação da fa-mília de D. João VI, refém em Cádis, facto altamente suges-tivo, no contexto, por nos depararmos com a missão secreta dos ingleses, no resgate das duas infantas e suas famílias, além do próprio monarca espanhol.415

existe em Espanha e que só as cortes de 1812 em Cádis é que derroga-ram esta lei; portanto, anulando-se todos os actos destas cortes, ficaria subsistindo em Espanha a dita lei sálica e, por consequência imediata, na falta de el-Rei Católico, seus irmãos e sobrinhos, recairia a suces-são do trono na família de Nápoles, com exclusão da rainha, minha ama [D. Carlota Joaquina] e dos seus augustos filhos. Debaixo destes princípios, pretende el-Rei de Nápoles ser posto à testa da Regência de Espanha e é altamente apoiado pelo gabinete austríaco, que junto deste governo [de França] tem dado passos mui enérgicos a esse res-peito. Ao embaixador de SM. [D. João VI], nesta corte, comunicarei isto mesmo, para que ele possa fixar a sua atenção sobre um objecto, que as circunstâncias actuais fazem mui atendível- Paris, 6.7.1823.” Nota: O tempo trazia no ventre esta linha de sucessão ao trono de Espanha, através de Maria Cristina Duas Sicílias, filha do rei de Ná-poles [Duas Sicílias], Francisco I e de Maria Isabel de Borbón, que casou com Fernando VII, após ele enviuvar de Maria Josefa Amália de Saxónia. Desse último enlace de Fernando VII é que nasceu a sua sucessora Isabel (II) que foi rainha de Espanha (1833-1868).415 Notamos a coincidência no confronto entre esta notícia e o relato de Soriano, quando ele faz menção da situação interna de Espanha e a perspectivação da incursão francesa, com o beneplácito do congres-so de Verona, em Outubro de 1822. Não nos escapa a cumplicidade existente entre a realpolitik e a sigilosa, das potências envolvidas, de que D. João VI estava a par, através de Palmela, seu secretário dos Negócios Estrangeiros: “Sir William A’ Court fora no mês de Outu-bro [1822] enviado para Madrid como ministro inglês, ao passo que, pelo mesmo tempo, fora também lord Wellington mandado como em-baixador para Viena, onde manifestou que a Inglaterra não somente não acederia à projectada invasão estrangeira, em Espanha, mas que até se oporia a ela, se da parte das cortes espanholas se respeitasse a pessoa de D. Fernando VII e a sua dinastia, admitindo-se além

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A 11 de Outubro a infanta escrevia novamente ao pai, agora, já de Sevilha, uma carta onde narra a jornada triunfal de Fernando VII ali, numa altura em que continuava sem receber as cartas dele. Seguiu a missiva da infanta, por mão de um oficial francês, que se oferecera para ser portador.

A comitiva real tinha dado entrada em Sevilha a 8 no meio das maiores aclamações e dos maiores obséquios – es-creve D. Maria Francisca – o coche d’el-Rei foi puxado pe-los voluntários realistas e tudo foi feito com o maior sossego e entusiasmo por SM e por todos nós.

No dia seguinte – prossegue a narrativa – fomos à catedral ao Te Deum e a adorar o corpo de São Fernando e todas as ruas por donde passámos estavam cheias de gente e todos doidos de alegria. No dia 10 chegou o duque de Angoulême

disto, na constituição daquele país as modificações que se acha-vam justas.” Cf. ob. cit., pp. 114-115. (negrito nosso) Notem-se as condições da diplomacia inglesa nesta altura. Mas, ao contrário das explanações de Wellington, a intromissão de França acabaria por se dar, como vimos. Porque a matéria é farta e a questão o pede, tendo por âmago a actuação de Portugal, no contexto e, mais ainda, o mo-mentoso período de Cádis e as tentativas de tirar dali as filhas e suas famílias, lemos uma passagem em Soriano, que vai no sentido do que se intui, quanto à actuação de D. João VI: “É todavia fora de dúvida que o ministério dos inauferíveis direitos de el-Rei D. João VI fez o que pôde para auxiliar a revolta de Espanha, chegando a franquear ao general Bourmont [ver em nota acima o teor da missiva particular deste conde e militar para o conde de Subserra], comandante de uma das divisões francesas na Andaluzia, a aquisição de apetrechos mili-tares de que precisava, tais como morteiros, pólvora, etc., cousa que não podia ter obtido em Portugal, sem o beneplácito do governo por-tuguês. Além do exposto, duas corvetas portuguesas foram man-dadas cruzar nas águas de Cádis para prestarem ali os socorros, que estivessem ao seu alcance, à princesa da Beira e a sua augusta irmã, não devendo as sobreditas corvetas comprometerem-se em hostilidades directas, mas conservarem-se na linha de bloqueio.” In ob. cit., p. 178. (negrito nosso).

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e jantámos com ele e com o príncipe de Carignan e pela tarde fomos aos toiros e havia tanta gente na praça, que não se podia levantar os que estavam sentados; também deram imensas vivas a el-Rei absoluto, à religião e a todos nós, de modo que cada dia mostra mais este povo a sua alegria. Tinha-me esquecido de dizer a VM que no dia 9 fomos ver as luminárias que estavam lindas.

E relembra no post-scriptum:

Peço a VM que não se esqueça das encomendas da Ordem de Torre e Espada que lhe mandei pedir, pois tenho o maior desejo que VM o faça, porque são três pessoas muito boas e muito realistas.416

Somos contagiados pelo estado de espírito de felici-dade da infanta e família, alegoricamente entendida pelas luminárias, que tinham ido ver. Quando, a caminho de Cádis no desterro imposto, tinha passado por Sevilha, lembramos a carta da princesa da Beira cujo teor, em todo o sentido, é o oposto desta da irmã, agora. Como então, houve uma ida aos toiros, mas as infantas declinaram este renovado convite.

Ocorre lembrar a propósito deste retorno a Sevilha a época gloriosa, quando a mesma infanta D. Maria Francisca de Assis, com a outra irmã, jornadeara por ali, após desem-barcarem felizes no porto de Cádis, já noivas dos dois prín-cipes de Espanha: D. Maria Isabel de Bragança, mulher de Fernando VII e D. Maria Francisca, mulher de Carlos Maria Isidro.

A mesma alegria festiva parece regressar ao rosto da infanta D. Maria Francisca, transparecendo do post-scrip-tum à próxima carta, onde remeterá especialmente para gáudio paterno uns versos que aqui fizeram aos vestidos e

416 Carta de Sevilha, de 11.10.1823. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-50, nº 69. Publicada por Ângelo Pereira, in ob. cit., p. 523.

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anéis, com que nós desembarcámos em Puerto de St.ª Ma-ria, comemorativos da libertação do cativeiro A carta – ain-da de Sevilha – dá conta ao pai do seu contentamento por ter finalmente, recebido, uma carta sua de 9 de Outubro. A resposta patenteia júbilo, quando diz que se tinham divertido nas cavalhadas e mais, quando o informa de que Fernando VII continuava trabalhando para cortar os males que têm destruído a nação e para fazer felizes os povos. 417

417 De notar as medidas imediatas de Fernando VII, na sequência da sua readquirida liberdade, as quais mereceram a atenção de Soriano, na sua obra. Note-se que o historiador, ao invés de verificar a cone-xão entre aquela libertação e as medidas adoptadas, ao encontro do espirito das potências aliadas e reunidas em Verona, estrutura o seu discurso com base no seu proselitismo. Por outro lado, cruzando o que ele escreve – a todos os títulos meritoso pela busca de fontes que consubstanciem o discurso – verifica-se que ele leu a achou na me-mória contemporânea já citada Histoire de La Guerre d’Espagne de 1823, vendo-se aqui justificadas as medidas levadas à prática em Es-panha até ao limite, do enunciado acordo de Verona, que era recolo-car no trono Fernando VII, proporcionando-lhe os meios de governar, pacificamente: “D. Fernando pôs-se a caminho para Madrid, cercado de pessoas que não respiravam senão vingança. Estes funestos con-selheiros exerceram desde logo a sua perniciosa influência, desvian-do dos lugares, por onde el-Rei tinha de passar, todos os indivíduos, que haviam tomado parte na revolução [liberal], expedindo-se para este fim, desde Xerez de La Frontera uma circular, com data de 4 de Outubro (…). Esta proibição compreendia também os ministros e conselheiros d’Estado, os membros do Supremo Tribunal de Justiça, comandantes, generais, chefes políticos, empregados superiores dos Ministérios e chefes da milícia suprimida, dos voluntários nacionais. Tudo isto marchava de acordo com o decreto de 1 de Outubro, em que el-rei anulou todos os actos do governo constitucional de qualquer classe ou condição que fossem, expedidos desde 7 de Março de 1820 até à data deste mesmo decreto.” Ob. cit., p. 175. (negrito nosso); compare-se com o que diz Raisson, in Histoire de La Guerre d’Espagne (p.266): “Tout l’Espagne se trouva alors soumise à l’autorité du roi Ferdinand; tous les généraux constitutionnels avaient fait leur soumission, à l’exception d’un célèbre chef des partisans, Don Juan-Martin Diaz, plus connu sous le nom de l’Empecinado, qui

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Porém – adverte ela – como ainda há tanta gente má é isto uma obra muito grande para a poder acabar como se deseja. E insiste que era preciso muito castigo, tanto aqui como aí.

Segura da sua atitude, D. Maria Francisca admoesta e pede ao pai que pelo amor que lhe professo, que viva com muita cautela e que não consinta em nada que seja contra os seus direitos e que não admita senão as leis antigas do reino – invocando a felicidade dos povos – e não com ou-tras.

Não falava no ar, a infanta, pois damo-nos conta, não só das suas certezas, como também de estar a par do que acontecia em Lisboa, coisa que mostra não descurar, nunca:

VM terá ao seu lado pessoas que lhe digam o contrário e que lhe queiram provar que nisto está cifrada a felicidade da nação; eu, meu Senhor, só me move o grande interesse que tenho por VM e peço-lhe que não se deixe alucinar. E avisa-o: O visconde de Canelas418, que está em Madrid é muito intrigante e VM deve-se guardar dele. 419

Na derradeira carta desta série, que nos chega de Se-vilha datada de 20 de Outubro de 1823, chegam recomenda-ções, ainda, relativamente a uma das figuras leais, à causa.

É Don Gil, muito bom português – escreve – fiel a VM e não o quer ver senão como deve ser; ele tem-se portado

se porta, dans les derniers jours d’octobre sur la ville de Cáceres où il leva des contributions, mais il est sorti bientôt à l’approche de nous troupes et disparut. Sa bande se dispersa dans diverses directions.” 418 António da Silveira Pinto da Fonseca, “General Silveira”, irmão do 1.º conde de Amarante. Foi um dos heróis da Guerra Peninsular, aderiu à revolução do Porto de 1820. Em 1823 juntou-se à causa de D. Miguel.419 Carta de Sevilha, de 18.10.1823. Publicada por Ângelo Pereira, sob indicação Col. do Autor, in ob. cit., p. 524.

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aqui muito bem e merece que VM o atenda e lhe dê alguma coisa. 420

Noutro sentido, mas, ainda assim, muito adequado ao perfil da sagacidade política da infanta, na mesma sua carta, recomenda ao pai, que não mexesse no corpo diplomático em Madrid. Falava em particular de António de Saldanha da Gama pois ele é muito útil a VM nesta corte e eu tenho nisto o maior gosto. E explica que o motivo de falar nisto a VM é como eu sei que há pessoas que trabalham para o tirar, espero e peço a VM que não o tire, pois me daria um grande sentimento. 421

420 Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-50, nº 70. Publicada por Ânge-lo Pereira, in ob. cit., p. 524.421 Soriano faz oportuna referência à movimentação diplomática deste enviado extraordinário, mal Fernando VII tornou a Madrid, medida que ia ao encontro do desejo manifestos da infanta D. Maria Francisca de Assis: “À mesma cidade de Madrid chegara no seguinte dia (14 de Outubro) D. António de Saldanha da Gama, indo da de Pa-ris para tomar conta da legação portuguesa naquela corte madrilena, levando em sua companhia o visconde da Asseca. D. Fernando VII o condecorou pelos seus relevantes serviços, à causa do trono e do absolutismo, na Península com a grã-cruz de Carlos III e as honras de grande de Espanha. Por parte do seu governo, recebera o mesmo Saldanha da Gama o título de conde do Porto Santo de cuja mercê ele só recebeu o diploma no seguinte mês de Novembro. Por algum tempo, continuou no carácter de enviado extraordinário, por de-ferência ao pedido feito pelo governo espanhol, para se restabele-cer a respectiva legação no antigo pé da embaixada de família, a qual, por motivos de economia tinha deixado de existir.” In ob. cit., p. 176. (negrito nosso). Nesta sequência, Soriano transcreve passagens do discurso de agradecimento de António Saldanha da Gama, perante Fernando VII: “Senhor! El-Rei meu Amo, animado do maior inte-resse pela prosperidade de SM Católica e na monarquia espanhola, querendo dar um testemunho público do sincero prazer, que lhe cau-sou a notícia de se achar VM Católica restituído à plena autoridade, soberania e imprescindíveis direitos, de que o havia despojado uma facção anárquica e ímpia, me ordenou em seu real nome eu viesse congratular a VM Católica, por um tão plausível motivo. Haver eu

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Chama-nos a atenção a alusão que ela faz aos “ofí-cios” tanto de Torlade como de Severino, por meio dos quais D. João VI procurara saber se as infantas manifestavam de-sejo de o querer visitar. A isto responde a infanta ao pai ser aquela, há muito dias a nossa ocupação e pois muito deseja-mos ter esta honra. Porém – diz – as actuais circunstâncias talvez nos privarão por algum tempo mais este prazer e o que VM pode estar certo é que assim que pudermos o fa-remos, porque é o que mais apetecemos, pelo grande amor que, como devemos, professamos a VM. 422

Visto a morte se ter antecipado, infelizmente, D. João VI não chegaria a gozar dessa alegria, embora a tenha al-mejado, a ponto de ter procurado sabê-lo ao certo, para se certificar do gosto das filhas e dando mostras de querer tratar

sido escolhido, Senhor, para servir de órgão dos sentimentos d’el-Rei, meu Amo, nesta ocasião, eu o devo unicamente à honra, que VM me fez de pôr em mim a sua augusta confiança, encarregando-me dos seus negócios, em um dos momentos críticos da passada época. Na minha missão ordinária será o meu principal desvelo, não só o con-servar, mas até estreitar os vínculos de amizade e união, que há tantos anos subsistem entre os dois governos e que hoje tão necessários se fazem para a consolidação de ambos. Tenho a honra de pôr nas mãos de VM as credenciais que a isto me autorizam.” Nota: a cerimónia teve lugar em 21.11.1823, o que evidencia a rapidez da parte do go-verno português, notadamente da Secretaria de Negócios Estrangei-ros, chefiada pelo futuro duque de Palmela. Soriano chama-nos a uma nota de rodapé, para se referir à actuação diplomática de Saldanha da Gama, nota que transcrevemos, pela notória sintonia do conteú-do com a vontade das duas infantas, abstraindo dos juízos de valor aqui tecidos, por ele: “É um facto que o conde de Porto Santo foi seguramente um dos diplomatas que mais trabalhou para a queda do governo constitucional na Península, sendo até autorizado por cartas de Fernando VII para o representar junto dos soberanos congrega-dos em Verona, podendo-se entender com eles nos passos a dar para a sua liberdade.” In ob. cit., p. 177, Nota 1. (negrito nosso).422 Biblioteca da Ajuda, BA – 54-IX-50, nº 70. Publicada por Ânge-lo Pereira, in ob. cit., p. 524.

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a questão em moldes protocolares. É, mais uma vez, a des-crição de D. João VI a funcionar, se bem que, a lealdade dos referidos diplomatas, não foi bastante para guardar o segre-do – como julgamos – sabendo eles do desejo das infantas, notadamente Joaquim Severino Gomes cuja lealdade se há--de achar inalterada, tanto em relação às filhas de D. João VI, como à memória deste rei. 423

Fecha D. Maria Francisca de Assis a carta com a nota de que a comitiva régia estava prevista de sair de Sevilha para Madrid no dia 23 de Outubro, com a garantia de que ela, infanta, mandaria ao pai no correio que vem a lista dos povos e dos descansos que faremos.

Esta seria então a derradeira carta da infanta, a partir de Sevilha, para D. João VI, encerrando-se nela a sua mis-são diarista, mas retomada agora no relato de jornada, que prometia enviar, depois, ao pai, como manifesta intenção de fazer. A entrada dela e da princesa e respectivas famílias em Madrid, não a sabemos, por sua voz. Contudo, só pode ter sido depois das reais entradas de Fernando VII, a qual ti-nha sido de antemão preparada pelo duque de Angoulême. Soriano escreve que a entrada do rei tivera lugar a 13 de Outubro, o que vai neste sentido, a menos que seja lapso. 424

Fornece o citado autor, algumas achegas, sobre o correr dos acontecimentos, observados naquele breve pe-

423 A conduta de Joaquim Severino Gomes seria particularmente notada em várias circunstâncias, notadamente, aludida, na matéria aflorada na Revista Histórica de Portugal, desde a morte de D. João VI até ao falecimento do imperador D. Pedro, Coimbra 1840.424 “No dia 13 entrou o mesmo D. Fernando em Madrid pela Porta da Atocha e tendo feito a sua oração a N.ª Senhora desta invocação seguiu de lá para o palácio, sendo ele e sua esposa levados num al-tíssimo carro triunfal, puxado pelo povo e voluntários realistas, indo os infantes nas suas respectivas carruagens, acompanhados de toda a tropa francesa e espanhola que se encontrava em Madrid, além do imenso concurso de povo”. Soriano, in ob. cit., p.??

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ríodo de tempo, que vai desde a libertação da família real espanhola à reentronização do monarca, na posse dos seus plenos poderes, conforme à prerrogativa realista. Algumas mudanças restritivas se verificaram, em relação ao passado revolucionário, o que não tardaria a dar origem a renovadas sublevações e levantamentos das facções liberais, afastadas do poder, de resto, nunca inteiramente amortecidas, dada a consabida acção maçónica dos membros das lojas.

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Um manual de conduta de princesas e rainhas

Chega-nos notícia, através de uma lembrança, escrita, por ocasião dos esponsórios de D. Maria Isabel de Bragança com Fernando VII de Espanha que, imaginamos, lhe terá sido entregue no recato do último adeus, quase paternal, antes do seu embarque e despedidas dos que ficavam em terra, lembrança comovente a todos os títulos, para não a qualificar de outro modo. Serve-nos este documento de guia para algumas reflexões, incontornáveis, dada a riqueza do seu conteúdo, que o autor talvez cuidasse que nunca sairia das mãos da real destinatária.

Mas o mundo tem destas voltas e o precioso guia aca-bou por vir à luz, num século em que coisas deste quilate já não interessavam nada a ninguém ou a muito poucos. Com estes eleitos – no nosso entender – é que vale a pena relem-brá-lo, aqui, retirado da poeira e à distância dos 200 anos, que o viram nascer.

O documento terá sido concebido na forma de carta – a última – de que o seu autor fez entrega por mão ou fur-tivamente a meteu – quem sabe – entre arcazes, caixinhas e malotes de apetrechos do enxoval, da infanta, sua senhora, que crescera debaixo do olhar do seu zelo e de quem se ia apartar, para sempre.

Chame-se guia ao documento, por ocorrer à mente a muito célebre “Carta de guia de casados” da nossa memória literária, que tinha em vista – com ou sem ironia – forne-cer modelo de conduta dos tempos modernos, que corriam no longínquo tempo da sua feitura. Não temos a certeza de

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que o inspirador do nosso autor seja D. Francisco Manuel de Melo, porque o vemos ir mais longe e mais fundo, na abor-dagem dos paradigmas virtuosos, com que procura avivar na memória da presuntiva rainha de Espanha (que o era já no papel), o retrato das mais ilustres senhoras da mesma estirpe e linhagem, uma das quais, certamente, o modelo de rainha que foi a Fidelíssima D. Maria I – se é que não foi ela a ins-piração do autor – recordando-se de quando conviveu com a soberana, no apogeu da sua juventude.

O autor da missiva – conceito que se ajusta bem a este guia de conduta – é o Reposteiro de Câmara, D. Manuel Luís de Castro, criado privado ou aio da senhora infanta D. Maria Isabel de Bragança, figura de quem não achámos grande notícia e, apenas suspeitamos, seja da linhagem dos condes de Resende, dada a insistência do nome próprio e do apelido comum.425

Como quer que seja, a verdade é que o próprio autor do guia fala como membro da casa da infanta, quando se lhe dirige:

Sereníssima Senhora – Minha Senhora. Pois que é natural que os criados, quando seus Amos vêem embarcar, lhes ofe-reçam os mimos que a seus escassos cabedais correspon-dem, receosos das casualidades de fomes e outros perigos do mar; muito mais devem esmerar-se aqueles que sempre os trataram e havendo-lhes observado prendas e boa índole os amam e começam a sentir toda a força da saudade.426

425 Julgamos que D. Manuel Luís de Castro seria um filho de D. António José de Castro, 1.º conde de Resende e de D. Teresa Xavier da Cunha e Távora.426 Este documento é um dos publicitados, por Ângelo Pereira, além da mencionada correspondência privada. No caso vertente, o guia não tem outra referência de arquivo, além de pertencer à Col. do Autor. Cf. Os Filhos d’el-Rei D. João VI…, pp. 465-471.

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Pela identificação da sua pessoa na missiva, fica-mos a saber um pouco mais, acerca do autor, quais eram as suas tarefas e o tempo de duração da relação de proxi-midade com a sua senhora, a infanta, D. Maria Isabel de Bragança.

A VA vi desde o dia seguinte ao seu nascimento e de então para cá tenho a honra de a servir, afora o curto interva-lo de três anos; e ora sabendo que próxima está a mudar de estado para outro mui digno de S.R. Pessoa, apresso-me a presentar-lhe estes pensamentos, já que outra cousa não possuo, que possa a VA ofertar.427

A menção ao nascimento da infanta é a baliza para a sua entrada ao serviço da infanta, sabendo-se que isso ocor-reu no ano de 1797, mais precisamente, no dia seguinte ao do nascimento dela que ocorreu a 19 de Maio, portanto, con-tas redondas, partilhou o aio vivências com a infanta, coisa de uns vinte anos.

A idade do aio era alguma, se atendermos, à sua de-claração, de ter vivido assaz e desta longa existência não hei colhido senão algum conhecimento dos homens e do mun-do moral, modesta opinião que tece, a seu próprio respeito, o que não impede de se ver nele um vasto conhecimento, a ponto de poder incutir no espírito da real ama a certeza, adquirida, de que ela era dotada pelo acerto do seu juízo para conseguir a estimação particular do Rei de quem será Esposa e o afecto de veneração do povo, do qual ia ser Mãe.

Não augurava D. Manuel Luís de Castro a si mesmo, muitos mais anos de vida, o que nos permite calcular o seu nascimento lá pelo reinado de D. José I ou mesmo de D. João V, conclusão presumida, pelo alcance da sua expecta-tiva de vida:

427 Idem.

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Estas reflexões minhas que, porventura serão as últimas – oxalá sejam como devem ser os legados – por VA aceitas e sempre atendidas em paga dos meus serviços tão volunta-riamente praticados e tão merecedores da bondade de VA!

Feita a autoapresentação e manifestados os votos de felicidade à discípula, num outro país, onde seria servida por outros vassalos – palavras ditadas pelo coração, eivado de alguma mágoa, que deixa aflorar – D. Manuel Luís de Castro passa ao motivo que transborda do seu cuidado e é razão da sua missiva. É então que se desdobra diante dos nossos olhos, nas páginas daquele manuscrito, relativamen-te longo, para uma carta, uma verdadeira cartilha ou manual de conduta, moral e ética, fundada no argumento ilidido, do exemplo e costumes, dos da alta linhagem e estirpe da reale-za cuja prática aconselhava que prosseguisse, a novel esposa e rainha.

Reside o encanto deste escrito no cariz intimista da missiva, nascido de um paternal afecto, que demonstra ter, avocado, como diz, na proximidade existente entre ambos, desde o nascimento da menina até à véspera separação, im-posta, pelas circunstâncias da vida.

Segue-se além de tudo o mais, o conselho de um pai, que prodigaliza os desejos de futuro radioso, aureolado pe-las boas acções e práticas, que sempre incutira na discípula, receptiva, aliás, aos ensinamentos do seu aio e mestre, como se depreende da apreciação que tece da conduta e inclinação da sua ama e infanta:

Quanto hei observado do ânimo de VA, vejo com inefável prazer o germe de todas as virtudes sociais, de maneira que me é desnecessário lembrar-lhe quanto convém para a tran-quilidade doméstica, a recíproca felicidade e identificação dos consortes.

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Não se esperaria de um aio uma advertência deste teor e menos ainda, ser aceite pela discípula, sua senhora, inva-siva como é do privado, ao arrepio do juízo feito, acerca da educação das princesas portuguesas, das filhas de D. João VI e D. Carlota Joaquina. O que temos pela frente e lemos é um manual conservador, mas não retrógrado, adequado a todos os tempos na proposta que defende uma conduta assente na base de princípios e regras de bom-viver, indispensáveis, ao desempenho de tarefas da esposa de rei, sem nunca descurar o respeito de deve aos laços familiares na corte donde pro-vém.

Às grandes Princesas mui severas obrigações cumpre ter à vista, não lhes bastando a sagrada boa-fé para com os seus esposos; a ternura em todo o lugar e tempo devem conser-var a seus pais e o agasalhado para com todas as pessoas de probidade: é-lhes indispensável dar o exemplo aos povos sujeitos à coroa de que tem parte e, quanto em seu poder, cabe adoçar com brandura a índole de seu Marido.

Lembra o mestre exemplos antigos, adversativos a esta conduta, os quais, pelo fingimento e falta de inteireza, fizeram perigar e soçobrar reinos e vidas:

A quantas Nações não tem perdido o descuido das mulheres dos soberanos, vindo, por isso, desprezo à suas augustas pessoas e de suas famílias ou inocularem-se estes vícios e tornarem-se vícios nacionais?

Entra depois na esfera da relação íntima do casal, no estado de mulher e marido, de forma que poderá parecer submissão de uma para com o outro, para logo desmentir esse preconceito, de maneira, que surpreende:

Mas essa cordialidade não chegue a tanto que se diminua a consideração de parte a parte e pareça esquecer o dia em que pela primeira vez se avistaram.

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Quanto mais que o parentesco pelo matrimónio contraído, todos os graus de parentesco encerra: o marido serve de pai, devendo-se-lhe portanto ter carinhoso respeito; é ver-dadeiro amigo e, por isso, deve-se-lhe a confidência e ambi-cionar-se seu conselho; tratar-se com franqueza e afago de irmão e conservar-se-lhe o amor de um amante, assim, que a nosso espírito e coração nada mais há a apetecer.

E conclui, neste particular:

Estas miudezas não devem omitir-se, porquanto conservam a dignidade e aquele tom quase celestial, que é próprio das senhoras bem-nascidas; e quem o é mais que uma prince-sa?” Encerra esta premissa da relação íntima do casal, sus-tentada no respeito mútuo, com a máxima: “O decoro pode comparar-se a um véu tão delicado e fino que se não pode cerzir logo que foi rasgado.428

Não alimentamos com este discurso nem queremos, alguma retórica moralista, porque não é esse o intuito de quem o repete. É tão-somente avivar as advertências do educador, realçando as bases de um matrimónio duradoiro e respeitável, desfazendo ideias feitas, tanto mais, por ter de-corrido a formação de personalidade da infanta e das irmãs, em grande parte, nos trópicos, afastada do meio europeu, tendo em mente a época conturbada de que se fala, facto, raramente, levado em conta.

Sentimos o apelo desta desobriga, confessional, pe-rante a imposição de regras que gerem o dia-a-dia dos com-portamentos, sociais, sem ir tão longe quanto forçaria – se quiséssemos – a análise das propostas hodiernas, que vieram para ficar. Não cabe aqui, portanto, sustentar nem denegrir comportamentos – dizia – mas somente comentar o que ofe-rece a natureza do documento.

428 Ibidem, p. 466.

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Pondo de lado o cinismo da máxima de que à mu-lher de César não basta ser honesta, é bom lembrar que dados os desmandos, tanto no domínio privado como no público, neste sobretudo, da parte de quem devia ser exemplo, a realidade é que, nos antípodas deles, des-mandos, se têm esgotado rios de tinta e de dinheiro, no reequilíbrio do individuo, com base em critérios, sob a cortina do novo, que não passam de modelos rebuscados da sabedoria antiga.

D. Manuel Luís de Castro passa a reflectir sobre a conduta, que recomenda à sua discípula, no campo das rela-ções de família, tendo em conta a responsabilidade dos du-plos laços dos irmãos com que a infanta iria ter de lidar: isto é, entre Fernando VII e os infantes seus irmãos, D. Carlos Maria Isidro e D. Francisco de Paula, destacando, todavia, os mais fortes, que ligavam o rei ao primeiro deles, agora, marido da infanta D. Maria Francisca de Assis de Bragança.

O mestre parece até adivinhar aquilo que o futuro tra-zia no ventre, ao pronunciar as sábias palavras, ditada pela sensatez, toda ela, feita de experiência amarga, dos anos de perturbada vida política, revolução e exílio da família real de Espanha:

É bom que o Senhor Infante D. Carlos seja mui querido de el-Rei, seu irmão; recomendo muito a VA o receba sempre com muita cortesia e circunspecta afabilidade, porquanto não aturam sem risco de quebra, amizades novas, com ex-cesso de familiaridade. Reflicta VA neste ponto e verá para o futuro sua importância.

A este, segue-se outro aviso, de igual subtileza, quan-to ao que devia ser a conduta social da discípula e rainha, de contrapor a elegância das palavras e dos modos, aos engano-sos trejeitos dos ditos picantes, arguições acres, argumen-tos largos e teimosos, porque, ordinariamente acabam com

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expressões desabridas, conselho que parece ter sido uma regra, estreitamente seguida, pelo próprio rei D. João VI, como se intui das suas recomendações à princesa da Beira, quando daí a poucos anos se despediu do pai, também, a caminho de Madrid, precaução denunciada pelas cartas dele.

Diz por sua vez o aio, à discípula, que ela devia evi-tar esta espécie de bombas, que, ao rebentar despedaçam a alegria mútua, é melhor e indispensável parar com eles, imediatamente principiam. O ceder não é indício de fraque-za, é prova de espírito de providência, que muitos desgostos embarga.

E remata com uma sentença, altamente eloquente, em relação aos sentimentos de um português, diante da atitude proverbial de que abusam os espanhóis: Nenhum brinco atu-re contra Portugal.429

Com um tal acervo de recomendações, mormente de contenção na conduta, dir-se-ia que o autor do manual repe-tia e instigava um modelo de vida freirático, no sentido mais amargo. Desengane-se a gente, com a seguinte frase: Não se entenda destas minhas reflexões que deve convir uma vida triste, fria e receosa, mas sim a segura alegria, que faz as delícias da nossa existência.

E logo acode com a proposta de moderação da ati-tude, diante do inesperado sofrimento, que sobre todos re-cai e mais, ainda, sobre os que tão alto lugar ocupam na sociedade civil, lembrando que as Pessoas Reais também experimentam desprazeres, nascidos de alguma imprudên-cia da parte dos seus ou por culpa sua e depois de sofridos figuram-se maiores do que todos os desprazeres dos parti-culares, que lhes parece – como aos que vivem no cimo das montanhas altíssimas, onde os ventos e as trovoadas não chegam – estarem fora dos infortúnios.

429 Idem, p. 466.

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Não pede escusa D. Manuel Luís de Castro para entrar em terreno do domínio mais político – digamos – no que sobressai e evidencia a sua longa experiência de servidor do paço. É quando faz alusão à lei da natureza – isto é, aos afectos entre marido e mulher – os quais, poderiam fazer esquecer outros, intrometendo-se nas relações diplomáticas, sendo, como eram, as pessoas reais, comprometidas, com a soberania dos seus dois reinos.

…Nem é necessário advertir VA que por sua prudência e doçura possuindo a opinião do Rei poderá afastar muitas vezes os projectos inconsiderados e desconfianças que al-gumas horas azedam a amizade dos Príncipes por parentes que sejam e incessantemente procurar a união e amizade de ambos.

Não carece de ser trazido à lembrança as desavenças de cariz político, sobretudo nesses últimos anos, se tinham entreposto nas relações familiares de Portugal e Espanha, sempre agravadas de equívocos e mal-entendidos da parte da Espanha, basta recordar o Tratado de Fontainebleau tão cínico, quanto prejudicial aos portugueses, gizado entre a Espanha e a França napoleónica, para não falar da conduta velada e intriguista da sogra de D. João VI, por motivo de obscuras e rebuscadas razões, que não vêm agora ao caso.430

Ciente disto e muito mais, abrigado pelo silêncio do aio, que ele levou consigo para a cova, é que fazem senti-

430 Disso trata a autora, nos livros concernentes aos duplos espon-sais, de D. João (VI) e D. Carlota Joaquina e da infanta D. Mariana Vitória de Bragança e D. Gabriel de Borbón. Já mais tarde, não se pode afastar a verdade do comprometimento desagradável de D. Ma-ria Luísa de Parma e da influência que exerceu no ânimo da filha, D. Carlota Joaquina, para agravo e desgosto de D. João VI. A descon-fiança que se instalou então acabaria por perturbar as relações, não só do casal, mas também políticas, no contexto das invasões francesas, que acabou por retirar do poder os monarcas espanhóis.

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do as reflexões do homem honesto e fiel, como mostra ser, pelas suas palavras sábias e reflectidas. Também e ainda, no contexto do que fica dito, quanto à influência positiva que julgava seria a actuação privada da infanta D. Maria Isabel, na corte de Madrid, são elucidativas as palavras de D. Ma-nuel Luís de Castro, notadas na dissertação, que faz, acerca da passagem da infanta de um para outro dos domínios, de-vendo prevalecer a vontade do esposo, naquele espaço onde entrava, embora lembre à discípula que ela não deixava, por isso, de ser filha de seu pai: sendo VA religiosamente agra-decida ao seu, pouco me convém tratar desta matéria, fa-lando à filha, palavras cujo alcance não vale a pena aclarar mais, do que fica dito.

Cauteloso, como mostra ser, na prudência da sua dis-crição, para evitar mal-entendidos, no espírito da discípula, eis o que o aio adverte:

Não se conclua que eu inspiro a VA o intrometer-se em ne-gócios de Gabinete, se para isso não for convidada mui sin-ceramente e por vezes repetidas. Os Ministros dos Reis e os mesmos Soberanos são a quem os negócios pertencem (…). É muito diverso o entreter a harmonia entre os Príncipes e repará-la quando faleça, do que pretender influi nos interes-ses políticos.

Não sabemos que outro Séneca, filósofo e virtuoso pe-dagogo na corte de Roma, se anteponha a D. Manuel Luís de Castro no avisado conselho que desse ao imperador. Ei--lo, porém, na palavra deste aio e mestre, assimilada por ele, nas leituras da juventude e praticados na solicitude das suas admoestações, com a fineza que lhe imprime:

Quando muitas vezes suplicava a VA não perdesse a man-sidão de sua índole e reprimisse a vivacidade, que rapi-damente passa a discussões, mal pensaria vê-la tão breve partir, acompanhada de sua Irmã, que há-se ser a VA subor-

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dinada. Portanto, muito mais insto eu, agora, para se unir a ela e descontar algum desabrimento da sua pouca idade e de génio algum tanto picante, sendo aliás muito bom seu coração. 431

Dirigida como é esta advertência, para servir de mo-delo de conduta à futura rainha para com a irmã, cunhadas, agora, pela força dos laços matrimoniais, que tornam D. Ma-ria Francisca súbdita daquela irmã, com quem na infância brincara e comungara da mesma educação, debaixo do tecto comum e regra familiares, faz sentido que o mestre alerte a discípula, para a armadilha que neste particular podia es-conder a relação antiga, face à acabada de criar, pela nova condição das duas.

Ao mesmo tempo, dá ao leitor uma pista, a respei-to do feitio de D. Maria Francisca, senhora tão arreigada a princípios, dos quais nada nem ninguém a pôde demover, evidenciado na luta que travou contra o destino ingrato e censuras, amigas, ao pai, como nos é dado saber, por meio da sua correspondência. Entendemos também, melhor, o al-cance das recomendações de D. João VI, sempre cuidadoso com o que se passava em Espanha, receoso talvez do génio destas suas filhas mais velhas, que faiscariam na emulação de bem agradar ao pai.

Ser rainha – escreve o aio – não dava direito por si só, à infanta, de ir além das conveniências do decoro e da razão, ideia que percorre o discurso do autor à luz do entendimen-to, com que proclama o que lhe é ditado pela sensatez:

Por isso mesmo que VA será Rainha deve esmerar-se a não lhe causar descontentamentos – fala da relação com a infan-ta D. Maria Francisca de Assis – para que não seja a outrem pesada e sobranceira a coroa que a cabeça de VA adorne; antes, sirva gloriosamente de a fazer admirar.

431 In ob. cit., pp. 466-467.

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As razões que indica para uma tal candura, base for-talecente da união fraternal, apontava-as D. Manuel Luís de Castro num factor determinante e condicionador das vidas futuras das duas jovens princesas, longe da pátria e do seio, que as alimentara:

É sua consanguínea e num país estranho será com quem VA nos primeiros tempos se entretenha, porque é amiga natu-ral. Cabe-lhe Minha Senhora fazer-lhe todas as carícias e vontades, que competirem à Dignidade.

Estas sentenças pedem algumas considerações mais, derivado do estudo da matéria, concernente à família real e particularmente ao período nefasto, que ainda perdurava e na medida em que, a realidade que escapa aos protagonistas, se oferece clara a quem a olha, retrospectivamente. Isto quer dizer que as palavras do sábio, cheias de sabedoria, funda-das, além dos livros na ciência da vida, prenunciam com exactidão o que estava por vir, fosse a previsão que inquie-tava o mestre, fruto da ciência ou do amor.

Mas se com o tempo motivos verdadeiros houver para se julgar impraticável (o que Deus não permita) sua íntima confiança e familiaridade, nunca jamais se patenteie aos olhos do público nem dos seus criados esta míngua, pois que todo o tratamento e toda a demonstração de estima deve continuar-se, para não se descobrir esta nódoa, que não há nodoa indiferente em tais pessoas.

Esta maneira de encarar a justeza e a dignidade do cargo, público, que hoje podem parecer antiquadas, concor-dará o leitor, atento, que nestes modelos é que se fundaram nações e perduraram culturas. No caso vertente, não se pode negar e negá-lo é má-fé ou desconhecimento dos factos, pe-rante a demonstração de terem cumprido estas senhoras o seu papel ao extremo, dizimadas, pela sua entrega, literal-mente, mas sempre identificadas, com os finos pressupostos

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do seu modelo de educação e valores, que tinham impressos, no coração e no espírito.

Não foi algures que o beberam, mas sim, no seio fami-liar, de uma corte que lho soube incutir, naturalmente, pelo exemplo, hábitos e costumes, onde, sujeitas aos preceitos comuns e sem sobranceria, aprendiam a conhecer os limi-tes da interdição. Ver-se-á que o desrespeito deste princípio acabará mal e somente a perversão destas ideias, o poderá fundamentar.

Os costumes e trajes de cada Nação – prossegue o aio – consideram-se uma herança de pais e avós que se não deve desprezar” – admoestação que tece ao encontro da nova re-alidade que iria encontrar a nova rainha, sendo estrangei-ra, não podendo nem por isso, desrespeitar na nova pátria o que lhe era querido na sua que deixava para sempre. Em Roma sê romano, não é sem razão que o repetiam os anti-gos, “e pois todo aquele que vai naturalizar-se a outro país deixa de ser da nação de que fazia parte e começa a sê-lo destoutra e deve respeitar como os nacionais o que lhe é ca-racterístico. Quando digo costumes – emenda ele – entende--se unicamente os hábitos nobres; observados pelas pessoas de distinto merecimento e notória gravidade.432

Esta síntese está longe de esgotar a inteira riqueza que a carta encerra. É que são tão variados e interessantes os conselhos que ela comporta que esmiuçá-los é mais gáudio para o espírito do que trabalho para o corpo.

Se um português for à sua presença receba-o. Porém, não o festeje mais do que a um espanhol nem o socorra tanto às claras que ciúmes venha a acender aos seus vassalos. O mesmo parece ser de usar com as criadas (convém lembrar que se trata de senhoras da nobreza e não no sentido que o conceito ganhou com o tempo) que daqui forem, bem que no

432 Ibidem, p. 467.

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particular mostre não se deslembrar dos seus antigos ser-viços e amor de coração. Procure estabelecimento, porém, não ofenda as que o Rei lhe tiver nomeado e as velhas, ca-sadas e viúvas honre de modo mais distinto.

Eis ainda um breve trecho do que recomenda o ma-nual da melhor diplomacia, facto que não impõe hipocrisia, se entendido e aplicado, de acordo com as normas do cate-cismo de índole cristã, lida nos melhores mentores. Assim é que foram educadas rainhas e certamente não foi a menor delas, a estatura de uma Isabel de Aragão ou uma Maria I de Portugal, que colheu naquela o modelo da sua praxis com elevado grau de preocupação.

VA vai ser a Pomba que leva o ramo da oliveira para paci-ficar os ânimos de toda a Espanha, desconfiada e repartida em diversas opiniões. Por isso, sempre que aparecer nos passeios ou passar pelas ruas, mostre agrado a todos, sem dispensar, todavia, os Grandes e Eclesiásticos que ora são ali tão estimados e ouvidos com veneração (…). O Povo em Espanha e a classe logo acima dele é que toda, ainda, não vive muito contente. Os Generais distintos por serviços e lealdade, não deixe VA de honrar em público e louvar-lhes quando convier, seus feitos, pois que ajudarão a salvar Es-panha e guiarão a tropa em honra da Pátria e Glória do Soberano.433

Não restam dúvidas, quanto ao bem informado, que estava D. Manuel Luís de Castro, não obstante a geografia ter pelo meio o Atlântico, a separá-lo das duas realidades, políticas e sociais. Também este dado pode desfazer ideias escoradas no preconceito. O extracto de uma passagem do discurso do aio é sobejamente elucidativo, acerca do que constava nos bastidores relativamente aos receios de que estava a par, não só o mestre, mas a família, onde entram

433 Idem, p. 468.

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os servidores do paço, do que grassava na Europa, convul-sionada.

A demora do exército francês na Península semeou não pou-cos venenos cujo remédio exige muita reflexão, paciência, boa-fé, muita brandura, alguma energia e constante justiça.

A reflexão medrou nos corações, não apenas daquela a quem se dirigia o guia, mas segura e dilatadamente, no das duas irmãs, coisa que a duração da vida, um pouco mais longa, da infanta D. Maria Francisca, provou. Ganham mais sentido e forma também os relatos que ficaram à posterida-de, da entrada das duas infantas em Espanha, relatos, onde sobressai a desesperança daqueles povos, agora alentados, com a vinda delas, acordando neles a esperança perdida que, de certo modo, elas lhes devolviam.

A justiça, necessária e indispensável, à sociedade con-fusa e dividida, por tanta discórdia e empobrecimento dos mais humildes, deveria merecer a atenção dos seus gover-nantes e da rainha, qual coadjuvante do marido, no exercício do poder. Assim o entende o aio, que alerta a discípula para o excesso de “justiça” justiceira, inerente ao clima de con-vulsão revolucionária:

Porém, a ser indispensável castigo e VA for ouvida, seja da opinião que deve este sempre impor-se depois de mui sisudo e imparcial exame e o processo feito com todas as formali-dades das Leis.434

Quem de bom ânimo observe o que acabou por acon-tecer a nível político, na longa fase, que se seguiria, pos-teriormente, em Espanha, recuperada através das cartas de Cádis, quando, refém a família real do governo revolucio-nário, testemunho, corroborado nas notícias aportadas por outras vias, da crueldade dos excessos, aquele apelo de D.

434 Ibidem, p. 468.

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Manuel Luís de Castro fará sorrir o leitor, quando diz que só depois de mui sisudo e imparcial exame e o processo feito com todas as formalidades das Leis, sabendo, como se sabe, que tudo o que correu lá como cá foi o inverso dessa pro-clamação.

Compreenderemos melhor o comportamento de D. João VI, acusado de fraqueza pelos mais exaltados dos seus adversários – os quais dispunham do favor e poder nas re-dacções dos jornais, para exigir sem regras, o que apelida-vam de direito e de justiça – deixando-se guiar o monarca, não obstante, pela longanimidade.

Nunca jamais se prometa cousa que se não cumpra; e para que tal não aconteça, pese-se primeiramente cada palavra, cada aceno e cada passo. Um tumulto é semelhante ao mais violento incêndio, o qual não pára senão depois de derribar os maiores edifícios e muito tempo dura escondida entre as cinzas a faísca com força de tornar a inflamar.

A sabedoria expressa nesta máxima – mais uma – da lavra de D. Manuel Luís de Castro, é autoexplicativa, se a tomarmos como referência, para entender o que se seguiu em Portugal, depois da morte de D. João VI e o rei temia pu-desse grassar ainda, durante o seu reinado. A História está aí para ser lida nos testemunhos, se o for sem o facciosismo do costume, manipulador da razão que, em si mesma, engloba o contraditório.

E antes de transcrever a passagem seguinte, vem-nos à mente o que sabemos, dos acontecimentos em Espanha, na altura em que a infeliz rainha D. Maria Isabel de Bragança cumpria os preceitos ditados por tais normas, antes de serem lembradas pelo mestre. Tal conduta trazia de volta à gente que o presenciava – dizíamos – anúncio de um tempo novo, celebrado nos viva! das aclamações.

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É nos templos que VA recomendaria ainda mais, se é pos-sível, se revista de acatamento e dignidade. Uma rainha chegada de pouco é espreitada de quantos podem pôr-lhe a vista e passados breves minutos de admirarem, passam ime-diatamente a avaliar suas mais pequenas acções e não se lhes perdoa o mais leve descuido; o que é dado à ideia que se tem das Augustas Personagens, nos quais tudo se espera e se deseja nobre e apurado.

Por outro lado e tendo em mente o quadro de grande miséria de todo o género, em que a Europa mergulhara e se adivinha, vivo nos reinos ibéricos, centrada a atenção, parti-cularmente, em Espanha, agora, como convinha à finalidade do discurso, o mestre acentua a acutilância dessa realidade, perspectivada e pedindo a maior delicadeza de atitude, à sua discípula.

Que VA sem se inserir em disputas ou matéria de religião ora tão esmiuçada, seguirá a etiqueta da corte, a respeito de assistir como fiel cristã e legitimamente devota a festas e ofícios, não é mister dizer-lhe, porque tenho experiência da sua devoção séria, mas não faça demorar sem grande motivo os sacerdotes, depois da hora estabelecida.

Com as pinças do discernimento e a favor dos ventos que corriam, sem perder a virtude dos seus princípios, note--se o que recomenda o aio à infanta, ao ponto de acrescentar uma opinião, bem formada, de certas práticas, com o que nos faz ver o tipo de pessoa que ele era, intelectualmente:

Contra os princípios da razão e virtude pessoais há os que misturam a devoção com a libertinagem ou para melhor di-zer, em vez de cristãos puros, são hipócritas. Para este tão ruinoso crime evitar-se, deve VA não dar ouvidos a beatas nem abonar senão a pura virtude e o verdadeiro merecimen-to, o qual se conhece pelos bons costumes, a saber, de bom Pai ou Mãe de famílias, bom marido e boa mulher, bons

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filhos, bem aplicados às suas obrigações, bons lavradores, bons artistas e numa palavra gente honesta e observante das Leis.

Ser exacto nos preceitos da Religião não é virtude rara, é um dever indispensável, que nos impõe a herança dos nos-sos ascendentes, a promessa dos que por nós assistiram a nosso baptismo e de nós mesmos, desde que temos uso da razão (…) por isso deixando de ser vicioso, ninguém o pode ser verdadeiramente virtuoso, bom cidadão e bom vassalo.

Custa-nos abandonar tão precioso e rico documen-to, porque cada vez que o intentamos, mais se nos prende a atenção à leitura dele, temendo deixar em suspenso ou omi-tido algo, digno de bom e meritoso, crédito temendo fazer perder o lustro, tanto da lição do mestre, como da atenção e exemplo, que dela se segue, da parte da sua real discípula. É curioso e digno de nota as formulações de D. Manuel Luís de Castro, as quais se vêem plasmadas na prática, testemu-nhada pela memória da acção desta rainha e hoje vai sendo reconhecida, não obstante a curta e breve duração do seu reinado, de consorte.

A Espanha ficou devastada pela guerra e desertas muitas povoações e campinas. Portanto, do mesmo modo que se corria às armas, deve agora com a enxada às costas, partir para os campos e para as casas onde estavam os teares e as outras oficinas: com o nome de Deus no coração e na boca, devem votar-se à restauração desse grande reino (…). VA porventura folgará de ver as primeiras provas do restabe-lecimento das artes usando – e nunca jamais de estrangei-ros – manufacturas feitas desse país, como fazia seu imortal avô, o Senhor Dom José435 e seus Augustos Filhos, dos quais

435 Refere-se a D. José I de Portugal.

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vivem ainda a Rainha Nossa Senhora, avó de VA436 e a res-peitável Senhora Princesa D. Maria Benedita.437

Não bastava à rainha de Espanha, infanta de Portugal, ter sido instruída exemplos que vira na sua terra e ter deles co-lhido exemplo bom. Era necessário voltar-se com a mesma maneira de pensar e entrega às boas práticas e praticá-las em conformidade, como se fora nascida na sua nova pátria. Recomendava, pois, para tanto, o mestre que se instruísse nesse sentido, de modo a surtir o devido efeito, sem fingido interesse de conveniência ao seu posto.

VA deve desde já começar a ler por um compendio, para daí passar a outra mais extensa, a História de Espanha Europeia e das descobertas extraordinárias na América e Ásia para conceber o que vale aquela Nação. E depois de haver ali chegado deve, as horas que a VA restarem, em seu gabinete empregar utilmente, na música, principalmen-te tocando, no desenho, no bordado e na lição, destinando cada dia para cada género ou cada hora ou como melhor lhe parecer…438

Muito mais havia a dizer dada a lembrança que suscitam tais palavras, na medida em que – insistimos – o anátema que corre, acerca destas infantas, filhas de D. João VI e D. Carlota Joaquina, é a que se sabe, de umas analfabetas. Já se sabia que eram todas elas (assim como os irmãos e o pai) melómanas, fossem ou não, praticantes, a exemplo da rainha D. Maria I e suas irmãs. Desfaz-se neste testemunho do aio, o mito, quando lemos a recomendação dele à discípula para se entregar a uma rotina disciplinada de lazer, que contemple o tocar música, rit-mando este exercício, com o desenho e o bordado.

436 Refere-se a D. Maria I.437 Esposa e depois viúva do Príncipe D. José, filho de D. Maria I e de D. Pedro III.438 In ob. cit., p. 469.

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À primeira impressão, ocorre que a lição do pedago-go não passa de mera retórica, simpática e escrita, a fim de agradar à real ama, na hora do adeus. Todavia, somos sur-preendidos pela sua rude franqueza, quando traz à memória o defeito da infanta, uma certa indolência, talvez, em relação às tarefas do dia-a-dia, o que se tornará mais compreensível, se atendermos ao grau de exigência premente do aio, contra a displicência, dela:

… Com tanto que não esteja ociosa, como aqui muitas e muitas vezes, está (…) e muito tem VA a perder se por ocio-sidade afracar seus talentos.

Fala o mestre, efectivamente. Talentos, não lhos nega, o que acentua nela é a preguiça de o exercitar. Contudo, a realidade que conhecemos, acerca das práticas da infanta, no decurso da sua vida em Espanha, desmente toda a ideia que se faça de ociosidade. O que nos surpreende é, justamente, o oposto, saber onde é que a jovem rainha conseguiu tem-po e capacidade física, para acorrer a tanta demanda, que exigia dela extenuante entrega e inesgotável força anímica, esgotante como seria o quotidiano, que desembocou numa prematura morte.

Reconhece o mestre nela, simultaneamente, viveza, bondade e gentil obediência, adjectivos que só o pedagogo podia aplicar com propriedade ao sujeito da sua didactolo-gia, quando manifesta a opinião sobre o modo de como ao rei de Espanha fazia falta, alguém assim, numa altura em que acabava de regressar à pátria, do seu exílio napoleónico, pátria que ele encontra necessitada de tudo, notadamente, credibilidade.

Recomenda então, à discípula, que tivesse isso em conta e se oferecesse benévola e voluntariamente a parti-cipar do reajuste, exibindo as qualidades nela, que desig-na por o mais competente amigo, demonstrando ao esposo,

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que tudo tinha a ganhar e nada a perder, naquela que seria o seu mui íntimo confidente. Não deixa de reparar naqui-lo que poderia parecer o contrário do que antes advertira e desfaz o equívoco, afirmando que não era incoerência o haver aconselhado a VA que não aceite requerimentos nem se intrometa em negócios e agora lhe surgirá, no entender naqueles melhoramentos que, decerto, são negócios de im-portância.439

Para entendimento cabal da complexidade intrínseca a estes avisos, é do maior interesse lembrar o recurso do mestre, quando ele evoca o exemplo, já referido, de Santa Isabel de Aragão, ilustrando com o exemplo desta magna figura, a lição que dela se pode colher, naquele particular de ser rainha, esposa e confidente.

Quantas vezes ao Grande Avô de VA o Senhor Rei D. Dinis, sábio Agricultor, não valeu a companhia e conselho de sua Esposa, a incomparável Rainha Santa Isabel, abrandando o génio, ora mais forte e decidido, para com seu filho? Quan-to não ajudou a seu marido, a Senhora Dona Luísa, Duque-sa de Bragança, em breve Rainha de Portugal e quanto não deveu o Senhor D. João I para a educação de seus filhos, à distinta e benemérita Rainha D. Filipa, gloriosa Mãe do Infante D. Henrique cuja história nunca jamais esquecerá aos portugueses e estranhos?

À parte a evocação destas figuras maiores, que dei-xaram marca indelével na memória comum da Pátria, fica patenteado, não só o carinho que o aio nutria pela discípula, mas que o mestre nas suas lições palestrava sobre matéria, apologética, que proveriam o modelo a seguir pelos mais altos responsáveis do destino da Nação. Assim devia ser, na medida em que à lição, segue-se a sugestão, para ter em mente o exemplo ilustre, dos antepassados:

439 Idem.

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Cabe a VA fazer o mesmo para com o Senhor D. Fernan-do VII se houver ocasião e sem que se falte à justiça e VA for ouvida, consolar seu coração, quando for oprimido de sentimentos, que seu ânimo combatam ou ajudá-lo com seu exemplo de moderação e economia, se não chegarem nestes primeiros tempos tão próximos às grandes perdas de Es-panha as rendas, outrora necessárias ao fasto e magnífico aparato de um Rei da Primeira Ordem; antes, com semblan-te heróico e sereno, incitar-lhe a judiciosa aplicação destas rendas, afora a indispensável despesa da mantença diária e sóbria, a estabelecimentos de casas de educação, colégios militares, de estudos públicos e socorro a viúvas e filhos de oficiais finados, pelo salvamento da Pátria e dos que por sua lealdade sofreram dano em terras, fábricas e outras propriedades.440

Sublinharemos – agora e sempre – algumas singu-laridades mais, deste discurso, que se agiganta aos nossos olhos, como premonição ou conselho aceite e seguido, visto ter sido sua praticante, a partir do momento que se sentou no trono, ao lado de Fernando VII.

E disto é que falam os cronistas, relatores vivos do que lhes foi dado presenciar, nos escassos anos que esta in-fanta portuguesa viveu, na condição de rainha de Espanha. Senão, veja-se o que ficou escrito a este propósito, onde se enaltece a exemplar entrega da princesa, pelo seu empenho na criação de instituições, como as sugeridas pelo aio e seu mestre. Poderá sempre perguntar-se – e é justo fazê-lo – em que medida estaria munido para tanto o rei, seu marido.

Não há acerca deste soberano uma ideia muito benig-na a este respeito, tendo sido, como parece, vítima da con-juntura grave da época em que governou. Todavia, alguns apontamentos nos chegam onde ressalta o reconhecimento

440 Idem, p. 470.

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dele das virtudes e qualidades da esposa, coisa que os mais honestos têm ultimamente trazido a lume. Faz sentido, por-tanto, a conclusão, ditada em uníssono, pela voz da experi-ência e leituras, de D. Manuel Luís de Castro, que perpas-sam neste trecho:

Os Povos ao verem sair das Augustas mãos do Rei seme-lhantes generosidades, aplaudi-las-ão, chamando-as pater-nal justiça; mas se adivinharem que para tantos bens con-correu a Rainha, pouco faltará para lhe renderem cultos e aclamarem-na o seu Anjo Protector.441

De resto, é esta evidência patenteada, nas memórias de que tratámos, na passagem evocativa desta infanta, en-quanto rainha de Espanha, facto que não é demais frisar. Te-ria a infanta D. Maria Isabel seguido, à risca, o manual de conduta, que a sabedoria prática do seu aio lhe oferecera, lembrança inalienável ou seria fruto de algo mais amplo e profundo, adquirido numa corte onde o modelo eram estes princípios? Inclinamo-nos para a segunda parte da premissa, porque condutas desta magnitude não são práticas aleató-rias, porque carecerem de reiterados exemplos, que moldem caracteres a um código de comportamento. Isto se conclui da exortação de D. Manuel Luís de Castro a propósito ainda do papel, destinado à discípula:

Mas seria escrever sem acabar, se tocasse todas as teclas da vida de uma Rainha de Espanha: deixo muito à compre-ensão e sincera vontade de VA confiado em que o exercício irá fortificando sua nobre razão para fazer admirável nesse augusto lugar como em Casa de seus ilustres Pais é de to-dos, amada. 442

E no momento de partida, as palavras do aio – pe-netradas já daquela saudade antiga – pressentindo na alma

441 Ibidem.442 Ibidem, p. 470.

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o aperto de quem se despede para sempre, talvez para não mais nos vermos – diz – é a voz do coração que só diz o que sente e o que sente não é senão verdadeiro. Ficaria incom-pleto este resumo do manual de conduta de princesas, se não atendêssemos ao penúltimo parágrafo onde o mestre evoca o lugar já vazio e até então preenchido pela juventude da sua ama e discípula que, sendo irmã de tantas irmãs, ocupava espaço único, no coração de quem se apartava:

À nossa saudade serve-nos de lenitivo a esperança ou qua-se certeza de tantos bens quantos VA pode e saberá fazer aos seus ditosos vassalos, pois do modo que não se perde o ser Pai, quando os filhos mudam de estado e domicilio, não deixam estes Portugueses de marcar vazio o saudoso lugar onde VA recebia os respeitosos cortejos e com a natural afa-bilidade penhorava a veneração de todos. Os Portugueses festejarão como de Pessoa ainda muito sua, as notícias dos benefícios em que VA tiver parte e de que Espanha possa congratular-se. 443

A reflexão sobre tão belo e excelente escrito de D. Ma-nuel Luís de Castro encerra-se na veneração, que somente o silêncio pode exprimir e se impõe ao leitor, na solidão da sua leitura, para lamentar a falta de muitos outros, escritos, de

443 Não obstante a redundância, registamos, enfaticamente, o que fica dito, nas palavras que, em Mafra, recitou Frei Manoel da Concei-ção Argea, enaltecendo a figura de D. Maria Isabel de Bragança: “A Filha mais dócil, meiga, respeitosa e obediente. Ah! Quantas vezes dobrados os mimosos e inocentes joelhos, diante destas aras santíssi-mas ao mesmo passo que ia levantar para Deus as delicadas mãozi-nhas, volvia os fulgentes, porém, modestos olhos aos Pais Augustos, para aprender em seus olhos e em seus gestos, qual maneira era mais própria, mais decente e religiosa de prostrar-se na presença vene-randa do Supremo Senhor dos Imperantes, que lhes forma os ceptros, que lhes dispensa os tronos, que lhes deixa, que em seu nome, rejam, mas a quem fará sofrer um dia um juízo duro, pesado e terrível.” In Elogio Fúnebre, Lisboa, 1819.

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teor análogo a este, redigidos um dia, em idênticas circuns-tâncias, guia de princesas e infantas deste país, diluído no tempo e na distância.

Num lampejo, acode-nos à mente a belíssima Isabel de Portugal que daqui saiu, nascida e ilustrada, na atmosfe-ra de Lisboa, pelos melhores mestres de então, a caminho de Espanha, para desposar Carlos V, o imperador. Antecede esta, no meio de igual grandeza e indesmentível esplendor, Leonor, a não menos celebrada, infanta, irmã de D. Afonso V, a caminho da Alemanha de Frederico III. Para não falar-mos dessa, outra, Catarina de Bragança, a caminho de In-glaterra, para se ir sentar no trono da Grã-Bretanha, ao lado de Carlos II. À saída da pátria comum, que recomendações, que saudades, antecipadas, imprimiu com tinta, a súbita e arrebatada pena de um para sempre?

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As cartas e o seu descaminho

A indagação sobre o paradeiro da correspondência trocada entre as filhas de D. João VI e ele, memória que recuperamos neste livro e se conserva parcialmente na Bi-blioteca da Ajuda, permitiu-nos aclarar que o acervo sendo significativo, é diminuto, quando comparado com a real di-mensão que originalmente tinha.

O volume reduzido que hoje apresenta deve-se à sub-tração a que ficou sujeito o primitivo espólio, conclusão a que se chegou, no decurso da referida pesquisa. Embora nos escapem as etapas da delapidação, buscámos reunir o máxi-mo da informação dispersa, reunião que adveio âmago do presente estudo e ponderação, no sentido de ampliar o valor intrínseco ao mesmo, enquanto memória histórica e colec-tiva.

Tratando como se trata das filhas de D. João VI – rei tão mal estimado pelo liberalismo de certos liberais, so-bretudo, daqueles que no período posterior à guerra-civil (1832-1834), falam com denotado preconceito do seu drama familiar, que carrearam para o cenário histórico, sustenta-do num amontoado disforme e boateiro que distorce aquele reinado, ignoram ou malbaratam o bem que a causa liberal lhe deve – era inevitável ir dar ao compendioso trabalho que resultou, da preocupação e dos dias, de Ângelo Pereira.

Também deste autor e do seu labor deparamo-nos com pouca notícia, além do que ele próprio alude, autobiografi-camente, nalgumas páginas das suas publicações. Foi então que, tomando em mãos o desígnio de reunir os dispersos

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da correspondência, elencámos, não só as cartas, mas docu-mentação coeva daquela, por ele, Ângelo Pereira, publicada, a qual acrescenta compreensão ao evoluir da matéria aqui alinhada e defendida.

Levámos em conta o remetente, local de origem e data de cada missiva, numa primeira fase, tendo como referên-cia o espólio da Biblioteca da Ajuda, quando partíamos do princípio que este se achava inteiro, ainda. Só a indagação – como dizíamos – derivado da falta de resposta aos hiatos que se iam abrindo, é que ofereceu a saída, que veio redu-zir as falhas. Isto é, as cartas existentes naquela biblioteca – falando apenas deste tipo de documentação – encontram complemento nas que publicou Ângelo Pereira, facto de que nos fomos apercebendo, à medida que se preenchia o vazio existente, com a documentação dada à estampa, por ele, reu-nida e colecionada.

Aquilo que se oferece criticar de imediato, quanto à adopção do modo do autor abordar a informação original que publicou, perde a força, se levarmos em consideração as razões que lhe assistem. O espólio era seu – como declara – tendo-o adquirido à custa do seu bolso, sacrificando outros bens, que poderiam ter-lhe satisfeito outros interesses, que suprimiu, pelo amor que devotou à memória histórica que aviva, concretamente, do reinado e figura de D. João VI, rei que lhe merece a mais tributada simpatia. Na posse do espó-lio que ia reunindo foi-o, também, publicando.

Fica assim entendido o propósito de Ângelo Pereira, a cada página, dado o cuidado das explanações com que eluci-da o leitor, através das transcrições e citações, com base nas fontes, para onde nos remete, esclarecendo que é “Colecção do Autor”. Perante esta confissão a pergunta que se coloca é saber, como é que, um imenso reportório destes teria chega-do às suas mãos, averiguado e recolhido, para dar satisfação

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ao desiderando, que o alimenta. A resposta dá-a, em certa medida, pelas explicações que nos oferece, nos diferentes volumes da sua obra, impressa.444

Logo na abertura de “As Senhoras Infantas, Filhas d’el-Rei D. João VI” publicado em 1938 – a primeira das obras, que elaborou, concernente a esta matéria – Ângelo Pereira fornece algumas pistas, acerca da sua motivação, notadamente, quando declara o genuíno interesse que nele despertara o desmontar – digamos – do anátema que pendia e durava sobre a figura de D. Carlota Joaquina, interesse que acabaria por estender à prole dela e a D. João VI. 445

Privado de dirimir o assunto por inteiro, pelas limita-ções da sua condição, não o tendo abandonado o gosto, logo que lhe foi possível, avançou:

Consegui-lo, mesmo imperfeitamente, já quase chega a ser heroicidade, porque um acto desses, entre nós, então, não só é financeiramente estéril, como se torna ainda fonte de encargos, motivo de consumições, origem de muitas mágoas e dissabores.

Vi mais longe na singeleza da sua confissão:

444 Apesar do esforço de alcançar notícia acrescida do autor, aquele resultou inglório. É certo que não era esse o âmago deste trabalho, mas não deixa de nos interpelar a tarefa de reunir e publicar tanta documentação, que um dia foi, estritamente, privada. Igualmente in-terpela-nos a pessoa de Ângelo Pereira, na qualidade de autor, não sendo historiador de formação. Respondem-nos as suas confissões, que vamos citando aqui, satisfazendo, na medida possível, a curiosi-dade suscitada. 445 As Senhoras Infantas, Filhas d’el-Rei D. João VI: Numerosas Cartas e Documentos Inéditos; 31 Ilustrações, Editorial Labor, Lis-boa, 1938. Nota: o título de rosto difere do interior do livro, ao alto das páginas, por qualquer razão, que nos escapa e se lê: “Os Filhos de D. João VI”.

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Não se foge, porém, à desgraça, quando ela é nosso destino. E bem nefasto é, sem dúvida, ser mordido pela tarântula da curiosidade, do desejo de investigar, da ambição de conhe-cer, de escrever, de publicar ou com esses funestos predica-dos ter nascido, sendo moiro e nu. De semelhante desgraça só o homem de génio se desforra e vinga, porque, compen-sadoramente, se compensação é, morrendo de fome, tem para si e para todo o futuro honra, celebridade e glória.446

Desta sequência, chega-nos alguma luz sobre o modo de Ângelo Pereira conseguir realizar o seu inten-to, quando ele revela tê-lo cumprido na perseguição, em momentos breves, constantemente suspensos, longamente truncados, da vida familiar e íntima, da acção oficial e pública de D. Carlota Joaquina, tivera a satisfação de receber, entregue à ‘minha (sua) discrição’ uma valiosa colectânea de cartas das filhas de D. João VI, todas iné-ditas, ainda.447

Depois de nos dar esta satisfação, deixa-a, infelizmen-te, incompleta, na medida em que não declara abertamen-te a origem e fontes, que se abriram, através dos arquivos privados, postos ao seu inteiro dispor, para gáudio da sua curiosidade. Ainda assim, aduz que ficara devedor à requin-tada amabilidade da Sr.ª D. Carlota Saldanha e dos Senhores Condes de Vale de Reis e ao, por muitos títulos, ilustre, Sr. Marquês de Lavradio – que nos últimos tempos se tem dedi-cado, com verdadeira devoção, à inglória tarefa de exumar da poeira dos seus preciosos arquivos e trazer para a luz da publicidade interessante material – devia a gentileza, pelo que apresentava publicamente as suas homenagens e agra-decimentos. E acrescenta ainda que componentes do docu-mentário dum seu ilustre antepassado, o distinto diplomata Conde de Lavradio, algumas dessas cartas, como se veria

446 In ob. supracitada, pp. 13-15.447 Idem.

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– diz – projectam vivos clarões sobre muitos factos daquela confusa época, ainda envoltos em cerrada neblina.448

Conclui Ângelo Pereira com uma reflexão pessoal, re-velando que esperava poder publicar brevemente novos ele-mentos, que contribuíssem para uma revisão do reinado de D. João VI, que foi – cada vez parece mais indiscutível – um os mais ponderados e apreciáveis monarcas portugueses.449

Quando poderíamos ou julgávamos poder, ficar, por estas notas do autor que, efectivamente, prova como autênti-cas, quando nos remete para os documentos, por ele consul-tados e referidos, na obra subsequente, deparamo-nos com as “Breves Palavras Explicativas” com que abre o livro “D. João VI, Príncipe e Rei” – que só publicou 15 anos depois do primeiro 450 – admitindo que as sua obras (como a que acaba de dar à estampa) se destinavam a um número limitado de pessoas, suficientemente esclarecidas sobre os fundos pano-râmicos em que se desenvolvem os acontecimentos – signi-ficativas palavras de quem está compenetrado da dificuldade que suscita a densidade de tais assuntos – leitura que con-tava só com a ignorância e a deturpação da verdade histó-rica. Da sua parte, fazia ele, o que estava ao seu alcance e não pretendia senão enquadrar a riquíssima documentação, quase inesgotável – diz – com os nossos (seus) comentários, sem sacrifício da verdade nem da justiça.451

Elucida-nos, então, sobre o repertório informativo de que se serve e onde é que o colheu, indicando que os docu-mentos que estruturavam aquele trabalho de investigação pertenceram, na sua maioria, ao Real Gabinete de D. João

448 Ibidem.449 Idem.450 D. João VI Príncipe e Rei: A Retirada da Família Real para o Brasil (1807) – Revelação de Documentos Secretos e Inéditos sobre o Grande Acontecimento, Vol. 1, Lisboa INP., 1953.451 Breves Palavras Explicativas, in ob. supracitada, nota acima.

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VI. Repare-se que Ângelo Pereira menciona uma origem que não deverá ser confundida com Real Gabinete de Abertura, mencionado por ele, noutros lugares, da sua obra, isto, para melhor entendermos quando informa que tais documentos por circunstâncias diversas se conservavam desconhecidos até agora.

Vai mais longe e garante que evitou, por sua inter-ferência, oportuna e útil que uma grande parte da docu-mentação se dispersasse, obstando a que muitos passos im-portantes do governo de D. João VI ficassem envolvidos, talvez para sempre, em densas sombras, que dariam azo à continuação de falsidades e calúnias que se têm escrito sobre um dos períodos mais importantes da nossa história contemporânea.452

Meritório como parece à partida este propósito, na medida em que ele espelha o mesmo singelo desiderando que nos guia, ao respigarmos as memórias do reinado de D. João VI, igualando-nos, no desenvencilhar de alguns nós, mal atados ou atados mal, para dar outra compreensão a esse tempo tão fascinante, tanto, quanto, perturbador.

Finalmente sairia naquela sequência em 1956 um 3.º livro, no qual Ângelo Pereira insere uma nota de abertura, como de costume, desta feita, intitulada: “Justificação des-te Volume”. Mostra-se preocupado, ainda e sempre, o autor pela circunstância de ser época, aquela, sobre a que escreve, “cheia de incógnitas e confidências” motivo para o instigar ainda mais a prosseguir com a tarefa, mesmo correndo o risco de ser chamado de temerário, achando-se – como diz – “modestíssimo cabouqueiro” ao justificar sinteticamente, mais uma publicação.453

452 Idem.453 Os Filhos d’el-Rei D. João VI: Reconstituição Histórica com Documentos Inéditos que na sua Maioria Pertenceram ao Real Ga-binete, Ilustrada com Reproduções de Óleos, Aguarelas, Gravuras,

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Três factores nos animaram e convenceram a prosseguir numa ideia que já há anos começámos a realizar” – escreve – sendo de realçar o primeiro dos que aponta: “a riquíssi-ma documentação inédita em nosso poder e ulteriormente adquirida” e “a colecção de gravuras, litografias, aguare-las, óleos e miniaturas, referentes aos factos primordiais” de que se propunha tratar e ainda “o testemunho de pesso-as fidedignas, que presenciaram ou figuraram nos mesmos acontecimentos.454

Remata dizendo que o presente livro servia de com-plemente ao que publicara em 1938 (As Senhoras Infantas), admitindo que o merecimento da obra consistia no repúdio de tudo quanto seja lenda ou anedota, por não poder resistir ao vivíssimo clarão dos preciosos documentos que, na sua maioria, pertenceram ao Real Gabinete de D. João VI.

Aqui chegados, interpela-nos a afirmação de Ângelo Pereira – como dissemos – quando ele confessa ter elabora-do a sua obra, com base na riquíssima documentação inédita em nosso poder e ulteriormente adquirida, asseveração que nos induz a concluir que, inicialmente, se limitara a consul-tá-la somente e que a teria adquirido em data posterior, sem declarar, contudo, a quem.

É evidente que, se a correspondência e outra docu-mentação, que veio publicando – escrita ou iconográfica – pertencia ao Real Gabinete de D. João VI, ele não a podia ter consultado ali, pelas razões óbvias. Portanto, o(s) acervo(s) com que nos contempla só podia(m) estar em mãos, estra-nhas, uma vez subtraídas. Achegas a esta conclusão é o autor dizer, a certo passo, num dos seus livros, que algumas das

Litografias e Miniaturas dos Mais Celebres Artistas da Época, Lis-boa, INP, 1956. Nota: A “Justificação” é datada de “Campo Pequeno, Dezembro de 1944” ou seja, doze anos antes do livro sair a público. 454 Cf. Justificação, in ob. supracitada.

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ditas cartas, tinham sido adquiridas, por D. Carlos I, cartas que ele, Ângelo Pereira, igualmente transcreve e/ou refere.455

Sem atinarmos com a identidade do “detentor” do es-pólio, eis que demos com um opúsculo de D. João de Al-meida (Lavradio) e ancorados ali, notámos algo oportuno e digno de entrar nesta reflexão.456

Diz-nos, ofendido, D. João de Almeida que viera à claridade do dia, para manifestar, o seu vivo repúdio, a pu-blicação recente “das cartas destas Senhoras”, na abertura do dito seu opúsculo: Têm aparecido por aí livros em que se trata da influência política e da vida privada de D. João VI e da sua família, aludindo, concretamente, às da Rainha D. Carlota Joaquina e das Infantas ao mesmo tempo que afronta o autor da publicação das cartas, apelidando-o, um certo Afonso Costa.457

Note-se que o artigo de D. João de Almeida é de 1939, ano seguinte ao da publicação do 1.º livro de Ângelo Pereira. Contudo e embora aparente ser aquilo, uma indirecta ao nos-so autor, depois de alguma reflexão, concluímos, que isso não faria muito sentido, uma vez que o teor, do que Ângelo Pereira escreve e afecta nas suas confissões, é tudo menos querer ofender a memória das aludidas figuras, históricas. Pelo contrário, parece ser movido na direcção apontada por D. João de Almeida, como lavagem da honra real.

455 Notadamente em “As Senhoras Infantas, Filhas de el-Rei D. João VI – Numerosas Cartas e Documentos Inéditos, 31 Ilustrações” o autor faz menção em notas de rodapé aos documentos, principal-mente cartas, que tinham pertencido à Colecção d’el-Rei D. Carlos I, sendo que, numa das notas (p. 83), declara que o rei as tinha ad-quirido aos herdeiros do “Abade de Castro” (atrás referido) por 50£. Outras Colecções referidas por Ângelo Pereira, in ob. cit., pp.. 93, 96, 97 e 100, no que concerne, somente, ao livro citado, acima. 456 A propósito da Rainha D. Carlota Joaquina e das Infantas suas Filhas, in Separata da Revista Brotéria, n.º 28, Ano de 1939.457 Idem.

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Não podendo nem querendo avançar mais na matéria, até novo entendimento, sempre achamos por bem declarar, no que nos toca, que uma sombra perpassa, na alusão feita a um certo Afonso Costa, obviamente figurativa, para iludir a verdadeira identidade do autor, para quem D. João de Al-meida nos remete, enquanto provável pejorativo.

Topámos num breve voo de pássaro, querendo abarcar melhor o assunto em questão, com um livrinho de Alfredo Pimenta, de 1937, intitulado “O D. João VI do Snr. Marquês de Lavradio” e concluímos que o marquês do título do livro, pode muito bem ser a pessoa, que provocara a indignação de D. João de Almeida.458

Não é demais lembrar que, sendo o Marquês de La-vradio e D. João de Almeida parentes, sem mais averigua-ção, pareceu-nos que a discussão (a ser assim) ilustra a di-vergência antiga, entre os dois ramos da linhagem familiar – a liberal e a miguelista – dos descendentes daquele seu distinto avô, que foi vice-rei do Brasil, nascida da afectação a partidos e que tão mau fruto produziu, nas lutas intestinas, que alçaram ao trono D. Maria II.

Não fecharemos sem dar antes um público agrade-cimento à Sr.ª Dr.ª Conceição Geada, figura conhecida do investigador, que frequenta a Biblioteca do Palácio da Aju-da, pela hospitalidade com que franqueia a sua gentileza,

458 “O Sr. Marquês de Lavradio – escreve Alfredo Pimenta – ao dar-me a notícia do próximo aparecimento do seu livro D. João VI e a independência do Brasil (Últimos Anos do seu Reinado) teve a bondade de me manifestar o desejo de que lhe julgasse o seu trabalho. Venho satisfazer-lhe esse desejo. Contrariadamente, aborrecidamente o faço e se não se tratasse de cumprir um dever cívico, dar-me-ia por esquecido, envolvendo o livro do Sr. Marquês de Lavradio em silên-cio misericordioso (…). Tecnicamente, o D. João VI do Sr. Marquês de Lavradio, pouco mais é do que medíocre. Como história descritiva é banal. Como história interpretativa é falso (…)”.

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incondicionalmente, ao serviço de quem procura ali o vasto repositório documental, que tão bem domina. A ela se deveu a sugestão de retirar da penumbra as cartas das filhas de D. João VI e mais documentação afim, que se oferece agora ao leitor. Deve-se-lhe também a transcrição desses materiais que servem o mesmo propósito, embora, por razões que se prendem com a organização deste livro, se tivesse optado pela citação, em vez do traslado integral. Pela sua preciosa colaboração, aqui fica uma justa homenagem ao seu labor e o nosso particular e merecido aplauso de reconhecimento.

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1. Relação histórica das festas, que se fizeram pela oca-sião do casamento, que a 13 de Maio do ano de 1810 se celebrou nesta cidade do Rio de Janeiro, em que o Sereníssimo Infante D. Pedro Carlos de Bourbon e a

Sereníssima Princesa D. Maria Teresa, pelo laço conjugal firmaram as esperanças de se perpetuar e enlaçar mais a união das duas Coroas de Portugal e Espanha. Orde-nada pelo Padre Joaquim Dâmaso, da Congregação do

Oratório de Lisboa459

Há mais de um ano que se fala no casamento do Se-nhor Infante D. Pedro Carlos de Bourbon com a Senhora Princesa da Beira D. Maria Teresa. Parece que o Céu logo desde o nascimento inculcava este ajuntamento, ou fosse nascido o amor entre eles pela criação, ou pela semelhança de inclinações, ou por insinuações, que não deixavam de ser bem claras, ou por o Céu assim o querer, bafejando o mútuo amor, que sempre houve entre eles, ou por outro qualquer princípio mesmo de Estado, cujos fins nos não pertence exa-minar: é certo que se celebrou o matrimónio em o dia 13 de Maio de 1810 em que o Príncipe Regente Nosso Senhor completou 43 de idade.

Neste dia tão alegre para toda a Nação, dia, em que todos à porfia se esmeram em dar provas do amor radicado em o coração, que todos lhe consagram, e que lhe é devido, não só pela soberania do Trono, mas também pela corres-

459 BA – 54-X-6, nº 2 – Cópia por Luís Joaquim dos Santos Mar-rocos, cf. sua carta de 16.10.1811. Transcrição do original, grafia e pontuação actualizadas e abreviaturas desenvolvidas, pela Dr.ª Con-ceição Geada, a quem muito agradecemos a solícita colaboração.

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pondência, que no mesmo Príncipe se admira; pois nem um tão só vassalo seu com verdade poderá afirmar, que tratan-do-o, o tratasse senão com afabilidade, grandeza, e benigni-dade, não podendo nem jamais dar aparências de aspereza: neste dia pois, dia de tanta alegria, dia, em que a mesma atmosfera parecia querer de alguma forma solenizá-lo, dei-xando ver claramente a face à roxa Aurora, felicidade, de que poucas vezes gozam os tristes e enfermiços habitadores desta cidade; apenas ela principiou a despontar no horizonte, começaram logo as embarcações de guerra surtas no porto a salvar, conforme o costume, alegrando-se e a seu modo mostrando grande alegria o adorno, com que as enfeitavam as muitas e diversas cores, e tamanhos das bandeiras, que desenroladas de repente tremulavam no ar: em terra as for-talezas salvando excitavam alegria nos moradores, que se preparavam para festejar o natalício do Príncipe, que amam, respeitam, e admiram.

Passadas poucas horas começaram a ver-se passar carru-agens lindas e ricas, que conduziam os que o procuravam cumprimentar, procurando cada um exceder aos outros em luzimento; e apenas o relógio apontou meio-dia, logo se divisou ao longe o Exército, que marchava, vindo na van-guarda a cavalaria, no centro a infantaria, e na retaguarda a cavalaria da Polícia; e tendo dado volta à roda do Palá-cio, se postaram no Largo, fazendo um quadrado, dentro do quadrado Terreiro do Paço; e tendo todos os 4 regimentos apresentado as armas, com bandeiras por terra, à vista do Príncipe, começou a artilharia a salvar para a banda do mar, e acabados os 21 tiros começou a infantaria a dar a salva de alegria; e repetido isto três vezes, à última se seguiu a salva das fortalezas, naus, e mais embarcações de guerra, nacio-nais e estrangeiras, surtas no porto desta cidade; e feitas de novo as continências, se puseram em ordem de retirada, e se retiraram, mas logo tornaram a vir, e se puseram da mesma

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forma, e tornando a fazer as continências, ensarilharam as armas, e foram descansar, e gozar do refresco, que a cada regimento havia mandado dar o Príncipe no dia antecedente, que eram 8 bois a cada corpo; e os oficiais buscaram a messa de Estado, que se lhes tinha preparado, e para a qual haviam sido convidados (a).

Entretanto que isto se fez, o Príncipe Nosso Senhor e mais Pessoas Reais deram o beija-mão do costume, e jantaram depois de se terem lido as escrituras do casamento, que leu o Excelentíssimo Conde de Aguiar460 (b).

Neste meio tempo se armou um estrado de madeira da lar-gura de 18 palmos, que corria desde a porta principal do Palácio até à da Capela Real, de que dista uns 600 palmos; dos lados deste estrado, alcatifado com alcatifas da Índia, se levantava uma teia de 5 palmos de alto, coberta de seda carmesim, e por toda a sua extensão de 20 em 20 palmos de uma e outra banda estava levantada uma coluna, tam-bém coberta de seda carmesim, igualmente adornada, como a teia, de galões de prata, tendo cada coluna no alto um va-rão de ferro, também pintado de encarnado, e arqueado para dentro, que sustentava um lampião de vidros, com encaixes azuis-claros: as janelas e portas de todo o largo do Palácio e frontispício da Capela, tudo estava, armado de cortinas e sanefas de damasco; mas o passeio e escadas do Palácio, ex-cedia tudo; tudo estava coberto de veludo e damasco carme-sim, fazendo sobressair tudo isto os ricos lustres de cristal pendentes nos lugares, onde costumam estar dependurados os lampiões ordinários.

Apenas os raios do sol escondendo-se envergonhados dos que vinham a nascer deixaram livre o corredor, que os es-trondos fizeram, subindo ao ar uma girândola de fogo, e sal-vando logo as fortalezas e embarcações de guerra, nacionais

460 Fernando José de Portugal e Castro

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e estrangeiras, e tocando todas as músicas dos regimentos, começou a sair a Procissão da Corte.

Ia antes de tudo a música de um dos regimentos, suprindo a falta dos Timbaleiros reais, e logo atrás destes 6 Porteiros da cana, com grandes maças de prata ao ombro, e outros sem elas, eram seguidos de 6 homens com umas vestiduras de damasco de ouro encarnado, que pouco se diferençavam de dalmáticas461, e a estes chamaram Arautos e Passavan-tes, que eram seguidos dos 3 Reis d’ armas, vestidos com as suas fardas de criados particulares, que são do Príncipe Nosso Senhor, levando as insígnias do seu ofício penden-tes do pescoço, e imediatamente a estes iam dois de capa e volta, que são Porteiros da cana, e logo se seguiam muitos Oficiais militares de mar e terra, muitos Desembargadores, muitos Eclesiásticos, Prelados das religiões, Moços da câ-mara, Guarda-roupas, Confessores, companheiros destes, os Bispos eleitos de Pernambuco462 e Angola463, o Prelado de Moçambique464, o Núncio Apostólico465, os Embaixadores de Inglaterra466 e Espanha467, e os Fidalgos cobertos, como o Príncipe lhes havia mandado pelo Mestre-sala na Casa do Dossel: e logo ia o Príncipe Nosso Senhor, levando à sua ilharga o Senhor Infante de Espanha D. Pedro Carlos de Bourbon, e logo se seguia o Príncipe D. Pedro e o Senhor Infante D. Miguel: a estes se seguia a Princesa Nossa Senho-ra D. Carlota Joaquina, levando pela mão sua filha a Senhora D. Maria Teresa, Princesa da Beira, acompanhadas aos lados pelos Excelentíssimos Conde de Caparica468, e D. Manuel de

461 No original: dialmaticas462 D. Fr. António de São José Bastos463 D. Fr. Francisco António de Santa Úrsula Rodovalho464 D. Vasco José de Nossa Senhora da Boa Morte Lobo465 Lorenzo Caleppi466 Lord Strangford , Percy Clinton Sydney Smythe467 Marquês de Casa Irujo, Carlos Maria Martinez de Irugo y Tacon468 D. Francisco Xavier de Meneses da Silveira e Castro

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Sousa, sustentando-lhes as caudas do donaire a Excelentíssi-ma Camareira-mor469; e seguindo-se às 3 Infantes D. Maria Isabel, D. Maria Francisca e D. Isabel Maria, a Princesa D. Maria Benedita, levada pelo braço do Excelentíssimo Mar-quês do Lavradio470, e sustentando-lhe a cauda do donaire a Excelentíssima Marquesa de Lumiares471; ia esta seguida de 4 Damas, vestidas também de donaire, que foram as Ex-celentíssimas D. Maria Eugénia472, da Casa de Redondo, D. Maria do Resgate473, da Casa de Valadares, D. Mariana de Almeida474, da Casa de Lavradio, e D. Bárbara da Cunha, da Casa dos Povolides; e fechava a Procissão outra música de regimento, pela falta dita dos Timbaleiros reais.

Chegados que foram à porta principal da Capela Real, o Ex-celentíssimo Bispo Capelão-mor475 paramentado, que já a esse tempo havia descido do Secretário, acompanhado dos Ilustríssimos Monsenhores Presbíteros e Diáconos, e dos Cónegos todos paramentados, e de todo o mais Corpo da Capela, lhes lançou água benta, conforme o costume, e se rompeu logo uma grande sinfonia, e continuando a Procis-são até à Capela do Santíssimo, aonde feita a oração breve, se levantaram e prosseguiram para a Capela-mor na mesma ordem: e logo feitas as devidas reverências, e tendo-se as-sentado nos seus tronos as Pessoas Reais e Bispo, e tomando os seus lugares os da comitiva, o Bispo descendo do seu sólio, se foi assentar em um faldistório no meio do subpe-dânio do altar, acompanhado dos Diáconos Defensores, as-

469 D. Mariana Xavier Botelho470 D. António Máximo de Almeida Portugal471 D. Juliana Xavier Botelho472 D. Maria Eugénia Manuel, mulher de D. Fernando Maria de Sousa Coutinho, 14º Conde de Redondo473 D. Maria do Resgate de Noronha, filha do 6º Conde de Valadares474 D. Mariana de Almeida Portugal, filha do 3º Marquês do Lavra-dio475 D. José Caetano da Silva Coutinho, Bispo do Rio de Janeiro

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sistindo-lhe o Deão ou Decano476; e logo descendo do seu trono o Príncipe Regente Nosso Senhor, trazendo pela mão o Noivo, e a Princesa Nossa Senhora a Noiva, estando todos em pé, excepto o Bispo, se começaram os interrogatórios; e completas todas as cerimónias, que prescreve o Pontifical Romano, e tendo-se restituído os Noivos ao Trono, o Bispo Capelão-mor retirando-se do lado da Epístola, em que tinha lançado as bênçãos nos Noivos ajoelhados em almofadas, se pôs no meio do altar, e logo entoou o Te Deum; e dado o sinal de repicarem os sinos, subiram girândolas de fogo ao ar, que logo foram seguidas de salvas de artilharia e mos-quetaria; e acabada que foi a música, que compôs o célebre compositor Marcos477 para o dito hino Te Deum, se tornaram a pôr em ordem, e na mesma, em que vieram, se retiraram, e chegando à Casa do Dossel, tornaram a salvar as fortalezas, naus e tropa; e tendo os Senhores dado audiência a todo o acompanhamento, se publicaram muitos despachos de todas as ordens, e logo o Príncipe Nosso Senhor e a Princesa com todas as mais Pessoas Reais foram apresentar os Noivos a Sua Majestade a Rainha478 Nossa Senhora, que como tal os recebeu; e levando-os logo ao quarto, que se lhes havia pre-parado, e que só então se abriu, ali os deixaram, e logo cea-ram, e se prepararam para ir para a ópera, para onde foram às 9 horas.

O Largo do Palácio na retirada oferecia a vista mais bela, e a mais alegre, que se pode imaginar; as luminárias, que antes se tinham acendido em todas as janelas e portas, as da torre da Capela Real, as do frontispício da Igreja dos Terceiros do Carmo, que fica contígua à Capela, os brigues de guerra e a fragatinha, ancorados à borda do cais, fazendo com ele uma linha paralela, e iluminados todos, todo este número

476 Joaquim de Nóbrega Cão e Aboim477 Marcos Portugal478 D. Maria I

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sem número de luzes faziam competir com o dia a noite, que por si mesma estava clara, alumiando-a a lua, com mais de ametade da sua face: os ranchos inumeráveis de Senhoras, que então mais que nunca apareceram para ver o que nun-ca esperavam ver, e o conseguiram, porque além de toda a iluminação do Largo, as luzes, que os Moços da Câmara levavam à roda dos Senhores, os deixavam bem ver, e admi-rar os brilhos dos diamantes, que parece queriam competir com os das estrelas, que no céu se não podiam ver pelo luar: estes ranchos, sendo sucedidos de outros e outros, cobrindo o terreno, o confundiam com a mais bela sala, por onde se descobria uma admirável vista de perspectiva nas luminárias da rua direita, que toda se descobre de um lado do Largo, que então parecia mais um teatro, onde se esperava alguma representação cómica, do que terreno descoberto, donde se não podia separar a gente, que além da vista tão bela, gozava da viração agradável, que corria.

Acabada a ópera, foram os Noivos levados ao seu quarto, e pela manhã logo foram visitados pela Princesa D. Carlota, e deram a mão a beijar aos criados, que os foram cumpri-mentar, e às 11 horas e meia, tendo ido ambos ao quarto do Príncipe Nosso Senhor, este os recebeu, e acompanhou com todos os seus Filhos e Filhas a tomar a bênção à Rainha Nos-sa Senhora e visitar as Tias479.

De tarde procuraram satisfazer ao povo, que concorria dian-te das janelas para os ver, e a seu modo cumprimentar, não se esquecendo dos pobres, socorrendo-os (c) mesmo da ja-nela, com sua real mão.

À noute, tendo-se iluminado o Largo do Palácio, como no dia antecedente, nele o lado desimpedido de casas e que olha para o mar, parecia também estar iluminado, porque as re-

479 D. Maria Francisca Benedita e D. Maria Ana [ou Mariana], ir-mãs de D. Maria I

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feridas embarcações ancoradas e iluminadas, como disse, no dia antecedente, ofereciam uma nova e agradável vista, pelas muitas mudanças, que faziam; porque as lanchas, es-caleres, saveiros, e canoas todos iluminados, ora passando por um, ora por outro lado delas, pareciam oferecer novas vistas e perspectivas.

Neste tempo concorreram às salas toda a Nobreza, e as pes-soas de maior representação, e tendo dado 9 horas se co-meçou a preparar o necessário para a serenata, que pouco depois começou na Sala grande do Dossel, que estava mui-to bem iluminada: é esta sala a maior, a mais bem situada, e a mais bem adornada das do Palácio; tem ela 3 janelas, que olham para o nascente, para onde é a porta principal do Paço, que dista do cais 20 ou 30 passos: para o lado do norte tem 4 janelas, e é todo o comprimento da sala; a esta se segue outra com duas janelas, e é a primeira do Dossel, e a esta se segue outra também com duas janelas, que bem como as outras vêem todo o Largo, e a esta última se chama a Sala da Tocha.

Na parede da sala grande, que olha para o nascente, tapa a janela do meio o Dossel de veludo carmesim, que cobre a cadeira e mesa da Audiência do Príncipe, que fica elevado do chão 2 degraus: logo adiante destes se puseram 12 cadei-ras magníficas de gosto inglês, estofadas de damasco azul claro; nelas se assentaram todas as Pessoas Reais, na mesma ordem, em que se assentaram antes do casamento, isto é, a Noiva à esquerda do Senhor Infante D. Miguel, e o Noivo à esquerda da Senhora Infante D. Maria Ana; e atrás das cadeiras dos Senhores se assentaram no chão, e pelos de-graus todas as Damas, Açafatas, e mais Senhoras, que para isso tiveram licença; e os Camaristas, Veadores, Ministros Estrangeiros, Guarda-roupas, Moços da Câmara em pé ro-deavam a música vocal e instrumental, que estava no meio da parede oposta às janelas, ocupando o resto da sala muita

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gente da que costuma entrar na Sala do Dossel, e ainda mui-tos dos criados inferiores; e depois de se ter cantado e tocado por espaço de hora e meia, se retiraram os Senhores aos seus respectivos quartos.

Era imenso o povo, que concorreu ao Largo para ver e ouvir, e os que não ouviam, gozavam a música dos regimentos, que alternadamente tocavam no pátio e em um coreto que se ti-nha preparado no ângulo da Sala do Dossel: no dia seguinte se repetiu tudo e do mesmo modo do dia antecedente, depois de ter vindo o Príncipe com seus Filhos, e o Noivo com a Noiva de verem por mar as luminárias.

No seguinte dia às 11 horas e meia tornou a Tropa a vir, e postar-se no Largo, da mesma sorte que no dia 13 e dado o sinal, e feitas as continências do estilo, começaram as salvas de artilharia, a que se seguiram as de mosquetaria, suceden-do à última salva as das fortalezas e embarcações de guerra; e depois de retirada a Tropa, se começou o beija-mão, e se publicaram alguns despachos.

De tarde o Príncipe com seus Filhos e os Noivos saíram a passear nas carruagens grandes, que se (d) chamam aqui de Estado, e que no reino eram as mais ordinárias, para cor-rer, e recolhendo-se às 7 horas, se acenderam as luminárias, como nos dias antecedentes, e pouco depois por um arco, que há nas casa do lado oposto ao principal do Palácio, saí-ram 6 cavaleiros (e) vestidos de branco, tocando trombetas, e após eles se seguiam 13 ou 14 pares, vestidos também de branco, igualmente (f) bem montados em soberbos cavalos: tinham uns, divisas encarnadas, que consistiam em listrões desta cor, pendentes do ombro esquerdo até à coxa direita; e os outros os traziam da mesma forma, mas de cor azul, tendo os rostos mascarados: marchavam a passo grave até defronte e perto das janelas, em que estavam os Senhores, levando cada um uma tocha acesa na mão direita, e logo

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fazendo alto as trombetas, começaram os cavaleiros em boa e ordenada disposição a correr o terreno, que a muito cus-to lhes tinha preparado a cavalaria da Polícia; e mostrando muita destreza, ora galopando para a direita, ora para a es-querda, ora trotando largo, ora apertado, ora fazendo círcu-los muito dificultosos por muito pequenos, e conservando sempre a boa ordem, se dividiram em 2 corpos, e saindo um cavaleiro ao meio do terreiro, que se formava entre eles, e fazendo um círculo, foi tirar o par, que lhe ficava fronteiro, correndo sempre, como o 2º, que fez o mesmo, e os outros até ao último, e logo largando as tochas, mesmo a galopar, formaram uma espécie de guerra, disparando a pistola, que traziam encoberta; e logo puxando da espada, e esgrimindo com ela uns contra os outros, tornaram a tomar as tochas, e se retiraram na mesma ordem, e que tinham vindo, mas por diverso caminho para rodearem, e serem vistos de todo o Paço; e logo se deu princípio ao fogo: este se armou no lado do terreiro do Paço, que olha para o mar: tem ele 420 palmos, que todos ocupavam a armação, que oferecia uma alçado lindo não menos pela nobreza da arquitectura, como pelo delicado da pintura. Representava ele uma vista de fun-do de jardim bem majestoso. No lado próximo ao ângulo da Sala do Dossel, em que estava armado um coreto de música vocal e instrumental, se via uma porta tapada, e em fundo branco se lia:

O povo grato te envia,Princesa, com reverênciaAplausos mil neste dia:

Destinou-te a ProvidênciaA salvar da tirania

Dos Bourbons a descendência.

Na porta do lado oposto, que lhe correspondia na simetria estava escrito:

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Ouves, Príncipe, soandoDo teu povo aclamações,

Que irão sempre redobrandoNas futuras gerações:

Faz-se imortal quem, reinando,Reina sobre os corações.

No alto de cada uma destas portas sobre o triângulo ou exiema (?), se formava um pedestal, que sustentava uma vaso, em cujos bordos descansavam o colo dois golfinhos, que levantavam as caudas enroscadas a prumo, e destas portas até à divisão principal, isto é, do meio, havia de cada parte 3 vãos e 6 divisões menores, de igual vista: os vãos estavam pintados com tal arte, que fingiam fundo de bos-que, e as divisões tinham um óculo redondo com o mesmo fundo, sendo a moldura adornada de 2 golfinhos, cujas ca-beças o acompanhavam até ao meio, e as caudas se cruza-vam no alto.

Na divisão principal se via um quadro muito bem moldura-do, e nele se via no alto um génio, que com os braços abertos tocava com a mão direita uma elipse, em que estava retra-tado o Príncipe Regente Nosso Senhor, e com a esquerda outra, que representava a Princesa Nossa Senhora, unindo estes dois retratos uma faixa, que dos lados extremos dos retratos sustentavam dois génios, e no liso da fixa se lia:

Et nova progenies e caelo dimittitur alto

No plano do quadro se via em estatura ordinária o Himeneu, ou o deus, que a antiguidade fingiu presidir aos casamentos, tendo nas mãos o seu emblema distintivo: tinha ele aos seus lados dois pedestais de bem fingida pedra, que sustentava o da direita uma elipse, que retratava o Noivo, que tinha no lado o escudo da Casa dos Bourbons, que vem a ser 3 flores

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de lis em campo azul; e vendo-se encostada ao pedestal uma âncora, se lia no liso da pedra:

Promete no laço amávelDo Esposo a honra e firmeza

Ventura mais perdurável.

O da esquerda, que sustentava o da Noiva, que também tinha ao lado um escudo igual ao do Noivo, deixava ler:

Deu à Esposa a NaturezaGénio dócil, modo afável,Graça honesta e gentileza

Por cima das molduras deste grande quadro estavam as Quinas Portuguesas, sustentadas sobre a varanda, que corria toda a fachada do frontispício, enfeitadas por cima com bambolinas de veludo carmesim, com forro de armi-nhos pintados na base de uma grande pirâmide de figura cónica, em cuja cúspide estava uma grande estrela dou-rada.

Começou o fogo, subindo ao ar 100 girândolas de diversos fogos do ar, e logo as rodas, que estavam nos óculos, co-meçaram a andar, e depois subindo o rastilho aos vasos, se comunicou a diversas pirâmides quadradas e sextaradas, e depois de algumas girândolas de estrelas, apareceu todo o frontispício iluminado de repente, e quando se amortecia a iluminação, rebentaram as bombas, que cada luz tinha no fundo, e logo na varanda apareceu o chuveiro de valverdes, que parecia uma loura seara, ondeante com o vento bran-do; e logo seguindo-se uma salva real de bombas grandes, 100 girândolas de fogo, como as do princípio, deram fim ao fogo, que durou quase uma hora; e tendo a música do coreto cantado e tocado, se deu fim ao divertimento, publicando--se novos despachos: mas contar a alegria do povo imenso, que encheu o Largo, que por todos os lados oferecia a vista

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mais bela, mais agradável e encantadora, não cabe na pena, e muito menos na de quem vive sentido de ver isto em países tão diferentes, e por um modo muito mais diferente do que seria no país natal!

Mas assim mesmo me não quero eximir de lembrar, que mais de 150 janelas, que vêem o Largo, não havia uma tão só, que não estivesse apinhada de objectos, dignos de se po-derem ver, bem pela sua riqueza e formosura: até os mesmos telhados tinham gente! No Largo não cabia mais; e isto ten-do havido a providência, que muito mal poderão [puderam?] executar um regimento inteiro, defendendo o fogo, e a Guar-da toda da Polícia postada pelas entradas do Largo; não per-mitindo que passasse senão aquelas pessoas, que pelo asseio e modo não dessem motivo a desconfiar-se serem capazes da mínima desordem, que não houve.

Vidimus hanc, magne o Princeps, longo ordine pompam

Fantaque adhuc animis vivunt spectacula nostris!

Notas originais ao texto

(a) Não se efeituou o convite aos oficiais por não chegar a tanto a guarnição da mesa

(b) Estas escrituras estão suprimidas pelo dito Conde de Aguiar, que nem o Diabo lhas pilha: ficou-se lam-bendo com a grande jóia, que por isso teve!

(c) Acrescendo a estas acções caritativas o lindo galan-teio de lançarem papelinhos vários embrulhados aos pobres, aliviando com seus risos a tristeza de suas condições

(d) Hoje não é assim; porque já aqui existem os grandes e riquíssimos coches próprios para tais dias.

(e) Em nome mais próprio – garotos –

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(f) Isto é, os miseráveis sendeiros da cavalaria da Po-lícia.

(g) Onde se ler a palavra divisão ou divisões estava no original a palavra membro, que troquei; porque es-candalizava os ouvidos dos leitores. O autor, como é mouco, não tem que padecer nesse órgão.

N.B. – As escrituras, de que acima se fala, foram feitas pelo Desembargador do Paço, Chanceler-mor, Tomás António de Vila Nova Portugal.

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2. Cartas de Joaquim Severino GomesPara

• El- Rei D. João VI

Senhor,

Com o mais profundo respeito vou por este modo prostrar-me aos Reais Pés de V. Mag.de e beijar-lhe a Sua Augusta Mão por tantas honras e graças que tenho recebi-do da Real Munificência de V. Mag.de sendo para mim a de maior distinção, aquela de escrever directamente ao meu In-comparável Soberano, a quem tudo devo e por quem darei a própria vida.

Logo que cheguei a Lisboa com 70 dias de viagem, es-crevi ao Ministro de Estado de V. Mag.de, Marquês de Aguiar, dando-lhe parte que sem perda de tempo partiria para Madrid; porém, como o meu companheiro o P.e Frei Cirilo Alameda, pelo seu estado, não podia correr a posta a cavalo, expedi-mos um correio por ordem dos Governadores do Reino480, com duas cartas, uma do P.e Cirilo para S.M. Católica em que dava conta da sua missão e a outra para o Ministro de V. Mag.de nesta Corte, em que lhe referi tudo quanto era conveniente para satisfazer os veementes desejos que tinham geralmente todos de saber da próxima vinda das Augustas Noivas, reser-vando em nosso poder as cartas e despachos de que éramos portadores para serem entregues em própria mão.

Sendo o nosso dever e mais empenho o chegar quanto antes a Madrid, julgámos melhor o ir de Lisboa a Sevilha

480 Regência de Portugal, na ausência da Corte em Rio de Janeiro.

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e ali tomar a carruagem de Posta, gastando por este modo, nove ou dez dias, em vez de catorze que tanto se precisam pelo caminho de Extremadura. Assim o praticámos de ma-neira que chegámos aqui em o dia 21 do corrente [Agosto]. Sem perda de tempo foram S.M. e Altezas481 entregues das cartas e o Ministro de V. Mag.de dos ofícios de que tive a honra de ser portador.

Bem pode V. Mag.de julgar com que alvoroço fomos recebidos não se contentando S. Mag.de e Altezas de saberem o que se lhes dizia por escrito, mas para dar mais provas da sua Real satisfação nos concederam audiências para se informarem circunstanciadamente de toda a Real Família, mostrando os maiores desejos de quem cheguem breve e fe-lizmente as suas Augustas Noivas.

Dentro em três ou quatro dias partirei daqui para Cá-dis com o P.e Frei Cirilo de Alameda, aonde convém espe-rarmos a Rainha e a Ser.ª Sr.ª Infanta e de ali terei a honra de escrever a V. Mag.de pois o Ministro D. José Luis de Sousa de tudo mais dá conta ao Ministro de Estado Marquês de aguiar, como seu costumado zelo e actividade.

Deus conserve a preciosa vida de V. Mag.de por di-latados anos, como desejam e hão de mister todos os fiéis vassalos de V. Mag.de

Madrid, 25 de Agosto de 1816

Senhor: Aos Reais Pés de V. Mag.de – @ Joaquim Severino

Gomes

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481 Rei Fernando VII e familiares, nomeadamente, o infante Carlos Maria Isidro.

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• Marquês de Aguiar

Ilust.º e Ex.m.º Snr.,

Pelos últimos ofícios do Ministro de S. Mag.de na Cor-te de Madrid e pela carta que tive a honra de escrever a V.ª Ex.ª avisámos estar mui próxima a minha partida para Cádis devendo sair dali pouco depois do dia 21 do mês passado [Agosto] em que cheguei. Fui como devia despedir-me de S. Mag.de Católica, dizendo-me por duas vezes que desejava escrever por mim e pelo P.e Cirilo à Sua Augusta Noiva e que aprontaria as suas cartas com toda a brevidade.

O Ser.º Snr. Infante D. Carlos também nos manifestou iguais desejos, de maneira que, somente tivemos as cartas em o dia 3 do presente mês [Setembro; em o seguinte de madrugada partimos em carruagem de posta e quando che-gámos a Bailén às 8 horas da manhã do dia 6 encontrámos dois correios, os quais iam apostados a qual chegaria pri-meiro para dar a el-Rei Católico e ao Snr. Infante D. Carlos a agradável notícia da chegada ao Porto de Cádis das Suas Augustas Noivas em o dia 4 do presente mês, com 63 dias de navegação, a mais feliz, pois que, em toda a viagem go-zaram as Reais Pessoas da melhor saúde e em geral toda a família e guarnição da Nau. Partimos imediatamente para Cádis, correndo dia e noite, chegando aqui em o dia 8 pela manhã. Logo fomos a Palácio a beijar a mão à Rainha e Ser.ª Snr.ª Infanta, que se tinham recebido a bordo da Nau S. Se-bastião em o dia 5 pela manhã em virtude da procuração de que se achava munido o Conde de Miranda, Mordomo-mor de S. Mag.de.

Nada mais poderei dizer hoje a V.ª Ex.ª se não que este Povo de Cádis se tem esmerado em obséquios e demonstra-ções de alegria e tão excessivas que já se tem dado ordens

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para suspender tão grandes gastos. Sei que a Rainha de tudo dá conta a seus Augustos Pais, por isso, omito a relação por ter chegado há poucos dias. Julgo que o Snr. Marquês de Valada também dará conta de tudo o que é relativo à sua Co-missão e só me resta dizer a V.ª Ex.ª que o Snr. D. José Luís de Sousa sairia de Madrid, logo que chegasse a primeira no-tícia e o espero aqui a todo o instante. As Augustas Noivas partem amanhã desta cidade e de Sevilha terei a honra de escrever a V.ª Ex.ª no caso que ainda ali não tenha chegado o Ministro de S. Mag.de.

Deus guarde a V.ª Ex.ª muitos anos.

Cádis 10 de Setembro de 1816 - @ Joaquim Severino Go-

mes

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Carta de Bernardo José de Abrantes e Castro para El-Rei [D. João VI] com notícias do estado de saúde da Princesa [D. Maria Teresa] desde que saiu de Aldeia Galega no dia 13 de Agosto

até àquela data e da evolução do mesmo.482

Senhor

Pelo Diário que fiz, desde o dia 13 de Agosto, em que S. A. R. saiu de Aldeia Galega até o dia 3 do corrente e que no correio passado foi remetido a Vossa Majestade, conhe-cerá Vossa Majestade quais foram os sofrimentos de S. A. R. até aquele dia: mas, como as causas morais, que tanta força exercem, sobre o coração e espírito da augusta Filha de Vossa Majestade, longe de terem diminuído, se têm au-mentado desde o dia em que a Princesa entrou no Palácio de Sua Majestade Católica; era natural, que também os seus padecimentos se aumentassem e crescessem.

Assim se verificou. Se em toda a viagem S. A. R. comeu e dormiu sempre mui pouco; menos e muito menos, dormiu e comeu, desde o dia em que chegou a Madrid.

A Princesa não queria, por modo algum, pousar em Palácio: infelizmente porém fez-se e urdiu-se tal manejo, que não foi possível evitar esse desastrado passo. Fácil seria a S. A. R. cortar todas as intrigas, falando claro a Sua Majestade Católica e tomando aquele tom decisivo e nobre, que com-pete a uma Princesa independente, tutora de seu Filho, de cuja educação e interesses veio tratar, fazendo o penosís-

482 BA – 54-IX-49, nº 7; Grafia actualizada, abreviaturas desen-volvidas, pontuação original. Transcrição da responsabilidade da Dr.ª Conceição Geada, a quem agradecemos a gentil colaboração.

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simo sacrifício de abandonar a sua Pátria, seus Irmãos, sua Mãe e mais que tudo seu augusto Pai, que a Princesa idola-tra cuja imagem tem sempre presente e que na distância de cem léguas respeita submissa, como se estivesse presente. Receando desgostar a Vossa Majestade, a Princesa longe de falar resoluta, entrou no baldado empenho de ver se obtinha por meio do tempo e empregando maneiras suaves, o que a justiça, o decoro e a política lhe não podiam negar.

Entretendo483 que a Princesa assim procedia, as intrigas cres-ciam e cresciam com elas os sofrimentos e desgostos de S. A. R., que subiram a tal ponto, que o seu espírito sucumbiu. No dia 5 do corrente a Princesa, apesar de estar no uso de remédios corroborantes, sentiu-se extremamente abatida, a ponto que mal e muito mal, se podia ter nas pernas.

No dia 6, tendo S. A. R. jantado pouquíssimo, pouco tem-po depois o lançou; e pelas três horas caiu em um sono tão profundo, que sendo eu chamado para ir ver a Princesa às seis horas da tarde, achei S. A. R. em um profundo letargo, coberta de um suor frio e frias como gelo suas mãos e seus pés: seu pulso tão pequeno e tão frequente, que mal se perce-bia e não se podiam contar as pulsações. Debalde se chama e grita pela Princesa: em vão se abala seu corpo; debalde procuro assentar a Princesa no mesmo canapé em que estava deitada: seus membros sem vigor ficavam onde se punham e a sua cabeça caía ora a um, ora a outro lado: todos os seus sentidos estavam perdidos; e a palidez do seu rosto era a palidez da morte. Eu deixo à consideração de Vossa Majes-tade o formar ideia do como ficaria o meu pobre coração; como ficaria seu augusto Neto e toda a Família da Princesa! Mandei-lhe meter os pés em água e vinagre quente a es-caldar, esfregando-lhe com muita força as pernas do joelho para baixo: mandei-lhe aplicar o espírito de sal amoníaco, ao

483 Leitura em dúvida.

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nariz e estímulos mecânicos sobre a pele: e depois de algum tempo a Princesa começou a ouvir alguma coisa, o que dava a entender por acções. Continuaram-se aqueles meios; e três quartos de hora depois, pôde S. A. R. pronunciar algumas palavras. Tomou um caldo pelas oito horas; animou-se um pouco e pôde então conversar alguma coisa: tomou segundo caldo às nove e meia: deitou-se às dez: mas a Princesa pas-sou a noite em grande agitação.

Pelas sete horas da manhã do dia 7, visitei S. A. R. que achei muito abatida e queixando-se de grande peso na cabeça, que atribuí em grande parte à constipação de ventre, muito ordi-nária na Princesa; e desta vez havia três dias, que nada tinha obrado. Prescrevi-lhe por isso libra e meia de cozimento de fármaco, em que mandei dissolver onça e meia de sal amar-go e a que fui ajuntar onça e meia de xarope de chicória composto. Prescrevi-lhe igualmente mezinhas em que entra-va açúcar mascavado, azeite e sal comum.

S. A. R. passou um pouco melhor até às 5 horas da tarde; mas então foi atacada de repente e caiu em um sono ainda mais profundo e em mais profundo letargo, do que no dia antecedente; porque apesar de se lhe aplicarem os mesmos meios, que no outro dia, a Princesa não pôde falar alguma coisa, senão às oito horas. Resolvi-me a pôr-lhe, então, cáus-ticos nas barrigas das pernas.

Eram sete horas e meia, quando a Senhora Infanta D. Ma-ria Francisca veio visitar sua augusta Irmã; e eu aproveitei esta ocasião para rogar à Senhora Infanta, que mandasse vir imediatamente o Primeiro Médico de Câmara de Sua Majes-tade Católica, para conferir comigo sobre o estado em que a Princesa se achava.

A Senhora Infanta assim o fez nem era possível recusar-se: meia hora depois chegou o médico cujo nome neste momen-to me não lembra: fiz-lhe uma exposição fiel dos sofrimentos

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de S. A. R. e das causas morais, multiplicadas e deprimen-tes, que haviam levado a Princesa àquele estado: fiz-lhe ver, que não eram os muitos remédios de botica, que haviam de curar S. A. R., mas sim a pronta remoção daquelas causas; o ar de campo; e a volta da Princesa a seus antigos hábitos, ao seu antigo modo de vida, às suas distracções costumadas, livre de intrigas e de penosas etiquetas: que era preciso ab-solutamente sair do Paço, onde nunca deveria ter entrado e fugir do quarto, que sua augusta Irmã lhe destinara, contra a vontade de El-Rei, que o achou indecente; e com escândalo público de todos os madrilhenos.

O Primeiro Médico de Sua Majestade Católica concordou perfeitamente comigo; e perguntando-lhe eu se tinha dúvida em irmos ambos dizer tudo o em que tínhamos assentado à Senhora Infanta D. Maria Francisca e mesmo a El-Rei; res-pondeu-me, que estava pronto. Voltámos pois ao quarto da Princesa e ali disse mui claramente a sua augusta Irmã tudo o em que tínhamos assentado: e a Princesa, que a essa hora já percebia tudo o que se dizia, mas que ainda não podia falar, fixou os olhos em mim, pôs o dedo na boca, indicando--me, que não falasse em tais coisas, diante de sua augusta Irmã: mas não me era possível obedecer então à Princesa; e não só continuei a falar e a dizer à Senhora Infanta tudo o que julguei do meu dever e que podia contribuir para o sossego de espírito e restabelecimento da saúde de S. A. R., cuja saúde e vida Vossa Majestade me tinha feito a honra de encarregar; mas fui dali, com o Primeiro Médico de S. M. Católica, falar a El-Rei, que ouviu com muita atenção tudo o que lhe expusemos e a que Sua Majestade respondeu, que se fizesse tudo o que fosse a bem da saúde da Princesa.

A Princesa, sempre receosa de dar algum passo, que possa desagradar levemente a Vossa Majestade, tinha-me dois dias antes, proibido de ir falar a El-Rei, como eu queria, sobre os seus negócios, que tinham desgraçadamente influído e

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desarranjado de um terrível modo a sua saúde: mas quando soube depois a maneira com que eu tinha conduzido este ne-gócio e como me tinha aproveitado da presença da Senhora Infanta para lhe pedir, que mandasse chamar o Primeiro Mé-dico da Real Câmara; e soube circunstanciadamente tudo, o que eu tinha feito e o bom resultado, que se tinha obtido, estimou.

Em a noite do dia 7 para o dia 8, passou S. A. R. muito incomodada, por causa dos cáusticos; mas não teve ataque algum; e só continuou a ter grande peso de cabeça. Eu tinha proposto na conferência a infusão de valeriana silvestre e cássia, com um pouco de sal amargo, para ver se o ventre da Princesa se soltava: concordou-se e S. A. R. começou a tomar este remédio: mas até às seis horas da tarde nenhum efeito produziu. Contudo, a Princesa passou todo o dia 8 sem repetição dos ataques, que teve nos dias 6 e 7: mas o abatimento, o fastio, o peso da cabeça etc. eram os mesmos; e eu continuei ainda na persuasão de que a prisão de ven-tre concorria muito para aqueles padecimentos de S. A. R. e, por isso, às 7 horas da noite lhe mandei deitar primeira e segunda mezinha de infusão teiforme de camomila com electuário de Sena e sal amargo; mas estas mezinhas e o remédio, que estava tomando, só em a madrugada do dia 9 produziram o desejado efeito; porque o ventre se soltou, por três ou quatro vezes, mui copiosamente e com um fétido extraordinário, como era de esperar.

Pelas dez horas e um quarto da manhã a Princesa sentiu que ia novamente ter o mesmo ataque do dia 6 e 7; teve--o; mas saiu dele sem aplicação de remédio algum e sem as suas criadas tal advertirem. S. A. R. quis levantar-se; mas ao vestir-se, sentiu-se tão agoniada, que se persuadiu que era aquele o último momento da sua vida: seguiu-se a este estado de aflição e agonia a perda da vista e um desmaio, que felizmente durou pouco tempo. Ficou mui perturbada

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e abatida; tomou duas colheres de água com licor anódino, éter sulfúrico e tintura de ópio, que lhe fez muito bem: uma hora depois tomou um bom caldo de galinha e sossegou. Pelas dez horas tomou segundo caldo.

Continuando S. A. R. a sentir grande peso de cabeça, bem que menor do que era antes de se lhe soltar o ventre, re-solvi-me a mandar-lhe aplicar seis sanguessugas atrás das orelhas. Uma hora depois da aplicação das sanguessugas a Princesa achou-se muito mais aliviada.

Jantou às duas horas um pouco mais do que até ali: conser-vou-se muito esperta até às três horas: pegou então no sono; dormiu mui naturalmente quase hora e meia; depois acordou muito bem; mas com bastante sede. Continuou a conversar mui bem; mas às cinco horas e um quarto queixou-se de muito calor (e realmente está insuportável) e alguma dor de cabeça. Desde as cinco horas da tarde, até às nove e meia, teve S. A. R. imensas visitas, inclusivamente as de Sua Ma-jestade e Altezas. Conversou muito; e às nove horas e meia tinha S. A. R. grande dor de cabeça, calor de pele, pulso fre-quente, sede, (de que se tinha queixado em todo o dia e que por isso lhe aconselhei o uso de laranjada, de que usou). Às dez horas tomou uma pouca de sopa de galinha e uma colher de geleia. Deitou-se às 10 ¼.

Indo pelas seis horas da manhã para o sítio chamado Soma-saguas ver se as casas eram capazes para se mudar para lá S. A. R., ao menos por algum tempo, só pude visitar a Princesa (hoje 10 do corrente) pelas dez horas e meia da manhã. Achei S. A. com muita febre, grande dor de cabeça calor de pele mui grande, a língua seca, dores pelo ventre e sem ter obrado, havia já trinta e duas horas. Mandei-lhe tomar uma mezinha e lhe receitei (para tomar copos de quatro em quartilho, de quatro em quatro horas), um cozimento de grama e taráxaco, com sulfato de soda e xarope de chicória composto.

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Pela volta do meio-dia sentiu S. A. R. um pequeno frio nas mãos, e pés somente: jantou mui pouco às dez horas: dor-miu alguns pedaços até às quatro - examinei S. A. R. a esta hora as dores de cabeça diminuíram; diminuiu o calor da pele e apareceu uma branda lentura. Às quatro e meia visi-tei a Princesa e achei S. A. R. um pouco melhor a todos os respeitos: e eu serei muito feliz se no futuro correio puder participar a Vossa Majestade decisivas melhoras no estado da importante saúde de sua Augusta Filha.

Deus guarde a preciosas vida de [Vossa] Majestade, como Portugal há mister e ardentemente deseja quem é, de todo o coração,

De Vossa Majestade

Fiel súbdito e o mais respeitoso e obrigadíssimo criado

@ Bernardo José d’ Abrantes e Castro

Madrid, 10 de Setembro de 1822, às 4h ½ da tarde

P. S. Cumpre prevenir a Vossa Majestade que a Princesa não escreve, porque eu lhe aconselhei, que o não fizesse, por causa da debilidade em que se acha e porque facilmente se lhe perturba a cabeça quando se assenta.

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O infante D. Pedro Carlos de Borbón e Bragança – Apontamentos para uma biografia

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ResumoAuspicioso, sob todos os aspectos, o nascimento do

infante D. Pedro Carlos de Borbón e Bragança, numa Corte magnificente, como era a de seu avô, Carlos III de Espanha, o menino tinha tudo para usufruir de uma vida plena nas condições que lhe permitiam a sua hierarquia. Todavia, as parcas que cedo se debruçaram sobre o seu berço doirado, retiraram do horizonte os anúncios benfazejos, através da sua orfandade, quando a morte lhe levou a mãe (na flor da idade), logo seguida do pai e de um irmãozinho, recém-nas-cido, tudo, em menos de um mês, pouco passava D. Pedro Carlos dos dois anos de idade. Não bastasse isso, para carre-gar de nuvens cinzentas o céu do seu baptismo abençoado de promessas, a mesma morte veio buscar-lhe num inesperado golpe o avô, que o amava, como a uma renascida luz, que viera iluminar o futuro de Espanha.

Aquelas circunstâncias mais do que dramáticas, trágicas, deram azo a que de Lisboa, a avó materna, rainha D. Maria I, coadjuvada pelo herdeiro ao trono, Príncipe D. João, agisse diplomaticamente junto da Corte espanhola, de modo a trazer para a sua companhia o neto, órfão da infanta D. Mariana Vitória, mulher do infante de Espanha D. Ga-briel de Borbón y Sajonia, sendo, portanto, pais de D. Pedro Carlos, ambos falecidos, agora.

O casamento do futuro D. João VI com D. Carlo-ta Joaquina, infanta de Espanha (sobrinha de D. Gabriel de Borbón y Sajonia) realizado na mesma altura do da irmã, não tinha oferecido até à data herdeiro, que houvesse de o ser ao trono. Esta causalidade instigou nos corações e nas mentes, tanto de D. Maria I como do filho, a ideia de adoptar

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e criar D. Pedro Carlos, na intenção de fazer dele putativo sucessor da coroa de Portugal, dando-se o caso de D. João não ter almejado filhos do seu casamento. Tal facto foi ultra-passado, quando ao régio casal nasceu uma menina – a quem foi dado o nome de Maria Teresa – logo jurada sucessora ao trono português e como tal, princesa da Beira.

Foi com ela que o Príncipe-Regente mais tarde pla-neou casar aquele seu sobrinho, D. Pedro Carlos, estimado e tido, pelo tio, na mais alta consideração e amor. O matri-mónio realizou-se no Rio de Janeiro, em virtude da residên-cia da Corte no Brasil, pelas sabidas razões históricas, que levaram a família real a atravessar o oceano Atlântico e a instalar-se ali.

A grandiosa cerimónia do enlace dos noivos, coir-mãos, reúne várias primícias, das quais, é o facto de ter sido a primeira deste género, naquele continente, alguma vez ob-servada ali, segundo os preceitos europeus, com a pompa que os relatos permitem imaginar e se repetiria no baptismo do único filho do casal, infante de Borbón e Bragança, a quem foi dado o nome próprio de Sebastião, herdeiro dos títulos e da casa paterna, jurado também, à nascença, como foi e viu reconhecida a titularidade de infante de Espanha.

Desfeito por natureza o projecto de fazer de D. Pedro Carlos um presumível sucessor ao trono português, veio a mor-te, inesperadamente, arrancá-lo desta vida, quando ele assumia o alto cargo de Almirante-General da Real Marinha de Portu-gal, entre outros, títulos e privilégios e usufruía de um matrimó-nio feliz, deixando viúva a primogénita de D. João VI.

Repousam os restos mortais do infante D. Pedro Carlos de Borbón e Bragança no Rio de Janeiro, cidade que tinha assistido com espanto à pompa do seu casamento, ao nascimento e baptismo do seu único filho e com idêntica pompa e circunstância, inerente à sua condição, foi depo-

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sitado no fino mausoléu que se observa na capela de N.ª Senhora da Conceição do antigo Convento de St.º António local, onde, o ainda Príncipe-Regente D. João ordenou, que o sobrinho tivesse a sua sepultura.

Quando houver de ser feita uma biografia mais deta-lhada deste infante de Espanha e de Portugal, ser-lhe-á asso-ciada, com todo o direito, a figura do seu Mestre, José Maria Dantas Pereira, ao cuidado de quem tinha sido entregue pelo tio e futuro rei, ao sair da infância, para receber educação à altura do seu estatuto. O zelo e dedicação daquele insigne homem de ciência frutificariam na mesma exacta entrega da parte do real discípulo, testemunho expresso pelo próprio, recuperado neste Apontamento.

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Da vinda para Portugal ao casamento e morte no Rio de Janeiro

Nasceu o infante D. Pedro Carlos de Borbón e Bragan-ça, infante de Espanha, a 18 de Junho de 1786, em Aranjuez, sendo fruto do casamento da infanta portuguesa D. Mariana Vitória e do infante D. Gabriel de Borbón y Sajonia, filho de Carlos III, rei de Espanha. Tendo D. Pedro Carlos ficado órfão de mãe e de pai, nos fins de 1788, veio para Lisboa, em Novembro do ano seguinte, onde passou a residir, na corte da avó, a rainha D. Maria I.484

A falta de herdeiros directos dos príncipes do Brasil deu origem a que se alimentasse desde cedo a hipótese de ser D. Pedro Carlos o sucessor de D. João VI, ainda Regente, ideia que vigorou até ao nascimento da primeira filha dele e D. Carlota Joaquina de Borbón, em 1793, D. Maria Teresa de Bragança, jurada princesa da Beira.485

É com esta sua prima, coirmã, que o infante D. Pedro Carlos vem a casar a 13 de Maio de 1810, achava-se a corte no Rio de Janeiro, nas circunstâncias provocadas pela invasão napoleónica de Portugal, no contexto da guerra peninsular. Na-quela capital acabaria por vir a falecer, a 26 de Maio de 1812, dois anos após a celebração do seu matrimónio, deixando viúva a esposa, com um filho de ambos, o infante D. Sebastião de Borbón e Bragança, o qual nascera naquela cidade brasileira, a 4 de Novembro do ano anterior, ao da morte do pai.

484 Sobre a vinda do infante D. Pedro Carlos para Portugal existe um curioso relato na Biblioteca da Ajuda, da mão do Marquês de Marialva e estribeiro-mor, onde ele dá conta da missão que lhe foi confiada pela rainha D. Maria I, o qual transcrevemos. Ver Apêndice. 485 Infanta D. Maria Teresa que nasceu a 29.4.1793, declarada logo princesa da Beira, prevendo-se vir a ser ela a herdeira do trono, na falta de irmão varão.

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A curta passagem de D. Pedro Carlos, por este mun-do, será a explicação do pouco que corre a respeito dele, para além das datas que assinalam as etapas principais da sua vida. A sombra em que tem jazido a sua memória dever-se-á, em parte, a ter falecido no Brasil e ao momen-to político, que se vivia na altura, com a volta da família real a Lisboa no contexto revolucionário, operado, quase em simultâneo, que separou os dois reinos de Portugal e Brasil.

O mundo que o infante deixou no cais de Belém, à ida-de de 21 anos, quando rumou de Lisboa para tão exóticas pa-ragens, na companhia da família portuguesa, no final de No-vembro de 1807, nunca mais seria o mesmo e nem o voltaria a achar, por isso, se acaso tivesse voltado, cá. Quando em 1821 a corte regressou a Portugal, a memória do infante D. Pedro Car-los não passava já de uns ténues testemunhos, aportados pela vaga lembrança dos que o tinham conhecido antes, mas que ia sendo apagada da memória à medida que estes iam desapare-cendo, também, excepto, claro, no coração dos seus familiares.

Este apagamento é a explicação que se oferece mais óbvia para o quase desconhecimento de D. Pedro Carlos de Borbón e Bragança, no campo da historiografia, agravado pela escassez de sinais iconográficos, que acreditamos tenham sido muitos em vida, mas que o tempo e o modo devoraram. Re-sistiram, até hoje, que se saiba, dois desses muitos, retratos de criança, além de um da sua adolescência a que se junta uma gravura em efigie, celebrativa dos esponsórios, provavelmente, modelo, para a cunhagem de moeda ou medalha comemorati-va, que não terá chegado a ser esculpida e na qual surge ao lado da noiva, a princesa da Beira.486

486 Gravura reproduzida no livro de Ângelo Pereira, Os filhos de El-Rei D. João VI: reconstituição histórica com documentos inéditos que, na sua maioria, pertenceram ao Real Gabinete. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1946, Vol., p. 220.

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Ao reduzido espólio – do muito valioso que foi sub-traído ao que um dia terá sido um grande repositório, sendo como foi D. Pedro Carlos, figura de primeira hierarquia e na linha sucessória ao trono e pela criação em Portugal, visto e tido conjuntamente à grandeza da sua própria casa, por ser infante de Espanha e único herdeiro da casa paterna, não poderia nunca ter sido escasso – dizia – juntar-se-ia um belo retrato de dimensão apreciável, do acervo desconhecido da Academia Real das Ciências e tivemos ocasião de localizar, com indizível agrado, na oportunidade da pesquisa para ela-boração desta sua nota biográfica.487

Também neste particular, a memória do infante D. Pedro Carlos sofreu adulteração, pois a bem vinda notícia desta pintura, de boa-mão, não resistiu a uma análise crítica, quando fui mais longe, em relação aos dados da imagem a preto e branco, inserta na referida memória da Academia.488

487 Retrato reproduzido, a preto e branco, no opúsculo: Entre duas Rainhas, de António Pereira Forjaz, in Separata das “Memórias” (Classe de Ciências – Tomo VIII), Academia Real das Ciências, Lis-boa 1961. Embora o retrato, excelente, enquanto obra de arte, careça de uma descrição de inventário, baseada na peça ao vivo, podemos afirmar, pela dita reprodução, que se trata de um retrato de alguém das famílias de Borbón e Bragança, em traje de grande gala, ostentando entre outras jóias ricas e sobre o peito, o Tosão de Oiro, suspenso de um colar de pedras preciosas e laço encarnado, igualmente cravejado de pedras. À partida, poderia dizer-se que o retrato tinha sido pintado para celebrar a investidura do infante no título de Almirante da Real Marinha de Portugal, identificação que consta da legenda, enquan-to “2.º Presidente da Academia das Ciências de Lisboa”, cargo que o infante, efectivamente, exerceu, a qual foi introduzida por Forjaz Sampaio, no referido opusculo-separata.488 Já tinha finalizado este bosquejo biográfico e enquanto aguarda-va a satisfação da encomenda de uma reprodução actual e a cores do dito retrato, a identificação do retratado teve de ser revista, perante a dita imagem, porque me apercebi de que a pessoa não correspondia ao infante. A pista foi o nome do pintor, que assina a dita pintura. Dos detalhes que desfazem o equívoco, gerado pelo excesso de boa

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De todos os retratos que arrolámos, o mais divulgado é o que terá sido feito em vida dos pais do infante D. Pedro Carlos, mas posterior a outro de recém-nascido, oferecido e enviado logo, por ocasião do baptismo, à avó, rainha D. Ma-ria I, retrato mencionado na correspondência, trocada entre a rainha e a filha, D. Mariana Vitória, retrato que se perdeu.489

O mais divulgado – dizia – é entretanto, o que se co-nhece e que deve ter sido pintado em 1788, uma vez que não é referido na dita correspondência, que encerra no final do ano de 1787. Tendo pertencido ao espólio do palácio da Aju-da, integra, actualmente, o do Palácio Nacional de Queluz.490 vontade de António Pereira Forjaz, se encarregará o ilustre Dr. Paulo Estrela, a quem solicitei a fineza de pegar na questão, que a seu tem-po, produzirá interessante matéria, a dar à estampa, por ele.489 A este retrato de recém-nascido referem-se, tanto a rainha como D. João, nas suas cartas para D. Mariana Vitória: “Causaram-me o maior gosto as 2 cartas tuas: uma, pelo postilhão e outra, pelo ordi-nário, vendo, em ambas, que passa bem o netinho e que se vá criando tão bem. O retrato, assim o mostra e ser bonito e pelo que tu dizes e el-Rei [Carlos III de Espanha] e o infante [pai do menino, D. Gabriel de Borbón y Sajonia], ainda é melhor. Podes crer a consolação que tive em o ver e agradecerás a teu marido o querer dar-ma e que seria completa se os visse a todos, pessoalmente, o que ainda espero em Deus”. Carta 133 de 22.8.1786. Vd. da autora: Com o mais fino Amor: Cartas íntimas da rainha Dona Maria I para a filha (1785-1787), Chia-do Editora, 2014; “… Com a maior satisfação e alegria recebi novas, tuas, por duas cartas, das quais, a primeira foi pelo extraordinário que trouxe o retrato do teu filho, que é uma formosura. Não era preciso o retrato para se saber que era muito bonito: bastava ser filho de uma mãe tão formosa como tu és…”. Carta 151 de 21 de Agosto de 1786. In Se saudades matassem… Cartas íntimas do infante D. João (VI) para a irmã (1785-1787), Chiado Editora, 2011. (Itálico nosso).490 PNQ 253A. Ficha de inventário: “Retrato a corpo inteiro, pro-vavelmente (sic) do infante D. Pedro Carlos (1786-1812), enquanto criança, segurando um canário amarelo na mão esquerda e uma ba-queta na mão esquerda. Ostenta ao peito a Ordem do Tosão de Ouro (Cavaleiro), cuja banda enverga a tiracolo e a Ordem dos Cavaleiros de São Januário (sic). Apresenta um fato de criança de peça única, de

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O outro dos retratos de D. Pedro Carlos em crian-ça, não sendo propriamente ignorado, é pouco difundido. Vemo-lo a dar a mão a D. Carlota Joaquina, sua tia e pri-ma491, no grupo de família, no painel da Capela-mor do Palácio da Bemposta. Aqui, o pequeno príncipe enverga ao peito uma banda, à maneira do retrato anterior, assim como o Tosão de Ouro. Esta pintura é de execução poste-rior a 1789, ano da chegada do infante a Lisboa, mas an-terior a 1793, ano que assinala em Abril, o nascimento da princesa D. Maria Teresa de Bragança, primogénita dos príncipes do Brasil, visto não figurar na tela. O infante D. Pedro Carlos andaria pelos seus cinco ou seis anos de idade.492

Um derradeiro retrato desta série, conhecido, é uma cópia anónima cuja legenda, inscrita, credita um original,

seda azul com decote debruado com dois folhos de renda. Sob o fato, camisa de seda branca e punhos de renda. A seda azul é bordada com linha branca nos punhos e abaixo dos joelhos e decorada com motivos florais descrevendo elos. A zona abaixo dos joelhos apresenta ainda laços de seda branca. Dos laços da perna esquerda pendem franjas da mesma cor. Botas de criança, brancas e à cintura, grande faixa de seda cor-de-rosa. À direita do infante, no chão, grande tambor de veludo preto com cordas douradas, decorado com três estandartes (um branco, ao centro e dois verdes) contendo leão vermelho em pé e duas torres de castelo rematada por barra dourada: são as bandeiras militares de Espanha e a Cruz de Santo André nodada, adoptada pelos Bourbons de Espanha. Chão de mármore rosa e branco descrevendo triângulos”. 491 Tia, por ser casada com D. João VI, tio materno do infante e prima, por serem filhos de irmãos: Carlos IV, rei de Espanha e D. Gabriel de Borbón y Sajonia, infante de Espanha e Senhor do Mayo-razgo de San Juan de Jerusalém, respectivamente.492 Retrato da família real, do pintor Giuseppe Troni. Vd. da autora: O Ex-voto da Bemposta e o culto do Sagrado Coração de Jesus, in O Reinado do Amor…Cartas íntimas da Priora da Estrela para a Rainha Dona Maria I (1776-1780), Chiado Editora, 2013.

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sem datação493. Figura de meio corpo, a três quartos, voltado à esquerda, onde o príncipe mostra ser ainda adolescente. Acha-se o desenho no acervo do Museu Nacional dos Co-ches para onde transitou do Museu Nacional de Arte Anti-ga.494

Bastaria este retrato de D. Pedro Carlos, de Fuschini (pai ou filho), para desmentir ideias feitas, porventura, acer-ca do perfil psicológico e físico deste infante. O que a gravu-ra patenteia são os traços de um belo jovem, que anuncia um adulto, igualmente atraente, sugerido pela criança do painel da Bemposta, fazendo jus, ambos, ao prenúncio feito, mal ele nasceu e que se manteria pela sua curta vida, afora: uma linda criança, que era o retrato vivo de sua mãe – como o descreve o infante D. João (VI). 495

493 O retrato original, segundo a legenda da cópia, é atribuído a Joaquim [Francisco] Fuschini. Todavia, foi o pai deste, o famoso Ar-cângelo Fuschini, o professor de desenho do infante D. Pedro Carlos, donde, a da atribuição será hipótese a rever. Nota: Pelo trabalho de Mestrado [Arcângelo Fuschini (1771-1834) e a pintura do Neoclassi-cismo em Portugal, de Mónica Gonçalves, FLUL, 2016, Vol. 2] vindo a público e ao nosso conhecimento depois de termos recolhido a in-formação que aqui descrevemos, é dado a entender que se trata efec-tivamente, da autoria do mestre Arcangelo Fuschini. Todavia, não é isso que se lê na legenda, inscrita no mesmo retrato, existente no MN dos Coches, Ficha Inv. HD 0025.494 Ficha de Inv. HD 0025: “O retratado apresenta-se sentado numa poltrona de espaldar ovalado. Bastante jovem, o rosto desenhado a sanguínea é emoldurado por cabeleira revolta de franja curta. En-verga casaca de gola franjada e camisa branca de folhos. Ao peito, duas comendas, uma das quais das Três Ordens Militares e respectiva banda. Suporte de cartão castanho, ao qual se fixa por meio de fitas adesivas. Possivelmente (sic), o infante D. Pedro Carlos de Bourbon e Bragança (Espanha).”495 As cartas de D. Gabriel de Borbón para a rainha, sua sogra, D. Maria I, imediatamente a seguir ao parto e dias seguintes, corrobora-das pelas palavras da açafata portuguesa (Teresa Caupers) que acom-panhou D. Mariana Vitória à corte de Espanha e ali a acompanhava

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O esboço de Fuschini há-de ser estudo de um retra-to, a óleo, saltando à vista – apesar de faltar cor e luz – a bela cabeleira loira e o olhar claro e atento, revelador de um verde-esmeralda. Um autêntico Adónis cujas feições se afastam das predominantes na descendência espanhola, entre primos, ainda que denote indesmentíveis parecenças, com o príncipe D. Pedro do Brasil e infante D. Miguel, em criança.496

na altura do parto, são unânimes, quanto à robustez física do menino e à sua formosura. Teresa declara-o muito bonito e parecido com sua mãe (BA – 54-IX-41, nº 182); Na carta de 27.6.1786, D. Gabriel de Borbón diz que o filho estava cada vez mais gordo e bonito e se pare-cia muito com a mãe (BA – 54-V-20, nº 1g). Dois anos depois, o 3.º e último parto de D. Mariana Vitória, que seria também simultâneo ao desenlace da sua vida, o infante D. Gabriel, seu marido (que morreria logo a seguir a ela), tem ainda tempo para fazer o elogio da esposa, a quem chama um anjo e garantia, jamais esquecer o ditoso tempo que tinham vivido juntos, lembrança que ficara a preencher a sua ausência nos filhos, acrescentando: “estas criaturas que são um retrato seu” [os filhos, D. Pedro Carlos e D. Carlos José António. Este, faleceu, logo a seguir ao pai]. (BA – 54-V-20, nº 1t). Na mesma linha, vai o teor da carta de D. João (VI) para o sogro (Carlos IV) em Novembro de 1789, perante quem se regozija, pela vinda do sobrinho, para esta corte de Lisboa, considerando-o “lindíssimo, um vivo retrato de sua mãe”. (BA – 54-XIII-17, nº 14 v).496 Relativamente ao infante D. Pedro Carlos, vale assinalar a saúde um tanto frágil que parece ter sido um ponto fraco dele, como dá a entender Dantas Pereira no seu Elogio, p. 5. (Vd. Elogio Histórico do Senhor D. Pedro Carlos de Bourbon e Bragança, Infante de Espanha e Portugal, Almirante General da Marinha Portuguesa, Rio de Janeiro, 1813). Todavia, isso não o prejudicou física nem intelectualmente. Os talentos naturais e inteligência, salienta-os o Rev.º Cão D’ Aboim, por seu lado, no Elogio de que é autor: “Tivesse SAS, o Senhor in-fante D. Pedro Carlos um trono, por herança e fosse ornado, como na realidade o era, de todos os dotes da natureza e riquezas da arte, adquiridas pelas suas muitas luzes e grandes talentos que tinha, a não possuir o coração do seu augusto tio manancial fecundo, donde lhe fluía o amor de ternura e de extrema benevolência, com que SAR o distinguia, como se fosse o mais antigo dos seus filhos, nada o faria

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Para se ficar a saber algo mais deste infante de Espa-nha cujo retrato físico acabamos de observar, necessita o lei-tor de procurar conhecer uma figura marcante e em muitos aspectos única, no nosso panorama intelectual: um distinto português, que à grande sapiência juntou muita acção, José Maria Dantas Pereira.497

digno de receber a mão de esposa da sua primogénita augusta (ven-cendo para isso tantas contradições) …”. Vd. Joaquim da Nóbrega Cão D’ Aboim (Prelado Patriarcal e Decano da Capela Real do Rio de Janeiro): in, Elogio Histórico do Sereníssimo Senhor infante D. Pedro Carlos de Bourbon e Bragança, Almirante General da Armada Real Portuguesa, Rio de Janeiro, 1813., p. 15. 497 (Alenquer 1772-Montpellier 1836). Não se pode dizer hoje em dia que o nome de José Maria Dantas Pereira seja desconhecido, no que respeita ao mundo académico. As vertentes do seu saber consti-tuem um leque amplo que vai da Filosofia à Matemática e à Geome-tria, passando pela Geografia e a Cartografia, além do domínio do espanhol, francês e inglês. Naturalmente que não lhe escapavam as luzes em latim e grego. Em tudo o que se acha na pesquisa a seu res-peito, surge um vasto reportório, onde o nome dele reluz, incluindo no mundo das Humanidades. Vale a pena ler, acerca deste homem incomum, que atrai pela discrição e gosto de aprender, estendendo-se o seu interesse à didáctica, que ele ministrava com base numa sólida pedagogia, que nos espanta. De uma nota autobiográfica, em francês, consta o curriculum vitae com as etapas da sua formação e carreira: com 17 anos de idade (1789) era já capitão de um dos corpos da Marinha Real e, em 1800, comandante de uma das companhias de Guardas-Marinhas, onde tinha ingressado como aspirante. Em 1817 é promovido ao posto de Contra-Almirante, logo após de ter sido nomeado membro da comissão encarregada de redigir o regulamento naval. Em 1819 é enviado do Rio de Janeiro a Lisboa, na qualidade de conselheiro de D. João VI e do Almirantado. De discípulo em 1786, tornou-se em 1790 professor de Matemática, na Academia Real dos Guardas-Marinhas, de que se torna director em 1806; em 1793 é já sócio correspondente da Academia Real de Ciências de Lisboa, de que se tornou secretário em 1823; foi membro da Sociedade Real Marítima, Militar e Geográfica, desde o ano de 1798, o da sua criação e membro da Sociedade Filosófica de Filadélfia, de 1827 em diante. V. Notice sur la vie et les œuvres de Joseph-Marie Dantas Pereira de

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Foi ele o mestre que o Príncipe-Regente D. João es-colheu para continuar a educação do infante, seu sobrinho, a partir de 1797 – é o próprio Dantas Pereira quem dá o ano – consta que bem impressionado, por um discurso, que lhe ou-viu pronunciar, no exercício da sua actividade de professor, na Academia Real dos Guardas-Marinhas, hoje, Escola Naval.498

Até aquela data e desde a mais tenra infância, o in-fante tivera, como seu mestre, D. Francisco Marín, padre esculápio, escolhido pela corte de Madrid para acompanhar o menino a Lisboa e parece ter ficado por cá até falecer, pro-vavelmente, em 1797 ou à volta disso.499

Andrade, etc. Paris, s/d. Felizmente, o interesse pela obra e acção deste homem de cultura têm ganho a projecção que merecem, nos meios académicos, tanto de Portugal como do Brasil. É de grande interesse (embora trate somente do período que vai até ao ano de 1807 e não aborde a vida do infante D. Pedro Carlos) a obra de Nuno Alexandre Martins Ferreira: A institucionalização do ensino da Náu-tica em Portugal (1779-1807), FLL, Departamento de História, 2013. Já no Brasil, achámos notícias sobre a acção do nosso infante, além do artigo de Max Justo Guedes (abaixo anotado), na dissertação de Carlos André Lopes da Silva: A Real Companhia e Academia das Guardas-Marinhas: aspectos de uma instituição militar de ensino na alvorada da profissionalização do oficialato militar, 1808-1839, Uni-versidade Federal do Rio de Janeiro, 2012.498 Max Justo Guedes: Bicentenário do Chefe de Esquadra José Ma-ria Dantas Pereira, in Separata da Academia das Ciências de Lisboa, Classe de Ciências, T. XVII, 1974.499 Além das notícias da vinda do infante de Espanha para Portugal, na Gazeta de Lisboa, matéria de que demos conta, noutros lugares, nomeadamente, em O Reinado do Amor…, conhece-se alguma da correspondência, a título privado, entre a rainha D. Maria I e o pri-mo, Carlos IV, sobre este assunto. Numa destas cartas é identificada a família destinada a acompanhar o pequeno infante a Portugal, dos quais, a açafata D. Maria Madalena Ruiz de Moscozo, o referido pa-dre Marín e a camarista D. Cayetana Vera. (BA – 54-V-21, nº 1ii; BA – 54-V-20, nº 3y). Houve também, da parte da avó, particular interes-se na vinda da camarista, que tinha sido da infanta D. Mariana Vitó-ria, em Espanha, marquesa de Castelfuerte, por o menino estar muito

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Dever-se-á ao Rev.º P.e Marín o estímulo paciente, com que incutiu no infante o gosto pelo conhecimento, se tivermos em linha de conta o relato, onde refere que “este famoso es-culápio, não só ensinava o discípulo, senão que estudava com ele e depois de exercitar com o Senhor infante, já na idade de adulto – entendemos que saído da puerícia – todo o seu zelo” que aplicava “sempre com moderação, suavidade e doçura”.500

O padre Marín não terá abrandado o seu papel de pe-dagogo atento – papel de que veio especialmente instruí-do, para Portugal – uma vez que o relato dá a entender que continuou a percepcionar a evolução do infante, porquanto “estendia vigilância sobre os mais professores, seus cole-gas, no magistério deste príncipe, levando-os com destreza e política a tomarem, todos eles, o verdadeiro interesse no adiantamento do discípulo”.501

Não deixa de ressalvar que “em abono da verdade – pois que muito o observara ele próprio – o muito amor às letras e sobretudo, a vontade constante de estar sempre apli-cado, era certo, que o deveu o Senhor infante a Deus e a si, mas que também o devera em muita grande parte ao grande Padre Marín…”.502

apegado a ela, palavras de D. Maria I. (BA – 54-V-20, nº 3v). Desta família, acabariam por permanecer no nosso país, o padre Marín e D. Maria Madalena Ruiz de Moscoso. Tornamos a este assunto nas notas à jornada do infante, pelo encarregado do processo, D. Diogo Vito de Menezes, 5.º Marquês de Marialva. (Vd. Apêndice)500 Aboim, in ob. cit., pp. 11 e segts.501 Idem. Esta atitude demonstra a importância que na altura (1789) se deu, não só à vinda para cá do neto da rainha D. Maria I, mas à dimensão política que aquele infante poderia vir a ter, no contexto das duas cortes ibéricas.502 Estas palavras vão ao encontro do alto conceito em que era tido o P.e D. Francisco Marín cujas notícias colhemos também noutro lugar, que ele vinha recomendado, antes de sair de Espanha, referindo-se-lhe nas suas cartas o P.e Felipe Scío de San Miguel, mestre e confes-sor de D. Carlota Joaquina, o qual veio para Lisboa no séquito dela,

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Deduz-se a partir do testemunho de quem conviveu com o Rev.º Marín, que as tarefas dele iam, além de profes-sor, podendo, neste aspecto, ser considerado um preceptor, na exacta acepção do termo. Teria sido ele, portanto, quem semeou no infante o apego ao estudo, que José Maria Dantas Pereira testará, com especial acuidade, posteriormente.503

Antes de examinar a alçada pedagógica deste mestre, em síntese, vemos que o jovem príncipe tinha já algumas luzes de Gramática, Retórica “que chamam Humanidades” – como sublinha o autor – e que nestas o Senhor infante era plenamente instruído e que bebera a Filosofia Racional e Experimental e a Matemática e que por diferentes professo-res a História, a Jurisprudência, as Artes liberais e até mes-mo – de realçar – “os ofícios mecânicos”, ao mesmo tempo que afirma que D. Pedro Carlos era em todos tão previsto e experimentado, como se fosse um perfeito artífice, assistido de uma memória prodigiosa, sabia os nomes facultativos de tudo.504

incumbido de funções idênticas, às do preceptor de D. Pedro Carlos. (Vd. da autora: La Menina…) Nota: Encontramos nos autores coevos a variante Marini do nome Marín. Desconhece-se em absoluto se o reverendo seria italiano ou espanhol de origem italiana, como aconte-ce com vários outros servidores de Carlos III de Espanha. 503 Do relato do Rev.º P.e Cão D’ Aboim conclui-se que Marín, sendo o principal deles, não foi o único professor do infante D. Pedro Car-los, mesmo na infância, quando aquele assinala que o Príncipe-Re-gente sempre cuidara “na educação do Senhor infante, como se não tivesse mais que cuidar ou que dispor” e que lhe nomeara “diferentes Mestres para os seus estudos, competentes com aquela selecção e acerto” com que tinha em vista “conseguir do sobrinho tudo quanto dele pretendia o primeiro mestre, que de Espanha o acompanhara, o Rev.º P.e Marini”, em quem tinha “o maior garante e cooperador incansável”. Aboim, in ob. cit., p. 11.504 Aboim, in ob. cit., p. 12. Ainda sobre este último aspecto, quan-do fala da habilidade de artificie do infante, devemos lembrar que estas apetências e tarefas, que chamaríamos por hobbies, eram muito comuns entre uma certa nobreza e soberanos, tanto da família real

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Ao encontro do que fica dito, salientamos a passagem onde o autor alude à apetência para as coisas da náutica, revelada por D. Pedro Carlos “assim como se fora oficial provecto”, tanto no aspecto “teórico como prático”, no que respeitava a “derrotas, rumos, nomes, usos de cordame, ve-lame, insígnias, instrumentos, enfim, tudo quanto era neces-sário na navegação, tudo lhe era presente”.505

Poderia tratar-se, aparentemente, de exercício enco-miástico, puro e simples, do autor. Todavia, somos inclina-dos a pensar de outro modo, na medida em que, o infante sendo pupilo de alguém, tão insigne como foi José Maria Dantas Pereira, tal conhecimento e gosto só vem demonstrar que o ensino ministrado e completado por este, não fora em vão, ao conseguir inculcar e desenvolver no príncipe os seus interesses naquele campo, a ponto de despertar ou mesmo arreigar nele, aquilo que era próprio da sua natural curiosi-dade.

Não era, pois, cabeça oca nem vazio de princípios o jovem príncipe, como se poderia crer a partir da opinião vei-culada nos ofícios do Marquês de Casa Irujo, embaixador espanhol no Rio de Janeiro, nos turvos anos de 1809-1812, má-opinião partilhada e sublinhada, pelo secretário particu-lar de D. Carlota Joaquina, D. José Presas, em todo o sentido, mais aventureiro que secretário, talvez até, mais espião que outra coisa, embora apoiante da causa da princesa do Brasil, durante o alastramento da revolta das colónias da América portuguesa como espanhola, entrando nestes, D. Pedro III (marido de D. Maria I) e Carlos III de Espanha, avós de D. Pedro Carlos, além dos tios do lado paterno e o próprio pai do infante.505 Sobre esta matéria – contava o príncipe 21 anos – o Rev.º Cão D’ Aboim, testemunha ocular do que escreve, diz que a bordo da nau “Príncipe Real” na qual passou “para a América, ao lado da sua au-gusta avó [D. Maria I] e tio [D. João VI] ” se tinha examinado a si muitas vezes e aos oficiais embarcados, “afectando como diversão de espírito e passatempo, aquilo que era aplicação sisuda”. Idem, p. 13.

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do Sul, situação que se tornaria pomo de disputa e rivalidade dela frente ao infante D. Pedro Carlos, por óbvias razões de prioridade na linha sucessória, dada a vacatura verificada no trono de Espanha, pela abdicação dos legítimos soberanos, pais de D. Carlota e exílio imposto a Fernando VII, como fica desenvolvido no corpo deste livro. 506

Quanto ao carácter e personalidade do infante, con-tinuamos a achar matéria, na notícia legada pelo citado ca-pelão e autor, fonte onde bebemos as primeiras notícias do infante, antes de passarmos às que deixou Dantas Pereira. 506 Reportamo-nos ao relatório do marquês de Casa Irujo, desde o Rio de Janeiro (15.12.1810) para a Junta Central de Espanha, que assumira a Regência, na ausência do rei, Fernando VII, então, prisio-neiro em Valençay. Trata-se de uma opinião sustentada numa averi-guação pouco honesta, mais interessado o marquês (de resto enviado e representante especial junto da corte do Rio de Janeiro, da dita Re-gência constituída por maçon-liberais, sediada em Cádis. Como tal, o marquês de Casa Irujo elaborava as suas opiniões, na qualidade de observador das acções tanto de D. Carlota Joaquina (infanta de Es-panha, putativa sucessora ao trono), expectante do rumo da diploma-cia portuguesa, naquele contexto, como do infante D. Pedro Carlos, mostrando-se mais afecto à primeira do que a este último, fazendo reparo de que o infante D. Pedro Carlos não se mostrava inclinado a apoiar as ideias de D. Carlota, sua prima e tia. Para o marquês e seus correligionários, dadas as circunstâncias de excepção, quem não fosse apoiante da Regência Gaditana era-lhe suspeito. Curiosamen-te, o marquês abandonou o seu posto no Rio de Janeiro (18.4.1812), poucos dias antes do falecimento do infante. Julián María Rubio: La Infanta Carlota Joaquina y la política de España en América (1808-1812), Madrid, 1920. Nota: Também esta é uma obra cujos conceitos políticos, mormente a condução dos negócios políticos portugueses, no contexto da guerra peninsular e sul-americanos, são datados. É todavia uma referência, pela documentação que aporta, no campo das relações diplomáticas das duas coroas, no período daquela missão, pelo que, costuma ser, ainda, uma fonte muito citada. Já no que toca às Memórias de D. José Presas é mais do que perceptível a aliança tácita dele, não fazendo mais do que ecoar o que ouvia a D. Carlota Joaquina, sem avaliação isenta.

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Diz o referido decano – identificado, às vezes, pelo apelido Nóbrega – algo de particular interesse, que poderá explicar muito da conduta de D. Pedro Carlos, equivocamente, mal--interpretada:

“Acabando-lhe cedo o fogo da mocidade, parecia um consumado ancião, mas com tal equilíbrio que nem a madu-reza o fazia pesado nem o agrado e a urbanidade fácil.”507

Patenteia o autor, o apego, sincero e devotado do prín-cipe, à família portuguesa, com esta máxima: “respeitava--os com amor e amava-os com submissão”, não deixando de sublinhar, como é justo, a estima, que em particular, o unia lealmente ao tio, figura tutelar na sua orfandade e exí-lio, comprovado pelos factos. Neste sentido, escreve ele que o infante “era por extremo singular com seu tio” “a quem amava como pai, imitava como exemplar e modelo e pas-sava a adorá-lo, não só como soberano, mas como um deus na terra”.508

507 Aboim, in, ob. cit., p. 13.508 A projecção que o infante fazia da imagem paterna na pessoa de D. João, horizonte dos seus afectos, como cremos, pelos testemunhos, é notória nas palavras introdutórias do Rev.º Cão D’Aboim, quando se dirige ao Príncipe-Regente: “Tendo a VAR não só por seu mestre, mas por seu exemplar e singular protótipo, parecia que estudava em VAR, como em seu livro vivo, as virtudes de alma, para se ornar com elas, os dotes do coração para se enobrecer e até as maneiras e gestos corporais para os seguir. Quando nos revezes da vida (incidentes infalíveis em todo o vivente), havia instante em que o assombrasse a aflição, o desprazer ou a agonia (assim se costumava explicar SAS), buscava a ocasião de buscar a presença de VAR e logo, como em bri-lhante horizonte, lhe raiava do semblante augusto de VAR, até se lhe comunicar ao coração o sossego daquela alma, a paz e tranquilidade infalível, no seu espírito. Estas expressões Senhor, não são vozes aé-reas, a quem só o capricho e a adulação dão existência, são verdades puras, que muitas vezes tive a honra de ouvir e admirar em SAS. [Sua Alteza Sereníssima, infante D. Pedro Carlos de Borbón e Bragança] (itálico nosso). Cão d’Aboim, Dedicatória, in ob. cit.

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Destaca ainda um aspecto curioso que vai ao encontro das notícias – destorcidas do seu real significado – sobre a ti-midez que D. Pedro Carlos revelaria em público, não conse-guindo manter o olhar perante estranhos “e esta era a causa – extrema reverência – de parecer na presença de SAR mais acanhado do que submisso, dando assim lugar a ter-se por cobardia, o que era somente amor filial e obediência cega, à dignidade augusta de supremo imperante.”509

E não fazia sentido que fosse de outro modo, pois, não sendo D. Pedro Carlos uma pessoa desprovida, tinha, além disso, plena consciência da sua hierarquia e importân-cia, na medida em que fora declarado à nascença infante de Espanha e titular-herdeiro, naquela qualidade, ao trono, sus-tentado por um grosso património, aliado ao Grão-Mestrado da Ordem de São João de Jerusalém, nos reinos de Leão e Castela, herança do pai, o infante D. Gabriel de Borbón.510

Prosseguindo a opinião do citado decano, diz ele que, do ano de 1790 ao de 1806, as rendas do infante D. Pedro

509 Idem, p. 13.510 Matéria relacionada e tratada pela autora a propósito do contra-to de esponsais deste infante de Espanha, com a infanta D. Mariana Vitoria, em cujo clausulado, por vontade expressa de Carlos III, en-trava aquele Grão-Mestrado, para que D. Gabriel pudesse estabele-cer-se de maneira digna “conveniente a um infante de Castela”. Neste sentido, obteve aquele soberano do Sumo Pontífice Pio VI um breve (17.8.1784) pelo qual se concedia ao dito príncipe e seus descenden-tes in perpetuum o Grã-Priorado “de la ínclita y militar Orden de San Juan de Jerusalén en los reinos de Castilla y León”. Expedido o breve, foi agregado ao dito priorado a pensão de 150 mil ducados, dando origem à fundação de um Mayorazgo-Infantado a favor do dito infante D. Gabriel e seus descendentes. Cf. Memoria histórica sobre la fundación y vicisitudes de La Casa de Su Alteza Real el Sermo. Sr. infante de España y de Portugal Don Sebastián Gabriel de Borbón y Braganza, Madrid, 1868. A este propósito, ainda: Juan de A. Gijón Granados: La Casa de Borbón y las órdenes militares durante el siglo XVIII (1700-1809), Universidad Complutense de Madrid, 2009.

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Carlos tinham aumentado os “fundos daquela grande casa, em muitos milhões, por ser maior de um, a renda anual dela”. Sabemos também que, à data de completar 20 anos de idade (no último dos referidos anos), foi o infante chamado a tomar posse da administração da sua casa, sob pena de lhe perder o direito, à luz da lei vigente de Espanha.511

Todavia, a reacção de D. Pedro Carlos – longe ainda hoje de ser entendida na sua abrangência – foi a de se negar a aceitar as condições que lhe eram impostas, apesar do risco que corria de perda de direitos sobre o seu património. As-sim, terá respondido ao aviso oficial – de acordo com o autor que citamos – sem prévio conhecimento do tio, por não o pretender “dissaborear” ao mesmo tempo que manifesta in-dependência de pensamento:

Que ele não deixava a seu amado tio, pelo pouco tempo mes-mo da sua precisa separação para aquele fim e que quando fosse avante a ameaça fundada na lei e na pragmática, ele estimava em muito ter aquela ocasião, para dar um teste-munho decisivo da adesão e amor filial que lhe consagrava, ficando-lhe por aquele motivo muito mais grato receber de seu tio o tratamento e sustento diários do que se fosse para Espanha ocupar o seu trono.512

511 Sobre os direitos e bens patrimoniais de D. Pedro Carlos, há fortuna crítica, publicada por autores espanhóis, que acompanham as medidas que vieram a ser tomadas, mais tarde, quanto à defesa dos direitos do seu herdeiro e filho de D. Pedro Carlos, o infante D. Se-bastião de Borbón y Braganza, situação defendida judicialmente nos tribunais de Espanha, também promovida por D. João VI, naquele mesmo sentido, facto relevante que levou a Espanha D. Maria Teresa de Bragança, viúva de D. Pedro Carlos, acompanhante deste, filho de ambos, D. Sebastião de Borbón y Bragança, situação que seguimos no corpo do livro. 512 Aboim, idem, p. 14. Lembramos que esta tomada de decisão do infante D. Pedro Carlos cai em pleno expansionismo napoleónico que atingiu belicamente Portugal após assinatura dos acordos com Espanha em Fontainebleau.

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A corroborar a firmeza desta decisão consta, segundo o mesmo autor – o qual revela ter conhecimento particu-lar sobre o assunto, no provável âmbito de confessor – que instado pelo Príncipe-Regente de Portugal a dar um parecer franco da sua vontade, não lhe foi possível obter dele, nada, que acrescentasse àquela sua decisão.

A mesma resistência manteve o infante, junto de pes-soa da sua confiança, que mostrou desaprovar a atitude dele, tendo D. Pedro Carlos respondido à veemência dos rogos:

Que nunca seria do seu voto nem jamais o praticaria, ligar a vontade e parecer de seu Augusto Tio ao próprio ditame, quando devia amoldar-se em tudo ao de SAR, a quem tinha por modelo e ouvia como oráculo.513

Conforme anotado abaixo, o contexto, em que a de-cisão de um tão elevado alcance do infante foi tomada, é precisamente, o ano marcado, de 1806. Na corte de Espanha fazia-se ouvir, sem oposição, o valido D. Manuel de Godoy e as relações daquele reino com Portugal passavam pelas mais difíceis horas, da história comum. Aquele ano foi, além do mais, o desaguar de todos os desvarios e traições, congre-gado à volta da conspiração dos fidalgos, na qual entrou D. Carlota Joaquina, visando interesses da sua própria agenda, em Outubro de 1805, ano imediatamente anterior ao da deci-são do infante de Espanha de manter-se do lado do tio.

O apuramento de responsabilidades da conjura, que explode no decurso de 1806, acabou por balizar este ano também, como o da ruptura do casal real e aquele em que sobreveio ao Príncipe-regente, D. João o abatimento psi-cológico, de grande efeito, dado o conflito de interesses e personalidades, em presença, o qual não podia já passar de-sapercebido. É também naquele ano de 1806, que a princesa

513 Idem.

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D. Carlota Joaquina fez apelo, sem margem de equívoco, quanto às suas reais intenções, através das cartas para os pais, pelas quais solicita uma intervenção directa de Espa-nha, nos assuntos internos de Portugal.514

Não é este o sítio oportuno para reler criticamente o conteúdo da dita carta, além de que a missiva fala por si, mas paira no ar uma insinuação, à qual talvez não seja estranha, certa animosidade de D. Carlota em relação ao infante D. Pedro Carlos e/ou aos mais do círculo do marido, nos quais pressente uma ameaça à sua própria esfera de influência, por

514 Carta datada de Queluz, 13 de Agosto de 1806. “Papá mío de mí corazón, de mi vida y de mi alma. Voy a los pies de VM en la mayor consternación, para decir a VM que el Príncipe está cada día peor de cabeza y por consecuencia esto va todo perdido, porque aquellas figuras están cada día más absolutas y que es llegada la ocasión de VM acudirme a mí, y a sus nietos; como VM vera por la carta inclusa del Marqués de Ponte de Lima, porque la priesa y el segreto no da lugar a mandar un papel firmado por toda, o cuasi toda la corte, que ellos me ofrecieron, para que se lo mandase a VM; esto se remedia mandando VM una intimación de que quiere que yo entre en el despacho y que no le acepta réplica, por si la diere, la respuesta será con las armas en la mano, para despicar las afrentas y desaires que VM sabe que él me está continuamente haciendo y para amparar sus nietos ya que no tienen un padre capaz de cuidar en ellos. VM perdone la confianza que tengo, pero es este el modo de evitar que corra mucha sangre en este reino, porque la corte quiere ya sacar la espada en mi favor y también el pueblo; porque se ve por factos inmensos, que está con la cabeza perdida; así le pido a VM haga el dicho verdadero, ha de hacerlo luego y yo haré entonces con que él mismo enmiende muchas cosas, porque le mieto miedo amenazándo-le con que se lo he de decir a VM para que me ayude, ya que él no quiere hacer lo que es de razón y bien del Reino; y ahora le pido a VM que me eche su bendición y a los chicos. A los reales pies de VM Carlota Joaquina” “PS. La carta es escrita a D. Bernardo de Lorena (Autógrafo)”. Espanha. AHN. Estado, Legajo 2600. Apud Julián Ma-ría Rubio, in ob. cit., Doc. II. Além desta carta para o pai, sabe-se de outra da mesma altura de D. Carlota Joaquina para a mãe, no sentido de ela persuadir o marido e rei, Carlos IV, a apoiar o apelo da filha.

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se sentir indesejada ou não ouvida, ao contrário do que ela, D. Carlota Joaquina, sempre ambicionou.

Na falta de um testemunho escrito que assegure esta tese, sobre a reacção do infante D. Pedro Carlos – não cui-dámos de ir tão longe – suspeita-se que a exigência da corte de Espanha, emitida em nome da lei, de obrigar o príncipe a regressar, com o fim de tomar conta da sua casa e morga-do, não andará longe de ser o pretexto, criado por Carlota Joaquina, a partir de Lisboa, para o afastar de cá, vendo no primo um opositor de força, aos seus desígnios, ainda que, silencioso. Era o infante, um dos membros do restritíssimo grémio com acesso directo ao Príncipe-Regente, como mos-trámos, noutro lugar.515

515 Quando o Príncipe-Regente decidiu deixar Lisboa e passou à Quinta do Alfeite, antes de seguir para Vila Viçosa, à procura de alí-vio da angústia que o dominava, em pleno alvoroço da “conspiração dos fidalgos” – razão por que ficou conhecida também por “conspira-ção do Alfeite” – levou consigo unicamente D. Pedro Carlos e o prín-cipe-herdeiro, D. Pedro, seu filho, com alguns, poucos, servidores de sua inteira confiança, como era de todos, o mais dedicado, Francisco Lobato. Embora, hoje, deva ser lido com cautela, dado o estilo pole-mista e nem sempre exacto do autor do livro “A última corte do Abso-lutismo” é ele que, neste particular, adianta pormenores, que comple-tam os relatos escassos, que há sobre a questão. Diz ele que, na altura, D. João, “desgostoso da caça, não podendo andar a pé, porque tinha vágados, muito menos podendo andar a cavalo, não querendo receber pessoa alguma, fugira de Queluz, apesar de se estar em pleno Inver-no, 16 de Janeiro” [o autor ignora que no Inverno ou seja, meados de Janeiro, tinha lugar a jornada de Salvaterra, que ia até à 1.ª semana da Quaresma. Logo, não sabe que D. João, apenas evitava aquele, outro sítio, da Casa do Infantado, por causa das febres, de resto, origem física do mal que o prostrou e a outros fidalgos (febres de Samora) em Outubro de 1805 e acabou por ficar ligada à matéria da conspiração e às cartas de Carlota Joaquina para os pais] e para o Alfeite tinham ido com D. João, o filho D. Pedro e D. Pedro Carlos “duas crianças” [outra vez, o autor revela ignorância: D. Pedro Carlos tinha 20 anos feitos]. Acrescenta, com foros de verosimilhança, que D. Carlota Joa-quina, avisada, decidira ir ter com o marido e que, para tanto, manda-

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Ao tempo a que reportamos, já eram decorridos treze anos de vivência continuada e troca de ideias, entre o infante e o seu mestre, José Maria Dantas Pereira – contados da data em que este ficou ao serviço do infante – achava-se, agora, aquele, na flor dos seus vinte anos. O que acaba de ser dito, acerca da lealdade ao tio, falará pelo infante o ensino que lhe era ministrado e os prováveis conselhos daquele homem de bem cujas palavras apenas confirmam o gabarito da sua moral.516

ra preparar “um bergantim e à força de remos” foi ter com ele, à outra banda e dali, posteriormente, viajaram ambos, juntos, até Vila Viçosa. V. Alberto Pimentel: A última corte do Absolutismo em Portugal, Lis-boa, 1893. (Nota: Coincide esta jornada (Março/Abril de 1806) com o início da gravidez da qual nasceria em Dezembro desse mesmo ano a infanta D. Ana de Jesus Maria). Posteriormente à devassa judicial sobre a conspiração é que o Príncipe-Regente adoptou o palácio da Bemposta como residência pessoal, sinal da pública ruptura com a mulher. A partir de Junho de 1806, D. João mudou-se, de modo quase permanente, para Mafra, manifestando desejo de apartação das gen-tes e mergulhado ainda, num estado de profunda melancolia, que não se dissipara de todo. Ver relato da crise de 1805/06, nomeadamente, in: D. João VI, O Clemente. Jorge Pedreira e Fernando Dores Costa, Temas & Debates, 2009. 516 Lembramos, a título de exemplo, o longo discurso, pronun-ciado por José Maria Dantas Pereira, no dia 1.10.1801, no rescaldo da “Guerra das Laranjas” e do “Tratado de Badajoz”, celebrado a 6.6.1801, entre Portugal e Espanha (coligada com a França), perante a Companhia de Guardas-Marinhas, na sessão de abertura da Real Academia dos Guardas-Marinhas, sob o lema: “Longe de nós a servil imitação pregoeira pública de uma inferioridade que, decerto, con-duz à derrota e não há vitória”. E afirma, no decurso da sua palestra: “Por ventura, no meu auditório, não vejo figurando a insidiosa, réptil, odienta e vingativa mesquinhez; mas sim, os meus superiores mais conspícuos e sábios muito distintos, à frente de nobilíssimos alunos da Ciência e da Marinha Portuguesa: oferecendo-lhes, pois, matéria digna e afiançando-lhes brevidade proporcionada; com razão, espero, sem hesitação nem receio, os precisos e naturais efeitos da excelên-cia da educação e da sabedoria; sim, confiadamente espero descul-pas, generosas e atenções benignas.” Oração Recitada na Sessão de

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Perante o trato que o discurso assinala, haverá legiti-midade para duvidar, sem escrúpulo, das qualidades do dis-cípulo? Estamos certos de que corrobora a grandeza delas, não só o mestre, como iremos ver, mas ainda o capelão-real, que nos guiou até aqui, quando sublinha a entrega de D. Pe-dro Carlos às suas obrigações, não hesitando em elevá-lo, quanto ao merecimento, à fama alcançada pelos príncipes D. Teodósio e D. José.517

Descontando o apego que o clérigo mostra ao infante, com o qual estaria particularmente familiarizado, não pode-mos deixar de reconhecer a verdade das suas palavras, cote-jadas com as de Dantas Pereira. Afirma o decano da Capela--real, a propósito do quotidiano de D. Pedro Carlos no Rio de Janeiro, que “raro era o dia em que [o infante] deixasse de empregar em estudo, umas poucas de horas”, não perden-do um “instante em que não lesse, principalmente, naqueles que lhe ficavam sobejos das suas obrigações ou de acompa-nhar a seu Augusto Tio”.

Abertura da Real Academia dos Guardas Marinhas em 1 de Outubro de 1801 e retocada em 1828. In José Maria Dantas Pereira, Escritos Marítimos e Académicos a Bem do Progresso dos Conhecimentos Úteis e mormente da nossa Marinha, Indústria e Agricultura, Lisboa, Impressão Régia, 1828.517 O nome de Joaquim da Nóbrega Cão D’ Aboim surge já antes, entre notícias relativas ao ano de 1790, devido ao facto dele ter sido um dos colaboradores no programa da Acção de Graças, organiza-da pelo marquês de Marialva, D. Diogo, Estribeiro-mor da Rainha D. Maria I, em agradecimento pelas melhoras do Príncipe D. João, na doença que o acometeu e que o teve às portas da morte. Cão D’ Aboim era, então, Prior da Paroquial de São Julião, tendo sido quem pronunciou “uma elegante e patética oração” seguida do Te-Deum pe-los “melhores instrumentistas e cantores de Lisboa”. A cerimónia do Acção de Graças realizou-se no Quartel do Regimento de Cavalaria de Alcântara de que era General o Marquês de Marialva. Antecede-ram estas cerimónias, umas outras, que tiveram lugar no Castelo de S. Jorge, pelas mesmas razões. Vd. da autora: O Ex-voto da Bemposta e o culto do Sagrado Coração de Jesus, in O Reinado do Amor…

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Entrosado com a grande Real-Livraria “tinha de cor a maior parte dos autores que a compunham” e em qualquer dúvida ou questão literária que surgisse, “a sua extraordinária memória local lhe fazia designar com a mão o tomo do autor que trazia e confirmava a decisão que se lhe tinha ouvido”.518

Não deixa o reverendo de salientar, também, o lado pie-doso do infante, não só quanto à bondade natural, que o fazia esmoler de muitos – “praticava copiosas esmolas e pensões nas quais aplicava uma grande parte das suas rendas, ao lon-go do ano, acudindo a uma roda de famílias necessitadas” – mas também, no tocante aos ofícios religiosos, que gostava de atender diariamente, no particular do seu oratório.

Eram pois, estas, algumas características, das que mar-cam a traços largos, tanto a personalidade, como o carácter do infante D. Pedro Carlos, pessoa sempre discreta “nas suas palavras, gestos e conversações”, modos que guardou, intei-ramente, nos contactos com a futura esposa “a quem amou sempre com respeito, antes do matrimónio”, opinião que nos ficou dele, pelo autor referido.519

Ora, tais declarações não podem fugir mais ao concei-to, que há, sobre a figura deste príncipe, se se levar em conta o que acerca dele escreveram autores liberais, sobretudo os espanhóis, inspirados numa manifesta aversão a todos que não comungassem da sua ideologia, numa época de revolu-ção, varrendo-os para o montão donde dificilmente emerge, passados dois séculos já, sobre tais notícias.520

518 Aboim, in ob. cit., p. 17.519 Idem, p. 18520 A ideia generalizada à volta da figura de D. Pedro Carlos, sobre-tudo pelos autores espanhóis, coevos dele, já citados, é a de alguém sem educação, grosseiro, amigo de conviver com os criados e gente de baixa condição, situação e prática que julgavam indigna de um in-fante de Espanha. Tal conceito, mormente ao convívio com a camada plebeia da população é revelador de um pensamento simultaneamen-

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Beneficiando apenas ou tendo sido a fautora da má imagem que os ditos autores colaram ao primo – que D. Car-lota Joaquina não queria para genro – não há dúvida de que a opinião dela lhe aparece sempre colada. É honesto, por isso, reconhecer que os bons e maus motivos da princesa do Brasil radicam noutras razões, como defende o conde de Rodezno, ao opinar que o maior rival às suas ambições políticas (1809-1812), foi o infante, sustentando a sua palavra, o autor, o facto de achar que D. Pedro Carlos era um instrumento dos interes-ses externos à política portuguesa, num xadrez onde impera-vam os de Inglaterra, em prejuízo de Espanha.521

Ao manifestar uma tal opinião, Rodezno aponta o dedo ao gabinete do Príncipe-Regente, onde sobressaía, como principal estratega, o conde de Linhares, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, baseando-se nas informações publicita-das por J.M. Rubio, a partir das cartas do Marquês de Casa Irujo. É este embaixador, quem traça o perfil dos homens de Estado, na corte do Rio de Janeiro, protagonistas daquela tão rica e apaixonante época, histórica, incluindo o do infante de Espanha, que ele tinha por muito pouco inclinado aos espanhóis.522

te burguês e cosmopolita, que desvaloriza o campo e as suas artes. Debaixo do mesmo véu-cinzento, tem prevalecido a imagem de D. Miguel, a quem os inimigos apontam a grosseria de vestir rudes trajos populares. 521 “Pero el infante Don Pedro Carlos fue rival o más bien instru-mento opuesto por la política portuguesa de Rio Janeiro contra las pretensiones de Carlota Joaquina respecto a la América meridional y a estos planes políticos se debió el proyecto de su casamiento, poco después realizado, con su prima Maria Teresa de Beira. Todas las gestiones de la princesa del Brasil para colocarse a la cabeza de la América española y en definitiva, para salvar aquellas colonias para España fueron constantemente entorpecidas por los ministros de su marido, que jamás le dio autorización para ausentarse ni dejo de poner obstáculos en su camino.” Conde de Rodezno. La princesa de Beira y los Hijos de Don Carlos, 2. ª ed., Cultura Española, 1938., p. 26.522 J. M. Rubio, in ob. cit., p. 192.

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É improvável que o parecer do marquês fugisse à opi-nião de D. Carlota Joaquina cuja animosidade ou aversão ia frontalmente contra D. Rodrigo de Sousa Coutinho, na qualidade de Secretário de Estado e Ministro da Marinha e Domínios Ultramarinos, cargo que então desempenhava (1808-1812), trabalhando, com grande abertura, junto do Príncipe-Regente, ao mesmo tempo que colidia, politica-mente, com o projecto da princesa do Brasil.

Da intensa acção do conde de Linhares, naquela quali-dade, enquanto servidor da coroa, dá testemunho cabal e faz jus, tanto à sua fama, como à grande influência, que exerceu no conselho régio, sendo, como era, anglófilo, a produção documental que nos legou. Portanto, reunia o conde tudo, para desagradar a D. Carlota Joaquina, que o apelidava de Dr. Trapalhadas, entre outros encómios.

Neste âmbito, vem a propósito relembrar que D. Pe-dro Carlos é tido, pelo embaixador espanhol, como um dos membros do círculo, inseparável, do Príncipe-Regente, for-mando com o conde de Linhares e Francisco Lobato a en-tourage, que o conde espanhol designa por “trinidad”.523

Mas a entrada do infante na roda do Príncipe-Regente ti-nha razão de ser, se lembrarmos que D. Pedro Carlos era o Gran-de-Almirante da Real Marinha. Faz, portanto, todo o sentido que, neste círculo de poder, concorresse com a sua pessoa, por uma série de factores, bem observados pelo Marquês de Casa Irujo, embora ignorante, quanto à real dimensão, a saber: a formação que o infante tinha recebido de José Maria Dantas Pereira – além da sua natural inclinação – e a parceria com quem geria os assun-tos daquele ministério, que era Linhares. O próprio cargo – ape-sar de desapercebido nas notícias de Casa Irujo – obrigava-o, por dever de ofício, a estar familiarizado, com tais questões específi-cas, relativas à superintendência da Armada.

523 Rodezno, in ob. cit., p. 25.

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Daqui ao casamento com a princesa da Beira, D. Ma-ria Teresa, ia um pulo, na visão estratégica de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, que alguns críticos têm como autor do plano para juntar os dois primos e de pretender colocá-los à frente do governo, a partir de Montevideu, a fim de unir as colónias espanholas da América, sublevadas, redirecionan-do o destino destas.

Por tudo isto, se entendem melhor os motivos, que le-vavam D. Carlota Joaquina a pôr “os pés à parede”, moven-do-se em todas as direcções, a fim de impedir uma tal união e detestar tanto o “grupo” no seio do qual se engendrava – com ou sem verdade – o plano maldito que a consumia, por não poder ser mais contrariador aos seus desígnios de poder.

O grau de dificuldades que D. João teve de vencer, por causa do sobrinho, é o que insinua o Rev.º Aboim, ao ilustrar a alta estima em que este era tido no coração do tio, que o mesmo reverendo avalia como “manancial fecundo donde lhe fluía o amor de ternura e de extrema benevolência, com que SAR o distinguia, como se fosse o mais antigo dos seus filhos”. 524

Ao mesmo tempo, mostrando a alta estima e consi-deração em que o Príncipe-Regente tinha a filha e o gos-to que lhe dava e como encarava uma tal união, garante o prelado que, se não fosse um tão elevado grau de amizade nem que ele tivesse [o infante] um trono por herança e fosse ornado de todos os dotes da natureza, como na realidade era e riquezas da arte, adquiridas pelas suas muitas luzes e grandes talentos, nada o faria digno de receber a mão de esposa de sua primogénita augusta, vencendo para isso muitas contradições.525

524 Aboim, in ob. cit., p. 15. 525 Idem. (Itálico nosso).

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E, noutra passagem, alude o autor aos actos régios, pelos quais, o infante de Espanha passou a auferir dos di-reitos de infante de Portugal, designadamente, nomeações no campo governamental – com que ultrapassou o simples nepotismo – revestindo-o das insígnias das Ordens Milita-res de Portugal, que acompanhou a atribuição do cargo de Almirante-General das Armadas.526

Uma medida daquele alcance demonstra quão longe pretendia ir D. João, muito além da dignificação pura e sim-ples do infante D. Pedro Carlos, demonstrando implicita-mente que tinha por detrás disto um arraigado projecto, que era o de unir pelo matrimónio o sobrinho à sua primogénita. Gesto simbólico e fora do alcance do olhar dos áulicos e de certa historiografia, que não vê nisto senão uma agenda pro-tocolar e corriqueira.

Na verdade subjaziam a tudo sentimentos muito pro-fundos, que remetem para a infância e juventude do Príncipe--Regente cujo significado pode abarcar só quem conhece D. João, por saber que tudo aquilo fazia sentido, se entendido à luz de um compromisso antigo e interior, nunca confessado, devotado à memória da irmã e mãe do infante, D. Mariana Vitória de Bragança, que a morte levou na flor da idade.

Tal facto comprovado, pela sua correspondência para ela, terá sido facilitado pela conveniência política – eventu-almente, sob pressão tanto de Dantas Pereira, como do conde de Linhares – verificando-se a junção do “útil ao agradável”. Quer dizer que não foi descurado o lado prático daquele de-

526 Idem, p. 16. Os direitos na qualidade de infante de Portugal seriam posteriormente, confirmados no filho, infante D. Sebastião Gabriel de Borbón y Braganza, por Decreto de D. João (VI) de 9.12.1811, sendo ainda Príncipe-Regente; Decreto de 13.5.1808 e Carta-patente de 20.6.1808, no Rio de Janeiro, pelos quais, o Prínci-pe-Regente nomeia Almirante-Geral da Marinha o infante D. Pedro Carlos. Biblioteca da Ajuda, BA-54-VII-11, nº 49.

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siderando, que veio a consumar-se no matrimónio dos dois primos coirmãos, em Maio de 1810.

Antes deste acontecimento de carácter privado, vimos como D. Pedro Carlos girava na roda do conde de Linhares, justamente, o responsável máximo pelos Negócios da Ma-rinha, cargo que passou a exercer em (1808-1812) ano da morte do conde, pouco antes da do desditoso infante.

É, portanto, àquele ano de 1808, que vão dar, tanto o título como a alçada do infante ao Almirantado-General das Armadas, como ao conde de Linhares foi acometida a superintendência da Secretaria dos Negócios da Ma-rinha e Domínios Ultramarinos (a que junta a pasta da Guerra). Precisamente é aquele ano que marca o arranque das grandes transformações, operadas no “continente do Brasil” sobretudo, em relação à Marinha Nacional e Im-perial.527

Ao enfatizar a dimensão destas medidas do Príncipe--Regente e do seu gabinete, o historiador Max Guedes, tem em mente o papel fundamental de José Maria Dantas Perei-ra, visto como tendo avigorado cientificamente, a sua imple-mentação, sob a autoridade de Linhares. E cita as áreas nas quais lhe parece de enaltecer a acção gigantesca de Dantas Pereira, em três vertentes: Hidrografia do Brasil, Academia dos Guardas-Marinhas e Depósito dos Escritos.528

527 Max Justo Guedes, in ob. cit., p. 1. Matéria bastante desenvolvi-da pelos autores das referidas teses em separado já citadas, de Carlos André Lopes da Silva e de Nuno Alexandre Martins Ferreira. 528 Neste passo, vem a propósito salientar o facto, que desmente a ideia, ainda prevalecente, acerca da saída precipitada da corte para o Brasil. Este autor brasileiro é quem enfatiza o papel de José Maria Dantas Pereira, naquela circunstância, ao recordar que ele “embar-cou com a sua Companhia, a bordo da nau Conde D. Henrique a 27.10.1807, com a finalidade de passar ao Brasil com o Príncipe-Re-gente, que só embarcou daí a um mês.

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Para não sair desta linha de raciocínio, centrada na pessoa de D. Pedro Carlos, deixaremos de lado especificar a dimensão da acção de Dantas Pereira, em qualquer das grandes áreas, atrás indicadas, pelo que bastará enunciá-las, pois o leitor curioso não deixará de as buscar. Porém, não abandonaremos o assunto sem primeiro chamar a atenção para a grandeza dos planos traçados, então, por os termos achado dignos do elogio de quem domina tais matérias.

É de realçar assim, particularmente, o gigantesco tra-balho de Dantas Pereira, no campo da Cartografia do terri-tório brasileiro, no qual, o ilustre mestre de D. Pedro Carlos se empenhou a fundo, em sintonia com a Sociedade Real Marítima, recém-criada (1798), sob a égide de D. Rodrigo de Sousa Coutinho.529

Para dar cumprimento a este desígnio é que ele, Dan-tas Pereira, havia de antecipar-se à saída da corte de Lisboa, como notámos, levando a bordo da nau Conde D. Henrique “o material didático e o instrumental da Academia e todo o acervo do seu Depósito de Escritos”, isto é, a Biblioteca temática. Igualmente embarcado foi “tudo o que pertencia à Sociedade Real Marítima”.530

529 Discurso de Abertura, pronunciado em 22.12.1798, da Socieda-de Real Marítima, no qual D. Rodrigo de Sousa Coutinho faz men-ção “aos primeiros traços preparados para este grande trabalho, por ordem do Nosso Augusto Príncipe” dizendo que “ainda antes de or-ganizar esta Sociedade” havia de ser exposto “por um dos sábios” os “membros da mesma” que serviriam de “introdução aos futuros trabalhos da Sociedade, nas suas primeiras sessões”. Apud Max Justo Guedes, in ob. cit., p. 12. Como realça este autor, adiante, “o sábio membro” de que falava D. Rodrigo era, exactamente, o jovem Capi-tão-de-Fragata, Dantas Pereira cujo discurso seria publicado só em 1828, avaliado por Max Guedes como anúncio da “craveira dos seus horizontes”. 530 Entre outros, V. Tese Doutoramento de Nuno Alexandre Mar-tins Ferreira, A institucionalização do ensino da Náutica (1779-1807), FLUL, 2013.

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Esta acção conjugava-se com o plano delineado, aquando da criação da referida Sociedade, havendo teste-munho da Relação dos Livros e Impressos existentes no De-pósito da Sociedade Real Marítima Militar e Geográfica, contendo o material remetido para o Rio de Janeiro, reunido até 27 de Junho de 1799 e repartido por duzentos e quarenta e nove títulos. Ao mesmo tempo, a cada sessão, eram apre-sentadas memórias, estudos e relatórios de suma importân-cia, uma boa parte, relativos à navegação e cartografia do Brasil.531

Os trabalhos do sábio haviam de prosseguir com a instalação da corte naquelas paragens pois, a 7 de Abril de 1808, foi criado o Arquivo Militar, anexo à Repartição da Guerra, mas, igualmente, dependente da Armada e Fazenda. A este arquivo fez ele recolher mais de mil cartas e planos, em mil e duzentas folhas em número de 58, várias perspec-tivas.

O autor que aporta esta notícia não consegue escon-der, ele próprio, a sua admiração, perante a imensidão desta tarefa, que classifica de “enorme”, de Dantas Pereira e o em-penho dele na sua concretização.

Limitando a citação, por fastidioso, além de despro-positado, ao cerne da matéria, que respeita, objectivamente, ao infante D. Pedro Carlos, não deixaremos de sublinhar as palavras que servirão, de certo modo, de corolário, à justa intenção que nos move, transcrevendo as de Max Guedes, quando este declara, que tudo o que subsistia à data em que as escreve quer no Serviço Geográfico do Exército, quer na Directoria do Património ou no nosso Arquivo [do Brasil] constituía acervo cultural que faz Dantas Pereira merece-dor da maior gratidão dos hidrógrafos brasileiros. 531 Max Guedes declara que tinha sido graças ao zelo de Dantas Pereira que se tinham salvado muitas daquelas obras, as quais ainda hoje estão depositadas nos Arquivos do Brasil. In ob. cit., p. 15.

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Porém, como se isso não bastasse – adianta o mesmo autor – Dantas foi o mais actuante membro da Sociedade Real Marítima, tendo apresentado, pelo menos, Dezasseis Memórias, trabalho que, sob a mesma forma, não cessou de realizar, depois de regressar à Metrópole.

Tudo o que fica sumariado note-se, não é senão uma exígua parte do que inventaria Max Guedes, só na área da Hidrografia, quando remete o leitor para os trabalhos de Dantas Pereira. Há que ler também o que escreve, acerca das duas outras áreas, das quais, talvez não seja a de menor im-portância, a respeitante à Academia das Guardas-Marinhas, de que o próprio Dantas assumiu a direcção, em 1800, sendo Lente de Matemática da Academia e, ainda, a que remete ao “Depósito dos Escritos”.532

Para encurtar, visto não ser necessário ao nosso pro-pósito ir mais longe, daremos uma pálida ideia da riqueza intrínseca do conjunto de matérias e respectivos acervos, enunciados por Max Guedes, quando descreve o empenho de Dantas Pereira na criação do “Depósito dos Escritos”, a primeira biblioteca pública do Rio de Janeiro cuja abertura teve lugar em 1810, isto é, dois anos após, início da sua ins-talação e aprovisionamento.

532 Lembramos que Dantas Pereira foi o responsável pela gestão daquela instituição, pelo reaparelhamento material da mesma e insta-lação do Depósito de Escritos Marítimos ou Biblioteca para uso dos Guardas-Marinhas, criada por Decreto de 1.4.1802. Por Provisão-ré-gia de 31.7.1807, foi nomeado Director dos Estudos da Academia e nessa qualidade embarcou para o Brasil, com os seus subordinados, na nau Conde D. Henrique, a 27.10.1807, como ficou anotado já. Mal aportou (24.3.1808), Dantas Pereira procedeu correctamente à insta-lação da Real Academia das Guardas-Marinhas, deixando as provisó-rias da “Rua dos Ourives” para passar às Hospedarias dos Religiosos Beneditinos, próximo do Arsenal. Mas, como diz Max Justo Guedes, as suas tarefas nesta matéria, não ficariam por ali.

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Não receamos afirmar que de todo este afã era acom-panhado de perto pelo infante D. Pedro Carlos, garantia que no-lo chega da parte do próprio José Maria Dantas Pereira, através da memória que legou à posteridade, onde testemu-nha ter tido a fortuna de viver ao lado de SA, com a maior intimidade, perto de quinze anos.533

Tal afirmação do mestre suscita várias reflexões, des-de logo. A primeira é que 15 anos representam mais de meta-de da vida de D. Pedro Carlos, visto a sua morte ter ocorrido pouco tempo, antes, de completar os 26 anos.534 A segunda reflexão, que decorre da primeira, é que a probidade e intei-reza de carácter de José Maria Dantas Pereira não lhe per-mitiriam afiançar algo, que o afastasse dos seus princípios de ordem moral, verdade que provou, no fim da vida, pelas circunstâncias a que ficou sujeito.

A terceira reflexão prende-se com a certeza de que o infante há-de ter recebido dele influências que marcaram a sua conduta, o que o próprio Dantas Pereira reafirma ao dizer que em SA não havia segredos para ele, declaração que pode ter bivalente. Ao comparar-se a si mesmo com Diogo de Teive, que classifica como “insigne”, confessa que este, no seu tempo, não dispusera de mais motivos do que ele tinha, aquele, para escrever as vidas do infante D. Duarte ou do Príncipe D. João e ele para narrar as do seu discípulo, como espelho das virtudes daqueles dois, príncipes.535

533 Dedicatória, in ob. cit. 534 D. Pedro Carlos nasceu em Aranjuez a 18.6.1786 e faleceu no Rio de Janeiro a 26.5.1812.535 A qualidade pedagógica de José Maria Dantas Pereira nunca será por demais exaltada, tal o merecimento da sua actividade. Basta dizer que o Elogio abre da maneira mais inesperada, com um sumário te-mático, revelador da sua maneira de trabalhar, precedida de reflexão e não apenas de mera inspiração.

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A quarta reflexão – outras poderiam ocorrer – é que no sumário que precede o Elogio fica provado que a nomeação do infante D. Pedro Carlos para o lugar cimeiro do Almiran-tado tinha a ver com o reconhecimento das qualidades, que o recomendavam, sendo simultaneamente um aliado e um de-fensor dos projectos do mestre, junto do Príncipe-Regente.

536

Convém à verdade referir que o carácter laudatório não é o que sobressai do Elogio de Dantas Pereira. Isto é tanto ou mais surpreendente, quanto o facto se ser dedicado à princesa da Beira, viúva do infante D. Pedro Carlos que, melhor do que ninguém podia avaliar a veracidade daquele discurso, sem falar do próprio Príncipe-Regente. É também visível a preocupação do autor de ir ao pormenor da criação do infante, que chegara a Lisboa com 3 anos e ½ de idade, órfão de pai e de mãe e à alusão da figura maternal que, pela finura de trato e amor, era a mais indicada para o criar: a avó e rainha, D. Maria I.

Obviamente e é bom aclarar, que não era mister das rainhas nem das princesas cuidar directamente das crianças as quais, pela sua condição, desde o berço, ficavam entre-

536 O Decreto-régio, que nomeia o infante D. Pedro Carlos para o cargo, faz menção a aspectos de índole pessoal e funcional. Quanto ao primeiro, sublinhe-se o facto de se reconhecer ali “a indelével afeição e o exemplar acatamento, que de maneira constante vinham sendo demonstrados” pelo infante perante o Príncipe-Regente. O segundo é o reconhecimento dos “naturais talentos, aplicação e conhecimentos” patenteados pelo infante”. Sob o ponto de vista da abrangência e al-cance do cargo, consta ter sido criado o posto de Almirante-General da Marinha “privativa e unicamente pelo declarado motivo e oca-sião”, sem que pudesse “jamais servir de acesso a qualquer pessoa, quaisquer que fossem os “seus serviços”. Do restante teor se entende, feita a confrontação, que este cumpria o caderno de encargos reflec-tido na actividade do infante, conforme sumário apresentado no Elo-gio, por Dantas Pereira.

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gues ao cuidado das amas, aias e açafatas, as quais tinham responsabilidade imediata, sobre elas, visto ser seu dever acompanhá-las de muito perto “no quarto” – era a expres-são – senhoras, escolhidas, entre as da melhor fidalguia, na qualidade de damas e camaristas, nomeadas. Foi uma comitiva deste grau, precisamente, a que o infante trouxe de Espanha, ficando – tanto quanto sabemos – entregue, por fim, ao cuidado precoce e quase exclusivamente de D. Maria Madalena de Moscozo, exclusividade que se pro-longou no tempo, derivado à doença da rainha, além da preceptoria do mencionado padre Marín, como reforçamos noutras passagens.537

Serve a revisão da matéria, de enquadramento ao dis-curso de Dantas Pereira, que reconhece, em tom de crítica, ter o menino ficado entregue a criados de todas as hierar-quias do real paço, meio, ainda assim, preferível de o educar – conforme expressa – mas que todavia, o tinha deixado ex-posto na mais tenra idade, à influência de tantos e tão diver-sos concorrentes, que não cooperaram para se abrilhantar e caracterizar mais decisiva e convenientemente o espírito e o coração de SA, avaliação esta, que nos leva a entender que, sendo exemplar a personalidade do discípulo, muito mais se poderia esperar dele, se tivesse ido mais longe, desde o início da sua educação pedagógica.

O julgamento velado, que pressupõe alguma falha, no seu entender, indo contra os princípios iluministas, perfi-lhados, pelo mestre, é mais perceptível quando declara que homens e com especialidade os mais distintos deviam ser educados à maneira das plantas mais mimosas, com escolha de cultura apropriada e com um coerente resguardo, pois, uma vez, deixadas ao acaso – entende-se – mais tarde ou se

537 Cf. Relato da jornada do infante desde Vila-Viçosa até Lisboa, pelo Marquês de Marialva, com que fecha este apontamento. Vd. Apêndice.

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defendem a si mesmas ou são defendidas, por aqueles que mal os tinham instruído.538

Tal não obsta de reconhecer publicamente a pro-pensão natural do infante para o bem como fruto de boas árvores, o qual nunca se desmentira na observância dos seus essenciais deveres, aspecto a ter muito em conta, em nossa opinião. Contudo, Dantas Pereira mostra-se severo, quanto ao mimo de que o infante fora alvo (e vítima), por ter sido criado com delicadeza extremosa, coisa habitual numa criação entre braços de senhoras, como quem diz, que o infante fazia o que queria, tirando partido, como criança mimada, da sua graça cativante aparência física, a juntar à orfandade e alta hierarquia e sobrestimado pela aia espanhola, que impedia o seu crescimento intelectual, animadversão indirecta, que percorre parte do discurso do mestre.

Contrasta abertamente a opinião de Dantas Pereira com a do Rev.º Cão D’ Aboim, neste particular, onde reco-nhece – com franqueza – as falhas da educação do príncipe, na infância, sendo esta diferença de critérios, justificada, em

538 Parecem aludir estas censuras à influente camarista do infante, D. Maria Madalena Ruiz de Moscozo cuja personalidade pro-espa-nhola deixava a desejar muito nos meios castiços da corte de Lisboa. Por outro lado, percebe-se que Dantas Pereira era seguidor (ao me-nos admirador) dos métodos de ensino que tinham sido aplicados em relação à educação do Príncipe D. José, que morreu antes de chegar ao trono, como recordamos, o qual fora entregue ao cuidado de Frei Manuel do Cenáculo, entre outros mestres, de renome, do mesmo escol e afiliação, como seja, Miguel Franzini, Lente de Matemática da Universidade de Coimbra e Academia Real de Marinha e Sócio da Academia Real das Ciências de Lisboa. Corrobora o que fica dito, sobre Dantas Pereira e a sua aposta nos métodos de ensino iluminis-tas, o opúsculo da sua autoria: Memória para a história do grande marquês de Pombal no concernente à Marinha, sendo a de Guerra o principal objecto considerado, Academia Real das Ciências, 1832.

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parte, pela diferença grande de idades, dos mestres. Assim, entendemos que era a condescendência de avô que falava pelo prelado e a exigência do homem da ciência, em Dantas Pereira.539

É de destacar a saúde frágil de D. Pedro Carlos, aspec-to para o qual Dantas Pereira chama à atenção. Propensão para apanhar infecções é o que se deduz das suas palavras, quando lamenta que o jovem príncipe não se tivesse sabi-do resguardar das fadigas excessivas que teriam concorrido para a sua morte precoce, tendo exaurido, mais rapidamente do que seria desejável, o manancial da sua existência. As-sim, fisicamente pouco robusto era atreito às enfermidades, que o mestre testemunhou, desde que entrara ao seu serviço.

Explicitamente declara que tal se verificara sempre, ao longo de quinze anos, tendo o infante caído de cama re-petidas vezes, das quais, algumas, acometido por doenças muito graves, como fossem, bexigas e ataques epilépticos. Foi, justamente, durante um destes, que a vida de D. Pedro Carlos foi ceifada, tal a violência do paroxismo.

Todavia, ao contrário do expectável, o infante mostra-va uma energia de alma e um vigor que, mal melhorava, res-surgia com grande actividade, período, durante o qual, era visível a entrega, com que procurava examinar tudo e girar

539 José Maria Dantas Pereira nasceu em 1772 e, como se viu, era Lente de Matemática já em 1801, além de oficial de carreira, na Aca-demia dos Guardas-Marinhas. Andaria pelos 25 anos quando passou à condição de mestre do infante. Já Monsenhor Cão D’ Aboim, não há notícia da data do seu nascimento, embora se saiba que entrou na Congregação do Oratório em 1757, o que significa que terá nascido c.1740. Em suma, Dantas Pereira, que era um homem com formação em ciências puras, embora não desprezasse as humanidades, como se conclui do amplo programa, que ministrou ao infante, explicito no seu Elogio, enquanto a de Cão D ‘Aboim, era, essencialmente doutís-simo em humanidades, sendo eclesiástico.

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ou trabalhar sem interrupção até ao limite, situação que se tornara pública no decurso da sua última e final catástrofe.540

A preferência por ocupações tipo passatempo, é con-firmada também, por Dantas Pereira, ao encontro do que in-forma Cão D’ Aboim, sendo este mais elogioso, do que críti-co. Na opinião do primeiro, tais passatempos – em função da inclinação natural, para a prática deles – teriam contribuído para a debilidade física de D. Pedro Carlos: o torno, a caça, andar a cavalo, a cultura de jardins, hortas e campos e o seu “teatrinho” particular, gosto, que tinha pelas artes e cultiva-va desde cedo e adolescência.

Reconhece tratar-se de diversões inocentíssimas, quando adianta que nunca lhe conhecera, criminosas ou re-motamente, suspeitas. Frisa o mestre que o senhor infante lhe pareceu religioso sempre, nos anos que tinha passado ao seu lado e que correspondera identicamente com entrega aos seus esforços, de lhe inculcar ou adiantar, nele, o conhe-cimento. De tal maneira era assim, que lamentava, desgos-toso, não ter podido adivinhar o fim da sua vida, tão breve, poupando-o.

Como homem de bem, já Dantas Pereira enaltece o papel do muito honrado P.e Marín, a quem tinha sido confia-do os chamados estudos menores do infante, ao passo que, a ele, Dantas Pereira, tinha sido entregue, pelo Príncipe--Regente, o resto da formação do infante, então, com 11 anos. Mas havia aulas de outro tipo, as quais o infante esta-va obrigado a exercitar: dança, esgrima, além das línguas e desenho, juntamente com alguns brincos militares que, pelo tempo adiante – como afirma – viriam a tornar-se mais sé-rios e mais instrutivos.541

540 Luís Joaquim dos Santos Marrocos, Cartas do Rio de Janeiro: 1811-1821, BNP, Lisboa 2008.541 Para Dantas Pereira, sempre crítico, fora com atraso que o in-

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Elenca o mestre as disciplinas que ele ministrava ao discípulo: Francês e Geografia, História-geral e a particular de Espanha, Matemáticas puras (exceptuando Cálculo supe-rior), noções elementares de Mecânica, da Cosmografia e da Artilharia, as das evoluções da Infantaria e Cavalaria, grande parte dos Elementos Botânicos de Brotero542 e todo o Curso Físico-químico de Jacotot, as Artes de Pensar, Raciocinar e Escrever de Condillac assim como outras, leituras, intermé-dias, em cujo ensino declara ter procurado manter exemplar coerência, enquanto mestre, de o praticar, como falava, tendo--se desvelado no sentido de adiantar ao mesmo passo, a cul-tura do espírito e a do coração do Senhor infante.543

Lembra um episódio muito curioso, relativamente ao pai de D. Pedro Carlos, infante D. Gabriel de Borbón y Sa-jonia (tradutor de Salústio),544 quando o filho o pretendeu imitar, ao empreender a tradução dos “Anais de Tácito” cujo bosquejo garantia ter ainda na sua posse.545

fante se iniciava em tais práticas e conhecimentos, porquanto, aos 10 anos não ia além do conhecimento das primeiras letras e do Latim e da Metafisica de Genuense (esta última cadeira, segundo o programa da reforma pombalina).542 O célebre botânico português, Félix de Avelar Brotero (1744-1828).543 Dantas Pereira acrescenta, que o infante dava as matérias e que as acompanhava, com leituras, suplementares, sendo estas leituras em espanhol, francês e inglês. A título de curiosidade, saliente-se do seu programa didáctico a enciclopédica “História geral das Viagens” do Abade de Prévost. Cf. Elogio, p. 34.544 A que ponto chegava a erudição de Dantas Pereira! De facto poucos saberiam deste requinte literário, do pai de D. Pedro Carlos. Há notícia desta tradução da obra de Salústio (que o próprio infante Gabriel traduziu e ofereceu à sogra, a rainha D. Maria I), conforme notícia nas cartas, publicadas, pela autora in, Com o mais fino Amor – Cartas íntimas da Rainha Dona Maria I para a Filha (1785-1787), Chiado Editora, 2014.545 Dantas Pereira indica que o ano lectivo do infante durava 6 me-ses, na razão de 4h diárias de aplicação activa e “diversões prove-

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Quanto às qualidades morais do infante, Dantas Pe-reira ressalta o que foi dito, pelo capelão Cão D’ Aboim, no sentido da dignidade que demostrou, ao escolher a perda do direito à herança paterna, enquanto infante de Espanha, do que abandonar o tio, na hora dificílima da decisão da ida da corte para o Brasil e mesmo, antes, durante o conflito con-jugal de D. João (VI), decorrente da conspiração que visava destroná-lo, matéria esta, delicadíssima, que os citados au-tores evitam ali abordar, objectivamente, dando- a entender, somente.

Politicamente, esta opção do infante de Espanha, sig-nificava que preteria a pátria de origem, a favor do vínculo com Portugal. Também neste particular, fica evidente, as di-ficuldades de vária ordem, com que D. Pedro Carlos teria sido confrontado, no íntimo.

De acordo com os objectivos que delineara abordar, no seu Elogio histórico, Dantas Pereira dá-nos conta da pas-sagem do infante, da vida privada à vida pública, coinciden-te com a chegada ao novo-Mundo, mudança que o autor não

nientes da sua situação politica e do tempo necessariamente dado às outras lições”. Converte depois o número de horas em função das regências académicas, para melhor se poder avaliar o tempo gasto ao longo do processo de ensino/aprendizagem. Não deixa de elogiar o aluno, quanto à sua capacidade de resposta, em relação aos exer-cícios propostos, indo o mestre ao ponto de guardar e manter ainda em seu poder, alguns desses exercícios, como refere no seu Elogio histórico. É de realçar ainda, a favor do método de trabalho, de José Maria Dantas Pereira, as chamadas à nota explicativa – muitas vezes, mais desenvolvidas do que o corpo do texto – dos enunciados que faz, nomeadamente, quanto aos autores que seguia como orientadores da sua pedagogia, relativamente às disciplinas, enunciadas, o que, além da curiosidade que desperta, não pode deixar de surpreender pelo cuidado e modernidade do seu método de ensino, sempre a par das novidades, publicadas e que saíam no estrangeiro, ministradas por ele, na língua original.

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hesita em qualificar como os dias os mais radiantes de SA, os quais, correspondem aos da sua emancipação. Sintetiza as etapas, que o leitor já conhece, desde a eleição para o alto cargo de Almirante-General da Marinha de Portugal e o seu empenho, entregue tão-somente a si mesmo, para desen-volver à maneira de relâmpago, o clarão fulgurante do seu zelo, da sua actividade, da sua inteligência, do seu amor à verdade e à real pessoa de seu amado tio.546 546 Eis em síntese os subtítulos que Dantas Pereira elegeu e debaixo dos quais desenvolve a matéria de que trata, a propósito do exercício do infante D. Pedro Carlos, alçado ao cume hierárquico do Almiranta-do: Entrega do seu cargo – empossado numa vastíssima repartição, mal recebeu o decreto da sua nomeação (pela data de 20.6.1808, que o autor indica, como tendo sido uma data memorável na vida de D. Pedro Carlos, será a da carta patente e não do decreto de 13.5.1808): Visita às Naus e ao Arsenal, na companhia do Ministro de Estado (conde de Linhares) em sintonia com as ordens expressas pelo Mi-nistério. A atitude do infante – diz Dantas Pereira – era a de alguém “navegando sem carta nem bússola em tão dilatados, quanto procelo-sos, mares” para dar uma ideia pálida do mundo onde o infante entra-va. Descreve de seguida os primeiros passos de Sua Alteza, em que fala das cartas e ofícios, pelos quais o infante requereu conselho às pessoas de qualidade, indicadas, em virtude das mudanças que o pró-prio decreto implicava, nos serviços; As providências a bem do real serviço e da boa harmonia, onde realça a sua preocupação para evitar melindres institucionais, face ao exercício da sua autoridade, a todos os títulos nova e criação de um regulamento, visando a boa ordem entre si e os seus oficiais, os mais graduados da Marinha; Regula-ção provisória e constituição de um Conselho Naval, enquanto se discute a nova orgânica; Inquérito ao estado das coisas e pessoas (a corte tinha acabado de se instalar no Brasil), através de cartas mis-sivas, que dirigiu às autoridades no terreno; O estado da Armada, através de um levantamento exaustivo; O desempenho quotidiano do infante no exercício do seu cargo, título em que o autor não escon-de a sua admiração, face à postura do discípulo, nesta interrogação: “quem há que não pasme de o ver, já agora fora da barra, assistindo à saída das embarcações, muito antes de se efectuar a do sol?”; Já na secretaria até de noite, dando despacho e audiência “com a mais imparcial justiça”; A repartição e a moderação em castigar; No

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Este é o modo de acolher a ideia do autor, quanto ao grau de autoestima revelado pelo infante, como reacção ao estímulo da sua valia, reconhecido, em primeiro lugar, pelo do Príncipe-Regente. Até ali, a vida de D. Pedro Carlos, não duvidamos, há-de ter sido pouco interessante, se visto de

Reformar e restabelecer a Real Fazenda; Preços da farinha e do milho; Pagamentos; Reequilíbrio favorável da Economia com su-peravit, superior a 400 mil cruzados anuais; Reforma e aumento do Arsenal; Diques; Cordoaria, Fábrica de Lona / Produções respec-tivas do Brasil, Angola e Carnaubais (Brasil); Administração das matas corte, condução e conservação das madeiras de que reco-lhe 426 amostras; Fornece os armazéns do Pará; Madeiras sem despesa; Correspondências exteriores (onde se trata das relações com os diversos Estados, designadamente, Estados Unidos, Inglater-ra, Rússia, Suécia, África e Ásia); Desarmamentos e armamentos¸ Defesa e melhoramento de portos; Alistamento; Intendência; Recrutamento; Disciplina e serviço de bordo; Código marítimo; Cirurgiões; Quartel-general e Secretaria; Biblioteca e Academia Naval; Conferências navais, literárias; Ultramar; Tabuadas náu-ticas; Táctica e Telegrafia-naval; Hidrografia brasiliense. Dantas Pereira faz ainda uma revisão do que fica dito, à maneira de Conclu-são; passa depois a fazer considerações, visando o carácter do infante D. Pedro Carlos num apontamento, à parte: Revolução espanhola (onde nos dá conta da resolução voluntária do infante de apoiar com rendimentos da sua casa as despesas da revolução em Espanha que, por sua determinação, mandou ficasse sepultada no silêncio “bem como algumas semelhantes”; Presidência da Academia das Ciên-cias (Abrindo um parêntesis repetimos aqui as considerações que Dantas Pereira tece neste particular, acerca do infante, seu discípulo: “Portanto, cumpre informar que, considerada a grandeza da inteligên-cia, dos conhecimentos, dos serviços e da Pessoa do Senhor infante, assim como a da bem merecida afeição, com que era distinguido pelo Príncipe Regente Nosso Senhor, não foi sem razão, que os meus ilus-tres consórcios académicos nomearam Sua Alteza para seu Presidente perpétuo; eu conheci que o Senhor infante foi sensível a esta eleição; eu julgo, ainda hoje, que Sua Alteza desejava e se propunha corres-ponder-lhes, concorrendo quanto pudesse para o progresso das luzes e para o bem dos literatos, verdadeiramente merecedores da pública e real consideração” [Elogio, p. 28]; Vida doméstica. (Negrito nosso).

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fora, entregue a um viver solitário, como fuga às tensões fa-miliares, apesar do esforço do mestre, em alterar esse rumo e incutir nele o apreço pela sua condição, como somos le-vados a crer e notamos, também, em Cão D’ Aboim, dada a maneira deste se referir sempre, afectuosamente, às angús-tias do infante.

O que se segue na narrativa biográfica do seu discí-pulo cola-se já às tarefas imputadas a José Maria Dantas Pereira, na medida em que as acções que ele atribui ao in-fante – meu infante, como pede licença para dizer – são o reflexo da sua própria entrega e zelo, o que vai ao encon-tro do que vimos relatando, acerca do incansável labor de Dantas Pereira.

Concluímos, portanto, pelo relato que nos chega, tratar-se este da narrativa dos passos de ambos, num quoti-diano harmonioso dos próprios cargos, o que desfila diante do olhar, crítico, quando desconfia de tanta magia e consa-gração ao exercício de uma causa comum. Todavia, é justo declarar que a confiança que o autor nos merece, quanto à veracidade do seu testemunho, afasta do espírito de quem o leia, qualquer sombra de dúvida, inicial.

Entraríamos num território especulativo para o qual não dispomos de meios convenientes para o ultrapassar. Portanto, terá de ficar à margem destas ponderações. Não deixaremos ainda assim de admitir, publicamente, a surpre-sa de que somos tomados, talvez admiração, a qual tende a ultrapassar o sentido do verbo.

Que razões terão levado Dantas Pereira a atribuir ao seu infante a mais-valia das competências que os historiado-res lhe dão a ele? Onde é que começa a tarefa de um e acaba a do outro? Mero elogio inconsequente e falho de compro-misso com a verdade, em função do próprio ego? A resposta custa a formular, na medida em que os actos e o intelecto de

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Dantas Pereira não nos permitem dar duas opiniões, contra-ditórias. Nele, não vislumbramos senão honradez, à altura da grandeza do seu talento.

A resposta é certamente mais simples do que aquela que o engenho procura: a simbiose da acção de ambos, uma vez que Dantas Pereira, no terreno, carecia da sentença que, na es-fera do poder, D. Pedro Carlos ajudava a deferir. Neste sentido, imediato, vemos que o infante não só deferiu, como mostrou corresponder, à altura da intenção do mestre. Mas poderia o mestre arrecadar os méritos de uma empresa daquela enverga-dura, como a que levou a cabo, homem de ciência, sozinho? O que parece é que o mérito que lhe cabe quis, com justiça e de seu livre arbítrio, dividi-lo com o infante, a quem dedicou indesmentível amor filial, adoptando-o, como criatura.

Quatro anos é o tempo de duração da laboriosa e in-tensa partilha. Como fica dito, pela boca do próprio, a liga-ção entre mestre e discípulo não podia ter sido mais aberta. Corresponde aquela ao período mais feliz de D. Pedro Car-los, felicidade que transportou para a execução da tarefa de que estava investido e com que respondeu à expectativa, não desmerecendo o crédito nem a confiança depositada nele, tanto pelo mestre como pelo tio. Mas foi o corpo que detraiu a vontade do infante. Dantas Pereira assim o entendeu, la-mentando não ter sabido fazer essa leitura, a tempo.

Da exaustão do infante há notícias em mais de um testemunho. Um é o de Luís Joaquim dos Santos Marrocos cujas cartas são o diário do seu próprio quotidiano, no lon-gínquo Brasil, que nos chega, através do preciosismo com que escreve ao pai em Lisboa. Por meio das missivas, vemos desfilar os membros da família real, vez, após vez, no cons-tante da sua rotina. Mas, como quase sempre, em todas as notícias do mundo, muitas vezes é mais o que se diz do que o que era, deveras.

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Assim avaliado, vemos que os critérios de Marrocos partem da sua experiência. Por isso, a culpa dos males de que padece, atribui-a a causas climáticas. De tal modo era assim que – afirma ele – as pessoas ao cumprimentar-se na rua não se perguntavam pela saúde, mas sim de que é que se queixavam. A ironia traduzirá outro tipo de clima, o psico-lógico, que era o que pairava entre os recém-instalados, da Metrópole, tal como ele. Ajunta amiúde, que a família real procurava alívio, à insalubridade das estações, na mudança de sítio.

A 3 de Abril de 1812, além dos seus queixumes, Mar-rocos dá conta de que o Príncipe-Regente se tinha retirado para a xácara de São Cristóvão, com tenção de passar para Santa Cruz, mas que a mudança não se chegara a verificar, por constar que o contágio de que fugiam se estendera ali, tendo vitimado mais de mil pessoas num curto espaço de tempo. É neste seguimento, que surge a notícia de que o infante D. Pedro Carlos tinha passado muito doente e a ra-zão era – segundo diz – por excesso de exercício conjugal, inferindo-se do contexto, que esta opinião se sustentava no facto de (os médicos) terem mandado separar os cônjuges.547

Tal dedução sobre a causa directa da doença do infante não aparece em mais nenhum dos autores consultados. Não alude a isso Dantas Pereira que, vimos, não deixou de apon-tar a fraca saúde e a propensão do infante D. Pedro Carlos para contrair infecções. Igualmente sublinhava, o mestre, o

547 Emite idêntico parecer logo na carta de 23 de Maio, embora assi-nale o estado de melhoria do infante, para logo a 29 informar o pai de que “o Senhor infante Dom Pedro Carlos falecera a 26, na xácara de São Cristóvão, pelas 6h20m da tarde”. Esclarece, todavia, ser engano, dizer-se que a Senhora princesa Dona Maria Teresa estivesse pejada, (conforme constara) havendo mesmo certeza do contrário. Acrescen-ta como novidade que no dia da morte do infante, tinha falecido, da parte da manhã, o 2.º Marquês de Pombal.

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entusiasmo do discípulo, no modo com que se entregava ao que fazia e a crise de epilepsia da qual falecera.548

No que respeita à vida conjugal do infante, Dantas Pereira não fornece indícios que possibilitem um juízo de valor na linha da notícia veiculada por Marrocos. O que ele recorda é ter sido o infante tão modesto, como bom marido, dando mostras do bom pai que havia de ser, à semelhança do que sempre mostrara, como bom sobrinho.549

Já no campo da sociabilidade e ambiente cortesão, Dantas Pereira – que não se desvia neste ponto do Rev.º Cão D’ Aboim – considera o infante liberal e benigno, no trato com os criados, silencioso sem afectação e sem reserva, sin-gelo, sem desalinho, comedido, pacífico, sem apego a inte-resses.550

Aos actos públicos e privados do infante, num espaço tão curto de tempo, paradoxalmente, ficou-se a dever as pri-meiras funções reais do género, realizadas no novo-Mundo, centradas no seu casamento e no baptismo do filho, lugubre-mente finalizadas, com o seu próprio funeral-real, episódios assinalados devidamente pelos testemunhos. Para a entrega íntima dos esposos – que não aceitamos como causa direc-ta da doença e morte do infante – há-de encontrar-se outra explicação.

A verdade é que a vida de D. Pedro Carlos – partir do momento em que tomou consciência da sua realidade,

548 Já Cão D’ Aboim justifica a morte do infante “à força de um grande estupor, que em várias repetições o acabrunhou e extinguiu”, com “intervalo de poucas horas” em que se registara uma “melhoria repentina” durante a qual o infante tivera lucidez para os sacramentos e recitar Isaías (Cap. 38): Quando apenas me ia desenvolvendo, cor-tou-me o Altíssimo pela raiz. Cf. Elogio, pp. 19-20.549 Pereira, in ob. cit., p. 28.550 In Elogio, pp. 19-20.

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neste mundo – só se pode imaginar como muito difícil. A aia espanhola – a sua companhia mais presente e com quem comunicava na língua materna, desde o berço – foi quem traiu a confiança e os seus sentimentos mais profundos, para cúmulo. Apurou-se que era a casa de D. Maria Madalena de Ruiz Moscozo – é dela que se fala – o centro das conferên-cias conspirativas de 1805/1806, contra o Príncipe-Regente, sendo a dita sua aia apoiante de D. Carlota Joaquina, facto que há-de ter marcado indelevelmente a relação dos primos.

A pergunta para a qual se procura uma resposta é sa-ber como seria possível não ficar afectada a confiança e a autoestima de alguém, mesmo de um príncipe, numa pátria que não era a sua, abalada e posta em causa em um tão alto grau, a posição do único membro da família, sua mais cons-tante e inabalável referência? Eis uma razão, plausível, para a necessidade de achar ocupação do tempo, mantendo-se, deliberada e permanentemente, afastado do ambiente da corte, não evidenciando contrapartidas, no campo político, em nenhum dos lados da fronteira.

D. Maria Teresa de Bragança aparece neste contexto, como a única pessoa que soube despertar nele, infante D. Pedro Carlos, afectuosos e sinceros sentimentos de amor. Não deve estranhar-se, portanto, que o infante procurasse e recebesse na companhia dela, enquanto esposa, uma atenção superior aos olhos do observador, habituado a uma corte do-minada pelo rigor, exigente e protocolar, quanto ao decoro e exibição marital dos afectos.

Pode ser esta a chave para decifrar o mexerico, sobre os seus excessos conjugais. Excessos do infante haveria, so-bretudo, no desejo de corresponder ao que se esperava dele, mais do que lhe permitiam as próprias forças, com a vee-mência de quem provou, enfim, nos exíguos dois últimos anos de vida, realmente familiar, a plenitude. Que ia além de

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simples fachada o alcance da sua intervenção institucional, ao encontro do que testemunha Dantas Pereira, sobre as ta-refas que lhe tinham sido confiadas, comprova-o, por outro lado, Marrocos, a partir do Rio de Janeiro, donde escreve a 29 de Maio:

Hoje se faz o seu funeral [de D. Pedro Carlos] com a pompa mais brilhante e luzida que é possível e vai depositar-se o seu cadáver na Igreja de Santo António dos Capuchos. É incrível a falta que faz este infante a todos os seus criados e famílias e o desarranjo que daqui vai a proceder-se. Creio que haverá grandes mudanças em todos os indivíduos em-pregados na Repartição da Marinha de que o dito Senhor tinha o governo.551

Logo a 17 de Junho Luís Marrocos comenta:

Acabo esta, com a participação de que pela morte do Senhor infante Dom Pedro Carlos vai fazer-se uma grande reforma em alguns objectos552 (…) pensões a todas as pessoas que as 551 A respeito das honras fúnebres de 26.6.1812, que tiveram lugar, um mês depois do luto decretado, acrescenta: “Ontem se cantaram umas magníficas Matinas novas, compostas por Marcos [Portugal] e hoje foi a Missa de Ofício [de Mortos], tudo por alma do defunto Senhor Infante Pedros Carlos, na Capela-real, a que assistiu SAR… [Príncipe Regente, D. João (VI)] ”. Cf. ob. cit., p. 138. Desta matéria dá-nos conta também o Rev.º Cão D ‘Aboim: “No dia trigésimo, or-denou SAR o Príncipe-Regente Nosso Senhor as suas exéquias [do infante] na sua Capela-real, com ofício e pontifical, que celebrou o Ex.mº e Rev.º Prelado Capelão-mor, composta a sonora e patética música pelo insigne Mestre dos Senhoritos Portugueses e compo-sitor régio da Real-capela, Marcos Portugal, com tanta energia e propriedade que rara seria a pessoa que se não sentisse comover e principiando a função pela manhã, acabou pelas cinco horas da tar-de, desejando todos conservar nos corações o retrato de Sua Alteza Sereníssima, devendo-se gravar no que lhe dedica a Nação ou seja na Europa ou nas Conquistas, com caracteres indeléveis “Quando inveniemus parem”. In ob. cit., p. 21.552 Doutro modo: assuntos institucionais.

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recebiam; os ordenados de todas as repartições diminuídos; e outras repartições inteiramente extintas; e creio que tam-bém a Biblioteca padecerá diminuição.553

Não é menos expressiva a maneira como Dantas Pe-reira confessa o abatimento e o desamparo que experimen-tou, na morte do infante, que o fizera voltar ao seu “retiro” e ao seu “silêncio”. Estas palavras a serem sinceras, como se crêem, provam a força do cordão de cumplicidade que os unia, focados na convergência dos mesmos propósitos, em prol do progresso e engrandecimento da Pátria, aproveitan-do o ensejo que abriam os novos horizontes. Conformava--se a este desiderando, a prática esclarecida do conde de Li-nhares cuja linha de acção coadjuvava a do príncipe e a do mestre.554

553 In ob. cit., pp. 131 e 134. Sabe-se que as mudanças operadas atingiram, além das sugerias por Marrocos, também o beneficiado Reis [Francisco Pedro Coutinho ou Moutinho Reis], capelão do in-fante, que escapou, com o argumento de que o era, por graça especial de SAR [Príncipe-Regente]. Cf. Carta de 3.7.1812. Também antes, a propósito do infante, numa carta de fins de Junho, Marrocos conta à irmã, sobre um tal José Conrado, que se tinha apresentado no Rio de Janeiro, vindo da Metrópole, gabando-se da sua folha de serviços, mas que em lugar de o atenderem, o Vice-Almirante, Inácio da Costa Quintela “que era Ajudante-general do Senhor infante” divulgara a “feia nota que José Conrado tinha no Corpo da Marinha”. Na eminên-cia de enfrentar o Conselho de Guerra, dada a gravidade da acusação, pela sua conduta, durante as invasões francesas, tendo Conrado pedi-do “ao Senhor infante licença para se curar em Lisboa”. “Custou-lhe muito alcançá-la” – escreve Marrocos – porém “com muitos empe-nhos a alcançara pelo tempo de 2 anos…”. Cf. ob. cit., p. 115.554 Mais do que uma figura decorativa no cargo para que fora no-meado pelo Príncipe-Regente, é ilustrativo um episódio, relacionado com o ofício de 4.6.1810, por meio do qual o infante ordena que seja livre o acesso à biblioteca dos serviços da Marinha (Biblioteca dos GG. MM.), que ele superentendia. De realçar, é o facto de este seu ofício pôr fim à discussão entre ele e Dantas Pereira que era, paradoxalmente, contra a liberdade de acesso. “Ilmo. Sr. Consideran-

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Já ficou notado que a morte deste ministro antece-deu pouco tempo a do infante D. Pedro Carlos. As mu-danças operadas, após o falecimento deste, terão pro-vocado algum abrandamento nas iniciativas em curso e o próprio, nada refere de pertinente, em relação a si, no período que vai até 1817, ano em que é promovido a Contra-Almirante, cargo que se seguiu ao outro que exer-citou na qualidade de membro da comissão de redacção do Regulamento-naval.

Em pleno desempenho do seu alto cargo, José Maria Dantas Pereira foi enviado a Lisboa, já na qualidade de con-selheiro do rei D. João VI e almirantado, tendo sido agra-ciado, por essa missão, com uma comenda de Cristo, ordem de que tinha o hábito, desde 1803. Não voltaria ao Brasil e no desempenho da dita missão veio achá-lo a corte, no seu regresso a Lisboa.

do não haver nesta corte Biblioteca pública e conhecendo a grande utilidade que se segue ao Estado de se patentear a da Companhia dos GG. MM. Ordena que se conceda franca entrada na mencionada Biblioteca a todas as Classes de Pessoas, que além das menciona-das se conhecer podem tirar fruto do seu trabalho; devendo rezidir effectivamente hum Bibliotacario, ou Porteiro que de tal serve, ou seu Ajudante e para que tenha cuidado na boa Ordem da dita, e de que as pessoas que a frequentarem tratem os livros como devem. (REGISTRO de 4 de Junho 1810, (IIIM552)”. O autor, que citamos, não hesita em afirmar (com base nos créditos de João do Prado Maia [MAIA, 1975: 35] que o infante estava à frente de “um cargo es-pecialmente criado para seu vivo interesse com os assuntos navais (dividindo ou mesmo suplantando) com o Ministro dos Negócios da Marinha a condução dos navios de guerra, quadros de pessoal e esta-belecimentos de apoio. Carlos André Lopes da Silva, A Biblioteca da Real Academia dos Guardas-Marinha: A constituição e organização de um acervo especializado mediada pela formação profissional do oficialato Militar-Naval, in Antíteses,2014:http://www.uel.br/revis-tas/uel/index.php/antiteses/article/viewFile/19037/14638.

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Politicamente relevante e, na mesma sequência, tem lugar a nomeação de Dantas Pereira como conselheiro de Estado em 1821 e membro da Junta da Carta em 1823555, altura em que teve ocasião de abertamente declarar o seu alinhamento ideológico e redigir o “testamento político” que não terá chegado a publicar. Entretanto, em 1828, tomou as-sento nas cortes, no lugar da nobreza.556

Uma perspectiva de feliz continuidade ficou no ho-rizonte, apesar da morte de D. Pedro Carlos, por meio do recém-nascido seu filho, infante D. Sebastião, continuação do sonho, que um dia brotou nos corações dos pais e do avô, D. João VI. A sublinhar essa perspectiva, há a declaração do Príncipe-Regente quando decide outorgar no neto – que nas-cera a 4 de Novembro de 1811, dia da celebração litúrgica de S. Carlos Borromeu, onomástico da avó do menino, D. Carlota Joaquina – por seu alvará régio de 9 de Dezembro, os títulos, direitos e privilégios de que gozara o pai, em nada se distinguindo dos mais infantes da Casa de Bragança.557 555 Junta na qual entravam, entre outros e seu presidente, o futuro duque de Palmela, no rescaldo da Vila-Francada. Vd. História d’El-Rei D. João VI, pp. 168-169. Nota: Na apreciação que faz desta medida régia, o autor desta memória, classifica-a como uma medida justa e conciliatória com vista a congraçar alas políticas em presen-ça, identificando as figuras nomeadas, que eram tidas por moderadas, face ao contexto revolucionário, em que se moviam. Presidente, con-de de Palmela; membros da mesma: António José Guião; arcebispo d’Évora (depois patriarca de Lisboa); Francisco de Borja Garção Sto-ckeler; Francisco Manuel Trigoso d’Aragão Morato; João de Sousa Pinto de Magalhães; José António Faria de Carvalho; José António d’Oliveira Leite; José Joaquim Rodrigues de Bastos; José Maria Dantas Pereira; D. Manuel de Portugal; Manuel Vicente Teixeira de Carvalho; Marquês de Olhão; Monsenhor Gorda; Ricardo Raimundo Nogueira.556 Cortes convocadas por D. Miguel I. Vd. Notice sur la vie et les œuvres de Joseph-Marie Dantas Pereira d’Andrade, etc. Paris, s/d.557 “Eu, o Príncipe Regente faço saber aos que este alvará virem que, tendo a Divina Providência abençoado o feliz consórcio da princesa

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Em conformidade com o disposto, em tudo foi segui-do o preceito e o estilo, quanto ao cerimonial do nascimento e baptismo do pequeno infante, ritual que o P.e Luís Gon-çalves dos Santos narra ao pormenor, segundo o protocolo, que se conhece em relação a cerimónias e celebrações reais e corte de Lisboa. O menino recebeu o baptismo na Capela- real do Palácio, habitação da corte no Rio de Janeiro, a 17 de Dezembro de 1811, efeméride que assinala o aniversário da bisavó, a rainha D. Maria I.

Foram seus padrinhos, a própria rainha D. Maria I e o Príncipe-Regente, ou seja: bisavó e avô do infante, tendo a rainha sido representada na pia baptismal, pela princesa do Brasil, D. Carlota Joaquina, avó do recém-nascido. Foi dado ao infante o nome completo de Sebastião Gabriel Car-los João José Francisco Xavier de Paula Miguel Bartolomeu de S. Geminiano Rafael Gonzaga, como é dito, noutro lugar. Não será demais acrescentar que o regozijo causado pelo nascimento do menino foi assinalado, devidamente, com as inspiradas composições musicais de Marcos Portugal.558

Curiosamente, a escolha do dia do baptismo fora deixa-do ao critério da bisavó, rainha D. Maria I, conforme testemu-nho de Luís Marrocos que, no seu relato, começa por dar ao pai

D. Maria Teresa, minha Muito Amada e Prezada Filha e do infante de Espanha, Meu muito Amado e Prezado Sobrinho, D. Pedro Carlos, com o nascimento de um Filho e querendo que este seja considerado, havido e reconhecido nos meus Reinos, Estados e Domínios, com o mesmo Título, Dignidade e Preeminência de que goza seu Pai…” Ex-certo do alvará. Cf. P.e Luiz Gonçalves dos Santos, in Memórias para servir a História do Reino do Brasil…, Lisboa, 1825, T. I.558 “Pondo-se Suas Altezas de pé, o Ex.mº e Rev.º Bispo, Capelão-Mor, entoou o Te Deum Laudamus que os Músicos da Real Câmara e Capela continuaram, dirigidos pelo mesmo autor da música, Marcos António Portugal, que também tinha dirigido a sinfonia que rompeu quando entraram SS.AA e continuou nos intervalos desta grande ce-rimónia….”. Santos, in ob. cit., p. 246.

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a notícia de que na madrugada do dia de São Carlos Borromeu dera à luz, a Senhora princesa Dona Maria Teresa, o seu pri-meiro filho, salientando que com uma felicidade tão fora do co-mum, que não passara de meia hora o tempo das suas dores.559

Esperava-se aquele baptismo cujo dia ainda estava oculto, prevendo uns, ser o 8 de Dezembro e outros o 17, mas que o certo era SAR (D. João) pretender que Sua Majes-tade declarasse o dia daquele acto, mas que a rainha ainda se não pronunciara e todos estavam em expectativa. Contu-do, avançava com a certeza de que se esperava grande soma de despachos.560

Na carta seguinte de Marrocos, de 2 de Dezembro, podia ele confirmar o indigitado dia 17 daquele mês, como determinado para o baptismo do neto de SAR e, ao mesmo tempo, a certeza de que estava delineado muitas funções de todas as classes e muitos despachos.561

Assim aconteceu, efectivamente, conforme o precioso relato do P.e dos Santos, que nos faculta, minuciosamente, os passos dos dias festivos, tanto da ocasião do parto, como baptismo, cortejo este que incorporava os grandes da nobre-za e demais família, incluindo a princesa-viúva de D. José, D. Maria Benedita.562

Um e outro dos testemunhos concordam num ponto, da maior relevância: o feliz nascimento do régio brasilei-ro – na feliz expressão de Marrocos – comemorado com as luminárias do costume, beija-mão e mais funções. Isto, rela-tivamente, ao parto, propriamente dito. Quanto à cerimónia do baptismo, pressente-se o mesmo júbilo no P.e Luis Gon-çalves, dizendo que a Capela-real se apresentava riquissi-

559 Carta de 16.11.1811, in ob. cit., pp. 91-92.560 Idem.561 Ibidem. Carta de 2.12.in ob. cit., p. 99.562 P.e Luiz Gonçalves dos Santos, in ob. cit., pp. 236-248.

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mamente armada e iluminada, como pedia a grandeza da festividade, a primeira deste género da moderna corte do império luso-brasileiro no Novo Mundo.563

Enfatizamos a frase final, repetindo o conceito for-mulado pelos autores que seguimos acerca das etapas da 563 Marrocos, in ob. cit., p. 91; Santos, in ob. cit., p. 241. Nota: Ao escrever “Capela-real” o Rev.º P.e refere-se à igreja de Nossa Senhora do Carmo que fora elevada à condição de Paróquia do “Real Paço” (Alvará de 15.6.1808), conforme diz, quando elenca as prerrogativas, mercês e festejos litúrgicos, associados à solenidade do mencionado acto, sendo que a dita igreja fora dotada para aquelas funções, pelo Príncipe-Regente, enquanto se não concluía a obra da Sé, iniciada no tempo de D. João V: “não querendo perder nunca o antiquíssimo costume de manter junto do Meu Real Palácio uma Capela-real, não só para maior comodidade e edificação da Minha Real Família, mas, sobretudo, para maior decência e esplendor do culto Divino e gló-ria de Deus, em cuja Omnipotente Providência confio, que abençoa-rá os Meus cuidados e desvelos, com que procuro melhorar a sorte dos meus Vassalos, na geral calamidade da Europa….”. Chama-nos a atenção o facto de ter D. João mandado, especialmente, executar um painel de grandes dimensões para o altar-mor, no qual se viam representados o próprio Príncipe-Regente, a rainha D. Maria I e toda a família real “implorando de joelhos a protecção da Soberana Rainha dos Anjos que, como Mãe de Misericórdia, estende o seu sagrado manto sobre todas as pessoas reais. Neste grande painel, que à vista de todos se ostenta com tanta beleza sobre o altar-mor, o Príncipe Re-gente, Nosso Senhor, não só manifesta a firmeza da sua fé, atribuindo à poderosa intercessão de Maria Santíssima a própria salvação e da Sua Real Família, mas também escuda com a tutelar égide d’ Aquela, que todas as gerações aclamam Bendita, a independência da Coroa, a integridade da Monarquia, o aumento e prosperidade do Império Brasiliense: ‘O que habita à sombra do Altíssimo na protecção do Deus do Céu descansará. (Sal. 90)’”. Cf. Santos, in ob. cit., T. I, pp. 85-93. Infelizmente, não se sabe do paradeiro desta pintura. Vem a propósito referir que o tema deste painel parece retomar o do painel do altar-mor da antiga Capela-real do Palácio da Bemposta ainda hoje à vista e de evocação e acção de graças demos conta, in O ex-voto da Bemposta e o culto do Sagrado Coração de Jesus, in O Reinado do Amor…, Chiado Editora, 2013.

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vida de D. Pedro Carlos, porque coube, paradoxalmente a este infante, nascido com privilégios de infante de Espanha, transpor e introduzir naquele novo-Mundo os rituais cele-brativos próprios dos da sua condição, de acordo com os preceitos europeus. Com efeito, ali casou, ali lhe nasceu e foi baptizado o filho. Seria infelizmente também, ali, o seu sepultamento, coisas nunca vistas antes, conforme sublinha o notável P.e Perereca.564

E como se tratasse de um diário, confessa-nos o autor, sobre a derradeira passagem da vida de D. Pedro Carlos, os sentimentos com que fazia suas as dores, que adivinhamos ser as do Príncipe-Regente, D. João, diante da inesperada morte do sobrinho e genro, a quem ele queria tanto como a um filho:

Um príncipe e muito grande príncipe terminou hoje, 26 de Maio, pelas seis horas e meia da tarde a carreira da vida, na florente idade de vinte e quatro anos, onze meses e oito dias. O Sereníssimo Senhor D. Pedro Carlos de Bourbon e Bragança, infante de Espanha, Almirante-General da Mari-nha Portuguesa – com que mágoa o digo – já não existe! 565

Esclarece o autor que o passamento do infante ocorreu na Real Quinta da Boa Vista, sítio onde se achava o Príncipe--Regente e família real, vítima, no espaço de poucos dias, de “uma violenta febre nervosa” expressão que Dantas Pereira substitui, por ataque epiléptico e o padre Aboim, designa violento estupor o mesmo é dizer, violento abalo.

O cadáver de D. Pedro Carlos foi embalsamado, de acordo com o costume e trajado da farda de Almirante--General, sobre o qual foi colocado o manto da Ordem de

564 Alcunha carinhosa por que ficou conhecido o P.e Luiz Gonçalves dos Santos.565 Santos, in ob. cit., p. 257. O infante D. Pedro Carlos faria 26 anos daí a um mês e não 25, visto ter nascido em Junho de 1786.

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Cristo, bordado com as cruzes das diversas ordens milita-res, tanto portuguesas como espanholas, ornado do Tosão de Ouro e demais condecorações, em conformidade com a sua alta hierarquia.566

Não é demais sublinhar o rigor da descrição ao por-menor, dos funerais do infante, não faltando ao panorama da lúgubre despedida a chuva, que não parou de cair, durante o percurso do féretro, numa clara alusão ao simbolismo da comunhão da natureza no adeus, sublinhando o pesar que terá penetrado os corações e os sentimentos, dos que incor-poravam o triste acompanhamento, onde não faltou o povo anónimo. Em parte, isso deve-se à circunstância de ter sido o primeiro grande cerimonial de enterramento de um príncipe europeu nas terras do Brasil, mas também, tratar-se de alguém na flor da idade, factor que terá pesado no imaginário comum.

Por toda a estrada e ruas, pelas quais havia de passar o fúnebre acompanhamento do Senhor infante, falecido, como também no largo da Carioca e o que mais é de admirar, no extenso Terreiro da Real Quinta, já desde a tarde se via um imenso concurso de Povo, o qual, ainda mais se aumentou com a chegada da noite, concorrendo de todas as partes as mulheres, ansiosas de ver passar o enterro de Sua Alteza, espectáculo, que pela primeira vez se apresentava aos nos-sos olhos, neste Novo Mundo.567

Em relação à imensa mole em movimento chama-nos a atenção sempre o lado oficial e protocolar da grandiosa cerimónia fúnebre, realizada com todos os preceitos, ineren-tes à condição de príncipe entrando nela as figuras da mais alta hierarquia que descia ao mais humilde dos servidores institucionais. É um desfile impressionante, aquele, que se nos oferece.

566 Idem. 567 Santos, in ob. cit., p. 261.

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…E então, apesar da grande chuva, que pouco antes havia começado a cair, saiu da Real Quinta o fúnebre acompanha-mento, à medida que o Real coche, que conduzia o corpo de Sua Alteza, passava pela frente de cada hum dos Regimentos, que estava postado em alas, depois de feitas as continências devidas, os Chefes mandavam formar em coluna, e marchar em seguimento do Real Enterro, tocando marchas muito ternas e maviosas, que faziam as lágrimas arrebentar dos olhos dos espectadores; e desta sorte, quando o Real coche chegou à la-deira de Santo António, trazia após de si toda a Tropa, que se havia formado desde a Real Quinta da Boa Vista, até à mesma ladeira, que, no adro da Igreja se achava. Deste modo rema-tou a fúnebre e Real pompa das Exéquias do Sereníssimo Se-nhor infante, D. Pedro Carlos, seria mais de meia-noite, que estava demasiadamente triste, escura, e chuvosa. O Príncipe Regente Nosso Senhor e toda a Real Família encerrou-se por oito dias e tomou luto, por seis meses: três, rigoroso e outros tantos, aliviado. O mesmo luto tomou a corte, os Tribunais e todos os Empregados públicos, como também o Corpo da Real Marinha e o da Brigada da mesma, que com razão chorou a perda de tão Preeminente e Digno Chefe. Depois de passados os dias do encerramento das Pessoas Reais, recebeu o Príncipe Regente Nosso Senhor no Palácio da Cidade os comprimentos de pêsames do Corpo Diplomático, da corte, Tribunais e das pessoas mais condecoradas de todas as ordens do Estado, que em grande, e pesado luto se apresentaram no Paço, para cum-prir tão triste dever. A memória do Sereníssimo Senhor infante, D. Pedro Carlos de Bourbon e Bragança, Almirante General da Real Marinha Portuguesa, será sempre viva nos Fastos do Brasil pela heróica resolução que tomou, de acompanhar o seu Muito Amado e Prezado Tio, o Príncipe Regente Nosso Senhor, preferindo dar a mais decisiva prova de adesão e amor àquele, a quem considerava segundo Pai, ao voltar para a Espanha, que lhe dera o berço e onde tinha a sua casa…568

568 Santos, in ob. cit., p. 261 e segts.

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Finalmente o caixão foi selado e entregue ao guardião do convento de Santo António dos Capuchos do Rio de Ja-neiro, lavrando-se ali os autos de entrega e depositada a urna com os restos mortais do infante D. Pedro Carlos, na capela de Jesus, dentro dos claustros do dito convento.569

As liturgias encerraram com exéquias do 30.º dia, função executada na Capela-real, com idêntica pompa e cir-cunstância, como mandava o protocolo, novamente com a presença das figuras da mais alta hierarquia e linhagem, não havendo distinção entre estas honras prestadas ao infante de Espanha, com as análogas aos Príncipes de Portugal. Por toda a terra brasileira se procedeu às celebrações de exé-quias, diz-nos no seu relato o citado P.e Luiz Gonçalves dos Santos.570

Ao contrário da decisão tomada posteriormente, de trasladar para Portugal os restos mortais da infanta D. Maria Ana e da própria soberana, rainha D. Maria I, que vieram re-pousar em Lisboa, nos espaços sagrados, por elas mandados erigir, não se decidiu neste sentido, quanto aos do infante D. Pedro Carlos, que reside numa belíssima última morada, no Rio de Janeiro.

Quando perfazia cinco anos sobre o falecimento do infante na tarde do dia 25 de Março de 1817, após celebrar--se o ano da morte da rainha, D. Maria I, sua avó e imediata-mente antes da entronização solene de D. João VI, que fora marcada para 7 de Abril do dito ano, coincidindo o cerimo-nial com o da 1.ª oitava da Páscoa, por ordem do Príncipe--Regente, procedeu-se à trasladação dos restos mortais do infante, na conformidade descrita pelo Rev.º Luis Gonçalves dos Santos, passando estes do sítio primitivo para o mauso-léu, onde jazem.569 Existe no Arquivo da Torre do Tombo de Lisboa cópia dos re-feridos autos.570 Santos, in ob. cit., pp. 267-268.

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Tinha sido depositado como vimos nos claustros do Convento de Santo António, na “Capela do Senhor Bom Jesus”, sendo agora depositados na Capela de Nossa Se-nhora da Conceição do Noviciado das Irmãs Terceiras da Penitência, a qual fica no lado esquerdo da Igreja de Santo António dos Religiosos Franciscanos desta corte – informa o referido cronista – por ser além de mais espaçosa, muito elegante e rica e a única capaz de nela se erigir o referido monumento, depois que este foi assentado na parede do lado da Epístola da referida Capela.571

O mausoléu de D. Pedro Carlos – cuja beleza ape-nas vislumbramos parecendo não haver dele nenhum estu-do estético e/ou artístico – foi encomendado para Lisboa, a José da Costa e Silva, arquitecto da Casa Real. Confirma o P.e Luiz Gonçalves dos Santos a mesma impressão, que nos causa, a ideia da fina brancura da pedra-mármore lavrada do sarcófago, sobre o qual se vê o busto do Senhor infante, tam-bém em mármore, encimado por dois anjos que sustentam uma coroa dourada.572

571 Cf. Santos, in ob. cit., T. II, pp. 113-116.572 O Arq.º José da Costa e Silva, conforme mencionamos acima, é o nome e arte que anda associado, entre outras produções, ao Teatro de S. Carlos de Lisboa e ao Palácio da Ajuda, na capital portuguesa. Foi também o responsável pelo complexo designado Hospital-Asilo Militar de Runa [Torres Vedras], por escolha da princesa-viúva D. Maria Benedita, obra iniciada ainda antes da partida da família real para o Brasil e terminada com o seu regresso à Metrópole. (O Testa-mento da princesa do Brasil D. Maria Benedita:1746-1829, Tribuna da História, 2008). Embora não tivéssemos achado nenhum estudo sobre o mausoléu do infante D. Pedro Carlos nem por isso deixamos de acreditar a sua elegância, com base em fotografias. Não menos fo-mos tocados pela aparente singeleza do trabalho, finamente lavrado, ornado dos troféus e atributos relativos à pessoa do infante. Deixa-nos o cronista a leitura do epitáfio: HIC. JACET. D. PETRUS. CARO-LUS. HISPANIARUM. INFANS. GABRIELIS. HISPANIARUM. ET. MARIANNAE. VICTORIAE. PORTUGALIAE. INFANTIUM.

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Na deliberação de deixar ficar o túmulo do infante D. Pedro Carlos em solo brasileiro terão pesado critérios, no-tadamente, de ordem afectiva, por respeito àquela terra, se levarmos em conta o alto simbolismo dos actos da vida do infante que, como fica dito, marcaram aquele território de forma indelével. A decisão, se não foi da vontade expressa do próprio, é capaz de ter partido da sua viúva, quem sabe, pensando em ulterior acção, que acabou por não ter lugar, precipitado que foi o desfecho, pelos acontecimentos de or-dem política.

Em síntese, deixámos esboçados os actos mais rele-vantes da vida de D. Pedro Carlos de Borbón e Bragança, com a recta intenção de projectar alguma luz sobre a sua figura, realçando aspectos da sua biografia, porventura nun-ca antes reunidos nem analisados, com base nos testemu-nhos coevos de autores que, com ele, trataram e viveram, no sentido de perspectivar e ou refazer o esquiço de uma vida prematuramente ceifada.

FILIUS. MARIAE. TERESIAE. PRINCIPIS. JOANNIS. PRO-RE-GENTIS. PORTUGALIAE. PRINCIPIS. CARLOTAEQUE. HISPA-NIARUM. INFANTIS. FILIAE. CONJUX. NAVALIS. MILITIAE. IN. LUSITANIA. DUX. SUPREMUS. OBITI. VII. KALENDAS. JUNII. ANNO. XXV. AETATIS. SUAE. MDCCCXII. Diz o P.e Luiz Gonçalves dos Santos que o túmulo tinha ido de Lisboa. Ora, sabendo que Costa e Silva viajou para o Rio de Janeiro, naquele ano de 1812 (Volkmar Machado, Colecção de Memórias, 1823), tal significa que o arquitecto foi chamado ao Rio para conduzir e orientar a colocação do mausoléu, no local, sendo confecção talvez de artífices de alguma das oficinas de Lisboa.

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Itinerário que fez na augusta condução do Sereníssimo Senhor infante D. Pedro Carlos de Bragança e Bourbon desde o Caia até Lisboa em Novembro de 1789 o Marquês de Marialva, D. Diogo

José Vito de Menezes.573

No dia 27 de Outubro pelas sete horas e meia da manhã parti do cais de Belém na galeota: antes de embarcar vi uma sege no mesmo cais fechada, de donde, quando eu me apeei da minha, saiu o Conde de Redondo.574

Deu-se à vela a galeota à dita hora e chegámos a Aldeia Ga-lega pelas nove e meia. Demorei-me ali só o tempo, que foi preciso para dar ordens respectivas àquele sítio, que perten-ciam às conduções dirigidas por João Lourenço e ao sota--cavalhariça José de Morais. Meti-me na sege que me estava destinada, com meu sobrinho D. Diogo575 e da [sege] que o estava para a Dama de Honor Dona Mariana Botelho, se serviu o Conde de Redondo.

Vencemos a jornada até os Pegões em breves horas, ali jan-támos todos e, no entanto, que a mesa se preparava, fui re-ver as barracas de campanha, que se tinham destinado para recolher a comitiva, que se esperava na futura vinda de SA o Senhor infante de Espanha, D. Pedro Carlos de Bragança

573 7.º Conde de Cantanhede e 5.º Marquês de Marialva (1739-1803), Estribeiro-mor da Rainha D. Maria I. Biblioteca da Ajuda, BA – 54-X-7, nº 120. Transcrição do original, grafia e pontuação actua-lizadas e abreviaturas desenvolvidas, pela Dr.ª Conceição Geada, a quem muito agradecemos a solícita colaboração.574 13.º Conde de Redondo e 1.º Marquês de Olhão, D. Tomé Xavier de Sousa Coutinho de Castelo Branco e Meneses (1760-1821).575 D. Diogo José Ferreira de Eça de Meneses (1772-1862).

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e Borbón. Acabado o jantar, que foi suficiente e que todos três, isto é eu, meu sobrinho e o conde comemos na Mesa de Estado.576

Seguimos jornada até às Vendas Novas, aonde pernoitámos. Nessa noite não tive o melhor cómodo, porque consumi bastantes horas em designar e dispor os quartos e os seus misteres para estar tudo com decência e competentemente preparado para quando SA viesse. Ceámos, mas cada um no seu quarto, por mais comodidade, sem nos sujeitarmos ao formal da Mesa de Estado.

No dia 28 às oito horas da manhã saímos e fomos jantar a Montemor, aonde fiz a mesma revista que na aposentadoria antecedente e às duas e meia da tarde fizemos jornada. Antes de chegarmos a Évora vi um soldado de cavalo, que apenas nos avistou, partiu; e conheci depois que fora avisar a sua companhia, que estava postada um quarto de légua antes da cidade, para me acompanhar; e o fez até ao Palácio do Arce-bispo577, que na ocasião tinha saído dele, entregando-o para Paço Real.

Recebeu-nos com todo o acolhimento; e feitos os cortejos do estilo, passou a mostrar-me todos os quartos, que destinara para a real comitiva de SA. À excepção da cama do Senhor infante, tudo o mais foi aprontado pelo Arcebispo e em que eu, poucas coisas, fiz mudar. Ceámos cada um também no seu aposento, não falando no Arcebispo; o qual imediata-mente saiu para outra aposentadoria, que fizera, como disse, prevenir fora.

576 Mesa em que por conta do rei se serve a comida aos cavaleiros e outros personagens, Cf. Domingos Vieira, Grande Dicionário Por-tuguês V.4, p. 215).577 Arcebispo de Évora, D. Joaquim Xavier Botelho de Lima (1717-1800), da família dos Condes de São Miguel, Formado em Cânones pela Universidade de Coimbra e Clérigo Regular da Congregação da Divina Providência e Arcebispo (1784-1800).

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Seguiu-se o dia 29. Saímos de Évora e fomos jantar a São Miguel de Machede aonde, igualmente, revi tudo, quanto se tinha preparado. Jantámos do costumado modo e, saindo, fomos dormir a Vila Viçosa, aonde revi o Paço e dispus tudo como era justo.

No dia 30 ao jantar chegámos a Elvas e já desde antes da ci-dade, uma companhia de cavalos do Regimento, que a guar-nece, tinha rendido a de Évora, que até ali me acompanhava. Aí me fez aquartelar o General da Província Visconde da Lourinhã578 no Palácio do Bispo e tudo estava com decência e grandeza.

Existimos em Elvas os dias 30 e 31. Escrevi daí ao Embai-xador que tinha chegado com SA a Badajoz; e dispus tudo de modo, que no domingo, primeiro de Novembro, pelas 10h saiu SA de Badajoz e eu medi as horas de maneira, que pudesse avançar-me a chegar ao sítio na mesma ocasião. As-sim sucedeu: porque SA chegou à Ribeira do Caia às 10h e 1/4 da parte de aquém do Caia, estava já o meu coche e toda a minha comitiva.

A de SA era a seguinte: adiante de tudo vinham dois correios de Gabinete, seguiam-se dois batedores Guardas de Corpos: depois o coche de SA, a quem escoltava um isento, puxan-do oito dos guardas sobreditos, os quais imediatamente que chegaram ao meio do Caia se suspenderam e assim ficaram, vindo o coche de SA até à nossa praia.

No dito coche de SA vinha, além do Senhor infante, o Vis-conde de Armería, encarregado por el-Rei Católico579 do governo de toda aquela comitiva, sua irmã a Marquesa de

578 Manuel Bernardo de Melo e Castro (1716-?), 1.º Visconde da Lourinhã por Decreto de 1777 da Rainha D. Maria I. Era irmão do Se-cretário de Estado da Marinha da mesma senhora, Martinho de Melo e Castro.579 Carlos IV de Espanha.

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Castelfuerte, Tenenta d’Aia de SA; outro coche com a Dona Moscoso580 e a Açafata da Vera.581

Vinham em outras diferentes carruagens o Alcaide de Casa e corte, que corresponde aqui ao Corregedor do Crime da cor-te e Casa, homem de probidade, acreditando-se assim, não só pelo seu comportamento, mas até na sua figura; o Médico da Câmara Sobral582, o Cirurgião da Câmara, o Capelão de Honor de SA, o seu mestre Marini583; e outros mais, que vi-nham para retrocederem.

Apenas o coche de SA chegou à parte de aquém do Caia, apeou-se o Visconde d’ Armería; veio cumprimentar-me; e eu, fazendo-lhe os cortejos, que pediam a ocasião e a pessoa de SA, fiz meter o Senhor infante no nosso coche, a sua Te-nenta d’Aia a sobredita Marquesa, a qual me convidou logo para me meter com ela no mesmo coche, ao que lhe respon-di, que eu nenhuma dúvida podia ter de acompanhar a SA no mesmo coche, quando tinha a honra de o fazer a Soberanos e Príncipes e que não a tendo Sua Senhoria, nenhuma se me oferecia a mim de entrar com ela dentro no mesmo coche. Acabados estes intervalos de cumprimentos e disposições, mandei andar e viemos dali até Elvas excelentemente.

É preciso advertir que à excepção dos Guardas de Corpos, que tinham retrocedido já para Badajoz, tudo o mais veio acompanhando a SA até Elvas. A praça desta cidade estava, o mais que podia ser, luzida: tinha em armas todos os cinco Regimentos, que a guarnecem, com a Artilharia metida nas divisões e a Cavalaria dividida nos lados.

Do Caia para Elvas tinha corrido com SA uma Companhia de Cavalos, de que era Capitão o Conde de São Louren-

580 Maria Madalena Ruiz de Moscoso.581 D. Cayetana da Vera.582 Francisco Martinez Sobral y Aguilera. 583 Também conhecido entre nós, por P.e Francisco Marín.

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ço.584 Como à saída da praça para o Caia me tinha salvado a fortaleza, na entrada com SA, preveni o General, para que não houvesse salvas, em atenção ao sobressalto, que podiam fazer no Senhor infante.

Com efeito, a aposentadoria de Elvas estava luzidíssima, não discrepando um ápice das minhas disposições; revi de novo as mesas, que estando servidas na ordem que eu tinha determinado; assisti à mesa de SA e logo que findou o seu jantar, todos nos assentámos à Mesa de Estado e para toda a clareza, individuo as pessoas que foram: eu, a Marque-sa, seu irmão, Visconde de Armería, o Conde de Redondo, meu irmão, D. José de Menezes, o Embaixador, D. Diogo de Noronha, meu sobrinho, D. Diogo, o General Visconde da Lourinhã, os Isentos, o Marquês de Bonda Real, o Visconde de San Diego, o Mordomo de Semana, o Alcaide de Casa e corte, o mestre Marini e o Capelão de Honor. Todas as mais mesas, que eram nove, se serviram a um tempo com ordem, profusão e delicadeza, o que sucedeu igualmente em todas as mais aposentadorias até Aldeia Galega.

Acabado que foi o jantar, continuámos a jornada até Vila Viçosa aonde se dormiu, entrando na comitiva de SA uni-camente o Médico e Cirurgião da Câmara, porque os mais se tinham já retirado de Elvas e os dois o fizeram de Vila Viçosa. Passou-se à ceia, à competente hora, tendo eu, entre-tanto, revisto as mesas e feito emendar o que julguei preciso. Depois da ceia, acompanhei a todos aos seus quartos e tendo beijado a mão a SA, já dentro do seu quarto, também me retirei ao meu.

Foi contudo, bem pouco, o que nessa noite descansei, por-que como fui o último que me recolhi, não só para evitar

584 8.º Conde de São Lourenço e 2.º Marquês de Sabugosa, José An-tónio de Melo da Silva César de Meneses (1763-1839), Alferes-mor de Portugal e Alcaide-mor de Elvas.

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qualquer desordem que pudesse suceder no barulho e con-fusão, mas para expedir correios para a minha corte, passa-vam de 2h da noite quando pude recolher-me. Fui também o primeiro que me levantei, a fim de fazer aprontar tudo, de sorte que saíssemos de Vila Viçosa, quando muito, até às 9h. Com efeito, na segunda-feira, 2 de Novembro, acabados os diferentes almoços, continuámos a nossa jornada a São Miguel de Machede.

Deve servir de sal desta narração, a galantaria que vou a contar de SA. No dia antecedente do Caia até Elvas e daí a Vila Viçosa, vinha o Senhor infante, olhando-me de lado, sem se familiarizar comigo: o que eu, lentamente ia conse-guindo, com vários brincos pueris, com que o vinha entre-tendo, ora de várias carruagens de papel que lhe fazia e que subiam, como por calçadas, pelas minhas pernas acima, ora com trovas que ele por costume ouvia e a que respondia com muita graça e viveza.585 Como eu tinha ido ao Caia com far-da de Brigadeiro, no dia seguinte e em que partimos de Vila Viçosa, perguntou SA já à Marquesa:

– “Aonde está aquele homem doirado, que vinha ontem con-nosco no coche?” E dizendo-lhe a Marquesa que era eu, con-tinuou: – “Eia, que venha para o coche”. E de ser visto de revês, passei a ser valido.586

Nessa manhã vencemos felizmente, a jornada a São Miguel de Machede, aonde fiz também a revista costumada e jan-tando, continuámos a jornada a Évora, aonde o Arcebispo tinha feito cuidar de tudo com muita ordem e muito a tempo. Defronte do Paço ouviam-se vários coros de música, que a disseram sofrivelmente e julgo ser obséquio, traçado por aquele Prelado. Ceou-se, deite-me à mesma hora da noite

585 Itálico nosso.586 ? Que hombre es este tan doráo ? – Expressão do infante lem-brada pelo P.e Cão d’Aboim no seu Elogio fúnebre, pp.7-9.

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antecedente e à mesma me levantei pela manhã, para fazer cuidar no almoço de SA e do da comitiva.

Pelas nove horas do dia 3 de Novembro partimos em deman-da de Montemor, aonde chegámos com felicidade. Jantou--se e saiu-se com diligência para virmos a horas às Vendas Novas. Aí, revi igualmente tudo; passou-se à ceia e SA veio sempre, excelentemente. Foi por isso, com consulta dos Mé-dicos espanhóis e portugueses, que em Vila Viçosa determi-nei seguir a jornada, sem a interrupção de dia de descanso, não obstante que o contrário me insinuava D. Diogo, Embai-xador de Espanha.

Tive por fundamento ver, que SA vinha bom, não serem as jornadas, que se tinham talhado, violentas e temer eu, irrup-ção no tempo, que incomodando-nos a todos, cedesse em dano da saúde do Senhor infante. Além de que assim o tinha eu prevenido com SM [Rainha D. Maria I], de quem imedia-tamente recebi as ordens necessárias.

No dia 4 seguimos jornada e viemos jantar aos Pegões, de-baixo das cautelas e revistas do estilo, a que eu procedia sempre sem falência e daí viemos dormir a Aldeia Galega. Logo que chegámos, expedi um expresso à corte avisando da feliz condição da chegada de SA; ceou-se, determinei os competentes quartos à comitiva e vim a recolher-me alta noite, porque já aí estavam a esperar o Embaixador de Espa-nha, Conde de Cifuentes, D. José Caamaño e mais pessoas cujos cortejos julguei justo receber, até para fazer mais luzi-do um acto, que de si, era, digníssimo.

Amanheceu o dia 5 de Novembro e depois dos almoços do estilo, passado o jantar que foi à costumada hora, prepará-mo-nos, para que, assim que avistássemos no Tejo o Bergan-tim-Real viéssemos ter ao cais de Aldeia Galega, todos a um tempo, sem esperar alguma das comitivas.

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Sucedeu como eu tinha traçado, sem que fossem precisos os avisos enfadonhos que, da Secretaria de Estado competente, se me dirigiam; podendo suceder, que se em muitas coisas me não desviasse deles, não saísse a função nem tão formal nem tão competente. Lembra-me que em um, que recebi de Luís Pinto587 em Vila Viçosa, se me estranhava a demora de dois correios em Aldeia Galega; e é para admirar que um Secretário de Estado impute uma falta a terceiro, sucedida na distância de duas léguas dele e mais de vinte de mim. A verdade do sucesso foi, que expedi os correios, quando o devia fazer e que em Al-deia Galega, por não acharem embarcação a demoraram o tem-po, em que houve a falta, julgue-se a quem ela se deva atribuir.

Apenas o Bergantim deu fundo, como tínhamos chegado também ao cais, apeei a SA; apeou-se a Marquesa e viemos todos beijar a augusta soberana mão588.

Embarcando às 3h viemos a surgir no cais de Belém às 5h, aonde a muita corte que esperava, o Regimento de Lippe, que estava em armas, faziam o sítio luzido. Devo contudo, dizer, em obséquio da verdade que, exceptuando o Trem--Real, não houve excesso no cortejo de Belém aos que, em outros sítios, se nos fizeram.

As circunstâncias todas de que se reveste este Itinerário, os incómodos graves que passei, as intrigas e encontros, que me foi preciso ou desfazer ou dissimular, prudente, tudo, afoito e satisfeito, sofri, persuadido que me é mais decoroso e inerente à minha qualidade esperar a verdadeira remune-ração na benignidade augusta da Rainha Minha Senhora, de quem, longe de utilidades, ambiciono somente honras e dis-tinções; na certeza, de que, por honrado e fiel, ninguém terá mais direito a elas, do que eu.

587 Luís Pinto de Sousa Coutinho (1735-1804). Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros no Reinado de D. Maria I.588 Da Rainha D. Maria I, avó do Infante D. Pedro Carlos de Borbón y Bragança.

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Notas a esta narrativaA preparação diplomática entre os reinos de Portugal e

Espanha da jornada que conduziu o infante D. Pedro Carlos de Borbón e Bragança à corte de Lisboa cuja narrativa fica transcrito acima, começou a ser tratado oficialmente, mal se assentou entre os dois monarcas – Carlos IV de Espanha e D. Maria I de Portugal – o processo depois de ter sido enta-bulado, a título privado, entre os respectivos embaixadores.

Chegam-nos três missivas, de carácter particular, das quais se dá aqui nota por dizerem respeito ao acontecimento que traria para este reino o neto mais velho da Rainha Fi-delíssima, ainda por tempo indeterminado, mas não oficial-mente definido, como se entende do protocolo. Destas cartas damos conta do seu teor, muito sumariamente, para situar o leitor quanto a este assunto que acabaria por se revelar um para sempre, da vida daquele infante de Espanha, tanto mais que acabou por desposar a prima-coirmã, princesa da Beira D. Maria Teresa de Bragança, como vem sendo abordado, sobejamente, neste livro.

Assim, logo a partir de S. Lourenço do Escorial, data-da de 16 de Outubro de 1789, chega às mãos de D. Maria I uma missiva do primo, rei Carlos IV, em resposta a uma dela de 3 do mesmo mês, pela qual se desculpa da ausência da es-posa, rainha Maria Luísa de Parma, impedida de comparecer na raia, devido ao estado de debilidade dela (pós-parto), na cerimónia de entrega do menino aos representantes da rai-nha de Portugal, enviados, a fim de o receber.

Acrescenta – e é esse o principal objectivo da dita carta de Carlos IV – que o infante D. Pedro Carlos estava previsto sair daquele local e sítio do Escorial a 23 do cor-rente prevendo-se estar em Lisboa “nos primeiros dias de Novembro”. Na mesma missiva são anunciados os nomes

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dos acompanhantes do infante, alguns dos quais, deviam fi-car ao serviço dele na corte portuguesa todo o tempo da sua estada. Eram eles: o seu preceptor, D. Francisco Marín, a açafata D. Maria Madalena Ruiz Moscoso e a camarista D. Cayetana Vera.589

A esta missiva respondeu D. Maria I por meio de uma sua cuja minuta ou cópia se acha na Biblioteca do Palácio da Ajuda, n/d mas posterior à acima referida, por meio da qual a rainha agradece a anterior e manifesta a sua anuência e satisfação, pela vinda dos acompanhantes do “nosso que-rido Pedro” notadamente fazendo menção dos respectivos encargos de que vinham investidos, o “mestre”, a açafata e a camarista, regozijando-se pela decisão tomada, em virtude de o menino estar acostumado com as ditas pessoas.

Do seu lado, dá conta a Carlos IV de quem estaria a representá-la naquele acto da entrega do infante e de o trazer à sua presença, no final da viagem: o Marquês de Marialva, D. Diogo José Vito de Meneses Noronha Coutinho “e uma dama de honor, irmã da Condessa de Lumiares”. Felicita Carlos IV pelo seu onomástico, dia de S. Carlos.590

Novamente, uma semana depois da sua 1.ª carta, o rei de Espanha participa à rainha D. Maria I, a partir de S. Lou-renço do Escorial, que o infante partira dali, no dia imediata-mente anterior, ou seja, a 22 de Outubro de 1789. A primeira parte da jornada – declarava Carlos IV, mostrando estar a par do seu decurso – fora feita com felicidade.591

O que se segue entra já no domínio da narrativa que o Marquês de Marialva faz para mais particularmente ofi-cializar perante a sua soberana os pormenores da missão de que fora incumbido e da qual mostra estar orgulhoso, por

589 Biblioteca da Ajuda, BA – 54-V-21, nº 1ii.590 Idem. BA – 54-V-20, nº 3y.591 Ibidem. BA – 54-V-21, nº 1jj.

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tudo, porque, efectivamente, recuando nós àquele tempo e imaginando apenas o cerimonial de que se revestiu a vinda principesca de um infante de Espanha – lembrando-nos nós que se tratava de um neto de Carlos III – pela honra e acção que tivera com tal acontecimento, só podemos acreditar na marca que lhe ficou e acompanhou até ao fim da vida, ele, um dos mais distintos fidalgos de linhagem desta nobreza de Portugal.

O acontecimento foi deveras marcante pela reper-cussão que teve tanto na pátria do menino – que perfize-ra 3 anos de idade cuja imagem conhecemos pelo retrato que há dele592 – e testemunho disso aporta-o o rev.º cape-lão Aboim, a propósito do triste momento em que evoca a galante figura de D. Pedro Carlos, no seu Elogio fúnebre, remetendo-nos para o da sua orfandade, à hora da morte de D. Gabriel de Borbón y Sajonia, querendo recordar-nos o sentimento de amor que o unia à esposa, D. Mariana Vitó-ria de Bragança.

“Estava porém destinado no livro, fechado a sete selos, que o termo deste exemplar consorcia fosse mais breve do que se podia presumir; quando assaltada a senhora infanta D. Mariana de umas fatais bexigas, depois de as sofrer poucos dias, chegou aos últimos paroxismos da sua vida, tão confor-me com os decretos da Providência, como extremosa com o esposo, a quem deixou em herança a um mesmo tempo o filho e o contágio da pestifera enfermidade, na qual o infan-te, senhor D. Gabriel caiu, poucos dias póstumos ao faleci-mento da sua esposa e a respeito de cujo amor e fidelidade conjugais é notável o lance seguinte.

Próximo à morte, o sereníssimo enfermo, à violência também das cruéis bexigas e advertido pelo seu médico as-sistente, o físico-mor dos Reis Católicos, D. Francisco So-

592 Museu Nacional dos Coches, PNQ 253A.

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bral (mencionado no relato do Marquês de Marialva, por ter vindo a acompanhar a Lisboa o infante D. Pedro Carlos) de que estava próximo o seu fim, o senhor infante D. Gabriel, tão seguro na religião, como fino no amor conjugal, premiou o professor com um sumptuoso presente, em reconhecimen-to da notícia e certeza, que lhe dava, de ir com tanta brevi-dade, gozar no osculo divino da santa paz do Senhor, unido à esposa por toda a eternidade.

Este facto – prossegue o testemunho do capelão-real – que se fez tão notável quanto público, por toda a Espanha, ainda, quando o autor deste Elogio foi mandado àquela ca-pital em 1798, estava tão recente e plausível, entre os nacio-nais, que o ouviu, sem alteração referir a todos os Grandes da mesma corte.”593

É claro que basta trazer à lembrança o ano que é re-ferido pelo capelão, que afirma ter sido enviado à corte de Espanha, não nos dando, embora, a razão da sua mis-são, adivinhamo-la nós, como estando relacionada com o momento doloroso, que veio desaguar daí a três anos na “Guerra das Laranjas”, visando concertar – quem sabe – o mau caminho que Espanha encetara no conluio com a França revolucionária, contra os interesses de Portugal, por meio das manobras do valido dos monarcas espanhóis, D. Manuel de Godoy.

A influência de Godoy, depois ironicamente intitulado “Príncipe da Paz”, pelo imperador Napoleão, foi da monta que paira nos anais da Espanha, no contexto da sua vida pri-vada e íntima com a rainha Maria Luísa de Parma, a ponto de os membros da Junta revolucionária de Cádis terem recu-sado incluir na linha de sucessão ao trono daquele reino, os dois filhos mais novos da rainha, por causa da fama de não serem do marido, Carlos IV.

593 Cão d’Aboim, in Elogio Fúnebre, pp. 7-8.

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Contrastava vivamente a conduta da mulher de Carlos IV com a da cunhada, em termos de relação tanto pública como privada, facto que se conhece pelos relatos coevos, sem favor e Cão d’Aboim retoma no seu referido Elogio, sem entrar – como não devia – em detalhes.

Se acaso ouviu – como confessa e não temos razão para duvidar – tais relatos, a propósito do amor e fidelidade con-jugal, que uniu os dois esposos, pais de D. Pedro Carlos de Borbón e Bragança não podia isso deixar de ser terna nostal-gia, para os Grandes de Espanha, convivas de uma corte tão austera – não obstante a sua ostensiva grandeza no tempo de Carlos III – contrastando com os desmandos que pairavam nos corredores com verdade ou não, acerca da conduta – de todo o modo temerária – da mulher de Carlos IV.

Era pois o fruto daquele outro, feliz matrimónio, o homenageado e malogrado príncipe D. Pedro Carlos. Mas voltando à sua vinda para Portugal, guia-nos ainda o cape-lão-real com o oportuno relato evocativo, onde recorda o desembarque e encontro com a majestade, a rainha sua avó, corroborando o relato que ouvimos da boca do Marquês de Marialva.

“Continuando a jornada o Senhor infante para Lisboa, che-gou à vila de Aldeiagalega [hoje Montijo] aonde embarcan-do foi esperado e recebido por Sua Augusta Avó, que o fora buscar às vizinhanças daquele porto; e desembarcando a fi-nal no cais de Belém a 5 de Dezembro do referido ano, des-de este dia entrou SAS [Sua Alteza Sereníssima], o Senhor infante D. Pedro Carlos a ser as delícias de SM (que não é novo sê-lo um Teodósio de uma Pulquéria Augusta) – escre-ve o capelão – nexo e embelezamento de toda a Real Famí-lia. Não se pode negar que o Senhor infante fora sempre, até na ordem natural, predestinado por Deus Nosso Senhor, por altos fins da Sua Providência”.

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E fecha com este particular momento da sua evoca-ção, relembrando o que já sabemos acerca da educação do mesmo infante, mas focando-se no exemplo da princesa D. Carlota Joaquina, talvez por não desmerecer da honra que lhe era devida, na circunstância, como infanta que era de Espanha:

“Ninguém dirá que SAS não seria mui bem-educado em Es-panha, pois esta augusta casa mostrou com evidência e arte e talentos que tinha para o fazer na educação que deu à nossa excelsa princesa reinante e a seu irmão, o Senhor D. Fernan-do VII” acrescentando algo que também já sabemos que é atribuir a responsabilidade daquela ilustração de D. Carlo-ta Joaquina o seu mestre de infância, o já nosso conhecido P.e Felipe Scío de San Miguel, não identificado pelo nome, mas subentendido aqui” além de que o mesmo mestre que o ensinou em Portugal – P.e Marín – lhe daria em Espanha a mesma prodigiosa educação, que SAR [D. Carlota Joaqui-na] ali recebera.

Contudo – salientamos para reforçar este testemunho – não se pode negar, que, por maior que fosse o amor, que seus tios, os Reis Católicos lhe tivessem, nada podia entrar em comparação com o de sua Augusta Avó, que, para arrei-gar no neto Augusto, sem resistência, toda a virtude e gran-deza própria do seu coração magnânimo, o entregou a seu filho, o Príncipe-Regente Nosso Senhor, sem reserva nem restrição alguma, para que SAR principiasse e promoves-se a educação de seu sobrinho, como o seu próprio coração Augusto muito lhe ditasse e propusesse. Ora, pois, eis aqui a felicidade e como o embrião de todas as virtudes, que cres-ceram no do Senhor D. Pedro Carlos, com a mesma propor-ção, com que crescia no corpo e na idade. Deste momento por diante, SAR parecia esquecer-se de si para cuidar só no sobrinho.”594

594 Idem, pp. 9-10.

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Terminamos também este breve ensaio, acerca do infante D. Pedro Carlos de Borbón e Bragança, querendo reforçar a ideia, que já esboçámos, não só aqui, mas em pas-sagens de outros trabalhos, onde aflora a figura do infante, sobre a importância que ele teve, augurada, em determinada fase da sua curta vida, numa altura em que o Príncipe-Re-gente, D. João, ainda não alcançara herdeiro. Por conseguin-te, tudo o que rodeou a vinda do sobrinho, para Portugal, tal como demonstra o encaminhamento dos factos, tinha em mente concretizar o projecto de fazer dele o sucessor ao tro-no, se acaso o destino não abrisse prodigamente, como aca-bou por abrir, a favor de uma prole vasta, que preencheu o vazio inicial do seu matrimónio.595

Paradoxalmente toda a formação académica e cientifi-ca deste infante, nascido em Espanha e criado como príncipe de Portugal, teve o seu efeito no Brasil, através do seu exer-cício e das medidas que vieram a ser implementadas direc-tamente pela coroa neste território, visando lançar as bases e criar condições à altura da sua dignificação e elevação a reino, como se do continente europeu se tratasse, estruturan-tes de tal modo que, falando de Portugal, comparativamente, este levaria décadas para ficar ao nível da modernização das ali introduzidas num tão curto espaço de tempo.

595 Vd. Da autora: O ex-voto da Bemposta e o culto do Sagrado Coração de Jesus, in O Reinado do Amor, Cartas íntimas da Priora da Estrela para a Rainha Dona Maria I (1776-1780), Chiado Editora, 2013.

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• Manifiesto de la feliz llegada à esta Corte de la Rey-na nuestra Señora con la Serenísima Señora Infanta su hermana y el Serenísimo Señor Infante Don An-tonio [Pascual, tío paterno de Fernando VII], en que se refiere el recibimiento que hizo el Rey nuestro Señor y el Ser.º Señor Infante Don Carlos su Herma-no à sus Dignísimas Esposas y à su Tío, la alegría y complacencia que sus amados vasallos han demos-trado con tan plausible motivo y las funciones é ilu-minaciones que se han ejecutado en honor de SS.

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MM y AA. en esta heroica Villa y Corte de Madrid. Biblioteca da Ajuda, BA-154-I-6.14

• Relação histórica das festas, que se fizeram pela oca-sião do casamento, que a 13 de Maio do ano de 1810 se celebrou nesta cidade do Rio de Janeiro, em que o Sereníssimo Infante D. Pedro Carlos de Bourbon e a Sereníssima Princesa D. Maria Teresa, pelo laço con-jugal firmaram as esperanças de se perpetuar e enlaçar mais a união das duas Coroas de Portugal e Espanha. Ordenada pelo Padre Joaquim Dâmaso, da Congrega-ção do Oratório de Lisboa; BA – 54-X-6, nº 27

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Agreda, José Govea y. Fiestas reales con que celebró la muy N. y L. ciudad de Sevilla la venida de su Reyna y Señora Dona María Isabel Francisca y de la Serenísima Infanta Doña María Francisca de Asís de Braganza, se da à luz de orden de Su Excmo. Ayuntamiento y la escribió el M.R.P. Mtro. Fr. José Govea y Agreda, &, Imprenta Real y Mayor, 1816

Agreda, José Govea y. Sermón fúnebre de la Augusta Señora Doña María Isabel de Braganza, reina que fue de España, que en las solemnes exequias celebradas por el Real Cuerpo de Caballeros Maestrantes de Sevilla, en la Iglesia del Con-vento de Regina Angelorum del Orden de Predicadores dijo el M.R.P. Fr. José Govea y Agreda, En la Imprenta Real y Mayor, 1819

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Challice, Rachel. The secret history of the court of Spain during the last century. London, John Long, 1910

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Índice

Abertura 5Evocação 7Andorinhas e sabiás 9Do Rio de Janeiro para Madrid 13As reais saídas e entradas – de Cádis a Madrid 59A arte das funções em Sevilha 83Da alegria das bodas ao elogio fúnebre da Rainha de Espanha, D. Maria Isabel de Bragança 105Do luto e da esperança 131Da ida da Princesa da Beira para Espanha 141Para Espanha, outra vez! 177O regresso do “Desejado” 211Antígonas 239Um manual de conduta de princesas e rainhas 313As cartas e o seu descaminho 339

APÊNDICE 349

Relação histórica das festas, que se fizeram pela ocasião do casamento, que a 13 de Maio do ano de 1810 se celebrou nesta cidade do Rio de Janeiro, em que o Sereníssimo Infante D. Pedro Carlos de Bourbon e a Sereníssima Princesa D. Maria Teresa, pelo laço conjugal firmaram as esperanças de se perpetuar e enlaçar mais a união das duas Coroas de Portugal e Espanha. Ordenada pelo Padre Joaquim Dâmaso, da Congregação do Oratório de Lisboa 351

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Cartas de Joaquim Severino Gomes Para D. João VI e Marquês de Aguiar 365

Carta de Bernardo José de Abrantes e Castro para El-Rei [D. João VI] com notícias do estado de saúde da Princesa [D. Maria Teresa] desde que saiu de Aldeia Galega no dia 13 de Agosto até àquela data e da evolução do mesmo 369

O infante D. Pedro Carlos de Borbón e Bragança – Apontamentos para uma biografia 377

Da vinda para Portugal ao casamento e morte no Rio de Janeiro 382

Itinerário que fez na augusta condução do Sereníssimo Senhor infante D. Pedro Carlos de Bragança e Bourbon desde o Caia até Lisboa em Novembro de 1789 o Marquês de Marialva, D. Diogo José Vito de Menezes. 441

Bibliografia 457

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