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Introdução - 1 C oletivo de G alochas D ramaturgia C ompleta

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Introdução - 1

Coletivo de GalochasDramaturgia Completa

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Coletivo de GalochasDramaturgia Completa

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COLETIVO DE GALOCHAS DRAMATURGIA COMPLETAAntonio HerciJéssica PaesMariana QueirozRafael Presto

Textos do Dossiê:Antonio HerciDaniel LopesDiego HenriqueJéssica PaesKleber PalmeiraMariana QueirozRoanne AragãoWendy Villalobos

Revisão:Wendy Villalobos

Conecta Brasil

Este projeto foi contemplado pela 28ª Edição do Programa Municipal de

Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo

Realização

Foto da Capa: Daniel Lopes

Projeto Gráfico & Diagramação:

Antonio Herci Rafael Presto

Capa:Antonio Herci

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Antonio HerciJéssica Paes

Mariana QueirozRafael Presto

Coletivo de GalochasDramaturgia Completa

Conecta BrasilSão Paulo

2017

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Índice

Créditos das imagens ............................................................................ 6

apresentação geral ............................................................................. 9

piratas de galoChas ........................................................................... 13

Apresentação ...........................................................................................15

Fichas Técnicas ......................................................................................19

Lista de Personagens ...............................................................................21

Piratas de Galochas [texto] .........................................................................23

revolução das galoChas ................................................................... 67

Apresentação ...........................................................................................69

Fichas Técnicas .......................................................................................71

Lista de Personagens ...............................................................................73

revolução das Galochas [texto] ...............................................................75

mau lugar ..........................................................................................111

Apresentação .........................................................................................113

Ficha Técnica ........................................................................................ 118

Lista de Personagens ............................................................................. 119

Mau luGar [texto] ......................................................................................121

Cantos de refúgio ............................................................................ 157

Apresentação .........................................................................................159

Ficha Técnica ........................................................................................165

Lista de Personagens .............................................................................166

cantos de refúGio [texto] .........................................................................167

dossiê Cantos de refúgio ................................................................ 205

Apresentação .........................................................................................207

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Resumo do Processo e das Etapas de Trabalho ....................................208

Sobre o Processo de Criação ................................................................209

Pesquisas e Estudos .............................................................................. 211

Criação da Obra Teatral ....................................................................... 217

Contexto: Ocupação de Moradia .........................................................224

Apresentações da Peça Cantos de Refúgio ...........................................227

Conclusão .............................................................................................232

Cantos de refúgio: da Cena à sala ................................................. 235

partituras .......................................................................................... 253

créditos das iMaGens

daniel lopes ..........66; 72; 74; 116; 158; 206; 226

edgar salazar ..........210

geovanna gelan ..........104

JéssiCa paes ..........14; 18; 22; 39; 65

Juvenal pereira ..........8; 225

leonardo fernandes ..........10; 12; 20; 38; 56; 68; 110; 112; 118; 119; 120; 138; 144

rafael presto ..........204; 220; 222; 223; 228; 230; 234

tati Wexler 156; 163; 164; 219; 233

Wendy villalobos ..........213; 214; 252

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Às e aos artistas que fizeram parte da jornada

do Coletivo de Galochas.

Sem vocês, nada disso seria possível.

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Introdução - 9

aPresentação Geral

Coletivo de Galochas: Dramaturgia Completa apresenta um compilado de todas as obras dramatúrgicas escritas pelo grupo em sua trajetória de sete anos de existência, de 2010 até 2017. São quatro peças autorais, criadas, escritas e encenadas: Piratas de Galochas, Revolução das Galochas, Mau Lugar e Cantos de Refúgio. As versões aqui apresentadas foram reescritas a partir das montagens mais recentes, acompanhadas de introdução, fichas técni-cas das diferentes montagens, lista de personagens, letras e partituras das músicas. O Dossiê Cantos de Refúgio, na última parte do livro, aborda o processo de pesquisa e criação do nosso primeiro espetáculo infantil.

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10 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

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O processo colaborativo, adotado para a pesquisa e criação teatral do grupo, busca formas não hierarquizadas de produção. Os artistas se dividem em fun-ções específicas — ator, diretor, iluminador, cenógrafo, dramaturgo etc. — mas as decisões gerais são tomadas coletivamente. Com o passar dos anos, o Galochas encontrou seu próprio modo de processo colaborativo. Para nós, mais impor-tante do que manter-se fiel a uma terminologia, é encontrar formas de criação efetivas para cada contexto de pesquisa.

A busca por horizontalidade dentro da divisão das funções orienta as práticas do grupo. Dizemos “busca” pois a horizontalidade não é uma condição estática e acabada. Alguns parâmetros orientam materialmente esse processo no Coletivo de Galochas: todos os integrantes têm o mesmo peso e a mesma voz no planejamento e nas decisões coletivas; o trabalho é dividido de maneira igualitária, sem diferen-ciar trabalho intelectual e trabalho físico; o pagamento (quando há) é dividido por igual entre todos os integrantes; as funções não são especializadas ou fixas.

A cada novo projeto de pesquisa os integrantes escolhem as suas atribuições produtivas e criativas. Essa decisão acontece dentro de um equilíbrio instável entre o repertório técnico de cada artista e os desejos de criação e investigação teatral de cada um. Com isso cria-se um ambiente que combina duas práticas de formação vinculadas à produção estética: a troca de experiência dentro do Cole-tivo e formações conduzidas por profissionais de fora do grupo.

Todos os artistas pesquisadores contribuem com material criativo, realizando cenas experimentais de diferentes níveis de complexidade, investigando e desdo-brando as formas, conteúdos e linguagens do universo de criação da peça. As cenas experimentais servem como material para a equipe de dramaturgia, que es-creve propostas de textos teatrais. A partir daí a peça começa a tomar forma len-tamente, dentro de uma práxis de pesquisa teatral coletiva, na qual a produção dramatúrgica se desenvolve junto às demais frentes de criação. A dramaturgia é viva, em permanente processo de pesquisa e criação; como os demais elementos da encenação, nunca se encerra.

Agradecemos imensamente todos os movimentos, grupos de teatro, ocupações, parceiros e comunidades que trilharam esse caminho conosco, fazendo da expe-riência do teatro um gesto de vida e luta.

Esta publicação faz parte do projeto Refugiados de Galochas, contemplado na 28º edição da Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo.

Coletivo de Galochas Antonio Herci, Daniel Lopes, Diego Henrique,

Jéssica Paes, Kleber Palmeira, Mariana Queiroz,

Rafael Presto, Roanne Aragão & Wendy Villalobos.

São Paulo, setembro de 2017

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Piratas de Galochas

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Piratas de Galochas - 15

piratas de galoChasJéssica Paes e Rafael Presto

ApresentAção

Piratas de Galochas é uma peça-mapa na trajetória de pesquisas e aconteci-mentos do Coletivo de Galochas. Sua estreia data de 05/11/2011, completando 6 anos de circulação em 2017. Sempre apoiada na práxis da pesquisa teatral e do processo colaborativo, cada remontagem busca sintetizar a relação viva entre espaço onde se pretende realizar a encenação, as investigações sobre a linguagem teatral e, sobretudo, as lutas políticas que compõe o cotidiano desse lugares.

Essa peça dificilmente é encenada em teatros convencionais, salvo raras exce-ções. Sempre carregou a premissa de constituir espaços alternativos de produção e circulação teatral, espaços habitados de potência, luta e contradição. Piratas de Galochas foi a segunda montagem realizada pelo Coletivo de Galochas, a primeira longe dos muros da USP, espaço onde o grupo se formou e fez sua temporada inicial.

O desejo estético-político do grupo, aquilo que orientava e ainda orienta parte de sua pesquisa teatral, é o conceito de espaço, o projeto político por detrás de sua organização e os modos de interferir diretamente na sua produção. Nessa segunda montagem, o intuito do grupo era romper com os muros da academia e levar a pesquisa em torno do espaço à algum lugar onde realizá-la fosse vital, achar um local onde agir teatralmente gerasse uma consequência concreta sobre essa disputa, produzindo material crítico e formas de ação.

Partindo desta perspectiva, o Coletivo de Galochas definiu como local para pesquisa e criação da sua segunda peça a Ocupação Prestes Maia, maior ocupa-ção vertical da América Latina, habitação retomada, casa de mais de 200 famí-lias, um espaço composto de dois prédios, um de 20 andares e outro de 10. Foi no último andar do prédio menor que se constituiu, em parceria com o MSTC – Movimento Sem-Teto do Centro, o Núcleo Cultural Prestes Maia.

Este é o início da relação entre o Coletivo de Galochas e o movimento social de moradia, a permanente relação com essa luta social ampla e multifacetada, uma marca na trajetória do grupo. De lá até aqui, o grupo se apresentou em inúmeras ocupações e espaços de resistência, quebradas e vielas. Citando alguns dos espaços que acolheram essa peça, podemos destacar a Ocupação Esperança, São João, Jardim da União, Jardim Pantanal e a Favela do Moinho.

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16 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

Foi também com a peça Piratas de Galochas que o grupo se lançou em sua primeira escrita autoral, na primeira encenação com dramaturgia própria. A peça foi escrita partindo da dramaturgia colaborativa, processo de criação onde o texto teatral surge aos poucos, no dia a dia de ensaio, junto com os demais elementos da encenação.

Foi o processo colaborativo, e consequentemente a dramaturgia colaborativa, que possibilitou essa composição ativa entre teatristas e movimento social na criação da peça, elemento de meta-autoria que permanece nas outras montagens do grupo.

A escolha por esse modo de produção vem da premissa de composição ativa entre obra em processo e realidade imediata. A principal e mais difícil tarefa do processo de pesquisa e criação da peça Piratas de Galochas foi, e é, encontrar os caminhos que misturam a peça que concretamente se está encenando com as atividades e transformações que a circundam.

Na primeira montagem, a relação girava em torno das idas e vindas do MSTC e as constantes brigas políticas para manter o prédio da Prestes Maia. Na segunda montagem, em setembro e outubro de 2012, o grupo optou por levar a peça para as ruas do bairro da Luz, dialogando diretamente com o contexto da Cracolândia em meio a operação Sufoco. Apresentada em formato de peça-passeio, a encena-ção iniciava sua trajetória na frente da Sala São Paulo, passando pelas ruas Helve-tia e Dino Bueno. Esta montagem foi contemplada no Edital VAI 2012.

A realização da peça como um circuito itinerante que se desdobra pelo espa-ço, utilizando-o como potência criativa, jogando com seus fluxos, se manteve como marca da encenação do Piratas de Galochas por muito tempo. Foi através desse formato que realizamos diversas apresentações, entre elas, a temporada no Centro Cultural da Juventude Ruth Cardoso, em janeiro e fevereiro de 2014, ocupando os diferentes espaços e andares do CCJ através de um passeio teatral.

Podemos circular o debate em torno do termo “pirataria” como um segundo aspecto importante desse trabalho, ligado diretamente ao assunto da dramatur-gia e, consequentemente, da encenação do Piratas de Galochas. Porque partir da pesquisa em torno da pirataria para montar uma peça que dialoga com o movimento de ocupação de moradia?

O estudo do termo pirataria foi sempre orientado pelos assuntos que atraves-saram as vivências cotidianas do Coletivo com a ocupação. A ideia era atritar, através de um universo ficcional, os aspectos simbólicos e políticos que consti-tuem as ocupações, debater em cena, por meio dos piratas, os elementos que gerem o imaginário e a organização do movimento social por moradia.

A volta do termo pirataria para a caixa de ferramentas culturais europeia, ex-periência que atravessou os séculos XVI, XVII e XVIII, responde historicamente

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Piratas de Galochas - 17

a uma necessidade: estatizar o monopólio da violência. O ressurgimento do ter-mo “pirataria” está ligado ao contexto de consolidação do capitalismo mercantil e dos Estados Nacionais, possíveis graças a criação e organização do poder mili-tar institucionalizado, os exércitos nacionais.

O pirata surge como ferramenta do Estado para o novo léxico que começa a se definir dentro das relações comerciais do capitalismo mercantil. O conceito de Estado-nação está em processo de consolidação e para isso é preciso deter o monopólio da violência. O termo “pirata” serve para nomear e condenar aque-les sujeitos sociais que utilizavam a violência sem a permissão do Estado.

Quando ressurge dentro do panorama político, o termo pirata implica mais do que uma simples nominação, significa, ao mesmo tempo, um julgamento e uma condenação. As ideias de crime e violência andam de mãos dadas com essa terminologia.

Podemos destacar alguns pontos de contato entre o tema pirataria e o movi-mento de ocupação. A disposição dos movimentos sociais de moradia de, cole-tivamente, tornarem-se “foras da lei” ocupando um imóvel, está intimamente ligada à disposição de combater a perspectiva dominante que cerca o monopólio da violência. É claro, não existe comparação possível entre a prática concreta dos piratas – saquear, pilhar e matar – com a do movimento social por moradia, que ocupa imóveis abandonados para dar-lhes uma função social, de acordo com a Lei, inclusive.

No entanto, assim como os piratas eram reféns da historiografia oficial, o movimento de moradia também é. Cada vez mais se banaliza as desocupações e a violência com as populações pobres. O discurso hegemônico diz: são sem-teto, gente criminosa. Não parece tão cruel a notícia contando que 360 famílias estão prestes a ser despejadas. Como acontece no momento em que este artigo é escri-to: a ocupação Mauá, também organizada pelo MSTC, casa e espaço de luta de quase 300 famílias, está sob risco de despejo, depois de dez anos de ocupação. Antes, o imóvel estava abandonado, relegado a ratos, baratas e muito lixo.

Outro ponto de contato explorado na peça trata dos enclaves piratas. No fim do século XVII e começo do século XVIII, os piratas desenvolveram o hábito genuíno de fundar estados independentes, verdadeiras utopias piratas, em ilhas sem uso por parte de nenhum Estado. Essas federações piratas se fundavam a partir dos princípios piratas, relativamente horizontais.

A atitude pirata de fundar enclaves territoriais em ilhas sem função social faz um paralelo potente com a prática do Movimento Social de Moradia de ocupar prédios abandonados, também sem função social, gerindo um espaço que é mo-radia e núcleo de organização política e de formação cultural e social.

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18 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

Essa é a trama geral da peça, que gira em torno do processo de formação de um desses enclaves territoriais piratas. Fazendo um paralelo direto com o mo-vimento de ocupação, os piratas ocupam uma ilha, que não cumpre a função social da propriedade, e fundam Providence, instaurando uma federação de pi-ratas no espaço ocupado. A Federação é um sucesso, e em pouco tempo a Coroa Inglesa se vê em problemas pelo aumento vertiginoso de bucaneiros, que atra-palham os negócios do Estado e das corporações interessadas na reformulação e especulação imobiliária das ilhas.

A dramaturgia que segue é o resultado dessa extensa caminhada teatral. A versão aqui apresentada foi redigida a partir das apresentações mais recentes da peça Piratas de Galochas, realizadas em Julho de 2017 no Núcleo Cultural da Ocupação Independente Aqualtune. Esperamos que se divirtam.

Yo-Hoo!

Rafael Presto

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Piratas de Galochas - 19

FichAs técnicAs

ocupAção prestes MAiA, 2011Criação Coletivo de Galochas

Direção Tchello Gasparini

Assistência de Direção Marina Xisto

Dramaturgia Rafael Presto

Elenco Daniel Lopes, Diego Henrique, Felipe Bittencourt, Gabriel Hernandes, Ighor Walace, Jéssica Paes, Laís Trovarelli e Nina Hotimsky

Banda Marina Xisto (baixo), Rafael Presto (bateria) e Tchello Gasparini (violão, guitarra e voz)

Iluminação Pedro Pepê e Rafael Presto

Figurinos Thais Vaz

Técnico Pedro Pepê

Assistência Geral Celso

Orientação Sérgio de Carvalho & Antonio Araújo

BAirro dA Luz “pirAtAs de GALochAs nA Luz”, 2012Criação Coletivo de Galochas

Direção e Dramaturgia Rafael Presto

Elenco Daniel Lopes, Diego Henrique, Felipe Bittencourt, Gabriel Hernandes, Jéssica Paes, Ighor Walace, Laís Trovarelli e Nina Hotimsky

Coro Aline Paiva , Ana Brandão, Cecília de Santarém, Giulia Castro, Mariana Guedes

Técnico Cauê Martins

Contrarregragem Patrícia Bispo

Cenografia & Figurinos Coletivo de Galochas

Iluminação Cauê Martins

Projeções Rafael Presto

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20 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

centro cuLturAL dA Juventude ruth cArdoso, 2014Criação Coletivo de Galochas

Direção & Dramaturgia Rafael Presto

Elenco Daniel Lopes, Diego Henrique, Ighor Wallace, Jéssica Paes, Mariana Menezes, Mauro Cytrynowicz, Paloma Franca e Raquel Bu

Cenografia, Figurinos & Iluminação

Coletivo de Galochas

ocupAção AquALtune, 2017Criação Coletivo de Galochas

Direção & Dramaturgia Rafael Presto

Elenco Daniel Lopes, Diego Henrique, Kleber Palmeira, Mariana Queiroz, Roanne Aragão, Wendy Villalobos

Iluminação Rafael Presto e Rodrigo Oliveira

Operação de Luz Rodrigo Oliveira

Direção Musical & Sonoplastia Antonio Herci

Cenografia Daniel Lopes e Kleber Palmeira

Músicas Originais Antonio Herci, Daniel Lopes, Rafael Presto

Danças Urbanas Andrezinho

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Piratas de Galochas - 21

ListA de personAGens

tripulação do Kuttel daddel du iii Capitão Willie William Will o´ Well Conta-Causo barbiCha, mulher disfarçada de homem gerson suzana morata, a bruxa pirata (antes moça inoCente) barba-molhada

guarda

Capitão Wood rogers representante da soap opera highlights Corporation

rei

maruJo

pirata QualQuer

outro pirata QualQuer

terCeiro pirata QualQuer

Quarto pirata QualQuer

Coro de piratas

pirata CalCulista

pirata medroso

pirata de Coragem

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22 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

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Piratas de Galochas - 23

piratas de galoChasJéssica Paes e Rafael Presto

1. cheGada eM Providence

Ilha de Providence, noite. O lugar está vazio.

BARBICHA — (fora de cena) Terra à vista!

Ainda fora de cena, barulho, agitação.

CAPITÃO WILL O’WELL — (fora de cena) Virar a bombordo! Baixar vela mes-tra! Âncora ao mar!

Metal rangendo, gritos, batida. Os piratas invadem a cena.

CAPITÃO WILL O’WELL — Aqui está, cães sarnentos: Providence! Andem, descubram se este lugar é tudo que nos foi prometido! Vamos descobrir se enfim encontramos o covil da nossa Federação dos Piratas! Ou não me chamo... Capi-tão Willie William Will o’Well!

Breve pausa.

CAPITÃO WILL O’WELL — (berrando) Ocupa!

Todos os tripulantes saem para averiguar correndo pela ilha. Fica o Capitão, imaginando coisas mirabolantes.

CAPITÃO WILL O´WELL - Informes!

BARBICHA — Capitão: tem um shopping aqui do lado pra gente saquear! E o metrô também é bem pertinho.

CONTA-CAUSO — E tem uma barraquinha de churrasco aqui do lado, dá pra sentir o cheiro daqui!

SUZANA MORATA, A BRUXA PIRATA — (depois de gritar tendo um presságio) Sinto uma energia muito positiva neste lugar... O destino conspira a nosso favor!

BARBA MOLHADA — Aqui só tem sujeira e lixo, lixo e sujeira, mas até que é gostosinho!

GERSON — Capitão, capitão, olha: um papagaio!

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24 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

TODOS DA TRIPULAÇÃO — (falando ao mesmo tempo, indo olhar) Papagaio! Ele é verde? Sabe falar alguma coisa? Que coisa mais bonitinha! Vamos assar o papagaio!

CAPITÃO WILL O’WELL — (retornando com a tripulação, animado) Tripulação: encontramos o lugar ideal! Aqui fundaremos um esconderijo secreto, um antro do terror, uma fortaleza de homens livres! Que os mares do Caribe se preparem! Quem está comigo?

TODOS — (comemorando) Yo-Hoo!!!

Os piratas fazem uma festa e erguem Providence, a Cidade dos Piratas. O Capitão Will o’Well canta e dança com sua tripulação.

Pirata Beat27

REFRÃO

Sou pirata sem perdãoCom meus truta navegandoSe é ilha abandonadaVamo logo ocupando

O vento bate, a vela sobeO terror já vai chegarNada temos a perderÉ melhor não provocar

Luneta estralaEi! É a marinha! Nóis já sabe o que acontece Quando a ordem é da rainhaVerme é verme, não tem chanceÉ na terra ou no marNossa ilha tá ocupadaQuero ver vocês tomar

Vocês varrem, a gente voltaFica logo com a liçãoCodo dia é mais pirata Navegando no mundãoA miséria ameaça

27 Letra e Música de Rafael Presto.

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Piratas de Galochas - 25

O banqueiro com um milhãoToma logo o que é nossoÉ bucaneiro na missão

REFRÃO

Quando tamo aqui na ilhaO baile come soltoÉ rum pra todo ladoA bravata vai ter trocoAs chalupas encostadasE as âncoras no marVai ter festa, porre e brigaAté a Marinha chegarEssa ilha agora é nossaProceder e compromissoA tripulação formadaSer pirata é meu ofícioCom meus compa aqui do barcoEu navego até o fimSó não vem com tiraçãoQue estoura o motim

REFRÃO

Tamo vendo o seu banqueiroNavegando no iateEmpresário ostentandoE a miséria em toda parteA Polícia e a MarinhaTão do lado do patrãoNesse acordo trapaceiroOs piratas dizem “Não”Não queremos seu contratoNós sabemos seu segredo:Os amigos da RainhaRoem logo todo o queijoNossos barco organizadoAs bandeiras tão no arSomos livres, violentosE sem medo de lutar

REFRÃO

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26 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

2. os Piratas toMaM consciência dos seus direitos

A Bruxa Pirata interrompe a festa.

BRUXA PIRATA — Esperem! (todos param de correr) Vocês estão escutando al-guma coisa?

Todos ficam em silêncio. Escutam um barulho de fora de cena.

BARBICHA — Alguém nos descobriu!

BARBA MOLHADA — Aposto que é a Marinha Real!

CAPITÃO WILL O’WELL — (incitando todos) Mas o que é isso? Vamos mostrar para esses coxas do que é feito um pirata!

TODOS - Yo-Hoo!

Todos sacam suas armas.

CONTA-CAUSO — Esperem! (todos estacam) A violência não é o melhor cami-nho!

Todos se olham sem entender.

GERSON — Como assim? Nós somos piratas!

CONTA-CAUSO — Eu sei. Mas se queremos ocupar essa ilha e montar nossa Federação, temos de tentar dialogar!

CAPITÃO WILL O’WELL — Sim! Diálogo! (puxando seu facão) Eu quero é que o seu guarda dialogue com a minha espada!

Todos incentivam, eufóricos.

CONTA-CAUSO — Não! Escutem: no último barco que saqueamos eu conheci um senhor muito legal – ele era defensor público. E antes de ter a garganta cor-tada, ele me deu esse livro aqui...

Conta-causo apanha uma cópia da constituição.

TODOS — (suspense) Uuuuuu...

CONTA-CAUSO — E o que está escrito aqui é espantoso: nós temos direitos!

TODOS — (espantadíssimos) Oh!!!

BARBICHA — (desconfiado) Mas vem cá, como é que funciona isso, Conta-Cau-so?

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Piratas de Galochas - 27

CONTA-CAUSO — Está tudo escrito aqui, podemos exigir um monte de coisas sem apelar para violência!

CAPITÃO WILL O’WELL — Como assim sem violência? Me dá isso aqui!

Toma violentamente a constituição da mão da Conta-Causo; toda a tripulação se reúne para tentar ler o livro, sem sucesso.

GERSON — Mas o que é que a gente pode exigir?

CONTA-CAUSO — Uma porção de coisas! Por exemplo a ocupação dessa ilha: ela está abandonada! Leiam aí: nós temos direito à Moradia!

Todos os piratas comemoram.

CONTA-CAUSO — Também diz que os guardas não podem nos forçar a abaixar a cabeça nem nenhuma outra forma de constrangimento desnecessário!

BARBA MOLHADA — Mas aí o que é que os guardas vão ficar fazendo?

CONTA-CAUSO — E acima de tudo, temos o direito, em todos os lugares, de ser reconhecidos como pessoas perante a lei!

TODOS — Somos pessoas perante a Lei! Viva! (comemoram)

CONTA-CAUSO — Temos direito à segurança social e à realização dos direitos econômicos, sociais e culturais! Diz aqui que isso é indispensável à nossa digni-dade!

GERSON — Dignidade? O que é dignidade?

BARBA MOLHADA — Dignidade, jovem Gerson, é comprar a casa própria recebendo um salário mínimo.

BARBICHA — Vejam! O guarda está vindo!

CAPITÃO WILL O’WELL — Vamos usar os nossos direitos nesses coxas!

Um Guarda da Marinha Real se aproxima ameaçadoramente da tripulação.

GUARDA — Eu sabia que tinha gente no imóvel! Vamos embora cambada, cir-culando – a ilha tem dono!

CAPITÃO WILL O’WELL — Não vamos a lugar algum! Nós temos direitos!

TRIPULAÇÃO — (apoiando, falando ao mesmo tempo) Cultura! Moradia! Saúde!

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28 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

GUARDA — (interrompendo bruscamente) Como é que é?

CAPITÃO WILL O’WELL — Nós descobrimos que vocês têm de seguir o que está escrito aqui! (mostrando a Constituição para o Guarda) É a Lei!

GUARDA — Escuta aqui: essa história de direito já era! O promotor público agora sou eu! A Lei tá do lado do dono da ilha. Circulando ou vai todo mundo entrar no sarrafo!

Os piratas, cabisbaixos, começam a deixar a ilha, enxotados pelo Guarda.

BARBICHA — (depois de contar os guardas e a tripulação em silêncio) Peraí pessoal, isso não tá certo! Somos seis piratas contra esse guardinha aí!

Silêncio. Os piratas caminham de maneira ameaçadora na direção do guarda, que treme na base.

CONTA-CAUSO — (interrompendo) Esperem, não precisamos apelar para a vio-lência! Nós temos direitos! Podemos recorrer a Lei! Vamos denunciar esse abuso que estamos sofrendo!

Silêncio novamente.

CONTA-CAUSO — É pau nos coxa!

Os piratas partem para cima e enxotam o Guarda da ilha.

1º GUARDA — (enquanto saem de cena) Vocês vão se arrepender, miseráveis! Vamos avisar o Capitão Wood Rogers! Vamos ver se vocês continuam assim corajosos...

Os piratas troçam do Guarda enquanto ele vai embora.

BRUXA PIRATA — Vencemos!

TODOS — Yo-Hoo!!!

Os piratas cantam e festejam sua primeira vitória. Cantam todos juntos.

Piratas Do Kuttel Daddel Du III28

Nós somos os piratas do Kuttel Daddel Du

28 Criação coletiva do Coletivo de Galochas.

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Piratas de Galochas - 29

Nós vamos saqueando em busca de ouro e rumNós somos violentos, matamos sem razãoO serviço é completo, cabeça, pé e mão.Nós somos os piratas, piratas bem legais!Nós vamos entrarSem nos importarO quanto dinheiro nós vamos levarNão fique nervosoSe não for gostosoFuramos seu olho e roubamos um bar!

3. laMento do BarBa Molhada

Barba Molhada, sozinho no convés do barco, a noite. Ouve ao longe o barulho de um canto de baleia.

BARBA MOLHADA — (gritando com sofrimento, entre os cantos da baleia) Lorena! Lorena!

Barba Molhada apanha um violão, canta.

Lamento do Barba Molhada29

Só me sobra o sóDesse mal eu vou viverNessa vidaBucaneiraPerdido estou sem a LorenaVelho souDor eu tenhoSem Lorena, a baleiaVelho souDor eu tenhoSem Lorena, a baleiaNo meu sonho a viTão real que sentiSua peleSeu bafoSeu canto a dizerUhhhh...

Uma baleia canta ao fundo. Gerson, sentimental, aparece no convés.

29 Letra e Música de Daniel Lopes, 2017.

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30 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

GERSON — Ô Seu Barba?

BARBA MOLHADA — Diga, jovem Gerson.

GERSON — O senhor sente muita falta da sua baleia, Lorena?

BARBA MOLHADA — A vida sem Lorena é como a vida sem os vícios.

GERSON — Eu posso dar uma olhadinha nesse violão? É que eu aprendi a tocar uma música do Legião Urbana...

Barba Molhada entrega o violão para o Gerson.

GERSON — Falô, otário!

Apanha o violão e sai correndo. Barba Molhada tenta corre atrás, não consegue, lhe dói as costas – está velho demais.

BARBA MOLHADA — (resmungando) Eu não sirvo mais para ser um pirata... Qualquer patife me passa para trás!

O Capitão Will o´Well aparece, comovido com a situação do velho marujo.

CAPITÃO WILL O’WELL — (consolando) Não!

BARBA MOLHADA — Eu não mereço ser chamado de pirata!

CAPITÃO WILL O’WELL — Não fale assim, você é o venerável Barba Molha-da

BARBA MOLHADA — Não me chama assim. Eu não mereço esse nome.

CAPITÃO WILL O’WELL — Não diga isso! Vamos, repita comigo: eu sou o Barba Molhada!

BARBA MOLHADA - Eu sou... (falando para dentro) o Barba Molhada.

CAPITÃO WILL O’WELL — O que é isso? Vamos, fale bem alto, para todos ouvirem!

BARBA MOLHADA — (com energia) Eu sou... (falando para dentro) o Barba Mo-lhada.

CAPITÃO WILL O’WELL — O que é isso marujo? Você é uma sardinha ou o que? Bem alto: eu sou o Barba Molhada!

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Piratas de Galochas - 31

BARBA MOLHADA — Eu sou o Barba Molhada!

Barba Molhada urra loucamente, Capitão Will o’ Well comemora.

BARBA MOLHADA — Nada pode deter o velho Barba Molhada!

CAPITÃO WILL O’WELL — Agora sim, o velho Barba Molhada!

Capitão Will o’Well e Barba Molhada se abraçam selvagemente, gargalhando.

CAPITÃO WILL O’WELL — O que achou, agora que temos Providence?

BARBA MOLHADA — Uma bosta de ilha! Pelo menos agora nós vamos poder fundar o nosso... Vamos erigir a nossa... É uma bela ilha.

CAPITÃO WILL O’WELL — Quem diria que simples piratas poderiam fun-dar algo tão grandioso.

BARBA MOLHADA — Piratas... Olhe com seus próprios olhos, Capitão

(apontando para o resto da tripulação, debochando) “Piratas”.

CAPITÃO WILL O’WELL — “Piratas”.

BARBA MOLHADA - “Piratas”.

CAPITÃO WILL O’WELL — “Piratinhas”.

Pausa.

BARBA MOLHADA — Eles não sabem o que é ser um pirata. Você sim, é jovem, mas é um verdadeiro pirata. Gosto de toda essa merda que saí de você, Capitão Willie William Will o´Well!

CAPITÃO WILL O’WELL — (muito emocionado) Meu nome inteiro! (se re-compondo) Para ser um pirata é preciso ser temido. Eu, quando entro em uma vila, todos se escondem nos becos.

BARBA MOLHADA — Eu quando invado uma cidade com a Lorena, ela entra em estado de sítio!

Pausa.

BARBA MOLHADA — Não basta ser temido para ser um grande pirata: é preciso ser subversivo! Sou tão subversivo que optei por respirar gás carbônico.

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32 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

CAPITÃO WILL O’WELL — Pois eu sou tão subversivo, tão subversivo… Que não nasci de minha mãe!

Pausa.

BARBA MOLHADA — Não basta ser subversivo. Também é preciso ter sangue frio!

CAPITÃO WILL O’WELL — Eu mato qualquer um a qualquer hora!

BARBA MOLHADA — Eu mato, faço picadinho, mando pro inferno e mato de novo.

CAPITÃO WILL O’WELL — Sabe o Mar Vermelho? Fui eu que o banhei com sangue em batalha!

BARBA MOLHADA — Você sabe o Mar Morto?

CAPITÃO WILL O’WELL — (impressionado) Não?

BARBA MOLHADA - Sim.

CAPITÃO WILL O’WELL — (impressionadíssimo) Não?!

BARBA MOLHADA - Sim!

CAPITÃO WILL O’WELL — (atônito) Puxa!

Silêncio.

BARBA MOLHADA — A sua mãe iria se orgulhar dos seus feitos!

CAPITÃO WILL O’WELL — (irritado) No hables de mi madre!

BARBA MOLHADA — (provocando) Sua mãe?!

CAPITÃO WILL O’WELL — (muito irritado) No me gusta que hables de mi madre!

BARBA MOLHADA — (provocando mais ainda, imitando o sotaque espanhol) Mamacita!

Ambos tiram suas armas e começam a lutar. Lutam junto com a música, como se estivessem em um ringue de wrestler. Terminam os dois no chão. Ouve-se um barulho de canto de baleia. Os dois piratas se levantam para escutar.

BARBA MOLHADA — Capitão! É Lorena que está voltando!

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Piratas de Galochas - 33

CAPITÃO WILL O’WELL — Olha só, como ela é grande...

BARBA MOLHADA — Não é uma bela baleia?

CAPITÃO WILL O’WELL — Ela está chegando bem perto...

BARBA MOLHADA — Cada vez mais rápido...

Subitamente os piratas se aterrorizam com a aproximação da baleia. Aos gritos, saem correndo.

4. Poderosos da inGlaterra

No Palácio Real, o Capitão Wood Rogers se apresenta ao Rei.

CAPITÃO WOOD ROGERS — Deus salve o Rei! Vossa majestade, é a quinta vez que venho aqui, humildemente, lhe suplicar: precisamos tomar alguma atitu-de frente aos piratas! Eles acabam de ocupar uma ilha e fundar uma Federação! Se não fizermos alguma coisa agora, as consequências serão desastrosas para...

Barulhos de trombeta. A Representante da Soap Opera Highlights Corporation invade a cena..

REPRESENTANTE DA SOAP OPERA HIGHLIGHTS CORPORATION — Deus salve o Rei da Inglaterra! Obrigado por nos receber, meu bom Rei. O que nós da Soap Opera Highlights Corporation temos a apresentar é de suma importância para o desenvolvimento do nosso amado país: o projeto Ilha Linda!

CAPITÃO WOOD ROGERS — Antes de mais nada, meu Rei, precisamos dis-cutir a situação da Marinha Britânica! Temos de garantir a segurança pública, aumentar os investimentos...

REPRESENTANTE DA SOAP OPERA HIGHLIGHTS CORPORATION — (interrompendo o Capitão Wood Rogers) Investimentos! É isso que precisamos para agradar aos nossos múltiplos stakeholders! Transformar nosso país em uma nova Miami! Casas de alto padrão, condomínios milionários, só gente linda e de bem andando pelas ruas! Esse é o objetivo central do redesenho proposto pela Soap Opera Highlights Corporation.

CAPITÃO WOOD ROGERS — As suas palavras são muito belas, minha se-nhora, mas como pretende realizar todas essas obras enquanto os miseráveis infestam as ruas? Vossa majestade deveria estabelecer prioridades...

REPRESENTANTE DA SOAP OPERA HIGHLIGHTS CORPORATION — (interrompendo o Capitão Wood Rogers) As prioridades são as obras! Precisamos de

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34 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

obras meu rei, muitas obras! (entrega um saco de dinheiro para o Rei) Temos certeza que vossa Majestade dará a este projeto total atenção. Hoje se inicia nossa parce-ria! Deus salve o Rei!

Sob o barulho de trombetas, a Representante da Soap Opera Highlights Corporation vai embora.

CAPITÃO WOOD ROGERS — Que mulher mais desqualificada! Agora que ela foi embora, será que podemos voltar a falar da Marinha...

O Rei vira as costas e sai de supetão.

CAPITÃO WOOD ROGERS — (falando sozinho) Ninguém me leva a sério por aqui.

5. entrevista de eMPreGo

Convés do barco dos piratas. O Marujo entra em cena, apressado. Possui um ferimento em uma mão, carrega um currículo com a outra.

MARUJO — (falando com o público) Gente, desculpa incomodar, mas alguém sabe se a entrevista de emprego é por aqui? Alguém fala comigo!

Um ator da coxia aponta o local da entrevista de emprego.

MARUJO — Obrigado. É que eu estou muito nervoso.

MOÇA INOCENTE — (entrando em cena, pergunta ao marujo) Ei, você: é aqui a fila para a entrevista de emprego?

MARUJO — Não sei não.

A moça inocente se posiciona na fila. Barbicha caminha pelo convés.

MOÇA INOCENTE — Ei! Quem é você?

BARBICHA — Eu? Eu sou o Pirata Barbicha!

MOÇA INOCENTE — Impressionante... Por favor, vocês aceitam mulheres a bordo?

BARBICHA — Ah! É claro que não, né minha filha? É cada uma que me apa-rece...

MOÇA INOCENTE — Mas tem uma mulher ajudando o capitão na entrevista!

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Piratas de Galochas - 35

BARBICHA — É a cozinheira. Cozinheira pode.

MOÇA INOCENTE - Mas... E você?

BARBICHA — Que é que tem eu?

MOÇA INOCENTE - Essa barba?

BARBICHA — (ameaçando a Moça Inocente com sua machadinha) Olha aqui: se você contar para alguém eu arranco a sua língua e jogo para os tubarões!

MOÇA INOCENTE — Desculpe, eu prometo que não conto para ninguém! (fazendo cara de coitada) Me ajuda: eu não tenho para onde ir... Por favor.

BARBICHA — Tá bom, vai... O que é que você sabe fazer?

MOÇA INOCENTE — Eu não sei fazer muita coisa... Ah, sou especialista em fazer robôs, entendo um pouco de física quântica e engenharia nuclear...

BARBICHA — Não, isso não serve! Eu estou falando de coisa de pirata! Limpar um convés, cortar gargantas, encontrar tesouros, essas coisas úteis!

MOÇA INOCENTE — Ah... Eu sei ler mapa astral.

BARBICHA — (impressionado) Mapa astral é essas coisas de bruxaria?

MOÇA INOCENTE — Porque? Os piratas são supersticiosos?

BARBICHA — Super supersticiosos!

Piscam os olhos, cúmplices.

BARBICHA — Vem, acho que eu posso te ajudar...

Moça Inocente e Barbicha saem de cena. O Marujo fica esperando. Gerson aparece da entrevista, acompanhado da Conta-causo e do Capitão Will o’Well.

CAPITÃO WILL O’WELL — Bem vindo à tripulação, Gerson.

GERSON — Muito obrigado Capitão Willi... Will... Well... Muito obrigado Ca-pitão! Você vai ver: nasci para ser pirata!

CAPITÃO WILL O’WELL — Claro, claro! Como é seu nome mesmo?

GERSON — Gerson! Agora eu sou o Pirata Gerson!

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36 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

CAPITÃO WILL O’WELL — Ah, que maravilha... (entregando um rodo e um balde) Então limpa o convés.

Gerson sai para trabalhar com o esfregão.

CAPITÃO WILL O’WELL — Próximo!

O Marujo se aproxima para sua entrevista. Entrega seu currículo para o Capitão Will o’Well.

CAPITÃO WILL O’WELL — (impressionado) Currículo! (amassa subitamente o currículo e joga para trás) Então quer ser pirata?

MARUJO — Sim, Capitão.

CAPITÃO WILL O’WELL — É marujo faz tempo?

MARUJO — Sim, Capitão.

CAPITÃO WILL O’WELL — É inglês?

MARUJO — Yes Captain!

CAPITÃO WILL O’WELL — Você matou alguém da minha tripulação duran-te o saque?

MARUJO — Sim, Capitão... Não! Não, Capitão!

CAPITÃO WILL O’WELL — Não?! Como não?! Se machucou como, se não foi em luta?!

MARUJO — Nunca tinha sofrido um ataque antes, fiquei um pouco sem ação...

CAPITÃO WILL O’WELL — Ficou sem ação?!

Subitamente o papagaio empalhado do Capitão chama sua atenção.

CAPITÃO WILL O’WELL — Só um instante...

O Capitão ouve pacientemente o conselho de seu papagaio.

CAPITÃO WILL O’WELL — Você não parece muito convicto para entrar na pirataria, marujo...

MARUJO — Convicto? Como assim, capitão?

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Piratas de Galochas - 37

CAPITÃO WILL O’WELL — Sabe, aqui no Kuttel Daddel Du III temos um lema: “um barco de ideologia”. Aqui somos todos iguais! Por exemplo... Gerson! (Gerson se aproxima) O esfregão Gerson...

Gerson entrega o esfregão para o Capitão, que o manuseia com muito nojo e joga de volta para Gerson.

CAPITÃO WILL O’WELL — Viu?

MARUJO — Bonita ideologia, capitão...

CAPITÃO WILL O’WELL — (enquanto fala, cospe na cara do Marujo) Você está pronto para ser preso e aprisionado por cada parte do país? Ser perseguido por todos os portos da Europa só por aportar sua chalupa para pedir um pouco de sopa?

MARUJO — Eu não sei, Capitão, nunca meditei sobre o assunto... Sabe, eu sempre fui um bom cristão.

CAPITÃO WILL O’WELL — Ah! Um bom cristão...

O papagaio empalhado chama novamente atenção do Capitão.

CAPITÃO WILL O’WELL — Só um instante.

Ouve atentamente o papagaio – dá um sorriso maléfico.

CAPITÃO WILL O’WELL — Pode entrar Marujo, fique a vontade!

MARUJO — (aliviado) Obrigado Capitão!

CAPITÃO WILL O’WELL — Marujo, você é uma galinha, marujo?

MARUJO — (amedrontado) Como, Capitão?

CAPITÃO WILL O’WELL — Eu perguntei se você é uma galinha, marujo?

MARUJO — (amedrontado) Não, Capitão!

CAPITÃO WILL O’WELL — (apanhando sua furadeira) Pois se fosse uma gali-nha teria mais utilidade, colocaria alguns ovos de tempos em tempos para mim e a minha tripulação.

CONTA-CAUSO — (caminhando em direção a porta) Aposto que o senhor não tem nenhuma tatuagem?

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38 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

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Piratas de Galochas - 39

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40 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

MARUJO — (desesperado) Eu não tenho mas posso fazer! Eu faço uma tatuagem bem malvada, tipo um golfinho, ou um abacaxi...

CAPITÃO WILL O’WELL — No me gusta de golfinhos!

O Capitão Willie William Will o’Well avança sobre o Marujo, agarra-o violentamente.

MARUJO — (muito desesperado) Eu posso ser a galinha! Eu imito muito bem uma galinha! Eu aprendo a botar ovos! Não faz isso Capitão!

Capitão arremessa o Marujo para fora de cena. Conta-Causo observa. Gritos, barulho de golpes. Will o’ Well aparece, ensanguentado.

CAPITÃO WILL O’WELL — Às vezes eu faço as coisas por puro prazer estéti-co. (gritando para a fila) Próximo!

A Moça Inocente aparece, completamente trajada de bruxa. Os piratas observam, com muito espanto.

BRUXA PIRATA — (realizando um gesto místico) Eu sou Suzana Morata!

TRIPULAÇÃO — A Bruxa Pirata!

Todos gritam de medo. A Bruxa Pirata entra para tripulação.

6. deMocracia Por assassinato

Uma noite em Providence. A tripulação do Capitão Will o´Well bebe rum em volta da fogueira. Silêncio.

BRUXA PIRATA — (tendo uma previsão do passado, em tom de narração) Ah! Estou tendo uma pósfecia! Os astros me revelam um passado não muito distante... O passado político de Providence: como os piratas estabeleceram sua primeira propriedade!

A Bruxa Pirata assopra um pó místico. Efeito de flashback.

PIRATA QUALQUER - Ah! Um pauzinho!

(apanha um graveto no chão) Agora eu tenho um pauzinho! Meu pauzinho!

OUTRO PIRATA QUALQUER — Com licença... Eu posso usar esse pauzi-nho?

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Piratas de Galochas - 41

UM PIRATA QUALQUER — (depois de uma breve pausa) Não!

Um Pirata Qualquer ataca mortalmente o Outro Pirata Qualquer, que morre.

TERCEIRO PIRATA QUALQUER — (entrando impetuosamente) Não! Não! O pauzinho é meu!

E toma o pauzinho do Pirata Qualquer e mata-o.

QUARTO PIRATA QUALQUER — Esse pauzinho é da hora... Me dá!

Mata o Terceiro Pirata Qualquer e assim, consecutivamente, entram piratas, tomam o pauzinho e matam o seu antigo dono..

BRUXA PIRATA — (ainda em tom de narração) E a população de Providence caiu vertiginosamente naqueles dias: os piratas perceberam que aquele não era o sistema político ideal. Precisavam arriscar outra coisa.

Efeito de flashback. A tripulação de Will o´Well debate sobre o sistema político de Providence.

BARBA MOLHADA — Ou achamos um jeito de nos organizar ou não teremos mais piratas para povoar Providence...

CONTA-CAUSO — Certo: fica instituído que questões políticas não devem ser resolvidas com o uso de armas!

GERSON — Mas como decidiremos as coisas então? Na porrada?

CAPITÃO WILL O’WELL — Sim! Na porrada! Assim ninguém morre!

CONTA-CAUSO — Não era bem isso...

CAPITÃO WILL O’WELL — (interrompendo-a) Todos de acordo?

TODOS — (menos a Conta-Causo) Yo-Hoo!

BARBA MOLHADA — Ainda assim, precisamos achar um jeito das coisas an-darem nessa ilha. Precisamos de uma... de uma... tecnologia política!

BARBICHA — Eu recomendo que usemos a que conhecemos: vamos instituir uma monarquia em Providence!

TODOS — Monarquia?

GERSON — Como assim monarquia?

CONTA-CAUSO — Teremos um Rei dos Piratas?!

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42 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

BARBICHA — Sim: teremos um Rei dos Piratas!

CAPITÃO WILL O’WELL — (ambicioso, falando para si) Me gusta dessa idéia – el patron! (todos olham para o capitão, que disfarça)

CONTA-CAUSO - E quais são os critérios para decidir quem é o Rei?

BARBICHA — É simples: vamos descobrir quem entre nós tem o mais puro sangue pirata correndo nas veias, analisando a árvore piratológica de todos do Kuttel Daddel Du III!

TODOS — Árvore piratológica?

BARBICHA — Precisamente: quem de nós, por mais gerações, é pirata!

GERSON — E como a gente faz isso?

BARBICHA — É fácil, Gerson! Para começar, quem conheceu a própria mãe?

O Capitão Will o´Well, Gerson, Barba Molhada e o próprio Barbicha levantam a mão.

BARBICHA — Certo: o restante está desqualificado!

BRUXA PIRATA E CONTA-CAUSO - (desanimadas) Ah...

BARBICHA — Muito bem... Dos que conheceram a mãe, quem sabe dizer de que forma ela ganhava a vida?

GERSON — Eu sei, eu sei: a minha mãe era blogueira!

BARBICHA — Não serve... Você, Capitão?

CAPITÃO WILL O’WELL — (irritado) No me gusta que hablen de mi madre!

BARBICHA — Certo, certo... Então vamos supor que ela também não era pira-ta. Barba Molhada?

BARBA MOLHADA — Minha mãe era camponesa, colhia margaridas em um campo da Escócia...

BRUXA PIRATA — (troçando) No auge da Idade Média!

A Bruxa Pirata ri compulsivamente. Todos a encaram. Ela percebe e para, sem graça.

BARBICHA — Mas não era pirata. Neste caso, isso faz de mim... o Rei!

CAPITÃO WILL O’WELL — Peraí: o que é que faz de você o Rei?!

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Piratas de Galochas - 43

BARBICHA — Veja bem, Capitão Wesley... Wolson... Veja bem Capitão: (apa-nha sua árvore piratológica, começa a mostrá-la enquanto fala) minha mãe era pirata – morreu em batalha, combatendo os homens da Coroa Britânica. Meu avô também era pirata – morreu em um acidente envolvendo remos e uma lula. E até mesmo minha bisavó era pirata – ou vocês nunca ouviram falar da lendária Velhinha dos Sete-Mares?

Todos se olham, impressionados.

CONTA-CAUSO — Neste caso... (animado) Viva Barbicha! O Rei dos Piratas!

TODOS — (pegando Barbicha no ombro, fazendo uma grande comemoração) Viva Bar-bicha, o Rei dos Piratas!

BARBICHA — E como o mais novo Rei de Providence, começo agora a emitir meus mandatos reais!

TODOS — Yo-Hoo!!!

BARBICHA — Artigo 1º - Todo pirata tem o direto de ser um livre pirata em Providence!

TODOS — Yo-Hoo!

BARBICHA — Artigo 2º - Fica decretado um imposto de 20% sobre todos os butins, para que tenhamos dinheiro para gerenciar nossa ilha.

TODOS — Yo-Hoo....

BARBICHA — Artigo 3º - Fica decretado um aumento de 13,5% no valor total das vendas de rum.

TRIPULAÇÃO — (revoltados) No rum!?

BARBA MOLHADA — Ninguém mexe no rum!

GERSON — Aí já é demais!

CAPITÃO WILL O’WELL — Não virei pirata para dar todo o dinheiro dos meus saques para um reizinho qualquer! (em tom insurrecional) Abaixo o Rei!

Pancaria generalizada, gritos, algazarra. Os piratas saem de cena em meio a pancadaria, com exceção do Barba Molhada.

BARBA MOLHADA — A Monarquia não foi o melhor para organizar Pro-vidence, precisamos pensar em outra coisa. (chamando o restante da tripulação) Vermes do esgoto! Caramujos da privada! (a tripulação do Capitão Will o´Well

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44 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

vai retornando aos poucos, estão todos machucados) Precisamos encontrar de novas ideias, pensar coisas novas! Precisamos de uma... De uma... tecnologia política!

TRIPULAÇÃO — (falando junto, irritados) De novo isso?! Não aguento mais essa história!

GERSON — Olha, eu tenho um tio que é norte americano – ele é da parte rica da família. Ele disse que estão arriscando um negócio novo por lá, uma tal de ‘democracia’.

TODOS — (impressionados) Demo... cracia?

CAPITÃO WILL O´WELL - E como é que funciona isso, Gerson?

GERSON — É muito simples, Capitão. Toda a população para e escolhe um presidente para governar as coisas. Eles chamam isso de ‘eleição’. Depois de um tempo existe uma nova eleição, e todos podem votar no mesmo presidente ou em um outro, se não gostaram do primeiro.

BARBA MOLHADA — Mas que coisa engenhosa!

CONTA-CAUSO — Mas quem concorreria na eleição, aqui em Providence?

BARBICHA — Eu! Já demonstrei que tenho experiência no poder: quero me candidatar para o cargo de presidente de Providence!

BARBA MOLHADA — Precisamos de outro candidato... Alguém mais gostaria de tentar?

Todos disfarçam.

BARBICHA — Então já ganhei a eleição!

Todos murmuram – não parecem felizes.

CAPITÃO WILL O´WELL - Um candidato só não é democracia!

BARBICHA — É só vocês todos votarem em mim!

TRIPULAÇÃO — (depois de uma breve pausa) Não...

CAPITÃO WILL O´WELL - Que tal... (apontando para o papagaio empalhado) O papagaio?

TRIPULAÇÃO — (incrédulos) O papagaio?!

BARBA MOLHADA — Pois bem, temos dois candidatos. Vamos dar início ao processo eleitoral da Ilha de Providence. Dos aqui presentes, quem vota no Pirata Barbicha?

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Piratas de Galochas - 45

CAPITÃO WILL O´WELL - Eu voto! (todos estranham) No papagaio!

TRIPULAÇÃO — (menos Barbicha, falando de forma tumultuada) Eu também voto no papagaio! É isso aí! Viva o papagaio!

BARBA MOLHADA — (anunciando em tom de comício) Então está eleito, como Presidente de Providence, o Papagaio!

TRIPULAÇÃO — (menos Barbicha) Papagiao! (pegam o papagaio empalhado e circulam cantando) Papagaio! Papagaio! Papagaio, papagaio, papagaio!

Colocam o papagaio empalhado em cima da mesa. Todos os piratas o circulam aguardando a próxima ordem. Silêncio.

BRUXA PIRATA — Um pouco caladão nosso Presidente...

TODOS - Shiuu!

CAPITÃO WILL O´WELL - O Presidente está refletindo.

Silêncio.

CONTA CAUSO — Espero que ele tenha mais agilidade em momentos de pres-são...

TODOS - Shiuu!

CAPITÃO WILL O´WELL - O Presidente ainda está refletindo!

Silêncio.

GERSON — Gente, fala sério: esse papagaio não vai falar nada porque ele tá morto, é um papagaio empalhado! Tá morto, morto! Empalhado e... morto!

CAPITÃO WILL O´WELL — (contendo a irritação) Só um instante… (se debruça para ouvir o papagaio) Nosso Presidente fez sua primeira declaração! Como sua primeira ordem, nosso Presidente manda instituir a Policia Militar em Provi-dence, para conter os desordeiros de nossa ilha. Só um instante... (se debruça novamente para ouvir o papagaio, continua falando com ele) Não... Não posso aceitar, é muita honra... Tudo bem. (voltando-se para todos) Nosso Presidente acaba de me nomear Comandante do Choque, e sua primeira ordem é que eu reprima os re-voltosos... (se volta para o Gerson, ameaçador) Quem aqui tá morto em empalhado, Gerson?!

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46 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

GERSON — Oh, Capitão! Não faz isso não Capitão... Sou eu! Sou eu que estou morto e empalhado!

O Capitão Will o´Well corre atrás de Gerson e começa a bater nele.

CONTA-CAUSO — (observando o Capitão Will o’Well batendo no Gerson) Final-mente a Polícia Militar chegou aqui em Providence, quem diria...

BARBA MOLHADA — Pois eu não fundei uma Federação de Piratas para ser reprimido pela PM!

BRUXA PIRATA E BARBICHA - Eu também não!

CONTA-CAUSO — Eu sei, mas calma gente, precisamos ter um pouquinho de paciência. Afinal, a Polícia está aqui para proteger a gente...

Breve silêncio. Ao fundo, o Capitão Will o’Well espanca Gerson.

CAPITÃO WILL O’WELL — (enquanto bate no Gerson) Servir e proteger! Servir e proteger!

BARBA MOLHADA — Abaixo o Presidente de Providence!

TRIPULAÇÃO — (menos o Capitão Will o´Well) Abaixo o Presidente de Provi-dence!

CAPITÃO WILL O´WELL — (termina de bater no Gerson) Não é bem assim, podemos conversar...

BARBICHA — Porrada na polícia também!

Pancadaria generalizada, gritos, algazarra. Novamente os piratas saem de cena em meio a pancadaria, com exceção do Barba Molhada, que termina com o papagaio empalhado na mão.

BARBA MOLHADA - O que? (começa a escutar o papagaio) Até que não é uma má ideia! (chamando os piratas fora de cena) Piratas do Kuttel Daddel Du III, escó-ria dos mares! Estive aqui pensando, sozinho, e tive uma ideia! Nós piratas não precisamos de reis, presidentes, nem nada do tipo. Não precisamos de ninguém mandando na gente. Todos de acordo?

TODOS — De acordo!

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Piratas de Galochas - 47

BARBA MOLHADA — Então a partir de agora decidiremos as coisas juntos, em uma grande assembleia, para que todos possam participar das decisões. To-dos de acordo?

TODOS — De acordo!

BARBA MOLHADA — Perfeito! Então daremos início à primeira assembleia dos piratas da Ilha de Providence! Alguém tem alguma questão pertinente?

TODOS — (levantando a mão e falando ao mesmo tempo) Eu tenho! Aqui! Eu quero falar!

BARBA MOLHADA — Vamos ver... Pirata Gerson, levantou a mão primeiro!

GERSON — Só queria dizer que na última embarcação que a gente saqueou, eu consegui uma chinchila da Pomerânia, e ela sumiu! Era presente pra minha mãe! Olha, eu não quero acusar ninguém, mas eu vi o Capitão usando uma pantufa que parecia ser feita de pele de chinchila!

BARBA MOLHADA — Vejam, uma questão polêmica! Proponho que criemos um grupo de trabalho para resolver o caso da Chinchila da Pomerânia! Gerson e Capitão podem fazer parte desse GT!

Capitão Will o’Well estrala os dedos, ameaçadoramente.

GERSON — Quem liga pra chinchila...

BARBA MOLHADA — Todos de acordo?

TODOS — De acordo!

BARBA MOLHADA — Mais alguma questão?

BARBICHA — Eu aqui!

BARBA MOLHADA — Pirata Barbicha!

BARBICHA — É o seguinte: não quero ser o estraga prazeres de ninguém, mas se queremos administrar essa ilha precisamos cobrar um imposto! Sem dinheiro não podemos construir ruas, melhorar os portos, importar runs...

TODOS — (começando uma grande revolta, falando ao mesmo tempo) O que?! De novo essa história de dinheiro?! Imposto?! Vamos arrebentar tudo!

CAPITÃO WILL O´WELL — Questão de ordem! Questão de ordem! (toda tripulação silencia) Eu proponho que nossas ações, a partir de hoje, sejam organi-zadas em comissões! A primeira comissão de limpeza, manutenção, manutenção de limpeza e limpeza de manutenção, fica com Barbicha e o Gerson! A segunda

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48 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

comissão, de tricotagem e manobras de baleia, fica com Barba Molhada! Conta--Causo fica na comissão da alimentação! E a Bruxa... (fica com medo da bruxa) ... na comissão de bruxaria. E eu na Comissão de Capitão! Manda chuva! E é isso aí!

Os piratas circulam o Capitão, encarando-o, que não se intimida. Desistem de contestar a autoridade do Capitão, saem de cena, cabisbaixos.

CAPITÃO WILL O´WELL — Me gusta assembleia! Todo poder ao povo!

7. os Piratas filósofos

Barbicha e Gerson limpam a proa do barco, noite.

BARBICHA - Ô Gerson...

GERSON — O que foi, Barbicha?

BARBICHA — Você pretende ser pirata para sempre?

GERSON — Como assim?

BARBICHA — Pense um pouco: trocamos qualquer possibilidade de conforto por esta vida que levamos, este constante estado inebriado, todo este sangue em nossas mãos Gerson, e pra quê? Pra que?

Uma música começa a soar. Gerson canta Pré sal, cana, pau-brasil, acompanhado do restante da tripulação.

Pré sal, cana, pau-brasil30

Desde LampiãoAté o Morro do AlemãoQue a inclusãoBate aqui no meu portãoEla vem de brancoVem trazendo educaçãoMas também de bota, de pataE de caveirão

Tem que trabalhar Pirata

30 Letra e Música de Antonio Herci, 2004.

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Piratas de Galochas - 49

Tem não, tem que estudar PirataAgora sim tem que trabalhar PirataMas do jeito que o diabo do mercado gosta

Tem que parar de ouvir funk MolequeAdquirir cultura culta de branco MolequeE se juntar mais do que três ou quatro numa praçaÉ um bom motivo pra sumir com todo mundo

Desde LampiãoAté o Morro do AlemãoQue a inclusãoBate aqui no meu portãoEla vem de brancoVem trazendo educaçãoMas também de bota, de pataE de caveirão

A música termina. Os piratas permanecem em cena.

GERSON — Ainda bem que eu sou pirata.

Toda a tripulação sorri, concordando.

8. Poderosos da inGlaterra 2Novamente no Palácio Real, novamente o Capitão Wood Rogers se apresenta ao Rei.

CAPITÃO WOOD ROGERS — (tomando um chá) Sabe, vossa majestade, a Fede-ração dos Piratas prospera! Os bucaneiros se organizam, e agora não existe ilha sem-função social que não vire um reduto desses saqueadores! Daqui a pouco perderemos o controle...

Representante da Soap Opera Highlights Corporation invade a cena – ela está irritada.

REPRESENTANTE DA SOAP OPERA HIGHLIGHTS CORPORATION — (cortando o Capitão Wood Rogers) Daqui a pouco não, já perdemos o controle! Do jeito que está não tem como continuar! Nós, da Soap Opera Highlights Corpo-

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50 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

ration, exigimos que a Coroa Britânica tome alguma providência em relação aos piratas – providências imediatas!

CAPITÃO WOOD ROGERS — Ah sim, agora a Coroa Britânica tem que to-mar providências imediatas?

REPRESENTANTE DA SOAP OPERA HIGHLIGHTS CORPORATION — Ou cortamos toda a verba que investimos no projeto Ilha Linda. (Wood Rogers cos-pe todo o seu chá) Você não deixa alternativas para nós da Soap Opera Highlights Corporation, meu bom Rei... Os piratas começam a tomar conta de cada ilha abandonada, majestade! Os negócios naufragam, barcos são saqueados, prédios ocupados!

CAPITÃO WOOD ROGERS — Minha senhora, por favor, seja razoável... Como você espera que a Marinha Britânica resolva a situação dos piratas se não temos nem verba para comprar a munição que entra na cabeça deles?

REPRESENTANTE DA SOAP OPERA HIGHLIGHTS CORPORATION — Neste caso Majestade, arme seu capitãozinho, invista na Marinha Real, dê resoluções concretas e rápidas para essa situação! Nossas ilhas não podem ficar a mercê de ratos, baratas, sem-tetos, mendigos e piratas!

CAPITÃO WOOD ROGERS — Então o que estão propondo é que eu chacine os miseráveis?

A Representante da Soap Opera Highlights Corporation e o Rei concordam com a cabeça. Pausa.

CAPITÃO WOOD ROGERS — Ótimo. Eu adoro mesmo cortar umas gargan-tas.

REPRESENTANTE DA SOAP OPERA HIGHLIGHTS CORPORATION — Ah! Aproveite e ofereça um contrato de trabalho temporário para quem deixar a ilha sem resistir. Nós precisamos de mão de obra barata mesmo.

CAPITÃO WOOD ROGERS — (impressionado) Esses empresários pensam em tudo...

REPRESENTANTE DA SOAP OPERA HIGHLIGHTS CORPORATION - Sem mais por hoje, Majestade. Deus salve o Rei!

CAPITÃO WOOD ROGERS — Deus salve o Rei!

O Rei vai embora. Capitão Wood Rogers e Representante da Soap Opera Highlights

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Piratas de Galochas - 51

Corporation se encaram. Começam a rir um para o outro, como velhos conhecidos.

REPRESENTANTE DA SOAP OPERA HIGHLIGHTS CORPORATION - Muito bem, Capitão Wood Rogers!

CAPITÃO WOOD ROGERS — Por favor, não teria conseguido sem você...

Se cumprimentam efusivamente, vão embora.

9. os Piratas MostraM-se não tão corajosos assiM

Resistência de piratas que permanecem em Providence. Capitão Will o’ Well e Gerson conversam.

CAPITÃO WILL O’WELL — Gerson! Parece que seremos atacados pela Mari-nha Britânica! Precisamos de um espião, uma pessoa infiltrada que nos dê todas as informações, alguém com muita experiência!

GERSON — Mas quem?

Olham em volta. O Capitão Will o’Well olha para Gerson, decepcionado.

CAPITÃO WILL O’WELL — Vai ter que ser você mesmo... Gerson, vá até a costa escondido e me informe tudo que observar. E lembre-se: em silêncio!

Gerson acena com a cabeça concordando, começa a ir embora. Tropeça e faz muito barulho. Segue seu caminho. Capitão Willie William Will o’Well assovia. Um Coro de Piratas se junta ao Capitão. Tentando manter o silêncio, se posicionam para resistir à Marinha Inglesa.

GERSON — (entra em cena correndo) Capitão, capitão! Recebi notícias de que se aproximam as chalupas dos homens do rei.

O Gerson sai.

CAPITÃO WILL O’WELL — Que venham, escória real! Vamos chutar o tra-seiro dourado de vocês!

CORO DE PIRATAS - Yo-Hoo!!!

PIRATA CALCULISTA — É isso mesmo: vamos mandar um recado para Co-roa Inglesa!

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52 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

CORO DE PIRATAS - Yo-Hoo!!!

GERSON — (entra em cena correndo) Capitão, capitão! Parece que é uma frota grande – nos vilarejos próximos não se fala de outra coisa.

O Gerson sai.

PIRATA MEDROSO — (destacando-se do Coro de Piratas) Será que é uma frota tão grande assim?

PIRATA DE CORAGEM — (destacando-se do Coro de Piratas) Não importa o quantos são, resistiremos bravamente!

PIRATA CALCULISTA — Estamos preparados para a batalha, bucaneiros – aguentem firme!

TODOS - Yo-Hoo!

GERSON — (entra em cena correndo) Capitão! Adivinha quem está comandando as embarcações? O Capitão Wood Rogers!

O Gerson sai.

CORO DE PIRATAS — O Capitão Wood Rogers?!

PIRATA MEDROSO — (destacando-se do Coro de Piratas) Ele matou um pri-mo meu!

O Coro de Piratas demonstra muito receio.

CAPITÃO WILL O’WELL — Calma, venceremos a batalha e tomaremos rum com a cabeça do Capitão!

CORO DE PIRATAS — (não tão animados) Yo-Hoo...

GERSON — (entra em cena aterrorizado) Capitão... Trata-se de dois navios de guerra de grande porte, cada um com mais de 40 canhões, seguidos de perto por 4 chalupas menores, cada uma com 20 canhões! São mais de 300 tripulantes ao todo!

Gerson fica. Silêncio.

CAPITÃO WILL O’WELL — (com grande ímpeto) Mesmo em menor número, lutaremos até o fim!

Capitão Will o’Well estende a mão para Gerson, que volta a ter coragem. O Coro de Piratas permanece atemorizado.

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Piratas de Galochas - 53

PIRATA CALCULISTA — Veja bem Capitão, ainda temos uma chance: nós ainda podemos nos entregar e aceitar o contrato de trabalho!

CORO DE PIRATAS - Yo-Hoo!!!

CAPITÃO WILL O’WELL — Nunca! Não vou entregar meu pescoço por tão pouco! Não depois de tudo que conquistamos. Vamos abrir caminho a balas para fora de Providence! Vamos piratear outros mares! Quem está comigo?

O Coro de Piratas disfarça.

GERSON — (com muito ímpeto) Eu estou Capitão!

CAPITÃO WILL O’WELL — Gerson… Reúna todos do Kuttel Daddel Du III, nosso barco. Iremos a batalha! Qualquer coisa, hoje, você é o Capitão!

GERSON — Eu sou o capitão? Posso ficar com o chapéu?

CAPITÃO WILL O’WELL — (colocando seu chapéu na cabeça de Gerson) Com o chapéu, com a peruca, com tudo! Vai na frente gritando “Atira em mim, atira em mim, eu sou o Capitão!”

Gerson, com o chapéu e a peruca do Capitão, sai correndo na frente, gritando, seguido de perto por Will o’ Well, que se esconde atrás dele. O Coro de Piratas fica observando. Fora de cena ouvimos gritaria, tiros, tumulto.

PIRATA MEDROSO — (destacando-se do Coro de Piratas) Não é que eles fu-giram mesmo?

PIRATA CALCULISTA - São uns loucos!

Entra a Marinha Real batendo em seus escudos com cassetetes – eles se vestem como a Tropa de Choque. Seguindo de perto, logo atrás, o Capitão Wood Rogers.

CAPITÃO WOOD ROGERS — (praguejando) Vermes imundos! Inimigos do mundo! Terão seu troco! (percebendo o Coro de Piratas que ficou) Ah! Tem mais aqui!

Capitão Wood Rogers aponta sua espada para o Coro de Piratas, pronto para a batalha.

PIRATA CALCULISTA — Não Capitão: queremos nos entregar!

O Coro de Piratas arremessa suas armas no chão.

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54 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

CAPITÃO WOOD ROGERS — Ah... Bem. Certo. Homens, eles desistiram!

MARINHA REAL — (desapontados) Ah...

CAPITÃO WOOD ROGERS — Então vocês aceitam o contrato de trabalho? (o Coro de Piratas acena positivamente com a cabeça) Sabem que é temporário? Sem carteira assinada, não tem vale refeição, transporte, na verdade não tem nenhum benefício. Mas... com possibilidade de efetivação! (o Coro de Piratas se anima) Neste caso, façam um favor para mim: (tira um documento e uma pena do bolso) assi-nem este contrato na linha pontilhada. Os que não souberem escrever o próprio nome, podem assinar com o dedo...

PIRATA DE CORAGEM — (destacando-se do Coro de Piratas, interrompendo Wood Rogers) Espere um pouco!

Todos se voltam para o Pirata de Coragem.

PIRATA DE CORAGEM — Isso não é justo! Se entramos para a pirataria é por-que não havia nenhuma outra opção! Quando éramos úteis para que a Coroa Inglesa chutasse o traseiro dos espanhóis todo mundo era bem tratado! Depois, nos jogaram no lixo, como se faz com uma ferramenta que quebrou e já não tem mais utilidade!

CAPITÃO WOOD ROGERS — O que você quer dizer com isso?

PIRATA DE CORAGEM — Que se existe um culpado pela Pirataria, esse cul-pado é a Coroa Inglesa!

CAPITÃO WOOD ROGERS — Então não se rende?

PIRATA DE CORAGEM - Não!

CAPITÃO WOOD ROGERS — Não aceita o contrato de trabalho?

PIRATA DE CORAGEM - Não!

CAPITÃO WOOD ROGERS — Bem, é um direito seu.

Subitamente o Capitão Wood Rogers tira uma pistola do bolso e atira na cabeça do Pirata de Coragem.

CAPITÃO WOOD ROGERS — Mais alguém aqui é bom de discurso ou todos podem assinar logo esse contrato? Já são quase cinco, não quero perder a hora do chá.

Silêncio. Os piratas disputam, aos berros e tapas, a pena para assinar o documento real.

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Piratas de Galochas - 55

10. fundo do Mar Capitão Willie William Will o’Well discursa, depois de fugir da Marinha Real comandada por Wood Rogers.

CAPITÃO WILL O’WELL — Providence... Vamos reconquistar nossa ilha! Expulsar Wood Rogers e sua corja! Perdemos tudo... Mas ainda temos uma es-perança: o tesouro de Busnardo Navarro! A maior fortuna da terra, murmuram alguns... O tesouro dorme no fundo do mar. Irei buscá-lo! Vou salvar Providence ou não me chamo Capitão Willie William Will o’Well!

O Capitão Willie William Will o’Well pula no mar. Nadando pelo fundo do mar, entre criaturas fantásticas, peixes e águas-vivas gigantes, o Capitão Willie William Will o´ Well encontra o tesouro de Busnardo Navarro.

CAPITÃO WILL O’WELL — Meu!

Apanha o tesouro.

11. Batalha final

Os Piratas marcham em posição de batalha para recuperar Providence. Conta-Causo se destaca, narra sua história.

CONTA-CAUSO — (em tom de narração) Essa é a história da nossa derrota, do dia em que todos nós, piratas do Kuttel Daddel Du III, comandados pelo deste-mido Capitão Willie William Will o´Well, fomos capturados na batalha mais sangrenta que os mares já presenciaram.

Toda a tripulação apanha um barquinho de papel, menos Barba Molhada, que carrega uma baleia de papel. O Capitão Will o’ Well arma um tabuleiro de batalha naval.

CONTA-CAUSO — (ainda narrando) O tesouro de Busnardo Navarro, corajosa-mente recuperado por nosso capitão, era mesmo uma imensa fortuna. Conse-guimos que cada um de nós, piratas, tivesse uma embarcação para comandar. Éramos um exército pequeno, mas de homens e mulheres livres.

Ao longo da narração da Conta-Causo, os piratas entregam seus barcos para o Capitão Will o’

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56 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

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Piratas de Galochas - 57

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58 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

Well, que os ajeita no tabuleiro da batalha naval. Barbicha caminha para entregar o seu barco. Para no meio do caminho.

BARBICHA — Eu não quero morrer nesta batalha Capitão. Temos dinheiro, muito dinheiro! Podemos todos nos aposentar! Por que esse sacrifício, como se fossemos mártires? Somos piratas!

CAPITÃO WILL O´WELL — Somos piratas e estamos sendo engolidos pela história! Ou lutamos ou deixamos de existir, toda essa espécie de gente violenta e livre!

BARBICHA — Poupe-me do seu romantismo: eu prefiro continuar vivo.

CAPITÃO WILL O’WELL — (chama o Barbicha de canto) Se você sair vivo vai ter o seu próprio barco, sua própria tripulação. Que tal?

Barbicha fica pensativo.

CAPITÃO WILL O’WELL — Vamos, você é um pirata! Ainda podemos vencer essa batalha!

BARBICHA — (depois de refletir um instante) Yo-Hoo!

Barbicha caminha até onde está o Capitão Will o´Well e lhe entrega seu barquinho de papel. O Capitão Will o´Well sorri e posiciona o barquinho do seu lado do tabuleiro.

CONTA-CAUSO — E assim, armados de canhões, pistolas e espadas, partimos até Providence, para retomá-la do Capitão Wood Rogers e da Coroa Inglesa!

BARBA MOLHADA — (entregando uma baleia de papel para o Capitão) Capitão, eu e a Lorena estamos com você, dispostos a morrer para retomar a nossa ilha!

Capitão Will o´Well e Barba Molhada se abraçam. Will o’ Well ajeita a baleia Lorena no seu lado do tabuleiro.

CONTA-CAUSO — Mantivemos a coragem até o último momento, mesmo quando avistamos a Armada que o Capitão Wood Rogers juntara para nossa úl-tima batalha: eram 45 chalupas, todas com mais de 80 tripulantes, 50 canhões...

O Capitão Wood Rogers aparece em cena – carrega um tabuleiro de batalha naval com dezenas de barcos.

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Piratas de Galochas - 59

CONTA-CAUSO — A tripulação do Capitão Wood Rogers era formada, em sua gigantesca maioria, por ex-piratas, antigos companheiros de Federação, que agora faziam parte da Marinha Real, em troca de um salário miserável. Nenhum deles pensou em refutar a ordem de nos atacar, nós, ainda piratas. E fomos pi-ratas até o fim.

Conta-Causo entrega seu barco ao Capitão Will o’Well, vai embora. O Capitão Wood Rogers posiciona seu tabuleiro do lado oposto do Capitão Will o’ Well. Se encaram. Capitão Wood Rogers saca um cigarro, oferece para Will o’Well, que aceita. Sentam os dois para fumar.

CAPITÃO WOOD ROGERS — Parece que nunca teremos paz em Providence, não é?

CAPITÃO WILL O’WELL — Nós não estamos incluídos nisso que você chama de paz, Capitão Wood Rogers.

CAPITÃO WOOD ROGERS — Nós só estamos tentando trazer o progresso para esse fim de mundo, Capitão Willie... Wolla... Willas...

CAPITÃO WILL O’WELL — Will o’ Well!

CAPITÃO WOOD ROGERS — Que seja!

CAPITÃO WILL O’WELL — Em nome do progresso nos atropelam com seus cavalos, nos esmagam com seus tratores, atiram suas bombas de gás lacrimogê-nio!

CAPITÃO WOOD ROGERS — Você tem certeza que pretende começar esta batalha, Will o´Well? Quero te mostrar uma coisa... (apontando para os tabuleiros de batalha naval) Olha para as nossas frotas! Não a alguma semelhança entre elas? Veja Capitão: a frota da Marinha Britânica é muito maior e mais bem preparada que a sua. (silêncio) Eu posso lhe oferecer um emprego. Não esse empreguinho mixuruca que estão oferecendo para os outros piratas, mas um emprego de ver-dade, um emprego na Marinha Britânica! Você deve ser mesmo um bom ma-rujo, afinal de contas os piratas te respeitam. Melhor do que isso, arrumo um emprego para você e toda a sua tripulação, o que me diz? Um pouco de paz na vida, que tal? Segurança, estabilidade, conforto...

CAPITÃO WILL O’WELL — Sabe, tanto tempo no mar me fez perceber que o mundo é divido entre duas tribos, que vivem no deserto. Uma delas tem um poço enquanto a outra não tem poço algum. A tribo dos quem têm poço quer paz. São pessoas bonitas, inteligentes e que, acima de tudo, tem água. Por isso podem gastar tanto tempo à procura da paz. Mas nós, Capitão Wood Rogers, as

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60 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

pessoas da tribo que não tem poço, nós não queremos paz: nós queremos água! Nem temos uma palavra para ‘paz’ – temos uma outra, a palavra ‘sede’! Fique com seu emprego de merda! Ofereça seu Prêmio da Paz a outra pessoa! Gente disposta não deve faltar!

CAPITÃO WOOD ROGERS — Capitão, essa é minha última oferta. Você e seus homens vão acabar na forca.

CAPITÃO WILL O’WELL — Tanto o meu pescoço quanto da minha tripula-ção está à sua disposição. Porque você não vem aqui pegar, capitãozinho?!

CAPITÃO WOOD ROGERS — (muito enraivecido) Maldito!

Os dois capitães caminham até os tabuleiros de Batalha Naval. A batalha começa. Fora de cena, barulhos de tiros, explosões, gritos.

CAPITÃO WILL O’WELL — (também eufórico) Água! D-6!

CAPITÃO WOOD ROGERS — Água! H-22!

CAPITÃO WILL O’WELL — Água! F-18!

CAPITÃO WOOD ROGERS — Maldito! Em cheio! (arranca um barquinho do seu tabuleiro) C-1!

CAPITÃO WILL O’WELL — Água! I-9!

CAPITÃO WOOD ROGERS — Não é possível: outro barco! (arranca outro bar-quinho) E-15!

CAPITÃO WILL O’WELL — Água! K-20!

CAPITÃO WOOD ROGERS — Três seguidos! (arranca um terceiro barquinho) B-7!

CAPITÃO WILL O’WELL — Barbicha!

O Pirata Barbicha solta um grito e é capturado. A partida continua, e o Capitão Will o’Well perde, pouco a pouco, seus barcos. Cada navio que é derrubado, um dos piratas da tripulação grita. O jogo de batalha naval segue, até que resta apenas um barco, do Capitão Will o’Well. Os Capitães se encaram.

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Piratas de Galochas - 61

CAPITÃO WILL O’WELL — Só restou o meu…

Estende seu barco para entregar ao Capitão Wood Rogers. Subtamente puxa seu barco de volta.

CAPITÃO WILL O’WELL — Achou que ia ser fácil assim? Vamos resolver isso como resolvem os piratas: saque sua espada, Capitão Wood Rogers!

Os Capitães sacam suas armas, batalham sobre a mesa onde está o tabuleiro. Will o’Well desarma o Capitão Wood Rogers, que cai no chão. O Capitão pirata caminha vitorioso. Wood Rogers saca uma arma da sua bota, aponta para o Capitão Will o’Well.

CAPITÃO WILL O’WELL — Seu covarde, filho de uma cadela!

O Capitão Wood Rogers dispara na perna do Capitão Will o’Well, que cai no chão. Depois, o Capitão Wood Rogers chuta a cabeça do Capitão Will o’Well e o desarma. Aponta sua arma para o Capitão dos piratas, que está no chão, derrotado.

CAPITÃO WILL O’WELL — (se humilhando, aos prantos) Eu não quero morrer... Não quero morrer! Eu vou ser um bom homem! Um bom homem não, um bom empreendedor! Eu quero o emprego! Como era aquela proposta?

CAPITÃO WOOD ROGERS — Capitão, isso é constrangedor! Você é um ho-mem, não é? Sabia das consequências...

CAPITÃO WILL O’WELL — (no máximo da humilhação) Eu vou mudar! Eu vou procura emprego! Vou trabalhar 14, 15 horas por dia! Eu vou escovar os dentes! Eu vou ser heteronormativo! Por favor, me dê uma chance!

CAPITÃO WOOD ROGERS — Agora é tarde demais. (gritando para Marinha Real) Homens! Tragam o restante da tripulação.

A tripulação de piratas aparece, capturada, caminhando em fila.

CAPITÃO WOOD ROGERS — Você também, Capitão.

O Capitão Will o’Well se junta a sua tripulação.

CAPITÃO WOOD ROGERS — Mão na cabeça! Caminhando! E sem gracinha.

Os Piratas deixam Providence, capturados pela Marinha Britânica.

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62 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

12. discurso do vencedor

Em meio aos destroços da última batalha, no Porto de Providence, o Capitão Wood Rogers discursa.

CAPITÃO WOOD ROGERS — O progresso é inevitável: devemos caminhar rumo ao desenvolvimento econômico, nem que para isso precisemos do pulso fir-me da violência! Nossa nação só pode prevalecer se comandada por homens fortes e virtuosos! As cartas estão na mesa; a superioridade material do nosso país coloca a obrigação do colonizador em nossos ombros. Para que a chama do farol do primeiro mundo brilhe é necessário madeira para queimar. Ei-la entre os negros africanos, nos índios que adoram espelhinhos, nas nações chacinadas por nossa sede de ouro! Ei-la nos miseráveis que infestam as ruas, nos piratas enforcados! A máquina do futuro caminha inexoravelmente e eu, eu prefiro estar em cima dela, do que no rastro de suas rodas. Não lamentaremos as mortes que barram o nosso progresso! Viva os homens de coragem e poder! Viva o desenvolvimento! Viva!

13. execução eM Praça PúBlica

Uma execução em Praça Pública. Estão posicionados, em fileira, com a corda no pescoço, Bruxa Pirata, Barbicha, Gerson, Conta-Causo, Barba Molhada e o Capitão Willie William Will o’Well. O Capitão Wood Rogers e seus homens da Marinha Real assistem o enforcamento.

CAPITÃO WOOD ROGERS — Pelo poder investido em mim pelo Rei da In-glaterra e por Deus, eu declaro que o Capitão Will o’Well e sua tripulação foram considerados culpados pelos crimes de pirataria e invasão de propriedade priva-da. A pena para esses crimes é que todos sejam pendurados pelo pescoço até a morte. Creio que esse seja o momento para suas últimas palavras.

O Capitão Wood Rogers e seus homens se posicionam para execução.

BRUXA PIRATA — Como falar de governos e políticas a homens que foram deixados para trás? Vocês não entenderam nada: quando a Coroa Inglesa nos protege entregamos a ela nossa liberdade! Eu não aceito esse acordo.

BARBICHA — (gritando para a multidão) Eu sabia que tudo podia acabar mal... E acabou. Mas essa história de poupar dinheiro, levar uma vida comedida, nunca foi mesmo minha praia. Fiquem com o soldo magro de vocês – eu quase fiz fortuna.

GERSON — (gritando para a multidão) Mãe, não vou poder escrever uma última carta pra senhora. Agora eu vou ser enforcado. Mas sabe mãe, eu não me arre-

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Piratas de Galochas - 63

pendo. Os melhores homens que eu conheci eram piratas. Estou orgulhoso de morrer como um.

CONTA-CAUSO — Eu me arrependo, do fundo do meu coração, mas me arre-pendo só do que não fiz! Me arrependo de não ter cortado a garganta dos piratas que nos traíram! Como puderam trocar tudo por tão pouco?! Morro com meus companheiros de barco!

BARBA MOLHADA — Eu me lembro do azul do céu e do azul do mar, de um tempo em que a liberdade estava ao alcance da coragem de navegar. Temo que no futuro não existam mais mulheres e homens livres.

CAPITÃO WILL O’WELL — Eu sou o Capitão Willie William Will o’Well e esse é meu último discurso. Sou um cancro, um flagelo que sem hesitação gangrena pulmões e cérebros, azedo o leite matinal. O meu ofício é fazer o que penso. A liberdade se conquista um dia por vez – me enforquem em praça pú-blica, quem sabe assim meu odor estragará seus malditos jantares familiares. (sentenciando) Tive amigos que um dia me recomendaram que eu morresse de sapatos. Hoje eu vejo que são uns mentirosos! O terceiro mundo vai explodir! Quem tiver de sapato não sobra! Não pode sobrar!

Subitamente o Capitão Will o’Well começa a arrancar violentamente os sapatos dos pés. A tripulação o segue e joga fora os sapatos. Todos os piratas urram nas suas forcas e arremessam suas botas.

TODOS DO KUTEL-DÁ-DELDU III — (berrando ao mesmo tempo) Vermes co-vardes assassinos! Escravos de boa vontade! Pro inferno vocês! Porcos imundos lambedores de botas!

Em meio à gritaria dos Piratas, o Capitão Wood Rogers faz um gesto, a forca solta. Todos os piratas agonizam até a morte. As luzes se apagam.

ePíloGo

Os atores e atrizes, cantam a música “Só Mais Um”.

Só mais um31

Só mais umSó mais um índioSó mais uma

31 Letra e Música de Antonio Herci.

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64 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

Família despejadaSó mais um Só mais um dedoUm sonhoSó mais uma árvoreMais um cão

Só mais umSó mais um tanqueSó mais umSó mais um posteUma correnteSó mais umSó mais um negro mas pode serUm boliviano, um baiano, um boiolaUm estranho qualquer!

Só mais umJovem atrás das gradesSó mais umVelho num corredor de esperaMais um sumiçoUma fome de vidaUma sede de sangueUma gota de lucro!

Pra você Somos sujos, rufiõesManifestantes, ladrõesTraficantes, delinquentesFavelados, ocupantesGays, travestis, safadosGalinhas, desocupadosEu lhe pergunto então:Onde está o povo?

O povo tá equipando!O povo tá ocupando!O povo tá ocupando!

FIM

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Piratas de Galochas - 65

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66 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

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Revolução das Galochas - 67

revolução das Galochas

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68 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

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Revolução das Galochas - 69

revolução das galoChas

Jéssica Paes e Rafael Presto

ApresentAção

O processo de criação do espetáculo teve início em 2012, tendo como inspira-ção o romance “Não Verás País Nenhum” de Ignácio de Loyola Brandão. A pro-posta era criar uma distopia à brasileira, a fim de construir uma crítica social por meio de uma projeção de um futuro distópico. Apesar de não existir nenhuma revolução na obra de Loyola, o grupo escolheu por retratar formas de resistência e luta nesse universo opressor.

A escolha para a criação foi a de um processo colaborativo, com uma dupla de dramaturgos. O livro de inspiração serviria como um disparador para workshops e criação de cenas. No final de 2012 o projeto “Revolução das Galochas” foi con-templado pelo PROAC Primeiras Obras, tendo, portanto, apoio financeiro para sua realização. Como parte do processo de pesquisa, o Coletivo desenvolveu um grupo de estudos com o intuito de realizar uma formação política, através de lei-turas e discussão de temas pertinentes para a temática da peça. Entre os temas es-tudados estavam: luta autônoma, reforma ou revolução, cidade e autogestão. O estudo instigou as discussões políticas e construção de críticas por meio da peça.

O processo de criação estava em andamento quando foi atravessado pe-las manifestações de junho, em 2013. Os integrantes do grupo participaram das manifestações, se engajando ativamente nos protestos contra o aumento da tari-fa dos transportes públicos. Parecia que tudo aquilo que estava sendo estudado durante o processo de criação da peça poderia ser colocado em prática naquele momento. Uma revolta popular estava se desenhando e tomando forma, ainda completamente imprevisível e difícil de identificar no calor do momento. A força que as manifestações populares ganharam naquele momento, e a conquis-ta – barrar o aumento da tarifa – foi impressionante, e muito marcante para todos os integrantes do Coletivo. Como se trancar em uma sala para discutir lutas autônomas, por exemplo, enquanto um exemplo real acontecia do lado de fora? A criação de um espetáculo com o título de “revolução” parecia estar em consonância com os acontecimentos políticos. A revolta que seria encenada na distopia estava acontecendo, de alguma maneira, naquele instante. O que mais fez sentido para os integrantes do Coletivo de Galochas na época foi se engajar

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70 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

nas manifestações, e permitir que a força e o ímpeto das jornadas de junho tam-bém atravessassem a criação artística de Coletivo.

Assim nasceu “Revolução das Galochas”, uma peça panfleto inspirada nas jornadas de junho, tomada pelo ímpeto de ir às ruas e buscar uma voz, um grito de guerra. Para uma peça panfletária, com seu posicionamento político claro e escancarado, optou-se por não ter um personagem central que o público acom-panha. A aposta foi ter como fio condutor da trama o sistema político e social que rege a sociedade (o Esquema, conforme termo usado em “Não Verás País ne-nhum”). O Esquema seria a composição de profundas parcerias entre a instância governamental e as grandes empresas privadas, ao ponto de estado e empresas se confundirem em uma coisa só. O protagonista seria o Esquema, a trama da peça seria sua queda. Assim, surgiu a Distopia Épica.

Uma escolha ousada, que implicou em diversas outras escolhas. Não há de-senvolvimento subjetivo em nenhuma das personagens, tampouco trajetória dramática. A peça conta com personagens tipo, alegorias de suas funções so-ciais: Coro de Souzas (os trabalhadores, cidadãos comuns), Coro de Comuns (os Souzas que se revoltam e se organizam em resistência), O Primeiro Ministro do Esquema, o Chefe. Não há construções profundas em nenhum deles, eles ape-nas representam um papel no jogo opressor-oprimido que o Esquema impõe. A peça-panfleto “Revolução das Galochas” se apresenta como um grito de revolta e esperança, um convite para a luta. A distopia, na verdade, tornou-se uma utopia. A peça faz uma crítica às políticas de bem estar social que estavam em voga no Brasil em 2013, pois se apresentam como reformistas e não se propõe a provocar uma mudança real, estrutural. A ascensão financeira das classes exploradas não solucionou a relação de exploração: fez dos explorados melhores consumidores. Em “Revolução das Galochas” esses consumidores se tornam endividados, opri-midos e cada vez mais tratados com violência. Nesse contexto surge uma revolta, e os Souzas se tornam os Comuns, derrubando o Esquema.

Depois de uma estreia e uma temporada conturbada em 2013, o Coletivo de Galochas passou por uma reformulação, e em 2014 realizou uma nova tempo-rada de “Revolução das Galochas”, dessa vez sem incentivos financeiros. Esta é a versão da presente publicação, com alguns ajustes e melhoras com relação ao espetáculo estreado no ano anterior, encenado pelas ruas no entono da Praça Princesa Isabel. Na primeira montagem, a peça percorria um trajeto e termina-va na rua, quase como uma peça-manifestação. Em 2014, a peça aconteceu no Parque da Luz, sem itinerância do público e durante o dia, sem precisar de ilu-minação. Essa escolha valorizou o conteúdo discutido em cada cena, tornando o espetáculo mais acessível e seu discurso mais claro. Assim, a dramaturgia desta edição é uma peça-panfleto, uma distopia épica que cumpriu o papel que lhe coube no momento de sua criação.

Jéssica Paes

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Revolução das Galochas - 71

FichAs técnicAs

prAçA princesA isABeL, 2014Criação Coletivo de Galochas

Direção Daniel Lopes

Assistência de Direção Raquel Bu

Dramaturgia Jéssica Paes, Rafael Presto

Elenco Diego Henrique, Ighor Walace, Jéssica Paes, Júlia Moretti, Mariana Guedes, Mauro Cytrynowicz, Paloma Franca, Rafael Presto

Contrarregragem Leila Freire

Direção Musical Antonio Herci

Figurino Diego Henrique, Rafael Presto

Cenografia Raquel Bu

Iluminação Isadora Giutini

Operação de Luz Rodrigo Campos

pArque dA Luz, 2015Criação Coletivo de Galochas

Direção Daniel Lopes

Dramaturgia Jéssica Paes, Rafael Presto

Elenco Diego Henrique, Ighor Walace, Jéssica Paes, Jhenifer Santine, Mariana Quei-roz, Rafael Presto, Sofia Maruci

Sonoplastia Antonio Herci

Cenografia Raquel Bu

Figurino Diego Henrique, Rafael Presto

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72 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

ocupAção independente AquALtune, 2017Criação Coletivo de Galochas

Direção Daniel Lopes

Elenco Diego Henrique, Jéssica Paes, Kleber Palmeira, Mariana Queiroz, Rafael Presto, Roanne Aragão, Wendy Villalobos

Dramaturgia Jéssica Paes e Rafael Presto

Direção Musical & Sonoplastia Antonio Herci

Iluminação, Figurino & Cenografia

Coletivo de Galochas

Preparação Corporal Gabriela Segato

Danças Urbanas Andrezinho

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Revolução das Galochas - 73

alegoria do esQuema

bateria de esCola de samba

Coro de souzas

primeiro souza

segundo souza

terCeiro souza

Quarto souza

Quinto souza

primeiro militeCno

segundo militeCno

terCeiro militeCno

Chefe - sr. anaCleto

atendente

dona

moça

alguém na fila

sermoneiro do trabalho

trabalhador Que aCabou de perder o dedo

supervisor

sindiCato

Civiltar 1Civiltar 2presos

um dos presos

outro preso

terCeiro preso

irene tavares

Celso maia

Janete de Castro

dona iraCi

tenente do esQuema

um refugiado

Coro do roubo no estoQue

homem masCarado

mulher masCarada

uma trabalhadora

outra trabalhadora

um trabalhador

trabalhador reCeoso

ambulante

garçom

amo 1amo 2alegoria da revolução

loCutor

Comuns

primeira Comum

segunda Comum

terCeira Comum

loCutora

Coro dos trabalhadores

Coro dos Civiltares

Correspondente

Ceo do grupo pão de melo

atriz 1ator 1atriz 2atriz 3

ListA de personAGens

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Revolução das Galochas - 75

revolução das galoChas

1. dia nacional de coMPras

PRAÇA CENTRAL - Uma Bateria de escola de samba toca. Alegoria do Esquema aparece em um púlpito, diante do povo brasileiro.

ALEGORIA DO ESQUEMA — Meus amigos, minhas amigas! Como Primeiro Ministro do Esquema, é uma honra poder falar ao povo brasileiro: esse povo for-te, corajoso e pacífico. Vocês são uma geração que se sacrífica pelo seu país, por uma sociedade una, livre de classe ou casta. E por isso, hoje podemos afirmar: o Brasil conteve sua inflação e todos podem ter acesso aos bens mais desejados: eletrodomésticos, eletrônicos, automóveis, casas! A Lei da Compra Compulsó-ria foi um sucesso! O Financiamento Direto de Produtos garante que todos os brasileiros vivam com conforto e dignidade! Portanto, é com muito orgulho que o Esquema dá início a 20ª edição do Dia Nacional de Consumo! Boas compras!

A Bateria toca o Samba Enredo do Esquema. A Alegoria do Esquema canta.

Samba Enredo do Esquema32

Quando o Esquema chegouNossa vida mudouMelhorou!Vou cantando na avenidaSoluções definitivasQue o Esquema implantou

Civiltar na vizinhançaSó pra sua segurançaPortão de acesso em cada bairroO movimento é controladoCada um no seu horárioOu então é fuzilado!

REFRÃO

32 Letra e Música de Rafael Presto, 2010.

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76 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

A comida é bem fresquinhaFactícia na latinhaTem cota pra meninadaA água é tubuladaPela Coca foi compradaNa parceria público-privada

REFRÃO

Os bancos Tavam indo à falênciaEra tanta inadimplênciaDevedores da NaçãoMas o Esquema O problema resolveuCriou o trabalho compulsórioE a economia renasceu!

REFRÃO

2. dia de souza

O Coro de Souzas dorme, espalhados. Um despertador toca. O Coro rapidamente se levanta e os Souzas começam a se arrumar para o trabalho. O despertador toca. Os Souzas formam uma fila.

CORO DE SOUZAS — Todos sabem como se comportar em uma fila.

Em fila, o Coro de Souzas dança uma coreografia ao som da música. Entram dois militecnos e montam uma Boca de Distrito. O Coro de Souzas forma uma fila e os militecnos inspecionam a passagem de todos.

PRIMEIRO MILITECNO — Ficha de identificação e ficha de acesso, cidadão.

A Primeira Souza da fila entrega seus documentos. Enquanto o Primeiro Militecno inspeciona as fichas, o Segundo Militecno revista a primeira Souza.

PRIMEIRO MILITECNO — Está liberada. Próximo!

O Segundo Souza se aproxima.

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Revolução das Galochas - 77

PRIMEIRO MILITECNO — Ficha de identificação e ficha de acesso, cidadão.

A Segunda Souza entrega seus documentos. Novamente, enquanto o Primeiro Militecno inspeciona as fichas, o Segundo Militecno revista a segunda Souza.

PRIMEIRO MILITECNO — Está liberada. Próximo!

O Terceiro Souza se aproxima.

PRIMEIRO MILITECNO — Ficha de identificação e ficha de acesso, cidadão.

O Terceiro Souza entrega seus documentos. Novamente, enquanto o Primeiro Militecno inspeciona as fichas, o Segundo Militecno revista o terceiro Souza.

PRIMEIRO MILITECNO - Opa, opa, opa...

O Segundo Militecno contém o terceiro Souza, agressivamente.

PRIMEIRO MILITECNO — Escuta aqui ô cidadão: sua ficha de acesso ao dis-trito está com a data vencida.

CIDADÃO — Tem alguma coisa errada...

PRIMEIRO MILITECNO — Não tem nada errado não! O documento está dizendo uma coisa, o documento é que prova. Se eu liberar pra você, vou ter que liberar para todo mundo. Aí depois ó, prevaricação, fica ruim pro meu lado. Você me entende né? Pega o seu documento e vai embora daqui. Próximo!

O Coro de Souzas volta a andar em fila.

TERCEIRO MILITECNO — (destacando-se da fila, sacando uma arma) Você, cidadão: parado!

O Coro de Souzas se joga no chão.

UM DOS SOUZAS — Espera! Eu posso te mostrar minha ficha, está tudo nos conformes...

O Civiltar dispara, Souza começa a ter um ataque por conta do choque. O resto do Coro de Souzas segue no chão.

TERCEIRO MILITECNO — (falando para todos) Não se preocupem: a arma não é letal! (falando para a mulher que se debate) A senhora está detida por comporta-

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78 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

mento suspeito e desvio das normas de comportamento nas filas de circulação de pedestres. (falando em um rádio) Atenção, PX2, preciso aqui de um reforço para mover um indivíduo aqui. Ok, no aguardo. (falando para todos) Está tudo sob controle: circulando!

O Coro de Souzas se levanta, remonta a fila, e volta a andar. Subitamente montam um ponto de ônibus. O ônibus chega e todos embarcam, abarrotados. Desembarcam. O Chefe aparece.

CHEFE — E este atraso, senhor Souza?

CORO DE SOUZAS — (todos falando ao mesmo tempo) Mal dava para andar. Muita segurança na rua. Toda a hora a gente estava rastejando. Eu saí no mesmo horário de sempre, mas o ônibus atrasou.

CHEFE — Quando é que as pessoas vão aprender a sair mais cedo de casa?

CORO DE SOUZAS — (todos falando ao mesmo tempo) Pois é. Eu sei, mas as coi-sas não tão fáceis. Eu sai 3 horas mais cedo hoje! Se eu sair mais cedo, vou ter que dormir no trabalho!

CHEFE — Então o que é que vai ser? Um desconto na folha de pagamento? Um sábado e domingo perdidos? Um dia de férias?

CORO DE SOUZAS — (todos falando ao mesmo tempo) Não faz isso, Senhor Ana-cleto! Eu tenho família pra criar! Não vou me atrasar nunca mais! Mas eu já vendi todas as minhas férias, vai descontar como?

CHEFE — Se houvesse neste país mais senso de responsabilidade, mais noção de dever cumprido, respeito com a coisa pública.

CORO DE SOUZAS — Eu não posso fazer nada, Senhor Anacleto.

CHEFE — Mas eu posso. Ao trabalho!

Soa uma sirene de fábrica, e o Coro de Souzas começa a trabalhar.

CORO DE SOUZAS — Qual o seu sonho, Souza?

PRIMEIRO SOUZA — Meu sonho? Meu sonho é comprar uma TV LED, né? 50 polegadas, tela plana!

SEGUNDO SOUZA — Meu sonho? Meu sonho é ter um carro com janela au-tomática, para eu sentir o vento enquanto ando pelas ruas livres de São Paulo!

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Revolução das Galochas - 79

TERCEIRO SOUZA — Meu sonho? Ah, meu sonho é ter a casinha própria, né? Com parcelas bem pequeninhas e uma caixa d’água assim, bem grande, só para mim!

QUARTO SOUZA — Meu sonho? Meu sonho é botar fogo no meu chefe. (os outros Souzas reagem assustados) Depois, eu atacava fogo no departamento inteiro onde eu trabalho! No banco inteiro! Meu sonho é botar fogo em todos os bancos do mundo!

QUINTO SOUZA — Quer um fósforo?

Quarto e quinto Souza colam lambes nas ruas com os dizeres: “você também é um comum”.

3. fila do feijão

Em um supermercado, uma fila enorme espera impacientemente o atendente. Burburinho e reclamações. Atendente chega, muito feliz.

ATENDENTE — Bom dia clientes do Grupo Pão de Melo! Eu sou o colabora-dor Washington, e é com muito prazer que estou aqui com vocês em mais essa maravilhosa manhã de consumo! Próximo cliente, por favor! Pois não, o que deseja?

DONA — Eu quero feijão factício, por favor.

ATENDENTE — Nota fiscal paulista?

DONA — Não.

ATENDENTE — Cartão do contribuinte cidadão?

DONA — Não.

ATENDENTE — Cartão da sacolinha plástica?

DONA — Não.

ATENDENTE — Mas moça, com o cartão da sacolinha plástica, a cada três sa-colinhas que você compra, a quarta e a quinta vêm de brinde...

DONA — Não, moço, eu só quero meu feijão! Feijão!

ATENDENTE — Certo. Vai pagar como?

DONA — Vale Alimentação.

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80 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

ATENDENTE — Ah! No ticket!

DONA — É, no ticket.

ATENDENTE - A cota toda?

DONA — Isso, a cota toda.

Atendente busca quatro latas de feijão e entrega para a Dona.

ATENDENTE — Aqui está moça, o seu ticket, os seus feijões. O Grupo Pão de Melo agradece a preferência, tenha um ótimo dia!

DONA — Não, não, não, espera aí! Tem alguma coisa errada aqui.

Todas as pessoas na fila olham para a Dona, impacientes

DONA — Você me deu duas latas, meu vale alimentação dá para sete latas. Será que você pode ir lá pegar o resto?

ATENDENTE — Não moça, sabe o que que é? É que o preço aumentou mesmo. Ficou mais caro, o Esquema aumentou o preço de tudo. A culpa não é nossa, a gente aqui do mercado só repassa a inflação.

DONA — Mas o que é que eu faço? Eu tenho família para sustentar e duas latas não vai dar para esse mês!

ATENDENTE — Olha moça, eu também tenho família para criar, tenho dois miudinhos assim, mas... eu sou só o caixa! Se eu liberar para você vão me demitir aqui!

DONA — Eu quero falar com o seu gerente!

Balbúrdia na fila. Todos falam ao mesmo tempo. No meio da confusão, uma Moça atravessa a fila até o caixa.

MOÇA — (empurrando todo mundo) Dá licença, dá licença!

ATENDENTE — Moça, você tem que aguardar a sua vez na fila.

MOÇA — Eu não vim comprar nada não! Eu vim é reclamar!

Todos na fila reagem, impacientes e reclamando.

ATENDENTE — Pois não, moça o Grupo Pão de Melo está aqui para acolher a sua reclamação!

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Revolução das Galochas - 81

MOÇA — Olha aqui moço: eu fiquei treze horas na fila pra comprar meu feijão factício, chego em casa pra cozinhar e o que é que eu encontro dentro da lata? O que é que eu encontro dentro da lata?! (apanha uma lata, tira de dentro dela) Um dedo!

Silêncio constrangedor.

MOÇA — O senhor tá vendo?! Um dedo dentro da lata de feijão!

ATENDENTE — Sabe o que é? É que a gente nunca recebeu uma reclamação desse tipo aqui.

MOÇA — Também pudera, né moço?! Um dedo de gente dentro da lata de feijão!

ATENDENTE — Não moça, não é isso não. Como é que eu vou explicar?... Dedo... dedo tem mesmo. De cada lote que a gente recebe aqui no Grupo Pão de Melo, pelo menos umas seis, sete latas têm um dedo. Inclusive, você pode ler na embalagem do seu produto que avisa o consumidor: “produto transgênico, pode conter traços de amendoim e restos de partes humanas”.

MOÇA - (conferindo a lata) É mesmo...

ATENDENTE — O que nunca aconteceu é alguém reclamar. Nesses tempo difí-ceis que a gente está, você devia comemorar! Achar um dedo em uma lata! Quer dizer, tem proteína, ferro, vitamina A, B, zinco...

ALGUÉM DA FILA — É a única coisa de verdade que dá pra encontrar nessa lata, moça!

DONA — Sem contar que dá um gosto ótimo no feijão. Eu posso te passar uma receita ótima da minha avó, é uma dedoada.

MOÇA — Me desculpe, eu não sabia...

ATENDENTE — De qualquer forma moça, se você ainda quiser jogar fora a lata com o seu delicioso dedão, você pode fazer isso na nossa lixeira sustentável do Grupo Pão de Melo. (falando como em um comercial televisivo) Grupo Pão de Melo: trabalhando por um futuro mais desenvolvido e sustentável para você!

MOÇA - (subitamente alegre) Ah, é sustentável?!

ATENDENTE — Tudo aqui é sustentável. Próximo. Almoço!

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82 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

4. fáBrica de feijão Uma linha de montagem. Os trabalhadores na linha não têm vários dedos das mãos, trabalham em condições muito precárias.

SERMONEIRO DO TRABALHO — (prega enquanto todos trabalham concentra-dos) Irmãos, sejam todos bem vindo a mais um dia de trabalho! Vamos todos levantar as mãos aos céus em nome do nosso patrão! Porque sem o patrão o que seríamos nós, irmãos? Temos de trabalhar porque o trabalho dignifica o homem, irmãos! Então vamos laborar com afinco, alavancar o PIB, gerir as graças da eco-nomia internacional! Não vamos mais reclamar das horas extras e dos pequenos reajustes salariais, irmãos! Vamos fazer de tudo para levar o patrão para a Disney no final do ano! Aleluia irmãos! Aleluia!

Um dos trabalhadores da linha de produção se machuca, perde um dedo. Escorre sangue por todos os lados. Rapidamente, entra o Supervisor.

SUPERVISOR — (entra correndo para acudir a trabalhadora ferida) Aí meu Deus! É sangue! Um trabalhador se feriu! É sangue por todos os lados! Moça, fica comigo moça, fica comigo!

TRABALHADOR QUE ACABOU DE PERDER O DEDO — Eu acho que meu dedo ficou preso na máquina.

SUPERVISOR — Não ficou não, foi embora, já virou feijão!

TRABALHADOR QUE ACABOU DE PERDER O DEDO — Eu tinha cinco dedos, agora só estou vendo quatro...

SUPERVISOR — Pensa assim, vai economizar na manicure, no anel...

TRABALHADOR QUE ACABOU DE PERDER O DEDO — Sabe o que é? Essa máquina é muito difícil de operar...

SUPERVISOR — Eu sei. Você tem razão. Dói muito, meu coração de chefe, quando um trabalhador se machuca. Mas você tem que entender o meu lado: eu tenho muito peso nas minhas costas. E eu avisei que se eu pegasse alguém cometendo alguma irregularidade de novo eu ia ter que tomar uma atitude. Eu sei, eu sou muito humano, mas eu vou ter que fazer alguma coisa. Eu vou ter que chamar... o Sindicato!

TRABALHADOR QUE ACABOU DE PERDER O DEDO — Não, não, não, seu Anacleto, não faz isso! Não chama ninguém do sindicato não! Não foi nada,

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Revolução das Galochas - 83

foi só um cortezinho! Eu dou um jeito do meu dedo parar de sangrar! Não cha-ma o sindicato não!

O Sindicato entra em cena.

SUPERVISOR — Seu Sindicato!

SINDICATO — Seu Anacleto!

SUPERVISOR — Seu Jeremias!

SINDICATO — Seu Anacleto!

SUPERVISOR — Seu Jeremias, do Sindicato! (conversam separados dos trabalha-dores)

SINDICATO — Tudo bem, seu Anacleto?

SUPERVISOR — Eu vou bem sim, muitos lucros, pensando nas viagens... (su-bitamente mudando) Eu vou mal! Eu vou muito mal! A gente faz a parte da gente né? Quer dizer, terceirizamos o que, só 99,7% da mão de obra, não é? A gente dá cesta básica no final do ano, não damos? O pagamento cai ali ó, certinho, só um pouquinho descontado... agora vocês, precisam fazer a parte de vocês! Porque essa história de ter o tempo todo um trabalhador perdendo o dedo na minha linha de montagem, não dá!

SINDICATO — Não dá! Não dá, seu Anacleto. Pode deixar que eu falo com eles. (falando com a Trabalhadora que acabou de perder o dedo) O que temos aqui, companheira?

TRABALHADOR QUE ACABOU DE PERDER O DEDO — Olha, desculpa seu sindicato, eu estava trabalhando concentrado, mas é que a máquina é difícil de operar...

SINDICATO — Não tem desculpa, companheiro. O Sindicato tem muito tra-balho para manter um diálogo produtivo com a direção da fábrica e vem uma espertinha como você e quer pôr tudo a perder?!

TRABALHADOR QUE ACABOU DE PERDER O DEDO — Mas foi um acidente, seu Sindicato!

SINDICATO — Acidente é o que você diz. Aposto que agora que perdeu o dedo vai querer o resto do dia de folga, não é mesmo?! Entrar com algum pedido no INSS! Já pensou como isso seria desastroso para nossa categoria?

TRABALHADOR QUE ACABOU DE PERDER O DEDO — Mas Sindicato, escuta aqui: semana passada a Marinalva ali perdeu dois dedos.

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84 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

(Marinalva acena) E anteontem o Tuiu, e olha que o Tuiu é o melhor trabalhador da fábrica, o Tuiu perdeu o saco!

Todos olham para o Tuiu.

SINDICATO — E a culpa é de quem? A culpa é de quem companheiros? A culpa é nossa! Os trabalhadores precisam arcar com suas responsabilidades históricas. Cada vez que um de vocês perde um dedo, o ímpeto inteiro da categoria dimi-nui! E assim companheira, assim você põe tudo a perder.

TRABALHADOR QUE ACABOU DE PERDER O DEDO - Me desculpe, seu Sindicato.

SINDICATO — Está desculpado.

TRABALHADOR QUE ACABOU DE PERDER O DEDO — Será que eu posso ir estancar esse sangue? Eu estou com medo de desmaiar.

SINDICATO — Sim, sim, claro, a saúde do trabalhador em primeiro lugar... mas todo mundo vai ter que trabalhar dobrado para suprir a falta do companheiro na produção. Bom trabalho companheiros!

Todos os trabalhadores olham com raiva o colega que sai para estancar o sangue. Voltam ao trabalho, duas vezes mais rápido. Outro trabalhador perde o dedo.

5. centro de reinteGração sócio laBoral

Em um Centro de Reintegração Sócio Laboral com uma ala de internos atrás das grades, ao lado de uma enorme pilha de lixo.

CIVILTAR 1 — Muito bem. Vamos agora as regras para que tenhamos uma visita produtiva em nosso Centro de Reintegração Sócio Laboral. Vamos a elas. Regra número um... (o ator joga com a plateia, elencando como proibido a entrada de pessoas que portam roupas e objetos levados pela plateia) . Regra número três: aqui so-mos uma organização que defende o Estado e as pessoas de bem. Portanto, não gostamos de gente pobre. Pobre, aqui, só atrás da grade. Alguém não entendeu uma das regras? Muito bem. Tudo pronto, cabo Gerson?

O Civiltar que comanda o Centro de Reintegração Sócio Laboral chega.

CIVILTAR 2 — Tudo pronto, Cabo Martins. Muito obrigado. (falando com os presos) Os senhores estão aproveitando bem essas férias pagas pelo Esquema?

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Revolução das Galochas - 85

Vida boa, casa, comida, roupa lavada, tudo na mão, em troca de quinze míseras horinhas de Trabalho Compulsório diário. Pois é, no meu tempo não era assim não: ladrão sem-vergonha e salafrário, da laia de vocês, não tinha regalia. Mas hoje não, hoje temos “direitos humanos”, temos “que alimentar os presos”...

PRESOS — Obrigado senhor.

CIVILTAR 2 — Obrigado o caralho! Coisa boa os senhores não fizeram, senão não estariam aqui! Na hora de comprar um carrinho, a TV tela plana, o videoga-me, aí todo mundo pode, todo mundo quer. Aí não paga e acha que vai ficar por isso mesmo? Vai deixar um rombo nos bancos?! Olha, se fosse por mim eu... eu...

Civiltar avança sobre a grade aos urros. O Civiltar 2 o contém.

CIVILTA 1 — Calma Cabo Gerson, calma! Respira comigo... isso. Repete comi-go: humanidade... humanidade.

CIVILTAR 2 — Infelizmente, eu recebo ordens. Os senhores terão cinco minu-tos para procurar comida no carregamento de lixo sustentável. Só cinco minu-tos, entenderam?

TODOS OS PRESOS - Sim senhor.

CIVILTAR 2 — Bom apetite.

O Civiltar 2 abre a grade. Todos se atiram no lixo. Lutam furiosamente por qualquer coisa. Um dos internos encontra a lata de feijão factício com o dedo.

UM DOS PRESOS — Olha, ele achou um dedo!

Todos os presos se engalfinham pelo dedo.

CIVILTAR 2 — Acabou a hora do almoço cambada! De volta pra cela.

6. jornal caPital

Uma repórter, em meio ao público, começa a falar em um microfone.

IRENE TAVARES — (Falando com o público como se estivesse em uma reportagem ao vivo) Boa tarde! Estamos aqui hoje para falar de um assunto muito importante: a inadimplência! O Brasil vem sofrendo com pessoas que compram coisas e não conseguem pagar. Vamos aqui fazer uma rápida pesquisa de opinião. Levanta a mão quem está com alguma conta vencida? Muito bem. E quem tem alguma

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86 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

dívida, deve algum dinheiro, levanta a mão. Muito bem. Quem aqui está atrasa-do com algum boleto ou já atrasou algum pagamento, por favor, levante a mão. (subitamente raivosa) Então vocês devem se envergonhar! A culpa do Brasil estar na situação que está é de pessoas como vocês que compram tênis, roupinha, eletrodoméstico, ficam devendo no banco, e não conseguem pagar! É melhor vo-cês refletirem e se sentirem muito envergonhados por agirem dessa forma, seus inadimplentes! (tom cordial) Voltamos agora para os estúdios do Jornal Capital, com Janete de Castro e Celso Maia. É com vocês!

Dois repórteres apresentam o jornal.

CELSO MAIA — Obrigado, Irene! Como pudemos acompanhar nessa emocio-nante reportagem, o consumo sem consciência tem gerado graves consequências para a economia do país, mas o Esquema está estudando medidas para reverter essa trágica situação.

JANETE DE CASTRO — É isso mesmo, Celso. Se acompanharmos as pesquisas veremos que o número de inadimplentes tem crescido em 12% ao mês. Mais de 85% da população não consegue pagar suas dívidas.

CELSO MAIA — O CADÊ, Conselho Administrativo de Defesa Econômica, está estudando medidas para reverter este quadro desastroso.

JANETE DE CASTRO — Se a inadimplência não for controlada a economia do país corre sérios riscos de quebrar. No entanto, o discurso da maioria dos devedores é esse que você acabou de acompanhar na reportagem especial de Irene Tavares.

CELSO MAIA — Para evitar um colapso na economia nacional e um desastre na economia global, o Esquema acaba de criar uma nova ala de caçadores de ina-dimplentes, através da iniciativa público-privada: os Civiltares. São profissionais treinados para cobrar as dívidas. São pacíficos, mas estão autorizados a fazer uso de força letal se for necessário.

JANETE DE CASTRO — O foco de atuação dos Civiltares serão as chamadas Ocupações, cativeiros ilegais de devedores refugiados.

CELSO MAIA — Os invasores contam com suborno de trabalhadores de fá-bricas e seguranças ilegais para garantir sua existência de forma absolutamente ilícita e perigosa. Eles serão indiciados por suborno, formação de quadrilha, terrorismo e, o pior crime de todos: ser pobre.

JANETE DE CASTRO — A recém-criada ala dos Civiltares dará início imediato à operação Fogo no Barraco, assim batizada pelo Esquema.

CELSO MAIA — E não perca, no próximo bloco: vandalismo.

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Revolução das Galochas - 87

JANETE DE CASTRO — O aumento de saques na região central preocupa o empresariado local. Sustentabilidade.

CELSO MAIA — Completa hoje dez anos o nosso amado programa...

CELSO MAIA E JANETE DE CASTRO - (juntos) “Adote uma Tartaruga”!

JANETE DE CASTRO — O Jornal Capital apoia essa ideia!

CELSO MAIA — Fique conosco até o próximo bloco, não saia daí!

JANETE DE CASTRO - Até já.

Vinheta do Jornal Capital.

7. dona iraci

Dona Iraci em sua casa. A mobília é simples, sofá, televisão, mesa de centro com café. Batem à porta.

TENENTE DO ESQUEMA — (entrando em cena, falando com a plateia) Vamos fa-zer o seguinte: vamos até essa mulher, de alta periculosidade, que está causando transtorno na vizinhança. Então vamos começar a Operação Fogo no Barraco de uma vez pra ela ver o que é bom pra tosse.

Tenente do Esquema bate na porta.

DONA IRACI - Quem é?

TENENTE DO ESQUEMA — Tenente Lacerda, em nome do Esquema. Por acaso mora aí uma dona... Iraci dos Santos?

Dona Iraci abre a porta.

DONA IRACI — Sim, sou eu. Algum problema?

TENENTE DO ESQUEMA — Mandato de Inspeção Domiciliar Rotineira, que é uma coisa assim, de rotina.

Tenente entra na casa, começa a olhar cada canto, procurando alguma irregularidade.

DONA IRACI — Pode entrar, Tenente, fique à vontade.

TENENTE DO ESQUEMA — Que tempos difíceis que estamos vivendo, não é Dona Iraci?

DONA IRACI — Ah, eu sei Tenente, tenho medo até de abrir a porta para qual-quer um. Sabe lá o que a gente pode encontrar.

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88 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

TENENTE DO ESQUEMA — Olha só, mas que bela televisão, toda cheia de polegadas! Já está quitada?

DONA IRACI — Sim, sim. Eu tenho o recibo e os comprovantes de pagamento, tudo certinho. (Busca os papéis, que mostra ao Tenente) Comprei no Dia de Com-pras, não atrasei nenhuma parcela.

TENENTE DO ESQUEMA — Certo. E a senhora tem acompanhado as notí-cias?

DONA IRACI — Claro, assisto ao Jornal Capital todos os dias.

TENENTE DO ESQUEMA — Então a senhora sabe desses meliantes que estão por aí querendo subverter a cabeça de pessoas boas como a senhora... (vira e começa a tomar um cafezinho que está em cima da mesa)

DONA IRACI — É horrível, não é mesmo Tenente? Eu e meu falecido marido, que Deus o tenha, trabalhamos tanto para conquistar nossa casinha, a TV, para esses arruaceiros destruírem tudo. Você aceita um cafezinho, Tenente?

TENENTE DO ESQUEMA — Não, não, obrigado, eu não vim aqui para isso. Acho até que é bom eu ir direto ao ponto. Sabe o que é, é que a gente recebeu uma denúncia anônima, dizendo que a senhora está escondendo uns refugiados inadimplentes aqui na sua casa.

DONA IRACI — (em choque) Eu? Como assim?

TENENTE DO ESQUEMA — (interrogando) Por acaso a senhora está esconden-do algum procurado pelo Esquema, Dona Iraci?!

DONA IRACI — Mas é claro que não, quem foi que disse uma coisa dessas? Eu nem falo com ninguém desde que meu marido morreu, mal saio de casa, não me meto com essa gente não, por Deus!

TENENTE DO ESQUEMA — Sabe como é Dona Iraci, 95% das denúncias anônimas estão corretas, as estatísticas comprovam.

DONA IRACI — O senhor está vendo algum foragido do Esquema por aqui? Onde é que eu ia enfiar alguém?

TENENTE DO ESQUEMA — Não interessa Dona Iraci, ordens são ordens. Eu preferia estar com meu filho no parque uma hora dessas, mas eu estou aqui, trabalhando.

DONA IRACI — Mas quem foi que me denunciou? Aposto que foi o André, o vizinho de baixo!

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Revolução das Galochas - 89

TENENTE DO ESQUEMA — As denúncias anônimas são anônimas, Dona Iraci.

DONA IRACI — (em um rompante de raiva) Ah, mas eu sei que foi ele, nunca fui com a cara dele. Ele sempre me tratou de um jeito estranho desde que meu mari-do morreu! E agora ele inventa uma coisa dessas, aquele cachorro! O André sem-pre me olhou de um jeito esquisito! Agora ele vai e inventa uma história dessas!

TENENTE DO ESQUEMA - Dona Iraci! (agarra Dona Iraci) Se acalma Dona Iraci! Não se preocupa não... a corporação vai dar um trato legal para a senhora. A gente tem até um lema lá na nossa corporação: “panela velha é que faz comida boa”.

DONA IRACI — (decidida) Tira a mão de mim. (mudando o tom) Desculpa Tenen-te, mas é que eu tenho pressão alta, quando eu fico nervosa meu coração começa a palpitar... (começa a chorar)

TENENTE DO ESQUEMA — Não precisa se explicar, eu entendo completa-mente, eu mesmo também tenho um negocinho aqui no rim, as vezes dá uma pontada... mas a senhora vai ter que ir até a delegacia né, explicar sua história lá pro delegado.

DONA IRACI — O quê? Eu vou ser presa por uma denúncia?

TENENTE DO ESQUEMA — Presa? Não, presa não, ninguém falou de pren-der a senhora. É só uma questão de protocolo. A senhora vai passar pela ins-peção, a gente vai fichar a ocorrência, fazer um cadastro, a senhora passa pela Entrevista de Averiguação de Caráter, se tiver tudo certo, aí a senhora volta. Não é bom pra senhora?

Saem Tenente Lacerda e Dona Iraci. Cai a capa do sofá, quatro refugiados saem de dentro dele com alguns de seus pertences.

UM REFUGIADO — Gente, levaram a Dona Iraci.

Os refugiados desmontam os móveis da casa da Dona Iraci. Cantam.

Bella Ciao33

De manhã cedoNa nossa vilaBella ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao,De manhã cedo

33 Canção italiana anônima do século XIX.

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90 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

Na nossa vilaNós sofremos a invasão.

Com os guerrilheirosEu fui emboraBella ciao, bella ciao bela ciao, ciao, ciao,Com os guerrilheirosEu fui emboraPra lutar até morrer.

E se eu morroUm guerrilheiroBella ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao,E se eu morroUm guerrilheiroEnterrado eu quero ser.

Lá na montanhaOnde eu lutavaBella ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao,Lá na montanhaOnde eu lutavaSob a sombra de uma flor.

Serão as floresDe um guerrilheiroBella ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao,Serão as floresDe um guerrilheiroQue a liberdade defendeu.

8. rouBo no estoque

Um estoque na fábrica de feijões factícios, caixas e caixas empilhadas, as luzes apagadas. Trabalhadores mascarados percorrem o estoque com o rosto coberto, carregando as caixas em um sistema complexo e organizado.

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Revolução das Galochas - 91

HOMEM MASCARADO — Calma gente: acho que eu ouvi alguma coisa... (todos param) Não, não é nada.

Todos voltam a carregar caixas. Dois dos trabalhadores no final da complexa rede param.

MULHER MASCARADA — Ok, gente, podemos ir embora. Já pegamos o sufi-ciente, já tem três de cada lote, amanhã a gente pega mais.

HOMEM MASCARADO — Você acha que alguém conta esses lotes? As latas sempre somem, já fazem parte da coisa toda!

MULHER MASCARADA — Mas se a gente der muito na cara, se desconfiam de alguma coisa, a gente perde a fábrica.

HOMEM MASCARADO — Mas você sabe que as ocupações estão lotadas. Pre-cisamos de comida!

MULHER MASCARADA — Vai acabar todo mundo preso!

HOMEM MASCARADO — É um risco necessário. A fome nas ocupações é muito maior do que isso. (aponta para as latas roubadas)

MULHER MASCARADA — É melhor ter pouca comida e sempre do que não ter nada.

Os mascarados começam uma discussão. Soa uma sirene. Todos os mascarados congelam, perplexos – foram pegos. Entra o Supervisor da fábrica.

SUPERVISOR — A denúncia foi certeira! Parece que temos uma infestação de ratos no estoque da fábrica! Eu sei quem são vocês... tira essa máscara! Vai, tira essa máscara! Eu dei um emprego para vocês! Eu dei um emprego para cada um de vocês e é assim que vocês me agradecem?! Roubando a fábrica onde traba-lham?!

Os trabalhadores, não mais mascarados, lentamente começam a cercar o Supervisor. Um dos trabalhadores apanha uma barra de ferro.

SUPERVISOR — Mas os Civiltares já foram acionados! Daqui a pouco estão cercando isso aqui tudo! Vai ser campo de trabalho compulsório pra todo mun-do! Férias com o Esquema, para vocês e toda a família de vocês!

O trabalhador com a barra de ferro acerta o Supervisor, que desmaia.

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92 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

HOMEM MASCARADO — Vamos trancar ele no fundo.

Com a ajuda de mais um trabalhador, Homem Mascarado carrega o Supervisor para fora de cena e volta rapidamente.

UMA TRABALHADORA - Ele tá morto?

OUTRA TRABALHADORA - Ele era um delator.

UM TRABALHADOR — Vamos sair logo daqui.

Os trabalhadores pegam o máximo de caixas que conseguem carregar e caminham até a saída, apressadamente.

CIVILTAR — (voz vinda de fora, som de megafone) Atenção! A fábrica está cercada! Saiam sem tumulto para evitar maiores repressões! Vocês têm um minuto!

TRABALHADOR RECEOSO — Vamos nos entregar! A gente vai morrer!

UM TRABALHADOR — Não abre essa porta! Vamos pensar em alguma coisa.

UMA TRABALHADORA — E o que você sugere?

OUTRA TRABALHADORA — Deve ter um jeito de fugir.

CIVILTAR — (voz vinda de fora) Trinta segundos!

Balbúrdia, “Vamos sair pelo telhado”, “Não adianta se entregar, você acredita nos civiltares?”, “Vamos resistir, fazer uma barricada”, “Eu não devia ter vindo, minha mãe disse que era perigoso”, “Nós matamos um homem! Estamos perdidos!”

TRABALHADOR RECEOSO — Vocês são loucos! Eu vou me entregar! (gritan-do, corre até a porta para sair) Eu me entrego!

Tenta abrir a porta da fábrica, não consegue.

TRABALHADOR RECEOSO — A porta tá trancada! A gente tá preso aqui dentro!

CIVILTAR — (voz vinda de fora) Quinze segundos!

TRABALHADOR RECEOSO — Está trancado pelo lado de fora! A gente não tem como sair...

Uma bomba incendiária voa pela janela da fábrica. A fábrica começa a pegar fogo. Os trabalhadores

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Revolução das Galochas - 93

estão encurralados. O Coro de Trabalhadores realiza a Dança da Morte.

TRABALHADORA — Eu vivi na cidade, no tempo da desordem. Vivi no meio da gente minha, no tempo da revolta. Comi minha comida no meio da batalha. Amei, sem ter cuidado, olhei e, tudo que via, sem tempo de bem ver, assim passei o tempo que me deram pra viver. A voz da minha gente se levantou;e a minha voz junto com a dela. Tenho certeza que os donos da terra ficariam mais contentes se não ouvissem minha voz. Minha voz não pode muito mas gritar eu bem gritei!

Bateria toca e todos cantam.

9. cafs – centro de atenção a felicidade social

Dois trabalhadores colam cartazes com os dizeres “Você também é um Comum”.

AMBULANTE — A gente perdeu mais uma fábrica. Com essa célula já são 68 funcionários assassinados pelo Esquema, só esse mês!

GARÇOM — Cara, essa semana vieram te procurar de novo, isso tá ficando perigoso! Eu acho que a gente devia se esconder por um tempo, esperar a poeira baixar...

AMBULANTE — Não está na hora de recuar!

GARÇOM — Você não está entendendo: a gente descobriu sementes de feijão de verdade, cara! Elas brotam! Elas brotam mesmo! A gente pode ir para uma ocupação e plantar lá na miúda, escondido...

AMBULANTE — Mas logo agora que as pessoas estão começando a criar co-ragem de questionar o Esquema, ninguém mais acredita na mídia burguesa. Alguém aqui ainda assiste o Jornal Capital?

GARÇOM — E daí cara? As pessoas estão com medo, você não percebe? Elas têm medo de serem presas, torturadas e mortas!

AMBULANTE — As pessoas já estão sendo presas! As pessoas já estão sendo torturadas! As pessoas já estão sendo mortas! Tá na hora de fazer um levante. De pegar em armas.

Um holofote acende sobre os dois. Sirene.

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94 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

VOZ EM OFF - Parados!

Os dois congelam, assustados. Deitam no chão, de bruços.

VOZ EM OFF — Atenção! Detectamos altos indícios de insatisfação social nessa conversa! Como vivemos em um estado democrático de direito, vocês democra-ticamente serão obrigados a dar a opinião de vocês para os nossos profissionais. Portanto de pé... de pé... com a mão na cabeça! Na parede e aguardem nossas profissionais! Pela atenção, obrigado.

O Ambulante e o Garçom obedecem. Encostam na parede lentamente. Entram dois Amos – Agente Mediadores de Opinião. O Amo 1 se posiciona ao lado do Garçom; o Amo 2, ao lado do Ambulante.

AMO 1 — Não se preocupe. Estou aqui para acolher vocês.

AMO 2 — Detectamos altos níveis de insatisfação social nos senhores. Deve estar causando muito sofrimento.

GARÇOM — Quem é você?

AMO 2 — Eu sou um AMO...

AMO 1 — Agente Mediador de Opinião do CAFS...

AMO 2 — Centro de Atenção à Felicidade Social.

AMO 1 E 2 — Estou aqui para cuidar de você!

GARÇOM — Certo... e como você faz isso, exatamente?

AMO 1 — Criando um vínculo com o senhor. Vamos, abra seu coração.

AMBULANTE — Que abrir meu coração o que, que história é essa!

AMO 2 — Me diga, o senhor é feliz?

GARÇOM — Sim, muito feliz.

AMO 2 — Não, não precisamos mais de máscaras entre nós. Pode contar a ver-dade.

AMBULANTE — E não vai ter um civiltar me esperando do outro lado da porta?

AMO 1 — Nunca! Aqui nós não acreditamos nesses métodos.

AMO 2 — Queremos criar um vínculo verdadeiro com os senhores.

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Revolução das Galochas - 95

GARÇOM — Bem, se é assim... eu não gosto muito do trabalho que eu tenho. Foi o Centro de Reintegração Sócio Laboral que me colocou lá. Detesto ser gar-çom, eu não nasci para isso. Eu desenho, queria ser artista...

AMBULANTE — Eu vou falar para você então. Lá onde eu moro, os Civiltares batem na gente todos os dias, como se a gente fosse bicho. Às vezes eu me sinto como um.

AMO 2 — O sofrimento do senhor é intenso e verdadeiro. Para ajudar nessa elaboração, peço a gentileza de tomar estes remédios aqui.

Amo 1 e 2 entregam medicamentos ao Garçom e ao Ambulante.

GARÇOM — Não, obrigado, eu não tomo remédio.

AMBULANTE — Eu tenho um problema no fígado, é só tomar uma pílula que já me ataca...

AMO 1 — É o procedimento padrão para diagnósticos como este que o senhor está apresentando. O senhor precisa tomar.

AMO 2 — É uma medicação compulsória para o seu bem.

AMO 1 — E o de sua família.

O Garçom e o Ambulante se entreolham. Apanham a medicação e tomam. Deste ponto do diálogo em diante, de maneira crescente, Garçom e Ambulante vão ficando mais alterados por conta da medicação.

AMO 2 — Fale mais do seu sofrimento subjetivo. Como andam as coisas em casa?

AMO 1 — Fale mais da sua revolta. Desabafe. Esse é o momento.

GARÇOM — Sabe eu... eu acho que é por causa do meu pai... sim, sim! Ele sempre foi meio ausente, a gente nunca gostou das mesmas coisas!

AMBULANTE — A minha mãe queria que eu fosse médico, desculpa mãe! Meu pai queria que eu fosse advogado, desculpa pai! Aí eu virei ambulante. Eu me sinto derrotado, um perdedor, um bosta! Eu sinto como se eu não servisse pra nada...

GARÇOM — (ficando emotivo) E tem também essa coisa do meu pai, meu pró-prio pai, ser casado com minha mãe! Isso me perturbou minha infância inteira, não me entra na cabeça.

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96 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

AMBULANTE — (ficando revoltado) Mas a culpa é minha mesmo, nunca escutei nada que me disseram. Eu sentava no fundo da sala de aula, eu tacava bolinha, eu fazia bagunça... eu praticava bullyng com meus amiguinhos...

AMO 2 — Estamos chegando em um lugar muito mais humano agora, não é mesmo? Fale mais alto! Grite!

GARÇOM — (muito emotivo) Eu lembro que meu pai chegava tarde em casa do trabalho e eu nem dava oi para ele, eu ficava jogando videogame! Eu não mereço ser feliz, eu não mereço!

AMBULANTE — (muito revoltado) Um dia, eu até roubei o apagador da profes-sora!

AMO 1 — Urre! Urre como um animal! Bote tudo para fora!

AMO 2 — Todos merecemos sim uma segunda chance! É só olhar para as peque-nas coisas belas do dia-a-dia.

AMBULANTE — (urrando como um animal em fúria) Uhuuuuuu!!!!!!!!!

GARÇOM — (mais emotivo ainda, beirando as lágrimas) Você tem razão: eu vou tentar. Como eu pude esquecer das pequenas coisas belas do dia-a-dia?

AMO 2 — Venha, me dá aqui um abraço!

O Garçom abraça o AMO 1

AMO 1 — Não se sente melhor agora que de se livrou de todo esse peso?

AMBULANTE — Muito melhor! Me sinto muito mais leve e... feliz.

GARÇOM — Obrigado! Obrigado! Eu vou tentar ser feliz! Eu juro, obrigado!

AMO 2 — Não precisa agradecer. Estou fazendo apenas o meu trabalho.

AMO 1 — Como AMO...

AMO 2 — Agente Mediador de Opinião do CAFS...

AMO 1 — Centro de Atenção à Felicidade Social, foi um prazer cuidar do se-nhor e aumentar o Índice de Felicidade da nossa cidade.

AMO 2 — Tenha um bom dia!

Os Amos 1 e 2 se cumprimentam e saem de cena. O Garçom e o Ambulante se despedem emocionados, renovados. Quando ficam sozinho, se entreolham.

GARÇOM — Cara, você tomou o negócio que te deram?

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Revolução das Galochas - 97

AMBULANTE — Você acha que eu tomei essa porcaria?

O Ambulante e o Garçom arremessam os comprimidos para longe.

AMBULANTE — Morte ao Esquema!

GARÇOM — Viva os Comuns!

Saem de cena correndo.

10. rádio livre do levante PoPular

Transmissão da Radio do Esquema. O Locutor entra em cena.

LOCUTOR — Entramos no ar em cinco, quatro, três, dois, um... boa noite ca-ros contribuintes! Embora haja desordem nas ruas, barricadas de fogo em cada esquina, greve nas fábricas, nos departamentos, revolta em todos os setores po-pulares... não se preocupem! Nós, os ricos, temos tudo sob controle! O Esquema vai aumentar ainda mais suas forças repressivas para deter essa barbárie que destrói a nossa economia! Se você encontrar um civiltar deitado na rua, ele não está morto! É uma estratégia de guerra para enganar nossos inimigos. Não pe-guem as coisas do civiltar! Elas pertencem ao Esquema. Faremos uma ofensiva, uma ampla e violenta ofensiva contra os setores populares! Começaremos com as ocupações! Os adultos serão presos, encaminhados para os Centros de Reinte-gração Sócio Laboral! As crianças serão encaminhadas para a Fundação CASA! Atacaremos esses baderneiros com todas as forças...

Os Comuns entram em cena. Com eles a Alegoria da Revolução, com uma máscara de gás e um vestido preto e vermelho. Enquadram o Locutor.

LOCUTOR — Fique conosco até o próximo bloco. Não saia daí.

O Locutor deixa a rádio. Os Comuns cantam seu samba.

Arruaça34

Os donos do poder que temamQue a revolta chegouA cidade hoje é palco de guerraMeu itinerário

34 Letra e Música de Rafael Presto.

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98 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

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Revolução das Galochas - 99

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100 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

Pra rua mudouEntão vamos cantarMolotovs e sonhos desembainharAssim como estáEsse samba não pode ficarSe meu bloco não pode dançarSe o dia não pode raiarVou bater meu pandeiro na praçaFazer arruaçaCom o povo cantar

11. PedaGoGia da luta

Primeira, Segunda e Terceira Comum entram em cena, carregando um cesto de bebê.

PRIMEIRA COMUM — Muito bonito, simbólico, mas não é só cantando sam-ba enredo que a gente vai derrubar o Esquema, não é mesmo?

SEGUNDA COMUM — Estou aqui com as minhas companheiras para ensinar vocês a fazer uma das nossas armas mais usadas contra o esquema.

(todas olham para o cesto, maternais) O nosso bom e velho...

COMUNS — (juntas) Coquetel Molotov!

Durante a fala, as Comuns retiram de dentro do cesto de bebê os materiais necessários.

SEGUNDA COMUM — Vocês vão ver que é bem fácil produzir seu próprio molotov. Vamos precisar de uma garrafa de vidro...

TERCEIRA COMUM — (entregando a garrafa) Garrafa de vidro!

SEGUNDA COMUM — Essa garrafa aqui é bem grande para o pessoal do fun-do enxergar, mas vocês podem fazer com uma menor que também funciona.

TERCEIRA COMUM — Gente, tem que tomar cuidado para colocar os ma-teriais em bolsas separadas, caso você seja revistado pela polícia. E outra coisa muito importante: se você for menor de idade, por favor... use uma tesoura sem ponta, para não se machucar.

SEGUNDA COMUM — A gente vai encher essa garrafa aqui com algum com-bustível. No nosso caso hoje vai ser gasolina que é o que a gente tem.

PRIMEIRA COMUM — Qualquer coisa inflamável já serve de combustível.

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Revolução das Galochas - 101

SEGUNDA COMUM — Agora a gente vai precisar de um pavio! Vamos usar esse pedaço de pano. A ponta de baixo do pano vai ficar em contato com a gaso-lina, combustível, e a ponta de cima fica pra fora, que é onde a gente coloca fogo.

PRIMEIRA COMUM — Aqui a gente usou a tampinha da própria garrafa e fez um furo. Mas se você quiser pode colocar mais pano até lacrar bem a garrafa. Uma dica para o combustível: você pode misturar a gasolina meio a meio com óleo. Pode ser óleo de motor ou de cozinha, tanto faz, isso vai fazer com que o fogo dure mais tempo. Se você quiser também pode acrescentar umas duas ou três colherinhas de açúcar, assim o fogo vai grudar na superfície e não vai sair mais.

TERCEIRA COMUM — E uma outra coisa gente: quando for tacar a garrafa, taca com muita força! Senão a garrafa não vai quebrar, não vai explodir, aí você vai passar vergonha na frente do Choque...

PRIMEIRA COMUM — Agora a gente vai colocar um pouco de querosene no nosso pavio, só para facilitar a hora de acender. Se você fez tudo certinho, o seu molotov deve ter ficado mais ou menos assim.

(mostra o molotov recém feito para o público) Agora é só acender e jogar contra o Esquema!

As três Comuns acendem seus molotovs.

PRIMEIRA COMUM — Morte ao Esquema!

AS COMUNS — (em conjunto com vozes vindas de fora de cena) Viva os Comuns!

Um Coro de Comuns entra em cena portando molotovs. Cantam a primeira parte da música “Em que noite mataremos o Rei”.

Em que noite mataremos o Rei35

Onde os reis esfomeados tropeçamNos tapetes de veludo nas mansões de cristaisLá conheci esse bobo-da-corteEsse santo homem loucoQue me contou coisas demaisJuntos bebemos e cantamosLonge da lei dos homens de poder

Qual o seu planoBobo-da-corte

35 Letra e Música de Rafael Presto.

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102 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

Em que noite mataremos o rei?

E falamos da miséria dos homensE do frio que se acumula nos becos da cidadeDas mulheres que se lavam nas sarjetasDas crianças virando fumaça por causa da fome

Qual o seu planoBobo-da-corteEm que noite mataremos o rei?

12. levante PoPular ou dia coMuM

Cabine da Rádio Levante Popular.

LOCUTORA — Bom dia Comuns! Está no ar a sua, a minha, a nossa Rádio Livre do Levante Popular! E está tudo pronto para a partida de hoje! O juiz entra em campo, confere o gramado, analisa a conjuntura... e os trabalhadores saem do vestiário! Não tem moleza, chutaram o juiz para fora e falaram que hoje é revolução ou morte!

CORO DOS TRABALHADORES — Morte ao Esquema! Viva os Comuns!

LOCUTORA — É... O pessoal não tá para brincadeira! Mas agora, vindo com sua estratégia de costume, com sangue nos olhos, fuzil na mão e o capital do lado, o Esquema, representado pelos seus cães de guarda: os Civiltares!

CORO DE CIVILTARES — A-hu!

Os Civiltares se enfileiram em meio a um confronto. Gritos e tiros por todos os lados.

CIVILTAR 1 — Ei Cabo Torres!

CIVILTAR 2 — Fala Espedito!

CIVILTAR 1 — Aquela ali com o molotov na mão, não é sua irmã?

CIVILTAR 2 — É ela sim, Espedito.

CIVILTAR 1 — Ela tá na mira, vou atirar, positivo?

CIVILTAR 2 — Você tá louco, vai atirar na minha irmã!

CIVILTAR 1 — Como não? Ordens são ordens!

CIVILTAR 2 — Mas ela é minha irmã!

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Revolução das Galochas - 103

CIVILTAR 1 - (apontando a arma para o Civiltar 2) Então vou atirar em você!

CIVILTAR 2 — Atira que eu quero ver se você é homem!

CIVILTAR 1 — Isso é desacato à ordem de um superior!

O Civiltar 2 leva um tiro na cabeça. O Coro de Civiltares sai de cena, desarticulado consigo mesmo.

LOCUTORA — Parece que os Civiltares sentiram o tranco... uma parte do time ficou lesionada. Como isso não é problema dos Comuns, os trabalhadores avan-çam sobre os meios de produção!

CORO DE TRABALHADORES — (gritando, como em uma torcida) A-ha U-hu! A fábrica é nossa! A-ha U-hu! A fábrica é nossa!

LOCUTORA — E vamos agora com nosso correspondente...

O Correspondente entra em cena.

CORRESPONDENTE — Estamos aqui na frente de um supermercado do Gru-po Pão de Melo, as pessoas saquearam as lojas, está uma verdadeira revolta aqui...

CEO do Grupo Pão de Melo invade a cena, batendo uma panela.

CEO DO GRUPO PÃO DE MELO - Chega! Chega! (toma o microfone da mão da repórter) Eu queria dizer que isso é um absurdo! Papai precisou de muito sangue e suor dos outros para erguer o império que deixou de herança para mim! Isso não é justo! Toda essa bagunça, é banco queimado, bagunça na rua, e pra que? Esse pobres estão pensando o que?! Nós ricos somos ricos porque... nascemos ricos!

COMUM — Pega o burguês!

O Coro dos Comuns invade a cena. Cercam o CEO do Grupo Pão de Melo. Formam novamente a torcida.

CORO DOS COMUNS — A-ha U-hu! O Pão de Melo é nosso! A-ha U-hu! O Pão de Melo é nosso!

LOCUTORA — É isso mesmo senhoras e senhores, hoje não é o dia do Esque-ma, que se segura onde pode para continuar na partida! Parece que é mais um lance de perigo para os Comuns!

O Coro de Comuns invade a cena, arrastando um homem com um saco na cabeça. Arremessam o homem no chão, formam uma roda ao seu redor.

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104 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

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Revolução das Galochas - 105

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106 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

COMUM 1 — Te pegamos! Maldito! Por sua culpa mais de 56 mil operários foram demitidos da noite para o dia!

COMUM 2 — 120 ocupações foram invadidas! Milhares de famílias foram pra rua!

COMUM 3 — Você que mandou incendiar os trabalhadores e trabalhadoras da fábrica de feijão!

CORO DOS COMUNS — Fizemos o nosso levante! E agora, o que será de você?

Uma comum aponta uma arma para a cabeça do homem, ajoelhado ao centro. Tensão.

ATRIZ 1 — (quebrando a cena) Não gente, para a cena. Essa coisa de teatro panfle-tário morreu junto com a Revolução Russa! Todo mundo sabe que essa história de luta de classes já tá ultrapassada... Temos de apostar mais nas interfaces, en-tendem? Apostar nos dispositivos formais, no campo da presença, no aparato do corpo! Atuar no campo do sensível! Temos de agenciar a potência do encontro, em meio a tantas manifestações multitudinárias! Transver o mundo!

ATOR 1 - (entediado, fala no meio do discurso da Atriz 1) Do que ela tá falando?

ATRIZ 2 — Não sei, mas acho que ela tá falando sozinha...

ATRIZ 3 — (em um rompante) A-ha U-hu! O panfletarismo é nosso!

CORO DE COMUNS — A-ha U-hu! O panfletarismo é nosso! A-ha U-hu! O panfletarismo é nosso!

LOCUTORA — É isso mesmo! Hoje é nosso dia de luta! Hoje é nosso dia de festa! É o povo na rua tomando o poder!

DOIS COMUNS — (falando juntos) Vamos ocupar o Palácio do Esquema!

O Coro de Comuns cantam a segunda parte da música “Em que noite mataremos o Rei”.

Em que noite mataremos o Rei (II)

Pegaremos em armas?Ergueremos bandeiras?Faremos a cidade arder toda em vermelho?Montaremos nossas bombas nos palácios, parlamentos?Armaremos guilhotinas?Dar início a uma guerrilha?Ver as ruas tomadas no calor de um novo dia?Enterraremos nossos mortos?

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Revolução das Galochas - 107

Ser maior do que o cansaço?Em que noite mataremos o rei?

Qual o seu planoBobo-da-corteEm que noite mataremos o rei?

13. revolução das Galochas

Fumaça, gritos, batidas de caixa, tamborins, balburdia, buzina. O Coro dos Comuns em cena. Um Comum toma a frente.

UM COMUM — Do tempo turbulento que nos foi dado, faremos um furacão

Que arrastará as bordas da história! Os que têm o que temer, que temam. O carnaval que faremos

COMUNS — Não vai ter dono!

UM COMUM — Morte ao Esquema!

COMUNS — Viva os Comuns!

UM COMUM — Morte ao Esquema!

COMUNS — Viva os Comuns!

UM COMUM - Às armas!

COMUNS - Às armas!

O Coro dos Comuns começa sua batucada revolucionário. A Alegoria do Esquema entra em cena, gritando.

ALEGORIA DO ESQUEMA — Parem! A cidade está em chamas! O caos está instaurado! Vitrines quebradas, lojas saqueadas, a violência nas ruas! Mas que-rem saber de uma coisa? Isso não tem importância! Não nos importa o que vocês pensem, escutem, digam ou façam! Podemos usar o aparato policial e militar para perseguir e encarcerar todos vocês! E por que fazemos isso? Fazemos porque podemos! Porque isso é ter poder! Muito se fala em dinheiro, privilégio, essas coisas, mas acreditem, ter poder significa poder caçar os bens e a liberdade de qualquer um sem mais motivos do que manter o poder. Por isso, mesmo que vocês sigam ao pé da letra o ritmo que impusermos, mesmo que vocês não fa-çam nada, mesmo que vocês sejam inocentes, ainda assim esmagaremos vocês! Realmente é um perigo que cada qual se organize em seu coletivo, que ao lado

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108 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

dos seus comuns aprenda a dizer “sim” e a aprenda a dizer “não”... vocês são tão grosseiros que já não mendigam, não suplicam, não esperam... só fazem exercer sua liberdade! Onde já se viu tamanha indecência?! Mas isso não importa. A revolução de vocês colocou tudo abaixo e agora vocês estão sentados em um monte de ruínas! Pois que herdem as ruínas! Eu? Eu vou para Miami! Eu vou cuidar dos meus negócios na Suíça! Fiquem com a ruína para vocês, seus pobres! (sai de cena)

CORO DOS COMUNS — (falando ao público) Nós não temos medo das ruínas. Estamos construindo um mundo novo, que cresce a cada dia. Ele está crescendo neste instante, enquanto falamos com vocês.

O Coro da Revolução monta a bateria e toca uma batida de funk: os Comuns cantam sua canção.

Funk da Revolução36

A cidade tá de péQuero ver quem é que aguenta essa revolta popularTamo chegando pra ocuparSeus escudos, suas bombas não vão mais nos segurar

É o povo que trabalha pra fazer cidade andarVamos juntar nossas forçasE o Esquema derrubarA ruína é o começo da nossa revoluçãoNosso alvo: seu impérioTemos muita munição

REFRÃO

Nossa luta é por um tempoSem miséria e sem patrãoTá todo mundo junto construindo outro amanhãO banco tá quebrado, o busão incendiadoNas ruas barricadasO poder tá enquadrado

FIM

36 Criação coletiva do Coletivo de Galochas.

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Mau Lugar - 111

Mau luGar

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112 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

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Mau Lugar - 113

mau lugar

“A vida é uma dádiva. Mas nem ela, nem a felicidade,

podem ser impostas a ninguém.”Divino

(personagem de MAu LuGAr)

ApresentAção

Diferentemente da utopia, que é lugar nenhum, a distopia pode ser qualquer lugar. Pode ser aqui mesmo e agora. Pode ser apenas uma tamanha falta de pers-pectiva que o suicídio transparece como um ato de resistência. Pode ser tamanha opressão que nossa humanidade torna-se um fardo insuportável. Pode ser ainda a sensação de prisão de uma vida vivida em caixas de pequenas satisfações compul-sórias, pequenas vitórias de pequenas disputas. Um mau lugar.

Escolhemos remoer poeticamente essa terrível sensação oca de ausência de perspectivas. A imagem que se forma é violenta e dura, como a própria espera angustiada do cotidiano sem horizontes.

Que um mau lugar de fato fosse atulhado de caixas contendo pedaços e re-talhos de desejos, sonhos não realizados, ideologias e memórias, é mais ou me-nos recorrente. Todas as distopias clássicas exploraram de perto essas questões. Mais ainda, tais distopias também apresentavam sua solução mágica, trazida por alguém ou algum grupo libertador que, enfrentando o tempo, os corpos e os humores voltaria a restabelecer a justiça de um mundo original, ou perdido, ou mitigado, ou esmagado.

No entanto, o que se buscou em Mau Lugar foi uma distopia totalmente des-provida de sonhos, sem redenção, onde a própria vida é moldada em opções compulsórias de satisfação e bem estar e a melancolia torna-se um crime. Onde a forma de vida impõe um modelo de satisfação e a insatisfação é controlada socialmente.

Dentro dessa distopia o suicídio acaba assumindo diversas faces que vão do can-saço do fardo humano, que se carrega como vida cotidiana, à resistência a aceitar

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114 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

a opressão ou o controle sobre a humanidade. É recorrente na história o suicídio coletivo de mulheres ou homens negociados como escravos, ou derrotados em ba-talhas que se recusam à rendição. Muitas vezes a brutalidade de ser capturado é tão grande que muitos prisioneiros preferem a morte. Às vezes, apenas um ingênuo pensamento de outra vida mais plena dá motivos para desejar transcender a vida.

Normalmente se considera o suicídio como algo pessoal e de foro íntimo. Mas e se o suicídio torna-se um gesto coletivo, cometido por parcelas da população? Pes-soas que arriscam a vida em jogos de morte, que enfrentam armas e ditadores por seus sonhos, protestam contra condições de vida ou, simplesmente, recusam-se a viver sob cativeiro.

Também se considera o suicídio um ato de desespero, de perda da razão. Mui-tos o consideram movido por egoísmo ou covardia. Mas o que vemos em cartas e mensagens legadas aos que continuarão vivendo expressam mais um anseio de vida do que um desejo de morte. Expressam a busca de um espaço vital que talvez não tenho sido possível aos corpos ocupar, mas ao espírito ousar, mesmo que entre em contradição estrita com a obrigação cotidiana de viver.

Quem sabe tudo não passe de um grande e profundo conflito entre o ato e a potência?

E se, ao contrário, a vida é que fosse vivida em caixas, uma prateleira de me-mórias prontas à disposição e um self service conceitual garantindo a satisfação compulsória e obrigatória, quantitativa e passível de ser medida, cobrada e imple-mentada. Uma sinestesia morna e permanente que nos sitiasse a própria sensação de humanidade e a substituísse por normas e modelos de bem estar.

No entanto, para além disso tudo, todas as formas de controle são uma forma só: o controle sobre os corpos. Aos corpos as caixas! O que se fatiam não são frag-mentos de memórias, mas corpos reais, compostos de memória e esquecimento. Não se pode fatiar a memória, nem o esquecimento, muito menos a dor. Apenas os corpos. Mas ao fatiar corpos e, mesmo depois ao tentar apagar o extermínio ou a tortura, os rastros são tais que contam, mesmo à revelia de qualquer censura ou regulação, a história do seu tempo. À revelia do torturador a vida acaba gritando e reverberando para além do grito intumescido ou do silêncio de um corpo inerte.

O suicídio também é uma metáfora de um tempo em que a política parece nos levar a um beco sem saída, onde as trincheiras que se armam são muito mais para assegurar-nos em certezas que precisamos cristalizar do que armadas para en-frentar algum inimigo, real ou imaginário. Mau lugar esse em que esquecemos os inimigos, mesmo os imaginários, e vivemos um pesadelo de espelhos e reflexos de espelhos, onde a incidências das afirmações refletem de forma bruta as provas e certezas das justificativas.

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Mau Lugar - 115

Os utópicos coqueteis molotovs da montagem de Revoluções das Galochas que, em 2013, fulguravam como símbolos da insatisfação social e resistência, parecem não corresponder à realidade, onde um rapaz continua preso por portar produto de limpeza em uma manifestação. O orgulho e auto-respeito de uma era de con-quista de direitos parece não dar mais conta de uma regulação nunca antes vista do tempo e do espaço vitais. A regulação da vida contrasta com a disputa muitas vezes caracterizada por um ufanismo autofágico entres os grupos e desejos eman-cipatórios que parecem valer-se de um supermercado conceitual que tudo pode argumentar e contraargumentar.

A heroica resistência que se imagina em momentos importantes da história pa-recem não ser páreo para a resistência dura e bruta dos corpos que não tem onde morar, como se locomover ou sonhar para além de um solipsismo de tempo pre-sente em que viver é respirar naquele segundo, reiniciando como ato descontínuo e estacionário o que se imagina ser vida.

Mau lugar esse que vivemos, onde tudo se pode constranger, pois são apenas corpos. E em tudo os corpos são mais frágeis do que os conceitos: nos seus tempos e suores, na sua lentidão em superar suas dores ou limitações, da sua arte de viver, tornando vida o que se encontra ao seu redor. Ah os corpos, como são brutos os corpos. Como nos atrapalham o pensamento quando doem ou apenas quando cheiram.

Mas no final das contas apenas os corpos resistem e apenas eles, os corpos, podem fazer-se imaginação e dar consequências materiais à ideologia. É através da limitação dos corpos que a humanidade pode ousar o ilimitado: ocupando um imóvel sem uso social, rompendo uma catraca quando o direito de ir e vir se acha tolhido, enfrentar com tamanha petulância as armas que pode mesmo desmontá--las, ao custo de si, seus corpos e seus mortos.

O corpo humano, apressadamente chamado de fardo por muitos pensadores, místicos, religiosos, políticos e outros homens de destaque do saber, em realidade é um aparato, talvez o único, que pode derrotar a limitação dos corpos. Quando todas as ideias se encontram censuradas ou reféns de regulação, os corpos con-trariando tudo acaba de fato se alastrando por onde puder, rompem sua própria limitação: ao se moverem, ao se beijarem, ao ocuparem um terreno ou prédio abandonado, ao transcenderem um sexo biológico para assumir um sexo huma-no... Em todos os casos, são os corpos, os portadores da dor e da regulação, os únicos que podem se investir contra o sofrimento e a regulação dos corpos, é deles o monopólio da ação vital.

Cada direito virtual que conquistamos, em nossas sociedades, parecem fazer vistas grossas ao fato de que aos corpos resta apenas a materialidade da regulação, o controle e a privação. O direito à saúde é um direito virtualmente garantido a todos os cidadãos. No entanto, que direito tem os corpos de fato à saúde em uma

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116 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

fila interminável de espera em ambulatórios? Mas serão presos e agredidos impla-cável e materialmente, enquanto observam, atônitos, suas virtualidades cidadãs.

É essa sensação que se torna a matéria-prima da criação desse texto: a falta de perspectiva vivida na pele dos movimentos sociais que após anos de luta parece que retornam a um tempo de intransigência e discriminação de direitos que se achava superado. Famílias cujos filhos muitas vezes passam fome e não conseguem vagas nas escolas, ficando em longas listas de espera e quando conseguem garantir seu direito de estudar, sofrem perseguição e preconceito por viverem em ocupa-ções. Essa falta de perspectiva também é vivida na pele dos artistas que outrora sonhavam com revolução e tiveram que despertar no meio das ruínas sociais.

Optou-se pelo drama, principalmente a partir de um de seus mais éticos com-promissos: com a transparência. O Drama não engana, não surpreende. Mas um drama musicado, onde a música surge como elemento de suspensão, seja do tem-po seja do contexto dramático. No texto a música conversa bastante com Vitória, uma espécie de aparição ou algum tipo de figura etérea cura única frase na peça é “você acha mais estranho ficar girando do que cortar e empacotar o corpo da própria filha?”. Na encenação a música cria uma triangulação de diálogo entre a

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Mau Lugar - 117

bailarina, o movimento do cenário suspendendo, o tempo todo, as referências tradicionais de perspectiva e enquadramento. Qualquer canto é enquadramento e qualquer som é musical. A composição da trilha foi feita com ruídos do ambiente e do grupo, captados durante os ensaios.

A construção de um clima ofegante e opressivo levou a importantes ferramentas conceituais: o universo degradado, o grotesco e o uso de bonecos, como duplos dos atores.

Um texto difícil e sufocante, esses foram os novos anseios como dramaturgos do Coletivo para contruir uma reflexão em um intenso processo de criação que resul-tou em uma temporada com quatro apresentações juntamente com a inauguração para o público do “Espaço de Galochas”.

Antonio Herci, Daniel Lopes &

Rafael Presto

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118 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

FichA técnicA

espAço de GALochAs, 2017Criação Coletivo de Galochas

Direção Daniel Lopes

Elenco Diego Henrique, Jéssica Paes, Kleber Palmeira, Mariana Queiroz, Rafael Presto, Roanne Aragão, Wendy Villalobos

Dramaturgia Antonio Herci, Jéssica Paes, Rafael Presto

Direção Musical & Sonoplastia Antonio Herci

Iluminação Mariana Queiroz, Rafael Presto, Rodrigo Oliveira

Cenografia & Bonecos Daniel Lopes, Diego Henrique, Kleber Palmeira

Figurino Mariana Queiroz, Roanne Aragão

Músicos Antonio Herci (piano e piano preparado), Rafael Presto (percussão)

Preparação Corporal Gabriela Segato

Danças Urbanas Andrezinho

Comunicação Antonio Herci, Wendy Villalobos

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Mau Lugar - 119

ListA de personAGensvitória

lúCia

moraes

tenente laCerda

divino

delator

ana

sérgio

riCardo

guarda gomes

Cidadã

agente mediador de emoção (ame) 1agente mediador de emoção (ame) 2funCionários de uma empresa de reColhimento de Corpos

Coro de Cidadãos na fila

Coro Que Carrega Corpos

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120 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

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Mau Lugar - 121

mau lugarAntonio Herci, Jéssica Paes & Rafael Presto

1. suicídio

Casa-cubículo de Lúcia e Vitória, mãe e filha. Observamos tudo pela abertura de uma janela iluminada. Vitória caminha até a janela. Em completo silêncio, apanha uma corda e se posiciona para um enforcamento. O Delator entra em cena, sorrateiro. Caminha até bem perto da janela, filma a situação com seu smartphone.

2. denúncia

Lúcia se depara com o corpo da filha.

LÚCIA — O que você fez, minha filha?

Caminha até ela e abraça o corpo.

LÚCIA — Eu devia saber que ia dar nisso. Quando saiu de casa e começou a andar com aquela gente. Merda!

Corre para fechar a janela e se certifica de não ter sido ouvida.

LÚCIA — Acha que fez uma grande coisa? Não podia pensar um pouco na sua família? Em como ia arruinar a pobre da sua mãe? Tinha que deixar a janela aberta?

Durante a fala, Lúcia manipula o corpo da filha. Começa uma quase dança com o cadáver. Tenente Lacerda bate na porta.

LÚCIA — Quem é?

LACERDA — Tenente Lacerda. Sou da Divisão de Controle de Satisfação e Plenitude Familiar.

Lúcia tenta ganhar tempo para esconder o corpo, mas não encontra lugar e deixa em um canto da casa-cubiculo.

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122 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

LÚCIA — O que traz uma tenente à nossa humilde casa? Somos uma família tão comum!

LACERDA — (seu tom é polido) A nossa maior preocupação é justamente com as pessoas comuns. A senhora não tem com que se preocupar. Posso entrar?

Lúcia ajeita Vitória sentada no sofá, arruma a gola para esconder o pescoço roxo e tenta dar um ar de naturalidade e abre a porta.

LACERDA — (entra olhando o tablet) Dona Lúcia Auxiliadora Domingues...(olha para Lúcia) parece que está tudo em ordem na sua ficha.

LÚCIA — Claro, eu sou uma cidadã exemplar.

LACERDA — Dona Lúcia, a senhora já ouviu falar de mim e do meu trabalho?

LÚCIA — Sim.

LACERDA — Estou averiguando uma denúncia.

LÚCIA — Den úncia? Denúncia de quem?

LACERDA — Anônima! Uma denúncia de suicídio! A senhora sabe de alguma coisa?

LÚCIA — Não. Eu deveria saber?

LACERDA — (para a morta) E você?É Vitória seu nome, não é isso?

LÚCIA — Sim! Mas ela está muito doente, é bom nem chegar muito perto dela!

LACERDA — Doente? Pois para mim parece que ela está mais assim… Morta. Aliás, ela parece muito com a jovem desse vídeo que eu recebi aqui, junto com a denúncia.

Tenente Lacerda mostra o vídeo para Lúcia, que assiste impassível.

LACERDA — O que a senhora me diz? Parece um suicídio, não parece?

Lúcia continua impassível.

LACERDA — Nossa, estou só aqui imaginando a situação da senhora. A multa é pesada, que filha ingrata. São as más influências. Com quem sua filha estava andando?

LÚCIA — Não, minha filha, imagina!

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Mau Lugar - 123

LACERDA — Olha, a gente sabe que a sua filha estava andando com pessoas muito perigosas. Se a senhora colaborar e nos ajudar dando alguns nomes, de repente fica bom pra todo mundo.

LÚCIA — Bom como?

LACERDA — Falando francamente, assim pela filmagem não dá pra afirmar que ela morreu mesmo. Podemos requisitar um laudo de Vida Atestada, um processo mais demorado, leva cerca de vinte e quatro horas. É esse o tempo que você ganha. Vinte e quatro horas para sumir com o corpo da sua filha. É só me indicar alguns nomes. Não é bom para a senhora?

Lúcia reflete por um instante. Apanha o seu smartphone e envia uma mensagem para Tenente Lacerda.

LACERDA — Estamos entendidos. Vinte e quatro horas para terminar a faxina. Tenha um dia feliz!

Lacerda sai da casa-cubículo. Lúcia olha o corpo de sua filha, ameaça um gesto de comoção. Mas logo se contém.

LÚCIA — (para Vitória) Até o fim só me deu trabalho e preocupação.

Lúcia chora sobre o corpo da filha. Levanta-se, ajeita o corpo carinhosamente.

LÚCIA — Não se preocupe, Vitória. Mamãe vai dar um jeito.

O celular de Lúcia dispara um alarme.

VOZ DO ALARME — Primeiro sinal. Você tem quinze minutos para chegar ao seu posto. Relembramos que todos os atrasos serão considerados violações ao bem estar e à satisfação.

Lúcia se arruma para o trabalho, ajeita a maquiagem. Sorri. Sai apressada.

3. Posto de controle de satisfação

Posto de Controle de Satisfação. Cidadãos comuns aguardam em uma fila. Entre eles, Lúcia e Sérgio.

GUARDA GOMES — Um dia feliz para todas e todos!

TODOS — Um dia feliz para todas e todos.

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124 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

GUARDA GOMES — Estamos dando inicio ao Controle de Satisfação.

Cidadãos formam uma fila e caminham em direção ao Guarda. Guarda pega seus aparelhos de inspeção e se prepara para inspecionar a primeira cidadã. Passa o aparelho de inspeção, a Cidadã sorri.

GUARDA GOMES — Identificação, por gentileza.

A Cidadã entrega seu smartphone, o Guarda verifica com seu equipamento.

GUARDA GOMES — Algum incidente de insatisfação essa semana?

CIDADÃ — Não senhor, estou muito satisfeita.

GUARDA GOMES — Estou verificando aqui que seu pagamento foi reduzido em 10%. Algum problema com essa situação?

CIDADÃ — Problema nenhum. Achei até positivo, aprendi a dar valor pra cada centavo que eu ganho.

GUARDA — Muito bem. (devolve o smartphone para a Cidadã) Está liberada. Te-nha um dia feliz. Próximo!

Lúcia é a próxima da fila. O Guarda inicia inspeção. Tenente Lacerda aparece.

LACERDA — Guarda Gomes?

O Guarda se espanta com a Tenente Lacerda.

GUARDA GOMES — Por favor, aguardem um instante.

O Guarda caminha até Tenente Lacerda, trocam continências. Durante o diálogo de Lúcia e Sérgio, Tenente Lacerda mostra seu celular para o Guarda e aponta para Sérgio como culpado.

SÉRGIO — A senhora não é a Lúcia? Você é a mãe da Vitória. Sou amigo da sua filha.

LÚCIA — Vitória tinha tantos amigos, me desculpe.

SÉRGIO — Avise a Vitória que ela corre muito perigo.

LÚCIA — Ela não corre mais perigo.

O Guarda gesticula com a cabeça, grita para a fila.

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Mau Lugar - 125

GUARDA GOMES — (em direção a fila) Você!

Todos da fila reagem. Lúcia pensa que é com ela.

GUARDA GOMES — O cidadão de trás, próximo da fila. Um passo a frente, por gentileza.

Sérgio caminha até a frente, receoso. Tenente Lacerda supervisiona a ação do Guarda.

GUARDA GOMES — O cidadão está insatisfeito com alguma coisa?

SÉRGIO — Não senhor, estou muito satisfeito.

GUARDA GOMES — Qual seu destino?

SÉRGIO — Estou indo para o estágio.

GUARDA GOMES — Está atrasado?

SÉRGIO — Um pouco.

GUARDA GOMES — O cidadão consegue perceber o nível de insatisfação na sua fala?

LACERDA — (interrompendo) Recebemos uma grave denúncia de insatisfação contra o senhor. Por favor me acompanhe até um Centro de Reciclagem Social.

SÉRGIO — Denúncia? Que denúncia? Eu estou feliz, muito feliz!

Guarda caminha até Sérgio, apanha em seu braço, começa a leva-lo. Sérgio, de supetão, acerta uma cotovelada no Guarda e corre. Tenente Lacerda saca sua arma prontamente.

LACERDA — Parado!

Sérgio pára, imediatamente - levanta as mãos rendido. Vira-se em direção do Guarda e Lacerda.

SÉRGIO — Desculpe, foi um lapso de insatisfação.

GUARDA GOMES — Então você aceita ser levado por sua livre e espontânea vontade até um Centro de Reciclagem?

SÉRGIO — Eu aceito ser levado, de livre e espontânea vontade, até um Centro de Reciclagem.

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126 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

LACERDA — Você na frente.

Sérgio caminha em direção a saída, seguido por Lacerda, que acena para o Guarda antes de sair.

GUARDA GOMES — Próximo!

Lúcia caminha para sua inspeção de satisfação.

4. enterro

Enterro luxuoso em um cemitério da alta sociedade. Moraes se posiciona para falar. Dois funcionários de uma empresa de recolhimento de corpos trazem o corpo do filho de Moraes.

MORAES — Agradeço imensamente a presença de vocês nesse dia de luto. Me parece quase irônico reunir as pessoas que ajudaram a construir este império de satisfação em um momento como este. Mas assim é o destino. Meu filho morreu, vítima de um acidente terrível. (apanha um remédio da felicidade do bolso) Peço a todos que apanhem seus Remédio da Felicidade e tomem junto comigo. Não para esquecer a tristeza pela morte do meu filho. Mas para que ela não se transforme em insatisfação. Porque as tragédias acontecem, e com elas, a tristeza. Mas a insatisfação corrompe a alma e aniquila o futuro. Por meu filho, Lucas, que olhava o amanhã com esperança e otimismo.

Toma o remédio da felicidade. Todos os convidados também tomam. Os recolhedores de corpos enterram o corpo do jovem. Moraes se aproxima da Tenente Lacerda.

LACERDA — Meus pêsames.

MORAES — Alguma complicação?

LACERDA — Nenhuma.

MORAES — O seu pagamento chega segunda, mantendo o fluxo de sempre. Parabéns pelo trabalho, Lacerda.

LACERDA — Tento ser a melhor no que eu faço.

MORAES — Tem certeza que ninguém vai delatar nada?

LACERDA — Não sobrou ninguém para delatar.

MORAES — Você cuidou de todos?

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Mau Lugar - 127

LACERDA — Estamos seguros quanto a isso, Moraes. Ninguém vai descobrir que seu filho cometeu suicídio. (pausa) Você sabe que a situação está fugindo do controle, não sabe? Não tem mais como reciclar todos eles. Principalmente os jovens.

MORAES — Essa gente raivosa, subversiva, inimiga da felicidade. Você imagina o prejuízo que eles estão gerando?

Pausa.

MORAES — Lacerda, você acredita na felicidade?

LACERDA — Felicidade? Que pergunta mais estranha, Moraes. O que importa se eu acredito na felicidade ou não?

MORAES — Pois eu não sei mais se acredito.

LACERDA — Como assim?

MORAES — Não está mais sendo suficiente. Uma vida inteira dedicada a isso e, depois de tanto empenho, tantos investimentos em pesquisa e mão de obra nós conseguimos: criamos a felicidade em cápsula! Oferecemos a satisfação a todos, acessível, a baixo custo, e é isso que recebemos em troca? Uma onda descontrola-da de suicídios?! (angustiado) As pessoas estão se matando, Lacerda. Não estamos conseguindo controlar isso.

Silêncio.

LACERDA — A felicidade já foi um bom negócio.

MORAES — Sim, Tenente, a felicidade já foi um bom negócio.

5. indústria farMacêutica Motivacional

Sala de Paramentação do Setor Laranja da Fábrica de Remédios. Ana e o Delator estão entre os trabalhadores. Os operários se preparam para mais um dia de trabalho. Lúcia chega, ela é a Supervisora Motivacional do Setor, seu trabalho é fiscalizar todos e manter os trabalhadores motivados e felizes.

LÚCIA — Feliz dia, prezada equipe de colaboradores do setor laranja!

TRABALHADORES — Feliz dia, Supervisora Lúcia.

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128 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

LÚCIA — Empreender é criar futuro!

Supervisora Lúcia verifica um a um seus trabalhadores — todos estão utilizando suas bolsas coletoras de dejetos físicos. Ana é a última a ser inspecionada — ela não tem um Coletor de Dejetos Físicos.

ANA — (para Lúcia) Pode comemorar, cara supervisora Lúcia, finalmente fui convencida. Comprei meu Coletor de Dejetos Físicos.

Mostra seu Coletor novo.

LÚCIA — Muito bem Ana, você está fazendo a sua parte agora. Fico contente com isso.

ANA — Pensei que você ia ficar mais feliz, não é o que faltava para a sua promo-ção, a adesão completa dos funcionários? Você venceu, Lúcia!

LÚCIA — (com forçada simpatia) Olha, Ana, nunca foi nada pessoal. Quero que a gente se resolva.

ANA — Ótimo, eu também.

Ana pega seu Coletor e dirige-se ao vestiário.

LÚCIA — (seguindo Ana e tentando ser gentil, surpreendentemente) Você quer uma ajuda, não é tão simples na primeira vez.

ANA — Não, não precisa.

Ana entra na cabine do vestiário e começa a vestir a seu Coletor de Dejetos Físicos. Lúcia permanece ali.

LÚCIA — Não, é que... olha, Lúcia, sei que a gente pode ter uns atritos, mas você é respeitada, sei que conhece muita gente.

ANA — De repente quer ser minha amiga?

Pausa.

LÚCIA — Estou com um problema. Eu preciso de sua ajuda, Ana.

ANA — Todo mundo tem algum problema.

LÚCIA — O meu problema é muito sério. Comecei a repensar um monte de coisas... (faz uma pausa) Olha Ana, eu sei que você está envolvida em alguma coisa aqui na fábrica.

ANA — Isso é uma acusação formal?

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Mau Lugar - 129

LÚCIA — É um pedido de ajuda: minha filha se matou.

Silêncio.

ANA — Isso é muito sério. Quando?

LÚCIA — Hoje de manhã. Quase me atraso para o trabalho. Tenho menos de vinte e quatro horas para me livrar do corpo.

Silêncio.

ANA — Meus pêsames.

LÚCIA — Não, não é desse tipo de solidariedade que eu preciso... Você vai me ajudar a sumir com o corpo?

ANA — Você não faz ideia no que está se metendo...

LÚCIA — Eu não tenho escolha.

ANA — E quem tem? (entrega um cartão para Lúcia) Liga para esse número aqui. Pede um Aspirador A47. A pessoa do outro lado da linha vai saber o que fazer.

Em volta, os outros trabalhadores já estão meio perturbados com o atraso do começo da linha de produção. Delator começa a se aproximar.

LÚCIA — Aspirador A47?

ANA — Depois, destrói o seu smartphone.

LÚCIA — Mas o que isso vai me custar?

ANA — Isso você vê na hora.

O Delator ronda próximo às duas, como quem não quer nada. Chama os outros trabalhadores.

DELATOR — (se intrometendo na conversa) A cara supervisora precisa de alguma ajuda com o coletor da colega? Colocar, retirar? Problemas na mangueira?

ANA — Não, está tudo bem. Nossa supervisora me explicou direitinho, tudo instalado.

DELATOR — Ana, supervisora Lúcia já comentou que somos vizinhos? Nossas janelas ficam praticamente de frente uma da outra, conta pra ela, Lúcia.

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130 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

LÚCIA — Sim, tenho o prazer de compartilhar minha vizinhança com um dos colaboradores da minha linha de montagem. (falando para todos) Mãos às máqui-nas para mais um dia de produção!

Os trabalhadores começam a se instalar nas máquinas da fábrica, meio gente, meio coisa. O Delator observa Lúcia, desconfiado. Começam a produção. Lúcia faz o seu discurso motivacional.

LÚCIA — Como empreendedores, temos metas, objetivos, sonhos. Se você não cultiva essas qualidades, então você não é uma pessoa empreendedora. Trabalhe com afinco colaborador, deixe todos para trás! Abata a concorrência, avance por cima da manada! Afirme seu ímpeto empreendedor, seu instinto de sonhar! Eu quero, eu posso, eu consigo! Eu quero, eu posso, posso consigo! Eu quero, eu posso, eu consigo!

Os trabalhadores se juntam à Lúcia em um coro eufórico.

TRABALHADORES — Eu quero, eu posso, eu consigo!

A linha de montagem encerra seu trabalho.

LÚCIA — Equipe de colaboradores, estamos chegando ao final do expediente. Utilizem agora seus smartphones para avaliar o grau de satisfação de seus cole-gas. Denunciem aquele ou aquela que parece menos satisfeito nesse dia de tra-balho. As denúncias são anônimas, mas todos são obrigados a denunciar algum colega. Lembrem-se — esse é um gesto de cuidado.

Os operários apanham seus smartphones, digitam.

LÚCIA — (recebe uma mensagem no seu celular). Vejamos quem foi apontado como o mais insatisfeito... (trava no momento de anunciar, finalmente fala) Lúcia... Lúcia Auxiliadora Domingues. (constrangida de ter sido indicada, mas tentando manter o tom) Cara equipe de colaboradores, me desculpem se passei a impressão de algu-ma insatisfação. Hoje é um dia feliz como qualquer outro. Agradeço a oportuni-dade que estão me dando de desfrutar o privilégio de uma sessão compulsória no Centro de Reciclagem Social.Tenham todas e todos um descanso feliz!

Todos os operários começam a deixar o setor.

6. centro de reciclaGeM à social

Lúcia entra na sala de atendimento. É atendida por uma dupla de AMEs, Agente Mediadores de Emoção. Lúcia senta em uma cadeira.

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Mau Lugar - 131

AME 1 E 2 — Lúcia Auxiliadora Domingues. Como estamos hoje? Estamos bem? (amarra uma das pernas de Lúcia).

LÚCIA — Sim, muito bem.

AME 1 E 2 — Lúcia, você é feliz? (amarra a outra perna)

LÚCIA — Sim, muito feliz.

AME 1 E 2 — Não é o que sua equipe acredita. (AME 1 amarra uma das mãos) Você foi denunciada como insatisfeita pelos seus próprios supervisionados. (AME 2 amarra a outra mão)

AME 1 E 2 — O que é uma surpresa. (AME 2 confere prontuário no tablet) Estamos aqui verificando seu prontuário e não conseguimos compreender.

AME 2 — Você copula regularmente.

AME 1 — Frequenta festas e lugares felizes.

AME 2 — É bem avaliada por parceiros e colegas.

AME 1 — Consome regularmente seus remédios.

AME 1 E 2 — O que está acontecendo, Lúcia? Vamos aumentar essa medicação?

LÚCIA — Não é preciso, eu me sinto muito satisfeita.

AME 1 E 2 — É mais grave do que você está pensando! Você está em processo de negação.

AME 1 prepara uma seringa imensa. AME 2 segura Lúcia, enquanto AME 1 injeta uma dose direto na veia de Lúcia, que grita de dor e convulsiona. Vitória surge ao fundo, rodopiando. Lúcia percebe Vitória. Vitória passa a mão no rosto de Lúcia.

AME 1 E 2 — Daqui uma semana podemos verificar como está seu índice de satisfação. (começam a soltar Lúcia)

AME 2 — Lembre-se de dobrar seus comprimidos.

AME 1 — E não se preocupe com o custo dos remédios.

AME 2 — Ele será descontado diretamente da sua folha de pagamento.

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132 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

AME 1 E 2 — Próximo.

AMEs ajudam Lúcia a se levantar da cadeira e sair da sala. Acompanham ela até a porta.

Lúcia está na janela de sua casa. Tira do bolso o cartão, apanha o celular. Telefona.

LÚCIA — Alô? Eu estou interessada em um Aspirador A47.

7. asPirador a47Lúcia espera na janela e pode observar quando surge uma figura distinta. Bem vestido, altivo e sereno o homem, ao invés de tirar um celular, abre uma listinha escrita num pedaço de papel.

DIVINO — Senhora Lúcia? (Lúcia faz que sim com a cabeça.) Divino, muito prazer. Soube que está tendo problemas com a filha? Suicídio, suponho?

LÚCIA — Sim.

Lúcia olha, temendo estarem sendo ouvidos.

DIVINO — Não se preocupe. Cortamos as conexões, estamos seguros. (pausa) Então?

LÚCIA — Eu cheguei em casa e a Vitória estava enforcada. Recebi a visita de uma tenente, acho que alguém me denunciou. Tenho pouco tempo para me livrar do corpo.

DIVINO — Senhora... (examina o papelzinho para certificar-se do nome) Lúcia, eu posso ajudá-la. Sou reconhecido por resolver problemas. Mas preciso que a se-nhora seja muito precisa em suas descrições. Que tenente e quantas horas temos?

LÚCIA — Tenente Lacerda. E temos agora menos de duas horas.

DIVINO — Tenente Lacerda! Isso então envolve a Polícia Ideológica… A Vitória foi uma jovem notável.

LÚCIA — Minha filha só me trouxe problema. Quanto isso vai me custar?

DIVINO — Quem te passou o contato não te explicou os detalhes?

LÚCIA — Não.

DIVINO — Pois bem, dona Lúcia. Não vai custar absolutamente nada. Mas de-pois a senhora nos fará um pequeno favor como retribuição. Estamos de acordo?

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Mau Lugar - 133

LÚCIA — Sim.

DIVINO — Ótimo! Onde deixou o corpo?

LÚCIA — Na geladeira.

DIVINO — Geladeira ou freezer?

LÚCIA — Geladeira.

DIVINO — Bom! Muito bom! No freezer teríamos que amolecer.

LÚCIA — Amolecer?

Divino ignora a pergunta e examina atentamente o ambiente. Faz alguns cálculos mentais. Finalmente anuncia, com a precisão de uma sentença judicial.

DIVINO — Faremos tudo em exatamente uma hora e trinta e sete minutos, com cinco minutos de margem de erro. Mas preciso que faça exatamente o que eu pedir.

LÚCIA — Está bem.

DIVINO — A senhora por favor providencie as malas mais resistentes que tiver. Grandes e, se possível, impermeáveis. Cobertores grossos e escuros. E um café bem forte sem açúcar.

Lúcia e Divino ajeitam o corpo sobre a bancada.

DIVINO — (esboçando um gesto em direção ao corpo.) Eu preciso tirar a roupa dela...

LÚCIA — (interrompendo) Deixa que eu faço isso. Ela é minha filha.

Lúcia tira a roupa do corpo da filha.

LÚCIA — Posso limpá-la?

DIVINO — Não. (Divino tira um cutelo da mala de instrumentos). O corpo precisa caber na mala. A senhora quer sair?

LÚCIA — Não.

DIVINO — Tem certeza?

LÚCIA — Tenho.

Divino vai cortando o corpo de Vitória No começo, Lúcia observa em choque; depois, chora. Enfim,

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134 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

acaba ajudando a colocar as partes do corpo em sacos plásticos e ajeitar nas malas.

LÚCIA — Tadinha... Terminar assim apertada em uma mala.

DIVINO — Eu não julgo, eu ajudo as pessoas a resolver problemas. Sei muito bem quem são as vítimas aqui.

Lentamente encara Lúcia, agora bem sério.

DIVINO — Você me deve um favor, Lúcia. Agora diga que me entendeu.

LÚCIA — Sim.

DIVINO — Como disse, senhora Lúcia, sou um homem muito preciso e meti-culoso. Preciso que diga que me entendeu.

LÚCIA — Eu entendi, senhor Divino.

DIVINO — Ótimo! (Olha o relógio) Uma hora e trinta e sete minutos, não preci-samos da margem de erro novamente. Vamos lá.

Pegam as malas e saem.

8. suBorno

Posto de Controle de Satisfação. Guarda observa de seu posto.

Divino e Lúcia se aproximam do posto arrastando uma mala pesada. Divino vai na frente, Lúcia leva a mala.

GUARDA GOMES — Uma noite feliz.

DIVINO — Uma noite feliz para o senhor.

Divino faz gesto de espera para Lúcia. Guarda se aproxima.

GUARDA GOMES — (polido) Documentos, por favor.

DIVINO — (tirando o smartphone do bolso lentamente) Com todo o respeito, guar-da... Gomes, o senhor vai preferir não escanear meus documentos.

GUARDA GOMES — Não é questão de vontade, é protocolo. Retorne para onde você veio. (para Lúcia) Você está junto desse senhor?

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Mau Lugar - 135

DIVINO — (certeiro e confiante). Ela está comigo, Henrique. Henrique Gomes Pereira, não é?

GUARDA GOMES — (ameaçador, sacando a arma) Como você sabe meu nome completo?

DIVINO — Sei muito mais do que isso. Sei que o senhor é um bom homem. com uma linda família - duas filhas, uma esposa… e cuida da mãe doente!

GUARDA GOMES — Você está ameaçando minha família?

DIVINO — Eu estou aqui para resolver problemas. E essa história desses remé-dios caros da sua mãe, bem, isso me parece um problema.

Guarda para, espantado.

DIVINO — Duas cartelas de remédio. (tira duas cartelas do bolso). E nós dois pas-samos. Nenhum registro, ninguém viu nada, ninguém se prejudica - todos saem ganhando.

Guarda olha para as caixas de remédio. Hesita um momento. Pega as caixas e volta para o seu posto.

GUARDA GOMES — Está tudo nos conformes. Estão liberados. Tenham uma noite feliz.

DIVINO — (cumprimentando educadamente) Uma noite feliz.

Divino sorri e olha para Lúcia. Os dois começam a caminhar, Lúcia levando a mala.

GUARDA GOMES — (vendo a mala) Opa, peraí!

Divino e Lúcia param.

GUARDA GOMES — E essa mala?

LÚCIA — São roupas.

Divino se aproxima novamente do Guarda. Tira mais uma cartela do bolso e oferece. Guarda pega os remédios. Faz um gesto para que sigam. Lúcia pega a mala, ela e Divino saem de cena. A mala deixa um rastro de sangue.

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136 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

9. Pilha de corPos

Lúcia e Vitória se encontram em frente ao lixão. Lúcia leva a mala. De mãos dadas, Lúcia e Vitória caminham até a pilha de lixos. Entra um coro que carrega corpos. Cantam “Rondó aos corpos”.

Rondó aos corpos37

Mas um corpo morto ou vivo,Tanto faz no lixão:Um corpo morto-vivoPuxa um corpo vivo-morto. Numa caixa vem o corpo,Noutra caixa vem os sonhos,Noutra ainda vem o gritoQue ficou por gritar!Nessa bolsa vem a mãoQue quis, mas não tocouA face da moçaQue vem naquele saco. ESTRIBILHO

Não se pensa em temer a morteEstando preso numa caixa,Só se pensa em sair da caixa,Só se pensa em alçar-se à sorte;Só se pensa em romper o lacre,Só se pensa em esticar a perna,Só se pensa em sair dali,E viver! ESTRIBILHO

Enquanto cantam, formam uma roda dançando com os corpos. Um a um, deixam os corpos no lixão. Divino está entre eles, e chama Lúcia para perto. Lúcia reconhece Ana e fica ao seu lado. Divino acende um fósforo e queima a pilha de corpos. Lúcia

37 Letra e Música de Antonio Herci, 2017.

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Mau Lugar - 137

tenta ir em direção à fogueira, mas Ana a segura. A música termina. Um a um, o coro se retira.

DIVINO — Meus sentimentos.

LÚCIA — Preciso voltar para casa antes do horário do trabalho. (saindo)

DIVINO — Senhora Lúcia, você não pode ir embora agora. Não sem saber o que precisamos da senhora.

LÚCIA — Olha, eu agradeço muito a ajuda, mas eu não posso me envolver.

DIVINO — Você já está envolvida. Você nos deve. É só um favor – algo simples. A Ana disse que você é supervisora, tem acesso a quase tudo na fábrica.

LÚCIA — O que você quer?

DIVINO — Acesso. Precisamos entrar na fábrica amanhã a noite.

LÚCIA — Para quê?

DIVINO — Quanto menos você souber, melhor. É só liberar a passagem.

LÚCIA — (hesita um pouco) Está bem.

DIVINO — Não veja isso como uma chantagem, e sim como um voto de con-fiança. Vamos voltar?

LÚCIA — Pode ir. Eu volto sozinha.

Divino sai. Lúcia fica no lixão. Contempla os corpos quimando. Apanha um frasco de remédios, toma. No instante seguinte, toma mais dois comprimidos. Vitória aparece de longe, girando. Lúcia aperta os olhos. Vitória se aproxima, girando cada vez mais rápido. Lúcia começa a se irritar com seus giros.

LÚCIA — Ei! Menina!

Vitória não olha, apenas continua girando. Durante todo o diálogo, Vitória continua girando.

LÚCIA — O que você está fazendo?

VITÓRIA — Girando.

LÚCIA — Pra quê? Que coisa estranha!

VITÓRIA — E o que você acha mais estranho, ficar girando ou queimar o corpo da própria filha em um lixão?

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138 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

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Mau Lugar - 139

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140 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

LÚCIA — Mas você tem que entender que…

VITÓRIA — (interrompendo) Eu não tenho que entender nada. Eu só giro mes-mo!

LÚCIA — Você se acha muito importante girando no meio do lixão?

VITÓRIA — Não é uma questão de importância! Você já girou?

LÚCIA — O que?

VITÓRIA — Girou! (convidativa) Experimente.

Lúcia começa a girar com Vitória, felizes. Vitória solta a mão de Lúcia e vai embora. Lúcia fica em choque. Uma sirene toca. Lúcia sai correndo assustada.

10. cinco Minutos

Ana e outros dois companheiros chegam na frente do portão da fábrica, receosos. Sérgio é um militante vacilão. Ricardo um sindicalista autêntico. Ana é a liderança dos dois. Ana carrega uma maleta.

SÉRGIO — Eu tô falando, isso não vai dar certo!

ANA — Fecha a boca, você sempre diz isso!

RICARDO — Mas dessa vez ele tem razão, acho tudo muito prematuro! Quem é essa que vai abrir o portão?

ANA — Ela é nova no grupo! Perdeu a filha, suicídio. Ajudamos ela a se livrar das complicações legais...

SÉRGIO — E só porque ela perdeu a filha a gente confia nela agora?

RICARDO — Estou achando que estamos acreditando demais nessas colabora-ções. Ela é supervisora, não é?

SÉRGIO — Não é ela que ganhou o prêmio pela motivação da equipe? Está com a carreira em ascensão.

ANA — Olha, em primeiro lugar é uma tarefa simples, ela não sabe de nada...

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Mau Lugar - 141

RICARDO — (Interrompendo) Não sabe de nada? A gente pede pra ela abrir o portão da principal fábrica de Remédios da Felicidade e ela não desconfia de nada?

ANA — Em segundo lugar, é uma supervisora devendo favor para a gente. Preci-samos aproveitar essa oportunidade. Gente, ela perdeu a filha!

SÉRGIO — Se desgraça fosse critério de caráter o mundo estava cheio de santo.

O portão se abre. Lúcia sai de dentro.

ANA — Muitos foram contra, mas eu sabia que podíamos contar com você.

LÚCIA — Agora estamos quites. Não devo mais favores a ninguém.

Lúcia vai embora. Ana e Ricardo entram na fábrica. Sérgio hesita.

SÉRGIO — Estou com um mau pressentimento!

ANA — Agora não vale a pena recuar.

Olham-se longamente.

ANA — Vamos!

SÉRGIO — Mas de que adianta a gente sabotar a fábrica? O que a gente ganha com isso?

ANA — Consciência! A gente acaba com a ilusão das pessoas. Traz elas para a realidade.

SÉRGIO — Estou vendo essa realidade na quantidade de corpos que temos que queimar!

RICARDO — Sérgio, a gente já discutiu isso.

SÉRGIO — Eu nunca gostei dessa ideia...

ANA — Agora não é hora. Temos pouco tempo, vamos!

Entram no ambiente. Dirigem-se à máquina central da Fábrica de Remédios da Felicidade.

ANA — É só colocar essa fórmula na máquina central, e sabotamos toda a pro-dução da fábrica.

Ana passa a maleta com a fórmula para Ricardo.

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142 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

ANA — A máquina está alí.

Ricardo caminha em direção à máquina central. De repente o acesso à máquina central se fecha.

TENENTE LACERDA — (voz vindo de fora) Atenção, vocês estão cercados. Ren-dam-se e serão tratados com respeito. Terão suas integridades físicas preservadas. Todos podem sair disso sem grandes danos. Não nos obriguem a entrar.

ANA — Sei que integridade é essa! Alguém nos delatou!

RICARDO — A gente não podia ter confiado nela.

SÉRGIO — isso não importa! Agora não faz diferença. Eu não vou me matar.

ANA — (apanhando um frasco do bolso) Não temos escolha. Cada um tem o seu. A gente combinou.

RICARDO — Confiar em uma supervisora! No que o Divino estava pensando?

SÉRGIO — Eu não vou me matar! Não vou!

ANA — Você já está morto! Nós não temos opção. A gente sabia que as coisas podiam chegar nesse ponto. Ninguém está falando de resistência, mas se nos pe-gam, vão nos torturar até arrancar tudo. Vão matar todos, até chegar no Divino! Eu não vou voltar para um Centro de Reciclagem Social, não vou. Não temos escolha. (apanha um frasco de suicídio) Leva cinco minutos. Cinco minutos. Não vamos sentir nada. Sem pensar em temer a morte?

RICARDO E SÉRGIO — (apanhando seus frascos também) Sem pensar em temer a morte.

Se olham. Os três tomam o conteúdo do frasco. Se despedem. Os três cantam “Em que Noite Mataremos o Rei?”

Em Que Noite Mataremos o Rei38

Onde os reis esfomeados tropeçamNos tapetes de veludo das mansões de cristaisLá conheci esse bobo da corteEsse santo homem loucoQue me contou coisas demaisJuntos bebemos e cantamosLonge da lei dos homens de poder

38 Letra e Música de Rafael Presto, 2014..

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Mau Lugar - 143

Qual o seu planoBobo da corteEm que noite mataremos o rei?

E falamos da miséria dos homensE do frio que se acumula nos becos da cidadeDas mulheres que se lavam nas sarjetasDas crianças virando fumaça por causa da fome

Qual o seu planoBobo da corteEm que noite mataremos o rei?

Pegaremos em armas?Ergueremos bandeiras?Faremos a cidade arder toda em vermelho?Montaremos nossas bombas nos palácios, parlamentos?Armaremos guilhotinas?Dar início a uma guerrilha?Ver as ruas tomadas no calor de um novo dia?Enterraremos nossos mortos?Ser maior do que o cansaço?Em que noite mataremos o rei?

Qual o seu planoBobo da corteEm que noite mataremos o rei?

Terminam a canção, um metrônomo soa. Esperam em silêncio a morte chegar durante 1 minuto. Caem mortos.

11. Pode eMPacotar

Lúcia chega na fábrica. Depara-se com o corpo dos quatro trabalhadores que cometeram suicídio. Fica em choque. Tenente Lacerda aparece, acompanhada de dois funcionários de uma empresa de recolhimento de corpos.

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144 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

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Mau Lugar - 145

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146 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

LACERDA — (para Lúcia) Temos nos encontrado bastante ultimamente, não é Dona Lúcia? (para os recolhedores de corpos) Podem começar a empacotar.

Os funcionários começam a recolher os corpos, maquinalmente.

LÚCIA — Para onde eles vão levar os corpos?

LACERDA — Para averiguação. A senhora tem algum interesse especial nisso?

LÚCIA — Não. Pode me dizer o que aconteceu?

LACERDA — Ratos! Essa gente subversiva se matou enquanto tentava sabotar a fábrica. Felizmente foram denunciados a tempo. É uma espécie sem honra, que tira a própria vida quando encurralada. Se fazem isso, é porque sabem que estão errados. Dona Lúcia, vou pedir para a senhora me acompanhar

LÚCIA — Mas eu estou sendo acusada do quê?

LACERDA — Acusada? Ninguém aqui falou em acusação. É apenas um novo protocolo de segurança da fábrica.

Os funcionários terminam de levar o último corpo.

LACERDA — Vamos?

Lúcia consente. Deixam o galpão da fábrica.

12. interroGatório

Sala de interrogatório da fábrica. Uma janela pequena; Lúcia está atrás dela. Moraes aparece, tem um copo de whisky na mão.

MORAES — Dona Lúcia, a senhora acredita na felicidade?

LÚCIA — Como assim na felicidade?

MORAES — Na felicidade, Dona Lúcia. Eu acho que não é mais o suficiente. Eu sei da sua filha.

LÚCIA — Não fala da minha filha! Você não sabe de nada.

MORAES — Nós temos muito em comum, Lúcia. Vou compartilhar um segredo com a senhora: meu filho também se matou. Se entupiu de remédios, tivemos de abafar o caso.

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Mau Lugar - 147

LÚCIA — Essa é nossa diferença. Eu tive que me livrar do corpo.

MORAES — Temos nossas diferenças, é claro. Mas eu estou interessado no que temos em comum. Agora compartilhamos um segredo.

LÚCIA — Mas o que você quer de mim?

MORAES — Eu quero ajuda para entender, Dona Lúcia, compreender o que está acontecendo a minha volta, entender todos esses suicídios. Porque a felici-dade não funciona mais.

LÚCIA — Nisso temos alguma coisa em comum, eu também quero compreen-der. Mas, sinceramente, Dr. Moraes, não acho que o senhor vai me dar a respos-ta.

MORAES — Podemos procurar juntos. (entrega um cartão para Lúcia) Lúcia, eu tenho reparado em suas qualidades. Você tem muito potencial. Se souber de alguma coisa, ouvir alguma conversa mais perigosa na linha de montagem, não hesite em me ligar. Obrigado pelo seu trabalho exemplar como supervisora mo-tivacional da fábrica. Tenha um dia feliz, Dona Lúcia.

LÚCIA — Tenha um dia feliz, Dr. Moraes.

13. uM voto de confiança

Lúcia volta para sua casa-cubículo. Quando abre a porta, Divino está lá dentro. Lúcia se espanta.

LÚCIA — O que você está fazendo na minha casa?

Divino aponta uma arma para Lúcia.

LÚCIA — O que é isso? Abaixa essa arma!

DIVINO — Eu apostei em você! Eu confiei em você, e você traiu minha con-fiança.

LÚCIA — Não fui eu. Isso é um absurdo!

DIVINO — Nós te ajudamos. Ajudamos a sumir com o corpo da sua filha. Ela trabalhava conosco, sabia? A Vitória deu a vida para não entregar ninguém. Pelo menos por ela, por respeito a ela, você não podia ter feito isso.

LÚCIA — Não fui eu! Alguém delatou, mas não fui eu!

DIVINO — O que você estava fazendo fora de casa?

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148 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

LÚCIA — Me chamaram na fábrica. Eles cometeram suicídio, acho que eles foram encurralados e se mataram.

DIVINO — Quem entregou eles?

LÚCIA — Como vou saber?!

DIVINO — Pense melhor, quem entregou se não foi você?

LÚCIA — Eu só abri o portão, como vocês pediram!

DIVINO — Porque eu não deveria meter uma bala na sua cabeça agora, hein? Responde!

LÚCIA — Não fui eu. (se exaltando) Vai! Pode estourar minha cabeça se quiser. Nada disso faz sentido. Ter que ser feliz, seguir em frente, ficar satisfeita... Eu não quero ficar satisfeita! O que eu quero é tacar fogo na fábrica! Eu odeio a felicidade. Eu quero destruir tudo.

DIVINO — Nisso podemos ter um acordo. (abaixa sua arma). Até onde você iria?

LÚCIA — Como assim?

DIVINO — Podem nos tirar tudo, todos os horizontes, mas não podem nos tirar o dom da destruição. Temos de transformar tudo em pó, reduzir o mundo às ruínas. Vamos vingar o sangue dos nossos companheiros com fogo. O primeiro alvo é a fábrica de Remédios da Felicidade. Percebe a sua importância agora? Você tem muito potencial.

Divino guarda a arma.

DIVINO — Mas agora terá que reconquistar a minha confiança. Pense um pouco, Lúcia. Você é uma mulher esperta, deve desconfiar de alguém. Quem é o delator?

LÚCIA — Como é que eu vou saber?

DIVINO — Você é supervisora da fábrica. Ninguém conhece os funcionários melhor do que você.

Pausa. Lúcia reflete. Esboça um sorriso.

LÚCIA — Eu sei quem foi.

DIVINO — Sabe?

LÚCIA — Foi o Paulo.

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Mau Lugar - 149

DIVINO — Seu vizinho? Aquele que trabalha no mesmo setor que você?

Lúcia faz que sim com a cabeça.

DIVINO — Eu já desconfiava. (Suspira) Você terá que matá-lo.

LÚCIA — Mas pra quê? Tem um delator em cada esquina, de que vai adiantar?

DIVINO — E se eu te disser que é o mesmo homem que denunciou sua filha?

LÚCIA — Você tem razão. É isso que ele faz, e é isso que ele vai continuar fa-zendo.

DIVINO — A senhora está conosco?

Lúcia e Divino se olham longamente.

14. suicídio forjado

Fábrica. Final de expediente. Funcionário Paulo, o Delator, trabalha sozinho, fazendo hora-extra. Lúcia se aproxima.

LÚCIA — Muito bem, Paulo. Mais uma vez fazendo horas extras! Obrigada pelo seu trabalho exemplar na linha de montagem.

DELATOR — Eu só estou fazendo a minha parte, supervisora Lúcia. Tenha uma noite feliz.

Paulo se prepara para ir embora.

LÚCIA — Paulo, posso falar com você um instante?

DELATOR — É claro, vizinha, pode falar de qualquer coisa comigo.

LÚCIA — Acho que você já desconfia de algo. Preciso confessar uma coisa.

DELATOR — Sejamos francos, supervisora Lúcia, o problema é com a sua filha Vitória, não é?

LÚCIA — Sim. Acho que você já sabe de tudo. Talvez por isso eu sinta que posso confiar em você.

DELATOR — Claro que pode, Lúcia. Somos praticamente amigos.

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150 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

LÚCIA — Eu preciso de alguém para me substituir. Pelo menos por enquanto. (caindo em lágrimas) Eu não tenho condições de motivar minha equipe assim…

Lúcia começa a chorar, abraça o Delator, que devolve o abraço, sem jeito.

DELATOR — (Sonhador) Fique tranquila, Lúcia. Eu posso ficar com seu cargo de supervisora. Não precisa se preocupar com nada, viu? Eu vou cuidar de tudo...

De súbito, Lúcia apanha a mangueira do Coletor de Dejetos Físicos e enlaça o pescoço do Delator. Lutam. Caem. Delator se debate, enquanto Lúcia segura firmemente a mangueira, estrangulando-o. O Delator fica inerte. Lúcia se levanta. Apanha o telefone.

LÚCIA — Central de Controle da Fábrica? Preciso relatar um suicídio no Setor Laranja. O colaborador Paulo… se enforcou.

Blackout

15. diverGência

Lúcia em meio a cidade. Vitória aparece, carregando um chapéu semelhante ao de Divino. Entrega para Lúcia que, cerimonialmente, coloca na cabeça. Lúcia atende o celular.

LÚCIA — Aspirador A47? Estou a caminho.

Transição. De volta no lixão. Uma moça carrega um corpo, acompanhada de Lúcia e Divino. A Moça deixa o corpo na pilha de corpos. Lúcia, imitando os gestos de Divino na outra cena, apanha um fósforo e acende a fogueira do lixão.

LÚCIA — Está resolvido. Agora você nos deve um favor.

MOÇA — Sim.

LÚCIA — Preciso que você me diga claramente que compreendeu e que agora nos deve um favor.

MOÇA — Eu compreendi, Lúcia — agora eu lhes devo um favor.

Lúcia cumprimenta a Moça, que vai embora, abalada. Lúcia e Divino se aproximam.

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Mau Lugar - 151

DIVINO — Perdemos os nossos melhores quadros. Estamos com a comunicação comprometida.

LÚCIA — E é só isso que você acha que está comprometido? Pois eu acho que é o projeto inteiro que está ruindo. Você já pensou sobre isso?

DIVINO — Eu penso nisso todos os dias. E quanto mais eu penso, mais convic-ção eu tenho na nossa estratégia.

LÚCIA — Você só pode estar louco! Que estratégia Divino? Onde você está vendo estratégia nisso tudo?

DIVINO — Nada mudou. Tivemos derrotas, sim, mas precisamos seguir em frente. Desistir não é uma opção.

LÚCIA — Destruir tudo também não é! Eu já matei uma pessoa! De quantos corpos você precisa?

DIVINO — De quantos forem necessários. Por eles, por nossos mortos, temos de seguir em frente. Só a partir das ruínas poderemos pensar em algo novo.

LÚCIA — Eu sei que você acha que não temos opção. A Vitória também pensou isso. Mas não é verdade. Nós temos.

DIVINO — E porque você acha que ela não teve opção? A Vitória fez o que fez por escolha dela.

LÚCIA — Como assim? Suicídio é uma opção agora? É isso que você defende?

DIVINO — O suicídio é só um efeito, Lúcia. Qual a diferença entre o corpo da Vitória e o da jovem que acabamos de dispensar? A diferença é que ela é sua filha?

LÚCIA — É claro!

DIVINO — Pois você não passa de uma individualista! Você só pensa no próprio umbigo. A Vitória teria vergonha de você.

Lúcia dá um tapa na cara de Divino.

DIVINO — Me desculpe. Eu não devia ter envolvido sua filha.

LÚCIA — Desculpa pelo tapa também. Estamos todos com a cabeça quente. Vamos encontrar uma solução.

DIVINO — Juntos?

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152 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

LÚCIA — É claro… Mas agora eu preciso ficar sozinha. Preciso refletir.

Divino faz uma reverência com seu chapéu e sai. Lúcia caminha até a frente da pilha de corpos. Vitória aparece, começa a girar.

LÚCIA — Vitória, minha filha, será que Divino tem razão? O mundo está mes-mo sem perspectiva… Talvez você tenha sido muito corajosa. Mas pra que serviu essa coragem toda?

Vitória sai, rodopiando. Tenente Lacerda aparece, caminhando calmamente. Lúcia se espanta.

LACERDA — Dona Lúcia, a senhora frequenta cada lugar.

Lúcia ameaça correr, Lacerda saca sua arma.

LACERDA — Não vamos nos exaltar! Tranquila. Só quero conversar. Está ven-do? (guarda sua arma) Não foi fácil seguir seu rastro. Então é nesse lugar que vocês queimam os corpos?

LÚCIA — Não são corpos. São pessoas. Mães, filhas, irmãos… Podia ser um filho seu.

LACERDA — Meu não. Não tenho filhos. Isso não me passa pela cabeça.

LÚCIA — O que você quer de mim?

LACERDA — Vim lhe fazer um convite. O Dr. Moraes quer falar com você.

LÚCIA — E se eu disser que eu não vou?

LACERDA — Eu prefiro acreditar que a senhora vai. De livre e espontânea von-tade, é claro. (silêncio) Vamos? Você na frente.

16. ceMitério

Cemitério da alta sociedade, noite. Moraes traz flores para a sepultura do seu filho.

MORAES — Lucas, tive um sonho estranho essa noite. Sonhei com um céu vermelho sangue, com uma nuvem atômica varrendo a fábrica. Um milhão de soldados marchavam em cima dos remédios. (Pausa) Sabe, eu tive muita raiva de

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Mau Lugar - 153

você. Mas no fim das contas, aprendi uma grande lição. A felicidade não serve como forma controle. É um elo frágil de dominação.

Tenente Lacerda aparece no cemitério.

MORAES — E então Lacerda, conseguiu?

LACERDA — Alguma vez eu falhei com você, Moraes?

Lúcia entra no cemitério, receosa.

MORAES — Pode nos deixar a sós.

Lacerda sai.

MORAES — Lúcia, você não acha que temos de acabar com essa loucura?

LÚCIA — É aqui que seu filho está enterrado?

MORAES — Lucas. O meu filho se chamava Lucas. Como se chamava sua filha?

LÚCIA — Vitória.

MORAES — Ela também olhava o futuro com esperança e otimismo?

LÚCIA — Ela se enforcou. E eu tive que picar o corpo.

MORAES — Sua filha escolheu o caminho dela. O meu filho escolheu o mes-mo. E agora nós estamos aqui. Que caminho seguiremos?

LÚCIA — Nós não seguimos o mesmo caminho faz tempo, Dr. Moraes.

MORAES — Tem razão. Deixamos que uma distância se colocasse entre nós. Por que isso aconteceu? Tenho pensado… você realmente acha que temos de destruir tudo?

LÚCIA — Não sei. Já não tenho certeza. Só sei que do jeito que está, é impossível construir algo.

MORAES — Por menos perspectiva que se tenha, arrancar a própria vida é uma aberração. (pausa) Lúcia, eu tenho um novo plano para o futuro. E você é parte fundamental desse plano.

17. Mau luGar

Sala de tortura. Divino está preso em um pau-de-arara, muito machucado. Tenente Lacerda está

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154 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

a vontade em um canto, exausta. Lacerda solta Divino, que cai no chão.

LACERDA — Não fique com a consciência pesada. Você até que aguentou bem. E quer saber do mais engraçado? Eu vou levar menos tempo para matar todas as pessoas do seu movimento do que o que eu levei para conseguir todos os nomes. Nós realmente superestimamos vocês.

DIVINO — Porque você não me mata logo? Eu já te falei tudo, tudo.

LACERDA — Não é assim que funciona, Divino. Não é você que vai escolher a hora da sua morte. Sabe que eu gosto mesmo do meu trabalho?

Dr Moraes entra, seguido de Lúcia. Lúcia se espanta ao ver Divino torturado.

LÚCIA — (para Moraes) Não foi isso que combinamos! (para Divino) Eu não achei que ia terminar assim.

DIVINO E MORAES — E você achou que ia terminar como?

DIVINO — Você realmente pensou que eles não iam me torturar?! Que não vão caçar todo mundo? Não existe acordo, não existe conciliação, nunca existiu! Pelo menos a destruição que nós causávamos tinha um lado. Você nos entregou. Você entregou a si mesma.

MORAES — (para Lúcia) Eu não estou entendendo o seu espanto, Lúcia. Esse é o novo plano! A crença na felicidade é uma crença ingênua, um modelo de con-trole ultrapassado, uma mercadoria em extinção. (empunhando uma arma) Mas a bala…. a bala é mais barata que a felicidade. E mais fácil de distribuir do que qualquer remédio. Os que quiserem se matar porque estão insatisfeitos, que se matem. Não sentiremos falta. Temos outros, milhares, para substituí-los.

Moraes pede a arma de Lacerda. Entrega na mão de Lúcia.

MORAES — Quer dar um fim digno para o seu companheiro de batalha? Essa é sua chance.

DIVINO — Acabe logo com isso, Lúcia. É o melhor para todos. Eu não sou o primeiro e com certeza não serei o último. A vida é uma dádiva. Mas nem ela, nem a felicidade, podem ser impostas a ninguém.

Lúcia aponta a arma para Divino. Vitória entra em cena, girando e se coloca entre Divino e a arma. Divino começa a cantar “Arruaça”. Atores e atrizes cantam junto.

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Mau Lugar - 155

Arruaça39

Os donos do poder que temamQue a revolta chegouA cidade hoje é palco de guerraMeu itinerário pra rua mudouEntão vamos cantarMolotovs e sonhos desembainharAssim como estáEsse samba não pode ficar Se meu bloco não pode dançarSe o dia não pode raiarVou bater meu pandeiro na praçaFazer arruaçaCom povo cantar

Lúcia fecha os olhos e dispara. Vitória e Divino caem. Moraes começa a aplaudir.

MORAES — Bravo! Excelente, supervisora! Você sempre me surpreendendo, Lúcia. (Moraes pega a arma da mão de Lúcia calmamente) Não imaginei que teria essa coragem. Temos mesmo muito em comum. Mas ainda pertencemos a luga-res bem diferentes.

Moraes entrega a arma para Lacerda.

MORAES — Lacerda…

Lacerda aponta a arma para a cabeça de Lúcia. Blackout.

FIM

39 2015. Letra e Música de Rafael Presto.

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156 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

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Cantos de Refúgio - 157

cantos de refúGio

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158 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

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Cantos de Refúgio - 159

Cantos de refúgio

ApresentAção

Dar o pontapé inicial no projeto do espetáculo “Cantos de Refúgio” parecia uma tarefa impossível. Como entender uma realidade tão diferente da nossa e cheia de versões? Primeiro desafio. Ter que dar conta de um jogo políti-co complexo, de um tema sobre o qual a grande mídia insiste em desinformar. Onde buscar referências? Depois disso, traduzir a guerra, a diáspora e o refúgio... em uma peça de teatro. Segundo desafio. Ainda por cima, fazer dessa peça espi-nhosa um espetáculo infantil. Terceiro desafio.

Sempre tivemos certeza da absoluta relevância do nosso tema. Falar da Palestina hoje é essencial. Não só por uma questão de princípio; sim, devemos expor e trazer para o debate público as injustiças que lá ocorrem, pelo simples fato de que somos avessos à injustiça (ou deveríamos ser). Mas falar da Palestina hoje é muito mais do que isso: é jogar uma luz sobre a questão urgente dos des-locamentos forçados no capitalismo contemporâneo. Desde a Nakba, quando cerca de 700 mil palestinos foram expulsos de suas casas em virtude da fundação do Estado de Israel, gerações e gerações de palestinos vivem em diáspora mundo afora. Para encontrar o povo palestino, não basta olhar para a Palestina: é neces-sário olhar para todos os cantos do globo. Em 2016, atingimos a marca de 22,5 milhões de pessoas em situação de refúgio no mundo, o maior número já regis-trado1; desses, pelo menos 6 milhões são palestinos. O mundo nunca produziu tantos expatriados e expulsos e o povo palestino em diáspora é parte importante dessa equação.

Para nós, apresentar a realidade do refugiado palestino às crianças brasi-leiras tornou-se uma tarefa necessária. Cabe ressaltar aqui que Cantos de Refúgio foi nossa primeira experiência no universo do teatro infantil, um desejo que vinha sendo discutido há anos no Coletivo. A demanda surgiu da própria com-posição do nosso público: apresentando nossas peças adultas em ocupações de moradia ou na rua, sempre tivemos muitas crianças na plateia. Cantos de Refúgio foi a oportunidade perfeita para essa empreitada. Isso porque o intuito era criar uma obra que fugisse do tratamento banal e simplório que muitas vezes é dado ao teatro infantil.

Acreditamos que não existem “temas de criança” e “temas de adulto” no teatro; um infantil pode e deve tratar de temas caros à sociedade em que vive-

1 Dados da ACNUR – Agência da ONU para Refugiados.

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mos. O que define a adequação do tema ao público infantil é mais a forma como ele é abordado no espetáculo do que o tema em si. No caso dessa peça, significa-va falar de guerra, morte, perda, refúgio e opressão para as crianças. Para alguns, essa proposta pode parecer inadequada. Mas a verdade é que a vida das crianças já é atravessada por várias situações de violência. Escolhemos criar uma obra que tratasse dessa violência – não uma abordagem gráfica e explícita, mas de uma forma poética e delicada. O nosso público infantil é capaz de elaborar tudo isso. Afinal, Cantos de Refúgio trata de algo que diz respeito a nós, seres humanos do nosso tempo – sejam crianças, adultos, jovens ou idosos.

Em agosto de 2016, iniciamos o processo da nossa peça. Por onde começar?

A princípio, estudamos. Fizemos uma breve formação sobre História da Pales-tina, o que requer também algum conhecimento de História do Oriente Médio. Fomos atrás de referências bibliográficas de peso, como Edward Said. Assistimos documentários. Procuramos dar conta de um processo histórico longo e confu-so, mas as horas de estudo pareciam desproporcionais para o entendimento des-se quiprocó geopolítico. Aqui, longe de tanques israelenses e de homens bomba, a impressão que dá é que falamos cada vez mais sobre a Palestina e sabemos cada vez menos sobre ela. Nossa visão ocidental sobre o Oriente tende a ser deturpa-da, mistificada, exotizante. Temos que fugir disso a todo custo. Pensando nisso, priorizamos autores palestinos. E quando pensamos que finalmente tínhamos desvendado o segredo, nos surpreendemos: a Palestina de hoje já não é mais a Palestina de ontem. Isso porque essa terra é dinâmica, como todas são.

Entender a questão palestina não é só estudá-la e entendê-la enquanto conflito de interesses entre povos. Entender a Palestina requer sensibilidade. Re-quer ouvir uma história, ler um poema. Imaginar a dor. Estudar a realidade nua e crua dos livros de História não foi suficiente, então recorremos à arte palestina. Conhecemos os romances de Ghassan Kanafani, os filmes de Elia Suleiman, o hip hop de Shadia Mansour, as charges de Naji Al-Ali... o contemporâneo e o mais contemporâneo ainda, a sutileza e a agressividade, o belo e o esdrúxulo, tudo isso se misturou num caldeirão de referências riquíssimas vindas de todos os lados e que apontavam para um único lugar: a Palestina real. Não aquela terra demonizada por uns e glorificada por outros, mas a Palestina tal como ela é. A Palestina de verdade existe na memória e na imaginação dos palestinos, e isso não faz dela um sonho ou um delírio. A terra palestina foi desfigurada e agora a pátria existe em pensamento. Isso também não significa negar os horrores da realidade. Isso significa enxergar a Palestina livre despontando no horizonte. “Sofremos de um mal incurável chamado esperança” disse uma vez Mahmoud Darwish, o mais famoso poeta palestino.

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Cantos de Refúgio - 161

Após o estudo e a pesquisa, partimos para o trabalho de campo. Cabe aqui um agradecimento às famílias sírio-palestinas da Ocupação Leila Khaled2, pois esse espetáculo não seria possível sem o recolhimento de histórias orais que realizamos lá. Suas narrativas possibilitaram que nós, grupo de trabalhadores do teatro nascidos e criados no Brasil, chegássemos cada vez mais perto de entender o que é ser palestino. Optamos por mostrar, em cena, uma família palestina duplamente refugiada: da Palestina para a Síria, da Síria para o Brasil. Essa é a história de quase todos que conhecemos lá. Apesar dos tristes relatos que ouvi-mos, nunca tivemos a intenção de construir um espetáculo que pintasse apenas o sofrimento; pelo contrário, nosso objetivo sempre foi investir nas trocas cultu-rais que o refúgio possibilita. Em meio a tragédias humanitárias como a guerra na Síria e o deslocamento forçado de milhões de pessoas, algo de muita riqueza surge: o privilégio que nós temos de conviver com essas pessoas, aprender sobre sua cultura e tentar ver o mundo a partir de seus olhos.

Conhecemos muitos palestinos ao longo desse processo. Muitos deles vivem na Ocupação Leila Khaled, mas nem todos. Muitos deles viviam em si-tuação de refúgio na Síria, mas nem todos. Muitos deles são muçulmanos, mas nem todos. A verdade é que o povo palestino é de todos os jeitos, está em todos os lugares e quer contar a sua história. Basta ter cinco minutos, fazer uma pausa para o chá e ouvir. Foi ouvindo essas pessoas, desde crianças até idosos, que conhecemos a Palestina. Conhecemos a Palestina, muitas vezes, pela boca de palestinos que nunca estiveram lá; parece estranho, mas não é. Três gerações que sentem saudade de uma terra que nunca viram. Querem voltar para o lugar de onde nunca saíram. “O direito de retorno”. Aprendemos logo que esse é um dos valores mais caros para um palestino.

Por fim, conhecemos a Palestina por meio de seus costumes. Comemos suas deliciosas comidas, tomamos o seu café com borra no fundo da xícara, ou-vimos o som do alaúde e até nos arriscamos a tocar derbak3. Aprendemos algo de dabke4 e árabe, mesmo que o aprendizado fosse lento e difícil. Cada novo passo e cada nova palavra eram pequenas vitórias para nós e para nossos pro-fessores. Mohammad, nosso professor de árabe, é um refugiado palestino que chegou da Síria há poucos anos. Hoje ele não é mais nosso professor, mas nosso amigo. Mohammad fez algum milagre que nos possibilitou aprender a escrever e pronunciar o alfabeto árabe em poucas aulas. Uma das primeiras palavras que aprendemos foi Filistin: Palestina. Palavra tão importante para ele e para nós.

Depois de sete meses de processo, o espetáculo Cantos de Refúgio nasceu. Como estreia, circulamos por Escolas Municipais de Ensino Fundamental da cidade de São Paulo apresentando a peça para crianças e jovens de 6 a 14 anos. A

2 Ocupação de moradia no bairro da Liberdade que acolheu dezenas de famílias sírio-palestinas.

3 Instrumento de percussão que se assemelha a um tambor.

4 Dança tradicional da região da Palestina, Síria e Líbano.

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reação do público infantil nos surpreendeu de forma muito positiva: foi impres-sionante ver como as crianças compreenderam a trajetória do refúgio e sentiram empatia pelas personagens que criamos. A maior parte delas nunca tinha ouvido falar sobre esse lugar distante chamado Palestina, nunca tinha ouvido o idioma árabe ou visto uma mulher muçulmana vestindo o hijab5; esse estranhamento inicial serviu como uma provocação para que as crianças pudessem se imaginar no lugar de um refugiado palestino chegando aqui, tendo contato com novos costumes e um idioma tão diferente do dele. Quando escolhemos as escolas onde apresentaríamos a peça, demos prioridade àquelas que possuem alunos imigrantes e filhos de imigrantes – quase todos de ascendência boliviana, mas uma dessas escolas havia acabado de receber uma aluna síria. Para as crianças que convivem com ela, entender mais sobre a sua realidade e sobre as dificulda-des que ela enfrenta aqui é uma possibilidade de transformar o refúgio em uma experiência menos sofrida e mais humana, mais solidária.

Após a circulação nas EMEFs, ficamos dois meses em temporada com a peça na Ocupação Independente Aqualtune. Nossa dramaturgia foi bem fiel às histórias que ouvimos na Ocupação Leila Khaled; portanto, no fim da peça, os refugiados que chegam ao Brasil são acolhidos justamente em uma ocupação de moradia. Fazer a temporada em um prédio ocupado por tantos homens, mu-lheres e crianças engajados em um processo de luta foi inspirador. Eles também se reconheceram no espetáculo, pois entendem melhor do que ninguém que o acolhimento em si já é um ato político6.

Para fechar as apresentações com chave de ouro, fomos convidados pe-las famílias de refugiados que conhecemos para apresentar nossa peça no Dia da Terra, o mais importante feriado palestino. O evento foi no restaurante Al Janiah, no Bixiga, criado e administrado por palestinos. Logo antes da roda de dabke que finalizaria o evento, apresentamos Cantos de Refúgio para as famílias que possibilitaram que essa peça existisse. Demos a elas o retorno que mere-ciam ter. Talvez esse tenha sido o dia mais especial para todos nós. Projetamos legendas em árabe no cenário, pois boa parte dos refugiados ainda não entende o português muito bem. Num pequeno restaurante de comida árabe, no meio de um bairro de tradição afro-italiana, um grupo de brasileiros apresentou uma peça sobre a Palestina para os próprios palestinos. E a Palestina estava ali.

5 Véu usado pela maioria das mulheres que seguem a fé muçulmana.

6 Em agosto de 2017, no aniversário de um ano do nosso processo, recebemos a pré-indicação ao Prê-

mio São Paulo de Teatro Infantil e Jovem na categoria que premia espetáculos com impacto social. Na

descrição de nossa indicação, a justificativa: “(...) por apresentar às crianças da Ocupação Aqualtune,

em Pinheiros, o tema muito atual da crise de refugiados pela guerra na Síria, no espetáculo Cantos de

Refúgio”. Um reconhecimento que representou, para nós, a escolha acertada do tema e do local para

nossa temporada.

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Cantos de Refúgio - 163

Na luta por um mundo mais igualitário, mais justo e mais tolerante, devemos sempre celebrar as nossas diferenças. Foi isso que quisemos fazer com o nosso espetáculo e pretendemos continuar fazendo, levando a cultura pales-tina e as narrativas do refúgio para mais e mais crianças brasileiras. O tamanho do desafio que nos colocamos era grande, mas com a ajuda dos refugiados que contaram a história de suas vidas fomos capazes de construir uma peça poética e sensível. Cantos de Refúgio não poderia ser um espetáculo só de violência e sofrimento porque a Palestina não é isso. Tentaram fazer isso dela, sim. Mas a Palestina é a alegria de uma roda de dabke. É o amor incondicional de uma mãe e um punho erguido contra a injustiça. Não é tão difícil fazer uma criança brasi-leira entender tudo isso. Isso já existe por aqui.

No fim das contas, não somos tão diferentes assim.

Mariana Queiroz

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Cantos de Refúgio - 165

Cantos de refúgio

FichA técnicA

ocupAção AquALtune, 2017

Elenco Daniel Lopes, Diego Henrique, Kleber Palmeira, Mariana Queiroz, Roanne Aragão, Wendy Villalobos

Direção Rafael Presto

Dramaturgia Antonio Herci,Jéssica Paes,Mariana Queiroz

Iluminação Cauê Gouveia, Daniel Lopes,Rafael Presto

Operação de Luz Cauê Gouveia, Rodrigo Oliveira

Direção Musical & Sonoplastia Antonio Herci

Músicas Originais Antonio Herci, Kleber Palmeira,Rafael Presto

Figurinos & Cenografia Daniel Lopes, Diego Henrique,Kleber Palmeira, Rafael Presto

Professor de Árabe Mohammad Hmede

Professor de Dabke Anderson Vaccari

Oficinas de Sombra Daiane Baumgartner

Design & Comunicação Digital Antonio HerciRafael Presto

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166 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

árabes

ghouleh

suara

mona

leila

Jamal

ururubu

hassan

mohammad

ibrahim

sheiK baha

rafeef

servo Caminhoneiro 1Caminhoneiro 2Coro da intifada

brasileiros

grão

guarda

aline

Karina

transeuntes de são paulo

homem sério

perua do Jardins

prefeito gari

homem trágiCo

adolesCente Com moChila

passageiro do ônibus

sr. Catota

paulista Com medo da dengue

moça fazendo Cooper

Casal de velhinhos

ListA de personAGens

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Cantos de Refúgio - 167

Cantos de refúgioAntonio Herci, Jéssica Paes & Mariana Queiroz

1. suara encontra a Ghouleh7

(Ghouleh, Suara)

CAVERNA DA GHOULEH — Ghouleh entra em cena, farejando e rosnando.

GHOULEH — Sinto cheiro de humanos! Quem se atreve a interromper a gran-de Ghouleh?! Você!

Suara entra. Ghouleh avista Suara e fica furiosa. Suara a encara.

SUARA — Salaam aleikum8!

GHOULEH — O quê?

SUARA — Salaam aleikum!

GHOULEH — Wa aleikum as-salaam!9 (mais calma) Ah, se não fosse o seu Sa-laam eu ia te devorar! Mas como você me cumprimentou tão gentilmente, seja bem-vinda! Vem cá, me dê um abraço!

Suara e Ghouleh se abraçam.

GHOULEH — Me diga, minha querida: qual o seu nome e o que você procura por aqui?

SUARA — Me chamo Suara. Eles estão vindo... fomos expulsos de novo das nos-sas casas. Para onde vamos agora? Só nos resta o refúgio. E agora eu tenho uma família com que me preocupar: eu, meu marido, meu sogro e, principalmente, minha filha e o bebê que ela carrega na barriga. Nós estamos indo cada vez mais longe da Palestina... será que vamos ter que deixar tudo para trás?

7 A Ghouleh é uma personagem folclórica da tradição oral árabe.

8 Nota do Tradutor. No original, em árabe: مكيلع مالسلا (“Que a paz esteja com você”).

9 N.T.: مالسلا مكيلعو (“Que a paz esteja com você também”).

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168 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

GHOULEH — Ora, não seja assim tão descrente! Sim, tem a guerra, a memória do sofrimento... mas tem também a memória da terra!

Ao fundo ouve-se, sutil e abafado, o característico som da roda de dabke.

Ghouleh oferece um ramo de oliveira para Suara.

GHOULEH — Pegue este ramo. É para plantar!

SUARA — Mas tá seco... e parece tão fraquinho!

GHOULEH — Mas não deixa de ser um ramo de oliveira! Leve com você e plante quando chegar.

SUARA — Chegar aonde?

GHOULEH — Você saberá. Enquanto a oliveira crescer, vocês estarão protegi-dos. Porém, sua filha não terá um bebê. Sua filha terá... gêmeos!

Em segundo plano, na sombra, aparecem as silhuetas de Leila e Jamal.

GHOULEH — Um menino belo como o dia e uma menina misteriosa como a noite. Invencíveis em astúcia e amados por todos!

SUARA — Gêmeos...

GHOULEH — Agora vá, antes que minha irmã volte! O prato predileto dela é quibe de humanos!

Suara se despede da Ghouleh com uma reverência e sai de cena.

2. travessia do deserto

(Mona, Suara, Coro da Intifada)

DESERTO — Suara encontra Mona e ambas juntam-se ao “Coro da Intifada10”, grupo de homens e mulheres com seus keffiyeh11 cobrindo o rosto e chaves penduradas no pescoço. Iniciam jornada pelo deserto, atravessando a cena.

10 Refere-se às Intifadas, importantes levantes do povo palestino.

11 Popularmente conhecido no Ocidente como “lenço palestino”.

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Cantos de Refúgio - 169

MONA — Chegamos?

O Coro da Intifada sai.

SUARA — É aqui que vamos ficar. Pelo menos por um tempo.

MONA — Mãe, o quê vai ser do futuro dos meus bebês? Crescendo aqui na Síria... e sem pai?

SUARA — Não se preocupe, filha. Eles vão ser o que eles quiserem. Terão uma mãe forte que vai amá-los muito. E eu vou plantar meu ramo de oliveira.

MONA — (para sua barriga) Meus filhos: Leila e Jamal.

Mona canta Canto de Refúgio.

Canto de Refúgio12

Atravessei desertos e montanhasSoldados e refúgiosA guerra e sua fomePra chegar até aquiDois filhos na barrigaQue levam nosso sonhoTambém a nossa sinaNossa terra, Palestina!

Projeção ao fundo da oliveira crescendo. Sai cantarolando. Coro da Intifada entra em cena novamente cantando.

Ao sol da minha terra13

Eu vou cantarao Sol da minha terraà sombra de uma bandeiraque o destino desfolhou

Somos todos palestinosrefugiadosexpulsos do lar

Levantaremos nossas pedras

12 Letra e Música de Rafael Presto, 2016.

13 Letra e Música de Kleber Palmeira, 2016.

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170 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

a vida é uma guerra e nós vamos lutarCarregaremos nossas chavescom a certeza que vamos voltar

Somos todos palestinos refugiadosexpulsos do lar

Eu vou cantarao sol da minha terraà sombra de uma bandeiraque o destino desfolhou

O Coro da Intifada sai de cena.

3. o Pássaro Perdido

Mona, Jamal, Leila, Ururubu.

CAMINHO DO BOSQUE DE OLIVEIRAS

MONA — Leila, Jamal! Cadê esses meninos? Olha a bagunça que eles deixam! Mas sabe de uma coisa? A culpada é minha mãe, que fica contando histórias da Ghouleh para eles. Aí ficam brincando de aventuras e deixam tudo assim! Leila, Jamal! Cadê vocês?

Mona sai. Os ruídos de Leila e Jamal vem de fora da cena. As duas crianças jogam o Jogo dos Países e Passos.

JAMAL — (em off) Estados Unidos!

Jamal entra correndo.

LEILA — (em off) Para! Seis!

Leila entra contando os próprios passos e alcança Jamal.

LEILA — Um, dois, três, quatro, cinco, seis! Te peguei! Meu ponto! Agora sou eu que escolho... França!

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Cantos de Refúgio - 171

JAMAL — Inglaterra!

Jamal desenha um círculo no chão e divide ao meio. Cada um pisa no seu semicírculo.

LEILA — Eu vou falar... Inglaterra!

Leila corre.

JAMAL — Para!

Leila para.

JAMAL — Dez passos!

LEILA — Dez passos? Essa você perdeu feio, Jamal!

JAMAL — Vamos ver!

LEILA — Vamos ver então!

Jamal dá passos cada vez menores para alcançar Leila com dez passos.

JAMAL E LEILA — Um, dois, três, quatrocincoseisseteoitonovedez!

JAMAL — Te peguei! Ponto meu!

LEILA — Ah, Jamal, isso não vale! Você tá roubando!

JAMAL — Tô nada, são dez passos! Passo é passo.

LEILA — Tá bom, tá bom! Fala outro país você.

JAMAL — Hm... Palestina!

Silêncio. Entreolham-se. Olham para o horizonte.

LEILA — Jamal, pra que lado fica a Palestina?

JAMAL — Eu acho que é pra lá. Mas só sei pelas histórias do biso, Leila... não tenho certeza.

Ururubu canta sua canção de lamento em off.

LEILA — Que barulho é esse?

JAMAL — Nossa, parece alguém com dor de barriga.

LEILA — Não, não... parece um bicho!

JAMAL — E se for um monstro, Leila?

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172 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

LEILA — Melhor ainda, Jamal!

Ururubu continua cantando sua canção. Leila e Jamal abrem a cortina, revelando o pássaro preso no arame farpado. Aproximam-se de Ururubu. Jamal pega uma vareta e o cutuca.

URURUBU — Ai! O que é isso? Será que é a Morte que enfim veio me buscar?

Leila e Jamal começam a rir.Jamal cutuca de novo.

URURUBU — Ai! Morte, eu me entrego! Pare de me cutucar e me leve logo!

Leila e Jamal se revelam pelas risadas.

URURUBU — Ei! Quem são vocês?

LEILA — Leila.

JAMAL — Eu sou o Jamal.

URURUBU — Ora, eu já sabia disso! Eu sou um pássaro mágico! Só estava conferindo.

LEILA — Pássaro mágico? Você não é um urubu?

URURUBU — Ururubu!

JAMAL — Urubu!

URURUBU — U-ru-ru-bu! Meu nome! “Uru” de mamãe, “rubu” de papai.

LEILA — E você quer ajuda para se soltar do arame farpado?

URURUBU — Eu não estou preso. Estou apenas descansando nos braços desta serpente de ferro.

LEILA — Serpente não tem braço!

URURUBU — Essa tem! Ela é mágica.

JAMAL — Não tem nada de mágico nisso, é arame farpado! Não consigo enten-der porque, mas cada vez tem mais por aqui.

LEILA — Você quer nossa ajuda ou não?

URURUBU — Não.

JAMAL — Então vamos embora, Leila. Deixa esse urubobo aí!

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Cantos de Refúgio - 173

URURUBU — Não! Esperem! Não me oponho que me ajudem... só um pou-quinho!

Leila e Jamal soltam Ururubu, que se esborracha no chão. Fica inerte.

JAMAL — Ele morreu?

LEILA — Não sei!

Cutucam Ururubu, que levanta num salto. Leila e Jamal se assustam.

URURUBU — Ah! Estou vivo! Vivinho! E livre!

Começa a circular e entoar seu canto.

LEILA — Urubu...

Ururubu continua sua canção.

LEILA — Urubu!

LEILA E JAMAL — Urubu!!!

URURUBU — É U-ru-ru-bu!

LEILA — Como é que você veio parar aqui?

URURUBU — Ah, a minha história é longa e triste... eu venho de uma terra muito bonita, cheia de oliveiras, onde eu vivia com minha família de pássaros mágicos.

Ururubu olha assustado para o horizonte.

URURUBU — Até que veio a guerra. As bombas, os tiros! Quando vi, me perdi de minha família! Estava sozinho no deserto. Então fui atacado por elefantes de aço com suas trombas em riste, atirando bolas em brasa! Fogo pelo chão. E os homens marchando, marchando, marchando... então eu voei, voei, voei! Até cair nos braços dessa serpente de ferro.

Leila e Jamal olham desconfiados.

URURUBU — Mentira! Eu me enrosquei no arame, mesmo! Mas fui salvo por vocês, criaturas fantásticas! (faz uma solene saudação) E nós, pássaros mági-cos, além de belos, perfumados e modestos, somos também muito agradecidos! Portanto, sempre que precisarem de mim, é só chamar que virei o mais rápido que puder! Com meu maravilhoso canto (entoa uma breve melodia) E minha ilu-minada presença!

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174 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

JAMAL — E pra que serve sua presença?

URURUBU — Ora, meu rapaz, nem comecei a falar dos três desejos...

JAMAL — Três desejos?!

LEILA — Você pode conceder desejos?!

URURUBU — Já escolheram seus pedidos?

LEILA e Jamal conversam animados entre si, decidindo quais serão seus pedi-dos.

URURUBU — Mentira! Não tem desejo nenhum! Eu não sou um gênio! Mas vocês podem contar com o meu maravilhoso canto e a minha...

JAMAL E LEILA — Iluminada presença!

URURUBU — Vocês também são mágicos?

JAMAL — (arremedando) Sim, eu sou de uma família de pássaros mágicos...

Leila e Jamal saem de cena.

URURUBU — Ora, meu rapaz! Não zombe de uma dinastia de urururururu-ru...

Ururubu sai de cena atrás deles.TRANSIÇÃO: projeção de dias e noites em velocidade acelerada no deserto da Síria, indicando a passagem do tempo.

4. desPedida no Bosque

(Mona, Suara, Leila, Jamal, Hassan, Mohammad)

BOSQUE DE OLIVEIRAS — Suara colhe azeitonas na sombra. Mona entra em cena.

MONA — Vem, filha!

Leila adolescente entra, usando o hijab cobrindo os cabelos. Mona começa a separar as azeitonas com uma peneira enquanto Leila colhe os frutos que caíram no chão.

SUARA — (olhando para o que colheu) Só isso de azeitonas?

MONA — Já vendemos quase todo o azeite e mal temos como comprar pão.

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Cantos de Refúgio - 175

LEILA — O que eu posso fazer para ajudar?

SUARA — Você pode terminar seus estudos, Leila.

LEILA — Eu sei, vó, mas isso demora. Nós precisamos de dinheiro agora!

SUARA — E você precisa pensar no seu futuro!

MONA — Hm... você pode casar com o Quays! Boa família, bom partido... bom dote!

LEILA — O Quays? Filho do Abu-Quays?! Ah não, mãe, ele não!

MONA — A família dele tem dinheiro, pode nos ajudar.

SUARA — O cara-de-bunda? Nem você aguenta ele, Mona.

LEILA — Casa você com ele, mãe!

MONA — Eu estou falando sério!

LEILA E SUARA — Nós também!

LEILA — Eu não quero me casar agora.

MONA — Filha, ninguém quer te obrigar a nada. Mas nós temos que considerar todas as opções!

Leila sai de cena arremedando a mãe.

LEILA — (em off) Mãe, hallas mabdi14! Não quero, já disse que não quero.

Mona e Suara saem.Jamal adolescente entra com um cesto grande com garrafas. Hassan, na sombra, envasa o azeite e passa garrafas para Mohammad. Mohammad rotula as garrafas e passa para Jamal, que as limpa e arruma no cesto.

JAMAL — Vô, quantos litros de azeite têm ainda?

HASSAN — Três litros apenas.

MOHAMMAD — Quê? Seis litros apenas? Que mixaria!

JAMAL — Três! Têm três litros só, biso.

HASSAN — Podemos ir até a feira mais distante e vender mais caro.

14 N.T.: يدب ام صلخ (“Não quero”).

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176 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

JAMAL — Mas a gente gasta dinheiro com a passagem, vô. Vai dar na mesma!

HASSAN — Colocamos em garrafas bem bonitas!

MOHAMMAD — Fritas? Como assim fritas? Vai fritar a azeitona agora?!

JAMAL — Garrafas bonitas, biso!

MOHAMMAD — Ah... ô menino, não tem dinheiro pra isso também. Eu vou ter que procurar emprego em outro lugar. Vou trabalhar no Kuwait e mando dinheiro pra vocês.

HASSAN — Pai, o senhor não vai aguentar a viagem, já está muito velho para isso. Eu vou.

JAMAL — Você também já passou da idade de ir pro Kuwait, vô. Deixa que eu vou!

MOHAMMAD — Vocês tão surdos? Vocês ficam aqui, sou eu que vou pro Kuwait!

Burburinho de discussão. Hassan interrompe.

HASSAN — Ninguém vai pro Kuwait! É muito perigoso. Tem que atravessar o deserto sozinho, depois passar pela fronteira escondido... Kuwait, não. Precisa-mos de um lugar mais seguro.

JAMAL E MOHAMMAD — Mas qual?

Hassan tira o celular do bolso e começa a digitar.

HASSAN — É só pesquisar. Precisamos de um lugar que aceite refugiados pales-tinos, não tenha guerra... achei! Brasil.

MOHAMMAD — O quê? Noruega?

JAMAL — Brasil!

MOHAMMAD — E onde fica isso, menino?

JAMAL — Fica... não faço a menor ideia.

Os três olham na tela do celular.

MOHAMMAD — Mas é tão longe! Que língua eles falam lá? Brasilês?

HASSAN — Não, é português.

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Cantos de Refúgio - 177

JAMAL — E com o nosso dinheiro dá pra chegar até o Brasil?

Hassan e Mohammad confabulam e fazem as contas.

HASSAN E MOHAMMAD — Um!

MOHAMMAD — Um só: com o nosso dinheiro, dá pra ir um só.

TODOS — Eu vou!

MOHAMMAD — Um só!

TODOS — Eu vou!

HASSAN — Calma, vamos resolver isso com calma.

Pausa.

TODOS — (aos gritos) Eu vou!

JAMAL — Deixa que eu vou! Eu sou mais jovem, vou aprender a língua mais rápido, posso trabalhar mais tempo... além disso, o biso está quase surdo.

MOHAMMAD — Quem é sortudo?

HASSAN — Jamal, você tem certeza que quer fazer isso? Eu posso ir no seu lugar!

JAMAL — Tenho, vô. O senhor já fez muito pela família, é a minha vez de aju-dar. (para Mohammad) Eu que sou sortudo, biso! Eu sou muito sortudo. Eu vou para o Brasil.

As mulheres entram em cena. Homens e mulheres se entreolham. Um a um abraçam Jamal, se despedindo.

HASSAN — (abraçando Jamal) Tenho muito orgulho de você, meu neto. Tome cuidado.

MONA — (abraçando Jamal) Boa viagem, meu filho! Não deixe ninguém passar a perna em você.

JAMAL — (para Mohammad) Eu vou sentir saudades, biso!

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178 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

MOHAMMAD — (abraçando Jamal) Jamal, nunca se esqueça das suas raízes, viu? Nunca se esqueça que você é palestino!

Leila e Jamal se olham com tristeza e se abraçam por um longo tempo, em silêncio. Suara se aproxima com um ramo de oliveira em mãos.

SUARA — Jamal, olha o que eu encontrei! É sinal de boa sorte.

Suara entrega o ramo a Jamal, que o oferece para Leila.

JAMAL — Leila, hoje você conduz o dabke?

Ele segura a mão de Leila e faz um gesto com o ramo. Leila conduz a roda de dabke, segurando o ramo. Antes de sair, Leila dá um último abraço em Jamal. Todos saem e Jamal fica só.

5. cheGada ao Brasil

(Jamal, Grão, Pessoas)

PRAÇA MOVIMENTADA — TRANSIÇÃO: Jamal vira de costas, imitando a posição de Handala15. A cidade de São Paulo surge em projeção e sombra. Transeuntes passam.Homem Sério passa falando ao telefone, cada vez mais irritado. Perua do Jardins passa. Prefeito Gari passa, varrendo o chão e fazendo pose para fotos. Homem Trágico passa, desolado.A Adolescente com Mochila passa mascando um chiclete. Passageiro do Ônibus passa ouvindo música no seu fone de ouvido. Jamal entra e tenta se comunicar com os transeuntes, mas em vão. Jamal é o único que fala em português e é entendido pelo público. Todos os demais, durante toda a cena, falam em blablação/gromelô.

15 Personagem criado por Naji Al-Ali, cartunista e chargista palestino. Handala se tornou um símbolo de

resistência do povo palestino e de denúncia das injustiças cometidas contra ele.

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Cantos de Refúgio - 179

JAMAL — Por favor, meu nome é Jamal, acabei de chegar no Brasil! Você pode me ajudar? Por favor, eu não falo português! Eu sou árabe! Preciso de um trabalho, uma casa! Pode me levar até o consulado?

Sr. Catota passa. Paulista com Medo da Dengue passa com sua raquete elétrica de matar mosquitos. Guarda passa em sua ronda. Aproxima-se de Jamal de forma ameaçadora. Jamal se cala e fica em um canto, observando a movimentação da cidade.Grão entra, vendendo água. Moça Fazendo Cooper passa, compra uma água de Grão e sai. Casal de Velhinhos entra, tira uma selfie com Jamal e sai.Guarda retorna, em sua ronda. Grão entra imitando gestos da Guarda, atrás dela, de forma zombeteira. Guarda percebe, Grão foge. Guarda corre atrás de Grão.Ônibus lotado passa. Jamal faz sinal e o ônibus para.

Jamal embarca e o ônibus sai de cena.

6. jantar eM faMília

(Hassan, Leila, Mona, Mohammad, Suara)

Entram Suara e Hassan.CASA DA FAMÍLIA — Suara e Hassan arrumam as coisas para o chá.

HASSAN — (carregando mesa, xícaras e bule) Ai, tá pesado.

SUARA — Coloca aqui. Ah, não! Melhor aqui. Quer saber? Melhor ali mesmo. É mais arejado!

Hassan se irrita e coloca a mesa onde Suara indicou.Mona e Mohammad entram falando alto.

MOHAMMAD — Ya latif16, Ya latif...

MONA — Já falei, biso... você não pode ficar provocando os soldados! Vai arru-mar encrenca!

MOHAMMAD — São eles que me provocam, andando pra cima e pra baixo com aquelas armas!

16 N.T.: فيطل اي (“Oh, meu Deus”).

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180 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

HASSAN — Pai? O senhor está bem? Toma um pouco de chá.

SUARA — (chamando) Leila, vem tomar chá!

MONA — Põe um pouco de açúcar, biso!

Começa a encher a xícara de Mohammad de açúcar. Leila entra em cena.

LEILA — Mãe, que é isso? Você vai matar o biso assim! A diabete dele tá lá em cima, lembra?

MONA — É pra adoçar um pouquinho a vida, minha filha...

Pausa.

HASSAN — (estendendo a sua xícara) Pois eu quero bastante açúcar!

SUARA — (estendendo a sua xícara) Eu também!

LEILA — Ah! Tá bom. Mas pro biso é só um pouquinho, hein?

Mona e Suara servem o chá nas xícaras. Leila ajuda. Biso começa a preparar o narguilé.

MONA — Havia um grupo de soldados em frente à mesquita.

MOHAMMAD — Em frente à mesquita!

MONA — E o biso disse para eles que a guerra era sem sentido!

MOHAMMAD — Eles não respeitam mais nada, mesmo!

HASSAN — Ora, pai! Você não pode falar assim com os soldados! É perigoso.

SUARA — Deixa ele! Ele está dizendo o que pensa.

MONA — Mas assim ele coloca todo mundo em risco!

SUARA — Filha, é tempo de mais uma guerra. Precisamos ter calma e cuidar uns dos outros. Além disso... precisamos conversar.

LEILA — Por que? Aconteceu alguma coisa?

HASSAN — (dando a mão para Suara) Sua vó e eu decidimos... quer dizer, pensa-mos! Pensamos que é melhor ir embora. Agora.

Todos ficam em silêncio. Mona coloca mais uma colher de açúcar na xícara de todos.

MOHAMMAD — Que é que tem lá fora?

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Cantos de Refúgio - 181

MONA — Embora, vô! A mãe quer que a gente vá embora!

MOHAMMAD — De novo?

SUARA — É uma questão de sobrevivência.

LEILA — Logo você, vó?

SUARA — “Logo eu”? Eu faria tudo para proteger a minha família! Ontem, no mercado...

HASSAN — No que sobrou do mercado!

SUARA — ... não se falava em outra coisa: eles têm até mísseis! É a guerra, que chegou mais uma vez até nós. Precisamos ir embora.

MOHAMMAD — E mais uma vez vamos deixar tudo pra trás?

HASSAN — Eu já vi muita destruição. Estou velho para ver tudo de novo.

MOHAMMAD — Ah, é? Pois eu estou velho para sair por aí de novo. Eu quero ficar!

LEILA — Eu quero ficar também! Junto com o biso.

MONA — Vocês são dois teimosos. Não tem porque ficar aqui. Essa guerra não tem nada a ver com a nossa família!

LEILA — Bas17, bas! Vocês só sabem falar de guerra? Não era hoje que o Jamal ia mandar mensagem lá do Brasil?

HASSAN — (tirando o celular do bolso) Ele mandou!

LEILA — Tô falando... yalla18, mãe! Yalla, vó! Quero saber do meu irmão.

A família se reúne em volta do celular. Nada acontece.

LEILA — Tem que desbloquear a tela, vô.

Leila desliza o dedo sobre a tela. Jamal aparece no fundo da cena.

JAMAL — Salaam aleikum, família!

TODOS — Wa aleikum as-salaam!

17 N.T.: سب (“Chega”).

18 N.T.: الي (“Vamos”).

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182 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

JAMAL — Eu só queria avisar que cheguei aqui no Brasil e que eu estou... bem. Estou bem. Estou aqui em São Paulo. A cidade é muito grande! Tem muita gen-te, muito carro, muito prédio. O biso ia ficar perdido! Eu me sinto um pouco sozinho aqui. Estou com muita saudade de vocês. Depois mando mais notícias. Leila, mãe, vó, vô, biso! Ahebcom19!

MONA — Jamal não fala onde está morando, se conseguiu emprego... desse jeito vai me matar de preocupação!

Mona levanta e coloca uma colher de açúcar a mais em sua xícara. Leila e Mohammad se entreolham.

MOHAMMAD — Está bem. Vocês são a única coisa que eu tenho. Se é o que vocês querem, então, vamos embora.

LEILA — Bem, se o biso acha melhor ir embora... então, vamos. Não dá pra separar a família.

Todos olham para Leila e Mohammad e sorriem. Suara e Hassan dão as mãos. Barulho de bomba caindo e clarão. Coreografia em câmera lenta. Blecaute.

7. tudo destruído

(Ghouleh, Leila, Ururubu)

BOSQUE DE OLIVEIRAS DESTRUÍDO — Leila entra sozinha no bosque de oliveiras destruído. Faz uma reza muçulmana de luto. Vê a última oliveira queimando na sombra e chora caída no chão.Ururubu entra em cena.

URURUBU — Leila, é muita destruição... até para mim, que vivo de carniça!

LEILA — Não sobrou nada, Ururubu! Nada! A oliveira que minha avó plantou ficava aqui. O vô e o biso faziam azeite ali e as garrafas ficavam aqui... ou será que era ali? Não sei, não sobrou nada! Nada!

URURUBU — Leila, sua família agora dança no céu.

LEILA — (olha para o céu) Mas quando eu olho para o céu eu só vejo bombas, Ururubu! Bombas... e explosões.

Ururubu vê algo no chão.

19 N.T.: مكبحا (“Amo vocês”).

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Cantos de Refúgio - 183

URURUBU — Leila, o que é isso?

Ururubu pega um molho de chaves.

LEILA — São as chaves do biso!

URURUBU — As chaves da Palestina?

Leila faz que sim com a cabeça.

URURUBU — Pra que guardar as chaves de uma casa destruída?

LEILA — (colocando o molho de chaves no pescoço)

Pra que a gente não se esqueça de voltar.

Ghouleh entra rosnando e Ururubu se esconde atrás de Leila.

LEILA — O que é isso?

URURUBU — Eu acho que é uma Ghouleh!

Ghouleh fareja até encontrar Leila.

GHOULEH — Sinto cheiro de humanos... quem se atreve a interromper a grande Ghouleh? Você!

LEILA — Salaam aleikum!

GHOULEH — O quê?

LEILA — Salaam aleikum!

GHOULEH — Wa aleikum as-salaam! Suara, minha filha, é você?

LEILA — Não. Suara é minha avó... era minha avó.

GHOULEH — Você parece ser corajosa e decidida como ela. Quando conheci sua avó, ela também fugia da guerra.

Ghouleh fareja a oliveira que queima.

GHOULEH — Foi uma bela oliveira, deu muitos frutos. Pegue um ramo!

Leila apanha um ramo.

LEILA — Pra que plantar? Para vir outra bomba e destruir tudo de novo?

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184 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

GHOULEH — Nós plantamos para não perder as nossas raízes. Agora você tem tudo: a oliveira para lembrar de onde veio e a chave para não esquecer de voltar! Você é mais forte do que você pensa, Leila! (para Ururubu) Pássaro!

URURUBU — (amedrontado) Ai! Eu?

GHOULEH — Ajude Leila em sua jornada.

URURUBU — Ai... tá bom!

Ururubu dá a mão para Leila.

URURUBU — Vamos, Leila?

LEILA — Shukran20.

GHOULEH — Afuan21! Boa sorte!

Leila e Ururubu saem de cena.

8. rei da áGua

(Guarda, Grão, Jamal)

PRAÇA — Jamal começa a vender água.

JAMAL — Água! Dois reais! Água gelada! Dois reais! Gelada! Água do Jamal!

GRÃO — Olha só, esse arabiano tá falando o português mó bem, né não?

JAMAL — Água, dois reais! Gelada!

GRÃO — Aprendeu rápido!

JAMAL — Gelada! Dois reais!

GRÃO — Se liga na performance!

Jamal faz um passo de dabke.

JAMAL — Água do Jamal! Gelada!

GRÃO — Desse jeito vai ganhar o Prêmio Camelô do Ano! E aí, parça? Chega aí!

Jamal se aproxima aos poucos.

20 N.T.: اركش (“Obrigado/a”).

21 N.T.: اوفع (“De nada”).

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Cantos de Refúgio - 185

JAMAL — Dois reais! Bem gelada! Água do Jamal.

Grão dá um tapa e derruba a garrafinha de água no chão. Jamal pega a água e pacientemente volta a anunciar seu produto.

JAMAL — Á...

Novamente Grão derruba a água no chão. Novamente Jamal pega a garrafa.

JAMAL — Á...

Mais um tapa.

Jamal e Grão tentam pegar a garrafa ao mesmo tempo. Grão pega água e dá para Jamal.

JAMAL — Á...

Novamente Grão dá um tapa.

GRÃO — (em tom agressivo) Você tá achando o quê, mano? Aqui não é assim não, chegar e ir vendendo água...

JAMAL — Você vende! Eu vende!

GRÃO — Eu vendo! Eu! Mas porque aqui é o meu território!

JAMAL — Território?

GRÃO — Ter-ri-tó-ri-o! Esse espaço, essa área, esse lugar aqui é todo meu, desde sempre.

(rimado) E você é vacilão, jão! Eu sou o Grão, o Rei da Água! Ninguém vende água por aqui não, não sem a minha autorização e pagamento de taxa, meu irmão!

JAMAL — Taxa... do irmão? O que?

GRÃO — Dinheiro! English? Money, money. Do seu bolso para o meu. Taxa!

JAMAL — Lá22, lá, lá.

GRÃO — Lá aonde, parça? Aqui mesmo!

22 N.T.: ال (“Não”).

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186 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

JAMAL — Não tem money, não tem taxa. Eu trabalha, paga taxa? Eu não paga taxa! Eu trabalha, vende água, precisa vende água. Precisa money.

A Guarda entra em cena.

GRÃO — (vendo a guarda entrando) Quer saber, quer vender sua água? Vende sua água então! Vai, grita bem alto! Vacilão!

Grão sai.

JAMAL — Água! Água gelada! Dois reais! Água do Jamal!

A Guarda aborda Jamal.

GUARDA — Opa, opa, opa! Contraventor na área vendendo água! Escuta aqui, você tem licença pra vender água aqui?

JAMAL — (dando passagem) Licença.

GUARDA — Tá tirando sarro da minha cara? Era o que eu imaginava. Você é um contraventor!

JAMAL — Contra...

GUARDA — Ventor! Você é um contraventor! E eu sou a fiscal que vai apreen-der sua mercadoria!

A Guarda pega a garrafa da mão de Jamal.

JAMAL — Água do Jamal!

GUARDA — Não... água da fiscal!

A Guarda toma um gole da garrafa.

JAMAL — (resmungando) Ah! Água da fiscal, rei da água, território, taxa...

GUARDA — Pera aí. Rei da Água, o Grão? Você sabe onde ele tá?

Grão aparece de um lado do palco. Faz gestos para que Jamal não o entregue. Jamal percebe sua presença.

JAMAL — Rei, Rei da Água. Ele aqui sim.

GUARDA — (ameaçando Jamal com o cassetete) Escuta aqui, é bom me dizer onde ele está, senão vai em cana junto com ele!

JAMAL — Rei da Água?

GUARDA — Cadê o Grão?

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Cantos de Refúgio - 187

JAMAL — Rei da Água... ali!

Aponta na direção oposta de onde se encontra Grão.

GUARDA — Hoje eu pego ele!

JAMAL — Pega ele! Bandido!

A Guarda sai em perseguição. Grão entra pelo outro lado.

GRÃO — Aí, malandragem! Cê podia ter me caguetado, me dedurado, mas não... cê ficou na suavidade, na tranquilidade, na maloqueragem, não é não, parceragem?

Pode pá! Se quiser vender água aqui pode vender. O Grão, que sou eu, no caso o Rei da Água, que sou eu também, liberou pra você. Pode pá.

Pega a garrafa de água e oferece para Jamal. Jamal joga a garrafa no chão com um tapa.

JAMAL — Rei da Água... Você rei de nada!

GRÃO — Que rei de nada o quê! Tirando a fiscal, o guardinha do metrô, a tia da feira e a minha mãe eu sou o cara, jão!

Jamal pega a garrafa no chão.

JAMAL — Eu palestino, aqui Brasil. Sem falar língua, sem casa, sem amigos, sem família. Vir da Síria sozinho. Eu não casa, não dinheiro... eu vende água.

GRÃO — Ô brother, cê tá sem casa? Vem cá, deixa eu te explicar uma coisa. Às vezes, pessoas que não tem casa...

JAMAL — Você não casa?

GRÃO — Se liga... presta atenção. Pessoas que não tem casa se reúnem com outras pessoas que não tem casa pra ocupar um lugar abandonado que não tem gente dentro. O nome disso é ocupação.

JAMAL — Ocubassan?

GRÃO — O-cu-pa-ção!

JAMAL — Ocubassan.

GRÃO — Quase isso! E aí, mano? Vamo lá na ocupação, lá não tem frescura não, e cê não vai dormir no chão...

A Guarda entra e encara os dois.

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188 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

GRÃO — Pernas pra que te quero! Corre, Jamal!

Grão e Jamal saem de cena correndo. A Guarda corre atrás.

9. caMinhão (Caminhoneiro 1, Caminhoneiro 2, Ibrahim, Leila, Ururubu)

FILA DE CAMINHÕES — Leila e Ururubu entram.

URURUBU — Leila! Tenho uma ideia! Por que não vamos para o Brasil voan-do?

LEILA — Voando, Ururubu? Que ideia mais descabida. Olha, é o seguinte: a gente vai pedir carona na fronteira. Deixa que eu falo com os motoristas, hein? Senão você estraga tudo. Vamos logo, a gente tem pressa!

A fila de caminhões se forma na sombra. Aproximam-se do primeiro caminhão.

LEILA — Senhor? Salaam aleikum.

CAMINHONEIRO 1 — Wa aleikum as-salaam.

LEILA — Essa fila é para atravessar a fronteira?

CAMINHONEIRO 1 — É, sim.

LEILA — Será que o senhor poderia nos dar uma carona?

CAMINHONEIRO 1 — Até onde eu sei você pode ser uma terrorista! Ou uma ladra de caminhões! Porque eu te deixaria entrar?

LEILA — Senhor, sou só uma jovem fugindo da guerra e acompanhada de um urubu. Pareço tão perigosa?

CAMINHONEIRO 1 — Parece, sim! Se os guardas do posto de controle revis-tam o caminhão e encontram vocês, estou perdido! Poderiam apreender minhas mercadorias! Imaginem só! Seria o meu fim!

Leila e Ururubu se olham, indignados. Afastam-se. Aproximam-se do segundo caminhão.

LEILA — Senhor? Salaam aleikum.

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Cantos de Refúgio - 189

CAMINHONEIRO 2 — Wa aleikum as-salaam.

LEILA — Será que o senhor poderia nos dar uma carona?

CAMINHONEIRO 2 — Claro, pode entrar.

Leila e Ururubu se olham, surpresos.

LEILA — Jura?

CAMINHONEIRO 2 — Juro! Essa guerra não é fácil, não é mesmo? Além disso, eu sou um homem muito altruísta e generoso.

URURUBU — E modesto!

Leila repreende Ururubu com o olhar.

CAMINHONEIRO 2 — Esse bicho fala? Isso é coisa de feitiço, bruxaria! Não vai entrar no meu caminhão! Alá que me proteja...

LEILA — Eu não falei pra você ficar quieto? Não abre mais o bico, Ururubu.

Leila e Ururubu se afastam do segundo caminhão e se aproximam de Ibrahim, motorista do terceiro caminhão.

LEILA — Senhor? Salaam aleikum.

IBRAHIM — Hã? Wa aleikum as-salaam.

LEILA — Será que o senhor poderia nos dar uma carona?

IBRAHIM — E você tem algum dinheiro? Eu preciso de ajuda para a gasolina.

LEILA — Não... não tenho.

IBRAHIM — De onde você vem?

LEILA — Eu venho da guerra, senhor. Sou palestina!

IBRAHIM — Palestina? Ora, eu também sou palestino. Saí de lá há muito tem-po. Você me lembra a minha filha... eu não a vejo desde o bombardeio.

Pausa. Leila e Ururubu se olham, emocionados.

LEILA — A gente pode subir?

IBRAHIM — Olha, eu não deveria fazer isso. É muito arriscado, os guardas estão sempre revistando os veículos... mas nós palestinos precisamos nos ajudar, não é mesmo? Podem subir!

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190 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

LEILA E URURUBU — Alhamdulillah23!

LEILA — Obrigada! O senhor é muito gentil!

Leila e Ururubu embarcam.

IBRAHIM — Esse pássaro vem junto o caminho inteiro?

LEILA — Sim, ele é meu amigo! Ururubu, se apresenta.

URURUBU — Ururubu, pássaro mágico palestino, à sua disposição!

IBRAHIM — Um pássaro mágico! E você pode conceder desejos?

URURUBU — Hum... é claro!

O caminhão circula e para.

IBRAHIM — Chegamos. Aqui vocês precisam descer.

Leila e Ururubu desembarcam.

IBRAHIM — Logo à frente está o posto de controle mais rigoroso da região. Não vão nos deixar atravessar juntos. Vocês precisam atravessar o deserto andando e eu encontro vocês do outro lado.

O caminhão de Ibrahim sai na sombra.

URURUBU — Ele não devia nos deixar aqui no meio no deserto... não aguento mais minhas pernas!

LEILA — Ururubu, eu estou com fome, com sede... estamos no meio do nada. Você está vendo alguma coisa?

Leila e Ururubu olham para o horizonte.

URURUBU — Sim, estou vendo sim!

LEILA — O quê? Uma cidade? Um comércio?

URURUBU — Não! Uma tempestade de areia!

LEILA — Uma tempestade de areia?! Ururubu, isso não é uma coisa boa! Ah, está chegando aqui!

URURUBU — Leila!

LEILA — Não se perde de mim, Ururubu! Fica aqui perto.

23 N.T.: هلل دمحلا (“Graças a Deus”).

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Cantos de Refúgio - 191

URURUBU — Leila! Cadê você?

LEILA — Ai! Entrou areia no meu olho! Ururubu, onde você está? Ururubu?

Ururubu sai de cena. Movimentação das cortinas. Leila se desorienta e cai no meio do deserto.TRANSIÇÃO: servos do Sheik Baha movimentam as cortinas e transformam o deserto num luxuoso castelo. Dois servos fazem uma reverência à frente do palco. Leila permanece desacordada no centro.

10. sheik Baha

(Ibrahim, Leila, Sheik Baha, Ururubu)

CASTELO DO SHEIK BAHA — Leila desperta. Sheik Baha entra em cena e se aproxima. Carrega uma lâmpada mágica.

SHEIK BAHA — O que faz uma garota como você sozinha no deserto?

Leila olha desconfiada.

SHEIK BAHA — Onde está sua família?

LEILA — Eu não tenho mais família.

A única coisa que sobrou deles foi esse ramo seco... (mostra o ramo de oliveira) Acho que nem brota mais!

SHEIK BAHA — Eu sou um especialista em oliveiras, sabia? (esfrega a sua lâmpa-da mágica) Deixe-me ver!

Leila entrega o ramo, enfeitiçada. Sheik Baha observa e fareja o ramo de forma animalesca.

SHEIK BAHA — Não, não... se bem cuidado, pode brotar. Posso?

LEILA — (aliviada) Pode sim!

SHEIK BAHA — Rafeef?

Rafeef, a serva, se aproxima. Sheik Baha entrega o ramo a ela. Rafeef sai.Sheik Baha esfrega novamente sua lâmpada. Fumaça e perfume invadem o palco. Leila tosse.

SHEIK BAHA — De onde você vem?

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192 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

LEILA — Venho da Palestina.

SHEIK BAHA — Da Palestina? E você viu a Palestina com seus próprios olhos?

LEILA — Não, mas minha família veio de lá. Minha avó e meu biso me conta-ram. Minha avó trouxe algo de lá... algo importante.

SHEIK BAHA — (esfregando sua lâmpada) O quê?

LEILA — (confusa) Uma... árvore, eu acho. Não consigo lembrar o nome, mas é uma que dá frutinhas pequenas e verdinhas, sabe?

Minha avó atravessou o deserto para plantar!

SHEIK BAHA — Sua avó carregou uma árvore pelo deserto? Que estranho... será que foi isso mesmo?

LEILA — Não sei... eu estou um pouco confusa.

SHEIK BAHA — Talvez ela não tenha trazido uma árvore. Talvez ela tenha tra-zido um anel!

(tira do próprio dedo um anel) De esmeraldas pequenas e verdinhas, como este da-qui. E talvez ela tenha te dado.

Sheik Baha coloca o anel no dedo de Leila.

LEILA — Talvez... mas por que?

SHEIK BAHA — Talvez não tenha sido sua avó. Talvez você tenha encontrado esse anel no deserto.

LEILA — É, talvez. O que eu estava fazendo no deserto?

SHEIK BAHA — Sua família te abandonou no deserto? Que ingratos!

LEILA — Minha família? Eles me abandonaram... que maldade! Por que eles fizeram isso comigo?

SHEIK BAHA — Eles não te amam. Não quiseram te proteger. Pobre Leila, sozi-nha nesse mundo! Por sorte, eu estava lá. Eu vi quando você desmaiou no meio das bombas, te segurei nos meus braços e fugi com você da guerra! Eu te protegi, Leila. Enfrentei os monstros, os tanques, as Ghoulehs, os tiros!

LEILA — Oh! Meu herói!

SHEIK BAHA — Depois disso, eu construí este palácio para você... minha noi-va.

LEILA — Espera... eu sou sua noiva?

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Cantos de Refúgio - 193

SHEIK BAHA — Não é? A minha noiva leva no dedo um anel de esmeraldas pequenas e verdinhas.

Leila olha para suas mãos.

LEILA — Olha, é um anel como esse?

SHEIK BAHA — Esse mesmo! Habibti2 4 , querida, não se lembra de quando eu te dei esse anel? Foi quando seu pai autorizou o nosso casamento!

LEILA — Meu pai... desculpe, eu não consigo me lembrar!

SHEIK BAHA — Ah, minha cabecinha de vento. (beija-lhe a testa) Não se preo-cupe. Sempre que você esquecer, eu te ajudo a lembrar.

Sheik Baha esfrega a lâmpada mais uma vez.

LEILA — Às vezes fica difícil, sabe? A memória carrega muita dor.

SHEIK BAHA — Eu sei, mas não se preocupe. Aqui você estará protegida. Eu vou cuidar de você. Antes, vamos fazer os preparativos para o nosso casamento, habibti?

LEILA — Sim, será uma festa maravilhosa!

Sheik Baha segura Leila pela cintura e saem.

11. o resGate de jaMal

(Guarda, Grão, Jamal, Aline)

DELEGACIA — Jamal está atrás das grades de uma cela.

JAMAL — Injusto! Eu árabe, não ladrão! Injusto!

Grão aparece no canto da cena.

JAMAL — Grão! Amigo! Você soltar Jamal? Ajuda!

GRÃO — Opa, ajudo sim, mano. Ajudo sim! Mas vai ter que ser daqui a pouco, porque agora eu tô ocupado sendo preso também...

Entra em cena algemado, conduzido pela Guarda até a mesma cela.

24 N.T.: يتبيبح (“Querida”).

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194 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

GUARDA — Silêncio aí, delinquência! Que eu vou jogar meu joguinho.

Guarda pega o celular e se afasta. Dá risada enquanto clica freneticamente na tela.

JAMAL — (cochichando) Grão, como sair?

GRÃO — (cochichando) Relaxa, mano. Isso acontece o tempo todo.

Entra Aline, olhando para Grão com cara de reprovação. Eles se abraçam através das grades. Aline chama a atenção da Guarda.

ALINE — Escuta aqui, isso é um absurdo! É perseguição! Quem foi que prendeu o meu cliente? E... (examina os papéis na sua mão) Jamal também?

GUARDA — A senhora não pode entrar aqui sem autorização. E também não pode chegar gritando desse jeito, sua barraqueira mal-educada!

ALINE — Doutora Barraqueira, faz o favor! E vim tirar meus clientes daqui. Eu quero saber por que eles foram presos?

GUARDA — Eles não estão presos. Eles foram detidos para averiguação por vadiagem e comportamento suspeito.

ALINE — Vadiagem?! Como assim? O que eles estavam fazendo?

GUARDA — Ora, nada! Ficam fazendo nada o dia inteiro!

ALINE — Mas se eles não estavam fazendo nada, foram presos por nada?

GUARDA — Não estavam fazendo, mas iam fazer! O meu trabalho é detectar o crime antes que ele aconteça.

ALINE — Então não aconteceu crime nenhum?

GUARDA — Ora! Mas quem manda aqui sou eu! Eu prendo quem eu quiser! Tá na cara que são criminosos. Eu reconheço esse tipo só de olhar.

ALINE — Claramente esse é um caso de abuso de autoridade. Se a senhora não soltar meus clientes imediatamente, vou entrar com um processo.

GUARDA — (dando risada) Pode processar! É a sua palavra contra a minha. Em quem você acha que vão acreditar?

Aline tira um gravador do bolso e aperta o “play”.

GRAVAÇÃO - VOZ DA GUARDA — Ora! Mas quem manda aqui sou eu! Eu prendo quem eu quiser! Tá na cara que são criminosos. Eu reconheço esse tipo só de olhar.

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Cantos de Refúgio - 195

ALINE — Na verdade, é a sua palavra contra você mesma.

Indignada, Guarda solta Grão e Jamal.

GUARDA — (resmungando) É por isso que o Brasil não vai pra frente, mesmo! Desafiar autoridade desse jeito, onde já se viu!

GRÃO — Vamo, Jamal! (para a Guarda) Até a próxima!

Aline e Guarda olham feio para Grão. Ambas saem de cena, cada uma para um lado.

JAMAL — Quem é, Grão?

GRÃO — Essa é a Aline, advogada da ocupação! Dona do meu coração, e ainda faz o melhor macarrão desse mundão...

JAMAL — Macarrão!

GRÃO — Tá com fome, Jamal?

JAMAL — Macarrão!

GRÃO — Vamo lá na ocupação, comer um macarrão, lá tem um molho bão e pão com zoião!

JAMAL — Eba! Macarrão!

Grão e Jamal saem de cena.

12. resGate de leila

(Ibrahim, Leila, Rafeef, Sheik Baha, Servo, Ururubu)

BASTIDORES DO CASAMENTO — Leila entra com Raffef, que a ajuda a arrumar o vestido de noiva. Leila usa um adorno de pedras preciosas na cabeça e um véu branco.Servo entra carregando Ururubu engaiolado, com um grande laço vermelho de presente amarrando seu bico. Ururubu tenta cantar, mas só sai um gemido.

LEILA — Que barulho estranho é esse?

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196 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

SERVO — Esse é um presente de casamento para a senhora. Um presente em nome de todos os servos do palácio!

Servo e Rafeef fazem uma reverência e Servo sai. Ururubu tenta fazer uma reverência como pode.

LEILA — Credo! Que bicho feio! Isso lá é presente que se dê para alguém?

Ururubu gesticula e tenta se comunicar com Leila, mas em vão.

RAFEEF — Pássaros são símbolo de liberdade, senhora.

LEILA — Pois esse aí está mais para símbolo de morte e carniça!

Ururubu chora baixinho.

RAFEEF — Se ele estiver incomodando, posso pedir que o levem.

LEILA — Por que você mesma não faz isso?

Raffef tenta alcançar Ururubu, mas não consegue. Revela grilhões e correntes que a mantém presa.

RAFEEF — Desculpe, mas não consigo alcançar.

LEILA — Que enfeite esquisito!

RAFEEF — Isso não é enfeite! É isso que me mantém presa aqui trabalhando para o Sheik.

LEILA — E como você veio parar aqui?

RAFEEF — Me perdi do meu pai durante um bombardeio. Sheik Baha me en-controu no deserto, me trouxe pra cá e nunca mais me deixou ir embora. (pausa) Às vezes acho que vou ficar aqui para sempre.

Leila repara na chave que ela mesma traz no pescoço.

LEILA — E essa chave?

RAFEEF — Essa chave é sua, senhora.

LEILA — Não lembro o que ela abre... mas parece importante, não?

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Cantos de Refúgio - 197

RAFEEF — Por que não tenta me soltar com ela?

Leila usa a chave e facilmente abre os grilhões de Rafeef. Rafeef solta-se e corre até Ururubu, abre a gaiola com a chave e desamarra seu bico.

URURUBU — Alhamdulillah! Estou livre!

Ururubu canta seu canto de liberdade. Leila recupera a memória.

LEILA — Ururubu!

URURUBU — (emocionado) Leila! Você lembrou de mim!

LEILA — Lembrei, lembrei do seu...

LEILA E URURUBU — Maravilhoso canto!

Leila e Ururubu se abraçam.

LEILA — Ururubu! Como eu pude me esquecer de você, da nossa terra, da mi-nha família? Quase deixei tudo por esse Sheik! Você me perdoa?

URURUBU — Mas é claro, Leila. Nós, pássaros mágicos, temos um coração enorme!

RAFEEF — (oferecendo um frasco) Ururubu, Leila, peguem esse azeite e passem debaixo do nariz. Ele fará com que vocês fiquem imunes ao feitiço do Sheik.

Ururubu passa debaixo do braço.

LEILA E RAFEEF — É no nariz, Ururubu!

URURUBU — Ué. Eu não tenho nariz.

LEILA — Rápido! O Sheik está vindo!

Rafeef e os outros servos se posicionam. Ururubu finge estar preso. Sheik Baha entra.

SHEIK BAHA — Oh, minha noivinha querida! Está preparada para o nosso grande casamento?

LEILA — Eu pensei melhor e... acho que devemos cancelar o casamento.

SHEIK BAHA — Cancelar o casamento?

Sheik dá risada, ficando mais agressivo em seguida.

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198 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

SHEIK BAHA — Algo está errado! Eu salvei você da guerra, lembra? Eu sou seu protetor!

Sheik esfrega a lâmpada e lança seu feitiço. Fumaça e perfume invadem a cena. Leila finge docilidade.

LEILA — Oh, Sheik Baha...

Dá um rodopio com o Sheik e toma a lâmpada mágica que produz o feitiço. Entrega disfarçadamente a lâmpada a Ururubu. Aproxima-se do Sheik, como se fosse beijá-lo.

LEILA — ... não vai ter casamento! Não sou sua noivinha querida e não preciso de um protetor. Vou achar meu ramo de oliveira e vou seguir meu caminho!

Sheik Baha fica atônito, depois cai na gargalhada.

SHEIK BAHA — É o seu ramo que você tanto deseja? Pois bem... providenciarei que esse ramo seja queimado na sua frente. Rafeef!

Rafeef entra em cena.

RAFEEF — Este ramo aqui, senhor?

SHEIK BAHA — Esse mesmo! Destrua esse pauzinho velho e seco e depois prenda essa jovem no calabouço!

Todos os servos entram em cena, mas nenhum deles obedece Sheik Baha. Viram-se de costas para o público, imitando a posição de Handala.

SHEIK BAHA — Traidores! Pois vocês irão sentir a ira de Sheik Baha! Ora! Onde está a minha lâmpada?

URURUBU — Esta lâmpada aqui?

Na sombra, Sheik Baha se transforma num gênio gigante. Persegue Ururubu pelo castelo, enquanto Leila e os servos vibram como uma torcida organizada. Ururubu cai no chão. Leila toma dele a lâmpada mágica.

LEILA — Ururubu, me dá essa lâmpada!

Leila encara Sheik Baha, o gênio. Pega a lâmpada e a esfrega.

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Cantos de Refúgio - 199

LEILA — Sheik Baha, volte para sua lâmpada!

Sheik transforma-se em fumaça. Todos olham atônitos para a lâmpada.

LEILA — Deu certo!

RAFEEF — Filistin hora25!

LEILA, URURUBU E SERVOS — Palestina livre!

Comemoram a vitória. Todos dançam na roda de dabke. Ao final da dança, Leila, Rafeef e Ururubu se abraçam.

URURUBU — Leila, você me salvou de novo!

LEILA — Não, Ururubu, ela nos salvou.

(para Rafeef) Qual é o seu nome?

RAFEEF — Rafeef.

Ururubu abraça Rafeef. Leila faz uma reverência.

URURUBU — Muito obrigado! Nós, pássaros mágicos, além de bonitos, cheiro-sos e modestos, somos muito agradecidos...

Som de buzina. Ibrahim entra em cena.

IBRAHIM — Ei, vocês! Por onde andavam? Eu achei que tinham se perdido no deserto! Ué... trouxeram mais uma pessoa? Ah, não acredito... Rafeef! É você, minha filha?

RAFEEF — Papai!

LEILA E URURUBU — Papai?!

Rafeef e Ibrahim se abraçam.

IBRAHIM — Eu achei que nunca mais ia te ver! Esse é o dia mais feliz da minha vida!

URURUBU — O meu também!

IBRAHIM — Agora vamos logo antes que os guardas nos vejam por aqui! Essa região é muito perigosa. Vamos, subam no caminhão!

Todos embarcam e o caminhão começa a andar.

25 N.T.: ةرح نيطسلف (“Palestina livre”).

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200 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

URURUBU — Leila, tenho uma ideia: por que não vamos para o Brasil voando?

LEILA — Ururubu, de novo isso?

URURUBU — De avião!

LEILA — É... de avião dá! Mas a passagem até lá é muito cara, Ururubu. Eu não tenho dinheiro!

RAFEEF — Leila, você ainda está com o anel do Sheik! Ele vale uma fortuna.

Leila olha para o anel no seu dedo.

LEILA

Boa ideia, Rafeef! Agora sim podemos ir para o...

IBRAHIM — (interrompendo) Silêncio no caminhão! Estão achando que isso aqui é o que? Tem guardas por todos os lados. Vamos fazer uma curva perigosa à es-querda. Atenção!

Caminhão faz uma curva fechada, dá uma derrapada e sai.

13. rePlantando oliveiras

(Grão, Jamal, Karina, Leila, Aline, Ururubu)

OCUPAÇÃO — A ocupação está em festa e o samba toca alto. Moradores da ocupação dançando aparecem na sombra. Blecaute e corte seco da música: caiu a energia elétrica. Lamento geral pela queda de energia. Grão e Jamal aparecem, iluminados por uma lanterna.

GRÃO — Aí, Jamal! Que aconteceu?

JAMAL — Eu que sei?

Ururubu começa a sua canção de lamento.

GRÃO — Que que é isso? Parece alguém com dor de barriga...

JAMAL — Eu conhece esse som!

GRÃO — Conhece?

Grão procura na escuridão e encontra Ururubu, enrolado em cabos elétricos. Toma um susto.

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Cantos de Refúgio - 201

JAMAL — Ururubu!

URURUBU — Jamal! Estou sendo muito mal recebido nesse país! Mal pousei aqui e já me atacaram com essas enguias elétricas voadoras!

GRÃO — Isso é só fio elétrico, parça...

JAMAL — Fio elétrico! Grão, ajudar Ururubu, Ururubu amigo!

GRÃO — Quê? Você acha que eu vou chegar perto dessa galinhona preta de um metro e oitenta? Tô fora, jão!

URURUBU — Jamal! É elétrica?

JAMAL — Sim, elétrica!

Ururubu toma um choque e começa a espernear, grudado no fio. Jamal tenta libertar Ururubu e também fica preso. Grão também socorre e fica grudado.

GRÃO — Socorro!

Aline e Karina, moradoras da ocupação, chegam para ajudar e entram no choque, tremendo intensamente. Luz pisca. Ururubu solta-se do fio e observa a cena de fora. De repente todos percebem e param de tremer. Olham bravos para Ururubu.

URURUBU — Que foi? Eu estava apenas dançando!

TODOS — Ah!

Jamal se aproxima de Ururubu e o abraça. Moradores da ocupação comentam a cena no fundo.

KARINA — Nossa, mas que dança mais estranha!

ALINE — E isso aí é o quê? Um urubu de um metro e oitenta?

GRÃO — É um ururubus ararábicus. É árabe!

KARINA E ALINE — Ah...

JAMAL — Que saudade, Ururubu! Você me faz lembrar da Leila, da minha famí-lia, da Síria... me faz lembrar do campo de oliveiras. Que saudade.

URURUBU — Jamal, por que você não planta uma oliveira aqui no Brasil?

JAMAL — Você trouxe um ramo de oliveira?

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202 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

URURUBU — Eu? Eu não! Não passei no teste de pombo correio.

Jamal fica cabisbaixo.

URURUBU — Mas ela trouxe!

Leila entra com um ramo de oliveira na mão. Leila e Jamal se olham e em câmera lenta correm ao encontro um do outro. TODOS reagem comovidos em câmera lenta. Leila e Jamal começam a conversar muito entusiasmados, se atropelando e falando ao mesmo tempo.

LEILA — Jamal, como é bom te ver! Você foi bem recebido no Brasil? Como é morar aqui?

JAMAL — Leila, eu não acredito, como você chegou até aqui? E ainda trazendo um ramo de oliveira!

Leila e Jamal se abraçam. Os moradores da ocupação assistem a tudo, atônitos.

KARINA — Vocês estão entendendo alguma coisa?

ALINE — Não... acho que é árabe!

JAMAL — Leila, que saudade! Como está a família na Síria?

LEILA — Jamal... a guerra chegou até nós de novo.

(pausa) Eu tive que fugir para cá. Você entende, não entende?

JAMAL — Parece que a guerra sempre persegue a nossa família. (para os morado-res) Amigos, minha irmã gêmea, Leila! Leila, meus amigos: Aline, Karina, Grão.

Leila cumprimenta os três com uma pequena reverência e entrega o ramo de oliveira para Jamal. —

JAMAL — Isso, ramo de oliveira. Ramo de oliveira é como minha família... É como a Palestina. Ramo de oliveira igual Palestina. Precisa crescer, precisa de terra...

ALINE — Ah, vocês querem plantar?

JAMAL — Isso! Plantar!

Aline sai de cena e volta com um vaso.

JAMAL — Plantar.

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Cantos de Refúgio - 203

LEILA — (com dificuldade) Plan-tar!

Leila e Jamal plantam juntos o ramo no vaso.Coral canta Ao Menos por um Tempo.

Ao menos por um tempo26

Sabe lá,por onde eu andeio que passeio que deixeipara levar e pra lembrarNão ter mais lugarme fez buscardo outro lado do mare de novo tentar...

Ao menos por um tempo — ter larao menos por um tempo — sonharao menos por um tempo — ter pazmas sempre ao mesmo tempo

— Lutar!

Lutar pelo chãoe se não tem chãoplantar no solo da memóriae regar com resistência pra sonharcom nova história pra ter paz...

Um ramo frágil de oliveiracontinua sendo um ramo de oliveira pra plantar

FIM

26 Letra e Música de Antonio Herci, 2016.

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204 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

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Dossiê Cantos de Rafúgio - 205

dossiê cantos de refúGio

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206 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

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Dossiê Cantos de Rafúgio - 207

dossiê Cantos de refúgio

ApresentAção

O presente dossiê é uma compilação de escritos, análises, relatos e documen-tos acerca do processo de montagem do espetáculo Cantos de Refúgio, primeira obra especificamente voltada para o público infantil do Coletivo de Galochas. A montagem teve como ponto de partida um contexto bastante específico: o acolhimento de famílias sírio-palestinas refugiadas dentro do movimento de mo-radia na cidade de São Paulo. Os relatos e histórias dos refugiados acolhidos foram o ponto de partida para as investigações sobre a questão palestina, tema complexo e multifacetado.

O grupo estabeleceu como objetivo a criação de um espetáculo infantil, par-tindo do desafio de elaborar a questão do acolhimento radical dos refugiados sí-rio-palestinos para as crianças nos dias de hoje. Parte importante da pesquisa de montagem aconteceu em prédios ocupados, bem como a temporada de estreia da peça. Mais do que um espaço, o campo simbólico e cultural do movimento social por moradia foi um ponto importante ao longo de toda a pesquisa teatral.

O processo de criação, montagem e temporada do espetáculo Cantos de Refú-gio, somando-se esta publicação, só foram possíveis graças ao projeto Refugiados de Galochas, contemplado na 28ª edição da Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo.

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208 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

resuMo do processo e dAs etApAs de trABALho

I. Pesquisa temática

• Universo bibliográfico • Leituras históricas e sociológicas • Leituras de fábulas • Participações em eventos e palestras • Pesquisa de tradição oral e convivência com comunidade de re-

fugiados • Oficinas — coral, teatro e percussão — e mediações de leitura com

a comunidade das ocupaçõesII. Experimentações de linguagem:

• Teatro de sombras • Coro e travessia • Gromelôs e blablações • Experimentos com objetos: teatro de animação • Construção de máscaras e bonecos

III. Canto coral e técnica vocal

• Formação de repertório • Noções de teoria • Estudos da música palestina • Oficinas de metacriação e planimetria

IV. Reuniões de planejamento, composição e arranjo das músicas

V. Cenas experimentais e improvisos temáticos

VI. Registro e documentação

VII. Reuniões de planejamento e escrita da equipe de dramaturgia

VIII. Leitura coletiva e reescrita

IX. Elaboração do relatório artístico

X. Leitura dramática e encenação

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Dossiê Cantos de Rafúgio - 209

soBre o processo de criAção

Ao construir esse espetáculo, optamos pela adoção de uma poética da delicade-za, capaz de profundidade, simplicidade e leveza na abordagem. Em um tempo insuflado pela violência espetacularizada, a velocidade do consumo e a indife-rença do empreendedorismo, ensinados desde o berço para todas as crianças, construir essa poética que fala da guerra e do refúgio a partir da perspectiva do acolhimento parece tarefa necessária. O objetivo do Coletivo de Galochas, desde o início desta fase que culminou na 28ª edição do Fomento ao Teatro, foi montar o seu primeiro espetáculo infantil. Esse é um desejo antigo. As peças do grupo, embora tenham como foco o público adulto, sempre tiveram na plateia muitas crianças. Isso porque foram apresentadas em comunidades, ocupações, praças e parques, lugares abertos a todos; e as crianças, por excelência, são as porta-vozes da curiosidade. Por algum motivo, sempre adoraram as peças do grupo.

Pensar uma peça infantil para os nossos tempos é uma tarefa complicada. Em primeiro lugar, toda e qualquer criança é um sujeito completo e, como todos nós, carrega o fardo de ser humano. Seja pelas toneladas de produções da indús-tria cultural voltadas para a infância, seja pelo rápido uso cotidiano que fazem das tecnologias de comunicação, uma criança de 10 anos já tem uma bagagem cultural e simbólica bastante extensa, passando pelas roupas que ela usa (ou gostaria de usar), as músicas que dança, os filmes e desenhos que assiste. Mais do que isso: cada vez mais cedo, as crianças se tornam produtores de cultura, transitando entre diversas linguagens artísticas com muita facilidade.

Nosso tempo é um tempo de saturação das produções simbólicas e as crianças são muito atentas ao que lhes diz o mundo. Por isso, parece que parte importan-te de realizar um espetáculo infantil é pensar maneiras de transitar por espaços únicos na extensa selva simbólica que atravessa a infância hoje. Parte importante desse entendimento está em não infantilizar excessivamente a linguagem e o tratamento teatral. Qualquer menino sabe muito bem o que é a guerra, seja pela realidade objetiva que passa na sua porta, seja pelos jogos de videogame - onde tiros na cabeça valem pontuação extra. Os desenhos animados são ágeis, transi-tam por diversos assuntos em um ritmo alucinante. Dessa perspectiva, fazendo uma peça infantil com uma temática difícil como o refúgio e a guerra, pode-mos ter a chance de construir outras referências de elaboração para esses temas. Como já dito aqui: espaços de diferença.

Para garantir espaço para o desenvolvimento da nossa poética da delicadeza, Cantos de Refúgio faz um uso completamente diferente do espaço - assemelha-se a uma peça de palco, diferente de outras montagens do grupo pensadas para espaços alternativos e rua. Fixar a peça em um lugar mais ou menos controlado permitiu uma qualidade diferenciada nos recursos técnicos. Nas pesquisas de interpretação, transitamos em um registro mais próximo do realismo, apostando em uma construção mais calcada na sensibilidade e na subjetividade das perso-

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210 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

nagens. Parte desse registro realista é fruto da relação próxima que construímos com as famílias sírio-palestinas: pessoas amigas, de carne e osso. Na tentativa de fazer jus à profundidade das conversas que tivemos, tentando representar os palestinos da maneira mais humana e próxima possível, optamos por uma investigação dos atores e atrizes inspirada no método das ações físicas, memória emotiva e unidades de ação. Somamos esse elemento realista na interpretação aos elementos do teatro de animação, notadamente o teatro de sombras e de máscaras. Com esse conjunto, pesquisamos os caminhos para cumprir cenica-mente a tarefa de compor essa poética para crianças, falando da solidariedade.

O modo de produção desse trabalho, assim como todos do Coletivo de Galo-chas, foi o processo colaborativo. A peça foi criada em conjunto por todos os tea-tristas envolvidos na montagem, divididos em funções específicas – elenco, ence-nação, dramaturgia, iluminação, sonoplastia, cenografia, figurinos e adereços. O primeiro passo da montagem do Cantos de Refúgio foi a aproximação com o tema escolhido para a pesquisa, realizada através de estudos sobre a questão do refúgio e da Palestina a partir de leituras e debates. No entanto, o principal elemento de aproximação foi a convivência com as famílias sírio-palestinas nas ocupações Leila Khaled e Nova Carolina - essa foi, sem sombra de dúvida, a maior riqueza no aprofundamento dessa temática tão importante. Partindo dos primeiros estudos e vivências, foram criadas diversas cenas experimentais, elaboradas por todos os integrantes do Coletivo. Essas cenas foram tentativas, ainda precárias e inaca-badas, de teatralizar a pesquisa sobre o tema que o grupo estava debruçado. A partir desse acúmulo, pudemos começar a vislumbrar a poética que se tornou o eixo norteador do nosso espetáculo.

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Dossiê Cantos de Rafúgio - 211

pesquisAs e estudos

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASA definição da bibliografia foi um dos primeiros passos do processo de criação

da peça. Com o passar das semanas e meses de trabalho, essa lista de referências se alterou - e também cresceu bastante. Elencamos aqui essas obras, teóricas ou literárias, que foram importantes para a criação do espetáculo; algumas influen-ciaram mais o nosso processo, outras menos, mas todas contribuíram para a nos-sa formação. Esperamos que sejam úteis para aqueles que desejam se aprofundar nesses temas.

AL-ALI, Naji. Uma criança na Palestina: os cartuns de Naji Al-Ali. São Paulo: Martins Fontes - selo Martins, 2011.

COCKBURN, Patrick. A origem do Estado Islâmico: o fracasso da guerra ao terror e a ascensão jihadista. São Paulo: Autonomia Literária, 2015.

DARWICH, Mahmud. A terra nos é estreita e outros poemas. São Paulo: Edições Bi-bliaspa, 2012.

JELLOUN, Tahar Ben. O islamismo explicado às crianças. São Paulo: Editora Unesp, 2011.

KANAFANI, Ghassan. Homens ao Sol. São Paulo: Edições Bibliaspa, 2012.

MEIRELES, Cecília. Problemas da Literatura Infantil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

MUHAWI, Ibrahim; KANAANA, Sharif. Speak, Bird, Speak Again: Palestinian Arab Folktales. Berkeley: University of California Press, 1989.

NIMR, Sonia. Ghaddar, o Demônio e outros contos palestinos. São Paulo: Compa-nhia das Letras, 2007.

PAPPÉ, Ilan. A limpeza étnica da Palestina. São Paulo: Sundermann, 2016.

SACCO, Joe. Palestina: Uma Nação Ocupada. São Paulo: Conrad, 2000.

SACCO, Joe. Palestina: Na Faixa de Gaza. São Paulo: Conrad, 2003.

SACCO, Joe. Notas sobre Gaza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007.

SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia de Bolso, 2011.

SAID, Edward W. A questão da Palestina. São Paulo: Editora Unesp, 2012.

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212 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

INTERCÂMBIOS CULTURAISEra sabido pelo grupo que a leitura não seria suficiente. Foi necessária uma

aproximação da cultura palestina e das questões concernentes ao refúgio e a migração de forma mais intensa; para compreender, era necessário conhecer de perto, criando vivências e experiências. As famílias árabes da Ocupação Leila Khaled fizeram a ponte para que pudéssemos adentrar esse universo tão novo e fascinante.

O principal e primeiro espaço de aproximação com essas famílias foi a aula de português. Conduzidas pelos professores voluntários Maria Carolina Gonçalves e Daniel Foggiato, duas vezes por semana na própria ocupação, a aula era o even-to que agregava mais famílias - e contava com a presença das mulheres, o que era raro nas assembleias e nas outras atividades do prédio. Assistimos a algumas aulas e nos apresentamos, iniciando nossa aproximação. Nos encontros seguin-tes, em parceria com os professores, ensinamos músicas em português para os alunos, a fim de trabalhar fonemas que não são habituais na língua árabe. Em troca, eles nos ensinaram a cantar algumas canções palestinas. Ao final da aula, depois de muita cantoria e risadas, um convite para o chá. O laço estava criado. Essa foi a estreia do que chamamos de intercâmbios culturais, encontros organiza-dos por nós com as famílias árabes durante o projeto.

Ao longo dos meses seguintes nossa relação se tornou mais próxima. O segun-do encontro, um piquenique no Parque da Luz com comidas árabes e brasileiras, surgiu de uma demanda das mulheres palestinas de sair e conhecer melhor o centro de São Paulo. O terceiro foi um encontro das mulheres do Galochas com as mulheres sírio-palestinas para aprender a vestir o hijab e ouvir suas histórias. No quarto, viramos alunos e eles, professores: tivemos uma aula sobre a história do Eid al-Adha e aprendemos alguns passos de dabke com os homens, finalizando numa grande roda de dança.

Transformamos essa relação improvável, tímida a princípio, em uma relação de parceria e confiança. Hoje, é sempre uma felicidade reencontrar nossos ami-gos da Ocupação Leila Khaled. Só temos a agradecer a essas pessoas singulares e carinhosas que compartilharam tanto conosco.

AULAS DE ÁRABEUma forma bastante eficaz de se aproximar de uma cultura estrangeira é pelo

idioma: ao aprender a língua de um povo, somos convidados a experienciar novas formas de pensar, se expressar e existir. Desse modo, o Coletivo de Ga-lochas optou por ter aulas de árabe com o poeta palestino que conhecemos na Ocupação Leila Khaled, Mohammad. Com o desafio de apresentar um idioma completamente desconhecido aos membros do grupo, Mohammad ensinou o alfabeto árabe e sua escrita - além de expressões coloquiais e populares - e trouxe um pouco de suas histórias, costumes e cultura para os encontros.

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O estudo da língua possibilitou inúmeras descobertas: alguns fonemas do português não fazem parte da língua árabe, e vice-versa. Graças às diferenças culturais, algumas palavras do árabe não existem em português, e o contrário também é verdadeiro; isso fez de algumas traduções verdadeiros exercícios cria-tivos. A língua coloquial e a escrita formal - árabe clássico e árabe popular - são completamente diferentes, geralmente com escritas e pronúncias para uma mes-ma palavra. Nas aulas, Mohammad passou a transitar entre esses dois tratamen-tos da língua; ora ensinava a escrita no árabe clássico, ora ensinava expressões corriqueiras no árabe popular. Algumas dessas expressões foram incorporadas à dramaturgia das cenas, mas não sem que nosso professor se certificasse de que a pronúncia dos atores estava correta. Uma das expressões que Mohammad nos ensinou foi fajaro albet (تيبلا اورجف), cuja tradução literal para o português é “eles explodiram a casa”. Um acontecimento terrível, tornado rotineiro ao ponto de ganhar uma expressão idiomática. Assim, além de professor de árabe, Mohammad também se tornou uma espécie de consultor sobre a cultura palesti-na e muçulmana, tirando dúvidas e ajudando a conhecer melhor esse universo.

AULAS DE DABKEConvivendo com as famílias árabes da Ocupação Leila Khaled, logo se iden-

tificou o importante papel que o dabke cumpre na vida cultural e social do povo palestino. Essa é uma dança popular de roda, típica da região da Palestina, Síria e Líbano. Normalmente a roda é composta na sua maioria ou inteiramente por

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homens. Em um dos primeiros dias ao lado das famílias refugiadas, os homens nos apresentaram essa dança e ensinaram o passo básico. Forma-se a roda dando as mãos e o dançarino da ponta conduz, puxando ritmadas batidas no chão com os pés.

O dabke surgiu da tradição de bater o barro dos tetos das casas palestinas antes da época de chuvas, para evitar goteiras. Depois se tornou uma dança festiva, presente em casamentos e comemorações de toda sorte. Diz-se que por um curto período, durante os anos que sucederam a Nakba, o dabke foi proibido em algu-mas regiões da Palestina ocupadas por tropas israelenses. Portanto, além de sua função lúdica, o dabke acaba sendo uma manifestação de resistência e reafirma-ção da identidade palestina.

O Coletivo de Galochas passou a ter aulas com o professor Anderson Vaccari, do grupo de dança Yalla Shabab. Especializado em dabke libanês, Ander-son embarcou conosco em uma pesquisa mais profunda sobre o dabke palestino, buscando músicas e passos específicos dessa modalidade. O quarto encontro de intercâmbio cultural nos ajudou a identificar e reproduzir os passos do dabke palestino: organizamos uma apresentação do grupo Yalla Shabab para as famí-lias refugiadas e, depois de aplaudirem os dançarinos brasileiros, os palestinos dançaram. Foi riquíssimo ver dois estilos de uma mesma dança, ambos bem executados, cada um a seu modo. Ao fim do encontro, como é de praxe, dança-mos todos em uma grande roda: refugiados, brasileiros, dançarinos, teatristas e

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moradores da ocupação. Nós, brasileiros, tendo a oportunidade de imergir no universo de outra cultura; os palestinos, lembrando de sua terra, pensando em suas famílias e amigos, reafirmando sua identidade. Dançamos juntos a resistên-cia e a amizade que ali nascia.

COLETA DE RELATOS: FÓRUM SOCIAL MUNDIAL DAS MIGRAÇÕESDentro do processo de pesquisa da peça, buscando compreender um pouco

da realidade vivida por imigrantes, solicitantes de refúgio e refugiados, interagin-do com eles e comprometendo-se inclusive em ações de defesa dos seus direitos, o Coletivo de Galochas participou do VII Fórum Social Mundial das Migrações (FSMM). O FSMM é um dos mais importantes espaços de debate, aprendizado e construção de estratégias de luta da causa migrante em âmbito internacional. Nesta edição, realizada em São Paulo, o Coletivo de Galochas foi responsável pela realização da oficina “Cantos de Refúgio” e da atividade “Narrativas Mi-grantes”.

A oficina de canto coral “Cantos de Refúgio” teve como objetivo, em um âmbito de grande diversidade cultural e linguística, utilizar a arte - mais espe-cificamente, a música - na superação de barreiras. O grande entrosamento e envolvimento dos participantes nas músicas comprova o potencial da arte na interação humana.

“Narrativas Migrantes” foi uma atividade que convidou os participantes do VII FSMM a contar suas memórias da migração ou do refúgio. Contou com a participação de 20 pessoas de diferentes países: Brasil, Bolívia, África do Sul, Cuba, Haiti, México, Síria, Chile, Guiné Bissau e Palestina. Sorrisos e lágrimas apareceram enquanto as pessoas contavam suas histórias de luta, incluindo as dificuldades e alegrias de recomeçar a vida em outro lugar. Os registros, escritos ou em desenho, foram exibidos em um varal, o “Cordel de Narrativas”. Isso permitiu que as pessoas circulando pelo evento conhecessem histórias reais de refugiados e migrantes, abandonando preconceitos e valorizando a diversidade cultural.

O fórum foi uma experiência muito positiva, pois possibilitou encontros im-prováveis e ricos. Destacamos aqui o encontro com um garoto sírio-palestino que nos ensinou brincadeiras típicas de sua terra, como o “jogo dos países e passos”. Em sua primeira aparição no espetáculo, na cena “O pássaro perdido”, os gê-meos Leila e Jamal entram em cena brincando da mesma forma.

SÃO PAULO DE TODOS OS IMIGRANTESEm novembro, o Coletivo de Galochas participou de duas aulas do curso “São

Paulo de Todos os Imigrantes”, realizado através de uma parceria entre a Escola do Parlamento da Câmara Municipal de São Paulo, a Secretaria de Direitos

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Humanos e Cidadania e o Museu da Imigração. A aula “A formação do Estado de Israel: antecedentes e desdobramentos” ministrada pelos professores Bruno Huberman e Samuel Feldberg, trouxe visões bastante dissonantes sobre a ques-tão palestina, fazendo com que o grupo considerasse esses contrapontos em seu processo de pesquisa. A aula sobre a diáspora palestina, do professor Reginaldo Nasser, foi complementada com o emocionante relato de Salim Mhanna, um refugiado sírio-palestino que vive no Brasil.

CICLO DE AULAS PÚBLICASOrganizamos um ciclo de aulas públicas no primeiro mês da temporada de

Cantos de Refúgio. O intuito era debater temas ligados ao universo da peça, como o refúgio e a identidade palestina, oferecendo ao público adulto uma oportu-nidade de aprofundar conceitualmente os temas abordados no espetáculo. Na prática, ele serviu como uma importante atividade de formação do Coletivo de Galochas; o processo de criação do espetáculo já havia se encerrado, mas o estudo sobre a questão palestina perdurou por mais alguns meses.

As aulas públicas aconteceram aos sábados, logo após a apresentação da peça, na Ocupação Aqualtune. Contamos com a participação de debatedores e estu-diosos qualificados, que conduziram o debate explorando diferentes perspecti-vas e abordagens:

11/03/2017 - 1ª Aula Pública LITERATURA NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE PALESTINA

Debatedores: Majdoulin Aldeek; Mariane Gennari

18/03/2017 - 2ª Aula Pública CONFLITO ISRAEL-PALESTINA: A DESTERRITORIALIZAÇÃO DE UM POVO

Debatedores: Arturo Hartmann; Helena Manfrinato; Salim Mhanna

25/03/2017 - 3ª Aula Pública INDÚSTRIA DA GUERRA: SOBRE PALESTINAS E UPPS

Debatedores: Bruno Huberman; Henrique Sanchez

01/04/2017 - 4ª Aula Pública REFUGIADOS NO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO

Debatedora: Deisy Ventura

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criAção dA oBrA teAtrAL

DRAMATURGIAInteressante notar, primeiramente, que a arte e a cultura sejam consideradas

sob determinados rótulos ou tipos. Não que isso nos cause estranhamento, pois na realidade, temos uma espécie de compulsão em classificar as coisas em qua-dradinhos, que lembram aqueles armários coletivos de casulos dos vestiários.

Também o conhecimento parece muito mais organizado quando guardado em armários, casulos ou compartimentos, que algumas vezes chamamos de con-ceitos, outras vezes de categorias, outras ainda de tipos. Chamamos e rapidamen-te esquecemos que se trata da mesma coisa: casulos vazios, onde se guarda o que se queira, partindo de uma necessidade básica do sujeito que organiza as coisas ao seu modo. Em nenhum momento se vê uma roupa, objetos ou apetrechos pessoais pedindo para serem guardados nos armários, mas sim as pessoas que tinham lá suas necessidades de arrumar tudo.

E se “teatro infantil” for um casulo vazio? Onde colocamos o que projetamos, tanto no que seja teatro, quanto no que seja infantil? Malgrado o universo sim-bólico da criança esteja em formação, o ser que ali se encontra já é completo como humano, detentor de uma subjetividade e direitos como cidadão e ser no mundo. Talvez um dos equívocos mais frequentes com que nos deparamos seja o de achar que “criança não percebe as coisas” ou tender para simplificar, este-reotipar e superficializar o tratamento infantil.

Evitou-se essa via, trilhando outra muito mais promissora, já apontada por diversos pensadores, entre eles Freud: de que a capacidade de teorização sobre o mundo é inata, e a criança, tanto quanto o adulto, sempre vai interpretar o mun-do com a mesma plenitude, diferenciando-se apenas na quantidade de experiên-cia de vida na ordem das razões. Portanto, cabe aos dramaturgos, ao contrário de “simplificar ou tratar superficialmente”, buscar símbolos, signos e a estruturar a linguagem teatral como formas de ampliar o universo de apreciação da criança e do jovem. No caso do nosso espetáculo, optou-se pelo drama musical.

Devemos mostrar a guerra como ela é, fazer referências históricas, analisar os conflitos? Ou apresentar de forma fabular, com personagens baseados nas cria-turas e mitologias palestinas? Ou transitar entre os dois mundos? E como fazer isso? Quase todos os jovens e crianças sabem que a guerra existe, conhecem o mal que ela causa, veem imagens diárias da guerra: crianças, como elas, estampa-das em jornais e na televisão. Não se trata necessariamente, neste drama infantil sobre o refúgio palestino, de mostrar o horror da guerra; todos já o conhecem.

Contar e analisar a história da Palestina ou traçar uma linha dramática a partir de personagens e suas histórias? Transitamos entre as duas formas, apresentando

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um modelo geral do que é o processo de refúgio, mas sob o ponto de vista de personagens. Os dramaturgos tiveram a grata satisfação de poder compartilhar narrativas e histórias do que se chama de “terceira geração de refugiados”, que estão em 2014-2015 chegando ao Brasil, refugiados primeiramente da Palestina e mais recentemente da guerra na Síria. Evitou-se, entretanto, transformar a peça em uma “aula de história”; não porque aulas de história não sejam importantes, mas porque não gostaríamos que nossa peça cumprisse essa função.

Dois signos destacam-se na literatura e nos estudos sobre a Palestina: as oli-veiras e as chaves. As oliveiras representam a sobrevivência, a alimentação, a raiz e a lembrança da terra. As chaves, símbolo do direito de retorno, remetem à reivindicação principal do povo palestino: retornar para suas casas, para as terras de onde foram expulsos.

Segundo Ghassan Kanafani, um dos mais importantes romancistas palesti-nos, existe uma relação entre o afastamento da Palestina e a morte. Dessa dis-tância e aproximação fazem parte os símbolos, as lembrança e tradições. Dessa forma, a preservação cultural diminui a distância da terra e reaproxima o povo palestino da vida. Em conversas com imigrantes e participações em seminários, dois assuntos chamaram a nossa atenção: a escolha das coisas que devem ser deixadas para trás e das coisas que devem ser levadas, de forma a preservar a identidade individual e cultural. Isso nos aproximou da necessidade de inserir os símbolos da chave e da oliveira na narrativa.

A origem do símbolo da chave é histórica: durante a Nakba, “a grande catás-trofe” do povo palestino em 1948, centenas de milhares de palestinos foram expulsos de suas aldeias para que o Estado de Israel fosse criado. Muitas dessas famílias atravessaram o deserto a pé levando consigo pouquíssimos pertences. Um deles se destaca: as chaves de suas casas. Essas famílias mantiveram suas cha-ves consigo na intenção de, um dia, voltar para o lugar de onde foram expulsas. Mesmo que os imóveis tenham sido demolidos para dar lugar a assentamentos judeus, muitas dessas chaves são guardadas até hoje.

“Um ramo frágil de oliveira continua sendo um ramo de oliveira” (KANAFA-NI, 1987). A figura apresentada pelo escritor, presente em tradições e memórias, é transposta para a peça, através de projeções, teatro de sombra e, principalmen-te, a presença de um ramo de oliveira, adereço cênico que acompanha toda a narrativa. Além de ser a fonte de sustento de tantas famílias palestinas (assim como a que mostramos em cena), a oliveira adquiriu nas últimas décadas uma simbologia de resistência. A imagem de plantar o ramo na nova terra significa não o abandono da terra de origem, mas o fortalecimento da identidade pales-tina mesmo longe de casa. Entre o desejo de voltar e a proibição imposta por Israel, palestinos em refúgio ao redor do mundo devem construir uma nova vida, muitas vezes com novos costumes e um novo idioma. Isso não quer dizer abandonar a identidade palestina; pelo contrário, chama atenção a necessidade

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de reivindicação dessa identidade mesmo no refúgio.

A peça é um trabalho sobre uma questão específica, mas deve atingir um espectro amplo de espectadores. A forma de tornar mais geral a com-preensão deu-se a partir do estudo da literatura dos contos árabes e palestinos e da compreensão de sua forma de simbolismo.

Diferente dos “contos de fadas”, tais contos evocam criaturas fan-tásticas que, apesar de poderosas e assustadoras, rendem-se à esperteza e astúcia dos jogos infantis. Realiza-mos uma breve pesquisa sobre jogos e brincadeiras palestinas e conside-ramos importante incluir uma delas em cena (mais especificamente na cena “O pássaro perdido”). Apesar das diferenças de tradição e narrati-va entre crianças brasileiras e pales-tinas, os desafios dos jogos e brin-cadeiras mexe com o imaginário e diverte o nosso público infantil.

O texto e roteiro dramatúrgico fo-ram criados a partir de experimen-tações de linguagens, experimenta-ções temáticas e rodas de conversa sobre situações de refúgio e diáspo-ra palestina. As questões eram de-batidas teoricamente, improvisadas tematicamente e depois serviam de matéria-prima para a construção do texto final.

Jovens e crianças participaram por vezes do processo, dos ensaios, bastidores e apresentações. Isso tor-nou o conceito “colaborativo” mais amplo, pois pôde agregar parte do público-alvo no próprio processo.

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Destaca-se aqui a oficina de teatro e mediação de leitura para crianças na Ocupa-ção Aqualtune, onde os temas do espetáculo foram introduzidos. Consideramos imprescindível essa aproximação com as crianças durante o processo. Isso foi importante para duas investigações: uma acerca do campo simbólico infantil, outra acerca da proposição de uma experiência de subjetividade e alteridade que carrega consigo o reconhecimento do outro como dotado da mesma humanida-de, compartilhada como dádiva, mas também como fardo.

E se o infantil não passar de uma pregação pedagógica ou ideológica que, ao invés de excitar a imaginação (um dever ontológico do teatro), sitie o pensa-mento através do que nós, adultos, pensamos que deva ser o infantil adequado? Posto isso, devemos pensar como situar o que estamos construindo como “tea-tro infantil” não a partir de definições, mas sim das dificuldades, problemas e questionamentos que enfrentamos. Tecer uma dramaturgia para teatro infantil, cuja temática envolva a guerra, o refúgio, a contravenção e a inadequação social, envolve uma série de questões teóricas. Mas envolve, para além disso, uma visão de mundo, uma forma de compreender o outro e a si mesmo como uma relação de troca e solidariedade, e não um ambiente de imposição de valores, sejam eles pedagógicos ou doutrinários.

Desde as primeiras discussões sobre a peça, alguns temas foram destaque na condução do trabalho de criação dramatúrgica. Tais temas, ou problemáticas, funcionaram como elementos disparadores do processo crítico de construção e configuração temática do roteiro. A equipe de dramaturgia teve o privilégio de trabalhar com um projeto diretamente inserido em uma comunidade, da qual faz parte como produto e criação. Os ensaios e discussões eram abertos à comu-nidade e só temos a agradecer aos jovens e crianças presentes, que foram ativos no processo criativo.

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CENOGRAFIANem a temporada do espetáculo, nem a circulação foram realizadas em teatros

convencionais. Optamos por levar uma estrutura teatral completa nos locais de apresentação, tanto na ocupação quanto nas escolas. O intuito desse sistema relativamente sofisticado e desse grande aparato técnico é o de propiciar uma experiência estética complexa, transformando o espaço cotidiano, ambiente ge-ralmente precarizado, em um ambiente teatral completo. A montagem conta com sistema de som, iluminação, projeção, vários planos de cena divididos com cortinados e uma estrutura de blackouts que permite escurecer os ambientes, favorecendo a iluminação e o teatro de sombras.

O cenário é composto por uma estrutura de box truss coberta com tecidos, sustentando três camadas de cortinado. As cortinas, que se tornam transparen-tes de acordo com a luz, possibilitam uma cenografia dinâmica, onde ambientes e cenários surgem de um bailado das cortinas com a iluminação. Ao fundo, um telão branco serve de suporte para cenas em teatro de sombras e projeções. No chão, uma lona ocre delimita o espaço de cena.

FIGURINOS PALESTINOSPara a elaboração desses figurinos, realizamos uma ampla pesquisa sobre vesti-

mentas palestinas. Buscamos imagens de vestes tradicionais e também de pales-tinos contemporâneos. Como se vestem os palestinos, ontem e hoje? E como ter acesso a roupas típicas palestinas? Toda a pesquisa e exploração levou o Galochas a uma loja árabe próxima à mesquita do Brás, onde foi possível encontrar roupas tradicionais. Esses figurinos tradicionais coloridos e cheios de pedrarias estão mais próximos do que seriam roupas “de festa” e para ocasiões especiais, não roupas cotidianas. No entanto, representam vestes tradicionais e características

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da região sobre a qual pesquisamos. Consideramos mais interessante mostrar mulheres palestinas em roupas típicas do que em calças jeans, por exemplo. Mais do que estética, a escolha desses figurinos foi política: o bordado é um im-portante meio de vida para muitas mulheres palestinas, e essas peças eram todas bordadas à mão por mulheres árabes.

MÁSCARAS E BONECOSPor se tratar de um infantil, investimos tempo e trabalho nas criaturas fantás-

ticas. Uma delas é o Sheik Baha, cuja transformação em um gênio da lâmpada é marcada pelo uso de uma grande máscara. Outra é a Ghouleh, uma criatura da tradição oral árabe, algo próximo a um “bicho papão”. O grande desafio foi a falta de referências visuais; não encontramos ilustrações ou representações grá-ficas, talvez por conta da tradição islâmica de não-representação. Nosso intuito era criar um boneco desse simpático monstro. Como seria o corpo e o rosto de uma Ghouleh? A solução foi usar a imaginação.

Etapas da construção da máscara da Ghouleh:

• escultura do molde em argila; • aplicação de papel machê/ papietagem; • acabamento com papel toalha e pó de café. • acabamento com tinta acrílica e verniz.

Etapas da construção do corpo da Ghouleh:

• construção da base em papelão; • papietagem; • acabamento com juta (tecido).

Etapas da construção da máscara do Sheik Baha:

• construção da base em papelão; • escultura em argila dos olhos e maçãs do rosto;• acabamento com tinta acrílica e verniz.

TEATRO DE SOMBRASElemento marcante da montagem, o recurso do teatro de sombras foi utiliza-

do em várias cenas do espetáculo. Utilizamos técnicas diversas que aprendemos durante as oficinas com Daiane Baumgartner.

Com a técnica de maquete, construímos cenários dinâmicos na sombra, per-mitindo uma narrativa cinematográfica, com efeitos de zoom e tridimensiona-lidade. Somadas a essa técnica, bonecos feitos em acetato, pintados com tin-ta vitral, compunham as personagens das cenas - destaque para os bonecos de

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acetato das personagens Ghouleh, Mona, Leila e Jamal). Outra técnica utilizada foi a das silhuetas maquina-das em papelão couro, o que fez com que os caminhoneiros da cena “Posto de controle” pudessem mexer a boca para falar. Algumas cenas foram reali-zadas através da projeção de sombra direta dos atores e atrizes em cena, com objetos e cenários.

Destaque para a cena “Despedida no bosque”, onde o processo de co-lher azeitonas e engarrafar azeite é re-presentado pelos atores e atrizes parte na sombra, parte em cena aberta. Por fim, duas telas cenográficas bidimen-sionais foram produzidas: uma do Palácio do Sheik e outra da Cidade de São Paulo, utilizando camadas de papelão coro, acetato pintado com tinta vitral e folhas de gelatina de ilu-minação.

CANTO CORAL, MÚSICA E SONOPLASTIAA peça conta com quatro canções, cantadas ao vivo pelos atores: Ao menos por

um tempo e Ele é um herói (Antonio Herci); Ao sol da minha terra (Kleber Palmeira) e Canto de Refúgio (Rafael Presto). Todas foram desenvolvidas a partir de oficinas temáticas, coleta de histórias e relatos, reuniões e sessões de criação e arranjo. O resultado é um repertório em sintonia com o tema e cativante para o público infantil, que aprende as letras das músicas e as canta com facilidade.

A trilha da peça é composta de músicas palestinas tradicionais e contemporâ-neas. O repertório é recheado de hip-hop palestino, que hoje é um movimento musical bastante relevante como música de resistência. Músicas mais tradicio-nais também são utilizadas, especialmente aquelas com forte batida do derbak, ideais para as rodas de dabke.

A isso alia-se uma composição eletroacústica operada em tempo real, com sintetizadores e osciladores conectados a um sistema de produção ao vivo. Di-versas técnicas de compositores contemporâneos foram experimentadas: além da planimetria de Koellreutter e da música eletroacústica, também utilizamos a estrutura de meta-autoria e improvisação. A composição é feita com sons, ruídos e cantos colhidos em ensaios e manipulados digitalmente, criando sonoridades inusitadas.

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contexto: ocupAção de MorAdiA

OCUPAÇÕES E A LUTA POR MORADIAAs ocupações de moradia estão por um fio. As recentes convulsões políticas

que atravessam a cidade de São Paulo apontam para tempos duros para os seto-res populares organizados, e nada aqui é metafórico. Dentre as três ocupações onde o Coletivo de Galochas desenvolveu suas ações para esse projeto (Ocu-pação Aqualtune, Ocupação Leila Khaled e Ocupação Carolina Resiste), uma já sofreu reintegração de posse e outra está sob risco iminente de despejo. Um cenário triste e atual – até pouco tempo, as perspectivas jurídicas eram mais otimistas. Hoje, os processos acabam por caminhar em direção ao despejo das famílias. Em parceria com as moradoras e moradores das ocupações, estamos em um investimento de trabalho para que ninguém mais tenha de ir para a rua. Chamamos esses esforços de teatro contra a reintegração de posse.

O dia 18 de Fevereiro de 2017 foi um dia triste. Nessa data acompanhamos a reintegração de posse da Ocupação Carolina Resiste, responsável por colocar na rua mais de 60 famílias em um processo judicial injusto. Parte das famílias se mudou para a Ocupação Aqualtune e o prédio reintegrado em Pinheiros, região nobre, voltou ao abandono.

Dessa forma, a Ocupação Aqualtune se tornou o local onde o Coletivo de Galochas incidiu todos os seus esforços. Antes, o Coletivo dividia seu tempo e dedicação entre as duas ocupações - Aqualtune e Carolina Resiste. Esta última tinha o maior número de crianças entre os moradores, então a oficina com as crianças acontecia lá. Com a reintegração de posse, parte dessas crianças se mudou com suas famílias para a Ocupação Aqualtune, fazendo deste espaço um símbolo ainda mais forte de resistência. O mais lógico para o Galochas foi acompanhar as famílias.

A Ocupação Aqualtune fica no prédio de uma antiga escola particular, aban-donado por muitos anos. No último andar há um pequeno auditório, o lugar escolhido para a consolidação do Núcleo Cultural, previsto no nosso projeto. A sala logo começou a receber atividades culturais, e com a organização, em conjunto com os moradores e apoiadores da ocupação e, na época, do Movi-mento Terra Livre, aconteceu a 1ª Ocupação Preto- Indígena, ao longo do dia 19/11/2016.

Neste evento o Coletivo de Galochas realizou a primeira abertura de processo do espetáculo Cantos de Refúgio. A apresentação foi bastante movimentada, contando com adultos e crianças, moradores e pessoas de fora. O retorno dado pelo público foi essencial para a pesquisa desempenhada pelo Coletivo.

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Dossiê Cantos de Rafúgio - 225

NÚCLEO CULTURAL DA OCUPAÇÃO INDEPENDENTE AQUALTUNENão havia nenhuma grande estrutura no pequeno auditório quando chega-

mos lá: um espaço pouco maior que uma sala de aula, mobiliado apenas por uma pilha imensa de cadeiras. Para possibilitar que o Núcleo Cultural Aqualtu-ne pudesse abrigar eventos de toda sorte, reformas e adaptações foram realizadas no espaço. A pintura foi feita do chão às paredes, a parte elétrica e a iluminação de serviço foram refeitas e o encanamento foi reformado. O Núcleo Cultural re-cebeu a instalação de um conjunto de equipamento técnicos próprios, com caixa de som ativa, microfones, refletores de LED (optamos pelo LED considerando o limite de potência elétrica da ocupação) e mesa de luz.

Além de três temporadas e uma abertura de processo do Coletivo de Ga-lochas, o Núcleo Cultural recebeu várias outras atividades. As assembleias da ocupação se tornaram um espaço de formação, organizado em conjunto pelos moradores e apoiadores. As assembleias já contaram com apresentações teatrais de grupos parceiros e formações políticas com outros movimentos sociais e cole-tivos. Destacamos aqui a apresentação do espetáculo “A luta”, do grupo de teatro Madeirite Rosa. Também é lá que tem acontecido as festas e eventos culturais, como o Arraiá da Ocupação Aqualtune e a Ocupação Preto-Indígena, que con-tou com duas edições até o momento.

Hoje, o Núcleo Cultural Aqualtune opera de forma autônoma. Os morado-res da ocupação, em parceria com os colaboradores, lá organizam e promovem eventos e atividades diversas.

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MEDIAÇÃO DE LEITURA E TEATROOs encontros de teatro e mediação de leitura se iniciaram em novembro, na

Ocupação Carolina Resiste, onde residia boa parte das crianças. Após a reinte-gração de posse do prédio e a mudança das crianças para a Ocupação Aqualtune, esses encontros passaram a acontecer no Núcleo Cultural Aqualtune.

Num primeiro momento, a oficina ocorria semanalmente, aos domingos. Dentro de poucas semanas, não era mais necessário bater nas portas dos aparta-mentos convocando as crianças, elas mesmas adquiriram esse hábito de avisar as crianças vizinhas que era hora da oficina. Avaliamos que fomos capazes de tra-balhar a concentração das crianças, incentivar a leitura e o contato com o livro quanto objeto interativo. Além de aprofundar nosso vínculo com as crianças, consolidamos uma rotina e alguns combinados para nossos encontros.

Com a mudança para a Ocupação Aqualtune, principalmente durante a tem-porada de Cantos de Refúgio, os encontros mudaram de foco de forma espontâ-nea. Acompanhando nossa rotina de ensaios e as apresentações do espetáculo, a curiosidade das crianças pelo teatro foi instigada. Elas expressaram um grande interesse pela peça e por tudo que envolvia a sua apresentação: queriam ver como era a operação de luz e som, o interior da coxia, a manipulação do cenário e das sombras. Queriam tocar nos objetos de cena, nos figurinos e nas máscaras. Em poucas semanas, decoraram falas e canções da peça. Remontamos cenas da peça com as crianças atuando e também trabalhamos com improvisos.

Assim, os encontros de mediação de leitura incorporaram esse desejo das crianças, mediando não apenas a leitura de livros, mas também o próprio acon-tecimento teatral que se ocorria ali, possibilitando o contato das crianças com todas as esferas da encenação.

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Dossiê Cantos de Rafúgio - 227

ApresentAções dA peçA cAntos de reFúGio

CIRCULAÇÃO NAS ESCOLASAs primeiras dez apresentações do espetáculo Cantos de Refúgio foram realiza-

das em Escolas Municipais de Ensino Fundamental de São Paulo. Três escolas foram escolhidas para essa circulação:

• EMEF Ministro Calógeras – duas apresentações para o Fundamental I• EMEF Paulo Nogueira Filho – quatro apresentações: duas para o Fun-

damental I e duas para o Fundamental II• EMEF Infante Dom Henrique – quatro apresentações: duas para o

Fundamental I e duas para o Fundamental IIO número de apresentações variou de acordo com o número de alunos de

cada instituição escolar e o espaço cedido para a montagem da peça. O objetivo era acolher todos os estudantes de um mesmo segmento no público, repetindo a apresentação quantas vezes fosse necessário. Optamos por apresentar para di-ferentes idades justamente para investigar o retorno de cada público. Montamos um verdadeiro teatro no meio do pátio de cada escola e tentamos escurecer o ambiente o máximo possível, de forma a valorizar a iluminação do espetáculo e o teatro de sombras. A média de público foi de duzentas crianças por apresenta-ção. A peça teve excelente recepção e a comunidade escolar participou ativamen-te de todas as apresentações, com um alto nível de envolvimento e concentração. Apesar de receberem a peça de formas bem diferentes, as repercussões foram muito positivas tanto no Ensino Fundamental I (crianças de 6 a 10 anos) quanto no Fundamental II (adolescentes de 11 a 14 anos), além de ter agradado os pro-fessores e funcionários. Esse foi um retorno importante, pois o intuito era criar uma obra infantil que fosse interessante também para jovens e adultos.

As crianças mantinham um olhar atento, de fascínio. Os adolescentes resisti-ram no início; não receberam as criaturas fantásticas com o mesmo entusiasmo que os mais novos. No entanto, com o decorrer da trama, perceberam a impor-tância dos temas tratados e, dessa forma, perceberam que o espetáculo também lhes dizia respeito. As discussões que os professores relataram ter desenvolvido com os estudantes depois da peça foram diversas - desde conversas sobre a guerra até relatos pessoais de chegada ao Brasil. Isso porque, na escolha das EMEFs que fariam parte dessa circulação, priorizamos escolas que recebem alunos imigran-tes. Destaque para as EMEFs Infante Dom Henrique e Paulo Nogueira Filho: 30% de seus estudantes são imigrantes ou filhos de imigrantes de diversas nacio-nalidades, como bolivianos, sírios, paraguaios e haitianos.

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Dossiê Cantos de Rafúgio - 229

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A fim de compreender melhor as impressões do público infantil, uma das in-tegrantes do Coletivo de Galochas (que também é professora de Artes na EMEF Paulo Nogueira Filho) pediu aos estudantes de Fundamental I que criassem um desenho a partir do espetáculo. Este trabalho resultou em uma pequena exposi-ção, exibida no último dia da nossa temporada no Núcleo Cultural Aqualtune.

TEMPORADA DA PEÇAFoi no Núcleo Cultural Aqualtune que a peça Cantos de Refúgio fez a sua es-

treia oficial, permanecendo dois meses em cartaz, do dia 11 de março a 29 de abril de 2017. As apresentações aconteciam aos sábados e domingos, às 16h. O espaço comporta um público de 50 pessoas, o que significou casa cheia em quase todas as apresentações. Ao fim do espetáculo, o público era convidado a experi-mentar comidas árabes preparadas por Hassan, refugiado sírio-palestino e mora-dor da Ocupação Leila Khaled. Importante destacar a presença das crianças da Ocupação Aqualtune ao longo de toda a temporada: público assíduo, além de cantarem as músicas e repetirem as falas das personagens, ajudaram na recepção e organização do público.

A temporada contou com ampla cobertura da mídia, sendo divulgada em dezenas de veículos impressos e on-line. Destaca-se a matéria na Seção Eleitos da Revista da Folha e a matéria para o Programa Em Pauta, da GloboNews, realizada pela jornalista Elisabete Pacheco. Em agosto de 2017, no aniversário de um ano do nosso processo, recebemos a pré-indicação ao Prêmio São Paulo de Teatro Infantil e Jovem na categoria que premia espetáculos com impacto social. Na descrição de nossa indicação, a justificativa: “(...) por apresentar às crianças da Ocupação Aqualtune, em Pinheiros, o tema muito atual da crise de refugiados pela guer-ra na Síria, no espetáculo Cantos de Refúgio”. Um reconhecimento que representou, para nós, a escolha acertada do tema e do local para nossa temporada.

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DIA DA TERRANo dia 30 de Março de 2017 celebramos o Dia da Terra, feriado muito im-

portante para a comunidade palestina. Nesta data rememora-se o ano de 1976, quando os palestinos saíram às ruas e convocaram uma greve geral após o anún-cio do governo israelense de uma violenta ação de expropriação de terras. Desde então, o 30 de Março se tornou uma data de festa e luta para os palestinos, tanto para os que lá ainda vivem como para aqueles em situação de refúgio. Neste dia celebra-se a revolta contra a colonização e festeja-se a resistência presente em cada palestino que mantém vivo o sonho de retorno à sua terra.

Neste ano de 2017, a comunidade palestina de São Paulo organizou sua pró-pria celebração no Al Janiah, restaurante árabe e centro cultural criado e gerido por refugiados palestinos. Foi com muita alegria que o Coletivo de Galochas recebeu o convite para apresentar o espetáculo Cantos de Refúgio na programação desse evento. A peça foi legendada em árabe para essa ocasião e tivemos a honra de apresentá-la para uma plateia lotada de amigas e amigos palestinos, amizades construídas ao longo do processo de pesquisa e criação.

Estávamos ansiosos e nervosos com a recepção do público palestino. Afi-nal de contas, Cantos de Refúgio é um espetáculo sobre a Palestina, mas criado por brasileiros. Qual seria a reação das famílias que inspiraram a montagem dessa peça? Sempre tivemos o cuidado e a preocupação de retratar sua cultura de forma cuidadosa e compreensiva, buscando valorizá-la. Mas será que havíamos conseguido isso? Essa apresentação seria a prova de fogo.

O resultado foi incrível, com aplausos em cena aberta e um público muito emocionado ao final. Após o espetáculo, vários refugiados nos agradeceram por “emprestar nossa voz à sua luta”. Nós é que temos que agradecer, por empresta-rem a história de suas vidas para que esse espetáculo fosse possível. No fim do evento, uma grande roda de dabke se formou. E dançamos dabke noite adentro, certos da importância e do significado do trabalho que fazemos.

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concLusão

Cantos de Refúgio foi uma experiência intensa de alteridade para todos os integrantes do Coletivo de Galochas. O processo de pesquisa e montagem, a aproximação com famílias de refugiados sírio-palestinos, o mergulho na cultura palestina tradicional e contemporânea, os laços e aproximações interculturais, tudo isso demonstrou que as diferenças são pontes e que a dor e a luta dos des-terrados é uma só: seja nas ocupações de moradia de São Paulo, seja nos campos de refugiados.

Compor um campo poético-teatral para levar esse tema para crianças brasi-leiras, circulando por escolas e ocupações, demonstrou para todos nós a im-portância de se falar do refúgio para o público infantil. Mais do que falar sobre deslocamentos populacionais, falar desse tema é discutir a violência do Estado e do Capital com nossas crianças; mesmo em processo de formação cognitiva, artística e cultural, as crianças de ocupações e escolas públicas já conhecem essa violência, pois a vivenciam em seu cotidiano. Não se tratava de pôr fim à inocên-cia ou ingenuidade do nosso público, imerso na realidade dura das grandes ci-dades. Pensamos em apresentar esses conflitos pela via positiva - o acolhimento. Esperamos que a peça tenha ampliado as noções de solidariedade e construído outros campos de percepção com as populações que sofrem essas violências, seja no Brasil ou no Oriente Médio.

Só temos a agradecer a todos e todas - desde crianças até idosos, passando por palestinos refugiados e militantes do movimento de luta por moradia - que nos ajudaram a construir esse espetáculo. Ele não seria possível sem a parceria permanente e os infinitos aprendizados que construímos ao longo do processo. “Um ramo frágil de oliveira continua sendo um ramo de oliveira para plantar”.

Shukran e muito obrigado.

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Dossiê Cantos de Rafúgio - 233

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EMEF Paulo Nogueira Filho

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Cantos de Refúgio: da Cena à Sala - 235

cantos de refúGio: da cena à sala

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Cantos de Refúgio: da Cena à Sala - 237

Cantos de refúgio: da Cena à sala

Jéssica Paes

— O que podemos fazer em uma aula de artes?— Desenhar.— Ótimo. O que mais?— Pintar.— E o que mais?

Silêncio.

Depois de um esforço de reflexão, num ímpeto desbravador, um estudante exclama: pintar na parede!

Ser professora de Artes na rede municipal de ensino em São Paulo começa, muitas vezes, assim. O domínio das artes visuais em detrimento das outras lin-guagens artísticas que estão previstas como base curricular para o Ensino Fun-damental é avassalador. Os estudantes muitas vezes nem imaginam que música, dança e teatro possam fazer parte de uma aula de artes. Aliás, às vezes nem sabem direito o que é teatro. Um deles, muito dedicado e que ama desenhar, me con-fidenciou que não gostava de teatro. Perguntei se ele já havia ido ao teatro, ele respondeu que achava que sim.

Ao entrar nas salas de aula de Ensino Fundamental I da EMEF Paulo Noguei-ra Filho, comecei a desenvolver meu trabalho como de costume. Por colaborar com o Coletivo de Galochas em seus processos de criação, quando o grupo foi contemplado pela 28ª edição da Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, uma oportunidade única de diálogo entre arte e educação surgiu. O projeto do Coletivo previa apresentações do espetáculo infantil Cantos de Refúgio em EMEFs, e a Paulo Nogueira foi uma delas. Por conhecer a peça e ter tempo de aula com os estudantes, pude desenvolver um breve trabalho de formação que foi muito significativo, tanto para o Coletivo de Galochas quanto para os estudantes. O trabalho descrito ocorreu com 11 salas de aula, de 1º a 4º ano do Ensino Fundamental I em fevereiro de 2017.

Preparação: contextualização

Em um primeiro momento, contei para as crianças que uma peça de teatro viria para a escola. Alguns ficaram entusiasmados, outros nem tanto. Fizemos

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um levantamento de quais elementos poderiam fazer parte de uma apresentação teatral. Uma discussão coletiva, escrevendo na lousa os elementos levantados: música, figurinos, luz, cenário, etc. Perguntava também quantos alunos já foram ao teatro. Em média, um pouco mais da metade. Na maior parte das vezes as-sistiram alguma coisa na escola de Educação Infantil. Chapeuzinho Vermelho.

Depois, a discussão partia para a temática. A peça trata do refúgio, migração e da questão Palestina. Nenhum deles fazia a menor ideia do que seria a Pales-tina. Mas refúgio eles entendem: refugiados são pessoas fugindo da guerra. Em poucas palavras tentei explicar brevemente onde fica e o que é a Palestina. Essa explicação variou muito de uma turma para a outra, de acordo com o interesse dos estudantes.

A apresentação

O dia das apresentações chegou. O Coletivo de Galochas chegou na esco-la não apenas com um cenário enxuto e pequenino, mas com uma estrutura completa. Cenário composto por estruturas de box truss e quatro camadas de cortinas, além de tecidos, lona e um painel para teatro de sombra. Estrutura de luz – refletores e mesa de luz, tripés - de som – caixas, mesa de som, computador – e de projeção. A montagem ocorreu no meio do pátio, envolvia escurecer as janelas com metros e metros de tecido para blackout e despertou a curiosidade de todos, inclusive dos professores.

Na hora de assistir, um grande frenesi e emoção. Do público e dos atores tam-bém: são muitas crianças na plateia! A peça começa e temos a atenção completa das crianças. O silêncio não, mas a atenção. Logo no início, uma figura mons-truosa entra em cena: a Ghouleh, figura do folclore árabe, que se assemelha um pouco ao nosso bicho papão. A reação é espantosa: as crianças gritam, acenam, colocam as mãos na cabeça, num misto de desespero e entusiasmo. Passado o choque, voltam a prestar atenção. Interagem durante todos os acontecimentos, com risadas e sobressaltos. Comentam a ação, dão conselhos às personagens: “Leila, não casa com ele! Ele está mentindo!” Demonstram uma clareza e com-preensão em seus comentários. Em uma das cenas, a família palestina é vítima de um bombardeio. Construída poeticamente e evitando a violência explícita, essa cena termina em um blackout e silêncio. Ouvimos da plateia: “Eles morre-ram? ” A peça segue. Ao final, as crianças querem abraçar os atores, tirar fotos. Ver o cenário e suas cortinas, ver os objetos.

O retorno: desenhos e discussão

Depois do espetáculo, voltamos à sala de aula. Este é o momento de ouvir o que as crianças têm a dizer. A instrução da atividade foi extremamente simples: faça um desenho sobre a peça. Propositalmente foi uma instrução ampla, sem a intenção de dirigir qualquer leitura, mas deixar aflorar as impressões, sem julgamentos. É muito interessante observar o surgimento de temas em comum em uma mesma sala de aula. Uma turma de 2º ano retratou muito a cena na

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qual dois personagens, Grão e Jamal, são presos – mais da metade dessa sala desenhou esse momento. Já em uma outra, de 4º ano, um retrato da família palestina foi muito recorrente. Dentre os mais novos, de 1º ano, a Ghouleh foi muito retratada. Pensando nessa contaminação temática, podemos pensar que tal fato se dá na hora da produção do desenho: as crianças conversam, olham os desenhos umas das outras enquanto criam os seus. Mas também podemos lembrar que na hora de assistir à peça as crianças foram organizadas na plateia por sala de aula, portanto assistiram juntas – compartilhando percepções - e de um mesmo ângulo.

Um elemento que foi retratado em todas as salas foi a estrutura do cenário e da iluminação – a estrutura de box truss, os cortinados e até mesmo as luzes coloridas dos refletores foram desenhados com frequência. A estrutura toda foi realmente impactante, pois o pátio, espaço do lanche e do recreio, espaço das crianças, virou outra coisa naquele dia. Entre uma apresentação e outra, durante o recreio e durante entradas e saídas (inclusive de um dia para o outro), toda a estrutura da peça ficou ali, no meio do pátio: cenário, som, iluminação, adere-ço, tudo. Ao alcance dos alunos. Os inspetores de alunos, estavam de olho. Em sala de aula, ao falar que o teatro vinha para a escola, pedi que respeitassem o espaço de cena. Apesar de alguns curiosos aproximando os pezinhos da lona no cenário, ou tocando nas cortinas, logo vinha um colega intervir: “Não mexe! É do teatro! ” Nenhum problema com o equipamento no pátio.

Em uma das salas de 1º ano, a professora escreveu, junto com as crianças, uma carta coletiva agradecendo pela peça e na sequência cada um criou um desenho.

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“Professora Jéssica. Muito obrigada pela peça. Nós achamos linda”

Nessa turma, uma das crianças estava pintando toda a folha de laranja. A pro-fessora perguntou sobre o desenho e ele respondeu “ é o deserto”. O deserto não foi retratado no cenário, mas na interpretação dos atores (há uma cena de traves-sia pelo deserto), na sonoplastia e iluminação e no jogo com as cortinas do cená-rio. Mas é parte importante da peça. Em outra sala de 1º ano uma menina encheu o desenho de sinais e estrelinhas vermelhas. Ela me contou que era a guerra.

Outros elementos que não são explicitamente representados pictograficamen-te, mas que complementam a narrativa, surgiram nos desenhos: a noite em algu-mas cenas e a gruta da Ghouleh. Além desses, flores, montanhas, sol, arco-íris, nuvens e passarinhos também apareceram. Adereços que não fizeram parte da peça também surgiram associados à alguns personagens, e suas características físicas às vezes foram retratadas de acordo com os traços dos atores, mas outras vezes não. A personagem Leila, por exemplo, foi retratada mais de uma vez como uma menina loira de cabelos longos – a atriz que interpretou o papel tem cabelo castanho, bem curto.

Depois da produção dos desenhos, propus uma nova discussão: sobre o que falava a peça? Nesta conversa pudemos aprofundar um pouco os temas abor-dados. Todas as crianças tinham clareza de que havia uma guerra, e de que ha-

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via um desterro. Também reconheceram a necessidade de acolhimento que os personagens apresentavam ao chegar em terras brasileiras, tão desconhecidas. Mencionaram também a perda dos familiares de Leila e Jamal, que morrem na guerra. Em algumas turmas, chegamos a reflexões bastante profundas sobre a guerra, seus motivos e seus impactos. Uma das crianças contou que sua família veio para o Brasil fugindo da Síria – ela nasceu aqui, a mãe é brasileira e o pai sírio. Depois da peça, ela compartilhou com a turma a história do tio dela, que faleceu na guerra da Síria.

Em uma das salas de 3º ano havia uma aluna refugiada Síria, que havia acabado de chegar na escola e no Brasil. Ela não falava nem uma palavra de português. As professoras baixavam aplicativos de tradução em seus celulares para tentar falar com ela. Os colegas tentavam interagir, mas algumas barreiras se mantinham. Eu estava ansiosa pela reação dela à peça, mas a menina ficou doente e não veio à escola no dia da peça. Fiquei triste. Um dos estudantes, compartilhando essa tris-teza, me disse que era uma pena, “quem mais precisava ver a peça faltou! ” Ele me disse isso enquanto a turma discutia a situação de refúgio, e tudo aquilo pelo qual a colega estava passando com sua família. Eles passaram a perceber a menina síria de outra forma. Isso me fez pensar que meu aluno não estava certo: quem mais precisava assistir à peça não era a menina síria refugiada, eram todos os outros.

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Desdobramentos

Após os desenhos e discussão dei sequência às aulas de artes. A escolha foi en-sinar uma dança para as crianças, o dabke. O dabke é uma dança de roda típica da Palestina, e foi apresentada na peça. As crianças ficaram bastante entusiasma-das de aprender alguns dos passos que elas viram em cena, e reconheceram as músicas árabes por terem ouvido na peça. Apesar do entusiasmo, a coordenação motora para a realização da dança, apesar de ter passos simples, foi um desafio. Dançar em roda, manter o ritmo e coordenar os passos: para as crianças de 6 anos foi difícil. Para as de 9 bem mais fácil. A pedido dos estudantes, hoje estamos organizando uma grande roda de dabke a ser apresentada na Mostra Cultural da escola em novembro.

Conclusão

A experiência com a apresentação de Cantos de Refúgio na EMEF Paulo No-gueira Filho foi riquíssima e impressionante. O retorno das crianças foi impor-tante para o Coletivo de Galochas, refletindo em ajustes e escolhas cênicas que visaram aprimorar o espetáculo. Para os estudantes foi uma vivência nova com importância em dois aspectos: a temática e o acontecimento teatral.

No sentido do acontecimento teatral, para várias foi o primeiro contato com uma peça de teatro. Em tempos de realidade virtual, jogos e cinema o encontro teatral é cada vez mais precioso e cada vez mais raro. Propiciar esse contato nas escolas públicas torna-se de importância fundamental. E mais, apresentar um espetáculo comprometido com sua qualidade e excelência artística, e não apenas um caça-níquel para distrair as crianças. Uma das professoras, depois de assistir comentou: “Eu pensei que você ia trazer uma pecinha, mas é teatro de verdade! ” Considerei um elogio.

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No sentido da temática, falar de refúgio, guerra e, principalmente, solidarieda-de para crianças é fundamental nos dias de hoje. É importante que elas tenham outros repertórios para elaborar sobre sentimentos como a perda e a sensação de não-pertencimento, por exemplo, não ficando reféns apenas das referências da grande mídia. A solidariedade e a capacidade de compreender as dificuldades do outro também são imprescindíveis. Vale notar que quase um terço da comunida-de dessa escola é composta por imigrantes e filhos de imigrantes. Destaque para a comunidade boliviana, muito presente na escola. Assim, o tema da migração foi caro aos alunos. Podemos reparar nas reações com relação ao personagem Grão. Grão é um brasileiro, o primeiro a receber Jamal quando ele chega da Síria. A princípio hostil e quase agressivo, Grão enfrenta Jamal e despreza suas dificuldades. Com o desenrolar da trama, Grão se solidariza com Jamal e ajuda--o, surgindo então uma amizade. Grão costuma ser um personagem muito bem recebido pela plateia, mas nessa escola não foi. O desprezo inicial pelo migrante (apesar de ser transformado depois) não foi perdoado pelas crianças.

Por fim, vale frisar que para mim, como artista e arte-educadora, a experiência aqui descrita não cabe em palavras. Depois da peça, aquele menino que havia me confidenciado no início do ano que não gostava de teatro, veio me dizer: “professora, mudei de ideia. Eu gosto de teatro sim! ”

Conciliar educação e criação artística é uma tarefa árdua, difícil e ingrata. Ao mesmo tempo em que as duas áreas apresentam lampejos fugazes de intersecção muito potente, a maior parte do tempo conflitam, pelo fato de ambas exigirem tanto tempo e dedicação. Momentos como esse deixam claro o quanto a arte e a educação podem ser potentes quando conseguem caminhar juntas, mesmo que seja por poucos e pequenos passos. Sigo nesta caminhada, buscando momentos de encontro como esse.

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Cantos de Refúgio: da Cena à Sala - 249

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Cantos de Refúgio: da Cena à Sala - 251

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Partituras - 253

Partituras

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índice das Músicas e Partituras

Ao menos por um tempo ........................................................203 | 257Ao sol da minha terra ............................................................. 169 | 261Arruaça ..............................................................................97, 155 | 264Canto de Refúgio .................................................................... 169 | 267Em que noite mataremos o rei ................................101, 142, 106 | 268Lamento do Barba Molhada ..................................................... 29 | 272Piratas do Kuttel Daddel Du III ............................................... 28 | 273Pré sal, cana, pau-brasil .............................................................48 | 275Rondó aos corpos ................................................................... 136 | 278Só mais um ...............................................................................63 | 282

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Ao Menos por Um Tempo

Sa- be lá, por on- de'eu an- dei

o que pas- sei

6

o que dei- xei pra le- var e pra lem-

13

brar não ter mais lu- gar

18

me fez bus- car do ou- tro

24

la- do do mar e'de no- vo ten- tar. ao

30

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Antonio Herci São Paulo, 2016

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Ao Menos por Um Tempo — 257

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me- nos por um tem- po ter lar ao

35

me- nos por um tem- po so- nhar ao

39

me- nos por um tem- po ter paz mas

43

sem- pre'ao mes- mo tem- po LU- TAR!

47

lu- tar pe- lo chão e se

52

não tem chão plan- tar no

57

so- lo da me- mó- ria e

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258 — Coletivo de Galochas Dramaturgia Completa

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re- gar com re- sis- tên- cia pra

65

so- nhar com no- va'his- tó- ria pra

69

ter paz. um ra- mo frá- gil de'o-

73

li- vei- ra con- ti- nu- a sen-

77

do'um ra- mo de'o- li- vei- ra pra

81

plan- tar. con- ti- nu- a sen- do'um ra-

85

mo de'o- li- vei- ra pra plan-

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Ao Menos por Um Tempo — 259

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tar. ao me- nos por um tem- po ter

94

lar ao me- nos por um tem- po so-

98

nhar ao men- os por um tem- po ter

102

paz mas sem- pre'ao mes- mo tem- po LU-

106

TAR! LU- TAR! LU- TAR!

110

LU- TAR! LU- TAR!

115

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260 — Coletivo de Galochas Dramaturgia Completa

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Ao sol da Minha Terra

Eu vou can- tar ao

Sol da mi- nha ter- ra à som-

6

bra de'u- ma ban- dei- ra que'o des-

10

ti- no des- fo- lhou. Eu vou can-

14

tar ao Sol da mi- nha ter- ra

19

à som- bra de'u- ma ban- dei- ra

25

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Kleber Palmeira São Paulo, 2016

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Ao Sol da Minha Terra — 261

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que'o des- ti- no des- fo- lhou.

29

So- mos to- dos pa- les- ti- nos re- fu- gi-

32

a- dos ex- pul- sos do lar Le- van- ta- re- mos nos- sas

34

pe- dras a vi- da'é'u- ma guer- ra'e nós va- mos lu-

37

tar Car- re- ga- re- mos nos- sas cha- ves com a cer-

39

te- za que va- mos vol- tar So- mos to- dos pa- les-

42

ti- nos re- fu- gi- a- dos ex- pul- sos do lar

45

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262 — Coletivo de Galochas Dramaturgia Completa

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Eu vou can- tar ao

49

da mi- nha ter- ra à som-

54

bra de'u- ma ban- dei- ra que'o des-

58

ti- no des- fo- lhou. Eu vou can- tar

62

ao Sol da mi- nha ter- ra

68

à som- bra de'u- ma ban- dei- ra

73

que'o des- ti- no des- fo- lhou.

77

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Ao Sol da Minha Terra — 263

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Arruaça

Os do- nos do po- der que te- mam

Que a re- vol- ta che- gou Ho- je'a

4

pra- ça'é um pal- co de guer- ra Meu i- ti- ne- rá-

6

rio Pra ru- a mu- dou Ho- je'a

8

pra- ça'é um pal- co de guer- ra Meu i- ti- ne- rá-

10

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Rafael Presto São Paulo, 2016

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264 — Coletivo de Galochas Dramaturgia Completa

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rio Pra ru- a mu- dou En- tão va- mos can- tar

12

Mo- lo- to- ves e so- nhos de- sem- bai- nhar

15

As- sim co- mo'es- tá Es- se

18

sam- ba não po- de fi- car Se meu blo- co não po- de can-

20

tar Se o di- a não po- de rai- ar Vou ba-

23

ter meu pan- dei- ro na pra- ça Fa- zer ar- ru- a-

26

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Arruaça — 265

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ça Com'o po- vo can- tar! Vou ba-

28

ter meu pan- dei- ro na pra- ça Fa- zer ar- ru- a-

30

ça Com'o po- vo can- tar!

32

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266 — Coletivo de Galochas Dramaturgia Completa

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Canto de Refúgio

A- tra- ves- sei de- ser- tos e mon- ta- nhas sol-

da- dos e re- fú- gios A guer- ra'e su- a fo- me Pra che-

5

gar a- té a- qui Dois fi- lhos na bar- ri- ga Que

9

le- vam nos- so so- nho Tam- bém a nos- sa

13

si- na Nos- sa ter- ra, Pa- les- ti- na.

16

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Rafael Presto São Paulo, 2016

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Canto de Refúgio — 267

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Em que Noite Mataremos o Rei?

On- de'os reis es- fo- me- a- dos tro- pe-

çam Nos ta- pe- tes de ve- lu- do

4

das man- sões de cris- tais Lá co- nhe-

7

ci es- se bo- bo- da- cor- te Es- se

10

san- to ho- mem lou- co Que me con- tou

13

coi- sas de- mais Jun- tos be- be- mos e can- ta-

16

mos Lon- ge da lei dos ho- mens de po- der

20

Qual o seu pla- no Bo- bo- da- cor-

24

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Rafael Presto

São Paulo, 2016

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268 — Coletivo de Galochas Dramaturgia Completa

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te Em que noi- te ma- ta- re- mos o rei?

29

Qual o seu pla- no Bo- bo- da- cor- te Em que

34

noi- te ma- ta- re- mos o rei? E fa-

38

la- mos da mi- sé- ria dos ho- mens E do

42

frio que se'a- cu- mu- la nos be- cos da ci- da- de Das mu-

46

lhe- res que se la- vam nas sar- je- tas Das cri-

50

an- ças vi- ran- do fu- ma- ça por cau- sa da fo-

54

me Qual o seu pla- no

58

Bo- bo- da- cor- te Em que noi- te ma- ta- re- mos o rei?

62

Qual o seu pla- no Bo- bo- da- cor-

66

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Em que Noite Mataremos o Rei? — 269

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te Em que noi- te ma- ta- re- mos o rei?

71

Pe- ga- re- mos em ar- mas? Er- gue-

75

re- mos ban- dei- ras? Fa- re- mos a ci- da- de'ar- der

78

to- da'em ver- me- lho? Mon- ta- re- mos nos- sas

82

bom- bas nos pa- lá- cios, par- la- men- tos? Ar- ma-

85

re- mos gui- lho- ti- nas? Dar i- ní- cio'a'um- a guer-

88

ri- lha? Ver as ru- as to- ma- das no ca- lor de um no-

91

vo di'a'em- ter- ra- re- mos nos- sos mor- tos? Ser mai-

95

or do que'o can- sa- ço? Em que noi- te ma- ta-

98

re- mos o rei? Qual o seu pla-

101

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270 — Coletivo de Galochas Dramaturgia Completa

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no Bo- bo- da- cor- te Em que noi- te ma- ta-

105

re- mos o rei? Qual o seu pla- no

109

Bo- bo- da- cor- te Em que noi- te ma- ta- re- mos o rei?

114

Em que noi- te ma- ta- re- mos o rei?

118

Em que noi- te ma- ta- re- mos Em que noi- te ma- ta-

123

re- mos Em que noi- te ma- ta-

127

re- mos o rei?

129

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Em que Noite Mataremos o Rei? — 271

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Lamento do Barba Molhada

Só me so- bra'o só Des- se mal eu vou vi-

ver Nes- sa vi- da Bu- ca- nei- ra Per- di- do'es-

4

tou sem a Lo- re- na Ve- lho sou Dor eu

7

te- nho Sem Lo- re- na, a ba- le- ia

10

No meu so- nho a vi Tão re- al que sen-

13

ti Sua pe- le Seu ba- fo Seu can-

16

to a di- zer Uhhhh.

19

4

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Daniel Lopes

São Paulo, 2017

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272 — Coletivo de Galochas Dramaturgia Completa

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Piratas Do Kuttel Daddel Du III

Nós so- mos os pi- ra- tas do Ku- ttel Da- ddel

Du Nós va- mos sa- que- an- do pe- los ma- res da

5

Luz Nós so- mos vi- o- len- tos, ma- ta- mos sem ra-

9

zão O ser- vi- ço'é com- ple- to, ca- be- ça, pé e

13

mão. Nós so- mos os pi- ra- tas, pi- ra- tas bem le-

17

gais! Nós va- mos en- trar Sem nos im- por- tar O

21

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Gabriel HernandesSão Paulo, 2011

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Piratas Do Kuttel Daddel Du III — 273

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quan- to di- nhei- ro nós va- mos le- var Não

24

fi- que ner- vo- so Se não for gos- to- so Fu-

26

ra- mos seu o- lho'e rou- ba- mos um bar!

28

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274 — Coletivo de Galochas Dramaturgia Completa

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Pré sal, cana, pau-brasil

Des- de Lam- pi- ão- ã- ão- ã-

ão, a- té'o Mor- ro do'A- le- mão Que'a in- clu- são

3

ão ba- te'a- qui no meu por- tão

6

E- la vem de bran- co,

9

vem tra- zen- do'e- du- ca- ção Mas tam- bém de bo-

11

ta de pa- ta'e de ca- vei-

14

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Antonio Herci São Paulo, 2010

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Pré sal, cana, pau-brasil — 275

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rão!

Tem que tra- ba- lhar Pi- ra- ta Tem

16

não, tem que'es- tu- da Pi- ra- ta'a go- ra

17

sim tem que tra- ba- lhar Pi- ra- ta Mas do

18

jei- to que'o di- a- bo do mer- ca- do gos- ta

19

Tem que pa- ra de'ou- vir fun- k Mo- le- que'A- d- qui-

20

rir cul- tu- ra cul- ta de bran- co Mo- le- que'E se jun-

21

tar mais do que três ou qua- tro nu- ma pra- ça'É'um bom mo-

22

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276 — Coletivo de Galochas Dramaturgia Completa

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ti- vo pra su- mir com to- do mun- do

23

Des- de Lam- pi- ão ã- ão- ã-

24

ão, a- té'o Mor- ro do'A- le- mão Que'a in- clu- são

26

ão ba- te'a- qui no meu por- tão

29

E- la vem de bran- co,

32

vem tra- zen- do'e- du- ca- ção Mas tam- bém de bo-

34

ta de pa- ta'e de ca- vei- rão!

37

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Pré sal, cana, pau-brasil — 277

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Rondó aos Corpos

Mais um cor- po mor- to'ou vi- vo, Tan- to

faz no li- xão: Um cor- po mor- to-

6

vi- vo Pu- xa'um cor- po vi- vo- mor- to

12

Nu- ma cai- xa vem o cor- po, Nou- tra

17

cai- xa vem os so- nhos, Nou tra'a- in- da

22

vem o gri- to Que fi- cou por gri- tar!

27

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Antonio HerciSão Paulo, 2017

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Nes- sa bol- sa vem a mão Que quis, mas

33

não to- cou A fa- ce da mo- ça

39

Que vem na- que- le sa- co Mais um

45

cor- po mor- to'ou vi- vo, Tan- to faz no li-

50

xão: Um cor- po mor- to- vi- vo Pu- xa'um

56

cor- po vi- vo- mor- to Não se pen- sa'em te-

62

mer a mor- te Estan- do pre- so nu- ma

67

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cai- xa, Só se pen- sa'em sa- ir da cai- xa,

72

Só se pen- sa'em al- çar- se'à sor- te; Só se

77

pen- sa'em rom- per o la- cre, Só se

82

pen- sa'em'es- ti- car a per- na, Só se

86

pen- sa'em sa- ir da- li, E vi- ver!

90

Mas um cor- po mor- to'ou vi- vo,

96

Tan- to faz no li- xão: Um cor- po

101

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280 — Coletivo de Galochas Dramaturgia Completa

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mor- to- vi- vo Pu- xa'um cor- po vi- vo-

107

mor- to. Mas um cor- po mor- to'ou vi- vo,

112

Tan- to faz no li- xão: Um cor- po

117

mor- to- vi- vo xa'um cor- po vi- vo- mor- to.

123

Mas um cor- po mor- to'ou vi- vo, Tan- to faz

129

no li- xão: Um cor- po mor- to-

135

vi- vo Pu-xa'um cor- po vi- vo- mor- to.

140

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Rondó aos Corpos — 281

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Só Mais Um

Só mais um Só mais um ín-

dio Só mais u- ma Fa-

4

mí- lia des- pe- ja- da Só mais um

7

Só mais um de- do'Um

10

so- nho Só mais u- ma ár- vo- re

12

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Antonio Herci São Paulo, 2016

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Mais um cão Só mais um

15

Só mais um tan- que Só mais um

19

Só mais um pos- te'U- ma cor- ren- te

23

Só mais um So mais um ne- gro mas

26

po- de ser Um bo- li- vi- a- no,

29

um bai- a- no'um boi- o- la

31

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Só Mais Um — 283

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Um es- tra- nho qual- quer!

33

Só mais um Jo- vem a-

36

trás das gra- des

38

Só mais um Ve- lho num

40

cor- re- dor de'es- pe- ra Só

42

mais um su- mi- ço! U- ma

44

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284 — Coletivo de Galochas Dramaturgia Completa

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fo- me de vi- da U- ma

46

se- de de san- gue U- ma

48

go- ta de lu- cro! Pra vo-

50

cêcê So- mos su- jos ru- fi-

52

ões Ma- ni- fes- tan- tes la-

53

drões Tra- fi- can- tes de- lin-

54

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Só Mais Um — 285

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quen- tes Fa- ve- la- dos o- cu-

55

pan- tes Gays tra- ves- tis sa- fa-

56

dos Ga- li- nhas de- so- cu- pa-

57

dos E eu lhe per- gun- to'en- tão:

58

On- de'es- tá o po- vo? O

59

po- vo tá e- qui- pan- do'o po- vo tá- o- cu- pan- do'o

61

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286 — Coletivo de Galochas Dramaturgia Completa

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po- vo tá o- cu- pan- do'o po- vo o

63

po- vo tá e- qui- pan- do'o po- vo tá- o- cu- pan- do'o

65

po- vo tá o- cu- pan- do

67

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Só Mais Um — 287

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2 - Coletivo de Galochas - Dramaturgia Completa

Conecta Brasil

Coletivo de Galochas: Dramaturgia Completa apresenta um compilado de todas as

obras dramatúrgicas escritas pelo grupo.

São quatro peças autorais, criadas, escritas e encenadas: Piratas de Galochas,

Revolução das Galochas, Mau Lugar e Cantos de Refúgio.

O Dossiê Cantos de Refúgio, na última parte do livro, aborda o processo de pesquisa e criação do primeiro

espetáculo infantil do grupo.